A ENGENHOCA ORTOGRÁFICA

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A engenhoca ortográfica António Guerreiro In Ao pé da letra , Expresso – A(c)tual, 7 de Janeiro de 2012 Regressemos ao Acordo Ortográfico, a convite de uma entrevista que um dos pais do monstro deu ao Diário de Notícias. O que diz o professor Malaca Casteleiro? Que o que muda é “a imagem gráfica da palavra” e só temos agora de “fazer um esforço de adaptação”. Esta concepção da ortografia como engenhoca gráfica baseia-se numa total desvalorização da gramma (a inscrição) em favor da phone (e daí o privilégio concedido à representação fonética), como se aquela fosse uma mera representação desta. A filogénese da escrita mostra que esta é autónoma do oral, o que levou Barthes a afirmar: “Tudo se passa como se a escrita já tivesse sido inventada antes de ser posta em relação com a língua, antes de ser fonetizada.” Ora, este dado filogenético transpõe-se para o nível do indivíduo: aprender a ler e escrever é entrar numa ordem ortográfica que transporta uma memória cultural e um imaginário que nos constituem, tal como a língua. É nesse sentido que a ortografia é sempre mais do que o design convencional das palavras: na ontogénese da consciência, há uma escrita que precede a fala (leia-se a crítica de Derrida a Saussure). E essa escrita acaba por se confundir, para cada um de nós, com uma manifestação ortográfica, de um modo tão profundo como o sonho é uma espécie de texto que transcreve a imagem latente. É certo que a resistência a uma nova ortografia só pode vir de quem foi constituído pela ordem da ortografia anterior. Mas nem por isso ela pode ser vista com o simplismo do professor Casteleiro, que, com uma perna na Academia, outra na escola primária, e a cabeça numa órbita que não é a da Linguística, afirma: “Se pensarmos nas crianças que estão a aprender a escrever, para elas é muito mais fácil escrever sem as consoantes mudas.” Este álibi manhoso da literacia foi o mesmo que serviu para expulsar em larga escala os textos literários do ensino da língua. Nota do Editor: foi corrigida a ortografia original em acordês. Publicado na Biblioteca do Desacordo Ortográfico a 28 de Fevereiro de 2012 Subscreva a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico

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"A ENGENHOCA ORTOGRÁFICA" por António Guerreiro. In "Ao pé da letra", Expresso - A(c)tual, 7 de Janeiro de 2012.

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A engenhoca ortográfica António Guerreiro

In Ao pé da letra, Expresso – A(c)tual, 7 de Janeiro de 2012 Regressemos ao Acordo Ortográfico, a convite de uma entrevista que um dos pais do monstro deu ao Diário de Notícias. O que diz o professor Malaca Casteleiro? Que o que muda é “a imagem gráfica da palavra” e só temos agora de “fazer um esforço de adaptação”. Esta concepção da ortografia como engenhoca gráfica baseia-se numa total desvalorização da gramma (a inscrição) em favor da phone (e daí o privilégio concedido à representação fonética), como se aquela fosse uma mera representação desta. A filogénese da escrita mostra que esta é autónoma do oral, o que levou Barthes a afirmar: “Tudo se passa como se a escrita já tivesse sido inventada antes de ser posta em relação com a língua, antes de ser fonetizada.” Ora, este dado filogenético transpõe-se para o nível do indivíduo: aprender a ler e escrever é entrar numa ordem ortográfica que transporta uma memória cultural e um imaginário que nos constituem, tal como a língua. É nesse sentido que a ortografia é sempre mais do que o design convencional das palavras: na ontogénese da consciência, há uma escrita que precede a fala (leia-se a crítica de Derrida a Saussure). E essa escrita acaba por se confundir, para cada um de nós, com uma manifestação ortográfica, de um modo tão profundo como o sonho é uma espécie de texto que transcreve a imagem latente. É certo que a resistência a uma nova ortografia só pode vir de quem foi constituído pela ordem da ortografia anterior. Mas nem por isso ela pode ser vista com o simplismo do professor Casteleiro, que, com uma perna na Academia, outra na escola primária, e a cabeça numa órbita que não é a da Linguística, afirma: “Se pensarmos nas crianças que estão a aprender a escrever, para elas é muito mais fácil escrever sem as consoantes mudas.” Este álibi manhoso da literacia foi o mesmo que serviu para expulsar em larga escala os textos literários do ensino da língua. Nota do Editor: foi corrigida a ortografia original em acordês. Publicado na Biblioteca do Desacordo Ortográfico a 28 de Fevereiro de 2012 Subscreva a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico