A Ética Do Discurso Religioso, Entre o Estratégico e o Comunicativo

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  • 7/23/2019 A tica Do Discurso Religioso, Entre o Estratgico e o Comunicativo

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    A tica do discurso religioso, entre o estratgico e o comunicativo

    Luiz Signates

    Introduo

    A histria do pensamento moderno tem sido a histria da perda da fora dos argumentos

    religiosos e da capacidade de conferir explicaes ao mundo a partir dos dogmas e fundamentos

    absolutos. O pensamento religioso tem perdido a capacidade de explicar o mundo objetivo para as

    cincias naturais, o mundo intersubjetivo para as cincias humanas e sociais e, mais recentemente, o

    mundo subjetivo para as disciplinas psicolgicas e psicanalticas. A esfera religiosa acabou sendo

    transferida para o movedio territrio do mstico, o misterioso que precisou se pretender inexplicvelpor definio, tal a essencialidade subjetiva presumida.

    Entretanto, a religio no morreu. Sobreviveu laicizao do Estado, ao agnosticismo e

    ateizao das cincias e filosofias e materializao dos grandes objetivos humanos (embora a

    incidncia prtica destes sentidos nos parea bem menor do que o que geralmente se admite). E no

    apenas sobreviveu como se poderia afirmar de um nufrago que escapa tragdia, semimorto e

    esfaimado , a religio manteve-se forte, em sua capacidade de aglutinar multides e exercer fascnio

    e poder sobre populaes inteiras.

    Uma pretensa filosofia materialista da conscincia, que atribua tal realidade social

    ignorncia e misria, sofre a dura crtica de ser contraftica (no de modo algum evidente que os

    religiosos estejam somente ou mesmo principalmente entre tais categorias, por mais iluministas ou

    elitistas sejam os critrios que se possa utilizar), perdendo assim seu aspecto materialista, j que

    acaba fundamentando-se num posicionamento de natureza ideolgica. Trata-se, alm disso, de uma

    formulao simplista e pretensiosa, porque deixa de considerar ou subconsidera aspectos

    fundamentais dos processos de sociabilidade, cultura e construo de sentidos e significados nas

    sociedades modernas e contemporneas.

    A religio de fato no morreu. Isso, porm, no significa que tenha passado inclume s

    transformaes histricas e culturais da modernidade. Efetivamente, a religio se modernizou, no

    sentido filosfico de adequar-se de forma negociada aos sentidos da modernidade. Trata-se, a

    Luiz Signates jornalista e professor assistente da Universidade Federal de Gois. Especialista em Polticas Pblicas pela UFG, e Mestre

    em Comunicao pela Universidade de Braslia, cursa atualmente o doutorado no Departamento de Cinema, Rdio e TV na Escola de

    Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo.

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    modernizao da religio, de uma movimentao histrico-social cujas origens podem ser

    encontradas na extraordinria conjuno operada pelo cristianismo entre as orientaes scio-

    culturais de pelo menos trs sentidos da antigidade: a pretenso universalista da filosofia grega, a

    monotesta da cultura judaica e a imperialista da histria romana. Tal conjuno ajuda sobremaneira

    a compreender a construo Catlica (universal) que transfunde o um s Deus do compromissoidentitrio judaico para o nico Deus, transpondo um privilgio local para o plano de uma

    postulao de validade absoluta, e dentro desse sentido, lanando-se aos projetos de conquista e

    hegemonia do mundo.

    trivial considerar que tais sentidos no se restringe esfera da crena, mas constitui-se em

    racionalidade fundante da modernidade ocidental. Quando a superao da Idade Mdia irrompe na

    forma da laicizao do Estado e da sociedade, as construes cientfica e filosfica mantiveram,

    apesar da ruptura com certas formas de tesmo, o projeto cristo praticamente intocado, no plano

    das prticas e dos sentidos. O humanismo, entretanto, no campo da religiosidade, determinou as

    condies de sobrevivncia da religio, ao redimensionar esse projeto ao que talvez possa ser

    chamado de monotesmo mitigado, ou seja, a um quase politesmo estruturado a partir da

    diversidade de crenas a maioria das quais, cada uma, monotesta sua maneira. Eis que, lentamente,

    com a fundao da sociedade de mercado, evidencia-se o que se traduz pela ps-modernizao da

    religio.

    A autonomizao (moderna) das esferas de vida culminou na autonomizao religiosa

    (vinculadas, numa perspectiva weberiana, racionalidade moral-prtica), momento em que a religio

    como identidade familiar, regional ou tradicional deu lugar prtica religiosa enquanto assuno

    voluntria de princpios e crenas, deixando assim de distinguir coletividades para identificar

    indivduos e instituies marcadas por uma discursividade at certo ponto especialista; e a

    fragmentao (ps-moderna) dos sentidos engendrou a fragmentao das propostas de f e, moto

    continuo, a tica capitalista da concorrncia implantou a disputa por mercados entre as instituiesideolgicas e jurdicas nas quais se materializaram as referencialidades fragmentrias. Nasce a

    religio ps-moderna, para a qual o movimento New Agetalvez seja o mais bem acabado exemplo

    (Terrin, 1992).

    Aplicada s movimentaes religiosas, independente da validade que tais sentidos possam ter

    para outras esferas sociais, a modernizao da religio engendrou, desde a expanso do cristianismo

    a partir de Paulo de Tarso, uma caracterstica tpica de discursividade: o conversionismo, que aqui

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    conceituamos como sendo o uso argumentativo e/ou performtico da linguagem para modificar

    vnculos religiosos, prticas rituais e disposies de crena. No quadro de uma ps-modernizao da

    prtica religiosa, possvel identificarmos o aprofundamento da natureza performtica dessa

    discursividade, sobretudo pela emergncia das prticas carismticas e pentecostais das igrejas, de

    certa forma j existentes nos ritos medinicos e nas diversas formas de mentalismo, fluidicismo ecomportamentalismo das demais tradies.

    1. O discurso na tica de Habermas: marcas do estratgico e do comunicativo

    O recorte deste artigo, contudo, no pode abranger todos esses sentidos. Ficaremos com a

    modernizao e com a sua discursividade caracterstica, o conversionismo. Dois aspectos distinguem

    esse processo, podendo ser tomados como espaos heursticos de pesquisa e tambm como

    categorias de anlise: a institucionalidade e a discursividade. A primeira diz respeito s formas

    concretas de organizao dos contedos e prticas religiosos e a segunda refere-se aos jogos

    discursivos dentro dos quais as imagens religiosas de mundo e os rituais institucionalizados se

    movimentam no espao social.

    Numa perspectiva habermasiana que parcialmente a deste trabalho , tais espaos podem

    ser categorizados como sendo as interaes sistmicas e as relacionadas ao mundo da vida, tratadas

    a partir do mbito da esfera religiosa. Cada um desses tipos de interao implica uma orientao

    especfica, como coordenadora de aes sociais: estratgico-instrumental, no mbito sistmico, e

    comunicativa, no quadro do mundo da vida. Este artigo pretende, por problemas de espao, limitar-

    se questo da discursividade e, nesse sentido, levantar o problema do discurso conversionista,

    explcito em algumas denominaes religiosas e implcito em outras, procurando assim verificar at

    que ponto esse discurso se movimenta dentro de uma lgica estratgico-instrumental ou de uma

    lgica comunicativa.Essa tipificao construda por Habermas (1981) a partir da crtica que faz teoria

    weberiana da ao. Habermas questiona a limitao da teoria de Max Weber a contextos

    exclusivamente teleolgicos, isto , orientados a objetivos. A opo, ento, investigar a

    racionalizao social levando em considerao o conceito de ao comunicativa, baseado na teoria

    dos atos de fala (Austin). Na ao racional orientada a fins, o ator elege meios (adequados) e

    considera conseqncias (condies de xito, sendo o xito a efetuao no mundo do estado de

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    coisas desejado), para atingir a meta (fins concretos). Os efeitos da ao podem ser: resultados (fim

    desejado); conseqncias (previses do ator); e efeitos colaterais (que o ator no previu). Habermas

    subdivide em dois tipos, as aes orientadas ao xito: instrumentais, cujas regras de ao tcnicas

    medem-se pelo grau de eficcia da interveno e podem ser associadas a interaes sociais; e

    estratgicas, cujas regras de eleio racional medem-se pelo grau de influncia sobre as decises deum oponente racional e so, elas mesmas, aes sociais. E, em seguida, distingue as aes

    orientadas ao entendimento: comunicativas, cujos atores no fazem o clculo egocntrico de

    resultados, por buscarem atos de entendimento, e nem so orientados ao prprio xito, por buscarem

    fins individuais baseados numa definio compartilhada da situao (negociao). Um acordo

    comunicativo, por definio, no pode ser induzido de fora, mas tem que ser aceito como vlido

    pelos participantes; deve ter uma base racional; e se baseia em convices comuns.

    Para identificar dentro desse modelo os atos de fala, Habermas trabalha a partir de Austin,

    que distingue os atos de fala como: locucionrio (que expressa estados de coisas, diz algo,

    utilizando-se para isso de oraes enunciativas e nominalizadas); ilocucionrio (que realiza uma

    ao dizendo algo, fixa o modo em que se emprega uma orao, por meio de afirmaes, promessas,

    confisses, etc., e cuja condio padro o verbo na primeira pessoa do indicativo); e

    perlocucionrio(que causa um efeito sobre o ouvinte ou o mundo). Os atos de fala resultantes do

    componente ilocucionrio so auto-suficientes, isto , o propsito que o ouvinte entenda e aceite a

    emisso, enquanto que nos perlocucionrios o ato de fala assume papel de ao teleolgica.

    O objetivo ilocucionrio deriva do significado da orao, os atos de fala se identificam a si

    mesmos, ao passo que o objetivo perlocucionrio no se segue do contedo manifesto, s podendo

    ser determinado pela averiguao das intenes do agente, isto , o destinatrio infere fins a partir do

    contexto. O xito ilocucionrio de uma orao ocorre apenas se o destinatrio entende a afirmao e

    a aceita como verdadeira, fundando obrigaes de ao para ele e expectativas de ao para o

    falante, independente das conseqncias se produzirem ou no. Os efeitos perlocucionrios, por suavez, surgem quando os atos ilocucionrios desempenham um papel num plexo de ao teleolgica. O

    xito ilocucionrio de uma expresso no condio suficiente para gerar o efeito perlocucionrio,

    pois este se insere num contexto de ao teleolgica que vai alm do ato de fala.

    As concluses de Austin so de que os xitos ilocucionrios tm com o ato de fala uma

    relao interna ou regulada por convenes, ao passo que os efeitos perlocucionrios dependem de

    efeitos contingentes e no so fixados por convenes. Habermas, no entanto, considera

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    problemtico o critrio de convencionalidade, pois as convenes semnticas dos predicados da ao

    com que se formam atos ilocucionrios excluem, em alguns casos, certas classes de efeitos

    perlocucionrios.

    Tal dificuldade levou Strawson, conforme Habermas (1981), a substituir os critrios de

    convencionalidade pelo de demarcao distinta. Atos perlocucionrios seriam uma subclasse de

    aes teleolgicas que o ator pode realizar por atos de fala, na condio de no confessar como tal o

    fim de sua ao. Isto : o falante, se quer ter xito, no pode dar a conhecer seus objetivos. Ao

    contrrio, os fins ilocucionrios s podem ser conseguidos fazendo-se expressos. Habermas

    considera, porm, que essa distino no tem carter analtico, pois, se os efeitos perlocucionrios

    so indcio da integrao de atos de fala em contextos de interao estratgica, os ilocucionrios, por

    sua vez, so includos em aes teleolgicas (orientadas ao xito), donde se conclui que os atos de

    fala s servem a fins perlocucionrios se so aptos a fins ilocucionrios (se o ouvinte no entender,

    nem atuando teleologicamente o falante pode induzi-lo sua finalidade). Mas, como os atos de fala

    nem sempre funcionam assim, as estruturas da comunicao lingstica, para Habermas, tm de se

    explicar sem recorrer s estruturas da atividade teleolgica, pois a ao orientada ao xito no

    constitutiva do sucesso dos processos de entendimento, nem mesmo quando inseridos em contextos

    de interao estratgica.

    Para Habermas, efeitos perlocucionrios so uma classe especial de interaes estratgicas

    caracterizada por estados do mundo produzidos por intervenes no mundo e na qual as ilocues

    so meios em contextos de ao teleolgica, num emprego sujeito, conforme Strawson, a

    determinadas reservas, isto , o propsito ilocucionrio (ouvinte entender e contrair obrigaes da

    oferta do ato de fala) ser conseguido sem deixar perceber o propsito perlocucionrio (no mnimo,

    um dos participantes se conduz estrategicamente, engana os demais).

    J os efeitos ilocucionrios se definem num plano de relaes interpessoais, nas quais os

    participantes em comunicao se entendem entre si sobre algo no mundo. Os xitos ilocucionrios seproduzem no mundo da vida dos participantes, sendo este o transfundo dos processos de

    entendimento.

    A ao comunicativa , pois, uma classe de interaes, na qual os participantes harmonizam

    entre si seus planos individuais de ao e perseguem seus fins ilocucionrios sem reserva alguma,

    isto , o propsito o acordo para a coordenao de planos de ao individuais. Habermas admite

    que, em contextos complexos de ao, a ao comunicativa pode dar lugar a conseqncias no

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    intencionadas (quando o falante tem de recorrer a explicaes, desmentidos, desculpas, e o ouvinte

    pode se sentir fraudado e abandonar a ao orientada ao entendimento), o que significa que atos de

    fala em princpio sob ao comunicativa podem ter valor estratgico e provocar efeitos

    perlocucionrios em diferentes contextos.

    Ao definir que, numa condio standard, o falante no quer dizer nada diferente do

    significado literal do que disse, Habermas busca reduzir a compreenso de uma emisso ao

    conhecimento das condies sobre as quais a emisso pode ser aceita por um ouvinte: entendemos

    um ato de fala, quando sabemos o que o faz aceitvel (Habermas, 1981, p. 382). Ele identifica,

    pois, as condies de xito ilocucionrio s condies de aceitabilidade. Esse conceito, para

    Habermas, no deve ser abordado de forma objetivista (aceitabilidade pela perspectiva de um

    observador), e sim como atitude realizativa de um participante na comunicao. Aceitvel , pois,

    um ato de fala que cumpre as condies necessrias (condies de reconhecimento intersubjetivode

    uma pretenso lingstica que estabelece um acordo) para uma postura do ouvinte, frente

    pretenso de vnculo do falante. Duas so as condies pressupostas: correo gramatical

    (corretamente formadas) e condies gerais de contexto.

    Numa orao exigitiva, gramaticalmente correta, usada como imperativo em condies

    adequadas de contexto (por exemplo: Exijo que no fumes), as obrigaes relevantes para a

    interao subsequente so as condies de cumprimento: o ouvinte entende a exigncia sereconhece as condies de produo do estado de coisas desejado e se sabe o que fazer ou omitir

    dentro das circunstncias, para que as condies se cumpram. No basta, contudo, as condies de

    cumprimento, para se saber quando a exigncia aceitvel. Um segundo componente o

    conhecimento das condies para que haja um acordo. Isso significa que o ouvinte s entende o

    sentido ilocucionrio da exigncia se sabe por que o falante espera poder impor sua vontade, isto ,

    quando aceita a pretenso de poderdo falante, pois conhece suas razes. Tais razes no se podem

    radicar no sentido ilocucionrio do ato de fala, mas no potencial de sano, vinculado ao ato de falade forma externa. A concluso que as condies de cumprimento (o ouvinte conhece as condies

    sob as quais o destinatrio pode produzir o estado desejado) somadas s condies de sano (o

    ouvinte conhece as condies sob as quais o falante espera que o ouvinte se sinta forado a cumprir-

    se, como, por exemplo, sanes por descumprimento) engendram as condies de aceitabilidade

    (condies para uma postura afirmativa do ouvinte).

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    Esse quadro se complica quando se analisa as exigncias respaldadas por um transfundo

    normativo (como a ordem para no fumar por causa das normas do trfego areo internacional).

    Nesse caso, o falante apela para a validade de normas de segurana, e, por no ser uma deciso

    motivada apenas empiricamente, nem ser expresso de uma vontade contingente, revela uma

    pretenso de validade, que s pode ser rechaada na forma de uma crtica com adio de razes

    contra (a)a legalidade da normativa (juridicidade de sua validade social), ou (b)a legitimidade da

    normativa (pretenso de ser correta), ou (c) por uma justificao prtico-moral. A pretenso de

    validade resulta, portanto, de uma conexo interna por razes que derivam da fora ilocucionria do

    ato de fala mesmo, no necessitam de condies de sano adicionais.

    Habermas distingue ainda a validade (do ato ou da norma que o respalda), da pretenso de

    validade (de que h o suficiente para que se cumpram as condies) e do desempenho (prova de que

    se cumprem as condies de validade do ato ou da norma subjacente). com a conexo interna

    entre esses elementos que o falante pode garantir que aportar razes convincentes contra as crticas

    do ouvinte sua pretenso de validade. Assim, a fora vinculante de seu xito ilocucionrio, o

    falante deve no validade de seu dito, mas ao efeito coordenadorque tem a garantia que oferece

    no desempenho da pretenso de validade de seu ato de fala. Sempre que o papel ilocucionrio

    expresse, no uma pretenso de poder, mas uma pretenso de validade, no nos encontramos diante

    de uma fora de motivao emprica, mas uma fora de motivao racional, prpria da garantia que

    acompanha as pretenses de validade.

    S os atos de fala aos quais o falante vincula uma pretenso de validade suscetvel de crtica

    tm, por sua prpria fora, a capacidade de mover o ouvinte aceitao da oferta, podendo resultar

    como mecanismo coordenador das aes. Isso define uma preciso maior para o conceito de ao

    comunicativa: no basta que os participantes persigam sem reservas, os fins ilocucionrios: com os

    imperativos em sentido estrito (vinculados a uma pretenso de poder, e no de validade) e nas

    exigncias no normatizadas, os falantes podem perseguir sem reservas fins ilocucionrios e, apesardisso, estarem atuando estrategicamente. Na ao comunicativa, pois, s se inserem os atos de fala

    aos quais o falante vincula pretenses de validade suscetveis de crtica.

    Tais referenciais habermasianos, enunciativos de marcas dos tipos de discursividade, so

    metodologicamente suficientes para efetuarmos uma anlise do discurso conversionista, na esfera das

    relaes religiosas. Entretanto, uma conexo desses conceitos com as noes de alteridade e

    dialogicidade em Emmanuel Lvinas conduz o estudo em direo a referenciais de ordem tica que

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    nos parecem importantes para uma reflexo posterior sobre a questo da fraternidade ou de sua

    ausncia no contexto das relaes mediadas pelos contedos e prticas da religio.

    2. A dialogicidade em Emmanuel Lvinas: o outro como espao do indizvel

    A contribuio heurstica de Lvinas , sem dvida, a da relao que estabelece entre a sua

    concepo de alteridade, como sendo aquilo que no se d ao conhecimento do eu, e a sua noo de

    dialogicidade, isto , ao fato de que a comunicabilidade com a alteridade do outro , apesar disso,

    possvel. Por um lado, enfatiza ele que apenas coisas podem ser conhecidas, logo, no sendo coisa o

    ser humano, dar-se ao conhecimento significar-se a partir do que no se . Entretanto, por outro

    lado, Lvinas (1954) prope que o rosto do outro (a emergncia de sua alteridade como evento

    diante do eu, ou, no dizer do prprio autor, presena para mim de um ser idntico a si mesmo

    Lvinas, 1954, p. 59) se manifesta, evidenciando a diferena que lhe constitutiva, que no pode ser

    ignorada pelo eu, porque lhe vinculatria. E a relao do eu com o outro, na mediao inesperada

    do rosto, o problema tico fundamental da comunicao.

    Ora, esse modo de ver apresenta a comunicao como um paradoxo: uma impossibilidade

    cognitiva que, no entanto, ocorre concretamente. Impossibilidade, porquanto relao com o

    desconhecido do outro; mas que ocorre, porque o sujeito social existe e se relaciona, apesar da

    alteridade. O outro espao do indizvel, mas h a relao com ele e relao tal que deixa marcas na

    linguagem e nos contextos extra-lingsticos. A linguagem , destarte, verificao da distncia e

    condio da proximidade. Desperta o comum em ns, mas supe alteridade e dualidade. Possibilita,

    a um s tempo, transcendncia e acesso. Acesso na mediao do conceito e transcendncia porque o

    conceito no esgota o ser. A alteridade na linguagem a emergncia do rosto de outrem, na sua

    singularidade irredutvel.

    O contedo tico dessas consideraes imediato. O face-a-face quando o rosto rompe osistema, via tica de um reconhecimento sem submisso, no qual a palavra se converte em relao

    entre liberdades, que no se limitam, nem se negam, mas se afirmam reciprocamente (Lvinas,

    1954, p. 61).

    A comunicao , nesses termos, definida como a relao de alteridade, da qual emerge o

    evento. Relao de impossibilidade, porquanto a alteridade do outro sempre por definio o

    desconhecido, cuja emergncia rosto e toda conceituao no passa de ato de nomear, jamais

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    resultando em domnio e manipulao, seno como gesto de assassnio, rompimento da condio

    humana que, no entanto, fracassa porque o outro enquanto tal sempre resto, sempre escapa.

    Contudo, a impossibilidade comunicativa obrigatria ao eu, sendo mesmo condio para sua

    caracterizao como sujeito humano. O sujeito da comunicao , portanto, sujeito orientado ao

    outro, eticamente vinculado de forma irremedivel alteridade que lhe inalcanvel de um pontode vista do domnio cognitivo.

    Nesse sentido, entram em conexo as perspectivas habermasiana e levinasiana. O ato

    comunicativo, enquanto ato de fala nos quais os participantes persigam, sem reservas, os fins

    ilocucionrios e vinculando pretenses de validade e no de poder suscetveis de crtica, so, sem

    dvida, fundantes de relaes dialgicas, dentro das quais o rosto do outro se manifesta de tal forma

    que sejam possveis a recusa de ser contedo, a cura da alergia, o desejo, o ensinamento recebido e a

    oposio pacfica do discurso1. A interao de tipo comunicativo, enriquecida pela dialogicidade

    conforme Lvinas, foi denominada, de forma a nosso ver muito feliz, como alteritria, pelo

    professor Weber Lima (Lima, 1998). No me alongarei, contudo, nas consideraes a respeito das

    perspectivas de utilizao das categorias de Emmanuel Lvinas para a pesquisa da comunicao, por

    j t-lo feito em um trabalho anterior comunicado a este GT (Signates, 1998a), o que possibilita um

    aproveitamento do espao deste texto para as questes relacionadas ao seu objeto especfico.

    3. O conversionismo na discursividade religiosa: breves estudos de casos

    Aps as consideraes tericas enunciadas, a questo central deste trabalho pode ser

    enunciada como a tentativa de proceder a uma avaliao emprica qualitativa da comunicatividade do

    discurso religioso, no mbito pblico da comunicao social (rdio, televiso e Internet).

    Examinando com especificidade a discursividade conversionista, dada a sua caracterstica moderna,

    a questo ser procurar perceber como se constri esse tipo de discurso religioso como espao derelaes sociais, tanto no sentido das pretenses de poder e/ou validade que o asseguram e que o

    vinculam ou s racionalidades sistmicas ou s relacionadas ao mundo da vida. Acredita-se aqui que

    uma reflexo a partir do prisma dos movimentos religiosos, a respeito da tenso discursiva entre

    sistema e mundo da vida, possa contribuir para situar as possibilidades de verificao do conceito de

    fraternidade ou de solidariedade social num plano de anlise tica fundada na natureza construtiva

    1Para uma exposio justificada dessas categorias, ver Signates, 1998a.

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    das regras intersubjetivas e, com isso, propor aquele conceito dentro do quadro de uma tica

    comunicativa.

    O quadro situacional desta pesquisa refere-se a dois campos diferentes de trabalho e a

    observaes igualmente situadas em tempos distintos. O primeiro, diz respeito a alguns programas

    religiosos, de carter esprita e pentecostal, veiculados por algumas emissoras de rdio e televiso de

    Goinia, durante o segundo semestre de 19972. Tanto a presena e o aperfeioamento dos discursos

    movidos pela racionalidade estratgica, quanto a busca por um discurso de tipo comunicativo,

    podem ser encontrados no interior dos movimentos religiosos e na relao que encetam a partir das

    programaes de rdio e televiso. Neste trabalho, citaremos trs casos tpicos.

    O primeiro, diz respeito ao estilo de programao adotado pelo Ministrio Comunidade

    Crist na Rdio Aliana, especialmente o Show do Rdio, veiculado por Marcelo Albuquerque,

    um jovem egresso de um dos grupos de juventude dessa denominao e que, sem qualquer formao

    acadmica ou tcnica, adquiriu experincia trabalhando como produtor e locutor de programas

    evanglicos em diversas emissoras de Goinia. Observa-se, na programao da emissora e, em

    especial, no programa movimentado por Marcelo Albuquerque, uma tentativa de negociao de

    sentidos entre o vocabulrio e o modo de falar prprio dos freqentadores da igreja, e a linguagem

    que histrica e culturalmente se estabeleceu como a linguagem do rdio. Albuquerque defende um

    modelo de rdio alegre, vibrante, ligado ao formato do entretenimento, e critica emissoras e

    programas que, segundo ele,

    ... no tm a cabea aberta para a comunicao. S querem mostrar o que

    tm para mostrar, e no o que o ouvinte tem para mostrar. So emissoras

    mantidas pelo dzimo das igrejas. Mesmo uma rdio evanglica, como a nossa,

    que voltada para o segmento evanglico, precisa tocar o que o evanglico

    gosta.

    Na prtica, o tipo de rdio que esse locutor faz uma verdadeira mimetizao do rdio

    popular profissional. O Show do Rdio um programa de dicas, curiosidades, perguntas,

    brincadeiras, prmios e diversos quadros, como de receitas de bolo, bolsa de empregos, sempre com

    participao do ouvinte, e tratando de temas atuais, como aborto, homossexualidade, problemas

    sociais e econmicos, etc., e muita msica gospel. Todo o direcionamento dos assuntos evanglico

    2Esta parte da pesquisa reorganiza material emprico colhido para a dissertao de mestrado do autor (Signates, 1998, p. 205-216).

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    ou bblico, ou culmina numa concluso que privilegie esse sentido. As perguntas feitas ao ouvinte,

    solicitando a participao por telefone, so do tipo que envolve diretamente a vida dentro da igreja:

    Descobre-se que um membro da igreja homossexual. O pastor deve ou no exclu-lo?; ou se

    remete a temas sociais gerais, como: Voc contra ou a favor do MST?

    O propsito estratgico, subsumido no interesse conversionista, torna-se claro, nas

    declaraes de Marcelo Albuquerque. Ao criticar as emissoras concorrentes como a Rdio Riviera,

    da Igreja Universal , ele afirma:

    Essas rdios muitas vezes no evangelizam falando a lngua da pessoa que

    quer evangelizar, mas usando a linguagem da prpria igreja. Falando a

    lngua do no-evangelizado, facilita.

    Outro aspecto importante para a realizao desse tipo de programao a resistncia que os

    contatos comerciais dessa emissora tm para vender a rdio aos anunciantes. Segundo o radialista

    Tlio Izac, diretor de programao da Rdio Aliana, o fato de a emissora ocupar o primeiro lugar

    no segmento AM no impede que haja dificuldades desse tipo. Por isso, ele traz a prpria

    experincia profissional para tentar resolver o problema. Os comerciais so, ento, produzidos com a

    finalidade de criar alternativas para vencer a resistncia dos anunciantes em anunciar em emissora

    evanglica. Assim, por exemplo, o anncio de uma marca de arroz feita a partir de um estmulo

    participao do ouvinte, que sugere uma receita em que o produto seja ingrediente. A propaganda de

    um analgsico consome um programete dirio de 10 minutos a cada dia, pelo qual ouvintes so

    convidados a contar qual a sua maior dor de cabea (que pode ser o vizinho, a sogra, etc.); aps

    a narrativa, a emissora toca o jingle do produto. Promoes no prprio ambiente do anunciante

    tambm so opes, como a propaganda de um supermercado, para a qual se adotou o velho

    expediente de sortear um consumidor que ganha um tempo para encher o carrinho e ganhar produtos

    de graa, com o locutor junto, narrando ao vivo. Garante Tlio Izac:

    Se no fizer assim, ele no anuncia de jeito nenhum. Para o comerciante,

    rdio evanglica aquele modelo de rdio de pregao chata. Eu nunca

    ofereo insero, nem na RBC, mas um projeto especfico de venda do produto

    dele. E vende.

    Se a soluo empregada pela Rdio Aliana foi a de integrar, de forma estrategicamente

    negociada, o discurso evanglico e o comercial ou o caracterstico do veculo, a TV Record, por sua

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    vez, prefere marcar uma separao entre os dois tipos de programao. E de tal modo feita essa

    separao que Francisco Carlos de Almeida, membro poca da gerncia de programao da Rede,

    em So Paulo, chega a afirmar que eu sequer tomo conhecimento do que vai ao ar durante o

    horrio da igreja. Isso, contudo, no to complicado assim. A estratgia da Igreja Universal do

    Reino de Deus extremamente apelativa e se baseia em discursos e oraes de seus pastores ebispos e, sobretudo, em testemunhos, editados em VTs especficos ou obtidos por meio de falsas

    entrevistas (mtodo, alis, muito utilizado em programas dotados de ideologia definida, como os

    religiosos e polticos).

    As falsas entrevistas podem ser feitas de dois modos: o modo de edio, em que, primeiro,

    grava-se todo o contedo de forma declaratria e, depois, no processo de edio, so includas as

    perguntas; e o modo planejado, em que os ditos so anteriormente preparados pelo entrevistador,

    sendo a gravao da entrevista uma espcie de encenao, dentro da qual inexiste a possibilidade de

    surpresa ou contraditrio para qualquer dos interlocutores. Os pastores da Igreja Universal, na TV

    Record, utilizam principalmente este segundo tipo. As entrevistas feitas por eles so sempre dirigidas

    dentro de um formato simples e repetitivo. So, invariavelmente, quatro os seus momentos.

    1 momento: Sempre se comea pela narrativa das desgraas da vida da famlia e da pessoa,

    motivada por uma pergunta tpica: como era a sua vida?;

    2 momento: O pastor incita o entrevistado a tornar a narrativa o mais negativa possvel,fazendo falsas perguntas de reforo, como: Quer dizer que sua vida era um verdadeiro inferno? ou:

    Voc sentia que o diabo vivia com vocs?, ou, ainda, de modo mais explcito: Tudo o que voc

    faziam dava errado? Vocs no conseguiam ganhar dinheiro?

    3 momento: Em seguida, modifica-se o tom da entrevista, pois o relato se inverte, a partir do

    momento em que o pastor convida o entrevistado a falar sobre sua entrada na Igreja Universal, que

    , invariavelmente, apresentado como divisor de guas para a vida da pessoa.

    4 momento: O encerramento da falsa entrevista se d com o pastor e seu entrevistado se

    dirigindo ao telespectador, a fim de cham-lo para a Igreja. Esse momento costuma comear com

    uma solicitao do tipo Diga algo para aquele telespectador que est vivendo hoje um problema

    semelhante ao que voc viveu, e normalmente termina com um comentrio do prprio pastor,

    tambm nesse sentido.

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    Durante todo o tempo da entrevista, so exibidos caracteres com nomes e endereos da

    Igreja Universal. As variaes de contedo ocorrem somente por conta do relato do entrevistado,

    que, naquele momento, e dentro das condies de enquadramento formal da situao de falsa

    entrevista, expe fragmentos da prpria vida, colorindo-os com as cores sempre berrantes que esse

    enquadramento exige, seja para desqualificar totalmente a narrativa do passado (muitas vezespontuada pelo combate ao Espiritismo, Umbanda ou ao Candombl), seja para constituir uma

    imagem idlica do presente. O cotidiano narrado torna-se, dessa forma, inteiramente subserviente do

    interesse da instituio que possibilita sua narrao. Sem que seja necessrio duvidar da hipottica

    sinceridade do entrevistado, ou, mesmo, sem pretender acusar a Igreja de fabricar testemunhos

    talvez at porque tais gestos sejam desnecessrios, por conta do jogo de emoes desencadeado pelo

    exerccio da f notria a condio de falsa entrevista em tais programas.

    Essa seqncia se repete com impressionante exatido, mesmo nos VTs editados, sem a

    configurao de perguntas e respostas ou na ausncia visvel de um pastor. Os VTs so normalmente

    longos (de sete a onze minutos cada). No rodap, em caracteres, os VTs de testemunhos sempre

    contam com um rodzio dos endereos da Igreja Universal em Goinia.

    incorreto, contudo, supor que os movimentos religiosos engendram tais sentidos de

    maneira absoluta, ou seja, que a vinculao estratgico-instrumental seja prpria ou necessria na

    discursividade religiosa. Na Federao Esprita do Estado de Gois, houve no incio de 1997 uma

    desavena interna entre a diretoria e o grupo de profissionais (jornalistas, radialistas e publicitrios,

    todos espritas, trabalhando gratuitamente para a instituio) que produzia o programa Espao

    Aberto, em exibio at hoje aos domingos na TV Brasil Central. O programa era dividido em trs

    blocos, sendo dois de entrevista e um ltimo, intitulado Tome Nota, composto de informaes

    gerais sobre eventos promovidos pelos espritas. No formato inicial, proposto e executado pelo

    grupo de profissionais, dois convidados, um esprita e outro no-esprita, tratavam de um tema

    social, dentre os mais comentados pela imprensa, sob mediao de um jornalista profissional. Foramfeitos, por exemplo, programas sobre Impunidade, quando da morte de PC Farias; aborto, quando

    da discusso do Projeto Marta Suplicy no Congresso Nacional; etc. A argumentao dos

    coordenadores era a de justamente romper com o formato monologal do discurso religioso,

    adotando uma perspectiva de dilogo social, dentro da qual os espritas entrariam com uma das

    opinies. Resguardadas as propores, o modelo era at certo ponto semelhante ao 25a. Hora,

    transmitido pela TV Record. Entretanto, as discordncias internas na Federao Esprita do Estado

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    de Gois provocaram, no incio de 1997, uma mudana total no quadro de direo do setor de

    comunicao da instituio, e o programa mudou sua denominao para Espao Esprita, passando

    a adotar o modelo de falsa entrevista, em que espritas conversam entre si sobre temticas

    tipicamente doutrinrios.

    Um fato semelhante ocorreu tambm na Rdio Aliana. Durante o ano de 1995, essa

    emissora colocava no ar todos os dias teis, s 15 horas, um programa de debates que, por

    coincidncia, s segundas feiras se intitulava Espao Aberto. Nela, o diretor poca, Carlos

    Antonio, debatia com no-evanglicos diversas temticas sociais, inclusive controvrsias religiosas,

    para as quais convidava membros de outras correntes e denominaes. Porm, a poltica

    programtica desse diretor entrou em choque com a da Transmundial, proprietria da emissora, para

    a qual a funo do rdio pregar e converter, e, por isso, ele foi afastado, ocupando o seu lugar o

    pastor Oziander Reis, que adotou um formato mais monolgico de discurso religioso, passando a

    evitar toda e qualquer controvrsia religiosa no espao programtico e discursivo da Rdio Aliana.

    4. Concluso: por uma reconstruo alteritria do conceito de fraternidade.

    Analisando o material colhido, em suas perspectivas lingstica e contextual, isto , a partir

    de um olhar pragmtico e tendo em vista as categorias analticas caracterizadas por Habermas e

    deduzidas de Lvinas, a primeira concluso a que se pode chegar a constatao de que a

    discursividade religiosa de orientao conversionista enquadra-se no mbito das aes estratgico-

    instrumentais, dentro das quais fracassa uma vinculao dialgica e alteritria. Tal constatao pode

    ser demonstrada pelo seu cotejamento com as marcas desse modelo de ao em Habermas. Seno,

    vejamos.

    A primeira marca diz respeito natureza teleolgica da ao conversionista. Segundo

    Habermas, a teleologia da ao se revela pela orientao a objetivos que, em princpio, elege meios econsidera conseqncias para atingir uma meta de caractersticas monolgicas. Ora, o ator religioso,

    ao investir no discurso conversionista, articula uma viso instrumental da comunicao, a qual

    transparece na interpretao de suas instituies como meios para se alcanar os objetivos da

    religio. Em seguida, considera como conseqncias nas quais o estado de coisas desejado a

    converso do outroaos contedos e padres do eu ou do falante, e, com isso, efetua clculos de

    eficcia a partir do xito em se alcanar a meta (trazer igreja ou aceitao de contedos

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    predeterminados). Definida a natureza teleolgica do discurso conversionista, subsume-se que o

    falante ignora ou menospreza os objetivos do interlocutor e, se os apreende, age de forma

    perlocucionria, fazendo-o com o propsito de modific-los em direo s condies preconcebidas.

    O resultado dessa construo de sentidos o desenvolvimento de modelos monolgicos de

    fala, sem qualquer espao para o dilogo, ou que, quando so criados, culminam, conforme se

    constata, em jogos de encenaes, destitudos das pretenses de validade caracterizadoras da

    interlocuo comunicativa. A televiso, nesse caso, percebida e feita no como uma forma de

    sociabilidade, e sim como um espelho do mesmo. A falsificao dos dilogos gera, na verdade, uma

    espcie de monlogo a dois, em que o ego religioso se presume iluminado pela Verdade e intenta

    converter a sociedade. O discurso autoritrio3(Orlandi, 1993) termina em mero espelhamento, pois,

    ao ignorar os componentes identitrios da audincia e os usos que o pblico faz das programaes,

    lcito presumir que o processo de recepo desenvolva resistncias e talvez esta seja uma das razes

    ponderveis pelas quais os institutos de pesquisa captam em tais programas e nos horrios

    polticos uma queda significativa de audincia.

    Quanto natureza estratgico-instrumental, a ao conversionista evidencia de forma

    diferenciada ambas as caractersticas analticas mencionadas por Habermas. As aes estratgicas

    so aes sociais que se especificam como influncia sobre o outro, percebido enquanto oponente

    ao menos de forma discursiva, fator que se observa na relao de converso. Entretanto, a

    caracterstica instrumental parece ser historicamente mais recente, derivada dos condicionamentos

    tecnolgicos da construo das regras de interao no mundo moderno. A instrumentalizao da

    discursividade religiosa no muito recente, estando presente nessas esferas desde os manuais de

    retrica sacra; mas, tornaram-se inevitveis e definidores, instalando-se no mbito do prprio modo

    de produo discursiva, na medida que os religiosos, assumindo posies no interior das instituies

    modernas de comunicao social, passaram a incorporar especialistas, no obrigatoriamente

    3Eni Pulcinelli Orlandi (1993, p. 24) define o discurso do tipo autoritriocomo o que tende para a parfrase (o mesmo) e em que se procura

    conter a reversibilidade (h um agente nico: a reversibilidade tende a zero) e em que a polissemia contida (procura-se impor um s

    sentido) e em que o objeto do discurso (seu referente) fica dominado pelo prprio dizer (o objeto praticamente desaparece). Tal discurso,

    para essa autora, ope-se ao tipopolmico, traduzido como aquele que apresenta um equilbrio tenso entre polissemia e parfrase, em que

    a reversibilidade se d sob condies, disputada pelos interlocutores, e me que o objeto do discurso no est obscurecido pelo dizer, mas

    direcionado pela disputa (perspectivas particularizantes) entre os interlocutores, havendo, assim, a possibilidade de mais de um sentido: a

    polissemia controlada. H, ainda, para Orlandi, o discurso ldico, que ... aquele que tende para a total polissemia, em que a

    reversibilidade total e em que o objeto do discurso se mantm como tal no discurso.

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    vinculados s comunidades religiosas, a fim de garantirem as condies performticas do discurso, o

    que pode significar inclusive a melhor ocultao dos sentidos perlocucionrios.

    Dos exemplos colhidos empiricamente, ressalta, como demonstrao da existncia ftica de

    atos de fala perlocucionrios na discursividade conversionista, a utilizao do modelo de falsa

    entrevista. O contexto teleolgico e o propsito perlocucionrio s so percebidos pragmaticamente,

    isto , apenas se fazem evidentes quando a anlise se desdobra para alm da superfcie do texto,

    abrangendo circunstncias de contexto, como a performaticidade insistentemente reproduzida e os

    conflitos que, no raro, culminam em aes excludentes contra os adeptos que ousam romper com

    esse tipo de discursividade. No discurso conversionista, percebe-se a existncia de reservas

    (contedos a serem ocultados pelo participante que atua estrategicamente na interao), derivadas

    do fato de as respostas estarem prontas antes mesmo de as perguntas serem feitas, razo pela qual

    estas s comparecem na interao de forma condicionada.

    Resta, ainda, avaliar at que ponto o discurso religioso conversionista se efetua a partir de

    pretenses de poder. Segundo Habermas, o modo de analisar esta categoria a avaliao das

    condies de aceitabilidade do ato de fala exigitivo em condies adequadas de contexto, sendo que

    tais condies implicam razes radicadas no potencial de sano, de natureza extralngstica,

    vinculado de forma externa ao ato de fala. Ora, no caso do discurso religioso contemporneo, o

    potencial de sano s se d em situaes muito especficas de contexto, que justamente o que as

    instituies religiosas tm perdido ao longo do processo de modernizao. Tais condies apenas

    existem de forma importante no mbito intrainstitucional, sendo interessante, na abordagem desses

    fatores, considerar os estudos da microfsica do poder, em Michel Foucault. Assim sendo, pode-se

    concluir dessa anlise que o discurso conversionista nitidamente estratgico e s vezes carregado

    de caractersticas instrumentais, graas s pretenses de poder de que os seus falantes o revestem;

    entretanto, tais pretenses tm perdido a capacidade de desempenho, devido tanto fragmentao

    de sentidos, quanto democratizao das capacidades de participao social.Tais caractersticas parecem se enquadrar no que Habermas categorizou como patologias da

    comunicao, isto , a constatao de uma distoro sistemtica, como resultado da confuso entre

    aes orientadas ao xito e aes orientadas ao entendimento. A esse problema, ele denominou

    manipulao, quando pelo menos um dos participantes age estrategicamente e faz parecer aos

    outros que cumpre os pressupostos da ao comunicativa; e defesa inconsciente (conceito

    psicanaltico), que produz perturbaes na comunicao, quando ao menos um dos participantes se

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    engana a si mesmo, gerando a aparncia da ao comunicativa. preciso fazer aqui, porm, uma

    ressalva s conceituaes de Habermas, a fim de que a noo de manipulaono nos conduza de

    novo a uma perspectiva monolgica, traduzida pela passividade necessria dos ouvintes,

    caracterstica que tem sido superada pelas mais recentes teorizaes e pesquisas no campo da

    recepo. E isso o fazemos ao distinguir analiticamente, numa perspectiva de pragmtica scio-interacionista em Habermas, as pretenses dos falantes e os respectivos desempenhos. No mbito

    destes, toda manipulao se desempenha negociada por situaes de contexto.

    E, por fim, o ltimo referencial analtico diz respeito possibilidade de crtica s pretenses

    de validade. Nossa concluso a esse respeito a de que o discurso religioso conversionista no

    admite a crtica de suas pretenses exatamente por no serem pretenses de validade, e sim de

    poder sem se descaracterizar como conversionista. A ao conversionista traz, por definio, uma

    dinmica identitria, para a qual o rosto do outro surge como problema a ser anulado e no como

    possibilidade de desempenho cognitivo ou afetivo. Isso significa que e esta concluso tem valor

    axiomtico para a busca em direo qual este trabalho se encaminhou a condio de

    possibilidade da interao de tipo comunicativo dentro da discursividade religiosa diretamente

    dependente da renncia ou da perda de seu carter conversionista. Este axioma fundante, no

    estudo das condies de possibilidade da ao comunicativa no discurso religioso.

    Um extraordinrio estudo a respeito da religiosidade em Habermas , sem dvida, a obra

    Religio e modernidade em Habermas(1996), de Luiz Bernardo Leite de Arajo, publicada a partir

    de sua tese doutoral, defendida na Universidade de Louvain, na Blgica. Este autor demonstra

    copiosamente, em seus estudos, que Habermas prope que a perda do fundamento absoluto das

    verdades de crena no deve ser lamentada, pois o que resta dessa perda suficiente para remeter as

    sociedades modernas ao longo caminho do entendimento mtuo, ao abrigo de toda insinuao

    dogmtica. A perda da segurana quanto ao carter absoluto das normas conduz os homens ao

    acordo normativo fundado na validade racional dos atos de fala. A esfera religiosa , pois, absorvidapela comunicao. A argumentao, contudo, no aniquila a tradio, mas apenas a supera enquanto

    autoridade anti-argumentativa, determinando que a construo da discursividade e da ao religiosas

    subsuma no a preferncia de valores, mas a validez prescritiva de normas de ao, o que, no

    entender de Arajo, campo imenso para a esfera religiosa. O religioso dever assim buscar no

    mundo da vida, onde prevalece a tica comunicativa, o seu lugar, j que ali h o debate livre acerca

    de contedos morais concretos, a aspectos substantivos sobre os quais todo religioso tenha algo a

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    dizer. A tica discursiva , portanto, uma tica de fraternidade despida do carter dogmtico e da

    fundamentao religiosa absoluta.

    Em termos conclusivos, reunimos alguns indicadores de ordem tica e discursiva do que pode

    ser uma reconstruo da noo de fraternidade no interior das prticas religiosas.

    a) Ruptura com o conversionismo. Estabelecimento de suportes dialgicos,

    ancorados em pretenses de validade suscetveis de crtica.

    b) Superao da auto-centrao. Busca do outro enquanto tal, com o propsito

    constitutivo de aprender com ele, assegurando-lhe alteridade sem perda da prpria

    identidade, isto , a relao entre diferenas no obrigatoriamente redutveis uma outra.

    c) Renncia s pretenses de poder. O que significa evidentemente renncia s

    garantias extra-lingsticas de coero e sano.

    d) Desenvolvimento do sentido de reflexividade e auto-crtica. Busca da verdade

    sem jamais sup-la; reestruturao tica das prprias posies, diante da alteridade

    manifesta.

    e) Desocultao das reservas. Efetuando com isso a ruptura com os procedimentos

    perlocucionrios.

    f) Interao com conhecimentos e discursividades instaladas em outros domnios,

    visando interlocuo. Em termos religiosos, o ecumenismo possvel.

    Ao final, uma observao marginal, porm interessante... Existe, no arcabouo teolgico da

    tradio crist, suficiente fundamentao para tal tica. Porm, o cotejamento teolgico ou bblico

    escapa aos objetivos e metodologia deste trabalho...

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