A escola no movimento da cidade

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203 Belo Horizonte: a escola e os processos educativos no movimento da cidade CYNTHIA GREIVE VEIGA Professora Adjunta de História da Educação da FaE-UFMG LUCIANO MENDES DE FARIA FILHO Professor Adjunto de História da Educação da FaE-UFMG “Só a visão de uma grande cidade onde sem nada querer apren- der alguém se instrui a todo instante, onde para se conhecer mil coisas novas basta caminhar na rua de olhos bem abertos, essa visão, essa cidade, sabei, é uma escola... Tudo passa depressa. Vêm os interesses, as concorrências, as rivalidades... E no entanto muita coisa restaria dela se a educação fizesse por reunir os ho- mens com o mesmo empenho que coloca em dividi-los” (Jules MICHELET, 1846) 1 Introdução O movimento das reformas e construções de cidades ocorrido no século XIX 2 , bem como as discussões e ações em torno de uma nova pedagogia de formação dos sujeitos urbanos esteve associado à produ- 1 A edição brasileira é da editora Martins Fontes ( 1988) e a citação encontra-se nas páginas 117 e 178. 2 Referimo-nos aos diferentes empreendimentos urbanos ocorridos na Europa e no Brasil no decorrer do séc. XIX. Os estudos relativos ao tema podem ser encontrados, entre outros, em ANDRADE(1992), CHALLOUB(1990), FRITSCH e PECHMAN(1984), ORTIZ(1991), SENNET(1988) e SCHORSKE(1988). VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, nº 18, Set/97, p.203-222

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Belo Horizonte: a escola eos processos educativosno movimento da cidade

CYNTHIA GREIVE VEIGA

Professora Adjunta de História da Educação da FaE-UFMG

LUCIANO MENDES DE FARIA FILHO

Professor Adjunto de História da Educação da FaE-UFMG

“Só a visão de uma grande cidade onde sem nada querer apren-der alguém se instrui a todo instante, onde para se conhecer milcoisas novas basta caminhar na rua de olhos bem abertos, essavisão, essa cidade, sabei, é uma escola... Tudo passa depressa.Vêm os interesses, as concorrências, as rivalidades... E no entantomuita coisa restaria dela se a educação fizesse por reunir os ho-mens com o mesmo empenho que coloca em dividi-los”

(Jules MICHELET, 1846)1

Introdução

O movimento das reformas e construções de cidades ocorrido noséculo XIX2, bem como as discussões e ações em torno de uma novapedagogia de formação dos sujeitos urbanos esteve associado à produ-

1 A edição brasileira é da editora Martins Fontes ( 1988) e a citação encontra-se nas páginas 117 e 178.2 Referimo-nos aos diferentes empreendimentos urbanos ocorridos na Europa e no Brasil no decorrer do séc.

XIX. Os estudos relativos ao tema podem ser encontrados, entre outros, em ANDRADE(1992),CHALLOUB(1990), FRITSCH e PECHMAN(1984), ORTIZ(1991), SENNET(1988) e SCHORSKE(1988).

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ção de novos parâmetros culturais, seja no trato ao acesso à proprieda-de, seja no acesso ao saber sistematizado.

A produção de um novo sujeito urbano é parte das inúmeras utopiasda modernidade onde se elabora entre outras, a dimensão educativa dacidade e a perspectiva urbanizadora da escola. Este texto se propõe aanalisar neste duplo movimento, as representações de educação pre-sentes na experiência da construção da capital mineira, Belo Horizonte,tanto através do processo de implementação da nova organização ur-bana em fins do século XIX, como pelo processo de organização escolarda cidade em seus primeiros anos de fundação.

Como parte de toda uma discussão presente nas sociedades oci-dentais, na elaboração dos planejamentos urbanos foi grande a preocu-pação em reeducar os sujeitos na sua relação com a urbanidade. Asformas a serem assumidas pelas novas cidades, na concepção de seusempreendedores, implicariam na produção de novas formas a seremassumidas também pelos seus habitantes. Por sua vez, a redefinição deuma nova cultura escolar foi-se fazendo sob o signo da civilidade e doprogresso, enquanto uma necessidade para a organização de uma so-ciedade racionalizada, constituída por indivíduos independentes materi-al e mentalmente.

Urbanistas e educadores de finais do século XIX e início do séculoXX se aproximaram na produção de reformas que atendessem aos ape-los da modernidade: aliar o progresso material ao progresso das mentesnuma sociedade convulsionada por novas técnicas, novas ciências enovas formas de interferência na sua estrutura política. Em seus projetosganha destaque as preocupações em torno de como incorporar cultu-ralmente os sujeitos sociais em suas diferentes manifestações, na pers-pectiva da formação de homens e mulheres civilizados e educados. Fun-damentados na tese da homogeneidade cultural e da formação da opi-nião pública, a cultura urbana e a cultura escolar elaboradas nessa épo-ca lida com a diversidade material e social dos indivíduos produzindouma tensão permanente com os elementos fundantes da sociedade deentão: razão, propriedade e indivíduo.

Nesse contexto tem lugar o percurso de constituição das repúblicasdo século XIX, as quais sem excetuar a república brasileira, estavamimpregnadas tanto do pensamento individualista liberal, como também,através da assimilação dos movimentos populares, da idéia da constru-ção de um corpo político, da nação, para garantir a sobrevivência dosdireitos individuais. A ambigüidade dessa constituição estará presentenão somente nas próprias dimensões teóricas que dão suporte às novasnações, como ainda na formalidade em que se constituem a urbanidadee a educação em detrimento das diversidades produzidas nas experiên-cias sociais.

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As escolas e as cidades serão, entre outros, os novos templos dasrepúblicas constituídas ou em constituição, na sua simbologia estarápresente o imaginário de toda uma população a ser regenerada atravésda alteração de sua subjetividade, da produção de novos talentos e dareorientação de condutas — a regeneração da cidade se faz pela ree-ducação dos cidadãos, a regeneração da escola se faz pela reeduca-ção da cidade. A cidade é plena de potencialidades na produção deuma nova experiência escolar, por sua vez a escola deverá ser a possi-bilitadora da experiência urbana.

A construção de Belo Horizonte foi se fazendo nas práticas do as-sentamento de novas relações sociais e econômicas necessárias para odesenvolvimento e progresso material. É instituída nas formas de traba-lho e nos processos de aquisição da propriedade toda uma caracteriza-ção moderna das relações entre cidade e educação.

Entretanto, nos limites do direito à propriedade, definiram-se tam-bém os limites dos direitos políticos, de maneira que se efetiva a aproxi-mação entre o processo de hierarquização dos espaços (sub)urbanos ea noção de espaços apropriados de formas (ir)racionais. Nessa pers-pectiva, ganha corpo a idéia da necessidade de uma “racionalidadeexterior” que venha em socorro à uma “irracionalidade interior”, substitu-indo práticas sociais tradicionais por práticas modernas com o objetivode alocar os indivíduos, tanto material como culturalmente, em seus de-vidos lugares sociais.

Dessa forma as cidades e as escolas se constituem na modernida-de como campos de tensões onde a ordem e a desordem cultural efísica são passíveis de serem resolvidas pela régua e pelo compasso.Na perspectiva da configuração humana e configuração espacial como“tábulas rasas”, tudo estaria por ser feito, toda uma história estaria porser inscrita. Passadas a limpo as superstições, a miséria e as irregulari-dades do passado, um tempo novo seria inaugurado: a razão e a civili-dade tomariam os seus assentos na nova cidade, uma visão por si sóeducativa. Por sua vez, as novas formas escolares, em sua função ho-mogeneizadora, vão definindo as dinâmicas culturais legítimas consti-tuidoras dos diferentes aspectos das práticas urbanas.

A cidade como experiência educativa

A Comissão Construtora da cidade de Belo Horizonte logo que iniciaos trabalhos de edificação da capital assume ares de grande educado-ra. Na visão de seus membros, salta aos olhos a sua missão pedagógi-ca. Segundo o secretário de Comissão:

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“Quem no futuro, cortado já o arraial de largas avenidas, de espa-çosas e belas ruas, armadas de palacetes de mármore de Ganda-rella, de ajardinamento de luxo, chácaras de primor, formoso par-que etc... ficará, tendo lido esta pequena descrição, surpreendidode ter habitado nela uma população tão mesquinha, e não haver,há muitos anos, sido escolhido este arraial para a construção deuma grande cidade.(MINAS GERAIS,1895a.p.13)

O entendimento da cidade como espaço educador e formador deseus habitantes estará presente em diversos projetos que tratam dasreformas urbanas. Especificamente aqui sobre a cidade de Belo Hori-zonte, destaca-se que a edificação desta capital foi além de um simplesprocesso de demolição e construção com vistas a implementação damodernidade nas formas arquitetônicas ou ainda, enquanto resposta aquerelas políticas em torno de necessidade de mudança da capital deOuro Preto para Belo Horizonte.

Sem desconsiderar estes fatores, destaca-se que o empreendimen-to da construção da capital mineira é um processo de confrontos aber-tos com as múltiplas implicações desse empreendimento, os quais inter-feriram diretamente na vida das pessoas. Nessa perspectiva, a constru-ção da cidade revelou mais que o desenho de um novo traçado. A exe-cução da planta urbana expressou os novos contornos sociais e cultu-rais a serem assimilados pelas populações, redefinindo suas relaçõescom a cidade de forma tensa e conflituosa.

Através do estabelecimento de dimensões racionais no tratamentoda propriedade, das relações de trabalho, das relações sociais e cultu-rais, os gestores oficiais da cidade conferem um sentido novo ao enten-dimento das formas de alocação dos indivíduos no espaço urbano. An-corados na tarefa de começar aparentemente do nada, a região é trans-formada em oficina de trabalho e negócios configurando a concretiza-ção do ideal de progresso e de civilidade, no sentido de reeducar aspessoas, reorientar seus caminhos, “acordar” os habitantes para a mo-dernidade.

Os pressupostos de Aarão Reis, engenheiro chefe da ComissãoConstrutora até 18953, estão inseridos em premissas universais, que apar das diferenças ou ênfases em determinados traçados, se aproxi-mam da perspectiva pedagógica e disciplinar de adaptar o espaço físi-co às exigências econômicas e sociais seja pela racionalização das viasde circulação através de abertura de grandes vias, seja pela preocupa-

3 A edificação e construção da cidade de Belo Horizonte é feita sob a supervisão de dois engenheiros. AarãoREIS é o responsável de 1894 até abril de 1895 quando pede exoneração do cargo, sendo substituído porFrancisco BICALHO, de maio de 1895 até janeiro de 1898, quando a Comissão Construtora é extinta.

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ção com a higiene e salubridade, bem como pela redefinição da funçãosocial dos subúrbios.

É no traçado de planta da zona urbana que se definem as caracte-rísticas geométricas rígidas, com integração da malha ortogonal das ruase da malha diagonal das avenidas, tendo como ponto de convergênciadiversas praças e espaços destinados a edificação públicas e futurazona comercial. A combinação de traços geométricos com edifícios im-ponentes, praças e parques é plena da simbologia dos ideais de civili-dade na qual todo habitante deveria se mirar. É o espaço onde se fixa apopulação proprietária e civilizada.

A zona suburbana, por sua vez, vai localizar-se em terreno mais aci-dentado, de recorte irregular e ao contrário do que foi definido para operímetro urbano, aqui o traçado é adequado à topografia do sítio. Dife-rentemente da solidez e consistência da zona urbana, os subúrbios sãoprecários com destaque para provisoriedade das edificações. Enquantoespaço da irracionalidade, aponta para as contradições urbanas damodernidade expressa nas formas distintas de assentamento físico esocial dos diferentes sujeitos urbanos.

Evidenciam-se nestes contrastes as tensões entre, a ordem e o pro-gresso. Se no progresso situam-se as possibilidades de ganhos fáceis,de novas relações proprietárias e novas oportunidades de trabalho, naesfera da ordem localizam-se os problemas das “classes turbulentas”,moradores dos subúrbios, cafúas e favelas, na qual se localiza toda umaprecariedade da vida social e cultural.

Durante a construção da cidade, percebe-se todo um esforço naconcretização de um ethos urbano. Através das prioridades concretasestabelecidas para a ocupação do espaço físico, foram criadas as con-dições para a elaboração de paradigmas conceituais de cidadania atra-vés da produção de esterótipos depreciadoras das formas de inserçãourbana das camadas pobres e trabalhadoras.

A ênfase na suposta irracionalidade das camadas pobres é umaconstante nos discursos dos adeptos do progresso e do moderno e tra-zem pistas do incômodo político provocado pelas práticas sociais des-tes setores de sociedade. Francisco BICALHO, engenheiro chefe daComissão Construtora, que assume o lugar de Aarão Reis em 1895, fazo seguinte comentário, a respeito da população pobre em um dos seusrelatórios:

“A aglomeração de semelhante população que não prima pelo amorà higiene, o acúmulo de detritos orgânicos e resíduos de toda asorte, a falta absoluta dos mais ligeiros elementos de confortabili-dade e mesmo de asseio de suas habitações provisórias constitu-

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em outras tantas fontes para gravemente comprometerem a salu-bridade pública”. (BARRETO,1936.p.575.6).

A intenção da cidade planejada, se possui um caráter arbitrário decriar espaços onde terá lugar uma possível homogeneidade social ecultural, mesmo que através da simbologia presente na zona urbana, éfrustada pela heterogeneidade material contínua e persistente dos 70%da população que habitam a zona suburbana. Dessa forma, as relaçõesentre cidade e educação que o projeto urbano inspira tensionam com aspráticas de prioridades e provisoriedades que foram se acentuando, aolongo do período de construção de cidade.

Podemos dizer que na planta de Belo Horizonte sobressaem formasbem distintas no movimento de ocupação da cidade. Neste sentido na“cidade provisória”, dos subúrbios e na “cidade dos privilégios”, a re-gião central, denota-se um sentido marcadamente político, relacionadaà materialidade e as formas culturais nas quais ambas se constituem.

Na “cidade de prioridades” foram previstas as condições de assen-tamento da propriedade privada onde o Estado interfere deliberadamentepara a sua efetivação. Na “cidade provisória”, destacaram-se as limita-ções das condições de vida além de acentuada repressão policial, ondeos habitantes são responsabilizados pela própria situação em que seencontram, seja em decorrência de sua dependência material, comopensavam os liberais, seja pela “irracionalidade natural” dada a sua con-dição operária, como preferiam os positivistas.

Dessa forma, o modelo de civilidade da zona urbana conflitua com a“cidade provisória”, engrossando os estereótipos pejorativos dos hábi-tos das camadas pobres. Reafirma também a necessidade de educa-ção e disciplinarização dos habitantes dos subúrbios, produzindo umaprática mais próxima à justificativa da sua exclusão urbana e cultural, doque propriamente uma ênfase na incorporação desses sujeitos à vidada cidade.

A cidade como experiência educativa se define na elaboração demodelos e de uma simbologia de racionalidade. Neste aspecto, consoli-da os pressupostos da modernidade nos vínculos que estabelece entrepropriedade/ razão e propriedade/moralidade, enquanto elementos fun-dantes da missão civilizatória das novas formas urbanas.

Essas concepções já apareceriam nos debates da Constituinte Fran-cesa, em fins do século XVIII, onde SIEYES, declarava que a proprieda-de não contém apenas uma conotação material, mas é portadora dequalidades morais e educacionais(GRADMAISON,1988.p.178-9). Destaforma é que a intelectualidade reformadora de fins do século XIX e iníciodo XX, médicos, engenheiros e educadores, se debruçam sobre umaquestão comum – a difícil tarefa de produzir um novo sujeito urbano,

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sem a mesquinhez do passado, como sugeria o secretário da ComissãoConstrutora, mas também sem propriedades.

Entre privilégios e provisoriedades: a regeneração pela via ur-bana.

SENNET, em O declínio do homem público, afirma que “A civilida-de existe quando uma pessoa não se torna um fardo paraoutras”(SENNET,1988.p.329). Os habitantes pobres da cidade emergemna sua incivilidade como fardo social e político.

Durante o período de construção da capital mineira podemos detec-tar um deslocamento nas representações que se fazem da populaçãohorizontina, de uma dimensão mais folclórica à uma mais política, vão seelaborando os estereótipos da população.“Inerte”, “doentio”, “magros”,“esgrouvirados das costas”, “mineiros da carne de vento”, são, entreoutras, as qualificações a respeito do “tosco” habitante do sítio escolhi-do para edificar a capital.4 Entretanto aos poucos, mesmo durante osanos da construção, outras adjetivações começam a aparecer na docu-mentação oficial e nos jornais. Expressões como “elementos turbulen-tos”, “perniciosos”, de “hábitos suspeitos”, “parcelas ínfimas da socie-dade” denunciam com mais clareza a necessidade de regeneração dapopulação suburbana via o modelo urbano.

A construção da nova capital mineira foi, sobretudo, a experiênciade grande parte da população em relação às novas condições materiaise culturais com as quais foram se defrontando. Constituem essa experi-ência não somente a edificação de palácios, o arruamento de novosbairros, o novo parque, mas também a presença de demolições e desa-propriações, das ações da polícia, das posturas municipais, dos novosaglomerados populacionais, dos barracos, das epidemias e das novasregras do trabalho.

A tensão urbano/suburbano ultrapassou o meio físico e o traçadogeométrico. Nesse processo a cidade se revela em múltiplos planos.

Começando pelas formas de prioridades e privilégios temos que sãocaracterizadas basicamente pela consolidação das condições para de-senvolvimento da economia de mercado e instalação das relações pri-vadas. Durante o processo de construção da cidade e mesmo após suainauguração são benvindos os indivíduos dedicados à iniciativa priva-

4 Estas adjetivação podem ser encontrados nas Crônicas de Alfredo CAMARATE, pseudônimo Alfredo Rian-cho, na série “Por Montes e Vales” publicadas nos jornais Minas Gerais (Ouro Preto, 1894) e O Contemporâ-neo (Sabará, 1894). Abílio BARRETO também traz a transcrição de algumas passagens destas crônicas. Verainda Revista do Arquivo Público Mineiro, 1985, v. 36 pags 26-198.

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da, empreiteiros e comerciantes como sinalizadores da fixação de umanova população5.

Também, a “cidade de privilégios” pode ser identificada pelo desta-que dado à fixação dos funcionários públicos numa política clara defavorecimento a estes6. Para habitar a nova cidade utilizou-se dos sím-bolos positivos atribuídos aos funcionários públicos para atrair novoselementos à capital. A intenção é povoá-la com indivíduos distintos e derespeitabilidade em contrapartida aos antigos habitantes, bem comoestabelecer marcos que identificassem a sua função social, através deedificações suntuosas e casas de fachada que impressionassem peloseu estilo, modernidade e higiene.

Nas correspondências à Secretaria de Agricultura, Comércio e ObrasPúblicas (MINAS GERAIS,1898) encontramos uma pequena amostradessa política de proteção, onde os moradores do bairro dos Funcioná-rios solicitam reparos em sua casas, a serem feitos com dinheiro públi-co, nos quais podemos destacar os seguintes:

Tendo o Sr. Carlos F. Meireles solicitado a conclusão da pintura desua casa, sita à rua Piauí, quarteirão 32, lotes 9 e 11, peço-vosprovidenciar no sentido de ser satisfeita a reclamação apresenta-da” (Em 14/01/1898)

“Peço-vos atender, quando for possível, as reclamações feitas porfuncionários sobre suas casas, segundo a nota junta”(Em: 28/08/1898)

“O funcionário estadual Francisco de Paula (...) pede seja coloca-da em sua casa (...) uma torneira d’água em substituição a que alifoi posta provisoriamente. Para resolver o assunto peço-vos man-deis verificar e me informar se com efeito tal serviço foi feito provi-soriamente, alega o funcionário”(Em 01/02/1898).

A preocupação com a possível provisoriedade em casas de funcio-nários e a predisposição para certificar tal feito não tem o mesmo trata-mento para as habitações da zona suburbana. Abílio BARRETO (1936),em sua obra, nos deixa pistas para problematizar a questão. No seutexto ele registra a presença de,

5 Nos jornais de Belo Horizonte, como Aurora (1897), A Capital (1897) e Jornal do Povo (1899) são freqüentesos espaços dedicados à iniciativa privada.

6 É sabido a previsão na planta da cidade do bairro destinado aos funcionários público com amplas vantagensna aquisição de lotes e edificações de suas casas, como podemos verificar na Revista Geral dos Trabalhosda comissão Construtora, 1995, v.1

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“(...) turbulentos bairros provisórios de cafúas e barracões – Córre-go do Leitão e Favela ou Alto da Estação, aglomerações humanasjustamente consideradas a suburra da futura cidade”.(p.351)

Em uma outra passagem, a observação se repete,

“(...) ia-se adensando uma provação de cafúas e barracões dezinco, a que o povo denominava Favela ou Alto da Estação ouMorro da Estação (...) Tal qual aquele bairro improvisado, ondemorava a gente operária, existia igualmente o Leitão, outro aglo-merado humano de gente pobre... Estes dois bairros mescladíssi-mos e turbulentos, sobretudo à noite e nos dias de descanso, pu-seram a prova de fogo as energias e o valor do sub-delegado depolícia Capitão Lopes (...)”(p.370)

São evidentes os conflitos postos pelas práticas da moderna racio-nalidade. A pobreza extensiva e suas conseqüências são entendidascomo produzidas pela própria “incivilidade” das camadas pobres, a pro-visoriedade mesma de suas condições de vida e trabalho é consideradaconseqüência de sua “má conduta”, reforçando as adjetivações pejo-rativas. A degradação urbana não é produto de seu projeto e função social,aproxima-se de uma cultura de classe que possui em sua própria cons-tituição o potencial de “irracionalidade”.

Ainda, trazendo as observações de BARRETO ele afirma a presen-ça de,

“(...) levas inteiras de trabalhadores, nacionais e estrangeiros, acom-panhados alguns de suas famílias, produziram verdadeira simula-ção de abrigos hipotéticos”.(1936.p.575)

A provisoriedade para os pobres e trabalhadores da cidade vão seafirmando cada vez com maior intensidade durante o andamento dostrabalhos da Comissão Construtora. Em 16 de julho de 1895, um ofíciofala da intenção do engenheiro chefe de construir um “barracão provisó-rio a fim de nele serem agasalhados imigrantes solteiros e algumas famí-lias também de imigrantes”, em ofício de 17 de setembro do mesmo ano,a precariedade das acomodações da colônia do Barreiro pode ser des-tacada na afirmação de um membro da Comissão: “Estamos consertan-do a casa que antigamente seria de senzala da Fazenda para acomoda-ção e alojamento de empregados”(MINAS GERAIS,1895b).

Também os problemas recorrentes à saúde pública utilizam de for-mas improvisadas da assistência médica. O médico da Comissão Cons-trutora, Cícero FERREIRA, nas palavras do engenheiro Francisco BICA-

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LHO, cumpre sua missão “caridosa”, supervisionando e desenvolvendoele mesmo um intenso trabalho de sanitarização física, de vacinação (...“quase que violentamente... malgrado a grande relutância...”) e do em-penho na construção de um hospital de isolamento localizado nas ime-diações do bairro Calafate. Contudo, o próprio engenheiro, reconheciaque o “hospital” construído em situação de emergência tinha caracterís-ticas que bem o recomendavam:

“(...) com caráter provisório, um barracão de pau a pique e cober-tura de zinco, em boas condições higiênicas e isolamento, apare-lhado conveniente para o fim o qual se destina e ao qual poderáprestar-se por muito tempo”(BARRETO,1936.p.577).

A cidade enquanto espaço de alocação de novas categorias sociais,os trabalhadores urbanos, vai produzindo sua exclusão social numa pers-pectiva cada vez mais política. Nesse sentido, a força policial, as postu-ras municipais, as formas de higienização, não se constituem merosagentes repressores, mas acompanham toda a simbologia pedagógicada cidade: regenerar pela via urbana.

As relações entre a “cidade de privilégios” e a “cidade provisória”ensejam um amplo campo de discussões no qual as condições materiaise culturais de existência das populações pobres sugerem a necessida-de de um determinado projeto educativo justificado pela situação dedependência material e da irracionalidade “natural” dessas populações.Nas palavras de Francisco Martins DIAS, contemporâneo das mudan-ças ocorridas durante a construção da cidade,

“Nada é para nós mais belo, mais poético e mais recreativo do quea observação atenciosa desta sublime metamorfose material. Pre-za aos céus que sublime, poética e bela seja também a metamor-fose social e moral!...”(DIAS,1897.p.106).

Outras dimensões educativas nas diversidades em movimento:a via suburbana.

No ofício de 13 de outubro de 1895, expedido ao Secretário da Agri-cultura e Inspetor de Terras e Colonização, encontramos o seguinte re-gistro referente à edificação do “hospital “ de isolamento:

“O lugar chamado Calafate está bastante povoado e todos os mo-radores protestam contra a colocação de um centro de infecçãonas imediações deste povoado. A maior parte dos vizinhos ale-

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gam que já foram desapropriados de Belo Horizonte, donde tive-ram de retirar-se depois de terem já sido desterrados (dizem eles)...Queixaram-se de serem perseguidos até agora pela ameaça deser instalada no meio deles uma colônia de bexiguentos, e já seacham apoderados de um verdadeiro pânico. Propõem tambémque seja utilizado como dormitório para trabalhadores e alega tam-bém que atrapalhará o comércio que transita pela estrada bemcomo o movimento de tropeiros” (MINAS GERAIS,1895b).

As possibilidade de projetar um cidadão disciplinado e modernoacabam se defrontando com as interferências produzidas pelos diferen-tes sujeitos da cidade. As queixas e críticas, de uma certa forma, denun-ciam formas de romper ou continuar práticas anteriores de experiênciassociais.

O protesto dos moradores do Calafate, entre outras manifestaçõespresentes no período de construção, nos atesta que a realidade social ematerial vivenciada por grande parte dos habitantes e expressa na pro-visoriedade urbana vão explicitar os conflitos do projeto urbano e nãosomente a sua suposta inviabilidade ou a incompetência política de geri-lo. A “politização da rotina”7 dos novos habitantes aponta para os pro-blemas na consolidação de uma cidade capital em sua perspectiva ho-mogeneizadora e diz respeito a questão de incorporação ou exclusãosocial e política das camadas pobres.

A experiência da edificação de Belo Horizonte mostra, através dascrescentes queixas dos moradores, diferentes pontos de tensão, nosquais podemos destacar os limites dos pressupostos teóricos do projetoinicial dos engenheiros no que toca a concepção de sociedade e a di-versidade cultural e política de sua composição.

A manifestação de insatisfação por parte dos habitantes do bairroCalafate não diz respeito apenas a uma reação em relação à instalaçãodo lazareto. É uma atitude de clara percepção da relação de reciproci-dade entre as novas formas de ordenação da propriedade e a sua ex-clusão da cidade, tornando-se, por isso, um incômodo político para asautoridades.

As formas educativas enquanto tecidas na cidade, nas experiênciasurbanas, nos confrontos entre os diferentes sujeitos sociais, na “politiza-ção da rotina” de seus moradores, precipita nas elites a preocupaçãoem assegurar o diferenciado acesso à propriedade ao mesmo tempoque quer incorporar os “dependentes material e culturalmente” ao seuprojeto de cidade e sociedade.

7 A expressão foi tomada de CHALLOUB(1989) em seu estudo sobre o Rio de Janeiro nas últimas décadas doImpério.

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Outros registros, nos possibilitam problematizar as formas tensasdesse processo de incorporação, tais como o registrado nos ofícios de27 e 28 de dezembro de 1895, respectivamente,

“(...)Comunico-lhe que tem havido já certas manifestações de des-contentamento de uma parte do pessoal em conseqüência da de-mora dos pagamentos atrasados (...)”(MINAS GERAIS,1895b)

“(...)A situação torna-se assim crítica e até um certo ponto perigo-sa, porque ficamos sem dinheiro para pagar e dispensar estestrabalhadores, e aos poucos vão ir a faltar os materiais e ferramen-tas para ocupar utilmente estes trabalhadores, operários e oficiais(...)”(MINAS GERAIS,1895b)

Os conflitos originados da modificação de formas tradicionais davida dos habitantes de Belo Horizonte são evidentes na ação dos mem-bros da Comissão Construtora e no seu projeto de transformar um arraialem cidade-capital. Durante o período de construção alteram-se profun-damente a relação dos moradores com suas propriedades e formas detrabalho. Entretanto, esse processo não foi feito sem problemas: o proje-to pedagógico-modernizador da Comissão encontrou obstáculos nãotanto de caráter administrativo-burocrático, mas basicamente nas novaspráticas às quais a população foi se educando e se formando.

Na verdade, a experiência urbana com as alterações que trouxe nasrelações sociais e culturais da população, revelou a possibilidade de seestabelecerem outras relações com a cidade no que diz respeito à pró-pria tensão entre a concessão e a conquista de direitos. De outro ladodemonstrou as possibilidades de ação dos sujeitos, que diferentementedos pressupostos de cidade-educadora, se fizeram nas práticas de in-satisfação com os limites físicos, morais e legais das formas de expan-são urbana, produzindo formas também diferenciadas do sentimento depertencimento à cidade.

A cidade no movimento da escola: representações escolares domundo urbano.

Duas cidades, dois lugares, duas escolas? Habitadas por quais ha-bitantes? Aproriadas por quais praticantes? Freqüentadas por quais es-tudantes? A resposta, ou as respostas, a estas questões, levam-nos aoâmago do projeto republicano para a capital mineira, já anunciado ante-riormente: o da busca da construção de um espaço que reflita os ideaisrepublicanos de ordem, progresso e controle do mundo físico e social.

A segregação social, a possibilidade de visibilidade, de conhecer e

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controlar a população, tinha como quase único destinatário as camadasmais pobres da população. Eram suas práticas diferenciadas de apro-priação do espaço urbano, sua suposta irracionalidade e falta de auto-controle que preocupavam as autoridades republicanas. Nesta perspec-tiva, a mesma cidade que segrega, deve ter o poder de homogeneizar eincorporar, educando.

É uma e mesma cidade, aquela que permite a diferenciação e bus-ca a homogeneidade, que anuncia a igualdade e organiza a segrega-ção; que produz o transeunte e reforça as cercas e cadeias; que cons-trói a rua e a possibilidade de múltiplas apropriações do espaço urbanoe, ao mesmo tempo, condena as manifestações públicas populares, devárias naturezas, como irracionais e perigosas.

Assim, se podemos dizer, como MUNFORD(1961.p.15), que “a mentehumana toma forma na cidade, e as formas urbanas, por sua vez, condi-cionam a mente”, é também preciso considerar, como WILLIAMS(1989.p.216) que “esse caráter social da cidade ( no que tem de transi-tório, inesperado, na procissão de homens e eventos, e no isolamentoessencial e inebriante (...) visto como realidade de toda existência hu-mana”, causa inquietação e impõe pensar a direção do movimento edu-cativo da cidade e na cidade.

Numa cidade na qual tudo parece tão claro, reto, visível e, no entan-to, na qual, os habitantes confundem, ou teimam em confundir, as refe-rências claramente assinaladas, a escola aparece como uma das faceseducadoras e civilizadoras das populações pobres.

Em Belo Horizonte, como em outras cidades brasileiras, além daspolíticas de ordenação dos espaços comandadas pelo urbanismo, aesratégia educativa dirigiu-se também para a construção de uma novaforma e cultura escolares, ou em outras palavras, para a produção deuma escola tipicamete urbana. Nesta, escola e cidade interagem, numprocesso de mútua influência no qual o lugar da escola, definido no es-paço da cidade enquanto prática de apropriação específica do/no urba-no, vai definindo também o lugar específico da cidade no espaço daescola.

Aqui, no entanto, é preciso assinalar que, sob certos aspectos, aparticipação da escola no movimento da cidade faz-se de forma bastan-te diversificada. Uma primeira dessas formas, no caso específico deBelo Horizonte, pode ser notada, logo no início do século, no processode construção dos grupos escolares. Conforme já foi demonstrado emoutro lugar (FARIA FILHO, 1996), a substituição das escolas isoladaspelos grupos escolares em toda Minas Gerais, iniciada no governo deJoão Pinheiro, foi produzida e festejada, como o momento, na educaçãopública escolar, em que o novo suplantava o velho e em que a racionali-dade moderna atingia definitivamente a escola, a começar pelos seus

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próprios prédios. A recém inaugurada capital mineira, foi, uma vez mais,o marco inicial dessa empreitada modernizadora. Nela, como em outrascidades, segundo discursos da época, ao ocupar os grupos escolares,a escola mineira estava passando “dos pardieiros aos palácios”, numaclara demonstração das referências simbólicas com as quais se queriamarcar esta “passagem”.

Assim, já nas primeiras décadas deste século, a existência dos gru-pos escolares na cidade, tansforma-os em palco e cena de uma ativida-de espetacular: são e devem oferecer um espetáculo de racionalidade ede civismo. Para isso concorre, por um lado, a própria construção físicados grupos. São construções suntuosas e bem localizadas, como quequerendo demonstrar o zelo e a centralidade da escola para a Repúbli-ca. São espaços que, internamente, oferecem condições para a afirma-ção e realização de uma verdadeira “pedagogia do olhar”. E, externa-mente, são para serem vistos, apreciados e reverenciados. Daí o fato,bem exemplificado pelo primeiro grupo escolar a ser construído na cida-de, o Barão do Rio Branco, dos grupos trazerem no seu frontispício, asarmas da República, do Estado de Minas e do Município.

No entanto, não é apenas pela suntuosidade de suas construçõesque essas novas organizações escolares dão a ver uma racionalidadeque se quer demonstrar. O próprio movimento de desenvolvimento darede de grupos escolares, vai construindo e demonstrando uma racio-nalidade que vai do centro para a periferia, na qual, mais uma vez, estaé compreendida como participante de segunda classe do banquete damodernidade.

Ora, tudo isto vai produzir, todavia, suas próprias contradições. Aprimeira delas, é a crescente demanda da população para que o “tristefenômeno” das escolas isoladas cessasse e desse lugar ao grandiosoespetáculo dos grupos. Já que, as primeiras, professoras “mal forma-das” e com piores salários teimavam em dar aulas em condições muitoaquém das ideais, ou mesmo minimamente necessários, porque nãotransformar todas as escolas isoladas em grupos escolares? Os agentesdo Estado afirmavam, na prática, que não era possível construir grupospara todos: faltavam recursos. A população pobre, no entanto, produziaestratégias de alocação de seus filhos nas melhores escolas. Daí o fatode boa parte da matrícula de alguns grupos centrais, como Afonso Penae o Cesário Alvim, ser de crianças das camadas mais pobres da popula-ção8. Não terá sido, por acaso, o ir e vir para a escola, inclusive da re-gião central, que terá possibilitado a muitas dessas crianças uma das

8 Isto vale pelo menos para os anos inciais destes grupos, já que, como pudemos observar, já no final dadécada de 10 as categorias sociais mais pobres “perderam” vagas nesses estabelecimentos.

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primeiras e definitivas apropriação do espaço urbano, fazendo das ruas,atalhos, calçadas , espaço muito mais significativo do que “vias de cir-culação”?

Por outro lado, em se tratando da circulação, a necessidade de irdar aula na periferia da cidade era, para as professoras, ocasião nãoapenas de estabelecerem relações duradouras com as crianças pobresda cidade, mas também, e algumas vezes, sobretudo, de circularempelos espaços da cidade. Nesse percurso, o medo, a apreensão vividosdenotam, a par de possíveis perigos reais, a compreensão estigmatiza-da e preconceituosa dos pobres. Estes aspectos podem ser apreendi-dos da leitura de uma carta, enviada pela diretora e pelas professorasdo Grupo Escolar Henrique Diniz, em 1915, em que solicitavam a mu-dança das instalações do grupo para outro local. Vejamos:

Como se acha atualmente, em região distante de bonde, quase nomato, e infestada de vagabundo e desclassificados, é por demaisdifícil à diretora, professoras e alunos a freqüência constante, porisso vivem sempre em sobressaltos, na expectativa de uma agres-são inesperada. (...)A mudança da sede, pois, para outro ponto, por exemplo, para aavenida Floriano Peixoto, melhor proveito traria para a instrução eseria traqüilidade para as professoras e alunas, que não mais seriamobrigadas a transitar por locais ermos, habitados por elementosperigosos”.

Mesmo considerando a natureza particular deste documento e a fi-nalidade a que servia, o que coloca a possibilidade de utilização decertos recursos de linguagem para sensibilizar o destinatário, o que, porsua vez, é de muito interesse para o que aqui se apresenta, o fato é quena carta, e em muitos outros documentos, a população pobre do subúr-bio é assim re(a)presentada. A insegurança sentida pelas professoras,pela diretora e pelas alunas, acaba favorecendo, em contradição comas políticas alardeadas de a escola ir até os desclassificados para civili-zá-los, a proposição de que a escola se torne mais próxima de ( ouretorne ao) seu lugar “natural”: a região urbanizada do centro da cidade.

As camadas populares, seus costumes, suas maneiras de educaros filhos, tudo isto é visto como negativo pelos profissionais da escola.Esta negatividade produzida pelo “olhar da escola”, expressa-se nosrelatórios das diretoras e inspetores de forma bastante evidente. Nasrepresentações produzidas pelos profissionais e agentes da educaçãoescolarizada, a qual se aproxima daqueles esteriótipos produzidos pe-los cronistas nos anos de construção da capital, o modo de vida dascamadas populares é destituído de higiene, de espírito de coleguismo e

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caridade, sendo caracterizado pelos vícios da delação, das brigas, dafalta de disciplina. Como momento segundo, reforça-se, uma vez mais,o papel educativo/preventivo da escola junto às populações suburba-nas da capital.

“Um tempo precioso foi consumido em arrancar das crianças osvícios contraídos no lar. No bairro em que está situado este grupoas crianças são criadas geralmente nas ruas, sendo pois, com gran-de esforço que se consegue boa disciplina, porque não estão ha-bituadas a sujeição e a obediência”. (MINAS GERAIS, 1915a).

Percebe-se, na maioria das vezes, que, para as diretoras e inspeto-res da instrução pública, os vícios contraídos no lar nada mais fazemque se “juntar” aos outros vícios, de natureza hereditária ou social, esta-belecendo-se, assim, um discurso que busca identificar as populaçõespobres como “quase selvagens” que se encontram nos arredores dacidade. Nos discursos solenes, como, por exemplo, no momento da for-matura das alunas da escola normal, os recursos e as imagens utiliza-das na produção do enunciado, denotam claramente a produção da iden-tidade negativa do “outro”, de modo a afirmar o lugar e a importância daação educativa da escola. Numa dessas ocasiões solenes, afirmavaAurélio Pires:

Não penseis, sras. normalistas, que, em vossas futuras escolas,ireis encontrar somente as clássicas e poéticas crianças louras, deolhar seráfico, dóceis e mansas como pombas mansas.Não! Infelizmente é uma grande dolorosa verdade a sentença dofilósofo pessimista que disse que o substrato da vida é uma áspe-ra trama pungente, onde se encontra mil fios de ferro por um só deouro.Tereis, pois, de avir, não raro, com alunos grosseiros, rebeldes,bravos, em cujo coração haverá explosões súbitas e formidáveisde ferocidade primitiva de antepassados selvagens. Pois bem. Sãoprecisamente estes que mais necessitam que lhes inoculeis nasalmas esse miráfico leite da humana ternura, que nos falou o bon-doso Machado de Assis.” (PIRES,1908.p.16).

A contraposição evidenciada entre as crianças das camadas popu-lares e as crianças idealizadas não se faz no sentido de demonstrar anecessidade de a escola considerar as diferencas e especificidades dasprimeiras, mas muito mais de chamar a atenção para o estado quaseque natural e, portanto, selvagem em que se encontram. Submetidosaos imperativos da natureza, onde a vida “lhes impõe tantos ingredien-

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tes diversos e adversos no sangue, nos nervos, na alma”, os sujeitospopulares como um todo precisam ser regenerados pelo trabalho salva-cionista, quase celestial, das instituições escolares.

Essa interlocução da escola com a cidade, como não poderia deixarde ser, fez-se também com as políticas urbanas, quando se observa quea força instituidora e modeladora dessas representações desdobrava-se, também em outros movimentos e momentos de criação da cidade.

Pode-se lembrar, por exemplo, que a data escolhida para a instala-ção do Grupo do Barro Preto foi 14 de julho. Não uma data qualquer.Segundo o inspetor, a escolha recaiu sobre este dia por ser ele “um dosmais gloriosos e importantes para as democracias”. Entretanto, não sen-do possível instalá-lo nesta data, a escolha recaiu sobre o dia 07 desetembro. Datar, celebrar, criar memória. Festejar. Esta é também a pers-pectiva diretora registrada quando relata sobre a festa de inauguração:

“A festa foi abrilhantada pela banda do 1º Batalhão e pela orques-tra do sr. Justino da Conceição, sendo franqueada aos presentesuma exposição de trabalhos executados pelos alunos, especial-mente para esse fim, no pequeno espaço de tempo que vai de 8de abril a 6 desse mês.Os alunos compareceram uniformizados de branco completamen-te armados, tendo no braço esquerdo pequeno laço de fita auri-verde. Depois de prestarem devidas continências militares às au-toridades, executaram diversos manejos no pátio do estabeleci-mento. As alunas, que também trajam de branco com fita auri-ver-de à tiracolo, exibiram-se ainda, em exercícios de ginástica. Final-mente foi servido a todas as pessoas presentes uma mesa de do-ces, sendo ao champanhe erguido diversos brindes” (MINASGERAIS,1911a).

Não apenas a instalação do Grupo é celebrada como espetáculopolítico, que conta com a participação de autoridades e convidados. Ohastear a bandeira, quotidianamente, passa a ser uma cerimônia queinteressa aos(às) alunos(as) e às pessoas presentes. As festas são con-corridas. Os exames são públicos e assistidos, segundo relatos, por vá-rias pessoas. A entrega das notas e dos boletins ocorre em cerimôniascívicas, seguidas de festas para os familiares onde os(as) alunos(as)são convidados(as) a apresentarem para as sua famílias, espetáculos arespeito de temas morais e de higiene, falando sobre o mal que produzas bebidas alcoólicas, o “jogo, o fumo, etc... ou incitando os companhei-ros a não maltratarem animais, a não danificarem as flores, a respeita-rem as leis e as autoridades etc, etc.”

Mesmo constituindo-se num espaço fechado, num local próprio, onde

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o muro simboliza a sua separação da rua, contornando e definindo umacerta identidade, a “cerca” não é, muitas vezes, impedimento aos espetá-culos realizados ritualisticamente pelas crianças nos grupos escolares, con-forme relatava o inspetor João Brandão a respeito do 4º grupo em 1911:

“A Diretora manda agora alçar a bandeira no alpendre, em frenteao edifício, na hora do primeiro hino cantado. Isto não só despertamais a alegria e entusiasmo nas crianças, como um orgulho sãonos que de alguma distância assistem ao patriótico espetáculo”(MINAS GERAIS,1911b).

A escola não cria espetáculo apenas no interior de seus muros. Elacria e/ou participa de espetáculos públicos, justamente naqueles locaiscarregados de simbolismo para a população da cidade. É assim queos(as) alunos(as) e as professoras participam de comemorações na Praçada Liberdade e nas ruas da cidade. Outras vezes as manifestações pa-recem ser criação das próprias professoras, diretoras e alunos(as). Emtodas elas, está expressa a importância cada vez maior que a escolaenquanto instituição vai adquirindo como força na construção e a legiti-mação de signos e símbolos políticos e culturais.

“Importante festa escolar teve lugar no Parque da cidade no dia 7de setembro de 1907, primeiro aniversário da posse do PresidenteJoão Pinheiro.Reuniram-se naquele logradouro público as crianças dos gruposescolares da Capital sob a orientação da Diretora D. Helena Penae das professoras (...), do Jardim da infância, bem como das Pro-fessoras (...), das escolas das colônias que circundavam a Capi-tal. O Parque estava enfeitado com inúmeras bandeiras multicorese o palanque respectivo fora artisticamente adornado.A festa destinava-se a homenagear João Pinheiro no primeiro ani-versário de seu governo. Caracterizava-se, quiçá, uma finalidadepolítica, muito usual à época, em que se faziam freqüentes mani-festações de solidariedade aos membros dos executivos”.(MOURÃO,1970.p.106-7)

Podemos, pois, afirmar, que a inteligibilidade dos espetáculos e ce-rimônias escolares é dada não apenas por sua função como ritual peda-gógico, mas, como nos lembra Sahlins(1990) ao falar da articulação en-tre evento e estrutura, como um “evento” que, ao acontecer, possibilita atransformação e reprodução da/na cultura, possibilitando a alteração eas construções de significados culturais. Também Frago, citando Con-nerton, afirma:

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“Las ceremonias conmerativas combinan oralidad, texto e imagen.Son representaciones visibles con un cierto ritual o formalismo enrelación con la presencia, disposición y comportamiento de quie-nes en ellas intervienen. La disposición espacial y temporal de ta-les presencias e atuaciones, los lugares que se ocupan, las inter-venciones, las posturas, los gestos y las palabras pronuciadasdesempeñan un dobre papel: sirven para recordar, pero tambiénpara mostrar, mediante el recuerdo, quien ostenta el poder de re-crear y conmemorar el pasado, es decir, de darle el sentido ‘corre-to’ (FRAGO,1994.p.12)

Assim, é possível compreender que nem a data (07 de setembro) emuito menos o local (Parque Municipal), foram escolhidos ao acaso. Sig-nificam, ao mesmo tempo, a celebração e lembrança da constituição danacionalidade e a produção e reforço do poder de quem governa na-quele momento e, por outro lado, o reencontro com a natureza e com umespaço de sociabilidade perfeitamente límpido (e limpo), encravado nocentro da cidade a lembrar as maravilhas realizadas pela razão humanana construção da cidade.

Assim, podemos lembrar com OLIVEIRA(1989.p.173) que “a come-moração pretende exorcizar o esquecimento” e que:

“Os estados nacionais foram pródigos em definir hinos, bandeiras,imagens e símbolos que ‘personificam’ a nação, fornecendo-lheso sentido de identidade e expressando sua soberania. Legitimida-de, soberania e cidadania são as questões centrais na construçãode uma nação e se fazem presentes na organização da tradição eda memória coletiva, constituidora da identidade nacional”. (OLI-VEIRA, 1989.p.181)

O movimento da escola, a sua auto-construção, se desdobra e searticula ao/no movimento da cidade e da nação, estabelecendo vínculose continuidades, mas constituindo também singularidades e rupturas. Éuma e mesma escola que se desdobra em vários movimentos, em múlti-plas direções, de acordo com o jogo de forças, com os desejos, medose anseios de seus profissionais e, porque não daqueles que a freqüen-tam. Escola e cidade, ambas criadoras e criaturas: é uma escola que vaise legitimando como uma forma não apenas de educar as crianças e detrans-formá-las, mas também de influir nos destinos da cidade. A esco-la, neste sentido, se cria ao criar a cidade; é uma cidade que se produznos momentos da escola, e produz a escola como um de seus momen-tos.

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