A Emergência Da Responsabilidade de Indenizar No Plano Civil Somente Surge Quando Se Estabelece o...

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Sobre o conceito de nexo de causalidade no direito civil. Trabalho apresentado à disciplina de Direito Civil II; prof. dr. Paulo Nalin. Aluno: Raphael Turra Sprenger (2º ano, N2). A emergência da responsabilidade de indenizar no plano civil depende do estabelecimento de um elo entre ação e dano. No discurso jurídico, tal elo de ligação entre conduta e resultado danoso chama-se nexo causal. É um tema de profunda importância no direito civil, pois, quando não é comprovada a existência de nexo de causalidade, não ocorre o dever de indenizar, seja nos casos de responsabilidade objetiva, seja naqueles de responsabilidade subjetiva. A elaboração teórica sobre o conceito, buscando delimitar o escopo do nexo causal, revela-se de grande importância especialmente nos casos em que há uma cadeia de causalidades, ou seja, quando aparecem várias concausas. Tal pluralidade causal dificulta distinguir a ação que realmente causou o dano de outras ações que, meramente, coincidem com o dano. Separar causalidades e coincidências é, portanto, um dos objetivos centrais das teorias sobre o nexo causal. Existem diversas correntes doutrinárias acerca do assunto; podemos distinguir três teorias principais: (i) teoria do dano direto e imediato; (ii) teoria da equivalência das condições; e (iii) teoria da causalidade adequada.

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emergencia da responsabilidade de indenizar: suas causas, condições e consequencias.

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Sobre o conceito de nexo de causalidade no direito civil.

Trabalho apresentado à disciplina de Direito Civil II; prof. dr. Paulo Nalin.

Aluno: Raphael Turra Sprenger (2º ano, N2).

A emergência da responsabilidade de indenizar no plano civil depende do

estabelecimento de um elo entre ação e dano. No discurso jurídico, tal elo de

ligação entre conduta e resultado danoso chama-se nexo causal. É um tema de

profunda importância no direito civil, pois, quando não é comprovada a existência de

nexo de causalidade, não ocorre o dever de indenizar, seja nos casos de

responsabilidade objetiva, seja naqueles de responsabilidade subjetiva.

A elaboração teórica sobre o conceito, buscando delimitar o escopo do nexo

causal, revela-se de grande importância especialmente nos casos em que há uma

cadeia de causalidades, ou seja, quando aparecem várias concausas. Tal

pluralidade causal dificulta distinguir a ação que realmente causou o dano de outras

ações que, meramente, coincidem com o dano. Separar causalidades e

coincidências é, portanto, um dos objetivos centrais das teorias sobre o nexo causal.

Existem diversas correntes doutrinárias acerca do assunto; podemos

distinguir três teorias principais: (i) teoria do dano direto e imediato; (ii) teoria da

equivalência das condições; e (iii) teoria da causalidade adequada.

A teoria predominante no direito civil brasileiro, adotada pelo Supremo

Tribunal Federal, é a teoria da causalidade direta e imediata (sua denominação

pode ser “dano direito e imediato”, também). Esta teoria, também conhecida como

teoria da interrupção do nexo causal, é mais facilmente formulada em termos

negativos: ninguém deve ser responsabilizado por eventos que não sejam

consequência direta e imediata de sua ação (ou omissão). Em outras palavras,

diante de um quadro complexo de causas, no momento em que se localiza o agente

cuja ação foi causa direta e imediata de um determinado evento danoso,

interrompe-se o nexo causal, de modo a evitar o prolongamento indevido e

excessivo da cadeia de causalidades. Este corte no elo causal impede que atores

estranhos ao evento danoso sejam imputados como culpados por sua ocorrência.

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Os adeptos desta doutrina consideram que a teoria do dano direto e imediato

deve ser aplicada não só por motivos de adequação teórica, mas também porque foi

incorporada ao sistema jurídico pátrio, de forma expressa, no art. 1.060 do Código

Civil. Este dispositivo trata de responsabilidade contratual, mas é posição majoritária

dentre os intérpretes do direito brasileiro que deve ser aplicado também para definir

a matéria de responsabilidade extracontratual. Afirma o citado artigo: “Art. 1.060.

Ainda que a inexecução resulte do dolo do devedor, as perdas e danos só incluem

os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato”. Ou

seja, o dever de reparar só emerge quando o fato danoso é consequência direta e

imediata de certa ação ou omissão. Diante de um cenário de concausas, toma-se

como causa principal aquela que de forma direta e imediata causou o dano,

descartando-se as causas acessórias mediatas.

Um exemplo hipotético consiste na seguinte situação: (A) presenteia (B), seu

amigo, com um livro de Schopenhauer. Diante do teor pessimista do livro, (B) sofre

uma crise de depressão repentina e aguda e se suicida, escrevendo uma carta em

que afirma que sua morte teve como causa o sistema filosófico de Schopenhauer,

que conheceu no livro que lhe deu (A). (C), cônjuge de (B), diante do fato, pretende

processar (A) por ter induzido (B), através do citado livro, ao suicídio. Ora, o fato de

(A) ter presenteado (B) com o referido livro, apesar de tornar (A) um elo na rede de

causas que levou (B) ao suicídio, não o faz responsável, nem lhe gera dever de

reparar (C) pela perda do cônjuge. O ato de (A) é apenas uma concausa remota do

fato danoso, não sendo o evento cujo resultado imediato e direto foi o suicídio de

(B). Entre o ato de (A) e o suicídio de seu amigo encontram-se outras causas, mais

diretas, que levaram ao evento principal. Qual seria a causa imediata? Seria a

própria racionalização depressiva de (B); o próprio suicida é responsável pelo fato

imediato que resultou em sua morte. (B) é o culpado da morte de (B), portanto. Não

seria correto nem mesmo culpar a nociva filosofia de Schopenhauer, pois este, além

de já ser um autor defunto, não consiste no último elo da cadeia de causalidades. O

último elo foi o próprio pensamento depressivo de (B) e seu ato suicida. Tanto é

assim que muitas pessoas leem Schopenhauer e não necessariamente são

induzidas ao suicídio perante a visão trágica que este filósofo tem da existência

humana. Desta forma, (C) não tem razão em sua pretensão reparatória.

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Por outro lado, a teoria da equivalência das condições, como está explícito

em sua própria denominação, considera que todas as causas se equivalem entre si.

O raciocínio subjacente a esta teoria é que, retirada qualquer uma das causas

verificadas no plano fático, mesmo as menos imediatas dentre estas, o efeito não se

produziria do mesmo modo. Assim, todos os elementos que auxiliaram a causar o

dano são reputados equivalentes enquanto fontes do resultado final. Retomando-se

o exemplo anteriormente dado, a respeito do presente fatídico que (A) deu para (B),

como a teoria da equivalência das condições não valora as diferentes causas,

seriam responsáveis pelo suicídio (A), Schopenhauer, além do próprio (B), entre

outros que se intrometessem no elo (por exemplo, o sujeito (D) que introduziu (A) ao

pensamento schopenhaueriano).

A inconveniência prática desta teoria é facilmente deduzível. Considerando

que a realidade é constituída por uma rede complexa de eventos, todos

entrelaçados entre si, sendo cada um ao mesmo tempo causa e efeito de todos os

demais, tal teoria implica em um complexo teoricamente infinito de causas para um

só resultado danoso. Considerar que todas as causas são equivalentes conduz a

uma hipotética situação em que mesmo os mais insignificantes atos humanos

seriam considerados, no plano jurídico, como causas de um mesmo evento nocivo.

Assim, em razão da “hipertrofia causal” que acaba por gerar, esta teoria é, no plano

teórico, injusta e incerta e, no plano prático, inaplicável, restando muito difícil

individualizar o agente culpado que deverá prestar a reparação. Neste ponto, em

comparação com a teoria do dano direto e imediato, adotada pela maior parte dos

juristas, a teoria da equivalência das condições revela-se pouco operacional.

Já a teoria da causalidade adequada afirma que, diante de um quadro de

causalidades múltiplas, deve-se procurar a causa potencialmente mais adequada

para produzir o dano, isto é, aquela que, retirando-se todos os acidentes do caso

concreto, seria capaz de, isolada, produzir o efeito nocivo verificado. Não é

suficiente que determinado evento apareça como condição de um resultado danoso;

é preciso que tal evento, em abstrato, seja apto a produzir tal resultado. Através

deste raciocínio, esta teoria procura discernir com mais cuidado aquilo que é

circunstancial daquilo que é essencial para que determinado evento fosse

produzido. A teoria da causalidade adequada é muito eficiente, sendo utilizada com

significativa frequência pelos tribunais brasileiros.

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Apesar de, a princípio, a redação do art. 1.066 do Código Civil afastar as

duas últimas teorias explanadas – a teoria da equivalência das condições e a teoria

da causalidade adequada –, em favor da teoria do dano direto e imediato, nada

impede, porém, que aquelas teorias sejam utilizadas de forma temperada a esta

última.

Em relação à natureza da reparação que prevê o art. 1.066, deve ela se

referir apenas aos prejuízos efetivamente decorrentes do fato danoso: “(...) as

perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito

dela [inexecução e, por analogia, ato ilícito] direto e imediato”. A norma afirma,

portanto, que o dever de reparar deve restringir-se às consequências diretas e

imediatas decorrentes de determinado evento.

Para conciliar este dispositivo com a figura dos danos reflexos (ou por

ricochete) – que são, por natureza, indiretos – desenvolveu-se, na jurisprudência e

doutrina, a teoria da relação causal imediata, também dita subteoria da

necessariedade da causa. De acordo com esta teoria, a obrigação de reparar surge

se o fato danoso é efeito necessário de determinado fato-causa. Tal teoria permite

considerar a emergência do dever de reparar por danos indiretos, desde que estes

sejam consequência necessária e certa de uma ação ou omissão. O nexo de

causalidade definir-se-ia, portanto, pela relação de necessidade (ou

necessariedade) existente entre fato-causa e fato-efeito.

É corrente na prática foral o cruzamento das diversas teorias de causalidade,

de forma a obter as soluções mais adequadas possíveis aos casos concretos,

considerando todas as peculiaridades que cada um deles traz consigo. Os tribunais

revelam, assim, uma postura eclética no que diz respeito ao embasamento teórico

utilizado, com o predomínio, de modo mais ou menos consciente, da teoria da

causalidade necessária. Em geral, os juízos, inclusivos no uso das diversas teorias

a respeito do nexo de causalidade, procuram o nexo causal necessário – isto é, o

fato-causa cuja consequência certa e necessária seria o evento danoso, daí

surgindo o dever de indenização.

Cabem ser observadas ainda duas outras hipóteses: (i) a superveniência de

causa relativamente independente e (ii) concurso de causas. Na hipótese de

superveniência de causa relativamente independente como interruptor do nexo de

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causalidade, um fato de terceiro pode eliminar a relação de causalidade entre fato-

causa e fato-efeito. Por exemplo, digamos que o motorista (A) necessite frear seu

veículo, em meio ao fluxo do trânsito, em razão de (B) estar estacionado

indevidamente na pista; ato contínuo, (C) colide com (A), causando grande dano

aos dois veículos de (A) e (C), sem afetar o de (B). Neste caso, a causa necessária

ao fato danoso foi ter (A) parado seu carro na via de trânsito. No entanto, tal fato

causador do dano só teve lugar devido a (B) estar parado com seu veículo de forma

irregular na pista, criando obstáculo ao tráfego de (A). Desse modo, o nexo

necessário cede em razão de fato superveniente de terceiro, e a culpa, caso, é de

(B) – foi B que é responsável pelo fato necessário para que a colisão entre (A) e (C)

sucedesse.

Quanto ao concurso de causas, devem ser distinguidas duas hipóteses: (i)

concausas sucessivas – quando diversas concausas se sucedem e apenas uma

delas é diretamente responsável pelo evento danoso; e (ii) concausas

concomitantes – quando há concorrência de concausas e todas se relacionam com

igual impacto para gerar o fato danoso.

No segundo caso, de concausas concomitantes, o nexo de causalidade

necessário só poderá ser definido através da análise de cada caso concreto.

Existem duas possibilidades: ou (i) determina-se que há, entre duas ou mais

concausas concorrentes, uma preponderante, cabendo ao agente desta o dever de

reparar, ou (ii) determina-se que as diversas concausas tiveram papel igualmente

importante para que o fato danoso sucedesse, sendo impossível distinguir uma

principal, repartindo-se o dever de reparação. Nesta segunda hipótese, ocorre

“culpa concorrente”.

O caso (i) se verifica quando há, em determinada cadeia de causalidades,

uma concausa direta e outra(s), que lhe deram origem, indireta(s). Esta, apesar de

ser necessária para que a primeira ocorra, não pode gerar dever de reparar, já que

são remotas e, entre ela e o fato danoso, intervêm outras causas, mais imediatas e

diretas. Em outras palavras, outros fatos, de causalidade mais preponderante,

contribuíram para que o evento prejudicial ocorresse, cortando-se, assim, o liame de

necessariedade.