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A EDUCAÇÃO ESCOLAR APINAYÉ NA PERSPECTIVA BILÍNGUE E INTERCULTURAL FRANCISCO EDVIGES ALBUQUERQUE ORGANIZADOR

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FRANCISCO EDVIGES ALBUQUERQUEO R G A N I Z A D O R

Coordenação de Aperfeiçoamentode Pessoal de Nível Superior

Programa do Observatório da Educação Escolar Indígena

A EDUCAÇÃO ESCOLAR APINAYÉ NA PERSPECTIVA BILÍNGUE E INTERCULTURAL

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A EDUCAÇÃO ESCOLAR APINAYÉ NA PERSPECTIVABILÍNGUE E INTERCULTURAL

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Reitor: Alan BarbieroPró-Reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos Comunitários - PROEX: Marluce ZacariottiPró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação - PROPESQ: Márcio Antônio da SilveiraDiretor do Campus de Araguaína: Luiz Eduardo BovolatoCoordenação do Projeto de Educação Escolar Apinajé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural: Francisco Edviges AlbuquerqueDiretor de Educação Básica Presencial/DEB/CAPES: João Carlos TeatiniCoordenação Geral da CGC/DEB/CAPES/MEC: Carmem Moreira de Castro NevesCoordenadora de Fomento da CGC/DEB/CAPES: Fernanda Litvin Villas BoasEquipe Técnica/CAPES: Carine Pereira Mariani, Janaina Cássia Carvalho e Sílvia Helena RodiguesCoordenação Regional/FUNAI/ Palmas: Cleso Fernandes de MoraesChefe do NPPDS FUNAI/ Palmas: Corina Maria Rodrigues CostaCoordenação Técnica da FUNAI/ Tocantinópolis: Josevan da Cruz VilanovaDiretoria de Educação Indígena e Diversidade/SEDUC/TO: Maximiano BezerraSupervisor Pedagógico Indígena / DERET / Tocantinópolis: João Joviano de Medeiros Neto

Grão Chanceler: Dom Washington Cruz, CPReitor: Wolmir Therezio Amado

Editora da PUC GoiásPró-Reitora da Prope e Presidente do Conselho Editorial: Sandra de FariaCoordenador Geral da Editora da PUC Goiás: Gil Barreto RibeiroConselho Editorial: Regina Lúcia de Araújo; Aparecido Divino da Cruz; Elane Ribeiro Peixoto; Heloisa Capel; Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante; Cristóvão Giovani Burgarelli; Heloísa Helena de Campos Borges; Iúri Rincon Godinho; Maria Luísa Ribeiro e Ubirajara Galli.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural

Francisco Edviges Albuquerque

o r g a n i z a d o r

UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINSPONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁSGoiânia, 2011

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© 2011 Universidade Federal do Tocantins

Editora da PUC GoiásRua Colônia, Qd. 240C, Lt. 26-29, Chácara C2, Jardim Novo Mundo, CEP. 74.713-200 - Goiânia - Goiás - Brasil. Secretaria e Fax (62) 3946-1814, Revistas (62) 39461815Coordenação (62) 3946-1816, Livraria (62) 3946-1080www.pucgoias.edu.br/editora

Comissão Técnica

Biblioteca Central da PUC Goiás – NormalizaçãoRomeu Henkes – RevisãoFélix Pádua – Editoração Eletrônica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, GO, Brasil

Índice para catálogo sistemático1. Educação Escolar Indígena Apinayé2. Educação Escolar Bilíngue e Intercultural

Todos os direitos reservados aos autores: Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio de processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fono-gráficos, videográficos, internet, notebook. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal, cf. Lei nº 6.895, de 17/12/80) com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (art. 102, 103 parágrafo único, 104, 105, 106 e 107 itens 1, 2 e 3 da Lei nº 9.610 de 19/06/98. Lei dos Direitos Autorais).

Todos os trabalhos de autoria, comentários, opiniões, conclusões ou recomendações são do(s) autor(es), e não necessariamente refletem as opiniões do editor.

Impresso no Brasil

E21 A Educação escolar Apinayé na perspectiva bilíngue e intercultural / Francisco Edviges Alburquerque, (org). – Goiânia: Ed. da PUC Goiás, 2011. 240 p.

ISBN 978-85-7103-722-9

1. Alfabetização – Índios Apinayé. 2. Educação – Índios Apinayé. 3. Edu-cação – indígenas. I. Albuquerque, Francisco Edviges. II. Título.

CDU 37.02 (= 1- 82)

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Professores Indígenas Apinajé colaboradores do Projeto: Amindor Corredor Almeida Apinajé, Ana Rosa Ribeiro Salvador Apinajé, Carlos Tep-Krut Fernandes Apinajé, Cassiano Sotero Apinajé, Davi Waimimem Chavito Apinajé, Emílio Dias Apinayé, Eloíza Apinajé, Eva Apinajé, Francisco R. da Costa Apinajé, Gilberto Dias Morais, Gilberto Pereira Apinayé, Iramar Dias de Sousa Apinajé, Itamar kamàt Apinajé, Ivan Corredor Apinajé, José Dorico Apinajé, José Eduardo Dias Pereira Apinayé, Josué Dias de Sousa Apinayé, Júlio Kamêr Apinayé, Jurandy Pereira Apinayé, Lucas Dias Laranja Apinajé, Maria Célia Dias de Souza Apinajé, Maria Cipand Apinajé, Maria Dos Reis Corredor, Paulo Laranja Apinayé, Percí-lia Dias Morais, Roberto da Mata Apinajé, Rogério Evangelista Dias Apinajé, Rosana Dias Apinajé, Sili-van Oliveira Apinayé, Vanderlei Sotero Apinajé, Vílson Corredor Apinajé, Willian Dias Laranja Apinajé.Assessoria Linguística: Francisco Edviges Albuquerque

Equipe do Projeto:Coordenação: Francisco Edviges AlbuquerqueProfessores Colaboradores: Miguel Pacífi co Filho e Th elma Pontes BorgesBolsistas de Graduação: Alex Dias da Conceição Silva, Carlos Joeverson Azevedo de Oliveira, Ediléia Maria da Sila, Fernanda de Oliveira Fernandes e Gustavo Carvalho Viveiros.Bolsista de Mestrado: Severina Alves de AlmeidaProfessoras de Educação Intercultural (Bolsistas): Ana Rosa Ribeiro Salvador Apinayé e Maria Célia Dias de Sousa ApinayéCapa: Francisco Edviges Albuquerque e Josévaldo Bringel da CruzDiagramação e Digitação: Josévaldo Bringel da CruzImagem da Capa: Professores Indígenas da Aldeia São José

Esta publicação foi viabilizada com recursos do Programa do Observatório da Educação Escolar Indígena/CAPES/SECAD/INEP - Edital 001/2009 - Projeto 014.

PROEX - Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos ComunitáriosPROPESQ - Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-GraduaçãoLALI - Laboratório de Línguas Indígenas / Campus de AraguaínaNEPPI - Núcleo de Estudo e Pesquisa com Povos Indígenas / Campus de Araguaína

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)

APOIO:

Coordenação Geral de Educação IndígenaFUNAI – Fundação Nacional do Índio

Diretoria de Educação Indígena e Diversidade/SEDUC/TO

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APRESENTAÇÃO

Quando o Professor Doutor Francisco Edviges Albuquerque nos con-vidou para fazer o Prefácio deste livro, um misto de alegria e temor nos acometeu. Alegria porque é um privilégio o fato de que, dentre tantas pes-soas em seu rol de convivência acadêmica e pessoal, ele tenha se lembrado de nós. E temor porque o peso da responsabilidade aumenta na proporção em que vamos tomando conhecimento de sua trajetória, não apenas como pesquisador dedicado à causa da Educação Escolar dos Povos Indígenas do Tocantins, mas também pela sua generosidade e desprendimento para com todos aqueles que têm o privilégio de compartilhar de sua convivência. To-mar para nós a responsabilidade de prefaciar um livro sobre Educação Es-colar Indígena organizado por esse Professor é uma tarefa desafiadora, mas é também uma rara oportunidade que não podemos nem devemos deixar passar, e começamos expressando com humildade nossos agradecimentos.

No tocante ao livro, acreditamos que seus indícios são remanescentes do ano de 2009, quando a CAPES - Fundação Coordenação de Aperfei-çoamento de Pessoal de Nível Superior - em parceria com a SECAD - Se-cretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade e o INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - visando ao fortalecimento da formação dos profissionais da Educação Bá-sica Intercultural Indígena, bem como ao estímulo à produção acadêmica e à formação dos alunos de graduação e pós-graduação em nível de mestrado e doutorado, publicou o edital para a criação do “Observatório da Educação Escolar Indígena”.

Ao tomar conhecimento do referido edital, o Professor Doutor Fran-cisco Edviges Albuquerque, idealizou, implantou e coordenou o “Projeto de Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural”, cujo resultado está neste livro. O objetivo principal foi a realização de cursos de aperfeiçoamento para os professores indígenas que atuam nas escolas de suas comunidades como professores do Ensino Fundamental e Médio, dando continuidade às ações de extensão desenvolvidas pelo Projeto de

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8 Apresentação

A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Apoio Pedagógico à Educação Indígena Apinayé, que foi implantado nas escolas das aldeias Apinayé em 2000, também sob sua coordenação. Ações estas voltadas para a organização de material didático com participação efetiva dos professores indígenas, visto que na execução do projeto, o mate-rial didático-pedagógico está em permanente construção, levando em con-sideração a sistematização dos conhecimentos sociohistóricos, culturais e linguísticos das comunidades indígenas Apinayé.

A finalidade do livro é contribuir para o fomento a pesquisas em Edu-cação Indígena no Brasil, a partir da produção teórica dos agentes envol-vidos no Projeto, dando ênfase às experiências vivenciadas pelos pesqui-sadores. A temática versa sobre questões voltadas para Interculturalidade, Bilinguismo e Educação Escolar Indígena Bilíngue e Diferenciada. O livro focaliza também as práticas pedagógicas utilizadas pelos Professores de Língua Materna que atuam nas escolas das aldeias onde o Projeto foi de-senvolvido, e está organizado em dez artigos assinados por professores de diferentes áreas, professores indígenas de Educação Biblíngue e Intercultu-ral, acadêmicos da graduação e uma aluna de Mestrado.

A coletânea inicia com o artigo Programa do Observatório da Educa-ção Escolar Indígena: Relatos e Experiências Apinayé, de autoria dos Profºs. Dr. Francisco Edviges Albuquerque, Maria Célia Dias de Souza Apinayé e Ana Rosa Salvador Apinayé. Nele são tecidas considerações sobre a área de concentração do Programa do Observatório, apresentando a trajetória percorrida pelos autores durante todo o processo de execução do Projeto, de forma sucinta e clara. O texto apresenta as Escolas Indígenas das aldeias São José e Mariazinha, onde se centralizaram as atividades, traçando o per-fil dos professores indígenas que lá atuam, refletindo acerca do material de apoio pedagógico que eles utilizam. Num dos momentos importantes do texto traz-se os relatos e as experiências dos Professores Indígenas Apinayé, apresentando o falar e o pensar daqueles que foram os grandes parceiros na realização do trabalho. Outra abordagem bastante relevante diz respeito à realização das oficinas pedagógicas, enriquecidas com as aulas de campo, vistas como estratégia para subsidiar conhecimentos para docentes e dis-centes indígenas, que tiveram a oportunidade de refletir sobre o trabalho didático-pedagógico, indo além de conhecimentos teóricos e práticos uti-lizados em sala de aula.

No artigo intitulado O sentido e a função da leitura e da escrita para as crianças Apinayé de Mariazinha, o Professor Dr. Francisco Edviges Albu-querque discute o que representa a leitura e a escrita para os alunos Apinayé

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Apresentação

em fase de alfabetização, considerando que a escoa desta aldeia trabalha o Bilinguismo como prática pedagógica visando à efetivação de uma Edu-cação Bilíngue e Intercultural. A aldeia e a escola são apresentadas com detalhes pelo autor. A facilidade linguística no que tange ao uso das línguas Apinayé e Portuguesa é um tema bastante instigante, que responde ao per-tinente questionamento: “Para que o indígena Apinayé quer aprender por-tuguês?” A relação entre domínio da escrita e desenvolvimento cognitivo também estão na pauta do texto, assim como reflexões acera da importân-cia da leitura no cotidiano da criança indígena Apinayé. Para concluir, o au-tor discute sobre a produção do material didático que subsidia as atividades pedagógicas dos professores indígenas na condução das aulas, em turmas do primeiro e segundo anos do Ensino Fundamental da Escola Estadual Indígena Tekator da aldeia Mariazinha.

A aquisição da escrita pelas crianças Apinayé de São José, é também assinado por Francisco Edviges Albuquerque. Aqui o autor discute a prá-tica de sala de aula de uma professora indígena do 3º ano do Ensino Fun-damental na escola Mãtyk, da aldeia São José. O texto reflete sobre a situa-ção escolar da aldeia São José, cujo foco central é a criança Apinayé, tendo em vista o processo de aquisição da escrita. As práticas alfabetizadoras da professora, os aspectos teórico-metodológicos de sua pedagogia e a relação envolvendo a fala e a escrita no tocante à aquisição pelas crianças indígenas Apinayé, são aspectos relevantes do artigo.

No quarto artigo da coletânea, Educação Bilíngue, Bilinguismo e Inter-culturalidade no contexto escolar Apinayé: o Professor de Língua Materna em perspectiva, os autores Severina Alves de Almeida e Francisco Edviges Al-buquerque comentam com bastante propriedade a Educação Escolar Api-nayé, fazendo uma discussão histórica desde a década de 1960 até os dias atuais. A Educação e a Alfabetização Bilíngues, assim como a Intercultura-lidade, são temas recorrentes no texto, trazendo informações precisas sobre os Apinayé e a Educação Escolar, sendo que o professor de língua materna e sua prática pedagógica adquirem lugar de destaque nas salas de aula das escolas das aldeias São José e Mariazinha.

Outro artigo assinado pela mestranda Severina Alves de Almeida e pelo professor Dr. Francisco Edviges Albuquerque, intitulado Letramento Literário na Escola Indígena Tekator da aldeia Apinayé Mariazinha: uma análise introdutória é um texto bastante significativo, trazendo para de-bate a questão da leitura, por alunos indígenas, de teorias literárias no contexto do letramento escolar indígena Apinayé. Referendados, de um

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10 Apresentação

A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

lado, por uma pesquisa teórica consistente e, por outro, por uma pesqui-sa empírica que contemplou três professores de literatura e cinco alunos indígenas do terceiro ano do Ensino Médio da Escola Tekator, os auto-res levantam uma discussão bastante pertinente acerca da produção de textos literários numa realidade específica, isto é, uma escola indígena, constatando que os alunos Apinayé da Escola Estadual Tektor da aldeia Mariazinha, não apenas são capazes de ler uma poesia, mas também de se apoderar de seu teor literário e poético, com capacidade de produzir seus próprios poemas, o que se configura como Letramento Literário na escola indígena de Mariazinha.

A Educação Escolar Indígena Apinayé na perspectiva Bilíngue e Inter-cultural: implicações a partir da lei 11.645/08 é um texto assinado por Se-verina Alves de Almeida e pelos acadêmicos bolsistas de graduação que participaram do Programa do Observatório da Educação Escolar Indíge-na: Fernanda de Oliveira Fernandes, Alex Dias da Conceição Silva, Ediléia Maria da Silva, Gustavo Carvalho Viveiros e Carlos Joeverson Azevedo de Oliveira. O objetivo dos autores é descrever e analisar a Educação Intercul-tural e sua aplicabilidade na sala de aula, tendo por base a Lei 11.645 de 10 de março de 2008. A grande contribuição desse trabalho está na divulgação da Lei que possibilitará a sensibilização em torno de uma problemática que envolve as relações inter-étnicas nas escolas não-indígenas, o etnocentris-mo. Afinal, é papel da escola, promover uma educação para uma convivên-cia além das fronteiras étnicas.

Thelma Pontes Borges e Miguel Pacífico Filho são os autores do artigo Observações acerca da Educação Apinayé: resultados de oficinas e observa-ções na Escola Mariazinha. O texto descreve as atividades dos pesquisado-res no transcorrer do andamento das atividades desenvolvidas pelo “Pro-jeto de Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural”, chamando a atenção para a problemática enfrentada pela Escola Tekator, em função se sua classificação em último lugar no ENEM – Exame Nacio-nal do Ensino Médio de 2008 divulgado em 2009. Dentre outros aspectos, os autores chamam a atenção para a importância de se efetivarem medidas na tentativa de reverter o problema, bem como para a necessidade de se buscar uma integração entre a comunidade indígena, os professores não indígenas e o governo nas diversas esferas, na tentativa de tornar o espaço--subjetivo escolar como um local de construção de representações do povo Apinayé, auxiliando na identidade de sua cultura, no fortalecimento de sua Língua Materna e na mediação de debates políticos.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Apresentação

O artigo Alfabetização das crianças Apinayé: subsídios para o processo educativo, escrito por Thelma Pontes Borges, Gustavo Carvalho Viveiros e Mayco Pereira Coimbra, discute as características da alfabetização Apinayé como suporte para se pensar todo processo educativo. Os autores partem do pressuposto de que a alfabetização em escolas indígenas é um proces-so, e que sua efetivação vai mais além do que fazer levantamentos de di-ficuldades específicas e suas problemáticas. Antes, deve-se pensar até que ponto a inserção das escolas nas aldeias atende de fato às necessidades das comunidades, considerando que a inserção das crianças para viver outras aprendizagens, poderia de fato contribuir para a preservação da língua e da cultura de um povo. Concebido a partir de entrevistas com professoras alfa-betizadoras e mães indígenas, além de observações nas aldeias Mariazinha e São José, o texto analisa seus resultados, os quais permitem apontar fatores interessantes, como a opção por alfabetizar primeiro na Língua Materna e só posteriormente em Língua Portuguesa e as situações que merecem ser debatidas pelas comunidades, como o fato da língua de instrução/ensino na escola não ser o Apinayé, configurando um Bilinguismo de transição. Por outro lado, verifica que existe um interesse político da comunidade em preservar seus aspectos de identidade étnica, e para isto algumas medidas já são tomadas, como é o caso da formação de professores indígenas perten-centes às comunidades e elaboração de material didático na língua Apinayé.

O texto Resistência e construção do cotidiano entre os Apinayé, dos au-tores Miguel Pacífico Filho e Carlos Joeverson Azevedo de Oliveira, tam-bém é bastante significativo. Nele são tecidas considerações acerca de atos de resistência observadas a partir de práticas cotidianas dos sujeitos histó-ricos, e interpretados à luz de conceitos desenvolvidos por teóricos como Michel de Certeau e Michel Maffesoli. O objetivo dos autores é visualizar as táticas utilizadas pelos Apinayé para desenvolver práticas cotidianas de re-sistência no sentido de preservar traços de sua identidade e observar como se dá a apropriação e o manuseio de referenciais não indígenas no contexto Apinayé. O trabalho acontece nas aldeias Apinayé São José e Mariazinha, a partir de entrevistas e observação do cotidiano com representantes dos diversos segmentos das comunidades, a saber: Caciques, Professores e ha-bitantes das aldeias.

Elisângela Aparecida Pereira de Melo com o artigo Etnomatemática e Investigação Matemática em Contextos Indígenas fecha a coletânea. Ini-cialmente a autora apresenta os saberes tradicionais dos povos indígenas do Estado do Tocantins, descrevendo os indígenas Xerente e discutindo as

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12 Apresentação

A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

práxis educativas e cotidianas dos indígenas nos contextos próprios das al-deias, evidenciadas nos saberes tradicionais, aliados às teorias de formação de professores de Matemática e da Etnomatemática, por ocasião do Curso de Magistério Indígena. Em seguida a autora analisa as ações colaborati-vas junto ao Projeto do Observatório de Educação Indígena Apinayé na área de Educação Matemática e Etnomatemática com os professores das escolas Mãtyk e Tekator das aldeias São José e Mariazinha. Tendo como aporte teórico as referências da Educação Matemática e da Etnomatemáti-ca, é possível vislumbrar, nas práticas culturais distintas, a possibilidade de relacionar os saberes e os fazeres indígenas com o ensino de Matemática, em diferentes espaços de aprendizagem, favorecendo um projeto educativo que atenda às expectativas dos Apinayé.

Concluímos afirmando que a pesquisa que originou os textos desta coletânea, contou com apoio financeiro da CAPES. O desenvolvimento das ações se deu nos anos de 2010/2011, e contou com uma equipe de pro-fessores e acadêmicos pesquisadores da UFT – Universidade Federal do Tocantins, campus de Araguaina, sob a coordenação do Professor Doutor Francisco Edviges Albuquerque. Teve também a colaboração valiosa dos Professores Indígenas Apinayé, de suas lideranças, e da população das al-deias São José e Mariazinha. Acreditamos, ademais, que esta publicação é de extrema relevância, uma vez que traz o relato de atividades in loco, e se apresenta como fonte de consulta para trabalhos desenvolvidos em contex-tos indígenas Apinayé.

Severina Alves de Almeida (SISSI)Mestranda do PPGL – Programa de Pós Graduação em Letras da UFT

– Universidade Federal do Tocantins, e bolsista da CAPES/Observatório da Educação Indígena Apinayé

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Apresentação .............................................................................................................. 07

1. Programa do Observatório da Educação Escolar Indígena: relatos e experiências Apinayé ................................................................15 Francisco Edviges Albuquerque, Ana Rosa Salvador Apinayé e Maria Célia Dias de Souza Apinayé

2. O Sentido e a Função da Leitura e da Escrita para as Crianças Apinayé de Mariazinha ............................................................................41 Francisco Edviges Albuquerque

3. A Aquisição da Escrita pelas Crianças Apinayé de São José................65 Francisco Edviges Albuquerque

4. Educação Bilíngue, Bilinguismo e Interculturalidade no Contexto Escolar Apinayé: o professor de língua materna em perspectiva ...........................................................................................95 Severina Alves de Almeida Sissi e Francisco Edviges Albuquerque

5. Letramento Literário na Escola Indígena Tekator da Aldeia Apinayé Mariazinha: uma análise introdutória ................................. 123 Severina Alves de Almeida e Francisco Edviges Albuquerque

6. A Educação Escolar Indígena Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural: implicações a partir da Lei 11.645/08 ....................... 151

Severina Alves de Almeida Sissi, Fernanda de Oliveira Fernandes, Alex Dias da Conceição Silva, Ediléia Maria da Silva, Gustavo Carvalho Viveiros e Carlos Joeverson Azevedo de Oliveira

7. Observações acerca da Educação Apinayé: resultados de oficinas e observações na escola Mariazinha ................................ 171

Thelma Pontes Borges e Miguel Pacífico Filho

SUMÁRIO

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

14 Sumário

8. Alfabetização das Crianças Apinayé: Subsídios para o Processo Educativo ............................................................................. 183

Thelma Pontes Borges, Gustavo Carvalho Viveiros eMayco Pereira Coimbra

9. Resistência e construção do cotidiano entre os Apinayé .................. 193Miguel Pacífico Filho e Carlos Joeverson Azevedo de Oliveira

10. Etnomatemática e Investigação Matemática em Contextos Indígenas ........................................................................ 207

Elisângela Aparecida Pereira de Melo

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Francisco Edviges Albuquerque1 Ana Rosa Salvador Apinayé 2 Maria Célia Dias de Souza Apinayé 3

Introdução

O Projeto A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e In-tercultural/CAPES/SECAD/INEP do Edital nº 001/2009 pretende dar con-tinuidade às ações de extensão implantadas através do Projeto de Apoio Pedagógico à Educação Indígena Apinayé, que vem sendo desenvolvido ao longo de onze anos e já resultou em diversas publicações. Este projeto foi implantado nas escolas Apinayé e apresenta como objetivo principal a escrita Apinayé conjunta, entre o professor coordenador dessa proposta e membros da comunidade Apinayé, sobretudo na organização de material didático de apoio à educação escolar indígena e à realização de curso de aperfeiçoamento e capacitação que habilite os professores indígenas a atu-arem nas escolas de suas aldeias como professores do Ensino Fundamental e Médio. Tais ações surgiram a partir de uma proposta dos próprios profes-sores indígenas que atuam nas escolas dessas comunidades, no sentido de contribuir para minimizar as dificuldades que os professores e alunos indí-genas vinham/vêm enfrentando em relação à escrita ortográfica Apinayé, 1. Coordenador do Projeto A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e

Intercultural/ Programa do Observatório de Educação Indígena, CAPES/SECAD/INEP do Edital nº 001/2009.

2. Professora Indígena Apinayé da escola Mãtyk da Aldeia São José e bolsista do Projeto de Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural do Programa do Observatório de Educação Indígena CAPES/SECAD/INEP do Edital nº 001/2009.

3. Professora Indígena Apinayé da escola Tekator da Aldeia Mariazinha e bolsista do Projeto de Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural do Programa do Observatório de Educação Indígena/ CAPES/SECAD/INEP do Edital nº 001/2009.

1 Programa do Observatórioda Educação Escolar Indígena: relatos e experiências Apinayé

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16 Programa do Observatório da Educação Escolar Indígena: relatos e experiências Apinayé

A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

bem como na elaboração do material didático pelos próprios professores e alunos indígenas, objetivando a revitalização e a manutenção da língua e da cultura dos Apinayé, numa perspectiva de educação bilíngue, intercul-tural e de base diferenciada, levando em consideração os saberes próprios, aspectos socioculturais, históricos e linguísticos desses povos. O trabalho que vem sendo efetivado nas escolas Apinayé já resultou na publicação dos livros História e Geografia Apinayé, Matemática e Ciências Apinayé, Narra-tivas e Cantigas Apinayé, Receitas da Medicina Tradicional Apinayé, Inicia em Jaó e Finaliza em Raposa e Português Intercultural.

A proposta atual visa ampliar o trabalho de extensão já existente, cul-minando com as atividades de pesquisa e de ensino, garantido, assim, o tripé de qualidade da universidade pública. Diante dessa premissa, dois fatores nos levam a apresentar e defender a proposta aqui estruturada. O primeiro deles: consideramos que a Universidade Federal do Tocantins está geograficamente localizada numa região que sabidamente permaneceu por longos anos alheia às ações do Estado, sustentando assim alguns dos mais baixos índices de desenvolvimento humano observáveis no Brasil. O se-gundo: a escola da aldeia Mariazinha, localizada na reserva indígena Api-nayé, obteve a última colocação no ENEM do ano 2008.

Considerando o exposto, a pesquisa tem como objetivo geral auxiliar e investigar fatores preponderantes na educação do povo Apinayé. Den-tro do objetivo geral, teremos quatro pesquisas com objetivos específicos: Pesquisa: Auxiliar a construção conjunta de material de apoio pedagógico, entre eles, livro de alfabetização, sistematizando as dificuldades linguísticas e gramaticais no uso da língua Apinayé escrita. Pesquisa: Trabalhar com professores alfabetizadores Apinayé, numa perspectiva psicopedagógica, levantando características próprias da aquisição da escrita da língua mater-na; - Investigar famílias de crianças de até 2 anos de idade para verificar o processo de aquisição de língua materna com pais que são bilíngues/ mul-tilíngues. Pesquisa: Demonstrar as estratégias através das quais os povos Apinayé constituem meios de resistência cotidiana, a fim de preservar tra-ços culturais identitários diante do contínuo processo histórico de contato com a sociedade não índia e ao extermínio das línguas e das populações indígenas. Ademais, a UFT campus de Araguaína contribuiu com um pro-grama de Mestrado em Letras, destinando uma vaga para a efetivação de uma pesquisa ligada às comunidades indígenas.

O trabalho terá como público alvo as escolas das aldeias Mariazinha e São José, do povo Apinayé, que fazem parte do PIN - São José: Patizal, Co-

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calinho, Buriti Comprido, Aldeinha, Abacaxi, Prata, Palmeiras, Serrinha, Boi Morto, Areia Branca, Mata Verde, Ouro Verde, Bacabinha e Brejinho do PIN- Mariazinha: Bonito, Riachinho, Brejão, Botica, Girassol, Macaúba, Barra do Dia e Mata Grande, localizado no norte do Estado do Tocantins, próximo aos municípios de Tocantinópolis, Lagoa do São Bento, Riachinho e Maurilândia.

Desta forma, faz-se necessária uma breve descrição do processo de implantação da Universidade Federal do Tocantins, para justificar que, com a curta existência Universidade, não dispomos, ainda, de um núcleo formalizado e de um programa de doutorado. A Universidade Federal do Tocantins (UFT) foi criada no ano de 2000 com o auxílio da Universidade de Brasília (UNB). Seu primeiro concurso para professores aconteceu no ano de 2003, com a posse dos primeiros professores. Desde então a Univer-sidade vem se estruturando em termos físicos e administrativos. Somente este ano iremos debater e aprovar nossa primeira estatuinte. A que está em vigor é adaptada da UNB. Ainda assim, temos uma Universidade que em oito anos de funcionamento conseguiu grandes avanços. Somos multi campi, presentes em sete cidades do estado do Tocantins (Araguaína, Ar-raias, Gurupi, Miracema do Tocantins, Palmas, Porto Nacional e Tocanti-nópolis). Em Araguaína possuímos doze cursos de graduação, um curso de mestrado e um doutorado em Ciências Animais e, recentemente, o campus de Araguaína aprovou o curso de mestrado de Letras, Estudos Linguísticos e Ensino de Língua com início no primeiro semestre de 2010.

Com base nesses pressupostos, a presente proposta parte do Labo-ratório de Línguas Indígenas da UFT/Araguaína e do núcleo de Estudo e Pesquisas com Povos Indígenas/NEPPI. O coordenador do laboratório tem domínio nas línguas Apinayé e Krahô e trabalha a mais de uma década com estes povos indígenas, tendo inclusive realizado seu trabalho de mestrado e doutorado com os Apinayé. Os dois professores colaboradores deste proje-to tiveram contato nos últimos semestres com os povos indígenas Apinayé e Krahô, tendo estabelecido contato com estas populações indígenas, au-xiliando na elaboração do livro de alfabetização apinayé e no diagnóstico prévio da escola da aldeia Mariazinha, para identificação de fatores que auxiliem na compreensão das dificuldades vividas por esta escola.

Acreditamos, assim, que, apesar de não atendermos por completo as expectativas do edital, visto o processo em curso da estruturação da UFT, temos a nosso favor material humano capacitado para o trabalho, além da proximidade geográfica com estes povos. Assim, nosso trabalho já foi vali-

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dado pela FUNAI e Secretaria Estadual de Educação do Estado do Tocan-tins, e o mais importante é que temos desenvolvido uma relação de aceita-ção e cooperação com os povos Apinayé, o que viabilizou a implantação do projeto nas referidas aldeias.

Escolas Indígenas das aldeias São José e Mariazinha

Em 1989 foi feito um levantamento sociolinguístico dos diferentes povos indígenas do então Estado de Goiás a fim de verificar o estado lin-guístico das comunidades indígenas (Braggio, 1992b, p. 2) para, a partir dos dados obtidos, atuar nos seus programas educacionais, quando foram pesquisados os seguintes povos: Krahô, Apinayé, Karajá/Javaé, Xerente, Avá-Canoeiro e os autodenominados “Tapuia”, nas comunidades de Mano-el Alves pequeno, Mariazinha, Santa Isabel do Morro, Canoanã, Porteira, Carretão e Cachoeira. A pesquisa foi realizada por Membros da Secretaria de Assuntos Indígenas, do Setor de Etnolinguística do Museu Antropológi-co e por duas educadores e uma antropóloga da FUNAI local.

De cada comunidade, foram selecionados proporcionalmente, segun-do a autora supracitada, (1992a, p. 2), vinte por cento (20%) da população (com exceção dos Avá-Canoeiro, cuja população total, na época, (9 mem-bros,) foi contactada na aldeia dos Javaé. A pesquisa contou com a par-ticipação de 431 informantes assim distribuídos: 113 Karajá, 79 Javaé, 89 Xerente, 68 Krahô, 48 Apinayé e 25 Tapuia.

Braggio (1992b, p.2) afirma que, em 1989, todos esses povos eram atendidos por 34 escolas. A população atendida era de 1.379 alunos, embo-ra 1.947 estivessem em idade escolar, havendo um total de 77 professores. Com exceção dos Avá-canoeiro e dos Tapuias, todas as escolas já contavam com escolas bilíngues.

Os Karajá, segundo Braggio (1992 b, p.2), são os que mais possuem material escrito na própria língua e também são os que possuem escolas bilíngues há mais tempo. Os Krahô, por exemplo, têm utilizado uma carti-lha feita para os Canela, do Maranhão, o que tem acarretado problemas na comunidade. Com poucas exceções, os materiais escritos foram elaborados pelos membros do Summer Institute of Linguistics. Naquela época a maioria das escolas atendia da alfabetização à 4ª série, embora fosse desejo das comu-nidades que se ampliasse o atendimento até a 8ª série do ensino fundamental.

Nas palavras de Braggio (1992b, p. 6), para que os indígenas tenham uma educação que reflita os anseios e necessidades das suas comunidades,

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que esteja colocada no seu contexto cultural, linguístico, social, político e econômico, e que sirva de instrumento de luta pela sua autodeterminação, torna-se necessário, entre muitos outros aspectos, o conhecimento e a aná-lise da realidade sociolinguística das comunidades. Este conhecimento é de importância fundamental, pois fornecerá subsídios para que se possa real-mente implementar ou repassar um programa educacional mais adequado a cada comunidade indígena do Estado do Tocantins.

Partindo dessa premissa, as atitudes dos povos indígenas pesquisados, segundo Braggio (1992b, p.6), são altamente favoráveis à educação escolar e à educação bilíngue em particular, havendo mesmo o desejo de revita-lização da língua indígena. Portanto, dentro dessa perspectiva, o tipo de programa já implementado, ou a ser implementado, importa não somente no que se refere às suas características linguísticas, mas as ideológicas são igualmente relevantes.

Braggio (1992b, p. 57) ratifica seu ponto de vista afirmando que não bastam programas bilíngues transicionais de dois anos. O ideal é que, ao lado da instrução por um período mínimo de quatro anos, seja implemen-tado o uso funcional da linguagem escrita na comunidade, pois sem que isto ocorra, corre-se o risco de limitar a língua indígena escrita às quatro paredes da sala de aula. Ou seja, é necessário que a língua indígena tenha significado e função na sua forma escrita para a comunidade, aspectos estes ainda restritos no momento atual para as comunidades do Tocantins.

O levantamento sociolinguístico dos povos indígenas de Goiás e To-cantins, realizado por Braggio em 1989, teve fundamental importância para implantação do Projeto de Educação Indígena para o Estado do To-cantins, através do convênio tripartite, ocorrido em 1991, entre FUNAI/SEDUC–TO e UFG/GO.

A partir da implantação do Projeto, as políticas governamentais do Estado do Tocantins, com relação aos povos indígenas, voltadas para os fatores educacionais, têm sido definitivas, não só em relação ao estado lin-guístico, mas também em relação à sobrevivência da língua e da cultura dos povos indígenas, que visam a uma prática pedagógica que contemple os anseios e desejos dos povos indígenas, entre os quais está o de manutenção das escolas dentro de suas próprias comunidades, para assim garantir que essas escolas tenham professores de sua própria etnia.

Os relatórios da SEDUC/2004 informam que a maioria das aldeias in-dígenas do Tocantins possuía escolas de 1º ao 4º ano, com o corpo docente formado por professores índios e não índios (os professores índios atuam

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nos quatro primeiros anos: alfabetização, 1º, 2º e 3º anos escolares). Nas turmas iniciais, o ensino de leitura e escrita é ministrado em língua mater-na. A Língua Portuguesa é introduzida a partir da 4º ano, na maioria dos casos, ministrada também por professores indígenas.

Ao longo da convivência com professores indígenas do Estado do To-cantins, pudemos constatar que a língua materna é dominante em todas as escolas. Os professores indígenas usam-na para se comunicar com os alu-nos nas atividades de leitura e escrita desenvolvidas em sala de aula. Mesmo as atividades de leitura e escrita em português, nos anos iniciais, na maioria das escolas, exceto os Karajá-Xambioá e Krahô-Kanela, são explicadas em língua materna pelo professor indígenas. Os alunos indígenas preferem a língua materna para produzir seus textos, inclusive os alunos que cursam do 4º ano em diante.

Deve-se ressaltar que, em atendimento aos dispositivos constitucio-nais, fazendo validar uma educação bilíngue, pluralista e intercultural, o Estado do Tocantins tomou medidas legais para a adoção do ensino da língua materna relativa à educação dos povos indígenas a partir de 1998, através da Lei Estadual no 1.038 de 22/12/98, que dispõe sobre o sistema estadual de educação para o Estado do Tocantins, na Seção VII, que trata da educação para as comunidades indígenas.

Em cumprimento a essas prerrogativas, as escolas indígenas Apinayé também foram incluídas no cenário das políticas de Educação Escolar In-dígena do Estado do Tocantins, tais como reforma e construções de novas escolas, além da oferta de cursos de Formação Continuada, realização de concurso público para os professores indígenas, bem como a contratação de novos professores indígenas para preenchimento do quadro de profes-sores paras escolas indígenas Apinayé.

Neste cenário, a escola da aldeia São José foi construída com uma ar-quitetura moderna, com espaço apropriado para as aulas, boa iluminação, ventilação adequada, com salas de aula espaçosas, biblioteca, sala de pro-fessor, sala da coordenação, cozinha, alojamento masculino/feminino para professores e banheiros masculino/feminino para os alunos, além de uma sala de computação com seis computadores.

Atualmente, esta escola conta com um corpo docente de 16 profes-sores, sendo 11 indígenas e 05 não indígenas. Possui também um corpo administrativo formado por 01 (um) diretor indígena, 01(um) coorde-nador financeiro, 01(um) coordenador pedagógico, 01(um) coordenador de secretaria, 01(um) auxiliar de secretaria. Possui ainda 02 (dois) vigias,

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04(quatro) merendeiras e 03(três) auxiliares de serviços gerais; todos ín-dios. Atende ao maior número de alunos de todas as aldeias Apinayé, do Ensino Fundamental, 353 alunos, e do Ensino Médio, 63 alunos, perfazen-do um total de 416 alunos.

Nesta escola, os professores índios atuam nas quatro primeiras séries iniciais, com o ensino de leitura e escrita em língua materna. A língua por-tuguesa escrita é vista a partir da 3º ano, que também está sob a coordena-ção dos professores Apinayé.

Já os professores não indígenas estão atuando a partir da 4º ano; ain-da assim os professores Apinayé dão aulas de língua materna cinco vezes por semana, para explicar os conteúdos aos alunos, por causa da barreira linguística.

A situação Escolar de Mariazinha, em termos estruturais, difere bas-tante da aldeia São José. A escola desta aldeia atende a 268 (duzentos e sessenta e oito) alunos, sendo 228(duzentos e vinte e oito) alunos do Ensino Fundamental e 40(quarenta) alunos do Ensino Médio. Possui um corpo docente composto por 13 professores, sendo 06 (seis) indígenas e 07(sete) não indígenas. Conta ainda com 01(diretor) indígena, 01(um) auxiliar de secretaria, 01(um) coordenador de secretaria, 1(um) coordenador financei-ro, 02(dois) auxiliares de serviços gerais, 02(duas) merendeiras e 02(dois) vigias, todos indígenas

Esta escola passou por uma reforma, ampliando o número de salas de aula, mas possui pouca ventilação. Possui secretaria, sala de computação, cozinha, sala de professor, mas mesmo assim ainda é inadequada para aten-dimento ao número de alunos, visto que a partir do 5º ano do Fundamental e do 3º ano do Ensino Médio, esta escola atende aos alunos das aldeias Ma-riazinha, Riachinho, Brejão, Bonito, Botica, Mata Verde, Macaúba, Barra do Dia e Girassol.

Os professores Apinayé usam a língua materna para se comunicar com os alunos durante as atividades de leitura e escrita em sala de aula. Tanto as atividades de escrita em língua portuguesa, quanto às atividades extra classe relacionadas à cultura indígena são também explicadas para os alunos em Apinayé. Segundo Albuquerque (1999, p. 57), nesta escola havia pouco material escrito em língua Apinayé: cartilhas de alfabetização, livros de lendas e bíblias. Estas cartilhas foram elaboradas há mais de trinta anos e não foram produzidas por professores índios, e sim por membros do SIL.

Todavia, Albuquerque (1999, p. 59) constatou que o material didático produzido pelo SIL apresentava uma linguagem artificial e fragmentada,

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visto que esse material não foi produzido pelos próprios professores indíge-nas. Não obstante, o material didático que é construído na língua da crian-ça indígena, não reflete a verdadeira língua materna da sociedade Apinayé, pois não leva em consideração os aspectos sociolingüísticos, históricos e culturais desse povo.

Perfil dos professores indígenas Apinayé

Os atuais cursos de formação de professores, em sua maioria, são frequentados por professores indígenas jovens, embora participem tam-bém muitos professores idosos, com capacitação profissional e experiência como professor bilíngue. Muitos deles estão envolvidos com movimentos políticos partidários do governo ou de seu município, ou entidades educa-cionais, como Associação de Professores, Conselho de Educação Indígena, dentre outras.

Matos e Monte (2006, p. 87) discutem a importância das línguas in-dígenas no currículo da escola diferenciada e sua inter-relação com o uso e o estudo das línguas na formação de professores indígenas, afirmando que merecem uma maior atenção, visto que a escrita em diferentes línguas tornou-se um dos resultados dos projetos educacionais bem sucedidos. Destacam também que, infelizmente, as línguas utilizadas para a trans-missão e construção dos conhecimentos curriculares durante os cursos de formação de professores indígenas não são as línguas indígenas faladas em suas sociedades, visto que há insuficiente conhecimento aplicado, domínio oral e escrito das línguas indígenas brasileiras pelas universidades e pelos profissionais engajados nos programas de formação.

Para Silva (2003, p. 108), nos cursos de formação indígena, as aulas são geralmente heterogêneas, no que se refere a quantos alunos dominam suas línguas maternas ou o português. Assim, uma das atividades mais di-fundidas nos cursos de capacitação indígena é a elaboração de textos e li-vros que serão mais tarde utilizados como material didático específico nas escolas de aldeias frequentadas por crianças e adolescentes.

De acordo com Relatórios da SEDUC (2005), a primeira etapa do Curso de Formação para professores indígenas iniciou-se de 01 a 16/07/98, do qual participaram 99 professores/cursistas de diferentes etnias, com um total de 140 horas-aula, distribuídas nas diferentes disciplinas. Portanto, o curso de formação para professores é específico para o magistério indíge-na, com sua proposta diferenciada, com um total de 2.700 horas/aula, ten-

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do como principal meta formar professores que possam assumir o projeto educacional em suas unidades escolares, na 1ª fase do ensino fundamental, que hoje contempla as 72 unidades escolares indígenas.

Neste mesmo Relatório (2005) é afirmado que, dadas as diretrizes da LDB, 9394/96, surge a necessidade de viabilizar o Curso de Formação de Professores Indígenas, uma vez que só as capacitações já não eram mais suficientes para a proficiência em educação.

Em 11/03/2005, uma turma de 19 alunos concluiu o curso de forma-ção e recebeu seus diplomas em solenidade, nesse mesmo dia, no auditório do INSS, em Palmas.

Ainda segundo este Relatório (2005), foi concluída a 11ª etapa do cur-so em dezembro de 2005, com a participação de 137 professores indígenas e supervisores pedagógicos das Diretorias Regionais de Ensino, havendo previsão de conclusão de quatro turmas em dezembro de 2006; uma turma em julho de 2008 e uma em dezembro de 2008.

É importante ressaltar que, de acordo com Relatório SEDUC (2006), será realizado um levantamento da quantidade de alunos que estiverem cursando o 3° ano do ensino médio, podendo, a partir deste, ser criada ou-tra turma de formandos que cursarão apenas as disciplinas específicas, se isto contribuir para a limitação de tempo em disciplinas presenciais.

O conteúdo curricular desses programas reflete as necessidades e inte-resses das comunidades, com uma visão de pensamento sobre o futuro das populações indígenas, como afirma Silva (2003, p.109):

[...] esses programas também divulgam entre os índios a informação sobre seus direitos consagrados legalmente, promovendo o debate de seus problemas do momento, reiterando o valor de suas práticas e con-ceitos tradicionais e legitimando seu direito consagrado de empreender e conquistar autonomia.

Partindo desses pressupostos, o Projeto de Formação de Professores Indígenas do Estado do Tocantins tem como princípio básico a conquista da autonomia sócio-econômico-cultural de cada povo, na recuperação de sua memória histórica, na reafirmação de sua identidade étnica e no estudo e valorização da sua própria língua (SEDUC-TO, 2006).

Nesse sentido, Braggio (1997, p. 35) afirma que o Projeto de Capacita-ção de Professores Indígenas do Estado do Tocantins, implantado em 1998, pretende dar continuidade ao Projeto de Formação para os Professores In-

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dígenas do Estado do Tocantins, tendo como objetivo principal a realização de cursos de formação que habilitem o indígena dos diversos grupos do To-cantins (Karajá, Javaé, Xambioá, Apinayé, Krahô e Xerente) a ser professor da 1ª fase de Ensino Fundamental dentro de uma proposta diferenciada, bilíngue, específica e intercultural.

Assim, para assegurar a necessária autonomia pedagógica, o Estado do Tocantins vem, ao longo dos anos de implantação do Projeto de Forma-ção de Professores, implementando uma política de educação em que os professores índios estão comprometidos com uma prática pedagógica que almeja respeitar os aspectos socioculturais e preservar as tradições cultu-rais dos povos indígenas, através da elaboração do material didático-peda-gógico, levando em consideração a realidade sócio-histórica e cultural de cada povo.

Dados da SEDUC (2005) informam que a Secretaria de Educação do Tocantins atende a 3.791 índios matriculados em 72 escolas, instaladas nas as aldeias Xerente, Karajá Xanbioá, Javaé, Krahô e Apinayé, perfazendo um total de 189 professores, sendo 114 professores índios e 75 professores não indígenas.

Os dados apresentados no quadro geral dos professores do curso de formação de professores indígenas evidenciam um crescimento significa-tivo do número de professores índios que atuam nas escolas indígenas do Tocantins, bem como do número de professores que fazem parte do Curso de Formação de Professores, se levarmos em consideração os dados apre-sentados por Braggio (1997).

Além dos professores que participam/participaram do curso de For-mação de Professores Indígenas do Estado do Tocantins, há aqueles que são formados nos cursos de licenciatura da UNITINS - Universidade do Tocantins, UFT – Universidade Federal do Tocantins e os que cursam a Licenciatura Interucltural da UFG – Universidade Federal de Goiás.

Com base nessa premissa, os Apinayé estão se capacitando e se pre-parando para assumir as gestões de suas escolas, visto que nessas escolas os diretores, professores de língua materna, auxiliares de serviços gerais e vigias são todos indígenas.

Porém com a Implantação do Programa do Observatório da Educação Escolar nas Aldeias Apinayé e com a Implementação das ações do Proje-to de Apoio Pedagógico à Educação Escolar Indígena Apinayé, houve, por parte dos professores indígenas, um grande incentivo à renovação e pro-dução de materiais didáticos, visto que os professores indígenas utilizam

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bastante, nas suas aulas, os livros publicados e organizados por eles, uma vez que esse material reflete os aspectos socioculturais, históricos e linguís-ticos desses povos.

Para isso, a equipe do Programa do Observatório da Educação Escolar realizou oficinas pedagógicas e aulas de campo para catalogação de dados para auxiliarem na composição e organização do material didático/peda-gógico a ser publicado, através das ações do Programa do Observatório da Educação Escolar Indígena, para ser utilizado em sala de aula, nas escolas Apinayé, como suporte didático/pedagógico visando a auxiliar os alunos indígenas na aquisição da língua materna escrita.

Materiais de apoio pedagógico

De modo geral, o que vem acontecendo nas escolas indígenas do To-cantins é o mesmo que acontece na maioria das escolas indígenas brasi-leiras: o uso frequente de material escrito em língua indígena, que são as cartilhas pedagógicas e os livros de História, Estudos Sociais, Matemática, Ciências, dentre outros. As cartilhas, de uma forma geral, foram elaboradas há mais de trinta anos, porém, o maior agravante é o fato de essas cartilhas não terem sido produzidas pelos professores indígenas e, por isso, não re-fletirem a realidade sociocultural e linguística das comunidades, em vista de terem sido formuladas tomando como base apenas alguns informantes. Tais cartilhas contrariam a atual proposta de política pedagógica da Edu-cação Indígena brasileira que, segundo o RCNEI (1998), é de uma alfabeti-zação construtiva que leve em consideração a participação significativa de professores e representantes das sociedades, a fim de assegurar uma educa-ção que atenda aos anseios das comunidades indígenas.

Portanto, para que as escolas indígenas sejam respeitadas de fato e possam oferecer uma educação escolar verdadeiramente específica e inter-cultural, integradas ao dia-a-dia dos povos indígenas, conforme os PCN (2005, p. 46), torna-se necessária a criação da categoria de escola indígena nos sistemas de ensino do País. Mediante essa categoria, será possível asse-gurar às escolas indígenas autonomia, no que se refere ao projeto pedagó-gico e ao uso de recursos financeiros públicos para a manutenção do coti-diano escolar, garantindo plena participação de cada comunidade indígena nas decisões relativas ao funcionamento da escola.

Em conformidade com o princípio de reconhecimento da diversidade cultural, o PCN (2005, p. 46) preconiza que a Lei de Diretrizes e Bases da

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Educação, LDB 9.394/96, estabelece como um dos princípios norteadores do ensino nacional o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, garan-tindo às escolas indígenas um processo educativo diferenciado e respeitoso de sua identidade cultural e bilíngue. De acordo com o artigo 78, a educação escolar para os povos indígenas deve ser intercultural e bilíngue, visando à reafirmação de sua identidade, à recuperação de suas memórias históricas, à valorização de suas línguas e ciências, além de possibilitar o acesso às infor-mações e aos conhecimentos valorizados pela sociedade nacional.

O material didático em língua portuguesa, adotado nas escolas do Tocantins após os três primeiros anos, é completamente dissociado da re-alidade sociolinguística dos alunos indígenas. Muitos desses alunos ainda estão em fase do processo de aquisição da língua portuguesa oral e, ao se defrontarem com esse tipo de material didático, ficam desmotivados e sem vontade de estudar, o que vem contribuindo para a evasão escolar, como acontece, por exemplo, em algumas escolas Apinayé.

Por outro lado, os materiais didáticos, em língua materna, utilizados nas escolas indígenas são os mesmos da década de 1950, produzidos pelo Summer Institute of Linguistics, que também não refletem os aspectos so-ciolinguísticos, históricos e culturais das comunidades indígenas do Esta-do do Tocantins, visto que é um material artificial, constituindo para as crianças um mero reconhecimento das letras, das sílabas ou de palavras em frases descontextualizadas.

Albuquerque (1999, p. 59) identifica neste material didático aspectos de uma prática pedagógica que não toma como ponto de referência o co-nhecimento anterior do aluno. Logo, não há sistematização do conheci-mento sociocultural e histórico das crianças. Assim, o professor não precisa ter formação, já que seu papel se limita ao de repassador do material didá-tico previamente elaborado.

Portanto, entendemos que a criança indígena se alfabetiza e adquire sua língua oral e escrita em razão de outros recursos utilizados pelos pro-fessores indígenas, bem como pelo seu desejo e interesse de aprender a ler e a escrever.

Segundo Monserrat (2001, p. 137), o Estado Brasileiro não tem re-almente uma política linguística específica para as sociedades indígenas. “Ele tem, sim, no nível de discurso, uma política de educação escolar in-dígena qualificada como ‘bilíngüe’, intercultural, específica e diferenciada” (adjetivação que provoca muitas dúvidas e desalento em grande parte dos envolvidos, especialmente nos índios, por não se entender bem o que que-

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rem). Para a autora (2001, p. 137), é dentro desse contexto restrito que se trata das línguas indígenas, como línguas a serem utilizadas basicamente na alfabetização “bilíngüe” e, sempre que possível, na elaboração de materiais “bilíngües” a serem utilizados na escola.

O projeto de Formação de Professores Indígenas para o Estado do Tocantins, segundo Braggio (1997, p. 35-37), prevê, na prática pedagógica, o material didático em permanente construção. Assim, a sistematização do conhecimento sócio-histórico e cultural do grupo é condição e conteúdo da prática pedagógica. A linguagem é natural; o texto é o material por ex-celência, dentro de seus mais diversos tipos, formas e origens. O sentido e a função precedem a forma, ou seja, adquiri-se a forma através da construção do sentido.

A Comunidade Apinayé, de modo geral, demonstra muito interesse pela produção de materiais didáticos, como os livros de Narrativas, de His-tória e Geografia, Matemática e Ciências, Dicionário, Livros de Redação. Surgem nesse contexto, o Livro de Alfabetização, a Gramática Pedagógica Apinayé e o Livro de Coletânea de textos, com resultado das ações do Pro-grama do Observatório da Educação Escolar Indígena.

Com base nas prerrogativas acima citadas, nas escolas indígenas Api-nayé, atualmente, vários recursos são utilizados, com o objetivo de favore-cer a elaboração e organização do material didático de autoria dos próprios professores indígenas e da própria comunidade. Reunidos no Programa do Observatório de Educação Escolar Indígena/CAPES/SECAD/INEP, através das ações do Projeto de Apoio Pedagógico à Educação Indígena Apinayé, os professores indígenas, indígenas mais velhos, comunidade em geral e os cantadores vêm organizando oficinas de produção de materiais como a Gramática Pedagógica Apinayé, Livro de Alfabetização em Língua Mater-na, juntamente com o Livro de Coletânea de textos, para serem utilizados como material de apoio pedagógico nas escolas das aldeias Apinayé e como resultados da pesquisa do Programa do Observatório.

Nessa perspectiva, a pesquisa de campo foi importante para que se confirmasse a elaboração dessas obras, uma vez que foi realizada a partir de um roteiro pré-estabelecido em função do material linguístico necessário ao estudo descritivo da Gramática dessa língua. Os professores indígenas consideraram que a Gramática e o Livro de Alfabetização contemplam um grande número de informações sobre a língua indígena, o que facilita aos professores e alunos Apinayé o acesso a um material de apoio pedagógico bastante rico sobre os aspectos gramaticais Apinayé.

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Portanto, a necessidade de obras como essas significa para os profes-sores e alunos uma importante ferramenta para auxiliar nas atividades de ensino de línguas, consistindo em um registro escrito de possibilidades de construções de conhecimento sobre a estrutura gramatical, assim como ao acesso tanto por parte dos alunos quanto dos professores indígenas para eximir suas dúvidas. Desta forma, o propósito de uma gramática bilíngue reside exatamente nesse ponto de partida. Assim, as habilidades de leitura e escrita requerem um aporte específico que possa consubstanciar as ativida-des didático/pedagógicas nas escolas das aldeias Apinayé.

Desta forma, foi produzida, em anos anteriores, através do Projeto de Apoio Pedagógico à Educação Escolar Apinayé, uma variedade de material didático ligado à Geografia, História, Ciências e Matemática Apinayé, apre-sentando uma maior reflexão sobre o meio ambiente, sobre a fauna e flora da reserva Apinayé; além desses, há também o material didático constitu-ído das narrativas históricas voltadas para os mitos e músicas. Em relação ao aspecto musical, vale destacar a realização de três festivais de músicas Apinayé, que contaram com a participação de cantadores velhos, jovens e adultos de todas as 24 aldeias.

Segundo o RCNEI (1998, p. 69), essas práticas se expandem para além do espaço da escola e da palavra escrita, dando lugar a outras linguagens, como por exemplo, os desenhos e dramatização. E mais:

[...] a nova proposta de escola, cujo objetivo é fortalecer a luta pela autodeterminação dos povos indígenas e de outros povos, dentro dos princípios da pluralidade cultural, muda essa lógica de avaliação. Ela deixa de ser um instrumento de negação e exclusão para ser um instru-mento positivo de apoio, incentivo e afirmação dos novos projetos edu-cativos das diversas sociedades. Desta forma, busca-se melhor garantir os objetivos da escola naquele lugar, para aquelas pessoas, reintegrando as ações do ensino às de aprendizagem, evitando suas descontinuidades e rupturas (RCNEI, 1998, p. 70).

Com a atual implantação do Programa do Observatório da Educação Escolar Indígena aliado à implementação do Projeto de Apoio pedagógico à Educação Indígena Apinayé, o material didático nos anos iniciais do en-sino fundamental é produzido pelos próprios professores indígenas, com a participação da comunidade e dos alunos. Apresenta a língua indígena de forma não fragmentada e contextualizada, de sorte que as crianças se

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apropriam do aspecto formal e convencional, bem como de estruturação de forma gradual e inteligente. Os textos partem da realidade sociocultural e linguística de cada sociedade, permitindo o desenvolvimento pleno de per-sonagens, temas, tramas, conflitos, apresentando textos voltados para a cul-tura indígena. Desta forma, a língua é vista como constitutiva da identidade do sujeito, do seu pensamento, da sua consciência. Segundo Bakhtin (1995, p. 16), “a consciência só adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais, e só se torna cons-ciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico)”.

A produção de textos indígenas em língua portuguesa contribui tam-bém para que a sociedade envolvente conheça melhor as sociedades indíge-nas e, assim, se enriqueça culturalmente. Desta forma, os textos produzidos em língua portuguesa, nas escolas e comunidades indígenas, têm sido uma maneira privilegiada de divulgação dos conhecimentos tradicionais e de afirmação para as sociedades indígenas. Esses materiais fornecem dados importantes sobre as diferenças culturais indígenas e suas tradições permi-tindo que, através deles, a diversidade cultural no país torne-se mais evi-dente e possa, assim, ser mais respeitada

Esse tipo de textos também pode ser explorado por meio de dese-nho, solicitando dos alunos que desenhem sobre o que leram e, em seguida, escrevam sobre o que desenharam. Alunos iniciantes podem aprender a sequenciar fatos, localizar eventos e organizar ideias. Portanto, uma discus-são oral, seja em língua indígena, seja em língua portuguesa, deve sempre preceder o trabalho com leitura e produção de texto. Deste modo, os alunos deverão, na escola, entrar em contato com a maior diversidade de textos possíveis em ambas as línguas para que possam aprender, tirando deles o melhor proveito para sua necessidade e interesse.

Exercícios desse tipo, além de despertar a vontade de aprender a ler e escrever, estimulam o aluno indígena a observar melhor, a pensar, a tirar conclusões e a verificar se suas conclusões estavam corretas. Esses elemen-tos são muito importantes para que, mais tarde, o aluno seja capaz de com-preender textos mais complexos.

Como se pode constatar in loco, as crianças Apinayé estão se alfabeti-zando em consequência de outros recursos didáticos usados pelos profes-sores indígenas. Os professores organizam suas aulas com uma variedade de materiais específicos, ligados à reflexão sobre o meio ambiente, as espé-cies da fauna e da flora da região, bem como às historias (relatos da história de seu povo), cantigas, danças, os mitos e outras partes de sua tradição oral.

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Entretanto, os livros didáticos, (Português, Geografia, História e Ci-ências), adotados nas escolas Apinayé, após as séries iniciais (pré-leitura e alfabetização), estão totalmente afastados da realidade sócio-histórica, cultural e linguística das crianças Apinayé. Como resultado, a maioria das crianças indígenas que ultrapassa os estágios iniciais de aprendizagem, ao se defrontarem com esses materiais ficam completamente desestimuladas e abandonam a escola.

Em síntese, o sucesso ou fracasso da criança seja na escola, seja na aquisição de uma segunda língua, não está associada à origem social, mas ao contexto socio interacional no qual se processa a aquisição. O processo de aquisição, para Braggio (1992a, p. 62-63) pressupõe a aceitação das dife-renças socioculturais e linguísticas, tanto por parte do professor quanto do aluno na construção do conhecimento a partir das experiências anteriores, da interação entre professor e aluno, da funcionalidade da língua e da rela-ção do aluno e o meio social.

Acreditamos que essas dificuldades somadas a outras, trazem para o aluno sentimentos de incapacidade, levando-o a desistir da escola, confor-me veremos a seguir.

Pelo que pudemos constatar durante nossa pesquisa, o número de alu-nos matriculados do 1° ao 4° ano é bem maior do que nas séries seguintes. Isto se justifica porque, nas séries iniciais, o ensino é ministrado em língua indígena. Após esse período, o ensino passa a ser em língua portuguesa, e isso tem contribuído para a evasão escolar. O ideal é que se use a língua indígena como meio de instrução por um período mínimo de quatro anos e que seja implementado o uso funcional da linguagem escrita na comuni-dade, pois, sem que isso ocorra, corre-se o risco de limitar a língua indígena escrita apenas à sala de aula. Ou seja, é necessário que a língua indígena tenha significado e função social na sua forma escrita para a comunidade.

Como se trata de sociedade minoritária, que não tem tradição de es-crita, ou que tem uma tradição de escrita muito recente, perceber “por que” e “para que” a leitura e a escrita existem, é algo que acontecerá mais lenta-mente. Algo que acontecerá, especialmente, se essa escrita for em língua in-dígena, à proporção que as funções sociais importantes para leitura e escrita forem sendo criadas. Como na vida real nunca se lê ou se escreve palavras ou sentenças descontextualizadas, ou seja, fora de contextos específicos, os alunos das escolas indígenas poderão perceber mais facilmente que a língua escrita pode ser útil e pode se tornar importante para eles, se as atividades desenvolvidas nas escolas girarem em torno da leitura e escrita de textos.

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Segundo o RCNEI (1998, p. 34-135), independentemente de sua extensão, o texto deve ser entendido como uma unidade linguística, oral ou escrita produzida em determinado contexto com um objetivo comunicativo.

Para que a escrita faça sentido para os alunos, é preciso, pois, que eles se envolvam em atividades em que a linguagem escrita apareça contextu-alizada e sirva para comunicar alguma coisa, como por exemplo, apresen-tar-se e apresentar outra pessoa, cumprimentar e despedir-se, dar, pedir e entender informações pessoais, convidar, aceitar ou recusar um convite, expressar verbalmente sentimentos e sensações de alegrias, tristeza, dor, raiva etc.

Relatos e experiências dos professores Apinayé

A pesquisa consiste em um relato de experiência vivenciado pelos professores indígenas das aldeias São José e Mariazinha, no período de ja-neiro de 2010 a dezembro de 2011, bolsistas do Observatório da Educação Escolar Indígena /CAPES/SECAD/INEP, aprovado no âmbito do Edital nº 001/2009; o Projeto nº 014, intitulado, A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural, coordenado pelo Professor Dr. Fran-cisco Edviges Albuquerque, com a participação dos professores indígenas colaboradores do Projeto

Este trabalho apresenta uma experiência dos professores indígenas Apinayé com ênfase nas práticas pedagógicas aplicadas nas salas de aula das escolas das Aldeias Mariazinha e São José, como incentivo ao exercício de bases para a coleta de dados referentes ao Livro de Alfabetização, Gra-mática Pedagógica Apinayé e a Coletânea de textos completos, para publi-cação como materiais didático/pedagógicos que refletirão nos resultados desta pesquisa, de forma a contribuir significativamente para as práticas pedagógicas dos professores Apinayé. Esta prática se faz presente nas esco-las indígenas e tem despertado, cada vez mais, o interesse dos professores que visam a melhorar suas práticas em sala de aula. O trabalho aqui pro-posto apresenta a vivência dos professores Apinayé nas escolas em estudo, as quais abrangem as disciplinas de Língua Materna, Arte e Cultura, Língua Portuguesa, Meio Ambiente e Ciências.

A implantação do Projeto do projeto nessas escolas tem por objetivo melhorar o desempenho dos alunos indígenas na sala de aula, bem como auxiliar esses alunos na aquisição dos conhecimentos em Língua Materna e em Português, visto que os alunos vêm passando por uma série de proble-

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mas relacionados à alfabetização. Como relato de nossa experiência em sala de aula, os professores indígenas abordaram atividades de leitura e escrita em língua indígena para os alunos, em forma de oficinas, como incentivo para os alunos usufruírem melhor o material didático disponível na escola e na comunidade em que estão inseridos.

OBJETIVOS - Incentivar e estimular os alunos indígenas na utiliza-ção dos recursos disponíveis no espaço escolar e mesmo fora dele, onde as crianças se sentem mais à vontade e demonstram maior interesse em aprender com os animais e a natureza que os cercam, como foi comprova-do através das oficinas e das aulas de campo realizadas pelos professores de alfabetização, fora da escola, nas matas, nos rios e córregos próximos às aldeias.

METODOLOGIA dos professores - Trabalho de pesquisa da Edu-cação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural, seguido da aplicação de oficinas , onde foram apresentados algumas técnicas por parte dos professores Apinayé, destacando o papel da alfabetização como uma experiência rica, pois possibilitou uma visão geral dessa prática, além de proporcionar o conhecimento do cotidiano dos professores indígenas no que diz respeito a todo ambiente pedagógico. Essa vivência coloca os alu-nos e professores indígenas frente a frente com a ação da docência Apinayé. Fato esse que é de fundamental importância para identificar quais as práti-cas pedagógicas utilizadas pelos professores indígenas nas salas de aulas de suas escolas que deram certo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS – A disseminação dessa metodologia de aulas, através de oficinas, para outras escolas das aldeias Apinayé, como resultado dessas vivências e experiências em sala de aula das escolas in-dígenas, será de fundamental importância para aplicação e ampliação dos conhecimentos por parte dos professores indígenas Apinayé, envolvidos no Projeto, possibilitando o conhecimento dos alunos indígenas e incentivá--los a adquirir esses conhecimentos, utilizando os materiais didáticos que lhes são disponíveis, tanto na biblioteca da escola como na comunidade. A vivência dos professores indígenas e das professoras bolsistas praticada nas disciplinas trabalhadas integra o entendimento, a assimilação e a interpre-tação de como trabalhar a alfabetização e a aquisição da escrita em língua materna pelas crianças indígenas Apinayé.

Nesse contexto, nos anos de 2010 e 2011, as disciplinas de alfabeti-zação em Língua Materna, Português, Estudos Sociais, Meio Ambiente e Ciências passaram a ser trabalhadas numa perspectiva bilíngue e inter-

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cultural. Desta forma, os professores e alunos indígenas se reuniram para organizar as oficinas pedagógicas, com o objetivo de melhor subsidiar os discentes na sistematização dos conhecimentos adquiridos em disciplinas anteriores com o intuito de desenvolver habilidades e conhecimentos no campo da alfabetização e aquisição de novos conhecimentos, bem com socializar experiências bem sucedidas na realização de oficinas pedagógi-cas. Os docentes das disciplinas relataram, de forma bastante positiva, o processo de elaboração e implementação das oficinas que se configuraram como estratégias adotadas para subsidiar o processo de aprendizagem dos discentes indígenas.

Oficinas pedagógicas: estratégias na construçãodo conhecimento Apinayé

As oficinas pedagógicas foram direcionadas para as ações pedagógi-cas dos professores indígenas, bolsistas e colaboradores do Projeto, para a efetivação do processo de alfabetização em Língua Materna das crianças Apinayé. Para tanto, foram trabalhados conteúdos acerca das disciplinas de Língua Materna, Meio Ambiente, Ciências e Português, preconizados pelas ações do Observatório de Educação Escolar Indígena. Além das oficinas, foram realizadas várias aulas de campo pelos professores e alunos indíge-nas, com o objetivo de verificar o grau de interesse dos alunos indígenas por outros conhecimentos e saberes culturais, além das atividades de leitu-ra e escrita dentro da escola.

A metodologia utilizada nas oficinas pedagógicas se constituiu como estratégia que valoriza a construção de conhecimentos de forma participa-tiva, questionadora e, sobretudo, baseada na realidade da situação socio-linguística, histórica e cultural desses povos. Para tanto, foram desenvol-vidas várias atividades de leitura e escrita, pinturas, desenho, gravuras e dinâmicas de grupos com as crianças indígenas em sala de aula e nas aulas de campo, como cantigas, brincadeiras populares, jogos educativos, dentre outros, conforme discriminamos a seguir:

A professora Ana Rosa Apinayé, bolsista da escola da aldeia São José, reuniu as duas turmas de primeiro ano e entregou aos alunos várias gravu-ras e desenhos sobre as histórias do cotidiano Apinayé, solicitando para que eles, em forma de desenho, recontassem essas histórias. Todas as crianças fizeram seus desenhos, recontado as histórias sob seus pontos de vista. O professor Cassiano, colaborador, que trabalha com Ensino Fundamental,

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fez uma aula de campo com seus alunos. Levou-os para a mata perto da escola e trabalhou com as plantas medicinais que existem na reserva, ex-plicando para os alunos para que tipo de doença servem e como utilizá--las. Além dessa atividade, o professor também explicou a importância da preservação das matas, córregos e rios que existem na reserva, pois sem as matas e rios, os indígenas não têm com sobreviver.

O professor Itamar Kamàt Apinayé levou os alunos para o pátio da aldeia e falou da importância da preservação da limpeza da aldeia e dos rios que cortam a aldeia. Levou as crianças ao rio, fez a coleta de lixo, pôs numa sacola plástica, falando da importância da coleta de lixo nas aldeias, para não poluir, tanto a aldeia como os rios, pois é nos rios que eles tomam banho, lavam roupa e usam a água para cozinhar, quando falta água na caixa da aldeia. As crianças ajudaram o professor a coletar o lixo que existia na aldeia e no rio.

Após as aulas de campo, cada professor retornou para a sala de aula com seus alunos e foi praticar, nas oficinas, os conteúdos que havia traba-lhado nas aulas de campo. Todos os alunos voltaram entusiasmados com as informações do professor e fizeram questão de anotar todas as informações que foram coletadas e trouxeram essas informações para a sala de aula, utilizado-as nas oficinas.

Os professores colaboradores e a professora bolsista da aldeia Maria-zinha também trabalharam com oficinas e aulas de campo. A professora Maria Célia, bolsista, juntamente com os outros professores de língua ma-terna, Vilson e Valdir, colaboradores do projeto, juntaram os alunos e tra-balharam as oficinas. Esses professores trabalharam a produção textual, o ditado e os recortes de gravuras. Para recontar as histórias, trabalharam com cartazes contendo palavras escritas na língua Apinayé e com histórias e desenhos feitos pelos próprios professores. Após esse momento, todos os professores solicitaram aos alunos que recontassem as histórias e fizessem desenhos ilustrando-as.

No dia seguinte, foram com os alunos para uma aula de campo, onde trabalharam os conhecimentos de História, Geografia, Matemática e Ci-ências. Levaram os alunos para as matas, chegando lá mostraram os rios, matas, pássaros, insetos, plantas e a extração do coco babaçu, fruto esse que tem muita importância para a sobrevivência dos Apinayé de Mariazinha. Falaram da importância das matas, dos animais, da preservação dos rios e da reserva. Informaram os alunos sobre a importância do babaçu, afir-mando que dele tudo se aproveita: a casca serve apara fazer carvão vegetal,

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da amêndoa faz-se o óleo para utilizar nas comidas, a palha e o talo são utilizados para a fabricação das casas, a palha também serve para fabricar cofo e esteiras, além disso, o babaçu é comercializado na cidade de Tocanti-nóplois para fabricação de óleo e sabão. Portanto, o babaçu é uma fonte de riqueza e subsistência pra os povos Apinayé. Após esse momento, todos os professores e alunos indígenas retornaram para a escola e foram trabalhar esses conhecimentos em forma de oficinas.

Nesse sentido, acreditamos que, construindo estratégias para a ação docente, com metodologia de ensino, permite-se um verdadeiro pensar e repensar da prática cotidiana dos professores indígenas que enriquece o processo de construção de conhecimento, já que é parte de uma interação de diferentes olhares e que, favorece a reflexão dessa prática, no intuito de melhor preparar docentes e discentes indígenas para a atuação junto a ao mercado de trabalho, tento na aldeia indígena como fora dela. Assim, com-preendemos que a liberdade de expressão que as oficinas pedagógicas pro-porcionaram e contribuíram significativamente para a formação de profis-sionais críticos e abertos a mudanças que ocorrem a todo o momento na sociedade indígena. Percebemos, ainda, que a metodologia adotada atingiu as expectativas dos professores e alunos indígenas, enfatizando a importân-cia dos diversos atores sociais que construíram as matizes de um sistema de educação voltado para os aspectos socioculturais e linguísticos dos Api-nayé. Assim, torna-se fundamental atentarmos para o caráter participativo que envolve profissionais indígenas e comunidade, onde não existe saber mais importante, mas diferentes saberes que possuem igual valor. Nesse sentido, as oficinas pedagógicas foram os espaços que apontaram novas descobertas e caminhos, uma vez que consistiu num processo em cons-trução de todos os atores envolvidos, tornando-se espaço oportuno para a comunicação, para a contextualização, para o estabelecimento de vínculos, de reflexão, de mudanças, de construção coletiva de um saber. A ação do-cente indígena aqui buscou a formação de profissionais com habilidades e competências aliadas ao senso crítico e transformador.

Deste modo, o desenvolvimento da metodologia das oficinas pedagó-gicas configurou-se como uma experiência diferente da formação técnica ou instrumental, realizando trabalhos com o significado de agir em sin-tonia com os discentes, tornando-se um aprendiz com eles. Fazer oficinas significa aventurar-se na busca do conhecimento, respeitando os processos mentais dos sujeitos cognoscentes, aproveitando cada participação com atenção concentrada e posterior intervenção adequada. Portanto, a realiza-

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ção de oficinas favoreceu uma oportunidade de reconstrução de conceitos, posturas e soluções diante da realidade que se apresenta no cotidiano dos professores Apinayé no intuito de melhorar o processo de trabalho na es-cola e, consequentemente, assegurar uma educação de qualidade junto às escolas Apinayé.

Resultados e Discussão

Durante o período de realização das oficinas pedagógicas em cada es-cola, observamos que os discentes não apresentavam nenhuma resistência à metodologia utilizada, demonstrando facilidade em construir coletiva-mente o conhecimento. Essa postura deu lugar a um fazer coletivo praze-roso e de grande relevância para todos os professores e alunos indígenas, pois eles passaram a identificar suas fragilidades de atuação e, a partir daí, começaram a compreender que o importante não são os conhecimentos apenas adquiridos nas escolas, nem os comportamentos corretos, mas o aumento da capacidade do discente como agente da transformação social, para detectar os problemas reais e buscar soluções originais e criativas.

Perceberam que foi possível proporcionar melhor sistematização do conhecimento adquirido nas diversas disciplinas trabalhadas nas oficinas e aulas de campo, uma vez que no desenvolvimento de todas essas ativida-des foram valorizados os conhecimentos e saberes próprios dos indígenas, deixando claro para os professores que apenas lhes faltava estabelecer o elo entre o saber e o fazer pedagógico, possibilitando, assim, o desenvolvimen-to de uma consciência crítico-reflexiva com a finalidade de transformação do sujeito inserido no contexto das políticas linguísticas do povo Apinayé. A partir da realização das oficinas pedagógicas, foi observado por parte dos professores que a estratégia adotada contribuiu significativamente no progresso dos trabalhos realizados nas escolas.

Portanto, através da avaliação docente, constatou-se um melhor de-sempenho das atividades executadas pelos discentes nas aulas de campo. Os professores acompanharam com facilidade o ritmo dos discentes e rela-taram que os mesmos estavam atuando nas oficinas de forma mais tranqui-la, o que facilitou o bom desempenho dos trabalhos e demonstrou maior interesse em implementar ações que foram relevantes para a equipe de pro-fessores. Para os docentes, ficou evidente o quanto as oficinas pedagógicas contribuíram para a formação dos alunos indígenas, tornando as atividades escolares mais consistentes, uma vez que foram fundamentadas para os co-

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nhecimentos previamente discutidos e socializados. Os discentes afirma-ram que essas oficinas foram primordiais e extremamente válidas para a consolidação de novos conhecimentos e para o bom desempenho nos es-tudos e, consequentemente, na aquisição da língua indígena oral e escrita.

Considerações Finais

Através da realização das oficinas pedagógicas e das aulas de campo como estratégia para subsidiar conhecimentos para os discentes indígenas, os professores indígenas tiveram a oportunidade de refletir sobre a práti-ca docente, indo além de conhecimentos teóricos e práticos. Todavia, isso perpassa pelo âmbito do compartilhar conhecimentos, de reconhecer fra-gilidades, de estabelecer um compromisso com a sociedade Apinayé, de desenvolver potencialidades, de enfrentar suas limitações, de saber que não se sabe tudo, mas que juntos, docentes e discentes, podem ir além do que foi aprendido em sala de aula e nas aulas de campo. Identificaram que o desenvolvimento dessa estratégia favoreceu uma postura crítica e pró-ativa dos professores e alunos indígenas, vez que as políticas de educação escolar indígena têm exigido dos professores que atuam nas escolas de suas aldeias uma nova postura, onde o conhecimento técnico-científico esteja aliado aos saberes próprios dos Apinayé.

Constatou-se que, por meio das oficinas pedagógicas, ocorreu um grande avanço na implementação da disciplina de Língua Materna e das demais trabalhadas através do Programa do Observatório de Educação Es-colar Indígena, com a formação dos professores indígenas comprometidos com a reorientação do modelo de educação escolar bilíngue e intercultural, bem como uma proposta de redefinição das práticas pedagógicas com ên-fase na promoção da educação escolar específica, diferenciada e de qualida-de para as escolas indígenas Apinayé.

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15. MONSERRAT. Ruth. Política e planejamento lingüístico nas sociedades indíge-nas do Brasil hoje: o espaço e o futuro das línguas modernas. In: VEIGA, Juracil-da; SALANOVA, Andrés. Questões de educação escolar indígena: da formação do professor ao projeto de escola. Brasília: FUNAI/DEDOC/ALB, 2001.

16. Palmas-TO. Secretaria de Estado da Educação e Cultura do Tocantins. Matriz Curricular, Lei n 9394/96, da Gerência de Educação Indígena. SEDUC. Palmas--TO.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Francisco Edviges Albuquerque, Ana Rosa Salvador Apinayé, Maria Célia Dias de Souza Apinayé

17. _____. Relatório Geral da Coordenação de educação Indígena. SEDUC. 1997. Palmas-TO.

18. ______. Relatório Geral da Gerência de Educação Indígena. SEDUC. 2004. Palmas-TO.

19. ______. Relatório Geral da Gerência de Educação Indígena 2004/2005. SE-DUC. Palmas-TO.

20. ______. Relatório Geral da Gerência de Educação Indígena 2005. SEDUC. Palmas-TO.

21. ______. Relatório Geral da Gerência de Educação Indígena2006. SEDUC. Pal-mas-TO.

22. SILVA, Aracy Lopes da. A educação de adultos e os povos indígenas no Brasil. Em Aberto. Brasília, v. 20, n. 76, p. 89-129. fev. 2003.

23. SUMMER INSTITUTE OF LINGUISTICS. Dados Gerais, Seção I. Museu Na-cional. Rio de Janeiro, 1956.

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Francisco Edviges Albuquerque 1

Introdução

O cenário da educação indígena no Brasil atualmente reflete a ação dos órgãos responsáveis pela elaboração de políticas públicas voltadas para a efe-tivação de um ensino que contemple as conquistas proporcionadas por do-cumentos normativos, como é o caso do Art. 210 da Constituição Brasileira (CRF/1988). Além desse, destacamos o Art. 78 da atual LDB – Lei de Dire-trizes e Bases da educação Nacional 9394/96, que determina que “O Sistema de Ensino da União desenvolva ações integradas de ensino e pesquisa para a oferta de educação escolar bilíngüe e intercultural aos povos indígenas”.

Nesse sentido, este artigo traz o resultado de uma pesquisa realizada com crianças indígenas Apinayé que estão em processo de alfabetização, sendo que o estudo se deu mediante as ações do Projeto de Educação Esco-lar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural do Programa do Obser-vatório de Educação Indígena, CAPES/SECAD/INEP/UFT 2010/2011, cuja proposta foi investigar como se efetiva a educação infantil em duas turmas, uma do primeiro e outra do segundo ano do Ensino Fundamental da Esco-la Estadual Indígena Tekator da aldeia Apinayé Mariazinha, identificando qual o sentido e a função da leitura e da escrita para os alunos alfabeti-zandos, considerando que esta escola trabalha o bilinguismo como prática pedagógica visando à efetivação de uma Educação Bilingue e Intercultural.

Os resultados constatam que, na educação das crianças indígenas Apinayé da escola Tekator da aldeia Mariazinha, os processos de leitura e a escrita levam em consideração os aspectos sociolinguísticos e culturais

1 Professor adjunto da UFT – Universidade Federal do Tocantins e coordenador do Projeto de Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue/Programa do Observatório de Educação Indígena”, CAPES/SECAD/INEP/UFT 2010/2011.

2 O Sentido e a Função da Leiturae da Escrita para as Crianças Apinayé de Mariazinha

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

dos Apinayé. Desta forma, no processo de aquisição da leitura da escrita pelas crianças indígenas, os aspecptos culturais se apresentam como fator primordial no processos de esnino/aprendizagem, visto que estes são pro-duzidos por relações sociais, por formas históricas e culturais que delas se apossam e que definem seus modos de transmissão e de assimilação. Com isso, percebemos que é preciso também discutir as concepções sobre o ca-ráter universal de certos processos cognitivos envolvidos na aquisição da leitura e da escrita pelos indivíduos da sociedade, em geral, e pelas crianças indígenas Apinayé, em particular.

A aldeia

Localizada às margens da TO - 126, que liga Maurilândia a Tocanti-nópolis, nas proximidades do Rio Tocantins, a aldeia Apinayé Mariazinha possui uma população aproximadamente de 257 indígenas, sendo 68 famí-lias formadas por pai e mãe Apinayé. Nessas famílias, todos falam a língua materna nas interações do dia-a-dia. Esta língua continua sendo a mais usada para comunicação em todos os domínios sociais Apinaé e, em geral, é a primeira língua adquirida pelas crianças.

Nesta aldeia há 04(quatro) famílias formadas por pai Apinayé e mãe Krikati. Como os Krikati entendem e falam a língua Apinayé e vice-versa, tanto os pais como as mães usam ambas as línguas na interação com seus pares. Os filhos desses casais adquirem tanto o Apinayé como o Krikati. As outras 14 famílias são constituídas de pais não indígenas e de mães Api-nayé. Há uma família constituída por pai Guajajara e mãe Apinayé. Os fi-lhos dessas famílias adquirem, simultane amente, o Apinayé e o português nas interações com seus pais. Isso, de certa forma, está contribuindo para o enfraquecimento da língua indígena no domínio familiar e, consequente-mente, favorecendo o uso da língua portuguesa neste domínio social, que antes era de exclusividade da língua Apinayé.

Por permitir o casamento de indígenas com não indígenas, e devido à proximidade com as cidades de Tocantinópolis e Maurilândia, esta aldeia vem ao longo dos anos, por contato com a sociedade envolvente, perdendo seus aspectos socioculturais e linguísticos, pois não pratica mais a corrida da tora, da flecha, as festas da batata, do milho, dentre outras. Apenas prati-ca o corte do cabelo, a festa do “paparuto” (bolo de massa de mandioca com carne vermelha) e a nomeação das crianças, que é de responsabilidade das madrinhas (ALBUQUERQUE, 1999).

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Francisco Edviges Albuquerque

Um local muito frequentado pela comunidade é o pátio da aldeia. É neste local que a socialização acontece e as decisões políticas da aldeia são anunciadas, como podemos perceber no enunciado a seguir:

O Pátio da aldeia é muito importante pra nós, porque, é nele que o cacique faz reunião com a comunidade. Todas as notícias são faladas no Pátio. No Pátio é onde, nós, Apianyé fezemos a festa da tora, do milho, da batata. É onde can-tamos e dançamos à noite. Tudo isso acontece no Pátio. (PAULO LARANJA APINAYÉ).

A Escola

A escola Tekator da aldeia Mariazinha atende a 268 alunos, sendo 228 do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental e 40 alunos da 1ª à 3ª série do Ensino Médio. Possui um corpo docente composto por 13(treze) profes-sores, sendo 06 indígenas e 07 não indígenas. Conta ainda com 1(um) co-ordenador de secretaria, 1 (um) coordenador financeiro, 1(um) secretário, 03(três) auxiliares de serviços gerais, 02(duas) merendeiras indígenas. Sua arquitetura antiga possui apenas quatro salas de aulas e um sistema de ven-tilação inadequado. Os professores Apinayé usam a língua materna para se comunicar com os alunos durante as atividades de leitura e escrita em sala de aula. Tanto as atividades de escrita em língua portuguesa quanto as extraclasse relacionadas à cultura indígena são também explicadas para os alunos em Apinayé.

Segundo Albuquerque (1999, p. 57), nesta escola havia pouco mate-rial escrito em língua Apinayé: cartilhas de alfabetização, livros de lendas e bíblias. Estas cartilhas foram elaboradas há mais de trinta anos e não foram produzidas pelos próprios professores indígenas. Foram produzi-das por membros do SIL. Ainda de acordo com Albuquerque (1999, p. 59), o material didático produzido pelo SIL apresenta uma linguagem artificial e fragmentada, visto que esse material não foi produzido pelos próprios indígenas. O material didático, que não é construído na língua da criança indígena, não reflete a verdadeira cultura e língua materna da sociedade Apinayé, pois não considera os aspectos sociolinguísticos desse grupo.

A seguir, analisamos um recorte extraído da lição 16 da cartilha Api-nayé no 1 – PUMẼ KAGÀ PUMU, que ilustra muito bem essa prática pe-dagógica.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Recorte da 12a lição da cartilha no 1

“Wakõ na ja” (este é o quati)“Wakõ ja pumu””(olha o quati)“Na pa wakõ ja pĩ”(matei o quati)“Wakõ nhĩ na ja”(isto é carne de quati)“Wakão nhĩja pumu”(olhe a carne de quati)“Panhõ wakõ nhĩ na”(isto é nossa carne de quati)

A referida artificialidade também é comprovada, a seguir, nos exem-plos retirados da cartilha Apinayé n° 1 – PUMẼ KAGÀ PUMU N° 1.

Recorte da 19a lição da cartilha no 1

“Põpõ na pa kupĩ”(matei a garça)“Na pa kupĩ ka ĩ ka ”(eu matei e você assou a carne)“Na panhĩja anhĩnhu”(O índio viu teu nariz)“Pumu nẽ akunha” (e deu risada)

Porém com a implantação do Projeto de Apoio Pedagógico à Educa-ção Indígena Apinayé, a partir de 2.000, os professores indígenas juntamen-te com a coordenação do Projeto elaboraram materiais de apoio pedagógi-co para serem usados nas salas de aula de língua materna e português, uma vez que o referido material leva em consideração os aspectos socio-histó-ricos e linguísticos dos povos Apinayé, conforme podemos comprovar nos recortes abaixo extraídos dos livros da Alfabetização e Narrativas Apinayé (Albuquerque, 2007) a seguir:

O GaviãoO gavião vive no mato e no cerrado.Ele se alimenta de carne, de alguns animais e de pássaros pequenosEle anda durante o dia e, às vezes, à noite.”(Josué Apinayé)

Os professores Apinayé usam a sua língua de origem para se comuni-car com os alunos durante as atividades de leitura e escrita em sala de aula. Tanto as atividades de escrita em língua portuguesa quanto as atividades extraclasses, com aulas de campo, relacionadas à cultura indígena, são tam-bém explicadas para os alunos em Apinayé.

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Francisco Edviges Albuquerque

Facilidade de entender e falar Apinayé

Os Apinayé de Mariazinha entendem e falam a sua língua indígena, embora a porcentagem de homens que entendem e falam fluentemente Apinayé em todas as faixas etárias seja bem menor que a das mulheres. Os homens dizem entender e “falar um pouco essa língua”. Isto significa que estes falantes estão usando mais o português do que o Apinayé nas suas interlocuções. Já as mulheres desta aldeia, independente do gênero e idade, entendem e falam a língua indígena. Porém, com relação à língua portu-guesa, a situação é um tanto diferente, como veremos a seguir.

Facilidade de entender e falar Português

Todos os Apinayé pesquisados neste estudo têm contato com o por-tuguês. Neste contexto as variáveis de sexo e idade não são muito signifi-cativas, pois, como existem muitos não indígenas casados com indígenas, tanto as mulheres quanto as crianças, na sua maioria, são bilíngues recepti-vos, isto é, entendem, porém falam muito pouco português. Todas elas são unânimes em afirmar que precisam aprender a falar português para se co-municar com os maridos e com os filhos. Isto, portanto, justifica o quadro linguístico que se apresenta em Maraizinha.

A aquisição da língua portuguesa pelos Apinayé se dá através de con-tatos diretos ocasionais, frequentes, ou mais permanentes com falantes da língua, na aldeia ou fora dela. Esses contatos ocorrem de modo diferencia-do entre os membros dessas aldeias. Os homens adultos e os estudantes se relacionam diariamente com habitantes das cidades vizinhas. Já a interação dos demais membros com os moradores dessas cidades é menos frequente. Muitos deles, principalmente as crianças e as mulheres, têm mais contato com os diferentes tipos de falantes da língua portuguesa, tais como pes-quisadores, visitantes e funcionários da FUNAI, do IBAMA, da FUNASA/SEDUC/TOBASA etc.

O contato com a língua portuguesa e a exposição a ela tiveram e ainda têm uma incidência desigual no grupo e nos diferentes segmentos, depen-dendo de fatores diversos, entre os quais se incluem os de ordem histórica: presença de diferentes agências nas aldeias, como a FUNAI, o SIL, CIMI, as Missões Indígenas e aproximidade com o centro urbano de Tocantinópo-lis. Existem, também, as de ordem sociocultural: gênero, idade, posição do indivíduo no grupo; os de ordem econômica: venda e compra de produtos;

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os de ordem política: prefeitos e vereadores visitam as aldeias em época de campanha eleitoral. Os de ordem religiosa: celebração de cultos, de missa e terço em homenagem ao santo padroeiro das aldeias; e os de ordem social: festas dançantes (atividades dos não indígenas).

Em nossa pesquisa, constatamos que há nessa aldeia pessoas não indígenas monolíngues em português. Portanto, as informações coleta-das permitem-nos afirmar que nas interações intergrupo, Apinayé e não--Apinayé, a língua portuguesa é a mais usada. Já nas interações intragrupo, Apinayé-Apinayé, a língua materna é a mais usada, mesmo nos assuntos que envolvem a cultura não indígena, como é o caso das conversações sobre esporte, programas de televisão e até mesmo assuntos referentes à política dos municípios locais, especialmente a de Tocantinópolis e Maurilândia.

Para que o indígena Apinayé quer aprender português?

Historicamente, a educação escolar indígena, de modo geral, sempre teve por objetivo integrar as populações indígenas à sociedade nacional. Desta forma, a função da escola era ensinar os alunos indígenas a falar e a escrever em português. Somente há pouco tempo começou-se, na maioria das escolas, a utilizar as línguas indígenas na alfabetização, ao se perceber as dificuldades de alfabetizar alunos em uma língua que eles não dominavam, o português. Entretant o, logo que os alunos aprendiam a ler e a escrever, a língua indígena era retirada da sala de aula. É claro que, tendo sido essa a situação, a escola contribuiu muito para o enfraquecimento e, consequente-mente, para o desaparecimento de muitas línguas indígenas no Brasil.

Nessa perspectiva, se a escola pode contribuir para o processo de de-saparecimento de uma língua indígena, ela, por outro lado, também pode ser mais um elemento que, significativamente, incentive e favoreça a sua manutenção ou revitalização. Para isto, a língua indígena deverá ter papéis na escola, ou seja, ela deverá ser utilizada, na sala, como a língua de ins-trução oral para produzir conceitos, dar esclarecimentos e explicações. A língua materna será, nesse caso, a língua através da qual os professores e os alunos discutem matemática, história, geografia, meio ambiente, ciências. Esse tipo de procedimento permite que os alunos que têm pouco domínio do português possam adquirir melhor os novos conhecimentos de fora, que são necessários devido ao contato com a sociedade envolvente. Mas, além disso ele traz outras vantagens, isto é, os alunos aumentam sua competên-cia oral em língua indígena pois aprenderão a usá-la também para falar

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Francisco Edviges Albuquerque

sobre novos conhecimentos, em vez de terem que recorrer ao português para isso. Assim, a língua indígena ficará mais forte, uma vez que terá uma função mais importante, alem daquela própria da sala de aula.

Para Albuquerque (1999), a língua materna deverá se tornar, também, a língua de instrução escrita predominante naquelas situações que dizem respeito aos conhecimentos éticos e científicos tradicionais. Da mesma for-ma que acontece com a oralidade, os alunos aumentarão sua competência escrita em língua indígena. Esse tipo de procedimento poderá contribuir também para os usos e funções sociais da escrita nessas línguas.

Neste sentido, uma prática pedagógica voltada para a sistematização do conhecimento sociohistórico e cultural da comunidade será de suma importância. Uma alfabetização em que todos os aspectos da linguagem têm a mesma importância na medida em que o que se deseja é a constru-ção de um sentido para o que se lê e se escreve. Desta forma, a educação é um dos instrumentos para alcançar a autonomia desejada, habilitando os Apinayé a ler, escrever e analisar seus discursos para reagir diante da ação controladora da linguagem da sociedade dominante. Soares (1994) destaca o conflito que a escola vem gerando como resultado de distância cultural e linguística entre os alunos. Para ela, a problemática que se coloca para a escola, em relação à linguagem, é o de definir o que pode ela fazer, diante do conflito linguístico que nela se criou, pela diferença existente entre a linguagem das camadas populares, as quais conquistam, cada vez mais, o direito de escolarização, e a linguagem que é instrumento e objeto dessa escola, que é a linguagem das classes dominantes.

Entretanto, a problemática da alfabetização indígena não será resol-vida com o critério de simples alfabetização. Antes, ela tem que levar em consideração as condições pedagógicas aplicadas na escola indígena, bem como a situação linguística do estudante que está sendo alfabetizado. A escola, nessa perspectiva, deve reconhecer e manter a diversidade socio-cultural e linguística, promovendo uma situação de comunicação entre ex-periências socioculturais, linguísticas e históricas, não considerando uma cultura superior à outra.

O Bilinguismo na aldeia Mariazinha

Os dados coletados e analisados em nossa pesquisa mostram-nos que na comunidade Apinayé de Mariazinha existem diferentes tipos de bilin-guismo, ou seja, os Apinayé não são bilíngues do mesmo modo, e também

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

adotam costumes não indígenas diferenciados. Esses costumes são absor-vidos nas interrelações com a sociedade não indígena, através da interação dos mais velhos com os mais novos dentro da comunidade indígena. Em relação ao bilinguismo, constatamos, em Mariazinha, as seguintes situa-ções: bilinguismo receptivo. O indígena fala a língua materna e entende português, porém não fala esta língua, como é o caso das crianças com faixa etária entre 1(um) e 7(sete) anos e de algumas mulheres. Já os bilín-gues ativos falam as duas línguas, Apinayé e português, de forma adequada, dependendo dos interlocutores, da ocasião, dos tópicos da conversação e dos domínios sociais.

As características apresentadas pelos Apinayé repercutem numa edu-cação que reflita os anseios e as necessidades das comunidades indígenas, que esteja calcada no seu contexto sociocultural e linguístico, no modelo bilíngue-intercultural mantido nas condições atuais, ou seja, a permanên-cia do Apinayé como primeira língua adquirida e do português como se-gunda, pelos graus diferenciados de instrumentalidades e importância que ambas as línguas ocupam nos domínios sociais Apinayé.

Segundo Albuquerque (1999), no que diz respeito à manutenção e revitalização da própria língua indígena, a atitude dos Apinayé será decisi-va. Se mantida sua identidade de grupo, a probabilidade é de que também mantenham sua própria língua. Todavia, há inúmeras outras variáveis que podem atuar sobre sua atitude e levar o grupo a deslocar a língua indígena das funções que ela ora ocupa. Certamente, o tipo de contato com a socie-dade majoritária será fator decisivo e, pelas observações anteriores apon-tadas, esse fator reflete negativamente para a manutenção de sua língua e identidade de grupo.

Além dessas situações, existem aqueles que falam a língua portuguesa e alguns a Krikati e a Guajajara. Neste cenário, existem pessoas que es-crevem tanto em Apinayé quanto em língua portuguesa. São pessoas que foram alfabetizadas depois da implantação da educação escolar bilíngue.

Em nossas investigações, pudemos constatar que os falantes mas-culinos estão contribuindo significativamente para as mudanças dos pa-drões linguísticos nas comunidades Apinayé. A língua portuguesa vem gradativamente ocupando os espaços que outrora eram da língua Api-nayé. Esse processo pode levar ao desaparecimento da língua materna. Isto tem causado preocupação nos Apinayé, pois eles não querem que tal fato ocorra.

Segundo o RCNEI (1998, p. 25),

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Francisco Edviges Albuquerque

As tradições culturais, os conhecimentos acumulados, a educação das gerações mais novas, as crenças, o pensamento e a prática religiosa, as representações simbólicas, a organização política, e a reprodução so-ciocultural das sociedades indígenas são na maioria dos casos, manifes-tados através do uso de mais de uma língua. Mesmo os povos indígenas que são hoje monolíngües em língua portuguesa continuam a usar a língua de seus ancestrais como símbolo poderoso para onde confluem muitos de seus traços identificatórios, constituindo, desse modo, um quadro de bilingüismo simbólico importante.

Para contribuir com os Apinayé na manutenção e revitalização da lín-gua indígena, considerado por todos os membros como língua do grupo, é de vital importância a ação escolar. Para Krashen (1982), uma língua tanto pode ser adquirida num ambiente natural, como numa situação de ensino que tenha como objetivo a aquisição da mesma.

No caso dos Apinayé, a língua a ser adquirida é a própria língua do grupo. Embora os mais jovens não a estejam usando em todos os domínios sociais, eles a consideram como a sua língua. Isto significa que as atividades de incentivo à aquisição dessa língua, bem como o uso dela pela criança, devem ser através de assuntos referentes à sua cultura e nas interações es-pontâneas dessas crianças com os membros de sua comunidade.

Práticas de leitura e escrita entre as crianças Apinayé de Mariazinha

Nos últimos anos temos assistido no cenário brasilleiro à retomada de uma série de questões que voltam à tona através dos estudos realizados na área da alfabetização das crianças das escolas indígenas Com base nessa premissa e considerando as teses da suposta ausência de experiências cul-turais entre as crianças de camadas populares, como uma das principais causas do seu mau desempenho escolar, as políticas educacionais brasilei-ras vêm promovendo uma “verdadeira revolução no campo da alfabetiza-ção” (CICLO BÁSICO, 1990; PCN, 1997).

De acordo com os RCNEI (2005, p. 124), outra função da escola é desenvolver nos alunos indígenas a competência necessária para que eles possam entender e falar sobre os novos conhecimentos introduzidos pelo próprio sistema escolar. Essa competência oral deverá ser desenvolvida ini-cialmetne em língua indígena, se essa for a primeira língua dos alunos, ou caso contrário, em língua portuguesa.

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Se a linguagem oral, em suas várias manisfestões, faz parte do di-a-dia de quase todas as sociedades humanas, o memso não se pode afirmar sobre a linguagem escrita. Segundo os RCNEI, as atividades de leitura e escrita podem ser exervidas apenas pelas pessoas que puderam frequentar a escola e nela encontraram condições favoráveis para perceber as importantes fun-ções sociais das práticas de leitura e escrita.

A Importância da Escola para os Apinayé

É inegável a importância que assumem as escolas no contexto indíge-na, assumindo mesmo um papel primordial no desenvolvimento de traba-lhos junto às comunidades e a seus alunos. Um dos professores entrevista-dos na aleia São José diz o seguinte:

Geralmente esse papel está relacionado ao resgate da cultura, dos rituais, das danças e das músicas. Sendo assim, a escola oferece grandes vanta-gens para o futuro das crianças, como saber quais seus direitos, custumes e culturas. A comunidade também participa dos eventos que acontecem nas escolas. A escola, aqui na aldeia São José, também tem o seu papel de resgatar as pinturas corporais. Isso demonstra que na atualidade estão sendo resgatadas às pinturas que estavam acabando. Graças às escolas instaladas na aldeia, conseguimos levantar o peso de uma pedra que já estava afundando. Através da escola são desenvolvidos vários trabalhos que permanecem na aldeia São José. Precisamos da escola, pois ela é importante para o nosso futuro. (PROF. GILBERTO DIAS APINAJÉ).

O uso da língua escrita em português tem para os Apinayé de Maria-zinha funções muito claras, tais como defesa e possibilidades de exercerem sua cidadania e acesso a conhecimentos das outas sociedades. Segundo os RECEI (2005, p. 126), não basta a escola ter como objetivo simplesmente alfabetizar seus alunos; ela tem o dever de criar condições para que eles aprendam a escrever textos adequados às suas intenções e aos contextos em que serão lidos e utilizados.

Relação entre domínio da escrita e desenvolvimento cognitivo

A assimilação da escrita pelas cianças indígenas demanda níveis de educação própria, específia e diferenciada, tese sobre a qual se apoiam as

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Francisco Edviges Albuquerque

políticas de educação escolar indígena no Brasil. Portanto, segundo os RC-NEI (2005), como na vida real nunca se lê ou se escreve à toa, sem um motivo para tanto, e também nunca se lê ou se escreve palavras ou sen-tenças soltas, fora de contextos específicos, os alunos das escolas indígenas poderão mais facilmetne perceber que a linguagem escrita pode ser mais útil e pode se tornar importante para eles, se as atividades desenvolvidas na escola girarem em torno da leitura e escrita de textos. Nesse caso, o texto, independente de sua extensão, é uma unidade linguística, oral ou escrita, produzida em determinado contexto com um objetivo comunicativo.

Para Cagliari (1997), a linguagem é uma das formas mais sofisticadas de abstração, construída sobre conceitualizações e generalizações presentes em todos os falantes de uma língua, sejam eles alfabetizados ou não. Des-se modo, a criança que sabe falar e conversar dá provas de que já atingiu o estágio lógico-formal da ontogênese, pois conversar é uma das formas mais sofisticadas de organização da experiência e da manifestação da in-teligência superior dos humanos. A noção de tempo, espaço, linearidade, causalidade são ingredientes necessários ao uso da linguagem e estão nela enraizados. Vejamos o seguinte texto escrito por um professor Apinayé

A Chuva

Quando chove todas as pessoas da aldeia ficam alegres. Durante a chu-va, todos os índios ficam dentro de casa, discutindo sobre os trabalhos. Enquanto está chovendo, algumas crianças brincam debaixo da chuva à vontade . Quando a chuva diminiu, alguns homens vão para a caçada. Os mais idosos falam que a época de chuva tem muitas caças, porque as pegadas não se apagam. Eles vão rastejando até encontrar a caça e matar, portanto a chuva é importante para qualquer pessoa, princiupalmente para os povos Apinayé (JÚLIO KAMÊR – IN ALBUQUERQUE, 2008).

Segundo Cagliari (1997), a escrita seria uma das formas de represen-tação da linguagem verbal, isto é, ela traz a linguagem oral nela embutida, conforme se pode observart no texto acima. Outros estudos argumentam pela falta de evidências de que a forma escrita afete a mente. Muitas das mudanças linguísticas, cognitivas e sociais, atribuídas à aquisição da escri-ta, também foram encontradas nas culturas de tradição oral: como a exis-tência de um sistema de recitação, memorização e acumulação de textos; a criação de instituições para usos dos textos; a aquisição de uma metalin-

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guagem para a interpretação e explicação dos textos; e instituições e escolas para a introdução dessas práticas orais como na tradição védica da Índia e entre os narradores da África. (PATTANAYAK, 1995, P.118).

Para o antropólogo inglês Jack Goody (1987), o pensamento abstrato, racional e lógico é inerente à capacidade humana de pensar, mas as formas e os usos que assumem são o produto da cultura. Não é a aprendizagem das habilidades de leitura e escrita que asseguram usos superiores da escrita, mas a produção de uma cultura escrita, da imprensa, a potencialização de determinados usos quando ela se associa às formas de pensamento cientí-fico, aos quais se atribui papel decisivo nas mudanças sociais e cognitivas da modernidade. Mesmo porque, como esclarece esse autor, não há vín-culo causal entre escrita e pensamento. E o desenvolvimento das formas de pensamento científico, aos quais se associam certos usos da escrita que levariam as formas cognitivas mais avançadas, não penetram na mente dos indivíduos nem são necessárias à aquisição das habilidades de leitura e es-crita dos primeiros anos escolares.

A leitura e a escrita são produtos da cultura, que faz dela certos usos, que define seus modos de ensino e seus processos de esnino/aprendiza-gem. Elas são, portanto, produzidas por relações sociais, por formas histó-ricas e culturais que delas se apossam e definem seus modos de transmis-são e assimilação. Desse modo, é preciso também discutir as concepções sobre o caráter universal de certos processos cognitivos envolvidos na as-similação da leitura e da escrita pelos indivíduos da sociedade. E atribuir valor negativo àqueles que não se relacionam com os textos escritos da mesma maneira.

É preciso considerar também que as formas de ensino da língua escri-ta, que caracterizam o trabalho escolar da língua escrita (a cópia, o ditado, os exercícios, as formas de compreensão do texto etc.), são uma construção teórica sobre a língua, produzida pelos gramáticos, pelas relações de poder e interesses políticos. E o aprendizado da leitura e da escrita na escola é apenas uma das formas de introdução das crianças ao mundo da cultura escrita. As investigações sociais e históricas têm vindo questionar a exis-tência de certas constantes na apropriação da leitura e da escrita, revelando a grande variedade histórica e social das práticas que implicam a leitura e a escrita, mesmo dentre aqueles que não dominam as técnicas de leitura e escrita (Chartier, 1987). Desse modo, não se podem generalizar as formas de relação com a escrita das crianças que vivem em diferentes contextos sociais, antes da sua entrada na escola.

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A importância da leitura na prática cotidiana Apinayé

O ato de ler proporciona a descoberta do mundo da leitura, um mun-do totalmente novo e fascinante. Entretanto, a sua apresentação à criança deve ser feita de forma atrativa, estabelecendo uma visão prazerosa sobre a mesma, de modo que torne um hábito contínuo. A leitura desenvolve a capacidade intelectual do indivíduo devendo fazer parte de seu cotidiano e desenvolvendo a criatividade e a sua relação com o meio externo.

A criança que faz parte do universo da leitura é ativa e está sempre pronta a desenvolver novas habilidades, ao contrário daquelas que não pos-suem contato com esse universo, pois esta se prende dentro de si mesma com “medo” de tudo que a cerca. “A leitura, como o andar, só pode ser denominada depois de um longo processo de crescimento e aprendizado.” (BACHA, 1975, P.39).

O ser humano, sem que perceba, está rodeado pelo mundo da lei-tura. A criança, desde cedo, faz a leitura do mundo que a rodeia, sem ao menos conhecer palavras, frases ou expressões, pois é próprio do ser hu-mano desejar conhecer, decifrar a curiosidade, de modo a apreender novos conhecimentos. Assim, o processo de leitura e a escrita iniciam-se antes da escolarização. A criança adquire no âmbito familiar e em seu convívio no meio social o interesse pelo ato de ler e de escrever. Para tanto, elas são inseridas no meio escolar, na verdade sem ao menos saber o porquê de ter que frequentá-lo, ou seja, para elas é uma relação obrigatória, cuja escolha é feita pelos adultos que os mandam passar grande parte de seu dia em um ambiente até então desconhecido, onde tudo é planejado e organizado pelos adultos.

Quando se inicia a leitura, todas as instruções e referências são minis-tradas pelo professor e ao aluno cabe se adaptar cumprindo as exigências e os processos de trabalho que lhe são impostos. Isto causa desmotivação, pois os discentes não possuem opções para construir uma leitura criativa que tende a inseri-los no fantástico mundo da leitura, e consequentemente no mundo da escrita. É lendo que nos tornamos leitores e não aprendendo primeiro para poder ler depois: não é legítimo instaurar uma defasagem nem no tempo, nem na natureza da atividade entre “aprender a ler” e “ler”.

Não se ensina a ler só com a nossa ajuda. A ajuda vem do confronto com as proporções dos colegas com quem se está trabalhando. Porém é ela quem desempenha a parte inicial de seu aprendizado (Jolibert, 1994, p.14). Entretanto, os primeiros contatos da criança com a leitura são de

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fundamental importância para suas percepções futuras, pois interferem na formação do ser humano crítico, capaz de encontrar as possíveis resoluções para os problemas sofridos pela sociedade a que se pertence.

Segundo Freire (1982), uma vez que a leitura é apresentada à crian-ça, ela deve ser minuciosamente decifrada, trabalhada, pois na maioria das vezes as crianças têm um contato imediato com a palavra, mas a compre-ensão da mesma não existiu. Para tanto se faz necessário apresentar o que foi descrito por tal palavra, de forma que esse objeto proporcione sentido a ela, pois dessa maneira a busca e o gosto pelo mundo das palavras, isto é, da leitura e da escrita se intensifica. Logo, a leitura ganha vida e a criança adquire o hábito de sua prática. Portanto, o contato com a realidade é fiel-mente de extrema relevância para dar significado à importância do ato de ler, já que este se faz necessário no cotidiano de cada indivíduo, pois através dele adquirem-se meios de combater as imposições decretadas pela classe dominante, onde os dominados se encontram atados perante tanta bruta-lidade intelectual, pois para a mesma é conveniente que assim continuem. Contudo, a prática cotidiana da leitura significativa é uma das armas que o cidadão possui para lutar contra tantas injustiças por ele sofridas. Enfim, eis a importância do ato de ler, a efetiva participação social.

Produção do Material didático em Mariazainha

Na escola Apinayé de Mariazinha, alguns recursos são utilizados, com o objetivo de favorecer a criação coletiva por parte dos professores indí-genas, dos agentes de saúde e da comunidade para a elaboração do mate-rial escolar de suas próprias autorias. Integrados ao Projeto de Apoio Pe-dagógico à Educação Indígena Apinayé, os professores indígenas, agentes de saúde, indígenas mais velhos e os cantadores vêm organizando ofici-nas de produção de materiais didáticos tais como Livros de Alfabetização, Matemática e Ciências, Geografia e História Apinayé; livros de Narrativas e Músicas Apinayé; Dicionário, Gramática Pedagógica, livro de aspectos culturais Apinayé; livros de receitas da medicina tradicional. Desta forma, está sendo produzido um material didático para ser utilizado na escola de Mariazinha, apresentando uma maior reflexão sobre os aspectos socio-his-tóricos e culturais, meio ambiente, sobre a fauna e flora da reserva desses povos; além desses, há também o material constituído das narrativas histó-ricas voltadas para os mitos e músicas. Em relação ao aspecto musical, vale destacar a realização de três festivais de músicas Apinayé, que contaram

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com a participação de cantadores velhos, jovens e adultos de todas as 24 aldeias.

Para o RCNEI (1998), essas práticas se expandem para além do espaço da escola e da palavra escrita, dando lugar a outras linguagens, como por exemplo, os desenhos e dramatização:

A nova proposta de escola, cujo objetivo é fortalecer a luta pela auto-determinação dos povos indígenas e de outros povos, dentro dos prin-cípios da pluralidade cultural, muda essa lógica de avaliação. Ela deixa de ser um instrumento de negação e exclusão para ser um instrumento positivo de apoio, incentivo e afirmação dos novos projetos educativos das diversas sociedades. Desta forma, busca-se melhor garantir os ob-jetivos da escola naquele lugar, para aquelas pessoas, reintegrando as ações do ensino às de aprendizagem, evitando suas descontinuidades e rupturas (RCNEI, 1998, P. 70).

A seguir, apresentaremos alguns textos escritos pelos professores indí-genas Apinayé para mostrar a forma como os indígenas adquirem a lingua-gem escrita, a partir do sentido, na inter-relação com os aspectos formais estruturais e funcionais, segundo os aspectos sociolingíticos Apinayé. Os textos foram extraídos dos livros de Matemática e Ciências, História e Geo-grafia (ALBUQUERQUE, 2007b, p. 41), e do livro de Medicina Tradicional (ALBUQUERQUE, 2007c).

Texto A: Tarefa dos HomensAs tarefas dos homens Apinayé são a construção das casas, trabalhar na roça, cortar lenha, caçar e pescar. Essas são tarefas dos homens na aldeia. As tarefas das mulheres Apinayé são cuidar das casas, fazer co-mida, fazer cofo, esteira, lavar roupa, costurar, varrer a casa, cuidar dos meninos, pegar lenha, quebrar coco de babaçu, para tirar o azeite e fazer artesanato. Essas são tarefas dos homens e das mulheres Apinayé realizadas nas aldeias dia-a dia. Essas duas tarefas têm a mesma origem para os povos Apinayé. (Profª Rosana Dias Apinayé.

Texto B: O Funeral ApinayéQuando os Apinayé morrem, os parentes pagam a madrinha para levar os enfeites para ele. Depois que termina o funeral daquela pessoa, os parentes dele combinam para realizar a festa da Tora Grande. Depois

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marcam o mês e o dia para realizarem a festa para aquelas pessoas que morreram. Este ritual vem resgatando a cultura Apinayé. Por isso, é sempre assim nas aldeias quando alguém morre.(Profª Eloíza Dias Api-nayé).

Texto C: Colheita de frutasEm junho começa o tempo das frutas que são pequi, bacaba, buriti e manga. Muitas frutas são colhidas para vender, como manga, buriti, que são colhidas em todo o mês. As frutas também são colhidas para vender. Todas essas frutas têm vitamina. O caju só começa em setem-bro. Em abril é a comemoração do dia do índio. Em janeiro é tempo de colher bacuri, que serve para remédio e muitas outras coisas. Existem outras frutas que têm na nossa reserva indígena. A importância do uso dessas frutas é que faz parte de nossa cultura. Em janeiro é a colheita do arroz e mandioca, março é a colheita do feijão. (Prof. Manoel Corredor Apinayé).

Texto D: Calendário de Plantio de CereaisNós plantamos na nossa roça de toco, porque nós dependemos da roça. E dela tiramos o nosso sustento, para nossa família. Nós dependemos da nossa mata, da terra e da natureza, que nós tiramos os recursos natu-rais. Como plantar, fazer limpeza no local, onde vamos plantar. Depois que o local estiver limpo, plantamos as sementes, mandioca, fava, feijão e batata. Tudo isto é planatdo em nossa roça. (Prof. Carlos Tep-Krut Apinayé).

A elaboração de textos em língua portuguesa contribui também para que a sociedade não indígena conheça melhor as sociedades indígenas e, assim, enriqueça-se culturalmente. Os textos produzidos em língua por-tuguesa, na escola de Mariazinha têm sido uma forma de divulgação dos conhecimentos tradicionais e de afirmação para a sociedade Apinayé. Esses materiais fornecem dados importantes sobre as diferenças culturais indíge-nas e suas tradições permitindo que, através deles, a diversidade cultural no Tocantins torne-se mais evidente e possa, assim, ser mais respeitada.

Tais textos foram explorados através de gravuras, onde os professores solicitaram aos alunos que desenhassem sobre o que leram e, em seguida, escreveram sobre o que desenharam. Alunos indígenas iniciantes podem aprender a sequenciar fatos, localizar eventos e organizar ideias. Desta for-

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ma, uma discussão oral, seja em língua Apinayé, seja em língua portuguesa, deve sempre preceder o trabalho com leitura e produção de texto, Assim, os alunos indígenas deverão, na escola, entrar em contato com a maior diver-sidade de textos possíveis em ambas as línguas, para que possam aprender, tirando deles o melhor proveito para sua necessidade e interesse.

Exercícios desse tipo, além de despertar a vontade de aprender a ler e escrever, estimulam o aluno indígena a observar melhor, a pensar, a tirar conclusões e a verificar se tais conclusões estavam corretas. Esses elementos são muito importantes para que, mais tarde, o aluno seja capaz de compre-ender textos mais complexos.

Como se pode constatar, as crianças Apinayé de Mariazinha estão se alfabetizando em consequência de outros recursos didáticos usados pelos professores Apinayé. Os professores indígenas organizam suas aulas com uma variedade de materiais específicos, ligados à reflexão sobre os aspectos culturais, históricos e linguísticos, o meio ambiente, as espécies da fauna e da flora da região, bem como às historias (relatos da história de seu povo), cantigas, danças, os mitos e outras partes de sua tradição oral.

Entretanto, os livros didáticos, (Português, Geografia, História e Ciên-cias), adotados na escola de Mariazinha, após as séries iniciais (pré-leitura e alfabetização), estão totalmente afastados da realidade sócio-histórica, cultural e linguística das crianças Apinayé. Como resultado, a maioria das crianças que ultrapassa os estágios iniciais de aprendizagem, ao se depa-rarem com esse material, fica completamente desestimulada e abandona a escola, ocasionando a evasão escolar.

Assim, o sucesso ou fracasso da criança, seja na escola, seja na aqui-sição de uma segunda língua, não está associada à origem social, mas ao contexto sociointeracional no qual se processa a aquisição. O processo de aquisição, para Braggio (1992a, p. 62-63) pressupõe a aceitação das dife-renças socioculturais e linguísticas, tanto por parte do professor quanto do aluno na construção do conhecimento a partir das experiências anteriores, da interação entre professor e aluno, da funcionalidade da língua e da rela-ção do aluno e o meio social. Acreditamos que essas dificuldades somadas trazem para o aluno sentimentos de incapacidade, levando-o a desistir da escola, conforme veremos a seguir.

Pelo que pudemos constatar durante nossa pesquisa, o número de alu-nos matriculados do 1º ao 4º ano do Ensino Fundamental é bem maior do que nas séries seguintes. Isto se justifica porque, nas séries iniciais, o ensino é ministrado em língua materna. Após esse período, o ensino passa a ser

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ministrado em língua portuguesa e isso, de certa forma, tem contribuído para a evasão escolar. O ideal é que a escola use a língua indígena como meio de instrução por um período mínimo de quatro anos e que seja im-plementado o uso funcional da linguagem escrita na aldeia, pois sem que isso aconteça, corre-se o risco de limitar a língua indígena escrita apenas à sala de aula. Ou seja, é necessário que a língua indígena tenha significado e função social na sua forma escrita para a comunidade de Mariazinha.

Como se trata de sociedade indígena, que não tem tradição de escrita, ou que tem uma tradição de escrita bem recente, perceber “por que” e “para que” a leitura e a escrita existem, é algo que acontecerá mais lentamente. Algo que acontecerá, especialmente, se essa escrita for em língua Apinayé, à proporção que as funções sociais importantes para a leitura e escrita forem sendo criadas. Como na vida real nunca se leem ou se escrevem palavras ou sentenças descontextualizadas, isto é, fora de contextos específicos da escola ou da aldeia, os alunos da escola de Mariazinha poderão perceber mais facilmente que a língua escrita pode ser útil e pode se tornar impor-tante para eles, se as atividades desenvolvidas nas escolas girarem em torno da leitura e escrita de textos. Segundo o RCNEI (1998, p. 34-135), indepen-dentemente de sua extensão, o texto deve ser entendido como:

[...] uma unidade lingüística, oral ou escrita produzida em determi-nado contexto com um objetivo comunicativo. Para que a escrita faça sentido para os alunos, é preciso, pois, que eles se envolvam em ativida-des em que a linguagem escrita apareça contextualizada e sirva para co-municar alguma coisa, como: apresentar-se e apresentar outra pessoa, cumprimentar e despedir-se, dar, pedir e entender informações pes-soais, convidar, aceitar ou recusar um convite, expressar verbalmente, sentimentos e sensações de alegrias, tristeza, dor, raiva etc.

Atualmente, na escola de Mariazinha, o material didático para alfabe-tização é produzido pelos próprios indígenas e apresenta a língua de forma não fragmentada e contextualizada, de forma que as crianças se apropriem do aspecto formal e convencional, bem como de estruturação de forma gra-dual e inteligente. Os textos partem da realidade de cada sociedade, permi-tindo o desenvolvimento pleno de personagens, temas, tramas, conflitos, apresentando as estruturas textuais subjacentes. Assim, a linguagem é vis-ta como constitutiva de identidade do sujeito, do seu pensamento, da sua consciência, onde, segundo Bakhtin (1995, p. 16), “a consciência só adquire

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forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais, e só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico).”

Apresentaremos, a seguir, um texto escrito por uma professora indí-gena da escola da aldeia Mariazinha, procurando mostrar a forma como os alunos indígenas adquirem a linguagem escrita, a partir do sentido, na inter-relação com os aspectos formais, estruturais e convencionais, confor-me os textos abaixo:

Texto E: O que a história Apinayé ensinaA história passa o conhecimento para o povo Apinajé.Os mais velhos contam as histórias para as criancas e para os adolescentes. Na escola, o professor conta história do livro para os alunos. Assim as crianças não vão se esquecer das histórias que eles aprendem. Eles vão contar essas histórias para seus filhos, passando de geração para geração.(Prof. Silivam Oliveira Apinayé)

Ãmnepêm na hte Tyjre mẽ pa mã Ujarẽnh o paNa hte mẽ kagà jakrexà kamã kagà jakre ne hte mẽ kãm kagà kamã mẽ kãm ujarẽnh o pa. Hãmri nhũm mẽhprĩrejaja kuma nẽ akryk mar o kri. (PROF. SILIVAM OLIVEIRA APINAYÉ)

Na prática pedagógica da escola de Mariazinha, o material didático está em permanente construção, respeitando os aspectos da sistematização do co-nhecimento da língua indígena. Os textos produzidos em língua portuguesa, na escola de Mariaiznha, têm sido uma forma privilegiada de divulgação dos conhecimentos tradicionais Apinayé e de afirmação para esse povo. Esses materiais fornecem dados importantes sobre as diferenças culturais Apinayé e suas tradições, permitindo que, através deles, a diversidade cultural e lin-guísitica no Tocanitns torne-se mais evidente e possa ser mais respeitada.

De certa forma, esses aspectos não são levados em consideração nas cartilhas do SIL, visto que apresentam uma linguagem artificial e fragmen-tada, pois esse material não é produzido pelos próprios indígenas. Todo esse material didático foi construído na língua criança indígena, porém de forma artificial e não reflete a verdadeira língua e cultura Apinayé. Confor-me podemos observar no recorte abaixo, extraído da lição 30 da cartilha Apinayé n.º 1 – PUMẼ KAGÀ PUMU, ele ilustra muito bem os aspectos dessa prática pedagógica.

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Wakõ ma na pa umĩ. (assei o fígado do quati.)Akra na wakõ ja pĩ. (seu filho matou o quati.)Na kupẽ pa ma kapa nẽ umĩ. (matou e eu tirei o fígado e assei.)Mĩ anhõ wakõ ma. (leve o seu fígado de quati.)Na pa kuka. (tudo bem. Vou assar.)Na panhĩ kra akra kamĩ. (o filho do índio jogou areia na sua filha.)Na kamĩ nhűm akunha. (ele jogou areia nela e ela deu risada.)Pu mõ nẽ anhõ krĩ pumu. (vou ver sua aldeia.)Pu mõ nẽ anhu. (vamos esquentar-nos.)

Enfim, são aspectos de uma prática pedagógica que não toma como ponto de referência o conhecimento anterior do aluno: da linguagem oral e escrita (nem em forma alfabética ou de grafismo), de mundo etc. Logo, não há sistematização do conhecimento sociocultural e histórico do aluno. O professor não precisa ter formação, já que o seu papel limita-se ao repas-sador do material didático previamente elaborado.

A referida artificialidade também é comprovada a seguir, nos exem-plos retirados da cartilha Apinayé nº 1 – PUMẼ KAGÀ PUMU No 1.

Recorte da Lição 2 da Cartilha No 1Põpõ na ja - esta é a garçaPõ na ja - isto é capimpĩ na ja - este é um pau

Recortte da lição 3 da Cartilha No 1Põpõ ja pumu - olhe a garçaPõpõ nhĩ na ja - esta é a carne de garçaPõpõ nhĩ na pumu - olhe a carne de garça

Além dessa prática pedagógica, pudemos constatar que algumas esco-las indígenas Apinayé não têm respeitado a diversidade entre os alunos, tais como gênero, idade, conhecimento escolar, de experiência e de inserção no mundo social, cultural e do trabalho. O regime seriado, que agrupa os alunos pelo conteúdo da série, tem sua aprendizagem limitada ao tempo do calendário do ano letivo de fevereiro a dezembro, que também acaba por negar essa diversidade. Nessa prática pedagógica, uma criança de oito anos ou um jovem de dezesseis que não sabem ler estão todos matriculados na mesma série, iniciando seu processo de aprendizagem, ou seja, homogenei-

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zando a lógica seriada e anulando a rica diversidade linguística presente em qualquer sala de aula.

Reflexões Finais

Neste trabalho apresentamos os resultados de uma pesquisa realizada com a educação das crianças indígenas Apinayé que estão em processo de alfabetização e que se efetivou a partir de ações desenvolvidas pelo Projeto de Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural do Programa do Observatório de Educação Indígena, CAPES/UFT 2010/2011.

A investigação se realizou nas turmas do primeiro e segundo anos do Ensino Fundamental da Escola Estadual Indígena Tekator da aldeia Api-nayé Mariazinha e teve como objetivo estudar qual o sentido e qual a fun-ção da leitura e da escrita para os alunos alfabetizandos.

Os resultados indicam que a leitura e a escrita na educação das crian-ças Apinayé são resultado de uma prática pedagógica bilingue que reve-lam os aspectos culturais de seu povo. Isso porque a interculturalidade se manifesta nas relações pedagógicas, desde que são utilizados materiais de apoio pedagógico produzidos pelos próprios indígenas, contextualizados de acordo com a realidade sócio-histórica e cultural em que estão inseridas as crianças Apinayé, objeto deste estudo.

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29. PELOZO, Rita de Cássia Borguetti Docente da FAHU/ACEG E-Mail: [email protected].

30. REVISTA CIENTÍFICA ELETÔNICA DE PEDAGOGIA – ISSN: 1678-300x. www.revista.inf.br – www.editorafaef.com.br – www.faef.br. Ano V – Núme-ro 09 – Janeiro de 2007 – Periódico Semestral.

31. SOARES, M. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 1984.32. VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1998.

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Francisco Edviges Albuquerque 1

Introdução

A educação escolar nas comunidades indígenas brasileiras teve seu início em 1956, quando o Summer Institute of linguistics (SIL) implantou o programa de estudo aqui no Brasil, em convênio como o Museu nacio-nal (1959), posteriormente com a Universidade de Brasília (1963) e com a FUNAI (1967). Segundo Leitão (1997, p. 59), esse Instituto desde então realiza trabalhos de análise e comparação das línguas indígenas brasileiras. Os estudos do SIL objetivavam criar para as línguas indígenas um sistema de escrita e traduzir para elas materiais escritos de “educação moral e cívica e de caráter religioso”. Pretendia ainda, desenvolver “programas de edu-cação e assistência social”, a fim de proporcionar aos indígenas melhores condições de vida.

De acordo com Cunha (1990, p. 87), a partir da década de 1970, o governo brasileiro, preocupado em estabelecer uma prática escolar indíge-na dentro das diretrizes das instituições internacionais, buscando melhorar sua imagem mediante a opinião pública mundial, incluiu a prática escolar indígena e o uso das línguas maternas no seu projeto de integração. A partir desta década, então, a FUNAI adota oficialmente a metodologia do ensino bilíngue, além de iniciar uma reavaliação dos programas de educação esco-lar indígena anteriormente existentes.

Leitão (1997, p. 59) afirma que, até aquele momento, a educação esco-lar indígena brasileira baseava-se nas tentativas de alfabetização das crian-ças indígenas na língua portuguesa.

1 Professor adjunto da UFT – Universidade Federal do Tocantins e Coordenador do Projeto A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural/ Programa do Observatório de Educação Indígena, CAPES/SECAD/INEP do Edital nº 001/2009.

3 A Aquisição da Escrita pelas Crianças Apinayé de São José

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Cunha (1990, p. 95) informa que os técnicos do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), na década de 1970, chegaram a discutir a questão de escola indígena, no que se refere à sua necessidade de adequação às particulari-dades de cada grupo. Segundo o autor, a inviabilidade da implantação do ensino bilíngue nas escolas indígenas era justificada pelos técnicos do SPI, com base na dificuldade de oferecimento de um tratamento linguístico di-ferenciado a todos os grupos indígenas brasileiros, visto que seria necessá-rio um grande número de especialistas que pudessem elaborar gramáticas nas línguas indígenas, bem como de professores preparados para trabalha-rem com material didático bilíngue.

A mencionada dificuldade para aplicação de uma política escolar indígena que atendesse às prerrogativas de uma educação que realmente contemplasse todos os povos indígenas de nosso país levaram a FUNAI a firmar convênio com o SIL, visto que esta entidade dispunha de pes-soal capacitado para realizar trabalhos linguísticos e para formar pro-fessores monitores, para atuarem nas áreas indígenas, de acordo com os desejos e necessidades apresentadas pelas autoridades de cada país onde viessem a atuar.

Surge daí a figura do monitor bilíngue, alfabetizado em português e na língua materna e preparado pelos linguistas do SIL, para atuar nas séries iniciais nas quais ensinavam leitura e escrita na língua indígena, daí surge também o “escritor bilíngue” responsável pela produção de textos em lín-gua materna.

A educação escolar indígena entre os Apinayé foi introduzida na déca-da de 1960, nas aldeias de São José e Mariazinha, por Patrícia Ham, mem-bro do SIL, no então Estado de Goiás. Naquela época, as políticas educacio-nais, voltadas para os Apinayé, não eram diferentes daquelas oferecidas aos demais grupos indígenas, que eram compatíveis às práticas pedagógicas desenvolvidas pelas escolas das comunidades rurais brasileiras.

Após alguns anos da implantação da educação indígena nas escolas das comunidades Apinayé, segundo o relatórios da FUNAI, os primeiros materiais escritos nessa língua foram elaborados pelo SIL na década de 70. De acordo com o referido relatório, à proporção que os estudos avançavam, novas cartilhas e novas versões das cartilhas, já existentes, eram elaboradas. Esta data marca a primeira edição da “Cartilha de História Apinayé”. Além deste volume, foram publicados outros cinco: Livro de Lendas 1, Livro de Lendas 2, Leitura Suplementar das Cartilhas e Introdução à Leitura e Li-vro de Caligrafia. Após essas publicações, vieram outras cinco cartilhas de

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

alfabetização (PUMẼ KAGÁ PUMU), Livro de Canções Novas na Língua Apinayé (livro de cunho religioso) e Aspectos da Língua Apinayé.

Muitos monitores Apinayé foram alfabetizados pelos linguistas do SIL, para produzirem novos materiais escritos, que foram publicados pos-teriormente. Esses livros foram utilizados nas escolas Apinayé pelos profes-sores da FUNAI e pelos missionários que atuaram como professores nessas escolas até o ano de 2001, continuando a ser usados por muitos professores, especialmente, por aqueles ligados às religiões evangélicas.

Segundo Albuquerque (1999), a situação escolar Apinayé, ao longo dos anos de contato com a sociedade majoritária, vinha acontecendo de modo contrário aos anseios e interesses da comunidade. Esses indígenas têm vivido um processo de perda étnica, com seus valores culturais sub-jugados pela sociedade majoritária. Fatos como esses são apontados por Braggio (1989, p. 155), apoiada em Coelho dos Santos (1975, p. 43), quando aponta problemas com a educação escolar indígena (com algumas exce-ções) até por volta do fim dos anos 80:

Um dos mais contundentes problemas com relação à educação indígena é o de que o processo educacional utilizado nas comunidades indígenas é um dos principais vínculos de dominação de sociedade majoritária, já que está sujeita a um sistema educacional concebido e inspirado por aquela sociedade, portanto, carregado de seus valores ideológicos.

Desta forma, a escola ao invés de promover a autonomia desejada, vinha gerando conflito, fazendo com que muitas crianças desistissem da escola. Isto contribuía de modo significativo para que algumas séries dei-xassem de existir.

Albuquerque (1999) afirma que no ano de 1999 apenas a aldeia São José possuía a 4ª série. No seu total, esses povos eram atendidos por 7 esco-las. A população atendida era de 350 alunos. Havia um total de 21 profes-sores, sendo 12 índios e 9 não-índios.

No entanto, com a implementação de uma política pedagógica ado-tada pelo Estado do Tocantins, com o princípio básico da conquista da au-tonomia socioeconômica e cultural dos povos indígenas, e com a implan-tação do Projeto de Apoio Pedagógico à Educação Indígena Apinayé, este quadro tem mudado muito nos últimos anos, uma vez que o número de escolas tem aumentado e o número de evasão e reprovação vem diminuin-do significativamente.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Atualmente, todos os estudantes Apinayé têm o privilégio de es-tudar em escolas de suas próprias aldeias, uma vez que possuem duas escolas com Ensino Fundamental e Médio funcionando nas aldeias de São José e de Mariazinha. Das vinte e quatro aldeias Apinayé, treze pos-suem escolas bilíngues, embora ainda não estejam funcionando regu-larmente. As aldeias São José e Mariazinha são as que mais possuem material escrito em Apinayé e são as que possuem educação bilíngue há mais tempo.

A partir de 2001, com a implantação das ações do Projeto de Apoio Pedagógico e Educação Indígena Apinayé, os próprios professores Api-nayé passaram a elaborar o material didático em sua língua e em portu-guês para os anos iniciais do ensino fundamental. Esta realidade é mos-trada através das informações gerais sobre as escolas Apinayé, tais como o nome das aldeias, o número de escolas de cada aldeia, o município a que elas pertencem, o número de professores índios e não índios e nú-mero de alunos matriculados nas escolas das aldeias Apinayé, por série e gênero.

O Projeto de Apoio Pedagógico à Educação Apinayé vem promoven-do nas escolas Apinayé, no sentido de garantir aos professores, aos próprios alunos e membros da comunidade, ações que envolvem os conhecimentos socio-históricos e culturais e linguísticos dessas comunidades. Em tais oca-siões, os Apinayé discutem temas referentes à língua, à cultura e à história do seu povo. Isto acontece, especialmente, durante as atividades de elabo-ração do material didático a ser utilizado na escola como, por exemplo, na elaboração dos livros didáticos de alfabetização, narrativas, músicas e do livro sobre a medicina tradicional Apinayé, além dos livros de Matemática, Ciências, História e Geografia desses povos.

Por outro lado, as ações do projeto vêm acontecendo duas vezes por ano nas aldeias Mariazinha e São José, uma vez que as escolas dessas aldeias possuem uma estrutura física mais adequada para atender a todos os pro-fessores indígenas e não indígenas envolvidos no referido projeto.

As ações do Projeto de Formação de Professores Indígenas do Tocan-tins, com o suporte do Projeto de Apoio Pedagógico e agora com o Projeto do Observatório de Educação escolar Indígena/CAPES, através do Pro-jeto A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural, diante do número crescente das aldeias e da criação de novas escolas, vêm contribuindo para minimizar os problemas relativos à educação escolar Apinayé.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Situação escolar de São José

De acordo com nossas pesquisas ao longo de quinze anos de trabalho junto às comunidades Apinayé, podemos afirmar que, mesmo diante de conflitos de ordem sócio-histórica, cultural e econômica, as comunidades Apinayé vêm resistindo a tudo isto, numa tentativa de manter vivas sua língua e sua cultura. E a escola tem sido um espaço muito importante, onde essas comunidades vêm discutindo os seus problemas e tentando, através dos processos de leitura e escrita, resgatar seus processos culturais, com a escrita do material didático realizada pelos próprios professores índios, com a participação efetiva dos alunos e da comunidade, em especial, dos indígenas mais velhos, contando seus mitos e suas histórias .

A escola da aldeia São José foi recentemente construída. É uma escola de arquitetura moderna, com espaço apropriado para as aulas, boa ilumi-nação, ventilação adequada, com salas de aulas espaçosas, biblioteca, sala de professor, sala da coordenação, cozinha, alojamento masculino/femini-no para professores e banheiros masculino/feminino para os alunos, além de uma sala de computação com seis computadores.

Atualmente, esta escola conta com um corpo docente de 16 profes-sores, sendo 11 indígenas e 05 não indígenas. Possui também em corpo administrativo formado por 01 (um) diretor indígena, 01(um) coorde-nador financeiro, 01(um) coordenador pedagógico, 01(um) coordenador de secretaria, 01(um) auxiliar de secretaria. Possui ainda 02 (dois) vigias, 04(quatro) merendeiras e 03(três) auxiliares de serviços gerais todos ín-dios. Atende ao maior número de alunos de todas as aldeias Apinayé, do Ensino Fundamental, 353 alunos e do Ensino Médio, 63 alunos, perfazendo um total de 416 alunos.

Nesta escola, os professores indígenas atuam nas quatro primeiras sé-ries iniciais, com o ensino de leitura e escrita em língua materna. A língua portuguesa escrita é vista a partir da 3º ano, que também está sob coorde-nação dos professores Apinayé.

Já os professores não indígenas estão atuando a partir da 5º ano; mes-mo assim, nessas turmas, os professores Apinayé dão aulas de língua ma-terna cinco vezes por semana, para explicar os conteúdos aos alunos indí-genas, por causa da barreira linguística.

O currículo desta escola, atualmente, é organizado de acordo com a matriz curricular da SEDUC-TO, tanto para o Ensino Fundamental e Médio

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Desta forma, a Matriz Curricular 9394/96 (SEDUC, 1996) contempla todas as disciplinas que estão voltadas para os aspectos socio-históricos e cultural da língua indígena, segundo o próprio ementário da referida ma-triz curricular. A exceção é apenas para língua estrangeira moderna que será ofertada de acordo com o profissional habilitado (Inglês, Espanhol ou Francês).

Porém, verificamos em nossas investigações que, em algumas escolas Apinayé, não se tem respeitado a diversidade de ritmos, de processos de idade e de inserção do aluno em sala de aula. De acordo com o RCNEI (1998, p. 78), a categoria “aluno”, na verdade, muitas vezes é usada para ho-mogeneizar e anular a rica diversidade presente em qualquer sala de aula. O regime seriado, que procura agrupar os alunos pelo conteúdo da série, tendo sua aprendizagem limitada ao tempo do ano letivo, de março a de-zembro, também acaba por negar essa diversidade. Na lógica, uma criança, um jovem de quinze ou um adulto que não sabem ler estão todos na 1ª série, ou seja, começando seu processo de aprendizagem.

Segundo o RCNEI (1998, p. 42), para que a educação indígena seja realmente específica e diferenciada, é necessário que os profissionais que atuam nas escolas pertençam às sociedades envolvidas no processo escolar. É preciso, portanto, instituir e regulamentar, no âmbito das secretarias de Educação, a carreira do magistério indígena, que deverá garantir aos pro-fessores indígenas, além das condições adequadas de trabalho, remunera-ção compatível com as funções exercidas e isonomia salarial com os demais professores da rede pública.

Partindo desses pressupostos, os Apinayé vêm lutando para que a educação escolar, em suas aldeias, seja realmente diferenciada. Dentre as propostas apresentadas por eles, está a proposta do calendário diferencia-do, que já foi levada para apreciação junto ao conselho de Educação Indí-gena do Estado do Tocantins e da Associação dos professores Indígenas do Tocantins.

Segundo Albuquerque (1999, p. 57), naquela época, nestas escolas ha-via pouco material escrito em língua Apinayé: cartilhas de alfabetização, livros de lendas e bíblias. Estas cartilhas foram elaboradas há mais de trinta anos e não foram produzidas pelos próprios professores índios. Foram pro-duzidas por membros do SIL.

Para Albuquerque (1999, p. 59), o material didático produzido pelo SIL apresenta uma linguagem artificial e fragmentada, visto que esse ma-terial não é produzido pelos próprios indígenas. O material didático, que é

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

construído na língua da criança indígena, não reflete a verdadeira cultura e língua materna desse povo, pois não considera os aspectos sociolinguís-ticos desse grupo. A seguir, recorte extraído da lição 2 da cartilha Apinayé n° 1 – PUMẼ KAGÀ PUMU, ilustra muito bem essa prática pedagógica.

Recorte da 2ª lição da Cartilha no 1“Põpõ na ja”(esta é uma garça)“Põ na ja”(isto é capim)“Pĩ na ja”(este é um pau)

A referida artificialidade também é comprovada, a seguir, nos exem-plos retirados da cartilha Apinayé n° 3 – PUMẼ KAGÀ PUMU N° 3.

Recorte da 1ª lição da Cartilha no 3“Nhũm Ire hkraja ma utĩ kamã mõ nẽ mãti pumu. Kupĩ nẽ kutu”

(O filho de Ire andou no mato e viu uma ema. Matou e carregou-a)

“Ta nhũm utĩ nhũm kumẽ. Kumẽ nẽ ma tẽ nẽ Kunmũm to mã:”

(Mas era tão pesada que ele deixou cair. Ele a deixou cair e foi ao irmão de Kunũm e disse:)

“Na pa mãtija pĩ. Nhũm utĩ jakamã pa kumẽ.”

(Eu matei uma ema, Mas era tão pesada que eu deixei cair e está lá deitada.)

“Anẽ nhũm kuma nẽ akunha. ” (Ele ouviu e riu)

“Nẽ Ire hkraja mã: pa ma mõ nẽ amã kutu”

(Eu e a Ire traremos para você)

Recorte da 6ª lição da Cartilha no 1“Kõk nhĩ na ja”(isto é carne de camaleão)“Kõk nhĩja pumu”(olhe a carne de camaleão)“põpõ nhĩ na ja”(isto é carne de garça)“põpõ nhĩ a pumu”(olhe a carne de garça)

Mas nos últimos anos, esse cenário tem mudado nas escolas indígenas Apinayé, pois vários recursos didático/pedagógicos são utilizados com o objetivo de favorecer a criação coletiva dos alunos, professores e comuni-dade na elaboração do material escolar de suas próprias autorias. Reunidos no Projeto de Apoio Pedagógico à Educação Indígena Apinayé, os profes-

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

sores, agentes de saúde, índios mais velhos e os cantadores vêm organi-zando oficinas de produção de materiais como Cartilhas Pedagógicas de Alfabetização, Matemática e Ciências, Geografia e História Apinayé; vídeos documentários; livros de narrativas e músicas Apinayé; livro dos Aspectos culturais Apinayé; livros de Receitas da Medicina Tradicional.

Desta forma, está sendo produzida uma variedade de material di-dático ligado à geografia, à história, às ciências e à matemática Apinayé, apresentando uma maior reflexão sobre o meio ambiente, sobre a fauna e flora da reserva desses povos; além desses, há também o material didático constituído das narrativas históricas voltadas para os mitos e músicas. Em relação ao aspecto musical, vale destacar a realização de três festivais de música Apinayé, que contaram com a participação de cantadores velhos, jovens e adultos de todas as 24 aldeias.

Para o RCNEI (1998, p. 69), essas práticas se expandem para além do espaço da escola e da palavra escrita, dando lugar a outras linguagens, como por exemplo, os desenhos e dramatização:

[...] a nova proposta de escola, cujo objetivo é fortalecer a luta pela autodeterminação dos povos indígenas e de outros povos, dentro dos princípios da pluralidade cultural, muda essa lógica de avaliação. Ela deixa de ser um instrumento de negação e exclusão para ser um instru-mento positivo de apoio, incentivo e afirmação dos novos projetos edu-cativos das diversas sociedades. Desta forma, busca-se melhor garantir os objetivos da escola naquele lugar, para aquelas pessoas, reintegrando as ações do ensino às de aprendizagem, evitando suas descontinuidades e rupturas (RCNEI, 1998, p. 70).

Com a implementação do Projeto de Apoio Pedagógico à Educação Indígena Apinayé, o material didático é produzido com a participação efeti-va dos próprios professores indígenas, com ajuda da comunidade e alunos, visto que apresenta a língua de forma não fragmentada e contextualizada, de forma que as crianças se apropriam do aspecto formal e convencional, bem como de estruturação de forma gradual e inteligente. Os textos partem da realidade sociocultural e linguística de cada sociedade, permitindo o desenvolvimento pleno de personagens, temas, tramas, conflitos, apresen-tando textos subjacentes. Desta forma, a língua é vista como constitutiva da identidade do sujeito, do seu pensamento, da sua consciência. Segundo Bakhtin (1995, p. 16), “a consciência só adquire forma e existência nos sig-

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73Francisco Edviges Albuquerque

A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

nos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais, e só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (se-miótico)”.

A seguir, apresentaremos alguns textos escritos pelos alunos Apinayé das escolas das diversas aldeias, tentando mostrar a forma como os indí-genas adquirem a linguagem escrita, a partir do sentido, na inter-relação com os aspectos formais estruturais e funcionais da sociedade em que estão inseridos.

Texto A: A História dos AnimaisOs animais são muito importantes para os indígenas e para os bran-

cos. Os indígenas vão caçar em grupo de três pessoas para cuidarem uns dos outros. Quando acontece alguma coisa de ruim com alguém, os outros o levam logo pra aldeia. Os não indígenas também gostam de caçar na re-serva, mas os índios não aceitam e vão atrás deles e por pra fora da reserva. (Zezinho Tekator Apinayé).

Texto B: A História do Homem e do CachorroQuando um índio não tem nada em casa para comer, ele chama o ca-

chorro e vão caçar na chapada. Ele não matou nada e se perdeu na chapada e não levou água para beber e se perderam um do outro e ficaram com sede o dia inteiro. Andaram muito até encontrar uma estrada que ia direto ao ribeirão, eles beberam água e voltaram pra aldeia sem matar nada. (VAL-DIR APINAYÉ).

A produção de textos elaborada por professores e alunos indígenas, mesmo que seja em língua portuguesa, contribui também para que a socie-dade não indígena conheça e entenda melhor as sociedades indígenas e se enriqueça culturalmente. Assim, os textos produzidos em língua portugue-sa, nas escolas Apinayé, têm sido uma maneira privilegiada de divulgação dos conhecimentos tradicionais e de afirmação para as sociedades desses povos. Esses materiais fornecem dados importantes sobre as diferenças cul-turais indígenas e suas tradições permitindo que, através deles, a diversida-de cultural do Estado do Tocantins torne-se mais evidente e possa ser mais respeitada e divulgada nacionalmente

Textos desse tipo, além de despertar a vontade de aprender a ler e es-crever estimulam o aluno a observar melhor, a pensar, a tirar conclusões e a verificar se suas conclusões estavam corretas. Esses elementos são muito

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

importantes para que, mais tarde, o aluno indígena seja capaz de compre-ender textos mais complexos.

Como se pode constatar, as crianças Apinayé da aldeia São José estão se alfabetizando também em consequência de outros recursos didáticos utilizados pelos professores indígenas. Os professores Apinayé organizam suas aulas com uma variedade de materiais específicos, ligados à reflexão sobre seus aspectos geográficos, o meio ambiente, as espécies da fauna e da flora da região, bem como às historias e relatos de seu povo, suas cantigas, danças, os mitos, bem como outros aspectos que fazem parte da tradição oral Apinayé

Por outro lado, os livros didáticos adotados nas escolas Apinayé, após as séries iniciais, na sua maioria, estão totalmente afastados da realidade sócio-histórica, cultural e linguística das crianças Apinayé. Como resulta-do, a maioria das crianças que ultrapassa os estágios iniciais de aprendiza-gem, ao se defrontar com esses materiais, fica completamente desestimula-da e abandonam a escola.

Pelo que pudemos verificar durante nossa pesquisa, o número de alu-nos matriculados do 1º ao 4º ano é menor do que nas séries seguintes, em-bora, nas séries iniciais, o ensino seja ministrado em língua indígena. Após esse período, o ensino passa a ser em língua portuguesa, e isso também tem contribuído para a evasão escolar. O ideal é que se use a língua indígena como meio de instrução por um período mínimo de cinco anos e que seja implementado o uso funcional da língua escrita na comunidade, pois sem que isso ocorra, corre-se o risco de a língua indígena estar limitada apenas à escrita em sala de aula. Para isso, é necessário que a língua Apinayé tenha uso e função social na sua forma escrita para a comunidade em que esse povo está inserido.

É importante salientar que algo de bom acontecerá, especialmente, se essa escrita for em língua indígena, à proporção que as funções sociais da leitura e escrita forem sendo criadas fora do ambiente escolar. Como na vida real nunca se leem ou se escreve palavras ou sentenças descontextuali-zadas, ou seja, fora de contextos específicos, os alunos das escolas indígenas poderão perceber também mais facilmente que a língua escrita pode ser útil e pode se tornar importante para eles, se as atividades desenvolvidas nas escolas girarem em torno da leitura e escrita de textos que levem em consideração os aspectos linguísticos Apinayé.

Segundo o RCNEI (1998, p. 34-135), para que a escrita faça sentido para os alunos, é preciso, pois, que eles se envolvam em atividades em que

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

a linguagem escrita apareça contextualizada e sirva para comunicar algu-ma coisa, como apresentar-se e apresentar outra pessoa, cumprimentar e despedir-se, dar, pedir e entender informações pessoais, convidar, aceitar ou recusar um convite, expressar verbalmente sentimentos e sensações de alegrias, tristeza, dor, raiva etc.

A Criança Apinayé e o Processo de Aquisição da Escrita

Para a Linguística que vem, há muito tempo, conquistando o seu es-paço nas discussões relativas ao ensino de língua materna, uma vez que seu objeto de estudo é a estrutura e o funcionamento das línguas naturais, deve ser adequadamente conhecido por quem, na escola, acompanha e orienta o processo de aquisição e domínio da modalidade escrita por parte dos fa-lantes nativos de uma determinada língua. Nota-se, atualmente, a constante (e indispensável) presença dos linguistas nos eventos em que se discute a alfabetização, principalmente das línguas indígenas. Tal fato, talvez, cons-titua-se na principal contribuição para a ressignificação da alfabetização nas escolas indígenas, onde a compreensão de teorias sobre os processos de aquisição da leitura e da escrita passa a ser fator principal para a escolha de uma metodologia adequada.

O professor lançando mão de conhecimentos da Linguística, passa a ver a criança como sujeito do processo de aquisição da leitura e da es-crita em língua materna e português, isto é, um sujeito que, ao chegar à escola, ainda não traz uma representação do que seja ler e escrever, visto que possui uma tradição de língua oral. Já para Cagliari (1999, p.8), ler e escrever são atos linguísticos e, portanto, a compreensão da natureza da escrita, de suas funções e usos é indispensável ao processo de alfabetização. Compartilhando dessa mesma ideia, Vilas Boas (1994, p.12) afirma que o desconhecimento dos princípios gerais da ciência da linguagem pode le-var a consequências bastante negativas no processo geral da aprendizagem escolar. A autora compartilha da ideia de Cagliari e afirma que a criança, para aprender a falar, não precisou de ditados, memorização de regras, re-petição de fonemas e sílabas; que nenhuma mãe se preocupa em ensinar à sua criança a ordem das palavras nas frases e, no entanto, toda criança sabe qual ordem é possível ou não usar.

Deste modo, julgamos que é importante fazer uma investigação so-bre as tentativas que as crianças indígenas Apinayé fazem na escola da aldeia, para aprender a ler e escrever tanto em língua materna como em

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

português, buscando entender como ocorre esse processo e como se pode encarar os chamados erros na alfabetização. Ao chegarem à escola, as crianças indígenas já contam com uma grande capacidade de análise da linguagem materna oral, uma vez que o fazem como exercícios constantes, desde o momento em que começam a falar com seus pais, avós, irmão e familiares, num esforço diário na organização dos elementos da fala para se comunicarem.

Com as crianças indígenas também se tem essa impressão de que elas perdem essa capacidade, à proporção que vão aprendendo a ler e escrever. Segundo Cagliari (1999.), essa questão, aponta a própria escola como res-ponsável por essa perda, porque .ensina a língua materna e o português, tomando a escrita ortográfica como base para tudo. (p. 29). É ingênua a postura de ensinar o abecedário, as famílias silábicas e a associação de letras para a composição de palavras e frases, como se isto garantisse a aprendi-zagem da leitura e da escrita. Tal aprendizagem depende da compreensão de como funciona a estrutura da língua e o seu uso no meio social. Os conhecimentos linguísticos são, portanto, imprescindíveis para o professor indígena, em uma tarefa tão complexa como a de alfabetizar.

A escola indígena, muitas vezes, esquece também de fundamentar-se nas necessidades naturalmente desenvolvidas nas crianças e na sua própria atividade e impõe a elas uma escrita vinda de fora( da sociedade não indí-gena), que não tem sentido por não lhes permitir avançar nas suas próprias tentativas e hipóteses. Chega-se, às vezes, a considerar a escrita simples-mente como uma complicada habilidade motora.

As crianças indígenas refletem sobre a sua língua. Desde muito cedo, as crianças indígenas contam com uma grande capacidade de analisar a linguagem, aliás, é isto que elas fazem o tempo todo quando estão apren-dendo a falar. Muitas são as oportunidades em que podemos observar a sua criatividade para encontrar soluções quanto ao arranjo da linguagem para comunicar-se. Fato como esse foi observado durante nossa pesquisa, como o caso de uma criança Apinaye de sete anos correndo para encontrar uma criança não indígena que estava na aldeia e ia jogar bola e, num esforço para se fazer a outra esperar, começou a gritar:

Kupẽ! Kupẽ! Kupẽ! pera! pera por eu!Ao perceber que seu apelo não era atendido, continuou:Kupẽ!, Kupẽ, tu num tem perança!

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Sob essa ótica, Cagliari (1997, p. 29) afirma que, de fato, as crianças manipulam a linguagem e compõem palavras novas, a partir da análise dos processos de formação de palavras, às vezes criando formas surpreenden-tes, revelam a incrível capacidade que têm de manipular fatos semânticos de alta complexidade. A criança que está aprendendo a falar, faz tentativas a partir de hipóteses que elabora, baseada no que já conhece. É nesse sentido que entendemos que ela reflete.

A cada tentativa que resulta em êxito na sua comunicação com os ou-tros, a criança indígena também vai adquirindo confiança e vai avançando, sentindo-se gratificada pelas aprendizagens que realiza. Sente prazer a cada nova descoberta e percebe quão gostoso é aprender, isto é, ela pode sentir pra-zer se houver resposta de incentivo por parte, principalmente, dos adultos, que são seus modelos. Na escola, esse processo pode ter continuidade para ela, desde que ali se valorize a sua experiência como ponto de partida para a aprendizagem da escrita. Se, ao contrário, a escrita ortográfica for tomada como base para tudo no processo de ensino, essa capacidade natural de análise da linguagem, que a criança tem, pode ser sufocada, havendo grandes chances de insegurança, bem como a dúvida sobre o que seja aprender a ler e escrever.

De certa forma, repetir modelos, mesmo sem entendê-los, ou mem-so memorizá-los, pode ser muito chato e complicado. Mas Cagliari (1997) afirma que a escola não valoriza o conhecimento que a criança tem da pró-pria fala e da fala dos seus colegas para, a partir daí, ensinar a escrever e, por isso, não consegue perceber que tipo de reflexão o aprendiz está fazendo quando comete seus erros. Partindo desse princípio, consideramos de fun-damental importância que o professor indígena identifique junto com os alunos as hipóteses elaboradas por ele para ter chegado a determinadas res-postas. Portanto, em volta de cada “erro ou tentativa de escrita”, existem cri-térios inteligentes de organização dos elementos da linguagem, que devem ser valorizados. Durante o processo de interação com a criança indígena que aprende a falar, os adultos e os velhos que a rodeiam preocupam-se em entender o que elas querem dizer com os termos que usam e as tentativas que fazem, interagindo com elas. Na alfabetização, a maioria das escolas indígenas também faz o contrário, porque enfatiza a forma, porque exige a realização de fonemas soltos, porque dá a regra pronta e impede que as tentativas de escrita aconteçam.

Para que os alunos indígenas avancem nas habilidades de uso, tanto na modalidade falada quanto escrita da língua, é fundamental que eles a exercitem concretamente, comparando elementos, observando semelhan-

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ças e diferenças, nos mais diversos contextos e situações (dentro ou fora da escola). O importante, no momento em que as crianças indígenas estão aprendendo a escrever, é refletir sobre o funcionamento da língua materna e do português nos diversos domínios sociais da aldeia. E para que essa re-flexão seja possível, não há como pensar em alfabetizar as crianças apenas silabando as palavras.

Uma das dificuldades que as crianças indígenas também podem apre-sentar é a questão da variação na abertura, arredondamento ou não da vogal, bem como a mudança que ocorre na palavra, pela combinação de letras diferentes (embora não desconsideremos a questão do gênero) com consequência da silabação, refere-se à escrita de palavras como kawà ou kawa. Isto porque, no caso, todas as sílabas se tornam tônicas, e a distinção, que é evidente na fala natural e espontânea dos alunos, desaparece na fala artificial do professor.

Observando cuidadosamente a escrita das crianças indígena na alfa-betização, podemos notar que, quando elas erram na forma ortográfica, estão, na verdade, baseando-se na forma fonética. Os “erros” cometidos re-velam contextos possíveis, conforme demonstra Cagliari (1997, p. 61), nos exmplos a seguir: um aluno pode escrever talveis (talvez), mas não escreve eileifante (elefante); não escreve vei (vê), mas escreve veis em lugar de vez. É impressionante como os erros dos alunos revelam uma reflexão sobre os usos linguísticos da escrita e da fala. Só a escola não reconhece isso, julgan-do que o aluno é distraído, incapaz de discriminar.

Para poder compreender a produção escrita das crianças indígena, identificando as suas hipóteses e a reflexão que elas estão fazendo, o profes-sor alfabetizador precisa observar atentamente a sua fala. Somente assim, é possível que se cumpra efetivamente o seu papel de mediador no processo de aprendizagem das crianças Apinayé.

Portanto, permitir que elas escrevam textos espontâneos para serem analisados em conjunto, significa oportunizar-lhes que façam de forma tranquila e segura a passagem da fala para a escrita e da escrita para a or-tografia. Cabe considerar, também, que um texto é, antes de tudo, signifi-cação, o que nos leva a entender que as análises não devem ser só formais, porque se forem, corre-se o risco de reduzir a fala à pronúncia e a escrita à grafia (mecanicismo).

O desenvolvimento da alfabetização que ocorre no ambiente escolar Apinayé vem adotando as práticas sociais que não são recebidas passiva-mente pela criança, ao contrário elas tentam compreender e transformar os

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conhecimentos de forma a preservar a função social da escrita, visto que a língua indígena está viva, nos textos orais e escritos, verbais e não verbais produzidos pelos professores e alunos indígenas,

De certa forma, hábito da leitura não faz parte do dia-a-dia das crian-ças indígenas, o que não possibilita um melhor desenvolvimento da orali-dade da escrita e de suas relações sociais na aldeia São José. De acordo com Soares (2001, p.20), “as atividades de leitura e escrita proporcionadas pelos eventos de letramento permitem que os sujeitos percebam diversas formas de escritas presentes no mundo e entendam o seu funcionamento”.

Assim, segundo Ferreiro (2001, p. 9), “para que uma pessoa faça uso social da leitura e da escrita, é necessário fazer uso das práticas reais que en-volvam esses dois conhecimentos”. A interação social favorece a oralidade e consequentemente a escrita. Uma criança que não faz uso da linguagem oral terá bastante dificuldade na aquisição da escrita, pois uma comple-menta a outra.

Partindo dessa premissa, é importante tomar o conceito de alfabetiza-ção, levando-se em consideração que essa conceituação tem sido pontuada por diferentes análises e enfoques, privilegiando, em alguns momentos, a abordagem mecanicista do processo de aquisição da língua escrita pelas crianças Apinayé, fundamentada na racionalidade técnica, cuja preocupa-ção central é o como fazer, ao invés de direcionar-se para o aspecto de como o aluno indígena aprende. E, em muitos casos, destacando tanto o caráter processual, complexo, quanto a necessidade de articulação entre os diferen-tes enfoques sobre a temática, considerando a contribuição da Linguística e da Sociolinguística, para alfabetização das crianças indígenas.

Para Soares (1999, p. 52), o processo de alfabetização, a partir da déca-da de 80, leva em consideração dois principais fatores – a influência das ci-ências lingüísticas e a concepção psicogenética da aprendizagem da escrita – em duas faces do processo ensino e aprendizagem da língua escrita, aqui apontadas, para fins de melhor clareza da exposição, já que não represen-tam momentos sucessivos, mas contemporâneos, não são processos inde-pendentes, mas inseparáveis: uma face é a aquisição do sistema de escrita, a outra face é a ‘utilização’ do sistema de escrita para interação social, ou seja, o desenvolvimento de habilidades de produzir textos.

Os aspectos observados neste trabalho permitem também caracteri-zar a alfabetização Apinayé como um processo sócio-histórico e cultural de várias dimensões, exigindo as análises e os enfoques numa perspectiva mais ampla, sem contudo, negar a especificidade da língua Apinayé, levando em

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consideração as contribuições das ciências Linguísticas, da Psicologia, da Antropologia, da Sociologia. Essa abordagem contribui para o estudo da alfabetização na totalidade de suas especificidades dentro do processo en-sino-aprendizagem Apinayé.

De acordo com as bases teóricas de Vigotski (1998), cuja contribuição tem sido valiosa no campo da educação, elas esclarecem a discussão sobre o aprendizado da escrita, relatando o processo de apropriação da escrita como processo cultural, de caráter histórico, envolvendo práticas interati-vas. A aprendizagem da escrita refere-se, portanto, à aquisição de um sis-tema de signos que, assim como os instrumentos, foram produzidos pelo homem em resposta às suas necessidades socioculturais e linguísticas.

A escrita, então, não deve ser considerada como mero instrumento de aprendizagem escolar, mas como produto sociocultural. Assim entendida, possibilita a exploração, no contexto da sala de aula, de diferentes textos, explicitando os variados usos e funções que lhes são inerentes tanto na so-ciedade Apinayé, como na sociedade não indígena

Apesar dos avanços significativos dos estudos sobre o processo de alfabetização Apinayé, verifica-se, em alguns casos, que a prática da esco-la indígena parece distanciada da funcionalidade da escrita no contexto da sociedade, limitando-se aos usos mecanicista e descontextualizados, conforme afirma Vigotski (1998, p.139), até agora, a escrita ocupou um lugar muito estreito na prática escolar, em relação ao papel fundamental que ela desempenha no desenvolvimento cultural da criança. Ensinam--se as crianças a desenhar letras e a construir palavras com elas, mas não se ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se, de tal forma, a mecânica de ler o que está escrito que se acaba obscurecendo a linguagem como tal. Como podemos observar no recorte extraído da lição 2 da cartilha Apinayé n° 1 – PUMẼ KAGÀ PUMU, ele ilustra muito bem essa prática pedagógica.

Recorte da 2ª lição da Cartilha no 1Põpõ na ja (esta é uma garça)Põ na ja (isto é capim)Pĩ na ja (este é um pau)

Desta forma, o que se percebe é que a alfabetização transcende a prá-tica do ler e do escrever, isto é, a alfabetização é um processo sócio-histó-rico multifacetado, envolvendo a natureza da língua escrita e as práticas

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culturais de seus usos. Segundo Frago (1993, p. 27), alfabetizar não é só ler, escrever, falar sem uma prática cultural e comunicativa, uma política cultural determinada. Percebe-se, dessa forma, que a concepção de alfabe-tização tem se ampliado no cenário socioeducacional, estimulando práticas escolares diferenciadas visto que tais questões, de uma forma ou de outra, chegaram às escolas indígenas Apinayé.

É importante observar que a criança indígena, no decorrer de seu dia--a-dia, vivencia usos de escrita apenas na escola, percebendo que se escreve para comunicar alguma coisa, para auxiliar a memória, para registrar in-formações. Assim, recorremos à escrita, através da leitura, para obter infor-mações e buscar entretenimento. Portanto está na hora de a escola indígena parar também de ensinar apenas a escrita, para dar espaço a outra prática, explorando as ideias, as emoções, as inquietações dos alunos indígenas, es-crevendo e deixando-as escrever.

Partindo desse princípio, a escola indígena também precisa pensar a alfabetização como processo dinâmico, como construção social da escrita, fundadamentada nos diferentes formas de participação das crianças Api-nayé nas práticas culturais de uso da escrita, transcendendo a visão linear, fragmentada e descontextualizada presente nas salas de aula onde se ensi-na/aprende apenas a ler e a escrever. De acordo com Oliveira (1998, pp. 70-71), a prática alfabetizadora de aquisição da língua escrita como processo sociocultural é de fundamental importância para que, desde o início, a al-fabetização se dê num contexto de interação pela escrita. Assim, deveria ser banido da prática alfabetizadora escolar Apinayé todo e qualquer discurso (texto, frase, palavra e palavras isoladas) que não esteja relacionado com o dia-a-dia ou o imaginário das crianças indígenas,

O processo de alfabetização, ao longo dos anos, nas escolas Apinayé tem sido organizado e orientado por metodologias propostas nas cartilhas do SIL. Essas metodologias supõem que as crianças indígenas detêm os mesmos conhecimentos e as mesmas experiências com a escrita, ou seja, espera-se que as crianças indígenas cheguem à escola sem nenhuma cons-trução teórico-prática acerca do ato de ler e de escrever. Por isso, a proposta escolar de alfabetização indígena tem o mesmo ponto de partida das esco-las não indígenas sem levar em consideração os diferentes níveis ou graus de inserção da criança no mundo escrita.

Por outro lado, vale relembrar que dentro do contexto social Apinayé e do contexto familiar da criança indígena não ocorrem práticas e usos da escrita, de forma natural e espontânea, das quais ela participa direta ou

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indiretamente. O letramento da criança indígena não decorre dessa parti-cipação, da vivência de situações em que o ler e o escrever possuem uma funcionalidade, uma significação, visto que isso ocorre apenas no contexto escolar. Essas crianças não possuem atos cotidianos, corriqueiros, de ler um jornal, redigir um bilhete, ler um livro, fazer anotações, isto é, usar textos escritos como fonte, seja de informação, seja de entretenimento, que contribuam para que as crianças percebam as diferentes formas de apre-sentação do texto escrito, bem como para que identifiquem seus diferentes sentidos e funções na escola ou fora dela.

Para Vigotski (1998, p. 110), o ponto de partida dessa discussão é o fato de que o aprendizado das crianças começa muito antes de elas frequen-tarem a escola. Qualquer situação de aprendizagem com a qual a criança se defronta na escola tem sempre uma história prévia. Assim, as crianças começam a estudar aritmética na escola, mas muito antes tiveram alguma experiência com quantidades. Tiveram que lidar com operações de divi-são, adição, subtração e determinação de tamanho. Consequentemente, as crianças têm sua própria aritmética pré-escolar, que somente os psicólogos míopes podem ignorar.

Com base nessas premissas, vale ressaltar que o aprendizado da escri-ta, na escola indígena, coloca a criança diante de alguns dilemas referentes à natureza desse objeto cultural, ou seja, a própria escrita. Citamos, por exemplo, a arbitrariedade presente na representação gráfica de palavras, a segmentação da escrita e a organização espacial da grafia. Quanto à repre-sentação gráfica das palavras, a criança indígena, a partir de hipóteses cons-truídas na escola Apinayé acerca da relação fala/ escrita, especialmente na fase de escolarização, leva a criança s escrever como fala. Segundo afirma Cagliari:

Desde os primeiros contatos com a escrita, o aluno ouve o professor dizer que o nosso sistema é alfabético e que isso significa que escreve-mos uma letra para cada som falado nas palavras. Nosso sistema usa letras, às quais são atribuídos valores fonéticos. Mas o uso prático desse sistema não se reduz a uma transcrição fonética. Portanto, o professor não pode dizer simplesmente para o aluno observar os sons da fala, as vogais, as consoantes, e representá-las na escrita por letras. Esse é o pri-meiro passo, mas não é tudo. Feito isso, o aluno precisa aprender que, se cada um escrevesse do jeito que fala, seria um caos. (CAGLIARI: 1998, p. 354).

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Desta forma, é preciso lembrar a existência da ortografia, orientando, padronizando e a forma de escrever. As regras ortográficas, a natureza da ortografia, devem ser socializadas com os alunos indígenas, a fim de per-mitir a compreensão da natureza das relações entre fala e escrita. Algumas orientações iniciais, no processo de alfabetização, poderão ajudar o aluno Apinayé a perceber regras que orientam a grafia das palavras em sua língua materna e em português. Essas orientações, aliadas a usos funcionais da escrita na escola e fora dela, constituem-se mais eficazes que os tradicionais ditados e tarefas de cópias intermináveis.

A aquisição da escrita ortográfica, no entanto, constitui-se campo fér-til em dificuldades para a criança. Comumente, no processo de alfabetiza-ção, as normas da convenção ortográfica não são socializadas, prevalecendo como mecanismo importante na aprendizagem da ortografia as atividades de alfabetizadora: a aquisição da língua escrita como processo sociocultu-ral, cópias e ditados. É fundamental, então, a compreensão de que a aqui-sição da escrita ortográfica não ocorre passivamente, não se constitui em armazenamento/memorização de formas corretas de grafar palavras, mas pressupõe e requer um processo ativo de aprendizagem. (MORAIS, 2000).

Considerando a segmentação da escrita, vale ressaltar que as crianças Apinaye, notadamente no processo de aquisição, encontram-se em cons-tante conflito quanto às relações entre as pausas na fala e as pausas na escri-ta: “As pausas da fala nem sempre têm correspondência fixa com as pausas ou sinais de pausas (vírgulas, pontos) da escrita. A segmentação das pala-vras na escrita, indicada pelo espaço em branco, corresponde menos ainda a pausas ou segmentações na fala.” (CAGLIARI, 1998, p. 127).

Para esse autor, não se escreve como se fala, considerando que existe uma normalização ortográfica. Escreve-se da esquerda para a direita, e de cima para baixo. Parece óbvio. Mas não é, tendo em vista que a descoberta da escrita pelas crianças não ocorre homogeneamente, elas não aprendem no mesmo ritmo e, como foi afirmado anteriormente nesse estudo, pos-suem diferentes níveis e graus de letramento. Esses aspectos, portanto, de-vem ser enfatizados na alfabetização de forma que os alunos possam cons-truir concepções de escrita, coerentes com a natureza desse objeto cultural.

No que concerne à atitude do professor perante as “dificuldades” das crianças indígenas na aquisição da escrita, via de regra, essas dificuldades relacionam-se à escrita ortográfica, ocorrendo a troca de letras, supressão de letras( visto que a maioria das vezes, a alfabetização acontece nas duas línguas Apenai e português) e costumam deixar o professor alfabetizador

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em estado de ansiedade por não saber como agir e, em determinados casos, lançando mão daquilo que a intuição lhe diz.

A medida que a turma vai se tornando mais heterogênea, muitas são as indagações suscitadas pelo professor. Indagações que vão ao encontro da necessidade de um trabalho de alfabetização que se configure homogêneo e mecânico. Numa alfabetização dessa natureza (mecânica) todos os alunos indígenas são submetidos ao mesmo processo linear de alfabetização, ape-sar de se encontrarem em níveis diferentes de letramento e de alfabetização.

Essa prática contribui também para a perpetuação da desigualdade na escola indígena, considerando que os alunos que encontram “dificulda-des” permanecem no mesmo ponto, sem muitas chances de avançar, para angústia de quem alfabetiza. Desta forma, as supostas dificuldades repre-sentam, na verdade, o nível de compreensão da criança em relação à escrita, constituindo-se, na visão vigotskiana, o conhecimento potencial do aluno, numa perspectiva de um conhecimento da realidade da criança indígena a ser construída.

Desta forma, as interpretações da criança indígena na apropriação da leitura e da escrita representam, de fato, o prenúncio de um conhecimento futuro. Decorre, daí a importância de se considerar as experiências que os alunos possuem, porquanto é imprescindível que a escola indígena perceba e aproveite os saberes que os alunos construíram fora da escola, nos campos da cultura, do aspecto sociocultural e linguístico.

Na verdade, as crianças que chegam às classes de alfabetização, na es-cola indígena, são crianças reais, capazes de aprender a ler e a escrever. Resta que a escola identifique o seu percurso no processo de aquisição da língua escrita, organizando suas atividades de modo que a vivência do ler e do escrever, na sala de aula, seja rica, útil, podendo informar, transmitir conhecimentos, entreter e, enfim, tenha a gama de usos e funções sociocul-turais que a caracterizam na sociedade indígena.

Nesta percepção, estão implícitas concepções de língua e de lingua-gem, pressupondo ambas na condição de artefatos culturais e de instru-mentos de mediação do indivíduo com o outro e com o mundo. Língua e linguagem constituem-se sistemas simbólicos, de natureza histórico-social, permeando as interações sociais, tendo, portanto, como propósitos situa-ções linguísticas significativas. (OLIVEIRA, 1992; MATÊNCIO, 1998; GE-RALDI, 1997.

Observar o desenvolvimento da escrita das crianças Apinayé nos anos iniciais de sua escolarização, faz-se necessário um melhor entendimento

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acerca do nível das habilidades cognitivas, metacognitivas e motoras dessas crianças. Com o objetivo de estabelecer relações entre elas e expressá-las de uma maneira adequada. Além de constituir um dos principais instrumen-tos para o registro de contextualização, do processo de ensino/ aprendiza-gem das crianças indígena. Deste modo, adquire-se uma visão particular de cada criança indígena e ao mesmo tempo integral. Para os professores Apinayé é de extrema importância rever os métodos de alfabetização que estão sendo aplicados na escola da Aldeia São José, a fim de evitar o fracas-so no ensino e na aprendizagem da leitura e da escrita. E principalmente do fracasso escolar que é um tema e um desafio que ainda permanece na educação escolar Apinayé.

Prática Alfabetizadora: Aspectos Teórico-Metodológicos

As discussões feitas ao longo deste estudo dão conta de importantes avanços nas produções teóricas a respeito do processo de alfabetização. Es-ses avanços estão, portanto, a requerer do professor alfabetizador indígena um repertório de conhecimentos relacionados à especificidade do processo de aquisição da língua escrita. São conhecimentos que se referem tanto aos saberes concernentes à natureza da alfabetização das crianças indígenas, quanto à ação didático/pedagógica empregada na escola dessa aldeia.

Os cursos de formação de professores indígenas para as séries iniciais do ensino fundamental devem levar em conta que a ação pedagógica nas referidas séries está diretamente ligada ao ensino da língua escrita. De certa forma, o professor estará lidando com crianças em processo de alfabeti-zação, algumas em fase de aquisição e outras na fase de desenvolvimento de habilidades de escrita ou, ainda, com crianças em diferentes graus de letramento.

Essa prática exige uma intervenção didática centrada na construção de saberes linguísticos das crianças indígenas, entre eles a leitura e a escrita. Para que essa intervenção didática ocorra de forma coerente e dinâmica, o professor alfabetizador necessita construir competências para a organi-zação e execução de uma prática pedagógica que se caracterize como um saber-fazer-bem, envolvendo reflexão crítica sobre sua ação. Cagliari, ao se referir à competência técnica do alfabetizador, afirma:

Os cursos de formação de professor têm se preocupado muito com outros aspectos da escola, dando muitas vezes um valor indevido aos

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aspectos pedagógicos, metodológicos e psicológicos. Como educador, o professor precisa ter uma formação geral, e esses conhecimentos são básicos. Como professor alfabetizador precisa ter conhecimentos téc-nicos sólidos e completos. [...] Para ensinar alguém a ler e escrever, é preciso conhecer profundamente o funcionamento da escrita e da deci-fração e como a escrita e a fala se relacionam. (CAGLIARI 1999, P. 130).

É importante, pois, que a formação do professor indígena alfabeti-zador privilegie também os aspectos ligados à importância da linguagem oral na alfabetização, esclarecendo que a variação linguística deve ser parte da prática pedagógica alfabetizadora e a aquisição da língua escrita como processo sociocultural respeitada e tomada como ponto de partida nas construções sobre o escrever na escola indígena. A aprendizagem da escrita possui certas peculiaridades que envolvem o conhecimento linguístico, o uso da fala e sua relação abstrata com a escrita.

Com base nesses pressupostos, o Curso de Formação em Magistério In-dígena do Estado do Tocantins, ao longo de sua implantação, tem levado em consideração as práticas pedagógicas centradas na construção dos saberes dos povos indígenas do Tocantins, considerando a especificidade, a realida-de sociolinguística e cultural de cada povo, numa tentativa de minimizar os problemas relacionados a alfabetização nas escolas indígenas do Tocantins.

Portanto, compreender as peculiaridades presentes na aprendizagem da escrita pelas crianças indígenas Apinayé, pode assegurar ao professor al-fabetizador indígena determinadas intervenções pedagógicas. Assim, tor-na-se mais fácil para o alfabetizador entender que a escrita infantil possui uma lógica própria, resultante de suas experiências com o universo letrado, que não se coaduna com a lógica da escrita ortográfica. A análise da lógica da escrita infantil pode mostrar ao professor o caminho percorrido pela criança, evidenciando suas interpretações e hipóteses na leitura e na escrita, bem como indicar a ação didática adequada a cada situação.

Na verdade, sem a adequada formação, na visão do professor a lógica infantil na escrita passa a ser percebida como erro, devendo ser corrigida através de tarefas estereotipadas que envolvem apenas o treino, a repetição, sem permitir uma relação dinâmica entre o sujeito que escreve, ou tenta escrever. A esse respeito afirma Soares:

Quanto às dificuldades enfrentadas pela criança nesse processo, se, an-teriormente, eram consideradas erros que era preciso corrigir, e para

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isso os recursos eram, de novo, os exercícios ou “treinos” de imitação, repetição, associação, cópia; hoje, no quadro de uma nova concepção do processo de aquisição do sistema de escrita os erros são considera-dos construtivos (SOARES, 1999, P. 53).

Na prática tradicional da escola Apinayé, o professor alfabetizador, por haver construído conhecimentos sobre a prática da escrita, de certa forma, sente uma segurança no direcionamento de seu trabalho organizado dentro da lógica do controle da aprendizagem dos alunos Apinayé. Por essa razão, resiste, de certo modo, às novas propostas. Essa resistência talvez se dê, também, como resultado de uma formação inadequada ou como de-corrência da falta de espaço, dentro da escola indígena para as discussões, estudo e reflexão sobre a prática alfabetizadora, tanto de língua materna (Apinayé) com o de língua portuguesa.

Com relação às práticas construtivistas ou socioconstrutivistas utiliza-das nas escolas indígenas, percebe-se que algumas propostas inseridas neste ponto de vista estão sendo usadas nas escolas indígenas e, consequentemen-te, pelos professores indígenas. Essas propostas, de certa forma, buscam o rompimento com as práticas tradicionais de alfabetização, porém o profes-sor indígena não participa dos momentos de planejamento delas e, tampou-co, parece convenientemente preparado para aplicá-las nas suas aulas.

Com base nessa premissa, Oswald (1997), ao analisar as implicações pedagógicas das diferentes correntes teóricas em relação ao aprendizado da leitura e da escrita, aponta objetivamente que elas delineiam práticas esco-lares dicotômicas. A vertente de cunho tradicional, por exemplo, orienta a ação pedagógica baseando-a na transmissão de conhecimentos, situando o aluno como sujeito passivo. Neste caso, a aprendizagem da escrita é orien-tada, inicialmente, pelo treino de habilidades perceptivo-motoras. Parte--se do pressuposto de que a criança não detém conhecimentos relativos ao objeto de sua aprendizagem, necessitando, portanto, ser submetida a um processo de preparação. Ao analisar as contribuições da teoria cons-trutivista, a autora enfatiza, entre outros aspectos: o papel do aluno como sujeito que age sobre a escrita, construindo hipóteses e concepções acerca do que representa esse objeto sociocultural e sobre como representa. Nesse sentido, a aprendizagem tem contornos diferentes das práticas tradicionais, pois valoriza a produção espontânea da criança, libertando-a dos treinos mecânicos de leitura e de escrita. Outra contribuição importante, oriunda dos estudos construtivistas, refere-se à concepção de erros de escrita. Tais

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

erros, nas práticas tradicionais, representam sérios problemas, servindo, em muitos casos, para rotular o aluno como disléxico ou algo similar.

O papel do professor indígena, nesta perspectiva, tomando o aluno como ser social que se apropria da escrita nas interações com diferentes interlocutores ( na escola), refere-se à organização de práticas interativas de ensino-aprendizagem, que provoquem o desenvolvimento de suas concep-ções sobre o objeto de conhecimento. Essa compreensão do aprendizado da escrita implica interpretar também os erros ortográficos das crianças indígenas, na alfabetização, como conhecimento potencial acerca da escri-ta, indicando um conhecimento real a ser construído, visto que, segundo Vigotski:

A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentes em estado embrionário. Essas funções poderiam ser chamadas de ‘brotos’ do desenvolvimen-to. O nível de desenvolvimento mental, retrospectivamente, enquanto a zona de desenvolvimento proximal caracteriza o desenvolvimento prospectivamente. (VIGOTSKI, 1998, P. 113).

Deste modo, vale ressaltar que o professor indígena alfabetizador pode compreender a dinâmica da aprendizagem das crianças indígenas, percebendo o significado da prática escolar na condução desse processo e no desenvolvimento das funções psicológicas superiores da criança. Dessa forma, a ênfase nos princípios da racionalidade técnica pode limitar a es-crita à mera habilidade motora, fragmentando e fossilizando o saber esco-lar da criança Apinayé.

Dessa forma, o fato de não estar preparado, do ponto de vista teórico--metodológico, para o desenvolvimento das novas propostas, provocou e tem provocado sérios equívocos na prática pedagógica do professor indí-gena alfabetizador. Esses equívocos referem-se ao papel do professor indí-gena na sala de aula que, em razão da aplicabilidade dessa proposta, sem a sua adequada preparação, termina por deixar a turma entregue a situações espontâneas de aprendizagem, tanto em língua materna, como em língua portuguesa. Fato como esse tem se repetido nas escolas Apinayé, uma vez que muitas vezes o professor indígena não está preparado para essa prática e conta apenas com a prática tradicional, decorrente de sua experiência do dia-a-dia.

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Portanto, diante desse cenário, é importante tratar de repensar a for-mação do professor indígena, para o início da escolarização, situando a escrita tanto em língua materna com em português como um sistema de signos culturalmente construídos, de modo que a aprendizagem se carac-terize como processo de desenvolvimento de funções intelectuais, mediado pelo fator histórico, sociocultural e linguístico, pelo signo e por outros. Por outro lado, trata-se de compreender que a formação do professor indíge-na alfabetizador necessita considerar os saberes próprios das crianças que emergem na prática alfabetizadora

A Relação Fala × Escrita na Escola de São José

É evidente que a linguagem oral difere da linguagem escrita, visto que cada uma segue um esquema distinto. Não podemos transcrever para a es-crita exatamente como falamos, uma vez que a escrita é a representação da fala, não é a transcrição dela. Porém, as duas se encontram e se completam no processo de alfabetização e letramento. A análise acerca da linguagem oral e escrita é descrita por Marcuschi (2001, p.20) da seguinte forma:

A relação oralidade e escrita não pode ser mais vista de forma dicotô-mica, porque "ambas permitem a construção de textos coesos e coe-rentes", permitindo a elaboração de pensamentos abstratos e variações estilísticas sociais e dialetais. As limitações e alcances de cada uma são fornecidas pelos meios básicos de sua realização, ou seja, som e grafia. ensino da língua portuguesa nos anos iniciais: eventos e práticas de Letramento.

A fala e a escrita representam realidades diferentes da língua que, con-forme Cagliari (1997), estão intimamente ligadas em sua essência, embo-ra tenham uma realização própria e independente nos usos dessa língua. Quando falamos, nem sempre pronunciamos as palavras da mesma forma como as escrevemos. Cabe aqui considerar a questão dos alunos que são imediatamente corrigidos pelo professor, quando usam formas como bar-de, na fala e, consequentemente, na escrita. Pensamos ser necessário refletir sobre alguns pontos fundamentais relativos a esse fato, visto que fato como esse também ocorre na língua Apinayé.

É importante que a atitude do professor alfabetizador diante do aluno que fala diferente da variedade padrão (e que às vezes ou muitas vezes nem

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sequer é a fala padrão da professora) seja a de quem entende o valor cultu-ral e histórico das variedades inguísticas dos falantes indígenas. Partindo disso, conduz o aluno a uma reflexão que lhe possibilita dominar, também, a variedade padrão para usá-la quando necessária. Por isso, é possível, por exemplo, explicar que nas diversas aldeias Apinayé as pessoas também fa-lam de formas diferentes, embora em todas elas escrevam da mesma forma, como é o caso da palavra gutõj que pode ser pronunciada pelos Apenayé, usando-se o som de k para a letra g, assim como em diferentes aldeias Api-nayé a palavra pàtre pode aparecer pronunciada, conforme o uso prove-niente da sua cultura, utilizando-se o som de l para a letra r. Além disso, é importante notar que, na fala, essa palavra, comumente, aparece como pàle, o que não é usado na norma escrita dessa língua. A esse respeito, Franchi (1999, p.180) recomenda que, .em vez de entrar no esquema das .correções da fala, o professor deve reorientar os alunos de uma questão normativa para uma questão de fato: que é interessante descobrir como as palavras podem ser usadas de modos diferentes pelas pessoas.

Identificar com o aluno o valor cultural da variedade usada por ele é fundamental para que, a partir da compreensão de como ocorre o uso da língua, ele possa apropriar-se de mais uma variedade: a padrão que, se-gundo Suassuna (1995), lhe permitirá ter acesso aos bens culturais por ela veiculados. Outro ponto fundamental a considerar é que se o aluno percebe a escrita como transcrição da fala, em casos como o citado acima, um aluno Apinayé ao escrever pàle não comete nenhum erro, uma vez que a grafia corresponde à forma de falar.

Ao referir-se a essa questão, Cagliari (1997, p.31) defende que, se a es-cola distinguisse claramente os problemas de fala dos problemas de escrita, veria essas escritas como escritas de fala e feitas com uma propriedade fo-nética tão grande que chega a ser comovente a consciência que as crianças têm do modo como falam. O autor prossegue esclarecendo que é preciso levar os alunos a perceber que eles não falam de uma única maneira, mas de várias, conforme os dialetos de cada um, e que não é possível que todos escrevam as palavras como as falam, porque isto causaria uma confusão e tornaria a leitura muito difícil entre os falantes de tantos dialetos. Ele asse-vera: se a escrita funciona assim, ninguém está obrigado a ler as palavras de uma única forma. (CAGLIARI, 1997, P. 32).

Para esse autor, a escrita ortográfica é o único uso da língua portugue-sa que não admite variação e é evidente que os alunos devem chegar a do-minar esse uso, porém é preciso que as crianças possam escrever utilizando

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

o conhecimento de que elas dispõem. Isto oportuniza ao professor alfabeti-zador o ensino da distinção entre fala e escrita e lhe possibilita prestigiar a fala e a escrita convenientemente, mostrar as variações dialetais e explicar por que se usa a forma ortográfica convencionada. Se tivéssemos símbolos gráficos únicos correspondentes a cada unidade da fala e se cada símbolo gráfico representasse apenas um fonema, seria muito fácil ensinar a ler e escrever, porém talvez não seria possível organizar a escrita de forma que todos entendessem. Não há uma correspondência termo a termo na relação entre língua falada e língua escrita, o que, de certa forma, a torna mais rica. Há livros para alfabetizar que, segundo Cagliari (1999,) apresentam erros grosseiros de fonética porque confundem fatos da fala com fatos da escrita.

O exemplo citado pelo autor refere-se à interpretação dos valores fo-néticos da letra x em que se pretende distinguir os sons s e ss, quando na verdade eles representam um único som. Outro equívoco apontado por ele é o das propostas de atividades que consideram como sendo a mesma coisa o ba de banho e o ba de batata. Quando a criança está adquirindo a escrita, observa muito a própria fala, porque esta se constitui como única referência de conhecimento já adquirido. Ocorre que os livros ou as cha-madas cartilhas não consideram isso e propõem que os alunos interpretem os fenômenos fonéticos da fala, usando como modelo a forma escrita e não a realidade fonética das palavras. É preciso aproveitar a habilidade que as crianças têm de refletir sobre a própria fala para, explorando a linguagem oral, fazer com que as análises que elas fazem se tornem conhecimentos estabelecidos.

Considerações finais

Neste trabalho, refletimos sobre os aspectos que envolvem a questão da alfabetização indígena Apinayé. Sem a pretensão de esgotarmos tal assunto, visto que a temática abordada é de grande complexidade, julgamos ser im-portante considerar que a aprendizagem da escrita pela criança indígena não se limita apenas ao exercício de grafias, mas também se caracteriza como um momento de abertura e estímulo para que a criança indígena reflita sobre a própria linguagem e atue sobre ela e sobre as formas socializadas de sua representação. Portanto é de fundamental importância que o professor alfa-betizador conheça a realidade lingüística da criança, para que essa abertura aconteça. Assim, a variedade linguística usada por ela deve ser valorizada como ponto de partida para reflexão sobre o funcionamento da língua.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Na verdade é o conhecimento dessa variedade que permitirá ao pro-fessor alfabetizador entender os “erros.”, identificando, através deles, as hi-póteses acerca do processo de alfabetização das crianças indígenas em sala de aula, através de pequenos grupos de alunos trabalhando e elaborando textos feitos por toda a turma, junto com o professor, no quadro, respecti-vamente, para então, ajudá-las a progredir. A maioria desses ”erros” revela ligações possíveis da relação letra e som/fala.

Crianças indígenas que, desde o início, têm liberdade para escrever, da forma como imaginam que seja, acabam alcançando, na escrita, a mes-ma competência e autonomia que alcançaram quando aprenderam a falar. Refletir sobre a linguagem falada, que a criança indígena já domina com segurança, para, a partir disso, ensinar a escrita em língua materna ou em português é, sem dúvida, o caminho mais seguro para o sucesso na alfabeti-zação dessas crianças. É necessário, pois, que se estabeleça uma forte cone-xão entre a oralidade e a escrita, numa relação que marque as especificida-des de cada uma enquanto modos de significação verbal, não apenas com exercícios de transcrição de expressões orais, mas, inclusive, trabalhando com as unidades mínimas da escrita em atividades que as contextualizem e as carreguem de significação, como é o caso das modificações e reorganiza-ções de letras e de palavras.

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93Francisco Edviges Albuquerque

A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

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94 A Aquisição da Escrita pelas Crianças Apinayé de São José

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Educação Bilíngue, Bilinguismo e Interculturalidade no Contexto Escolar Apinayé: o professor de língua materna em Perspectiva1

Severina Alves de Almeida 2 Francisco Edviges Albuquerque 3

Introdução

Quando falamos em bilinguismo imediatamente nos remetemos a ideia de que numa sociedade existem sujeitos com competência para se comunicar em duas línguas. Em relação à interculturalidade, se pressupõe que duas ou mais culturas estão, de alguma forma, se relacionando. Tanto uma situação quanto a outra se imbricam na educação escolar. O diferen-cial está no contexto em que ocorre cada uma dessas manifestações.

A categoria “Escola Indígena”, que baliza nosso estudo, tem no binômio “bilinguismo e interculturalidade” sua mais expressiva identidade. Agregada a essa “Escola Indígena”, se sobrepõe a interculturalidade, considerada por alguns teóricos, por exemplo, Paula (1999), Maher (2006), Grupioni (2006), como condição primordial para que seja respeitada a especificidade da edu-cação escolar indígena, sendo os fenômenos “bilinguismo” e “interculturali-dade” elementos constitutivos dessa educação que pretende ser “diferenciada”.

Com efeito, essa “educação diferenciada” é uma conquista dos povos indígenas brasileiros, garantida por instrumentos jurídicos nacionais e

1Projeto de pesquisa: Interculturalidade e Educação Escolar Apinayé: uma experiência bilíngue nas escolas das aldeias São José e Mariazinha, vinculado ao Mestrado em Língua e Literatura, do PPGL/UFT/ Campus de Araguaína.

2Mestranda e bolsista do Programa do Observatório de Educação Escolar Indígena, vinculado à CAPES/SECAD/INEP.

3Professor Adjunto da Universidade Federal do Tocantins – UFT – Campus de Araguaína, e orientador da pesquisa e coordenador Programa do Observatório de Educação Escolar Indígena, vinculado à CAPES/SECAD/INEP/UFT.

4

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

internacionais e, segundo Grupioni (2001), tem apresentado avanços im-portantes. Para esse autor, a diversidade das culturas e a riqueza de conhe-cimentos, saberes e práticas associadas à educação dos povos indígenas, tantas vezes negada pelo saber hegemônico e pelo poder autoritário, hoje é reconhecida e valorizada, abrindo espaço para o reconhecimento e a acei-tação da diferença e do pluralismo.

Ademais, uma educação que valorize a cultura dos grupos indígenas brasileiros é um direito assegurado pela Constituição Federal do Brasil (CRF/1988) que, em seus artigos 210 e 215 faz alusão ao uso da língua ma-terna, simultaneamente com a língua portuguesa. Esses dispositivos favore-cem a construção de um projeto educativo que se constitua num instrumen-to de valorização da cultura indígena, e não uma imposição dos costumes e saberes concebidos segundo os interesses da sociedade nacional.

Nesse sentido o RCNEI (200) no capítulo que trata dos objetivos da Educação Escolar Indígena, certifica que a educação escolar deve ser um instrumento de afirmação da cultura indígena e também da preparação desses povos para se relacionarem com a sociedade de fora conforme o interesse de cada comunidade. Portanto, a escola indígena deve ser um ins-trumento de preparação de alunos indígenas para que possam fazer cursos universitários e ter domínio sobre saberes da sociedade envolvente para transmitir seu conhecimento e defender seu povo (RCNEI 2002).

A educação escolar, nessa perspectiva, assume o papel de não ape-nas promover a aquisição dos conhecimentos, mas de agenciar o diálogo (Freire, 1997) entre povos de culturas diferentes, assegurando para que os indígenas conquistem a autonomia sobre os assuntos que são relevantes para o grupo e mantenham, com os demais povos brasileiros, uma relação de alteridade.

Tais proposições dão a dimensão da importância que assume esse trabalho que discute o bilinguismo e a interculturalidade tendo em vista o contexto escolar Apinayé, uma vez que a diversidade das culturas ad-mite, em cada contexto, uma situação de bilinguismo com características específicas. O Professor de Língua Materna, isto é, o professor bilíngue das escolas indígenas Apinayé Mãtyk e Tekator situadas nas aldeias São José e Mariazinha estão no centro do estudo.

A “Educação Bilíngue e Intercultural” inicia nossa discussão quando, em diálogo com nossos interlocutores, os teóricos, fazemos um diagnóstico dessa categoria educacional, aprofundando conceitos e formulando conjec-turas, enfatizando, também, as línguas indígenas no geral e a alfabetização

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

bilíngue em particular. Na sequência, a discussão versa sobre o “Professor de Língua Materna”, identificando em suas práticas pedagógicas fatores que promovem a interculturalidade nas escolas estudadas.

Por último, fazemos uma retrospectiva histórica da educação escolar nessa sociedade, focalizando os acontecimentos desde a década de 1960, com o trabalho de Patrícia Ham, até os dias atuais, com as pesquisas desen-volvidas pelo professor Francisco Edviges Albuquerque, que coordena o Projeto de Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultu-ral do Programa do Observatório de Educação Indígena/ CAPES/SECAD/INEP/UFT.

Educação Bilíngue e Intercultural

O que vem a ser uma “Educação Bilíngue e Intercultural”, e como ela se manifesta? Inicialmente é importante que se distinga “bilinguismo” de “educação bilingue”. Para Saunders (1988, p.8) "Bilinguismo simplesmente significa possuir duas línguas". Segundo Quadros (1999) o bilinguismo é uma proposta de ensino usada por escolas que se propõem a tornar acessí-vel à criança duas línguas no contexto escolar. Esse conceito mais geral de bilinguismo é determinado pela situação sócio-cultural e histórico da co-munidade como parte do processo educacional. O bilinguismo atravessa a fronteira linguística e inclui o desenvolvimento da pessoa dentro da escola e fora dela, numa perspectiva sociocultural.

A Educação Bilíngue é aquela que ocorre simultaneamente em duas línguas, sendo uma a língua materna e a outra, uma segunda língua. Dessa forma, a educação indígena Apinayé é bilíngue desde que se efetive um ensino na língua indígena (materna) e em português. Para Harmers e Blanc (2000:189) Apud Megale (2005:24) a Educação Bilíngue pode ser entendida como “qualquer sistema de educação escolar no qual, em dado momento e período, simultânea ou consecutivamente, a instrução é planejada e mi-nistrada em pelo menos duas línguas”. E uma educação intercultural? É aquela que se desenvolve num ambiente onde interagem diferentes culturas ou, segundo Grupioni (2002:87), “é uma educação onde se faz presente a diversidade de culturas e a riqueza de conhecimentos, saberes e práticas a elas associadas”.

Segundo Ouellet (1991), o conceito de educação intercultural designa toda a formação sistemática que visa a desenvolver melhor compreensão das culturas nas sociedades modernas; maior capacidade de comunicação

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

entre pessoas de culturas diferentes; atitudes mais adaptadas ao contexto da diversidade cultural, através da compreensão dos mecanismos psicos-sociais e dos fatores sociopolíticos capazes de produzir racismo; maior ca-pacidade de participar na interação social, sendo esta vista como criadora de identidades e promotora de sentido de pertença comum à humanidade.

Podemos dizer que a educação intercultural, enquanto instrumento que nos ajuda a interferir e a intervir no mundo que nos rodeia, inscreve-se numa perspectiva mais ampla, como é o caso da educação para a cidadania, em que a coesão social aparece associada à valorização da diversidade. As iniciativas que promove correspondem a cinco preocupações e/ou valores: coesão social (procura de uma pertença coletiva); aceitação da diversidade cultural; igualdade de oportunidades e equidade; participação crítica na vida democrática; preocupação ecológica (Ouellet, 2002). Já Banks (1993) define-a como uma ideia, um movimento de reforma educativa e um pro-cesso, cujo objetivo é a mudança estrutural das instituições educativas de modo que os alunos de diversas etnias e grupos culturais venham a ter oportunidades iguais para alcançarem o sucesso escolar. Na medida em que a educação intercultural se constitui como um instrumento para que todos os alunos possam realizar o seu potencial, Banks também a chama de edu-cação para a liberdade. (BANKS, 1993).

Com efeito, quando falamos de educação intercultural, estamos nos referindo a um conjunto de dimensões presente nos múltiplos contextos educacionais que, preferencialmente, devem permear a escola como um todo e a vida social no seu conjunto. Segundo Banks (1993), a educação ou é intercultural ou não é uma boa educação4, de sorte que a interculturalida-de envolve, em última análise, um movimento e um processo de conscien-tização pessoal e de criação de novas oportunidades de inclusão para todos.

Nesse sentido, Henriques et. alli (2007) assinalam que a intercultura-lidade considera a diversidade cultural no processo de ensino e aprendiza-gem e, sendo assim, a escola deve trabalhar com os valores, saberes tradi-cionais e práticas de cada comunidade e garantir o acesso a conhecimentos e tecnologias da sociedade envolvente relevantes para o processo de intera-ção e participação cidadã na sociedade majoritária. Com isso, as atividades curriculares devem ser significativas e contextualizadas às experiências dos estudantes e de suas comunidades.

Outra constatação importante feita por Henriques et. al. (2007), é que

4. Tradução livre disponível http://www.entreculturas.pt. Acesso dia 27-Jul-2010.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

as escolas indígenas se propõem a ser espaços interculturais, onde se deba-tem e se constroem conhecimentos e estratégias sociais sobre a situação de contato e, sendo assim, podem ser conceituadas como escolas de fronteira - espaços públicos em que situações de ensino e aprendizagem estão rela-cionadas às políticas identitárias e culturais de cada povo indígena. Portan-to, a educação escolar indígena problematiza enfaticamente a relação entre sociedade, cultura e escola, reassociando a escola a todas as dimensões da vida social, e estabelecendo novos sentidos e funções a partir de interesses e necessidades particulares a cada sociedade indígena. Assim, a escola in-dígena será específica a cada projeto societário e diferenciada em relação a outras escolas, sejam de outras comunidades indígenas, sejam das escolas não indígenas.

Com efeito, o direito a uma educação intercultural para as socieda-des indígenas é contemplado também na esfera internacional, evidenciado através de instrumentos jurídicos. Sobre isso Grupioni assim se manifesta:

[...] Uma série de instrumentos e convenções internacionais estabeleceram princípios relativos ao reconhecimento ao respeito e à valorização dos modos de vida e das visões de mundo de grupos minoritários que precisam ser reco-nhecidos e levados em consideração pelas políticas públicas voltadas à oferta de programas educacionais em áreas indígenas e pelos técnicos governamentais responsáveis por sua implementação. Conhecer esses instrumentos, estudá-los, compreendê-los e torná-los efetivos como parâmetros que podem subsidiar e gerar novas práticas é tarefa urgente, tanto para os povos indígenas no Brasil quanto para os técnicos governamentais responsáveis por sua proteção e assis-tência. O primeiro passo é conhecê-los (GRUPIONI 2001:91).

Percebe-se, assim, o caráter de política pública que assume a educação ofertada aos povos indígenas, cabendo ao Estado levar a essas comunidades os avanços advindos de pactos e conferências internacionais que contem-plam reivindicações importantes aclamadas por etnias espalhadas mundo afora, promovendo e ratificando um diálogo entre os indígenas das diferen-tes nações e as demais sociedades, ao mesmo tempo em que se exercita a experiência inquietante da alteridade.

Referindo-se às conquistas educacionais alcançadas pelos povos in-dígenas no Brasil, Lopes da Silva (2001) constata que estas são inegáveis. Entretanto, ela admite que existe uma distância considerável separando a escola rural ou missionária e catequética, presente entre os povos indígenas

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ainda no século XX, do reconhecimento oficial e legal da especificidade da escola e da educação escolar indígena, defendidas como necessárias e legi-timamente diferenciadas em relação às demais escolas brasileiras. Segundo a autora, essas conquistas são largamente contempladas em deferentes ins-tâncias legais, pois os povos indígenas brasileiros têm

[...] no plano jurídico, o reconhecimento ao direito, à diferença socio-cultural e à valorização de suas línguas, modos e concepções; no plano político, o surgimento de associações locais ou regionais de professo-res índios, que realizam encontros de trabalho, discussão, reciclagem e revisão crítica de sua atuação. [...] no plano pedagógico, a criação de escolas indígenas autônomas mas reconhecidas pelo sistema nacional de educação, tendo regimento, currículo e pedagogia próprios, defen-didos de acordo com as particularidades de cada situação local, por obra do trabalho de professores e comunidades indígenas, e os cursos específicos de formação de professores índios (LOPES DA SILVA 2001, p.103-4).

Entretanto um aparato jurídico e normativo, por mais abrangente que seja, não é garantia efetiva de uma educação diferenciada, intercultural e bilíngue para as sociedades indígenas brasileiras. Isso porque, em nossa pesquisa com os Apinayé, identificamos que os currículos encaminhados às escolas das aldeias são os mesmos utilizados nas escolas não indígenas e, portanto, descontextualizados de sua realidade. Constatamos também que os professores não índios enfrentam a barreira linguística, tendo que lecio-nar falando numa língua que não é compreendida pela imensa maioria dos alunos. Não bastasse isso, existe o fato de os alunos indígenas serem obriga-dos a se submeter a avaliações externas de abrangência nacional, atendendo às exigências corporativas, consequência das políticas neoliberais presentes em todo sistema educativo brasileiro, mas com maior intensidade no En-sino Fundamental4, comprometendo a interculturalidade, razão de ser das escolas indígenas.

Nessa perspectiva, Lopez e Sichra (2007, p.110) sustentam que a Edu-cação Bilíngue e Intercultural não pode ser entendida como um modelo rígido, que tenha que ser aplicado de forma padronizada. Antes, deve se apresentar como uma estratégia educativa que deve ser adequada e dife-renciada, em sua execução, às características sociolinguísticas e sociocultu-rais dos educandos e de suas comunidades. Sua flexibilidade e sua abertura

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também estão relacionadas com a importância da participação indígena na construção de propostas educativas, especialmente no aspecto cultural. Para isso é preciso incorporar visões e conhecimentos tradicionais e depois estabelecer pontes para o diálogo e a interação com a sociedade nacional, com suas visões e conhecimentos.

Línguas Indígenas e Alfabetização Bilíngue

A década de 1990 veio consolidar os dispositivos da Constituição Fe-deral do Brasil (CFB/1988), quando foi promulgado um Decreto Lei5 que delegou ao MEC - Ministério da Educação - a execução de políticas públi-cas voltadas para a educação escolar indígena em substituição à FUNAI – Fundação Nacional do Índio - órgão responsável pelo setor até então no País. Esse Documento Legal transfere a organização da educação indígena aos Estados e Municípios, a qual passa a figurar nos documentos educacio-nais posteriores: LDB - Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional (1996); PDE - Plano Nacional de Educação (1998) e no RCNEI - Referen-cial Nacional para as Escolas Indígenas (2002).

No tocante à situação linguística no Brasil, ao contrário do que reza o senso comum, nós somos um país multilíngue. O idioma português é ape-nas a língua oficial. Além desta, temos as línguas faladas pelos imigrantes que aqui chegaram para trabalhar na lavoura e também as línguas nativas dos povos que já habitavam essas terras antes da chegada dos europeus6. Segundo Teixeira (2000:291), há pelo menos 200 outras línguas que são faladas pelas famílias brasileiras, de forma regular, como uma segunda lín-gua que se fala em casa, ou às vezes até como primeira língua, por exemplo, espanhol, alemão, italiano, romeno, sírio, krahó, waiâpi, kaingng, tikuna, makuxi, apianyé, etc. As cinco primeiras são línguas trazidas para o Brasil

5. O Decreto Presidencial n° 26, de 1991, atribuiu ao MEC a incumbência de integrar a educação escolar indígena aos sistemas de ensino regular, bem como coordenar as ações referentes a estas escolas em todos os níveis de ensino. Essa tarefa foi, nas três décadas anteriores, atribuída ao órgão tutor, a Fundação Nacional do Índio – FUNAI.

6. O Brasil tem hoje uma população de 270.000 índios remanescentes de uma população que pode ter sido de 6 a 10 milhões!. Este contingente está distribuído entre mais ou menos 200 povos que falam cerca de 180 línguas. Há mais povos do que línguas porque alguns desses povos perderam completamente suas línguas. Outros as mantêm integralmente de forma a atender a todas as suas necessidades. Na verdade, eles só passam a precisar do português no momento em que o contato com o branco se torna obrigatório e sistemático (Teixeira, 2000:296).

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no início da colonização, e as outras seis já eram faladas no Brasil antes da chegada dos colonizadores. Na época em que os europeus chegaram ao Brasil, falavam-se mais ou menos 1500 línguas indígenas, mas atualmente falam-se apenas 180, afirma Grupioni (2001). Para Teixeira (2000), apesar do violento processo de destruição a que foram submetidos, ainda hoje há grupos indígenas que só falam sua língua materna, enquanto há outros que já perderam a língua materna e só falam o português.

Em relação às línguas indígenas no Brasil, Teixeira (2000, p. 296) in-forma que estas se dividem em três troncos já identificados pelos linguis-tas e dois troncos que permanecem sem identificação. Os troncos princi-pais são:

Tupi: com as famílias tupi-guarani, juruna, ariqueme, tupari, mundu-rucu, ramarama e mondé. Estas famílias geraram dezenas de línguas, entre elas tupi, guarani, aveti, cinta-larga, apiacá dos tapajós e purubo-rá. Exemplos de dialetos destas famílias são o tupari, mequém, urucu, aruá e asurini. Macro-jê: com as famílias jê, camacã, maxacali, coroado, cariri e boro-ro. Entre as línguas destacamos timbira, caiapó, pataxó, botocudo, puri e apinayé.Aruaque: com as famílias aruác e aravá que falam, entre elas, as línguas paresi, aruã, maniteri e manauá. Entre as dezenas de dialetos estão o terêna, guaná, apurinã, vainumá, tatu e tapuia. Nos dois troncos ainda não identificados encontram-se as famílias: ca-ribe, tucano, nhambiquara, pano e mura; e as línguas: ianomâmi, sanu-má, pimenteira, paravá, oti e tucumá. Entre os dialetos oriundos dessas línguas estão o pariri, apiacá, vaimiri, txuna, macu, mura, torá, maxubi e canoê.

Ainda de acordo com Teixeira (2000, p.300), o tronco Tupi é o maior e mais conhecido das línguas indígenas brasileiras, mas há o tronco Macro--Jê, o qual é constituído por aproximadamente quarenta línguas agrupadas em mais ou menos 12 famílias. A Autora afirma que os constituintes do Tronco Macro-Jê situam-se principalmente em regiões de campos cerrados que vão desde o sul do Maranhão e Pará em direção ao sul do país passando por Tocantins, Goiás e Mato Grosso, indo até os campos meridionais dos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

No que concerne à alfabetização em língua indígena, seus primeiros

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indícios datam do ano de 1956 quando se instalou no Brasil o SIL, Summer Institute of Linguistics7, que tinha como propósito a conversão dos gentios ao cristianismo e a domesticação das diferenças, conforme Silva e Azeve-do (2000). Para esses autores, não se tratava mais de negar às populações indígenas o direito de se expressarem em suas línguas, mas de “impor-lhes o dever de adotar normas e sistemas ortográficos gerados in vitro que, de resto, nunca funcionam bem” (SILVA E AZEVEDO 2000, p.151).

O que esses autores estão nos relatando é que as línguas indígenas passaram a representar um meio de educação desses povos a partir de valo-res e conceitos “civilizados”, pois ao invés de abolir as línguas e as culturas indígenas, “a nova ordem passou a ser a documentação desses fenômenos em caráter de urgência sob a alegação dos famigerados riscos iminentes de desaparecimento” (Silva e Azevedo 2000, p.151-2), e a diferença deixou de representar um obstáculo para se tornar um instrumento do próprio mé-todo civilizatório.

É notável a conotação política desse tipo de ação, quando se perce-bem intenções de alienação. Porém, esses autores advertem que não se deve esquecer que não por acaso a escola bilíngue do SIL é responsável pelo surgimento de um personagem essencialmente problemático e ambíguo, o “monitor bilíngue, que não é outra coisa senão um professor indígena domesticado e subalterno e é, portanto, muito menos alguém que monito-ra do que alguém que é monitorado por outro, assim como os capitães de areia8" (SILVA E AZEVEDO 2000, p. 152).

Esses autores admitem também, que o modelo de escola bilíngue que utiliza as línguas indígenas como meio de alfabetizar ganharam projeção ainda na década de 1970. Para eles, a defesa pura e simples do Bilinguismo, feita de maneira acrítica, acarreta problemas para os próprios professores e comunidades indígenas, uma vez que alguns professores têm manifestado preocupação com o sentido do termo “bilíngue”, pois este se tornou fre-quente em diversos documentos sobre educação escolar indígena, produ-zidos por entidades indigenistas e mesmo em projetos de leis, muitos deles

7. O SIL é um organismo ligado a uma fundação norte-americana cujo objetivo principal é a tradução da Bíblia em diferentes línguas. No Brasil, desde 1991, se intitula Sociedade Internacional de Lingüística. (Silva e Azevedo, 2000, p. 151).

8. “Capitães de Areia” foi uma figura criada na época do Serviço de Proteção aos Índios, para servir de interlocutor entre a comunidade e o SPI e, posteriormente, a FUNAI. Hoje em dia, em várias regiões do Brasil, as lideranças indígenas se auto-intitulam capitães e, não mais, pelo nome na língua nativa do grupo. (Silva e Azevedo, 2000, p. 152)

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elaborados com a assessoria de especialistas em línguas indígenas. Todavia, Silva e Azevedo (2000, p.153) acreditam que por razões inerentes à própria estrutura social de cada grupo indígena em particular, como, por exemplo, os que habitam o Alto do Rio Negro, onde praticamente toda a população fala mais de uma língua indígena, qual delas deve ser eleita a língua mater-na e qual delas deve ser esquecida, já que bilíngue, no contexto da discussão sobre educação escolar brasileira, sempre quer dizer uma língua indígena e o português.

Ainda de acordo com Silva e Azevedo (2000), outros professores têm preocupação oposta. Se as escolas indígenas devem ser bilíngues, o que fa-zer com as escolas indígenas dos povos que, por razões históricas, falam exclusivamente o português? Segundo esses autores, são muito numerosos os povos que, por força da violência exercida no passado pelas agências da sociedade brasileira, não tiveram alternativa senão o abandono de suas línguas tradicionais (como é o caso de muitos dos povos indígenas do nor-deste). São povos que saíram de uma situação monolíngue em sua língua materna, passaram pelo bilinguismo e se ternaram monolíngues na língua portuguesa. Estes três estágios evidenciam muito bem a situação vulnerável dos povos indígenas brasileiros em relação à situação de contato.

Porém, os indígenas que se tornam monolíngues em português sem-pre enfrentam problemas. Segundo Silva e Azevedo (2000, p.153), um des-ses problemas está justamente no sentido que o adjetivo “indígena” adqui-riu nesse debate, e admitem que a definição da categoria “índio”, com base em critérios culturais, é bastante problemática. “Mas é precisamente uma definição desse tipo que está subjacente à noção de língua indígena, acri-ticamente por um povo indígena e não vice-versa. Portanto, o português pode ser uma língua indígena, como é, por exemplo, o caso de alguns povos do Médio Solimões” (SILVA E AZEVEDO 2000, p.153).

A teoria desses autores nos leva a algumas reflexões pertinentes. Por exemplo: os indígenas brasileiros se sentem estigmatizados, quer pela sua condição étnica, quer pela língua que falam, quer pela posição subalter-na em que se encontram em relação à sociedade nacional, sociedade essa com extratos sociais bem definidos que mais se aproximam de algumas castas da índia do século passado. Por isso, esses povos sempre foram, nos últimos quinhentos anos de sua história, exilados no seu próprio país. Padecem de identidade em todos os seus domínios, sendo a identidade linguística apenas uma delas. Somado a esses fatores, há também a pro-blemática identidade de pertencimento. Por mais paradoxal que pareça,

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esses povos, que paulatinamente vão perdendo o domínio sobre a língua de seus ancestrais, apoderam-se da língua portuguesa, mas esta não lhes pertence. Todavia, essa situação, no mínimo estranha, pode ser enfrentada desde que se invista na edificação de uma educação bilíngue, intercultural e diferenciada.

Um Olhar acerca do Professor de Língua Materna Apinayé

A alfabetização bilíngue, isto é, a aquisição da leitura e da escrita pelos povos indígenas brasileiros, em sua maioria sociedades ágrafas, surge em razão da necessidade de se estabelecer formas de comunicação entre estes e a sociedade nacional, o que requer a formação de professores capazes de sistematizar a transposição da oralidade para a escrita na fronteira étnica, ou seja, exige profissionais com domínio de leitura e escrita das línguas ma-terna e portuguesa. Lopez e Sichra (2007) advertem que é preciso levar em conta a formação desses professores, adequado-a às exigências da educação indígena, com ênfase na recuperação e na sistematização das práticas de criação, geração e construção de conhecimentos das comunidades indíge-nas para, dessa forma, estarem em melhores condições de desenvolver con-teúdos e didáticas interculturais nas diversas áreas do currículo, visando à efetivação de uma educação diferenciada e intercultural.

Devemos considerar, no entanto, que o corpo docente que atende às comunidades indígenas, em grande parte, é formado também por profes-sores não indígenas. Dessa forma, a interação desses professores deve se pautar nos princípios da interdisciplinaridade (Fazenda, 2006), envolvendo todos os agentes que interagem em sua estrutura tanto pedagógica e ad-ministrativa quanto social. Tais proposições devem alcançar áreas como: gestão, organização administrativa, planejamento pedagógico, currículo, avaliação institucional e da aprendizagem, conselhos escolares, participa-ção da comunidade nos assuntos da escola etc.

Grupioni (2003) afirma que o professor bilíngue e intercultural que atua na realidade indígena deve ser formado também como pesquisador. Porém, não só dos aspectos relevantes da história e da sua cultura, mas também dos assuntos considerados significativos nas várias áreas de co-nhecimento. Para esse autor, dessa atividade de pesquisa e estudo podem resultar materiais utilizáveis tanto no processo de formação desse professor como na escola, para o uso didático com seus alunos. Aliás, este é um dos encaminhamentos que daremos ao final de nossa pesquisa com as escolas

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indígenas Apinayé.Com efeito, a expectativa em torno da formação desse profissional

é a de que ele, além de ser professor de sua escola, deve ser também um pesquisador, o que não deixa de ser um grande desafio que envolve, de um lado, investimentos na sua formação individual e específica e, do outro, a comunidade indígena que ele representa. Esta, por sua vez, deve participar ativamente das discussões, dos objetivos e das práticas da escola indígena local, bem como dos programas de formação e qualificação de seus profes-sores. Afinal, uma das excelências da educação intercultural indígena é o envolvimento dos mais velhos e lideranças da aldeia nos assuntos da escola, porquanto estes são figuras centrais na educação de sua população que se dá de forma efetiva também fora da sala de aula, ou seja, na comunidade.

De modo geral, esses processos de formação possibilitam que os pro-fessores de língua indígena desenvolvam competências que lhes permitam atuar, de forma responsável e crítica, nos contextos interculturais e socio-linguísticos nos quais as escolas indígenas estão inseridas. Entretanto, em diversas situações, cabe aos professores que lecionam nessas escolas atua-rem como mediadores e interlocutores da comunidade com os represen-tantes do mundo de fora da aldeia, e com a sistematização e organização de novos saberes e práticas (Grupioni, 2003). Consequentemente compete a esses professores a tarefa de refletir criticamente sobre sua própria forma-ção, criando estratégias para que se promova a interação dos diversos tipos de conhecimentos que se apresentam e se entrelaçam no processo escolar, observando que, de um lado, encontram-se os conhecimentos ditos univer-sais, a que todo estudante, indígena ou não, deve ter acesso e, de outro, os conhecimentos étnicos próprios de seu grupo que, se antes eram negados, hoje assumem importância crescente nos contextos escolares.

Todavia, como temos duas categorias de professores bem específicas atuando nessa realidade, ou seja, o professor de língua materna nativo da aldeia e o professor que não é indígena, é preciso considerar alguns fatores. Primeiro, há o professor indígena que faz parte da comunidade e que domi-na plenamente seu idioma, mas não domina inteiramente o português. Se-gundo, existe o professor que vem de fora o qual, por sua vez, nada sabe da língua falada por seus alunos, conforme observamos em nossa pesquisa nas escolas Mãtyk e Tekator das aldeias Apinayé. Dessa forma, percebe-se que a situação do professor que vem de fora é mais complicada, pois a comunica-ção, fator primordial para que a aprendizagem ocorra, está comprometida. Sendo assim, é imperioso que exista algum planejamento no sentido de

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preencher essas lacunas, ou seja, um intercâmbio entre as escolas indígenas e os órgãos responsáveis pelo monitoramento e avaliação dessas institui-ções, realizando um trabalho de preparação prévia visando à consecução de uma escola que cumpra no mínimo sua missão básica, que é alfabetizar.

Henriques et all (2007) entendem que o perfil profissional a ser bus-cado na formação desse professor corresponda, necessariamente, ao de um ator social que age nas dimensões sociais, políticas, culturais e educativas, considerando a mediação intercultural entre a comunidade e os agentes da sociedade majoritária e vice-versa. Sendo assim, sua formação precisa ser ininterrupta e de qualidade, e a pesquisa deve ser um condicionante para fundamentar sua prática pedagógica, valorizado os saberes tradicio-nais, dialogando com os conhecimentos da outra sociedade, buscando o novo. Esta conjuntura favorece uma reflexão acerca do papel da escola no contexto interétnico vivido pela comunidade, ancorado no compromisso de se transformar a escola em espaço de diálogo intercultural e na difusão do conhecimento sobre os direitos e a valorização da língua e da cultura indígenas.

Portanto, o desafio posto é o de que se estabeleçam diretrizes capa-zes de auxiliar na formação dos professores, num cenário onde interagem contextos sociais e linguísticos tão heterogêneos, como é o caso dos Api-nayé objeto desta pesquisa, na dinâmica de interação entre os professo-res da comunidade e os que vêm de fora, na busca da edificação de uma alfabetização intercultural e bilíngue que atue de forma amancipatória na formação dos alunos, considerando que estes dominam apenas a língua materna e que terão que ser alfabetizados, também, em língua portuguesa. Não obstante, os professores que não são da aldeia precisam transpor a tênue fronteira das intencionalidades postas por duas realidades que va-lorizam aspectos filosóficos, atitudinais e axiológicos tão diferentes, pois os alunos e professores falam línguas diferentes, são de culturas diferentes, mas precisam efetivar um diálogo.

Ao fazer um diagnóstico sobre a educação ofertada aos povos indíge-nas brasileiros, Luciano (2006) constata que o modelo de ensino das esco-las indígenas no país atualmente reproduz o sistema escolar da sociedade majoritária e que normalmente as diretrizes, os objetivos, os currículos e os programas são inadequados à realidade das comunidades indígenas. “O material didático-pedagógico utilizado é insuficiente e inadequado, preju-dicando as ações educativas” (Luciano, 2006, p.134). Esse mesmo autor ad-mite a inexistência de supervisão pedagógica adequada e eficaz nas escolas

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das aldeias, e que as atividades educacionais são prejudicadas diante da di-ficuldade de se fixar os professores nas comunidades, agravada pela falta de programas de formação de professores indígenas locais. Além disso, “preci-sa-se enfrentar a barreira linguística, pois os professores encontram sérias dificuldades no desenvolvimento de seus trabalhos didático-pedagógicos e, consequentemente, o processo de alfabetização é prejudicado” (LUCIANO 2006, p. 135).

Com efeito, o bilinguismo se caracteriza por ser um processo vincula-do às práticas sociais da comunidade; práticas de preservação e manuten-ção da língua indígena, na medida em que possibilita o seu desenvolvimen-to, contribuindo para a sua permanente afirmação e para o reconhecimento étnico diante da sociedade não indígena. Nesse sentido, consideramos primordial a construção de um projeto escolar que potencialize uma edu-cação diferenciada, bilíngue e intercultural, a ser construída na realidade educacional da sociedade Apinayé, valorizando o trabalho dos professores, tanto os de língua materna quanto os que vêm de fora, numa ação coorde-nada, favorecendo o trabalho interdisciplinar, edificado por bases sólidas, construídas na convivência com a diferença, sobretudo com respeito a esta diferença.

Os Apinayé e a Educação Escolar

Os Apinayé pertencem ao Tronco Linguístico Macro-Jê e à Família Linguística Jê que habitam nas terras Apinayé, uma área indígena demarca-da pelo decreto 90.960 de 14/02/1985, com extensão de 141.904 ha. Nestas terras, existem 24 aldeias, situadas no norte do Estado de Tocantins, nos municípios de Tocantinópolis, Maurilândia, lagoa do São Bento e Cacho-eirinha, localizados na região do Bico do Papagaio. Segundo Albuquerque (1999, p.20), “antes da demarcação da área Apinayé, os indígenas eram dis-tribuídos apenas em duas aldeias, São José e Mariazinha. Porém, após a demarcação, eles se distribuíram pelo território, formando novas aldeias e, deste modo, passando a ter um maior controle sobre a área”.

Para esse autor, o nome da comunidade foi citado pela primeira vez na forma de pinarés e pinagés, passando, posteriormente, para Apinayé. Nimuendajú (1983, p.3) Apud, Albuquerque (2007, p. 25), afirma não ter nenhuma explicação para esse nome, de sorte que o sufixo pessoal -yé, das línguas Timbira orientais, soa no próprio Apinayé como ya. Todavia,

[...] Há uma hipótese de que o nome tenha sido dado pelos Timbira,

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não sendo, portanto, uma autodenominação primitiva dessa tribo. Além do nome tribal Apinayé, existem outros - tanto na própria co-munidade como entre os Timbira Orientais - derivados da palavra que significa “Canto” ou “Pontal”. Apinayé: “ôd”, “ôdo”; Timbira oriental: “hot”, “hôto”, referindo-se à sede no pontal formado pelos Rios Ara-guaia e Tocantins. Os próprios Apinayé usam a forma “ôti” para Pontal Grande; os outros Timbira usam “hôti Ahôtiyé”. Os Kayapó Setentrio-nais, porém, referem-se aos Apinayé, usando o termo “Ken-tug”, que significa pedra preta ou serra negra (ALBUQUERQUE 2007, p.25).

No tocante à integração dos povos Apinayé à sociedade envolvente, Albuquerque assim se manifesta:

[...] Os índios Apinayé começaram a ser integrados à história do Brasil com a ocupação do sertão nordestino e com a intensificação da nave-gação do rio Tocantins. A ocupação do sertão do Maranhão, da Bahia e do Piauí é conseqüência da criação extensiva de gado que, no período Colonial, servia para alimentar as populações dos engenhos litorâneos. Esse gado, porém, avançou pelos sertões até chegar ao sertão goiano, atual Tocantins, na região onde se achavam os índios (ALBUQUER-QUE 1999, p.8).

Segundo Nimuendajú (1983, p.1), os Apinayé consideram sua tribo uma ramificação dos Timbira, a leste do Tocantins (Rio) e, em particular, dos Krikati – Caracaty – conhecidos nesse meio por Makráya, sendo que o território da tribo se localizava entre o Rio Tocantins e o Baixo Araguaia, estendendo-se para o sul, ultrapassando possivelmente esses limites pelo lado do Noroeste. Esse autor informa que a tradição Apinayé não confirma se essa zona por eles ocupada teve anteriormente outros habitantes, porém são unânimes em afirmar que a noroeste da aldeia Gato Preto encontram-se muitos fragmentos, o que comprova que este lugar foi povoado por índios de outra cultura, sendo mesmo utilizados tais fragmentos para a fabricação de rodas de fuso pelos Apinayé. Sendo assim,

Os primeiros civilizados a alcançar essas alturas foram os jesuítas Pe. Antônio Vieira, Francisco Velloso e Manuel Nunes, que, entre 1633 e 1658 empreenderam quatro entradas, Tocantins acima, a fim de des-cerem índios para além da boca do Araguaia. A entrada do P. Manoel,

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realizada com 450 índios das missões e 45 soldados, no ano de 1658, foi além de 6º. de latitude sul, portanto, precisamente, até o território dos Apinayé. Porém, nenhuma das indicações, extremamente escassas, sobre os índios encontrados – sobretudo Tupinambá e depois Inhey-guara (ou Potiguara?) – faz supor que tivesse encontrado os Apinayé ou alguma tribo aparentada (NIMUENDAJÚ 1983, p.1):

Nesse sentido, o contato dos Apinayé com a sociedade não indígena, descrito por Nimuendajú, compreende o período que vai desde os primei-ros contatos com o não índio, ou seja, 1633 até 1932 quando ele descreve sua última jornada nas terras habitadas por esse grupo imdígena. Entre-tanto, os contatos entre índios e não índios deu-se pelas missões religiosas quando o poder colonizador buscava, por meio da religião, cooptar os na-tivos para servirem aos seus interesses de mão de obra escrava, e o que su-cede é o extermínio de populações inteiras não apenas em terras brasileira, mas em todo continente americano.

A Educação Escolar Apinayé

A educação indígena no Brasil tem seus indícios ainda no século XVI, quando se efetivou a posse das terras conquistadas pelos europeus, sendo que em 1549 os Jesuítas iniciaram o processo de catequese visando à conver-são dos nativos ao cristianismo, ou mesmo ao seu aliciamento para o traba-lho escravo. Entre os Apinayé, a educação escolar só é introduzida no ano de 1962 quando Patrícia Ham e mais duas colaboradoras Helen Waller e Linda Koopman (1979) visitam essa sociedade indígena e lá se instalam por seis meses, estudando seus aspectos sociolinguísticos e produzindo os primeiros materiais didáticos e pedagógicos sobre a educação e língua Apinayé.

Entretanto deve-se fazer uma distinção entre educação indígena e edu-cação escolar indígena. Meliá (1979) Apud Henriques et. all (2007) eviden-ciou, nos processos de aprendizagem de diferentes povos, uma dimensão ignorada pelas políticas assimilacionistas que não reconheciam os padrões de transmissão dos conhecimentos tradicionais para a formação de jovens e crianças de acordo com suas concepções sobre sociedade e formação da pessoa humana. Para esses autores, as práticas socializadoras da comunida-de, em diversificados momentos, por meio de diferentes personagens e ao longo de toda a vida são educacionais por natureza, se valem da oralidade e têm estratégias próprias. A essa atividade, a educação escolarizada foi im-

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posta intentando substituir e neutralizar esses processos de formação.Nessa perspectiva, percebe-se que um dos fundamentos da educação

escolar indígena é a valorização dos saberes e práticas culturais próprios da comunidade indígena, o que também é identificado pelo RCNEI – Re-ferencial Nacional da Educação Indígena (2002), ao reconhecer que essas sociedades possuem sua sabedoria para ser comunicada, transmitida e dis-tribuída por seus membros, de sorte que se apresentam mesmo como valo-res e mecanismos da educação tradicional dos povos indígenas que podem e devem contribuir na formação de uma política e práticas educacionais adequadas.

No tocante às escolas Mãtyk e Tekator, estas estão vinculadas à DRET – Delegacia Regional de Educação de Tocantinópolis - que supervisiona estas escolas e é responsável pela avaliação dos trabalhos. Estas unidades escolares, por estarem localizadas nas duas aldeias mais importantes, a São José e a Mariazinha, têm sob sua responsabilidade as escolas de outras al-deias Apinayé, funcionando mesmo como “escolas sede”. A escola Mãtyk da aldeia São José tem instalações modernas e uma arquitetura que contrasta com o ambiente e mantém sob sua coordenação as escolas das aldeias Aba-caxi, Palmeiras, Patizal, Bacabinha, Prata, Serrinha e Boi Morto, sendo que a escola sede atualmente tem 416 alunos matriculados no Ensino Funda-mental e Médio, mas somando as outras escolas, o total chega a 500. Nestas escolas os alunos falam a língua materna e português e são alfabetizados, também nas duas línguas, visto que os professores são bilíngues em língua indígena e Português. No entanto existem classes multisseriadas no 1º e 2º anos e também no 5º e 6º anos. Segundo Maher,

[...] A multisseriação é um fenômeno muito presente nas escolas indí-genas. Porque as comunidades são pequenas, suas escolas têm poucos professores e alunos e, portanto, em uma mesma sala de aula, têm-se, fre-qüentemente, alunos de faixas etárias e níveis de escolarização diferentes e competências variadas. O que eu tenho observado é que a sala de aula multisseriada não chega a ser um problema tão dramático para os pro-fessores indígenas como o é para a maioria de nós. Os professores indíge-nas parecem saber lidar melhor com isso. Eles dão uma atividade para os pequenininhos e aí vão trabalhar um pouco com os alunos mais adianta-dos; aquele que já acabou a tarefa espera, pacientemente, sua vez de ter a atenção do professor, na maior parte das vezes desenhando. Impressiona ver como tudo é feito com muita calma, muito vagar, sem estresse. Aliás,

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se há uma coisa que parece caracterizar o cotidiano das escolas indígenas - pelo menos as com as quais estou familiarizada - é que nele há muito menos estresse do que nas nossas (MAHER 2005, p. 94-95).

Não há como não concordar com essa autora. Ao observarmos os professores das escolas Apinayé em suas atividades, testemunhamos aulas com duas turmas diferentes. Lembramos de um dia em que a professora do primeiro ano juntou na mesma classe alunos do segundo e do terceiro anos totalizando 45 alunos. Chamou-nos a atenção o fato de a professora conduzir as atividades com tranquilidade. No final da aula, a avaliação, que consisti em reproduzir o que tinham apreendido por meio de um texto que tanto poderia ser escrito como desenhado, cuja atividade podia ser desenvolvida em duplas, causou certo entusiasmo entre os alunos. Todos chamavam a professora ao mesmo tempo, mas sem nenhum tumulto. E ela, pacientemente, a todos atendia sem se aborrecer. Percebemos que a dinâmica da ação docente numa sala de aula Apinayé é bem diferente da escola não indígena. As crianças interagem com maior entusiasmo diante das atividades propostas pela professora, visto que demonstram um grande interesse em aprender algo novo.

Sobre esta e outras funções específicas da escola indígena, Maher reto-ma a discussão da citação anterior dizendo que numa escola indígena

O estresse, quando ocorre, vem de cobranças de fora: culturalmente insensíveis, alguns técnicos de secretarias de educação pressionam os professores indígenas pelo "cumprimento do programa", por exemplo, sem considerar que os princípios da pedagogia indígena estão assen-tados em outra noção de tempo de ensino e tempo de aprendizagem. Em outras ocasiões, a cobrança refere-se ao cumprimento do “ano leti-vo”. Ora, o modelo de escola indígena pressupõe, entre outras coisas, a construção de um calendário escolar culturalmente específico: em épo-ca de colheita e dos rituais a ela associados, por exemplo, as atividades têm que ser interrompidas na escola de modo a permitir que os alunos possam acompanhar os adultos nessa importante esfera de socializa-ção. (MAHER 2005, p. 95).

Evidentemente a educação nas aldeias indígenas está associada à ca-tegoria tempo em todas as suas fases. As escolas precisam se adaptar ao cotidiano da comunidade, e os programas educacionais ter um calendá-

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rio que considere os aspectos sociais e as manifestações culturais de cada povo. Deve-se, igualmente, estar atento à dinâmica sazonal, observando as estações da chuva, pois esse é um momento em que a comunidade se mobi-liza para plantar, o que requer a disponibilidade e o comprometimento de todos. O momento da colheita também deve ser contemplado no planeja-mento desse calendário.

Outros momentos que não podem ser negligenciados são aqueles de-dicados aos rituais ligados ao universo cosmológico dos indígenas. Nesse momento, os mais velhos transmitem para os mais jovens os valores que por gerações são preservados. Essa é uma das faces do processo educa-cional que esses povos desenvolveram em sua história e que deve ser in-corporada à educação que a escola promove. Uma educação intercultural, bilíngue e diferenciada, atenta às singularidades do povo a quem ela se des-tina, promotora da unidade e de uma convivência harmoniosa em meio à diversidade. É esse tipo de educação que as escolas Apinayé se propõem a realizar.

Assim como a escola Mãtyk da aldeia São José, a Escola Tekator da aldeia Mariazinha funciona como “sede” de outras escolas em outras al-deias, tais como Bonito (Tankak); Riachinho (Pemenhoryk); Botica (Pe-pkro); Girassol (Kokre); Mata Grande (Extensão da Pepkro); Barra do Dia (Extensão da Tekator). No total estas sete escolas atendem 268 alunos no Ensino Fundamental e Médio. As condições físicas dessa escola são bem precárias. O prédio da escola possui quatro – e os professores precisam im-provisar classes no pátio da escola. Mesmo assim, os professores de língua materna ministram as aulas bastante contextualizadas, considerando os aspectos culturais Apinayé. Constatamos esse fato, ao presenciarmos uma atividade pelo entorno da aldeia – na mata e no ribeirão - com três turmas, simultaneamente. Ali os professores, calmamente, ministravam uma aula onde se discutia Ciência, Matemática, Geografia, Língua Materna e Língua Portuguesa.

Naquele momento, o tema em estudo variava entre pássaros, plantas e algum animal que passava no local. Interessante frisar que a aula acontece num clima de descontração e quase lúdica. Nesse período do ano, as plan-tas estão florindo e muitas abelhas e formigas estão “trabalhando”. Os pro-fessores aproveitam esse “laboratório a céu aberto” para realizar uma aula que realmente tenha significado no cotidiano de cada uma daquelas crian-ças. Elas aprendiam matemática, apanhando e contando cocos babaçu que estavam num saco para ser comercializado na Cidade de Tocantinópolis.

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Além desses conhecimentos, aprendem outros como Geografia, Ciências e Conhecimentos sobre o Meio Ambiente quando o professor explica que determinada planta é nativa da região e não é encontrada no “sul”, mencio-nando os quatro pontos cardeais. Ou ciências, diante de algumas abelhas que, ao colherem o néctar das flores em plantas rasteiras são alcançadas pelas crianças e pelos professores que aproveitam para explicar que a abelha “é um “inseto invertebrado”, e conceitua isso tanto em Apinayé quanto em português. No entanto, para as crianças, aquilo que parece ser pura diver-são é ao mesmo tempo, um grande aprendizado.

O retorno à sala de aula é também um momento muito especial. Mui-to animadas, as crianças produzem textos com ilustrações onde constam plantas, flores, insetos. Tudo transcorre num ambiente descontraído e os alunos insistem em “ver” o que os outros desenham o que para elas é mo-tivo de muita risada. São desenhos onde se percebe a capacidade criativa de cada criança, ao mesmo tempo em que se constata que as aulas numa escola indígena podem ser bem prazerosas. É o lúdico em ação, aspecto tão defendido por teóricos como Piaget (1971) e Vigotsky (1982).

Quanto ao aspecto pedagógico das brincadeiras das crianças indíge-nas e sua aprendizagem das coisas que são da escola, pudemos constatar sua relevância ao desenvolvermos uma pesquisa com as crianças Apinayé9 nas escolas Mãtyk da aldeia São José e Tekator da aldeia Bonito. Ali com-provamos que as brincadeiras, mesmo quando são utilizadas como práti-ca pedagógica requerem atividades “sérias”, sem perder o teor lúdico. E é nesse intercâmbio, onde brincadeira e seriedade se fundem, que reside o teor pedagógico do ato de brincar. Segundo Nunes (2002a), as atividades lúdicas realizadas no âmbito da educação escolar indígena são atividades produtivas e para as crianças são de verdade, ou seja, elas as desempenham utilizando instrumentos de verdade e o resultado final também é verda-deiro, uma vez que tudo é permeado por um significado real e tem uma aplicação concreta. Entretanto, o fato de ser tudo de verdade não impede a presença do componente lúdico, ainda que, por vezes, esteja dissimulado pela responsabilidade que também é preciso assumir.

O que apreendemos na pedagogia dos professores que se deslocam com seus alunos mata adentro para realizar uma aula significativa para eles

9. Projeto de Pesquisa de Iniciação Científica PIVIC/CNPQ/UFT “Educação, Cultura, Infância e Ludicidade: Um Estudo da Cultura Apinayé”, desenvolvido entre agosto de 2008 e julho de 2009 e publicado nos anais do V Seminário de Iniciação Científica UFT Palmas: 2009.

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é que, ao serem instruídos enquanto profissionais formados nas escolas não indignas, são “obrigados” a seguir um currículo no qual não tiveram ne-nhuma participação. Esses professores fazem uso de elementos intrínsecos da aldeia, dialogando com elementos da sociedade não indígena para, a partir daí, fazerem uma aula realmente contextualizada. Segundo Maher (2005), como a escola concebida nos padrões ocidentais entra nas aldeias em decorrência do contato com o outro, com os não índios, a questão da interculturalidade, isto é, “do conseguir fazer dialogar comportamentos e conhecimentos construídos sob bases culturais distintas e frequentemente conflitantes, é atualmente entendida como o esteio, a razão de ser da escola indígena” (MAHER 2005, p. 94).

Para essa autora, o desafio posto pela interculturalidade não pode, nesse contexto, ser entendido como um enriquecimento, como um bônus - como parece ser o caso na maior parte das escolas não indígenas - porque o investimento no estabelecimento do diálogo intercultural é o alicerce, é o que justifica mesmo a existência dessa escola, é o que dá a ela relevân-cia política. Ainda refletindo junto com Maher (2005, p. 94) perguntamos: será que em um mundo tão globalizado como o de hoje, as escolas não indígenas – principalmente aquelas dos grandes centros urbanos - também não deveriam adotar mais categoricamente a interculturalidade como tema transversal, para melhor preparar nossas crianças e jovens para o sempre difícil encontro com o outro, com o diferente, com a alteridade?

Não obstante o currículo das escolas Apinayé ser reproduzido pela SEDUC/ e ser o mesmo das escolas não indígenas, a interculturalidade e o bilinguismo são práticas pedagógicas presentes nas ações dos seus profes-sores nos anos iniciais do ensino fundamental. Isso porque existe um ma-terial de apoio pedagógico confeccionado pelos próprios professores, sob a coordenação do Professor Francisco Edviges Albuquerque, contemplan-do Matemática e Ciências Apinayé, História e Geografia Apinayé, Livro de Narrativas e Cantigas Apinayé, Revista de Medicina Tradicional Apinayé e um Livro de Alfabetização muito bem contextualizado. Ademais, Albu-querque tem se dedicado ao estudo da língua Apinayé, considerando os seus aspectos sociolinguísticos, fonéticos e fonológicos10, sendo mesmo uma referência sobre estudos indígenas no Estado do Tocantins11.10. Mais informações podem ser obtidas eu sua tese de doutorado “Contribuição da

fonologia ao processo de educação indígena apinayé” / Francisco Edviges Albuquerque/ – 2007 disponível: www.uff.edu.br.

11.Além dos livros de apoio pedagógico à educação Apinayé organizados e coordenados pelo

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Os livros organizados pelos professores Apinayé, sob a coordenação do Professor Albuquerque, e utilizados como material de apoio para os as aulas nos anos iniciais do Ensino Fundamental apresentam, além da boa qualidade de seus textos, uma expressiva contribuição para a educação es-colar Apinayé. Ao folhear os livros, nos deparamos com uma sequência de desenhos temáticos os quais enriquecem seu conteúdo, sendo estes de-senhos de autoria dos professores e também de outras pessoas da aldeia. Essa produção, de excelente qualidade, revela o talento de um povo que, em razão da estigmatização e do preconceito com que tem lidado, surpreende pela criatividade, aptidão e capacidade de se expressar também através da arte e da cultura, mesmo que isso, na maioria das vezes, não tenha o reco-nhecimento que merece por parte da sociedade não indígena.

Nesse sentido, acreditamos que as metodologias próprias dos profes-sores bilíngues Apinayé são o diferencial em seu fazer pedagógico. Acio-nam mecanismos que favorecem intervir na complexa situação que envolve a proposta de uma educação escolar intercultural, bilíngue e diferenciada, que existe numa região fronteiriça de duas culturas tão distintas (Apinayé x Não Indígena), e transpõem as barreiras linguísticas. Estes professores estão conseguindo superar suas próprias imanências12, na dinâmica da sala de aula, no fazer pedagógico contextualizado, na busca por uma educação que seja realmente significativa para os alunos indígenas, na sua capacidade de superação de obstáculos muitas vezes intransponíveis. Fatos como esses justificam a qualidade dos trabalhos desenvolvidos pelos professores Api-nayé nas escolas de suas aldeias.

Considerações Finais

Neste artigo foi discutida a Educação Indígena no contexto Apinayé, ora denominada Educação Bilíngue e Intercultural. O texto faz alusões à interculturalidade, ao bilinguismo, da alfabetização bilíngue e aos profes-sores indígenas. Tudo isso contextualizado na realidade vivenciada pelos Apinayé das aldeias São José e Mariazinha, as quais são analisadas pela or-

Professor Francisco Edviges Albuquerque ele publicou também um livro de português intercultural. Atualmente, ele tem três livros aceitos pelo MEC – Ministério da Educação – para publicação ainda em 2010.

12.O significado de imanência a que nos referimos está vinculado ao contexto da teoria de Kant do conhecimento de imanência significando “manter nos limites da experiência dentro do possível”.

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ganização social e política dessa sociedade. O estudo se reporta sistematica-mente aos aspectos educativos, socioculturais e linguísticos, considerando a obrigatoriedade de que os alunos indígenas devem ser alfabetizados em sua língua materna e no português enquanto segunda língua.

Apesar de o texto estar vinculado a um projeto de mestrado que está em fase de execução, os resultados apresentados, são também conclusivos. Conclusivos não no sentido de que a pesquisa já esteja pronta, mas por tra-zerem reflexões que abordam fatos comprovados, mediante nossa pesquisa no campo e pela contribuição dos dados coletados até então.

Ao longo do texto evidencia-se que a Educação Bilíngue e Intercultu-ral é uma realidade na sociedade Apinayé, visto que professores se desdo-bram no sentido de fazer com que as aulas sejam significativas para os es-tudantes. Apesar das adversidades visivelmente presentes nas formas como são “recebidos” os currículos e o material didático oficial, as escolas Mãtyk e Tekator, através de seus professores bilíngues, apresentam alternativas, pois utilizam um material de apoio pedagógico concebido por eles mesmos com a participação de outros habitantes da comunidade. Nesse material são intercalados elementos da cultura Apinayé e da língua portuguesa, evi-denciando a preocupação em se edificar uma aprendizagem que atenda aos pressupostos da interculturalidade.

Constatamos, também, que as aldeias São José e Mariazinha apresen-tam peculiaridades bem significativas, confirmando opiniões de alguns teó ricos, Grupioni (2001; 2003), Lopes da Silva (2000; 2001), Nunes (2002ª; 2002b; 2002c; 2003), Albuquerque (2007), entre outros, que corroboram a heterogeneidade dos povos indígenas. Para esses autores, os membros de uma mesma sociedade, desde que vivam em aldeias diferentes, podem apresentar comportamentos distintos e diferenças importantes. E isto foi possível identificar nas duas aldeias onde se localizam as escolas objeto do estudo, o que nos faz concordar com esses autores que são unânimes ao admitirem que um dos sérios problemas do nosso sistema de ensino é tra-balhar com a concepção de uma única nação indígena, como se entre esses povos não houvesse nenhuma diferença.

No tocante às aldeias em estudo, é visível que na São José, os indígenas continuam preservando muitos aspectos da cultura indígena, presentes na confecção de artesanatos, na pintura corporal e na língua materna, que é falada por toda a comunidade. As crianças nos primeiros anos são mono-língues em língua materna. Os mais velhos, muito embora falem o portu-guês com alguma facilidade, na intragrupos só se comunicam em língua

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indígena. Os jovens que dominam o português priorizam a língua materna em suas conversações. Já na aldeia Mariazinha, a realidade sociolinguística é bem diferente Os aspectos socioculturais da sociedade não indígena aos poucos vão se incorporando aos domínios sociais que antes eram apenas ocupados pelos Apinayé. Certos rituais, confecção de artesanato e pinturas não são mais praticados nas aldeias pertencentes a essa aldeia. As crianças adquirem o português desde cedo, principalmente as filhas de casamentos mistos, resultado da união entre casais Apinayé e não indígenas.

Com base nesses pressupostos, acreditamos que não é apenas fator im-perativo, mas urgente e necessário, que se desenvolvam projetos de educação escolar bilíngue, voltados para a manutenção, revitalização da língua e da cultura Apinayé, através de projetos capazes de efetivar a interculturalidade enquanto prática pedagógica escolar, voltada para o fortalecimento das rela-ções entre os Apinayé da aldeia Mariazinha e a sociedade envolvente.

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121Severina Alves de Almeida, Francisco Edviges Albuquerque

A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

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Letramento Literário na Escola Indígena Tekator da Aldeia Apinayé Mariazinha: uma análise introdutória1

Severina Alves de Almeida 2Francisco Edviges Albuquerque 3

Introdução

Atualmente o sistema educativo brasileiro e suas instituições travam um embate contundente na busca de mecanismos que favoreçam a emer-gência de uma escola onde se formem não apenas alunos alfabetizados, mas letrados. E por alunos letrados entendemos aqueles que se apropriam, de forma intencional e crítica, das teorias e práticas que constituem as di-ferentes áreas do conhecimento e delas fazem uso, numa concepção inter-disciplinar, tais como letramento em matemática, letramento em ciências, letramento em leitura4 e, mais recentemente, o letramento literário. Segun-do Cosson (2006:23) “o letramento literário é uma prática social e, como tal, responsabilidade da escola”.

No cerne das teorias que tratam da literatura, do letramento em lei-tura e do letramento literário escrevemos este artigo, o qual dialoga com a

1. Trabalho vinculado ao Projeto de Dissertação de Mestrado “Interculturalidade e Educação Escolar Apinayé: uma experiência bilíngue nas escolas das aldeias São José e Mariazinha”, UFT/CAPES/SECAD/INEP-2010-2011.

2. Mestranda do MELL – Mestrado em Língua e Literatura do PPGL – Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Tocantins, Campus de Araguaína e bolsista do Programa do “Observatório de Educação Escolar Indígena” CAPES/SECAD/INEP.

3. Professor Adjunto da Universidade Federal do Tocantins – UFT – Campus de Araguaína, e orientador da pesquisa.

4. O letramento em Leitura é definido como o uso e compreensão de textos escritos e como reflexão sobre os mesmos, com vistas a alcançar objetivos pessoais, desenvolver o conhecimento e potencial individuais visando à participação plena na vida em sociedade. (RELATÓRIO PISA, 2001:29)

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

arte, a estética, a estesia e, mais acentuadamente, com a poesia. Tudo isso associado à educação escolar bilíngue e diferenciada, estando situada no âmbito da interculturalidade, na realidade específica da comunidade indí-gena Apinayé.

No tocante ao letramento em leitura, este se apresenta, segundo Ciola (2008) como a base para o desenvolvimento do ser humano e sua indi-vidualidade, notadamente por seu papel decisivo na aquisição autônoma de conhecimentos e enquanto cidadãos, pois viabiliza sua participação na moderna sociedade do conhecimento e da informação. Já em relação ao letramento literário, este ocorre quando se tem contato com uma obra lite-rária, oral ou escrita, poesia ou prosa, ocorrendo um processo de interação entre o sujeito–leitor e o objeto–obra literária, de modo que, por meio da experiência estética e da fruição, ocorra uma transformação que possa ser traduzida em estesia.

Este trabalho tem por objetivo fazer um estudo sobre o ensino de lite-ratura na Escola Indígena Tekator da aldeia Apinayé Mariazinha. Buscamos identificar na ação docente e na produção escrita dos alunos, elementos que possam caracterizar o “letramento literário”, na concepção daquilo que determinam as Orientações Curriculares do Ensino Médio, ou seja, o “es-tado ou condição de quem não apenas é capaz de ler poesia ou drama, mas dele se apropriar efetivamente por meio da experiência estética, fruindo-o” (BRASIL, 2006:55).

Metodologia: Uma proposta Transdisciplinar

Transdisciplinaridade, conforme Nicolescu (2008), diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disci-plinas e além de qualquer disciplina, sendo seu objeto de estudo a compre-ensão do mundo presente, para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento. Nessa perspectiva, situamos a proposta metodológica deste trabalho numa concepção transdisciplinar, atendendo aos pressupostos da pesquisa qualitativa (André, 2000), etnográfica (Cardoso, 2009), e pesquisa participante (Brandão, 1982); (Ezpeleta e Rockell, 1989), respectivamente.

Priorizamos a etnografia com observação participante desde que estes procedimentos permitam investigar um fenômeno dentro de seu contexto real, observando-o, mas nele não interferindo diretamente. Não obstante, este tipo de pesquisa tem um forte cunho descritivo, no qual o pesquisa-dor não pretende intervir sobre a situação, mas dá-la a conhecer, tal como

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

ela lhe surge, podendo utilizar vários instrumentos e estratégias. Entre-tanto, tais procedimentos não precisam ser meramente descritivos. Antes, podem ter um profundo alcance analítico, podendo interrogar a situação, confrontando-a com outras já conhecidas e/ou com as teorias existentes. Pode, também, ajudar a gerar novas teorias e novas questões para futura investigação.

Em relação ao corpus investigado, este incidiu sobre três professores que lecionam a disciplina de Literatura e cinco alunos do Ensino Médio da Escola Indígena Apinayé Tekator. Quanto aos professores, buscamos inves-tigar como ocorre a didática nas aulas de literatura. Para a coleta dos dados, utilizamos questionários sociolinguísticos e entrevistas. No que se refere aos alunos indígenas, além da aplicação de um questionário, são feitas con-siderações sobre alguns textos no gênero poesia, os quais foram produzidos visando à participação num evento cultural promovido pela própria comu-nidade e com a participação de indígenas de outras aldeias, sendo que um destes poemas foi contemplado com o primeiro lugar.

A escolha dos professores deu-se em função de serem os únicos que lecionam a disciplina de literatura na escola. Já os alunos foram indicados pelos professores por se destacarem nas avaliações de produção de texto e são considerados “escritores” de poesias. Com efeito, esse material servirá como objeto de análise do fazer docente no que diz respeito ao conheci-mento de literatura, assumindo, portanto, um caráter diagnóstico, visando a identificar na atividade dos professores e no desempenho dos alunos, ele-mentos que possam ser interpretados como letramento literário.

Fundamentação Teórica: Diálogos Literários

Tendo em vista uma tradição que vem desde os tempos da Grécia An-tiga, a literatura é vista como útil tanto para ensinar a ler como para escre-ver, favorecendo a formação cognitiva, intelectual e cultural do indivíduo, tornando-o pleno. Portanto, a seguir, promovemos um diálogo com nossos interlocutores, os teóricos, formulando conceitos e estabelecendo conjectu-ras acerca da literatura enquanto arte e suas variantes, a estética e a estesia.

Nesse sentido, indagamos: O que é literatura? Como defini-la? O que são arte, poesia, estética, estesia? O que é letramento? O que é letramento literário? Como aplicar seus conceitos na consecução de uma educação que privilegie a formação dos indivíduos “letrados”? Responder coeren-temente a esses questionamentos não é tarefa fácil. Todavia podemos con-

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

jecturar que literatura é, acima de tudo, arte. E que poesia é literatura e, por conseguinte, arte. E que enquanto arte, pertence à esfera da estética. Não obstante, arte e estética são termos polissêmicos, não sendo possível definições conclusivas. Nessa área os conceitos ainda são muito fluidos, mas, mesmo assim, é possível identificar algumas características básicas.

Luft (2008) nos auxilia ao sustentar que, se a literatura é uma arte, então, muito mais que uma atitude contemplativa, ela provoca uma frui-ção estética em que não só o belo e o prazer tranquilo e sereno têm lugar, mas, também, o incômodo e o desconforto oriundos de uma experiência impactante, engendrando processos internos extremamente salutares e ca-tárticos, que possibilitam a elaboração e (re)elaboração do sujeito, de sua subjetividade e da realidade em que se encontra.

No tocante à estética, partimos do pressuposto de que, antes de ser apologia ao belo, às formas perfeitas, a um estado contemplativo-passivo de apreciação de uma obra de arte ou a um estado de pura inspiração para sua execução, antes de tudo isso, ela está associada aos sentidos, à percep-ção através dos sentidos. A estética tem sua gênese na estesia, ou seja, na sensação, na sensibilidade, nos sentidos. Em contraposição, temos a pala-vra anestesia, que é a negação de estesia, em que os sentidos, as sensações e sensibilidades encontram-se adormecidos.

Segundo Oliveira (2002), o sentir as coisas do/no mundo pode ser visto como uma “revelação”. Para Greimas (2002), este sentir pode ser tra-duzido como “estésico”, no sentido de “estremecer o sujeito” causando-lhe um impacto que desperte seus sentidos para o oculto, o camuflado. Dessa forma, o sentir está no texto, e nesse despertar as sensações são percebidas e transferidas da esfera da estética para o sensível, causando uma “revolução interior” promotora da estesia.

Com efeito, os sentidos são uma forma imediata de aproximação, de compreensão do mundo. Porém, nem por isso, impedem um posterior aprofundamento reflexivo, pensado e lógico sobre ele. Segundo Luft (2008), o poeta, o escritor literário são aqueles que sentem; aqueles que penetram na realidade e desenvolvem seus conhecimentos não apenas pela via da razão e da lógica, mas, também, pela sensibilidade, pela emoção e pela in-tuição, aspectos recorrentes da estética. São formas outras de se apropriar do mundo e do conhecimento. A estética é também uma forma de com-preensão da realidade, conclui Luft. Kant (1993) interpretou a experiência estética a partir do olhar do sujeito, de sorte que a beleza deslocou-se do objeto para o sujeito.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Buscando identificar elementos que possibilitem o diálogo entre lite-ratura, estética e semiótica, nomeadamente em relação à significação e aos sentidos que assumem as diferentes faces de um texto, recorremos à semi-ótica Greimasiana vista sob a lente de Oliveira (2002). Tecendo a edificação de uma teoria do significado, Greimas (2002) propõe uma estética produ-tora da estesia, sendo esta vista como “percepção, através dos sentidos, do mundo exterior, “faculdade que possibilita a experiência do prazer (ou do seu contrário) assim como de todas ‘as paixões’ – aquelas da ‘alma’ e tam-bém aquelas físicas, do corpo, da sensualidade” (OLIVEIRA, 2002:231).

Para Oliveira (2002), é necessário penetrar no escrito e vivê-lo como figura de papel, misturando a vida e as representações da vida, para com-preender que tudo é linguagem, tudo é construção humana para, a partir daí, poder encontrar sentido na singeleza dos pequenos acontecimentos, examinando a possibilidade de a experiência estética ser (re)produzida, também, por arranjos e (re)arranjos das coisas simples do mundo que fazem parte de nosso viver cotidiano. Kant (1993) trabalha com o termo estética, segundo o significado de conhecimento sensível no campo da teo-ria do conhecimento. Para ele, a estética designa uma importante parte da teoria do conhecimento, que trata das formas puras da intuição, o espaço e o tempo. Sem sensibilidade nenhum objeto nos seria dado e sem entendi-mento nenhum objeto seria pensado.

Greimas (2002), naquilo que ele determina como “fratura”, oferece--nos uma interpretação pessoal da função que o acontecimento estético ocupa na vida dos sujeitos, propondo romper o seu cotidiano, acionando atos corriqueiros que haviam perdido o sentido, tornando-se simples en-cadeamento de insignificâncias. No sentido oposto, ele apresenta as “es-capatórias”, fazendo uma conjunção pertinente entre sujeito e objeto, de-pendente de um tempo “possível”, no qual os próprios sujeitos construam momentos em que a realidade, de forma intencional ou não, se transforme aos seus olhos, num tempo e espaço que necessariamente não precisam ser unívocos. Esse autor retoma considerações de natureza histórica para discutir pontos de vista ocidentais sobre a noção de estética e estesia, valo-rizando, sobremaneira, a última.

Letramento e Letramento Literário

Para a reflexão acerca do letramento em leitura e do letramento em literatura, encontramos em Soares (2002; 2004; 2009), Rangel (2007),

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Ciola (2008) e Magalhães e Barbosa (2009) as bases necessárias para fun-damentar nossas argumentações neste artigo. Segundo Soares (2004), o termo letramento vem do inglês literacy. Muito embora a palavra literacy seja dicionarizada nos Estados Unidos e na Inglaterra desde o final do século XIX, é na década de 1980 que se percebe uma preocupação mais avançada e complexa com a leitura, que vai além do saber a ler e escrever resultantes do processo de alfabetização. Com efeito, no final do sécu-lo XX ocorre em diferentes países a adoção de termos utilizados para denominar fenômenos distintos da alfabetização: “letramento, no Brasil, illettrisme, na França, literacia, em Portugal”. “Na Alemanha, o termo adotado é Lesekompetenz, ou seja, ‘competência' em leitura” (CIOLA, 2008:21).

Nesse sentido, entendemos por letramento a capacidade de ler um texto e entendê-lo, num contexto social específico, sendo, pois, uma am-pliação do conceito de alfabetização que compreende basicamente saber ler e escrever, independentemente da conjuntura. Sendo assim, concordamos com Soares (2009), ao inferir um conceito de letramento configurado como o ato de ler e escrever dentro de uma situação onde a escrita e a leitura te-nham sentido e façam parte da vida do indivíduo.

No tocante ao letramento literário, recorremos a Ciola (2008) que considera este, em princípio, como o conjunto de práticas sociais que se utilizam da escrita literária, enquanto sistema simbólico e enquanto tecno-logia em contextos específicos, para fins específicos. A autora assinala que, ao considerarmos a literatura como um tipo de escrita específica diferente dos outros gêneros, o conceito de letramento proveniente da linguística, adaptado às especificidades da literatura, torna-se adequado ao entendi-mento de alguns aspectos que tangem os modos de produção, recepção e circulação da literatura e, consequentemente, seu ensino.

Magalhães e Barbosa (2007), citando Zilberman (1990) e Rangel (2005), entendem que a literatura, ao ser ensinada, também educa e consi-deram o texto literário primordial para o ensino e a aprendizagem da leitu-ra e, não obstante, para a formação do gosto por leitura de textos literários. Nesse sentido, é importante enfatizar a relevância da cultura no processo de letramento, sendo que o letramento literário pode ser definido como “o conjunto de formas pelas quais uma determinada cultura ao mesmo tem-po dá uma existência social e serve-se da escrita, atribuindo-lhe diferentes sentidos e diferentes funções” (RANGEL, 2005, p. 130) (APUD, MAGA-LHÃES E BARBOSA, 2009, p. 153).

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Partindo desses pressupostos, acreditamos que a literatura nos ajuda a entender o mundo que nos rodeia e nos incentiva a desejar e a expressar esse mundo por nós mesmos, provocando uma situação onde liberdade e movimento se fundem, numa convergência de sentidos provocados pela estética. E isso se dá porque a literatura é uma experiência a ser realizada, anunciadora de um conhecimento a ser elaborado, permitindo a incorpo-ração dos outros em nós, sem renúncia da nossa própria identidade, mas antes promotora de nossa subjetividade.

Nesse sentido, é possível conjecturar acerca da importância que as-sume a autonomia dos estudantes enquanto co-participantes da literatu-ra a ser estudada, de sorte que eles sejam “seduzidos” pela leitura. Aqui identificamos um procedimento que nem sempre tem sido contemplado pelo professor em sua atividade docente, ou seja, permitir aos alunos que compartilhem da escolha do tipo de literatura que deve ser lida na sala de aula. Esse processo pode ser também uma estratégia muito interessante no sentido de despertar o estudante para o exercício da autonomia (Freire, 1997), ingrediente fundamental na consecução da competência necessária à condição de letrado.

Sobre a importância que assume a liberdade de participar da esco-lha do material a ser lido pelos alunos visando ao letramento, Magalhães (2008:3) afirma que “a primeira demanda do letramento literário é criar o gosto pela leitura, primeiro passo para se instituir o hábito da leitura”. Nesse sentido, o letramento em literatura pode ser definido como “a apropriação das competências e habilidades que constituem o hábito de ler, ou seja, o prazer de ler, a capacidade de fruição, a autonomia do leitor na escolha de suas leituras (MAGALHÃES, 2008, p. 3).

Notadamente, existem professores comprometidos com a arte de ensinar literatura e evocar sua condição estética possibilitando o letra-mento literário, mesmo diante da inércia dos currículos oficiais e da problemática que envolve a ação neoliberal em suas formulações, ao unificar os conteúdos desconsiderando as particularidades das comu-nidades que deles se servem, como é o caso da Escola Indígena Teka-tor, objeto desse estudo. Nesta escola, os professores criam estratégias e mecanismos que acreditamos favorecer o letramento literário de seus alunos, o que será apontado na discussão dos resultados da nossa pes-quisa, a seguir.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Professores e alunos indígenas Apinayé: o letramento literário em pauta - análise e discussão

Os Apinayé habitam no extremo norte do estrado do Tocantins numa região conhecida como Bico do Papagaio . Pertencem ao Tronco Macro--Jê e à Família Linguística Jê. Sua população atualmente está estimada em 1.793 indígenas, distribuídos em 24 aldeias, dentre estas a Mariazinha, ob-jeto desse nosso estudo. Todavia, os habitantes desta aldeia encontram-se sob um eminente processo da transculturação5, fenômeno cada dia mais presente nas sociedades indígenas. No entanto, acreditamos que a educação escolar assume um papel importante no sentido de intervir nessa situação.

Sendo assim, passamos a discutir os resultados da pesquisa realizada com três professores de literatura e cinco alunos do ensino médio da escola Indígena Tekator da aldeia Mariazinha. A análise incide sobre o trabalho docente e as práticas didáticas e pedagógicas desses professores, desde que a realidade indígena requer preparo teórico e prático para lidar com as es-pecificidades de um ambiente bilíngue e intercultural.

No tocante ao trabalho com os alunos, analisamos produções escri-tas realizadas para um evento cultural em 2009. Os textos são do gênero poesia, e resultam de uma prática adotada pelos professores não indígenas nas aulas de literatura. Essa prática pedagógica se configura como interdis-ciplinar (Albuquerque, 2009), uma vez que esses professores, atendendo às necessidades da escola, se revezam para lecionar diferentes disciplinas e, para fazer frente aos desafios encontrados, se unem e criam estratégias e metodologias, buscando enfrentar suas próprias imanências6.

Os Professores e o ensino de literatura para alunos indígenas

Como nosso objetivo é investigar a as práticas didáticas e pedagógicas

5. Transculturação é o processo que ocorre quando um indivíduo adota uma cultura diferente da sua, podendo ou não implicar uma perda cultural. A transculturação está ligada à transformação de padrões culturais locais a partir da adoção de novos padrões vindos através das fronteiras culturais em encontros interculturais ou migrações transacionais, envolvendo sempre diferentes etnias e elementos culturais. É a transformação de padrões a partir do elemento externo (JAPIASSU E MARCONDES 1990).

6. O significado de imanência a que nos referimos, está vinculado ao contexto da teoria de Kant, significando de caráter indissociável, que existe sempre em algo e é inseparável dele. Característico. Próprio. Intrinsecamente ligado.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

nas aulas de literatura da Escola Indígena Tekator, entrevistamos os três pro-fessores responsáveis pela disciplina. Antes de se submeterem ao questionário, esses professores gentilmente atenderam à nossa solicitação para uma breve entrevista, quando foi possível adiantar o propósito de nossa pesquisa e acer-tarmos como seriam os procedimentos da investigação. Visando a preservar a identidade de nossos entrevistados, optamos por um nome fictício no de-correr das discussões, sendo: Professoras Andréia e Arlene e Professor Pedro.

A professora Andréia é pedagoga com licença para atuar nos anos ini-ciais do Ensino Fundamental e em Administração Educacional, tendo sido formada pela UFT – Universidade Federal do Tocantins. Essa professora leciona as disciplinas de Português, Literatura, Matemática e Física. Arlene também é pedagoga com licença para atuar nos anos iniciais do Ensino Fundamental e Administração Educacional e também se formou na UFT. Ela ministra as disciplinas de Ciências, Inglês, Português, Literatura e Fi-losofia. Assim como essas duas professoras, o professor Pedro também é pedagogo com licença para os anos iniciais do ensino fundamental e ad-ministração educacional e leciona as disciplinas de Português, Literatura, Geografia e Inglês. Ele também fez sua graduação na UFT.

Com efeito, observamos que a formação dos professores não é ne-cessariamente adequada às disciplinas que lecionam. Este é um problema enfrentado com bastante dificuldade pelos agentes educacionais das escolas das aldeias indígenas Apinayé. Isso porque os professores são “improvisa-dos” para ministrar determinadas disciplinas, e neste momento percebe-mos que a criatividade e a autonomia de cada um deles farão a diferença. Mesmo diante da imposição de um currículo unificado, que precisa ser seguido à risca, eles se unem na busca de alternativas que permitam levar os alunos a aprender algo que seja relevante para suas vidas, priorizando a escolha de textos que despertem o desejo de ler, agucem sua imaginação e provoquem fruição estética.

Inicialmente perguntamos aos professores que material era utilizado para as aulas de literatura: se apenas o livro didático ou se existia outro material de apoio pedagógico. As respostas dos professores foram análogas. Ressaltaram o fato de terem que ministrar diferentes disciplinas e de terem em comum as disciplinas de português, literatura e inglês. Eles veem com bastante preocupação o fato de precisar lecionar disciplinas para as quais não têm a formação específica.

No tocante à disciplina de Português e também de Literatura, esses pro-fessores acreditam que o fato de serem formados em pedagogia ajuda. Obser-

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

vamos que eles trabalham com uma metodologia que pode ser identificada como interdisciplinar (Albuquerque (2009). Atuando em parceria e minis-trando diferentes disciplinas para as mesmas turmas, eles buscam, dentro do possível, promover um diálogo entre cada uma dessas disciplinas. O material didático utilizado é o oficial, mas também têm livros e textos que eles utilizam em seu cotidiano, principalmente de autores que são poetas. Eles se autodeno-minam “ratos de internet” e “amantes” de Vinícius de Morais, Carlos Drum-mond de Andrade, Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Fernando Pessoa.

Nesse sentido, percebemos que o gênero literário poesia é utilizado por estes professores em suas práticas na sala de aula. Constatamos, tam-bém, que os docentes veem na poesia uma forma de “seduzir” seus alunos para a prática da leitura de textos literários. Sobre a poesia e sua importân-cia na vida, recorremos ao seguinte trecho de A República, no qual Sócrates assevera que:

[...] Concederemos certamente aos seus defensores, que não forem po-etas, mas forem amantes da poesia, que falem em prova, em sua defesa, mostrando como é não só agradável, como útil, para os Estados e a vida humana. E escutá-lo-emos favoravelmente, porquanto só teremos vantagem, se se vir que ela é não só agradável como também útil (PLA-TÃO, 2006, 607e).

Sócrates convoca a todos os cidadãos atenienses, que nutrem gosto pela poesia, a defenderem sua importância na construção da cidadania na Polis Grega. Trazendo tais proposições para a realidade da escola Apinayé Tekator e seus professores de literatura, é possível conjecturar que, ao ini-ciarem seus alunos na arte de apreciar, apreender e (re)produzir textos poé-ticos em versos, eles estão também introduzindo-os num processo criativo e autônomo que favorece a construção da cidadania, sendo esta um direito adquirido pelos indígenas brasileiros, contemplado no Art. 210 da Consti-tuição Federal Brasileira (CRF/88).

Indagamos, também, se a literatura brasileira, notadamente no que diz respeito ao livro didático, dialoga com a literatura indígena brasileira. Constatamos que os professores nem sequer sabiam da existência de uma literatura indígena no Brasil. Contudo, essa desinformação se estende tam-bém para os professores das escolas da sociedade nacional, apresentando uma lacuna que precisa ser preenchida por meio de uma educação que promova um diálogo intercultural.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Quanto à dinâmica das aulas de literatura, os professores entrevista-dos admitiram que estas ocorrem em consonância com a aula de português, nunca separadamente. Para eles, o fato de o português ser uma segunda lín-gua para os alunos, é um desafio a mais que todos têm que enfrentar. Nesse sentido, são realizadas leituras em grupo e também individual, priorizando os livros com poemas, desde que os alunos se interessam mais por esse tipo de texto, principalmente aqueles que falam de amor e da natureza. Por serem poemas permeados por um forte apelo emocional, os professores resolveram focar as aulas neste tipo de literatura e perceberam que, a cada aula, alguns alunos solicitavam novos conteúdos. O resultado foi que, sem nenhuma interferência dos professores, os alunos começaram a produzir seus próprios poemas. Daí os professores passaram a utilizar esse tipo de produção textual nas avaliações.

Notamos que, com essa metodologia, esses professores despertam nos seus alunos o gosto pela leitura de textos literários, aguçando suas sensibilida-de e imaginação, despertando-lhes prazer, o que identificamos como fruição estética provocada pela arte da literatura poética, o que favorece a concepção de letramento literário que aqui defendemos. Neste sentido, encontramos em Magalhães e Barbosa (2009) reflexões que corroboram tais observações. Sobre a fruição estética no texto literário essas autoras sustentam que,

Considerando a natureza e as funções da literatura, sobre a função es-tética, que aguça a sensibilidade e causa prazer, o letramento literário deve possibilitar ao aluno não apenas o reconhecimento das manifesta-ções literárias no tempo e no espaço, mas, sobretudo, o desenvolvimen-to da sensibilidade, da imaginação e da capacidade de fruição estética (SILVA; MELO, 2009, p. 153-154).

Na leitura, na apreensão e na fruição do texto literário, bem como na (re)produção desse tipo de gênero da literatura, encontramos o senso de nós mesmos. Consequentemente, esse senso possibilita a construção de nossa identidade e a projeta para um mundo ao qual buscamos pertencer. Considerando o aspecto prazeroso que desencadeia todo o processo de lei-tura feita sem imposição, essa identidade em interação com esse mundo exterior nos leva à fruição estética, que nos conduz à estesia.

Todavia, esses professores admitem dificuldades em relação à apre-ensão imediata dos textos lidos, principalmente pela barreira linguística. Visando a enfrentar essa problemática, eles investem numa aula onde se

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fundem diálogo (Freire, 1997), e cumplicidade. Aqueles alunos que têm mais facilidade ajudam aos que não têm. Os professores planejam as aulas sempre em parceria com os professores de língua materna, o que evidencia a interdisciplinaridade (Fazenda, 2006; Albuquerque, 2009).

Quanto aos conteúdos obrigatórios contidos no livro didático, prin-cipalmente em relação à cronologia e aos movimentos literários, são tra-balhados conteúdos privilegiando autores que de alguma forma mantêm vínculo com a realidade indígena, como por exemplo, José de Alencar, Gonçalves Dias e, com mais ênfase, Castro Alves, devido aos seus escritos serem poesias. Também aqui é dada muita importância ao gosto dos alu-nos, e mesmo diante do livro didático, a preocupação com um texto que cause prazer ao leitor é uma preocupação para esses professores.

Sobre o papel que assume o professor nesse cenário, Cosson (2006) assinala que este tem um papel fundamental no processo de letramento em literatura. Isso porque a leitura que possibilita tal evento é realizada a par-tir da forma como se apreende a leitura na escola. Para esse autor, cabe ao professor cuidar para que o processo de leitura dos textos pelos alunos seja algo satisfatório. Porém, o ensino da literatura nas escolas brasileiras se en-contra comprometido, desde que sua formulação encontra-se fragmentada em atividades específicas do livro didático sem ser considerada a opinião dos alunos, suas percepções, seus anseios, suas subjetividades.

Perguntamos aos professores se existe alguma conexão entre as aulas que eles ministram e os mitos indígenas Apinayé. Eles responderam que não conhecem esses mitos. Todavia, mesmo entre os professores de língua materna existe essa desinformação, conforme pudemos observar ao acom-panharmos aulas em língua materna.

Como sabemos, os mitos são uma forma de literatura de tradição oral muito importante nas sociedades indígenas brasileiras. Portanto, podem ser utilizados nas aulas de literatura, desde que sejam conhecidos e estudados tam-bém pelos professores não indígenas. Ademais, a literatura é palco ideal para essa manifestação, pois sua condição artística permite que todo potencial ex-pressivo e imaginário seja explorado, possibilitando outras formas de experi-ência na convivência entre povos de culturas diferentes e diferentes realidades.

Literatura e Prática Docente na Escola IndígenaTekator

O que faz um professor de literatura para despertar no aluno o inte-resse em ler textos literários, nomeadamente numa escola indígena? Acre-

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ditamos que um passo importante é dado quando este professor demonstra um interesse que vai além do utilitarismo tão presente nas práticas peda-gógicas atualmente. Neste momento a formação inicial e continuada desse professor irá fazer toda diferença. E esta formação se dá com mais qualida-de quando ele cria meios para enfrentar as dificuldades, principalmente em relação à aquisição de material didático atualizado e acesso a eventos como seminários e congressos. No caso de nossa pesquisa, buscamos saber dos professores como eles, no seu dia-a-dia, criam mecanismos que favoreçam o trabalho na sala de aula, principalmente em relação ao seu preparo teó-rico e prático.

Procurando identificar elementos que caracterizem o letramento lite-rário em suas atividades na sala de aula, perguntamos aos professores qual é a importância da literatura em sua prática docente. A professora Andréia diz que “a literatura na sala de aula pode ajudar muito. Tem leituras que a gente faz com os alunos e eles fazem uso dela na sua vida cotidiana. Isso é o que mais me anima”. Para a professora Arlene “a literatura ajuda o alu-no a aprender. Ajuda até nas outras matérias como filosofia, sociologia e história”. Já o professor Pedro acredita que a importância da literatura é que faz com que o aluno seja criativo. “Ao ler uma história ele precisa criar um cenário, uma situação e se sentir parte da história. Ao ler uma poesia ele sente. Pra mim isso é literatura, aquilo que faz com que quem ler sinta alguma coisa”, afirma esse professor.

Observamos que a percepção dos professores vai ao encontro da li-teratura em sua conotação estética, promotora da estesia, o que estabe-lece uma conexão com a semiótica de Greimas (2002). Segundo Teixeira (2002:261), a teoria Greimasiana nos conduz ao campo do sensível, sendo que sua semiótica se apresenta não só como busca metateórica de fontes fenomenológicas, mas também como apelo à entrada do corpo sensível no universo da produção do sentido. Portanto, estendendo a análise ao con-junto dos canais sensoriais pelos quais o sujeito vivencia o acontecimento estético, a literatura passa a ser compreendida e pode tornar-se modo de existir no mundo.

Perguntamos aos professores se eles gostam de ler literatura nas horas vagas, e que tipo de literatura eles preferem. Andréia diz que lê de tudo, mas prioriza a literatura brasileira que ajuda nas aulas. “Os escritores regionalis-tas como Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto e Guimarães Rosa são os que mais leio. Mas leio muitos autores que escrevem poesias como Vinicius de Morais e Carlos Drumond de Andrade”. Ela admite ler também

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literatura estrangeira e que gosta muito de Gabriel Garcia Marques e Pablo Neruda. Arlene afirma que ler sempre que pode. Todavia, “não temos bi-blioteca, mas eu tenho acesso à internet e sempre faço copia de livros no site do domínio público. Principalmente os de poesias que é o que mais os alunos gostam. E aproveito e leio o que eu posso aproveitar nas aulas”. Percebemos que essas professoras utilizam a literatura poética como forma de apoio didático. Entretanto, Cosson (2006) defende a didatização da lite-ratura, principalmente através do próprio livro didático.

Por sua vez, o professor Pedro diz gostar de ler qualquer coisa que seja boa. “Mas me interessa muito a literatura poética, gosto muito de escrever e de ler poemas, pois vejo nesse gênero literário um forte teor pedagógico e porque acredito que lendo e praticando poesias podemos nos tornar pes-soas melhores, mais sensíveis, mais tolerantes.” Nesse sentido encontramos na filosofia da Grécia Antiga a fundamentação necessária para validar a fala desse professor. Segundo Platão, a poesia só teria valor caso possuísse valor pedagógico, ou seja, fosse capaz de transmitir valores.

Perguntamos também como esses professores avaliam as leituras li-terárias que passam para os alunos. Todos foram unânimes ao dizer que pedem sempre para que eles produzam um texto sobre o que foi aplicado na aula. E que este texto é sempre em forma de poesia. “É possível identifi-car na produção dos alunos algo como que se eles se despissem e deixassem que lêssemos a sua alma”, afirma Andréia. "Eu faço uma avaliação oral e também escrita, quando é oral o resultado não é bom, mas quando eles escrevem se saem bem melhores”, diz Arlene. Pedro alega que faz uma ava-liação que chama de “momentos de avaliação literária”, sendo que “após as aulas sentamos numa roda e cada um fala o que sentiu ao ler determinado texto, e depois verbalizam isso por escrito”.

Mais uma vez identificamos a questão do “sentir” como aspecto que evidencia a prática da leitura literária na ação desses professores, o que nos leva a retomar os conceitos de estética e estesia propostos por Greimas (2002) em sua semiótica. Para Greimas (2002, p. 21) esta “sensação” rom-pe com uma postura estática do sujeito, elevando-o a uma nova dimensão onde o belo se faz presente de diferentes modos, no sentir, no fluir, no fruir, naquilo que pode ser identificado como “ruptura” ou “fratura”. Esse autor nos oferece uma interpretação pessoal da função que o acontecimento es-tético ocupa na vida dos sujeitos, propondo romper o seu cotidiano, acio-nando atos corriqueiros que haviam perdido o sentido, ao mesmo tempo em que os conduz à contemplação e à estesia.

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Quais são as atividades que os alunos mais gostam de fazer, e as que eles menos gostam numa aula de literatura, foi outra pergunta feita aos professo-res. Outra vez as respostas foram similares, apontando que o trabalho com poesias é o que mais interessa às classes. Dentre as atividades de que eles menos gostam estão os textos que tratam da história da literatura, nomea-damente, os movimentos literários. Eles também não gostam das leituras do livro didático. “Mas acabamos utilizando o livro didático porque na prova os alunos são avaliados pelo conteúdo desse livro. E também porque não temos outros livros. Outra coisa que eles não gostam são as provas”, afirma Pedro.

No tocante ao livro didático e sua relação com a literatura, Soares (2002) diz que há o papel ideal e o papel real do livro didático neste cená-rio. Para essa autora,

O papel ideal seria que o livro didático fosse apenas um apoio, mas não o roteiro do trabalho [do professor]. Na verdade isso dificilmente se concretiza, não por culpa do professor, mas de novo vou insistir, por culpa das condições de trabalho que o professor tem hoje. Um profes-sor hoje nesse país, para ele minimamente sobreviver, ele tem que dar aulas o dia inteiro, de manhã, de tarde e, frequentemente, até a noite. Então, é uma pessoa que não tem tempo de preparar aula, que não tem tempo de se atualizar. A consequência é que ele se apoia muito no livro didático. Idealmente, o livro didático devia ser apenas um suporte, um apoio, mas na verdade ele realmente acaba sendo a diretriz básica do professor no seu ensino. (SOARES, 2002, [s.p.]).

Nesse sentido, o professor, ao utilizar o livro didático como principal ferramenta na condução das aulas, deve estar consciente de que pode ocor-rer o fato de os alunos terem aversão pela leitura literária. Isso porque a concepção de literatura se reduz ao material didático que é desinteressante e sem nenhum atrativo. Tal situação compromete a fruição enquanto ele-mento da estética, presente num texto de teor literário, bem com da estesia provocada pelo ato da leitura.

No entanto o trabalho com o livro didático numa aula de literatura é necessário. Os conteúdos são cobrados posteriormente, principalmente nos exames vestibulares. Por essa razão, o professor precisa fazer com que essas aulas sejam atraentes para os alunos. Aqui a metodologia e a sensibi-lização do professor farão o diferencial, e a “sedução” desses alunos para a aula de literatura acontecerá.

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Os Alunos Indígenas e as Práticas de Letramento Literário

A necessidade de criar alternativas para que o texto literário adentre nas instituições educativas como arte, e que a apreensão estética se realize, promovendo a fruição, é um dos mais sérios desafios enfrentados pelo cor-po educativo das escolas brasileiras. No tocante à poesia, a preocupação é criar um espaço de circulação, pois, segundo Nietzel e Duarte (2007), este gênero literário vem sendo objeto de discriminação nas instituições educa-tivas, principalmente porque ela não tem uma função utilitária.

Essas autoras questionam como ensinar literatura por meio da po-esia, sendo este um gênero que busca tão somente o desenvolvimento da percepção do leitor. Para elas aspectos como apelo poético, fruição esté-tica, recursos estilísticos, uso intensivo de metáforas, bem como a exi-gência de um leitor mais desprendido com voos imaginativos mais altos, são aspectos indispensáveis, pois a poesia é um texto mais aberto a inter-ferências. Ademais, a poesia é jogo, é construção lúdica, o que exige do leitor maior participação na construção de significações, exigindo clareza dos docentes acerca da concepção de literatura que norteia suas práticas pedagógicas.

Nesse sentido, e após dialogar com os professores sobre sua prática didática e pedagógica nas aulas de literatura do Ensino Médio na Escola Indígena Tekator, passamos a discutir um questionário aplicado a cinco es-tudantes indígenas. Para que sejam preservadas suas identidades, daremos nomes fictícios, quais sejam: Maria, Marta, Sara, João e Lucas.

Inicialmente perguntamos se eles gostam de ler, o que preferem ler e o porquê desta preferência. Assim eles se manifestaram:

Não, eu não gosto de ler porque a professora manda a gente ler livros grandes e demora muito. Mas quando ela traz poesias eu gosto. Mas eu gosto mesmo é de escrever, principalmente poesia. E também historias. Eu não gosto de ler muito não, mas gosto quando tem um livro que tem poesia e eu gosto da poesia que fala de amor, que deixa a gente feliz (MARIA).

Gosto, eu adoro ler. Mas gosto mais de escrever. É que quando eu escre-vo me sinto grande, igual a minha professora. E quando leio poesia eu me sinto como se eu fosse que escreveu. É como se eu fosse uma pessoa diferente, e não tivesse mais aqui. (MARTA).

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Depende do que é pra gente ler. Quando a professora manda ler aque-les livros grandes é ruim. O bom é quando ela traz livro de poesia e manda a gente ler. E depois a gente escreve o que quer. (SARA).

Gosto. Gosto de ler tudo, minha professora diz que a gente tem que ler para pensar. Eu adoro ler poesias, eu gosto porque eles fazem a gente ficar bem. Tudo na vida é difícil de viver. Mas nas poesia tudo é bonito. Tem aquelas de Castro Alves que fala de coisa ruim. Mas assim mes-mo é bom que a gente aprende também história e também geografia (LUCAS).

Eu gosto pouco, quando é uma história boa, eu gosto. Quando é um livro de poesia também. Principalmente as que fala da terra e dos rio, do céu, da lua e das estrelas. Mas o que eu mais gosto quando leio é que eu saio daqui. (JOÃO).

Percebemos que esses alunos indígenas têm uma relação com a leitura bastante diversificada. Uns gostam muito de ler, outros pouco e alguns nem tanto. Contudo, observamos que todos, em algum momento, demonstram gosto pela leitura de poesias. Isso demonstra que de alguma forma eles apre-enderam os conteúdos aos quais foram expostos nas aulas de literatura. E essa apreensão evidencia uma prática de letramento literário, pois ocorreu aquilo que as Orientações Curriculares do Ensino Médio (BRASIL, 2006) determinam como essa prática, ou seja, os alunos, em algum momento, tiveram contato com uma obra literária poética e dela se apropriaram por meio da fruição.

Notamos, também, que o discurso desses alunos indígenas apresenta elementos bastante significativos que aproximam suas percepções à teoria literária de Greimas (2002). A semiótica Greimasiana nos fala de uma es-tética promotora de estesia, sendo esta o sentimento do belo. A estesia é identificada nas alocuções dos alunos, já que sentimentos e sensações se fundem de forma mais eloquente, fazendo-os se distanciarem da realida-de cotidiana. Seriam, portanto, “as escapatórias” propostas por Greimas (2002), quando ele acena para a possibilidade de que os próprios sujeitos construam momentos em que a realidade, de certa forma, se transfigure aos seus olhos. Aproxima-se também de Aristóteles e sua poética, uma vez que sua teoria assinala uma arte que imita as emoções e as ações. Ou então na proposta de Tatit (1997, p. 49), quando nos diz que “entre o encanto

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da matéria tratada pelas linguagens artísticas e a eficácia da comunicação praticada nas linguagens utilitárias, modelam-se os afetos subjetivos e os efeitos objetivos que imprimem maior ou menor aprofundamento em nos-sa existência”.

Nesse sentido, é importante situar o pensamento de Magalhães e Bar-bosa (2008) que expõem a necessidade imperiosa que assume a “sedução” do sujeito pelo objeto de leitura. Para essas autoras, “o ser humano está preparado para gostar de ler porque a literatura estimula a imaginação e a subjetividade do leitor, preenchendo, portanto, uma necessidade vital do indivíduo, que é a de exercitar a imaginação e obter, por este meio, prazer estético” (MAGALHÃES E BARBOSA, 2008, p. 154-5).

Mas afinal, o que é literatura para esses alunos indígenas? Para Maria, “são esses livro que não têm muito haver, com palavra difícil. São aqueles livros que a professora manda a gente ler para fazer a prova. Mas a profes-sora falou que poesia também é literatura, dessa eu gosto. Gosto porque me deixa feliz.” Marta diz o seguinte: “Pra mim, literatura é de dois jeito. Tem a que a professora manda ler para fazer a prova. Que é do livro da aula. Dessa eu não gosto. Tem aquela que é a poesia. Dessa eu gosto porque é como se fosse algo pra ajudar a gente, que nos ajuda a se entender, a ver as coisas de outro jeito, é como se fosse algo que ensina mas que também é bom”.

Sara afirma que literatura “é um tipo de livro que conta histórias e é as poesia que ensina a escrever certo que as vezes faz a gente viajar, ir para outros lugares, mas tem umas histórias que são ruim, tem umas que a pro-fessora trás e eu não leio toda porque o livro e grande e eu não gosto porque demora muito”. A opinião de Lucas é que literatura “são livros com história e também livros com poesia”. “Literatura é livro, os livros de poesia e os livro de história e o material que a professora traz que ela traz da internete”, afirma João.

Percebemos que os alunos veem a literatura pela sua conotação didá-tica e que está vinculada ao que a professora encaminha em suas atividades na sala de aula. Toda a fruição que é apreendida por eles no momento das leituras e que os levam a “saírem de si”, não é associada ao que eles enten-dem por literatura. Antes, esta se apresenta apenas como uma disciplina a mais, e uma disciplina não muito agradável. Todavia, eles acreditam que através da leitura literária podem “aprender a escrever certo”, atestando o seu teor pedagógico, o que vai ao encontro da teoria de Platão.

Você gosta das aulas de Literatura e por quê foi outra pergunta que fizemos. Maria diz: “só gosto quando a professora deixa a gente fazer nossos

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poemas ou quando ela fala de coisa da vida da gente, que realmente tem haver com o que gente vive, mas na maioria das vezes não gosto não. Já Marta dia que “sim, porque a professora trás um monte de textos bons, ela também explica bem. Mas tem as leitura do livro da aula que eu não gosto. Gosto sim é quando a professora manda escrever. Aí eu escrevo o que me deixa feliz que é poesia”. “Eu gosto, mas tem umas aula que a professora fala de datas e nomes difíceis. E às vezes tem umas coisas boas, e as vezes são umas com palavras difíceis, mas gosto quando a aula é sobre poesia que fala de amor” afirma Sara. Lucas assinala que só gosta “quando as história são boa como a de Peri e Ceci e as poesia são de lugar e de viagem”. João afirma que gosta apenas “quando a gente ler e faz poesia, eu adoro escrever. Me sinto como se eu fosse quem escreveu todos as poesia que a professora traz da internete e dos livro também”.

Mais uma vez observamos que os alunos têm uma preferência pelo gênero poesia e prazer de ler e escrever poemas. Para Magalhães a leitura que interessa ao primeiro nível do letramento (o prazer de ler) equivaleria à leitura comprometida, ou seja, aquela em que o leitor “deixa sua ima-ginação funcionar sem regras: concretamente, a leitura comprometida se traduz por uma identificação com as personagens, uma projeção na ação, uma espécie de diálogo permanente entre o livro e o leitor” (FARIA, apud MAGALHÃES, 2008, p. 4).

Buscamos saber dos alunos se eles leram algum livro nos últimos me-ses e quais foram. Todos responderam que leram “Vidas Secas de Gracilia-no Ramos, O Guarani e Iracema de José de Alencar”, sendo que tais leituras foram feitas por exigência da professora, mas que gostaram. Sobre a impor-tância da leitura em suas vidas, obtivemos as seguintes respostas:

Eu acho que aprender a ler é muito bom porque consigo ler, e saber de coisas que eu não sabia, faz a gente mais inteligente. (MARIA).

É muito bom ler. Gosto mesmo das poesias que são pequenas e a gente entende pois fala dos sentimentos da gente. Mas não tenho livro pra ler. Só quando a professora traz. Mas depois tenho que devolver para ela pois os outros precisam ler também. Gostaria de ter um livro de Vini-cius de Morais meu (MARTA).

A leitura é muito importante porque quando a gente aprende a ler, a gente conhece outros lugares, mundos, a gente aprende um monte de

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coisas que não sabia, então é muito bom aprender a ler. Assim eu posso um dia trabalhar e ser professora. Posso também ajudar meus irmãos na lição de casa (SARA).

É bom porque a gente aprende mais, aprende outras coisas que não são da aldeia. E lendo eu posso ser um professor. Eu vou ser professor (LUCAS.

É muito importante, eu adoro ler, ainda bem que eu aprendi a ler, por-que dá uma vida melhor para a gente, a gente fica mais inteligente, con-segue aprender mais. Parece que eu sempre sabia ler (JOÃO).

Notamos que a utilização prática da leitura assume um lugar de desta-que na vida desses jovens indígenas. Considerando que estamos diante de uma sociedade em que a escola só chegou na década de 1960, e que a leitura é uma atividade exclusiva das sociedades letradas e que é, portanto, algo muito recente entre os Apainyé, nos impressiona o fato deles incorporarem os valores adquiridos pela leitura em suas expectativas de vida e de futuro.

Magalhães (2008, p. 5) em diálogo com Zilberman (2003) discute quais seriam as motivações que, de um modo geral, levariam crianças e adolescentes a lerem e se apropriarem dessa leitura na vida prática. Essa autora identifica como fator relevante a relação com a realidade que surgem os elos entre leitor e obra. Para ela, além da motivação, há uma demanda in-terna que está ligada às necessidades existenciais de cada um. Nesta mesma direção a autora argumenta que “a valorização da leitura só pode se apoiar sobre a existência de interesses pessoais que encontram sua satisfação no ato de ler: éticos, práticos, profissionais, lúdicos” (FARIA, Apud MAGA-LHÃES, 2008, p. 5).

Acerca das atividades na aula de literatura de que esses alunos mais gostam, estão aquelas em que a professora trabalha o gênero poesia, mas tais atividades devem necessariamente conter um momento em que eles possam expressar-se por meio da escrita, pois escrever poemas é poder via-jar para lugares distantes” (JOÃO). Essa “quebra” que ocorre quando o alu-no tem contato com a literatura equivale ao que Greimas (2002) apresenta como “ruptura”, onde o sujeito, ao romper com sua cotidianeidade, é con-duzido através da estética, rumo à estesia, elemento facilitador do processo de sinestesia7. Sobre as atividades de que menos gostam estão as aulas onde

7. Sinestesia (do grego συναισθησία, συν- (syn-) "união" ou "junção". É a relação de planos

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são “obrigados” a lerem o livro didático onde estão todos os movimentos que fazem a história da literatura brasileira e portuguesa.

Finalmente, buscamos saber dos alunos o que eles fariam se fossem professores de literatura.

Eu mandava todos escrever o que eles gostasse. Não essas coisas de ler e depois ficar escrevendo coisas assim sem sentido (MARIA).

Mandava que todo mundo escrevesse só o que quisesse e lesse só o que quisesse também (MARTA).

Vou dar muitas aulas sobre todos os poetas do mundo e mandar ler muitos livros de historias como a de Peri e Ceci. Também pedir para ler livros de poesias. A poesia deixa a gente mais inteligente (SARA).

Eu não fazia prova. Só pedia para eles escreverem coisas que eles sen-tem. Assim todos podem ser feliz (LUCAS.

Fazia muitas atividades para meus alunos escreverem, mas não só poe-sia não. Escrever o que eles querem escrever historias, poesias, tudo. E que tivesse muitos livros para escolher e não ler sempre o mesmo livro que a professora manda (JOÃO).

Mais uma vez esses alunos indígenas demonstram que têm noção cla-ra do que é uma leitura que proporciona prazer. E veem o fato de serem “obrigados” a ler e escrever apenas porque a professora “mandou” como algo negativo. Para eles, o prazer de ler está associado à liberdade de es-colha, muito embora enfrentem a problemática de não encontrar muitas opções, tendo que ler a mesma obra repetidas vezes.

Ao projetarem suas expectativas enquanto professores de literatura, eles traduzem o pensamento da maioria dos estudantes das nossas esco-las. Eles revelam a necessidade que têm de serem agentes ativos na condu-ção das aulas, na escolha do material utilizado, assunto este discutido por Magalhães (2008). Para essa autora, “o mundo do livro deve ser familiar para que o leitor possa fazer dele um caso pessoal” (Faria, apud, Magalhães, 2008, p. 5). Contudo, haveria necessariamente uma escolha livre? A autora recorre a Cosson (2006, p. 31) e Versanini (2006:32) afirmando que “não, pois o leitor está sempre agindo sob influências e, quando é solicitado a

sensoriais diferentes: Por exemplo, o gosto com o cheiro, ou a visão com o olfato. O termo é usado para descrever uma figura de linguagem e uma série de fenômenos provocados por uma condição neurológica (JAPIASSU E MARCONDES, 1990).

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escolher um livro literário, é influenciado pelos amigos, resenhas, propa-gandas, listas etc” (Apud Magalhães, 2008, p. 5). No caso desses alunos in-dígenas, quem escolhe é a professora e, como não tem muita opção, acaba indicando sempre os mesmos livros, o que é visto como um problema.

Os Alunos Indígenas Apinayé e Suas Produções Literárias

Neste momento, passamos a refletir sobre alguns textos em forma de poesia, produzidos pelos alunos. Conforme mencionamos anteriormente, foram selecionados cinco poemas concebidos visando à participação num evento cultural envolvendo as escolas indígenas Apinayé.

“A História do meu amor”Quando eu vejo vocêMeu coração bate muito forteQuando fico perto de você,Sinto saudadeQuando eu não te vejo, fico sozinha tristeEu não existiria sem você.Autora: Maria Sipãx Apinayé

“Sentir saudade”Fiquei sabendoSenti algo muito bom dentro de mim.Este sentimento dentro de mim é como se fosse uma flor.Que cuida de mim.Este sentimento que está dentro de mimÉ como se fosse uma chave que abre a portaE aparecem todas as coisas maravilhosas.Como se fosse meu pequeno sonho.Eu senti algo tão grande e fiquei muito feliz.Eu senti uma grande felicidade.E eu senti uma grande felicidadeE os meus olhos brilharamE meu rosto ficou muito alegraE eu disse pra mimEsta minha felicidade é verdadeira.Autora: Andressa Iremex Apinayé

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“Amor”Amor, desde que te conheci, logo me apaixonei.E quando fecho os olhos, eu penso em você.Amor, toda vez que ouço a sua voz no silêncio do meu coração.Te amo cada vez mais.E cada flor que se abre lança no ar uma grande notícia que te amo.Sim, a lua e o céu sabem que a sua estrala sou eu, brilhando à sua espera.Doida pra dizer que eu amo você.Autora: Sueli Jàtkamrêk Apinayé

“Saudade”Quando estiver sozinha bem longe, na solidão.Pense em mim, em nós.Abra o coração!Deixe que a saudade bataÀ porta da esperança guardada,Quem espera sempre alcança.Hoje sou todo seu!Amanhã serei maisHá sempre um coração perdidoPor esses erros geraisAutor: Vilson Pàrkahi Apinayé

“A Natureza”A Natureza é como uma mulherEla é frágilE por isso não tem como se defenderMas quando ela se revoltaNão existe ninguém que domine.Autor: Edvaldo Sugi Apinayé

Observando a produção textual desses alunos indígenas Apinayé, é possível fazer uma análise a partir do que armaram os professores. Em to-dos os textos é notável a presença do romantismo próprio dos jovens de nossa sociedade, mas que também está presente em alguns dos autores tra-balhados nas aulas de literatura.

Em relação à temática predominante que é o amor, percebemos a in-fluência de Vinícius de Morais e Cecília Meireles. Outro aspecto a ser con-

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146 Letramento Literário na Escola Indígena Tekator da Aldeia Apinayé Mariazinha

A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

siderado é o fato de esses alunos, ao adentrarem neste vasto e rico universo da escrita de textos literários, encontrarem a fonte para uma literatura que estabelece uma comunhão entre leitor e poesia, primando pelo prazer, pela apreciação do belo e pela liberdade de criação, promotora das subjetividades.

Segundo Azevedo (2005), falar em literatura significa falar em fruição e discurso poético, mas muito mais do que isso. Significa abordar assun-tos vistos, invariavelmente, do ponto de vista da subjetividade. Significa a motivação estética. Significa remeter ao imaginário. Significa entrar em contato com especulações e não com lições.

Nota-se, portanto, que esses alunos conseguiram apreender com mui-ta propriedade os elementos que compõem o gênero poético, resultado do trabalho docente. Eles demonstram que sabem o que é poesia, que têm noção da versificação. Contudo, em sua produção, eles não se apresentam como indígenas. Nos seus poemas não há traços de uma identidade indíge-na que possa marcar os textos. Existe, sim, uma evidente subjetividade e a alma apaixonada que existe dentro de cada poeta.

Entretanto, percebemos que a natureza está presente nos escritos des-ses alunos. O sol e a lua são elementos muito significativos para os indíge-nas, porquanto o universo cosmológico por eles vivenciado se utiliza desses astros para explicar a criação do mundo e da vida. Talvez aí estejam, mesmo que acentuadamente, alguns aspectos da vida na aldeia. Lua, sol, céu, flores são vocábulos recorrentes em meio às reflexões acerca do amor e da paixão que permeiam cada verso, e também fazem parte do dia-a-dia de cada um destes estudantes.

Fazendo uma análise do estado da arte no tocante à literatura indí-gena no Brasil, constatamos com agradável surpresa que existe um grande número de autores indígenas que escrevem poesia e que são recorrentes eventos nacionais divulgando o trabalho desses povos. E isso não se limita ao gênero poético, mas também a romances e narrativas voltadas para o pú-blico infanto-juvenil, com uma boa aceitação da crítica literária brasileira.

Considerações Finais

É inegável que existe uma grande preocupação dos sistemas educa-cionais brasileiros, seja em nível Federal, Estadual ou Municipal, acerca da efetivação de uma educação que não apenas alfabetize, mas que eleve os estudantes à condição de letrados, conforme evidenciou o diálogo com o corpo teórico que sustenta este trabalho.

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147Severina Alves de Almeida, Francisco Edviges Albuquerque

A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

O estudo sobre letramento literário que aqui se desenvolveu, vem ao encontro do que rezam as Orientações Curriculares do Ensino Médio no tocante ao estudo de literatura, entendendo por alguém letrado em litera-tura não apenas o leitor de uma obra literária, mas aquele que, ao lê-la, dela se apodera, fruindo-a por meio da fruição estética e da estesia.

Constatamos que as práticas didáticas e pedagógicas dos professores de literatura nas escolas indígenas incorporam elementos conceituais do letra-mento literário, muito embora, ao serem indagados sobre o que entendem por letramento literário, os professores demonstrassem desconhecer do que se tratava, evocando superficialmente o letramento em leitura. Isso corrobo-ra o que os autores consultados dizem sobre esta prática, ou seja, que, para que alguém seja considerado letrado em literatura, basta ser um leitor que consegue extrair das obras que lê elementos que de certa forma o torne im-pregnado de seu conteúdo, ocorrendo uma espécie de encantamento.

No caso dos alunos indígenas que participaram com seus textos, ficou evidente que eles detêm conhecimento prévio de elementos próprios de sua cultura, mas poderiam ser mais relevantes no estudo da literatura, como por exemplo, os mitos Apinayé. No entanto, partindo do conceito de literatura adotado neste trabalho, ou seja, de que a literatura refere-se à fruição estéti-ca, e de que essa fruição implica no estabelecimento de um tipo de relação entre leitor e texto marcada pela gratuidade, o letramento literário passa a envolver não só as práticas sociais de uso da escrita literária, num sentido mais especializado dos textos canônicos, mas todas as práticas sociais da escrita ficcional usada com a finalidade de se obter prazer, gratuidade e eva-são, ou seja, de fuga da realidade para um mundo bem mais agradável.

Para finalizar, retomamos o trabalho junto aos professores e alunos da aldeia Mariazinha, aprovando a atitude dos professores que, na busca por mecanismos que os auxiliem na árdua tarefa de ensinar literatura para alu-nos indígenas, encontraram uma metodologia eficaz. E essa metodologia, ao proporcionar que os alunos se apoderem de seu teor, de moda a traduzirem os conhecimentos adquiridos em forma de textos poéticos tão salutares, nos leva a avaliar a prática docente nesta escola como letramento literário. Utopia ou não, esta é uma prática possível também na educação escolar indígena.

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148 Letramento Literário na Escola Indígena Tekator da Aldeia Apinayé Mariazinha

A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

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A Educação Escolar Indígena Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural: implicações com base na Lei 11.645/081

Severina Alves de Almeida2

Fernanda de Oliveira Fernandes3 Alex Dias da Conceição Silva4 Ediléia Maria da Silva5 Gustavo Carvalho Viveiros6 Carlos Joeverson Azevedo de Oliveira7

Introdução

A interculturalidade no âmbito da educação escolar tem se apresen-tado como fonte de preocupação dos sistemas de ensino não apenas do Brasil, mas em todos os países que historicamente se encontram envolvidos com a questão indígena. Essa realidade não permite mais a indiferença,

1. Trabalho vinculado ao Projeto de Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural do Programa do Observatório de Educação Indígena, coordenado pelo Prof Dr. Francisco Edviges Albuquerque. CAPES/SECAD/INEP/UFT 2010/2011.

2. Mestranda do PPGL – Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Tocantins, Campus de Araguaína, no MELL - Mestrado em Língua e Literatura e bolsista do Programa do Observatório de Educação Escolar Indígena/CAPES/SECAD/INEP.

3. Bolsista de Graduação do Programa do Observatório de Educação Escolar Indígena/CAPES/SECAD/INEP.

4. Bolsista de Graduação do Programa do Observatório de Educação Escolar Indígena/CAPES/SECAD/INEP.

5. Bolsista de Graduação do Programa do Observatório de Educação Escolar Indígena/CAPES/SECAD/INEP.

6. Bolsista de Graduação do Programa do Observatório de Educação Escolar Indígena/CAPES/SECAD/INEP.

7. Bolsista de Graduação do Programa do Observatório de Educação Escolar Indígena/CAPES/SECAD/INEP.

6

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

nem tampouco o descaso com as sociedades que, por séculos, exerceram/exercem hegemonia sobre os povos colonizados, buscam mecanismos de resgate de uma dívida que perdura há mais de cinco séculos. Além disso, é preciso que se efetivem os dispositivos legais assegurados em documentos normativos, como é o caso dos Art. 210 e 215 da Constituição Federal do Brasil (CRF/1988).

Nesse sentido, realizamos um estudo que tem por objetivo promo-ver um estudo acerca da Educação Escolar Indígena Apinayé na perspectiva bilíngue e intercultural, fazendo um diagnóstico acerca da interculturalida-de na educação escolar, tanto na esfera da escolarização dos povos indíge-nas, quanto da nossa sociedade, considerando a necessidade de se estabe-lecer redes de convivência que permitam diálogos interculturais, tendo em vista a realidade vivenciada na fronteira étnica. Isso porque acreditamos ser papel da educação escolar promover e efetivar a interculturalidade, desde que o processo educativo se dê num campo privilegiado onde interagem diferentes culturas em meio a diferentes realidades.

Esta pesquisa se realiza a partir das ações do Projeto de Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural do Programa do Observatório de Educação Indígena, coordenado pelo Professor, Francisco Edviges Albuquerque, com a CAPES/UFT 2010/2011, equipe de pesqui-sadores, nomeadamente dos estudantes de graduação contemplados com bolsas do referido Projeto. Além disso, realizamos uma pesquisa bibliográ-fica. Esta se deu quando dialogamos com as bases teóricas que contemplam estudos acerca da interculturalidade, da educação escolar indígena e não indígena, sobre os Apinayé e, com mais veemência, o texto que trata da Lei 11.645/08. Autores como Francisco Edviges Albuquerque, Terezinha Maher, e Luiz Donizete Benzi Grupioni, no conjunto de suas obras, tiveram importância relevante, sendo que os resultados alcançados, em grande par-te, são creditados aos estudos destes teóricos. A parte empírica da pesquisa se deu nos domínios sociais Apinayé das aldeias São José e Mariazinha.

Com efeito, o texto está estruturado em dois momentos que se im-bricam na contextualização da questão da interculturalidade na sala de aula, num cenário que comporta realidades distintas, tanto cultural quan-to socialmente. Primeiro, fazemos uma reflexão sobre interculturalidade e educação escolar indígena, analisando e descrevendo conceitos e espe-cificidades que cada termo comporta, tendo como foco os resultados da pesquisa realizada pelo Programa do Observatório de Educação Escolar Indígena Apinayé. Em seguida, são tecidas considerações acerca do contex-

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

to educacional e intercultural dos Apinayé, tendo como ponto de partida a Lei 11.645 de 8 de março de 2008. Concluímos com algumas conjecturas, apontam para a necessidade de regulamentar o que traz a Lei em estudo.

Interculturalidade e Educação Escolar Indígena na Perspectiva Bilíngue e Intercultural: os Apinayé

O Brasil é um dos países com maior número de diferenças étnicas do mundo. Apesar de as questões de diversidade cultural serem discutidas por diversas entidades que se preocupam com essa abordagem, sabe-se que ainda existem atitudes preconceituosas quanto a isso.

Durante o período colonial, os povos indígenas eram vistos como in-capazes de criar seu próprio sistema educacional. Sendo assim, a socieda-de majoritária controlava todo esse processo dentro das aldeias. Não havia métodos diferentes para o ensino indígena: o que se estudava em uma es-cola de não indígena também se aprendia numa escola indígena. Segundo Gruzinsk (2001), historicamente, a educação escolar entre os povos indíge-nas, no Brasil, representou um recurso fundamental à construção de identi-dades colonizadas. Isso, por sua vez, favoreceu a emergência de um sistema unificado incapaz de assistir diferentes culturas dentro da escola.

Todavia, nas últimas décadas do século XX, e neste início do século XXI, as comunidades indígenas, contando com o apoio de algumas ONG’s – Organizações Não Governamentais - conseguiram ressonância de suas reivindicações, ainda na Constituição de 1988, a qual garante uma educa-ção indígena específica e diferenciada, assegurando que “O Estado prote-gerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo de civilizatório nacional”. (Art. 215).

Contudo, vinte e dois anos após a promulgação da Carta Magna, essas comunidades ainda são despojadas do processo educacional do governo, isto é, de uma política pública onde professores/as e alunos/as não são pres-sionados a frequentar um ambiente escolar totalmente descontextualizado de suas realidades socioculturais e linguísticas. Realidades estas presentes nas aldeias Apinayé de São José e Mariazinha, povos indígenas que habitam no extremo norte do estado do Tocantins. Nestas escolas, constatamos que o currículo escolar é inadequado ao processo de aprendizagem de alunos do 2º ano do ensino fundamental, no qual as crianças são obrigadas a es-tudar em ambiente fechado, em um ambiente diferente do pátio da aldeia

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onde elas brincam e adquirem os conhecimentos sobre sua história e sua cultura.

Porém, os estudantes Apinayé, assim como os demais povos indígenas brasileiros, têm assegurado pela Constituição Federal do Brasil (CRF/1988), o direito de “o ensino fundamental regular ser ministrado em língua portu-guesa, bem como a utilização de suas línguas materna e processos próprios de aprendizagem”, (Art. 210), favorecendo a emergência de uma educação específica, bilíngue e diferenciada das demais escolas, quer sejam urbanas ou indígenas, conforme Maher (2005). Entretanto, percebemos que na es-cola Tekator da aldeia Mariazinha os professores dos anos iniciais do ensi-no fundamental se revezam na tentativa de promover uma aula “diferente”. Isso ocorre quando esses professores se juntam aos demais que lecionam em classes de alfabetização e se deslocam com os alunos para uma “aula de campo”, quando a aldeia e seu entorno se apresentam como palco de uma aula contextualizada, onde a cultura indígena está presente e a interação entre escola e comunidade se efetiva.

Essa prática educativa encontra ressonância em Fornet (2007), o qual assegura que toda cultura desenvolve sistemas referenciais próprios que se condensam em tradições que, por sua vez, servem como últimas fronteiras para tudo o que resulta familiar e compreensível no interior desta cultura. Não obstante, todo esse processo intercultural é uma forma de inserção, capaz de dar oportunidades a diferentes grupos, em diferentes e múltiplas realidades.

Com efeito, a interculturalidade pode ser vista de diversas maneiras, como, por exemplo, incentivadora da tolerância na diversidade; da valori-zação da pluralidade cultural e na revisão das tradições, negando a existên-cia de uma única cultura, de uma única força dominante, buscando assim equilíbrio entre o pluralismo linguístico

Não obstante, a interculturalidade, quando pensada no cotidiano de uma escola indígena, está intrinsecamente ligada à questão do conheci-mento. Não se propõe, por exemplo, que para garantir o caráter intercultu-ral deva haver necessariamente professores não indígenas e indígenas tra-balhando lado a lado na sala de aula. Ou que o prédio da escola deva conter características arquitetônicas indígenas e ocidentais, ao mesmo tempo.

Já vimos como a escola, no modelo assimilacionista (MAHER, 2005), lidava com essa questão – os conhecimentos adequados às suas finalidades eram os trazidos pelos europeus. Os povos indígenas foram considerados como incapacitados, em consequência, teriam de receber tudo dos que aqui

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chegavam. Gandavo (apud Paula, 1999, p. 78), um dos cronistas quinhen-tistas, ao comentar o idioma dos indígenas, assim se expressou: “não se acha nele F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem lei, nem rei”.

A ausência de autoridades políticas fortemente centralizadas, de có-digos escritos e de ídolos aos quais devotassem cultos, isso tudo acrescido do fato de a língua dos grupos tupi, com os quais os portugueses entraram em contato por primeiro, não possuir os fonemas /f/, /l/ e /r/, levou à con-clusão de que os povos indígenas não possuíam nem leis, nem reis, nem fé e, é claro, nem conhecimentos, nem educação! É óbvio que o modelo de comparação pautava-se por parâmetros europeus, transparecendo nesses comentários uma visão de mundo marcadamente etnocentrista.

Com efeito, Paula (1999, p. 78-79) acredita que essa concepção do in-dígena como alguém incapacitado, sem conhecimentos e que, por isso, tem de receber tudo de alguma outra sociedade, de outros povos que, por sua vez, se consideram “superiores”, caracteriza um processo de escolarização desenvolvido para atender aos interesses colonialistas, notadamente no que concerne à invasão e posse da terra, à “domesticação” desses povos para o trabalho escravo etc. “Infelizmente, essa concepção se encontra ainda bas-tante presente nas relações entre o Estado brasileiro e os povos indígenas, so-bremaneira nos assuntos ligados à educação escolar”. (PAULA, 1999, p. 79).

Assim, se inicia um longo período em que a educação foi planejada para os indígenas, seguindo um modelo transplantado de outros povos, de outro mundo, sem considerar a realidade dos povos indígenas, seus conhe-cimentos, suas cosmovisões, suas culturas, seus costumes, enfim, suas vidas.

Paula (1999) acredita que em detrimento da violência, do desrespeito e da ausência de alteridade, que têm marcado as ações dos colonizadores perante os povos indígenas nesses últimos cinco séculos, “constata-se que essas sociedades – as que, felizmente, sobreviveram ao extermínio físico – desenvolveram estratégias para resistir aos invasores,” (ibid. p. 80), e cita Melià enfatizando que:

Estos pueblos no sólo superaron la prueba del período colonial, sino también el de los embates de la asimilación e integración de tiempos más recientes. ¿Cómo lo lograron? Y ¿hasta qué punto conseguirán mantener esa alteridad e identidad diferente? Los pueblos indígenas han mantenido su alteridad gracias a estrategias, de las cuales una es la acción pedagógica. En otros términos: ha seguido habiendo en estos

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pueblos una educación indígena que permite que el modo de ser y la cultura se reproduzcan en las generaciones nuevas, pero también se encare con relativo éxito nuevas situaciones. (PAULA, 1999, p. 80).

Nesse sentido entendemos, assim como Paula (1999), que essas ações pedagógicas, promotoras da interculturalidade, têm possibilitado a manu-tenção das alteridades e, não obstante, revestem-se de características dife-renciadas segundo a cultura própria de cada sociedade indígena.

Dessa forma, a educação escolar para os povos indígenas deve, neces-sariamente, ser diferente em teor e convergir para a afirmação das identi-dades de cada povo, quer seja linguística, política ou cultural, sinalizando sempre para a autodeterminação, autogestão e autoafirmação, respeitando suas diferenças e singularidades.

Os Apinayé e a Escola

Os Apinayé, segundo Albuquerque (2007, p. 21), consideram-se uma ramificação dos Timbira do Leste do Rio Tocantins, especialmente dos Kri-kati, chamados por eles Makráya, que viviam nas margens do rio Pindaré. Para Nimuendaju (1983:1) apud (Albuquerque 2007:21), se essa tradição realmente corresponde aos fatos históricos, a separação das duas comuni-dades deve datar de muitos séculos, uma vez que os Apinayé se distinguem tanto linguística como culturalmente daqueles que consideram seus paren-tes, ao Leste, aproximando-se mais dos Kaypó setentrionais.

Para Albuquerque (1999:5), a existência dos Apinayé no extremo nor-te do Tocantins é conhecida desde o século XVIII, quando os rios Araguaia e Tocantins começaram a ser navegados pelos jesuítas e bandeirantes. Esse autor assegura que os indígenas Apinayé eram considerados como os mais poderosos da região, possuíam aldeias bastante numerosas, praticavam a agricultura e produziam seus próprios artefatos como, por exemplo, cano-as. Atualmente a população Apinayé é de aproximadamente 1.793 indíge-nas, distribuídos por 19 aldeias situadas numa área delimitada pelo decreto 90.960 de 14/02/1985, com extensão de 141.904 ha.

No tocante à educação escolar indígena entre os Apinayé, Albuquer-que (2007:83) nos informa que esta teve início na década de 1960, nas al-deias de São José e Mariazinha, introduzida por Patrícia Ham, membro do Summer Institute of Linguistc (SIL), no então Estado de Goiás. Para esse autor, naquela época, as políticas educacionais para os Apinayé, não eram

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diferentes daquelas oferecidas aos demais grupos indígenas, que eram com-patíveis às práticas pedagógicas desenvolvidas pelas escolas das comunida-des rurais brasileiras.

Após alguns anos da implantação da educação indígena nas escolas das comunidades Apinayé, segundo os relatórios da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), os primeiros materiais escritos nessa língua foram elabo-rados pelo Summer Institut of Linguistc (SIL) em 1962. De acordo com o referido relatório, à proporção que os estudos avançavam, novas cartilhas e novas versões das cartilhas, já existentes, eram elaboradas. Esta data marca a primeira edição da “Cartilha de História Apinayé”. Além deste volume, foram publicados outros cinco: Livro de lendas 1, Livro de lendas 2, Leitura Suplementar das Cartilhas e Introdução à Leitura e Livro de caligrafia. Após essas publicações, vieram outras cinco cartilhas de alfabetização (PUME KAGÁ PUMU), Livro de Canções Novas na Língua Apinayé (livro de cunho religioso) e Aspectos da Língua Apinayé. (ALBUQUERQUE, 2007, p. 84).

Atualmente a escola tem se apresentado como um elo para aproxima-ção dos Apinayé com a sociedade de seu entorno, facilitando a situação de contato desse grupo indígena com os demais brasileiros. As aldeias são José e Mariazinha e suas escolas, Mãtyk e Tekator, respectivamente, funcionam como sede das escolas de outras aldeias. Porém, das 24 aldeias Apinayé, apenas 13 possuem escolas, sendo que 11 escolas atendem aos alunos do primeiro ao quarto ano do Ensino Fundamental. As escolas das aldeias Ma-riazinha e São José possuem Ensino Fundamental e Médio e, juntamente com as outras escolas que a estas se agrupam, contam atualmente com 899 alunos matriculados regularmente.

Em relação à escola da aldeia São José, esta foi construída com uma arquitetura moderna, conta com espaço apropriado para as aulas, boa ilu-minação, ventilação adequada, com salas de aulas espaçosas, biblioteca, sala de professor, sala da coordenação, cozinha, alojamento masculino/femini-no para professores e banheiros masculino/feminino para os alunos, além de uma sala de computação com seis computadores. Já na escola da aldeia Mariazinha, o prédio é antigo e as instalações são precárias. São 4(quatro) salas de aula com ventiladores que não funcionam; 1(uma) sala da aula im-provisada no pátio da escola; 1 (uma) sala onde funciona a secretaria, com computador, não tem ar condicionado, apenas um ventilador; 1(uma) sala para os professores; 1(uma) cantina sem água na pia; 2(dois) banheiros, um feminino e um masculino; não tem telefone, nem mesmo comunitário em forma de orelhão no pátio da escola; não tem biblioteca.

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Apesar de toda essa situação que em nada favorece uma ação educa-tiva eficaz, o corpo administrativo e docente da escola se esforça para que as aulas sejam prazerosas. Pelo menos foi isso que observamos ao acompa-nhar 3 (três)turmas dos anos iniciais do ensino fundamental. Esses profes-sores unem-se no sentido de promover aulas nas quais as crianças saiam das quatro paredes da sala de aula e no pátio da aldeia e em seu entor-no, valendo-se de um ambiente favorecido pela natureza, fazem com que alunos e alunas apreendam os conteúdos ministrados vivenciando in loco, numa demonstração em que o professor e sua metodologia podem fazer a diferença, mesmo num ambiente desfavorável.

Nesse sentido, Maher (2006) entende que a escola indígena se confi-gura como uma situação limite em termos de educação.

Nela, parece-me, as dificuldades, os dilemas são sempre colocados de forma muito contundente, o que obriga o educador a ter que olhá-los prontamente de frente. Porque creio que problemas semelhantes apare-çam de forma mais sutil, ou não são postos com a mesma urgência, em outras esferas educativas, suspeito ser freqüentemente mais fácil con-temporizar a busca de soluções para esses problemas ou até mesmo não reconhecê-los como tais. (MAHER, 2006, p. 11-12).

Pudemos observar que a educação desenvolvida pelos professo-res indígenas, notadamente os indígenas Apinayé, pode ser enquadra-da no “Paradigma Educacional Emergente” (MORIN, 2001), ou seja, uma educação que rompe com a barreira do que tradicionalmente se exerce em nossas escolas: uma educação restrita ao espaço físico da escola, entre quatro paredes e com aplicação de conteúdos previamente estabelecidos, numa menção clara de uma aprendizagem baseada na “Educação Bancária” (FREIRE, 1997). Ademais, essa nova concepção de educação pode ser vista como “Transdisciplinar”, (NICOLESCU, 2008), desde que a metodologia desses professores extrapole os limi-tes pré-estabelecidos e direcionem suas aulas aglutinando as diferentes áreas do conhecimento, pois a aldeia e seu entorno oferecem elementos para se trabalhar disciplinas como matemática, língua materna, geo-grafia e ciências etc.

Nesse sentido a educação, numa concepção transdisciplinar, perpassa e ultrapassa o campo interdisciplinar, propiciando modos de compartilhar saber, reconhecendo os diferentes níveis de realidade, ultrapassando o ter-

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ritório científico, criando espaços de diálogos multirreferenciais com as di-versas culturas, com a vida de cada grupo humano, abrindo possibilidades de visões plurais a respeito de um fenômeno ou conceito, ou a respeito da complexidade da própria vida (MORIN, 2001).

Segundo Batista (s/d. p.6), este educar cria e recria espaços de afeti-vidade, de amor, de sensibilidade, de transgressões no processo educativo. Constrói pontes dialógicas vivas com o conhecimento, não havendo uma hierarquização de saberes, de sorte que

[...] O essencial na transdisciplinaridade e na educação indígena re-side na postura de reconhecimento de que não há espaço nem tempo culturais privilegiados que permitam julgar e hierarquizar como mais corretos (...) os mais diversos complexos de explicações e de convivên-cia com a realidade. A transdisciplinaridade repousa sobre uma atitude mais aberta, de respeito mútuo e mesmo humildade em relação a mi-tos, religiões, sistemas de explicação e de conhecimentos, rejeitando qualquer tipo de arrogância ou prepotência: O essencial na transdici-plinaridade reside na postura de reconhecimento de que não há espaço nem tempo culturais privilegiados que permitam julgar e hierarquizar como mais corretos (...) os mais diversos complexos de explicações e de convivência com a realidade. A transdiciplinaridade repousa sobre uma atitude mais aberta, de respeito mútuo e mesmo humildade em relação a mitos, religiões, sistemas de explicação e de conhecimentos, rejeitando qualquer tipo de arrogância ou prepotência. (D’AMBRÓSIO, 1997: 80) apud (BATISTA, S/D. P.6).

Não obstante, a educação transdisciplinar rompe com a forma frag-mentária de pensar e tratar o conhecimento, aproximando a práxis peda-gógica do mundo das (inter)relações que se configuram no processo edu-cativo, que se configuram na arte de aprender.

A práxis pedagógica, portanto, mediada pela educação transdisci-plinar, vivencia o educar sem interromper sua heterogeneidade, pressu-pondo o exercício da flexibilidade, pois possibilita a vazão de um amplo espectro de referenciais, promovendo uma travessia do eu para o nós, da constituição do sujeito singular para o sujeito plural, (re)vitalizando uma pedagogia crítica que tenha como esteio a autonomia de raciocínio do educando, a solidariedade, o entrecruzar entre o saber epistêmico e o sa-ber da comunidade.

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A Lei 11.645 de 10 de Março de 2008

Com efeito, a necessidade de ampliação do diálogo, ancorado numa educação intercultural, voltado para a implementação da Educação para as Relações Etnicorraciais, veio à tona mediante a edição da Lei 11.645 de 10 de março de 2008. Essa lei modificou o mesmo dispositivo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96), alterado pela Lei 10.639/2003, estendendo a obrigatoriedade do “estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena” em todos os estabelecimentos de Ensino Funda-mental e de Ensino Médio, públicos e privados. Também estão na ordem dessa Lei as modalidades de Educação Infantil, Educação de Jovens e Adul-tos (EJA) e Instituições de Ensino Superior (IES). O texto da Lei 11.645/08:

Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de en-sino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.Art. 1o. O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.§ 1o. O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá di-versos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o ne-gro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à his-tória do Brasil.§ 2o. Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o cur-rículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. (NR).

Nessa perspectiva, a Lei 11.645/08 precisa ser sistematizada da mesma forma que o foi a Lei 10.639/03. Sendo assim, os sistemas de educação, quer

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seja nas esferas federal, estadual ou municipal, devem, necessariamente, produzir material de orientação e apoio aos professores, além de disponi-bilizar cursos de capacitação, na condição de “Formação Continuada”, no sentido de preparar o docente para uma efetiva assimilação do conteúdo da Lei. Ademais, nesta proposta, devêm estar implícitos os objetivos, bem como as implicações que advém de tal proposta, uma vez que é importante não apenas a conscientização como também a sensibilização de todo corpo educativo da instituição educativa.

É importante ressaltar que o fato de a Lei 11.645/08 estar vincula-da à Lei 10.639/03 deixa margem para que a temática “indígena” fique em segundo plano. Isso porque verificamos que não se encontra em nenhum documento oficial alusão específica à modalidade de ensino “Educação In-dígena”, quanto à prática da referida Lei. Isso pode ser corroborado já no documento “Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História E Cultura Afrobrasileira e Africana”. Este documento oficial, edi-tado em 2009, no item VIII, trata das “Modalidades de Ensino” nas páginas 51 â 54, explicita “8.1 – Educação de Jovens e Adultos; 8.2 – Educação Tec-nológica e Formação Profissional; e IX – Educação em áreas remanescentes de quilombos”. Mas nada é dito sobre a Lei 11.645/08.

Como se percebe, em cada um desses subitens estão contidas as dire-trizes didático-pedagógicas que irão direcionar cada um dos sistemas edu-cacionais na promoção de ações para implantação dos dispositivos da Lei 11.645/08. Contudo, a modalidade “Educação Indígena” está fora, o que nos leva a acreditar que este seja um assunto tratado de forma secundária. Apenas nos preâmbulos do referido Plano se faz alusão à Lei 11.645/08, e sempre de maneira generalizada.

Contudo, percebemos que o texto do Plano faz a seguinte advertência:

[...] A necessidade de ampliação do diálogo para implementação da Educação para as Relações Etnicorraciais foi dada também pela edi-ção da Lei 11645/2008, que tornou a modificar o mesmo dispositivo da LDB alterado pela Lei 10639/2003, estendendo a obrigatoriedade do “estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena” em todos os estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados. Uma vez que a Lei 11645/08 ainda não recebeu a sistema-tização que foi objeto a Lei 10639/03, este Plano, sempre que couber, orienta os sistemas e as instituições a adotar os procedimentos ade-

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quados para sua implementação, visto que a Lei mais recente conjuga da mesma preocupação de combater o racismo, desta feita contra os indígenas, e afirmar os valores inestimáveis de sua contribuição, passa-da e presente, para a criação da nação brasileira. (PLANO NACIONAL DE IMPLEMENTAÇÃO DAS DIRETRIZES CURRICULARES NA-CIONAIS PARA EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ETNICORRACIAIS E PARA O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFROBRASILEIRA E AFRICANA, 2009:21).

Como se percebe, a Lei 11.645/08 precisa ser regulamentada e, assim como a Lei 10.639/03, deve ter seu próprio plano de implementação. Po-rém, o que não está muito claro é até que ponto uma lei é desvinculada da outra, pois o que parece é que se trata de uma mesma lei, e não de duas leis separadas. Mas ao lermos o Plano acima descrito, fica claro que estamos tratando de duas leis distintas. Sendo assim, um trabalho a mais para as se-cretarias de educação é ler o referido Plano, transferindo suas proposições paro o âmbito da Lei 11.645/08.

Com efeito, essa dúvida que nos acometeu ao refletirmos mais de-moradamente quando analisamos a Lei 11.645/08 e sua regulamentação, certamente se estenderá aos professores e professoras que buscam uma in-teração maior acerca do referido texto. Ademais, como sabemos das difi-culdades que professores e professoras enfrentam cada vez que precisam incorporar às suas práticas pedagógicas uma nova resolução, com esta não é diferente. Além de uma adequada capacitação, existe a necessidade de material didático correspondente. Sem uma diretriz que auxilie os docen-tes, a situação fica bem mais difícil.

A noção que cerca o sentido da interculturalidade na educação está fortemente vinculada ao confronto entre duas ou mais culturas no âmbito de uma determinada sociedade. No caso da educação escolar dos povos indígenas brasileiros, esta noção está bem presente. Afinal, esses povos pre-cisam se relacionar com a sociedade de seu entorno para poder estabelecer vínculos sociais que se estendem para o campo do trabalho, da educação escolar, da saúde etc. A partir do momento em que um indígena nasce, sua dependência em relação à sociedade envolvente é efetivada. Quando essa criança atinge a idade de frequentar a escola, esse atrelamento se acentua mais ainda. Isso porque a escola para os indígenas, além de intermediar uma inevitável interculturalidade, se apresenta como uma imposição da cultura dos não indígenas sobre aquelas sociedades de menor poder.

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Segundo Maher (2007), desde que a escola nos moldes ocidentais en-tra nas aldeias indígenas como decorrência do contato com a sociedade envolvente, isto é, com os não índios, a questão da interculturalidade, ou seja, de conseguir fazer dialogar conhecimentos e comportamentos cons-truídos sob bases culturais distintas e frequentemente conflitantes, deve ser entendida como o esteio, como a razão de ser da escola indígena. Para essa autora, o desafio posto pela interculturalidade não pode, nesse contexto, ser entendido como um plus, como um bônus, porque o investimento no alicerce é o que justifica a existência dessa escola, é o que a ela dá relevância política (MAHER, 2006).

Nesse sentido, a Lei 11.645/08, ao determinar que a história e a cultura dos povos indígenas brasileiros devem ser contempladas no currículo ofi-cial dos nossos sistemas de ensino, públicos e privados, está acenando com a possibilidade se estabelecer mecanismos que favoreçam a unidade em meio à diversidade. Diversidade essa que se apresenta também no âmbito da sociedade majoritária.

Com efeito, a Constituição Federal do Brasil (CRF/1988), foi um marco na redefinição das relações entre o Estado brasileiro e as sociedades indíge-nas. Segundo Fleuri (2004), esse documento normativo passou a assegurar o direito das comunidades indígenas a uma educação escolar diferenciada, es-pecífica, intercultural e bilíngue. Para esse autor, os indígenas brasileiros dei-xaram de ser considerados categoria social em vias de extinção e passaram a ser respeitados como grupos étnicos diferenciados, com direito a manter sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. A Constituição Federal assegurou a esses povos o uso de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem, devendo o Estado “proteger” suas manifestações culturais. Ademais, fica garantido às comunidades indígenas o acesso a uma escola com características específicas, que busque a valorização do conhe-cimento tradicional vigente em seu meio, ao mesmo tempo em que forneça instrumentos necessários para enfrentar o contato com outras sociedades.

Tudo isso será facilitado a partir do momento em que as escolas colo-quem em prática o que reza a Lei 11.645/08. Afinal, é com o advento dessa Lei que as escolas de nossa sociedade, assim como já acontece nas escolas dos territórios indígenas, irão efetivar práticas pedagógicas que contem-plem e valorizem a história dos povos que já habitavam as terras brasileiras mesmo antes da invasão dos europeus.

Como visto anteriormente, essa lei por si só não garante uma rela-ção dialógica rumo à interculturalidade. Mecanismos de aperfeiçoamento,

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bem como o empenho dos órgãos competentes, responsáveis pelas políticas públicas voltadas para a educação escolar, são inegociáveis. Nesse sentido Grupioni (2001) assinala que, por mais que um país detenha uma vasta legislação que garanta aos indígenas direitos inalienáveis, isso não é sinal de sua efetivação. Antes, precisa-se divulgar e cobrar sua execução para, a partir daí, criar formas de sua aplicabilidade, na prática. Sensibilizar a to-dos que se encontram envolvidos com a questão é fundamental.

Segundo Fleuri (2004), o amadurecimento da sensibilidade para com o tema das diferenças culturais é uma conquista recente, mas é primordial. Entretanto, o problema do encontro e do conflito entre culturas é antigo e tem sido enfrentado e resolvido geralmente valendo-se de perspectivas etnocêntricas, que pretendem impor o próprio ponto de vista como o único válido. “De modo particular, no mundo ocidental a cultura européia tem sido considerada natural e racional, erigindo-se como modelo da cultura universal. Desse ponto de vista, todas as outras culturas são consideradas inferiores, menos evoluídas”, (FLEURI, 2004 18), justificando-se, assim, o processo de colonização cultural. Daí a importância de se promover ações como essa que trouxe à tona a Lei 11645/08.

O Programa do Observatório de Educação Indígena Apinayée a Lei 11.645/08

A UFT – Universidade Federal do Tocantins campus de Araguaina – através da atuação do Prof. Francisco Edviges Albuquerque e sua equipe de pesquisadores- desenvolve um trabalho com a Sociedade Indígena Api-nayé denominado “Projeto de Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural do Programa do Observatório de Educação Indíge-na”, CAPES/UFT 2010/2011. As ações deste pesquisador têm contribuído sobremaneira na consecução de práticas interculturais, atuando principal-mente na realidade das fronteiras étnicas e linguísticas, o que favorece o entendimento acerca do que determina a Lei 11.645 de março de 2008.

Com sabemos, uma educação que atenda aos anseios das sociedades modernas precisa pautar-se nos pressupostos da interculturalidade, promoto-ra e executora de redes e teias dialógicas que se encontra na agenda das políti-cas públicas voltadas para a questão das minorias étnicas brasileiras. Todavia, essa prática educativa deve acontecer em todos os ambientes onde dialoguem diferentes povos com suas diversificadas culturas, o que reflete a importância de trabalhos como o projeto coordenado pelo Prof. Albuquerque.

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Nesse sentido consideramos pertinente apresentar um depoimento de um dos alunos de graduação que atua como bolsistas do Projeto, uma vez que, por estarem iniciando sua vida acadêmica, notadamente sua atu-ação como jovens pesquisadores, é importante registrar suas impressões, principalmente porque praticar o que determina a Lei 11.645/08 depende também da atuação destes enquanto futuros professores da Educação Bási-ca. Todavia, e visando preservar a identidade do informante, optamos por apresentá-lo como Bolsista I.

Sabe-se que a Universidade é um campo aberto, cheio de oportunida-des para os acadêmicos poderem aprimorar ideias, expandirem conhe-cimento e ao mesmo tempo, adquirir novos conhecimentos. E é isso que o Observatório de Educação Indígena apoiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES proporcio-na. Muito além do apoio financeiro que é cedido para a fomentação do projeto, está a oportunidade de crescimento do estudante, gerando uma maior aproximação do aluno com o universo acadêmico/cientifico. Esse caminho acadêmico/cientifico pode ser o mais longo e até mesmo o mais difícil, porém, é o mais gratificante, pois estimula o crescimento pessoal do aluno e formação profissional. A oportunidade de se estar em tipos de bolsa como a do Observatório de Educação Indígena é única, nos dá a chance de conhecer outra cultura e ao mesmo tempo aprender com ela. E acima de tudo, poder contribuir para a comunidade através dos resul-tados da pesquisa. Dessa forma, essa experiência, poderá ser utilizada em benefício próprio para o acadêmico. Pois assim está-se aumentando o conhecimento em uma determinada área, que poderá ser um ramo de atuação futura. Portanto, é notável que, quando o aluno se envolve nesse tipo de projeto, ocorre um grande amadurecimento, tanto pessoal, pelo fato de ter que escrever, discutir, participar de reuniões, palestras, deixando de ser desinibido como profissional, dando-lhe oportunidades para desenvolver próprios projetos futuramente.(BOLSISTA I).

A fala dessa aluna bolsista é expressiva, ao mesmo tempo em que ela reflete sobre a importância da iniciação científica para seu futuro acadêmi-co ela exalta a proposta do Projeto chamando a atenção para o fato de que o apoio financeiro do qual se beneficia, além de significativo, pois apoia o estudante em suas demandas pessoais, tem no fortalecimento de sua for-mação aspecto preponderante.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Considerando que um dos objetivos da Lei 11.645/08 é promover o diálogo entre as culturas, com ênfase na divulgação, em nossas escolas, dos aspectos culturais dos povos indígenas brasileiros, nomeadamente no tocante à contribuição que esses povos tiveram na construção da Nação Brasileira, percebemos que a grande contribuição do Projeto de Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural do Programa do Observatório de Educação Indígena, CAPES/UFT 2010/2011, reside na promoção de uma rede de diálogo que transpassa a realidade vivenciada por indígenas e não indígenas na região da fronteira étnica.

Considerações Finais

Neste artigo foram tecidas considerações acerca da educação inter-cultural tendo como pano de fundo a Lei 11.645 de 10 de março de 2008. Mediante um estudo teórico, isto é, bibliográfico, buscamos conceituar a interculturalidade no âmbito da educação escolar, considerando a especifi-cidade das escolas de educação indígena, tendo em vista o contexto escolar Apinayé. Uma parte empírica também esteve no horizonte do trabalho.

Com efeito, a educação intercultural encontra na Lei 11.645/08 uma aliança salutar. Através de sua divulgação e posterior implementação, essa lei possibilitará um diálogo mais estreito entre a educação escolar, dentro e fora dos domínios indígenas. Tal constatação se faz a partir do momento em que as escolas de nossa sociedade incorporem em seu currículo, de forma intencional e crítica, assuntos ligados à questão da aceitação das diferenças culturais e também sociais. Nessa situação encontram-se os indígenas bra-sileiros e os afrodescendentes, uma parcela considerável de brasileiros que historicamente estiveram à margem da sociedade não indígena.

Nesse nosso estudo, foram possíveis algumas conclusões. Primeiro, é notório que a educação intercultural, inicialmente, é vista como um atri-buto exclusivo dos povos minoritários. Segundo, que essa mesma intercul-turalidade precisa ser incorporada às escolas de nossa sociedade, pois a relação entre as culturas, no âmbito escolar, deve permear todos os povos envolvidos.

Com base nesses pressupostos, citamos a Lei 11.645/08, documento de importância vital para que se estabeleçam redes e teias de diálogos in-terculturais, com a capacidade de efetivar outros dispositivos contidos em documentos oficiais, como é o caso dos Art. 210 e 215 da Constituição Federal do Brasil (CRF/1988). Apesar de não se notar com tanta clareza

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efetivamente os efeitos dessa Lei, uma vez que precisamos regulamentar sua aplicação na prática, nota-se um esforço coletivo no sentido de se fazer conhecer seu teor, o que já é um considerável avanço pra sua efetivação.

Claro está que a educação intercultural é um caminho sem volta. Não é possível mais as sociedades conviverem com a intolerância e uma aversão que por vezes beira o etnocentrismo e a xenofobia. O diálogo precisa ser vis-to como um imperativo. E a Lei 11.634 de 10 de março de 2008 se apresenta como o elo que poderá fazer essa união. Afinal, indígenas e não indígenas, com sua força e vitalidade, formam uma única nação, a nação brasileira.

Referências

1. ALBUQUERQUE, Francisco Edviges. Contato dos Apinayé de Riachinho e Bo-nito com o português: aspectos da situação sociolingüística. Dissertação (Mes-trado UFG) - Universidade Federal de Goiás. Goiânia: 1999.

2. ______. Contribuição da fonologia ao processo de educação indígena Apinayé. Tese (Doutorado UFF) - Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2007.

3. BATISTA, Hildonice de Souza. Quando as práticas se encontram: transdiscipli-naridade e práxis pedagógica indígena. Disponível em: <http://www.cetrans.com.br>. Acesso em: 03 jan 2011.

4. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96. São Paulo: SINPRO, 1996.

5. _____. Referencial Curricular Nacional para a Educação Indígena. Brasília: MEC/SEF, 2002.

6. ______Lei 10.639 de 9 de Janeiro de 2003. Disponível em: <http://legislacao.planalto.gov.br/>. Acesso em: 02 jan 2011.

7. ______. Lei Nº 11.645, de 10 março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Disponível em: <http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao>. Acesso em: 02 jan 2011.

8. ______. Constituição da República Federativa do Brasil. (CRFB/88). Versão on line. Disponível em: <http://www.senadofederal.org.br>. Acesso em: 03 Abr 2009.

9. ______.Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacio-nais para Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana; Brasília: MEC, 2009.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

10. DA MATTA, Roberto. Um mundo dividido: a estrutura social dos índios api-nayé. Petrópolis: Vozes, 1976.

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7 Observações Acerca da Educação Apinayé: resultados de oficinas e observações na escola Mariazinha

Thelma Pontes Borges 1Miguel Pacífico Filho 2

A escolha dos povos Apinayé e especificamente da escola Mariazinha ocorreu por conta da publicidade que foi dada ao resultado desta escola na prova do ENEM/2009. O último lugar na colocação rendeu a esta po-pulação a divulgação em jornais escritos e televisivos retratando seu mal desempenho, conforme aparece no Jornal Gazeta do Povo3

“Os índios ficaram com a pior do Enem

A Escola Indígena Tekator, em Tocantinópolis (TO), ficou com a nota mais baixa no Enem 2008 em todo o país: 25,11, na média da prova ob-jetiva e de redação. O colégio estadual funciona na aldeia Mariazinha, a cerca de 40 quilômetros de Tocantinópolis, ao norte de Tocantins, em área de reserva dos índios apinajé.”

Por conta disso, o Laboratório de Línguas Indígenas da Universidade Federal do Tocantins – Campus de Araguaína – efetivou uma visita à aldeia com uma equipe multidisciplinar com o objetivo de identificar possíveis dificuldades advindas dos professores desta escola que pudessem auxiliar

1 Professora de Psicologia do colegiado de Gestão de Cooperativas e membro do Laboratório de Línguas Indígenas da Universidade Federal do Tocantins, Campus de Araguaína.

2 Professor Adjunto II do curso de Gestão de Cooperativas e e membro do Laboratório de Línguas Indígenas da Universidade Federal do Tocantins, Campus de Araguaína.

3 GAZETA DO POVO. Escolas pelo país repercutem o resultado do ENEM. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/ensino/ conteudo.phtml?tl= 1&id=881837&tit= Escolas-pelo-pais-repercutem-o-resultado-do-Enem>, acessado em: 05 mai. 2011.

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na melhoria da qualidade do ensino ofertada tanto aos alunos do ensino médio quanto aos alunos de uma maneira em geral. É preciso ressaltar que não entraremos na discussão acerca da inadequação da prova do Enem às comunidades indígenas, por conta das diferenças de cultura, língua, conhe-cimento de mundo etc, mas que tal questão é importante e oportuna para quem investiga a educação escolar indígena.

A visita à aldeia ocorreu por interesse bilateral, tanto dos membros do Laboratório quanto dos professores indígenas de tal localidade que esta-vam solicitando auxílio para compreender o que estava acontecendo. Para realizar este trabalho de investigação dialética e coletiva, permanecemos uma semana na aldeia. Neste período as aulas foram suspensas e tivemos contato permanente com os professores indígenas. O trabalho se dividiu entre reuniões com os professores indígenas e não indígenas, observação do ambiente da escola, oficina da língua Apinayé para organização de livro didático e oficina de diagnóstico das dificuldades percebidas pelos profes-sores da escola Mariazinha. Para complementar os primeiros resultados, foram realizadas mais duas visitas à aldeia para observações e entrevistas.

Para melhor visualizarmos o trabalho, apresentamos os aspectos mos-trados pelos professores índios e não índios da escola Mariazinha que mais se destacaram. É importante ressaltar que tais pontos aparecem de elabo-rações feitas pela própria comunidade por meio de atividades de oficinas de grupo. Compreendemos as oficinas de grupo como um espaço em que questões relevantes possam ser elaboradas e trabalhadas de forma a produ-zir não somente um efeito-diagnóstico, como também conscientizador de seu papel e de sua forma de atuação no social (Afonso, 2002, p. 11) “oficina é um trabalho estruturado com grupos, independentemente do número de encontros, sendo focalizado em torno de uma questão central que o grupo se propõe a elaborar, em um contexto social.” Parte de sua efetividade se dá pelo fato de que em oficinas o tema é tratado de forma afetiva e envolve elaborações das vivências, podendo gerar um efeito de resgate de identida-de e de predisposição para a solução dos problemas.

Foram apontados oito pontos cruciais, a saber, a) alfabetização e cur-rículo; b) divergências entre os professores índios e não índios; c) professor polivalente; d) professor indígena; e) falta de material didático e de apoio; f) transporte, estrutura e recursos; g) trabalho infantil; h) alcoolismo e do-enças sexualmente transmissíveis.a) Alfabetização. A educação escolar Apinayé é bilíngue, as crianças são

alfabetizadas primeiro na língua materna e somente depois na língua

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portuguesa, contudo no currículo elas dispõem do mesmo tempo para se alfabetizar em duas línguas o que se torna um agravante. O processo de alfabetização do Apinayé ocorre primeiro e é realizado por professo-res indígenas, e a alfabetização da língua portuguesa é feita posterior-mente por professores não indígenas.

Devemos ressaltar que os professores não indígenas não conhecem a língua apinayé, o que impossibilita relações escritas e faladas entre as duas línguas durante o processo de ensino e aprendizagem. A impossibilidade de os professores não índios utilizarem a língua das crianças é contrária a uma série de conhecimentos que a pedagogia desenvolveu ao longo dos anos com relação a adequação do professor ao ensino de seus alunos. Mesmo os jesuítas, em seu processo de catequização dos povos indígenas, sabiam da necessidade de falar a língua local: “Mais de um jesuíta esteve encarregado de aprender a língua da terra para colaborar no aprendizado dos demais, e produzir “doutrinas” na língua indígena, para melhor fruto da cateque-se” (D’angelis, 2007, p. 6).

As crianças apinayé vêm de uma cultura que se propaga pela oralida-de, o ensino e o acesso da língua escrita são um processo recente e, ainda assim, elas precisam se alfabetizar em duas línguas num curto espaço de tempo, com o agravante de que na há correspondência na alfabetização das duas línguas. Em decorrência destas e outras dificuldades que aparecem nos processos de alfabetização das crianças, os professores, que assumem depois, reclamam que as crianças chegam sem saber ler e escrever.

Percebemos neste primeiro ponto que, apesar dos problemas em de-corrência da forma como são ensinadas as duas línguas, há um predomínio em termos de importância ao se ensinar primeiro o Apinayé. Isto se mos-tra mais relevante ainda quando sabemos que a escola é um ambiente em que há o predomínio da língua portuguesa conforme nos aponta Almeida, 2011, p. 3995: “(...)a escola, se percebe que a língua portuguesa está mais presente. Tal fenômeno é explicado por ser esse um espaço onde convivem mais sistematicamente falantes monolíngues em português, no caso, os professores que não são indígenas.” Apesar de a escola ser um projeto do homem branco, tornar o ensino da língua materna apinayé a primeira a ser ensinada é uma forma de valorizar a própria cultura e uma maneira de mi-nimizar as dificuldades de adaptação das crianças a um universo educativo diferente do de seu costume. Além disso, leva-as gradativamente à cultura escrita, que é diferente da lógica da oralidade dos povos indígenas.

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Ainda Almeida (2011) nos diz que aprender língua portuguesa como segunda língua, não é para o indígena uma opção, ela é estruturada como obrigatória no sistema de ensino e é considerada por alguns líderes da al-deia como a única forma de manter viva sua cultura e seu povo, pois através do uso da língua do povo branco é possível debater, negociar e lutar pelos próprios direitos. Segundo Novaes (2011), ao adquirir a capacidade de co-municação com os brancos, os povos indígenas conquistam seu lugar na luta pelos seus direitos, e são ouvidos pelas suas vozes e não pela represen-tação que se faz deles. O bilinguismo passa a ser a forma mais eficaz de luta, resistência e preservação, é a forma mais eficaz de evitar manipulações,

“O bilingüismo tornou-se uma necessidade para as comunidades indí-genas à medida em que os contatos e relações com a sociedade domi-nante foram intensificando. Este processo, que algumas comunidades e povos indígenas vivem hoje, a maioria já experimentou há meio século, um século ou vários. A intensificação das relações também modifica as exigências do domínio bilíngüe, de modo que, de um primeiro mo-mento em que à comunidade basta ter um único ‘interprete’ chega--se a um ponto em que todo membro da aldeia precisa ser bilíngüe.” (D’angelis, 2007, p. 13)

b) Divergência entre os professores índios e não índios. Durante nossa permanência na aldeia, esta questão apareceu de maneira incipiente. Havia o descontentamento dos professores índios quanto à forma de trabalhar e se portar dos professores não índios e vice-versa. E o tempo todo, trocas de acusações de que ambos os lados não cumpriam ade-quadamente o seu papel no processo de ensino-aprendizagem. Infe-lizmente há uma separação cultural e profissional entre os professores indígenas e os não indígenas. Isto se torna um agravante, uma vez que os professores não índios dão prosseguimento ao processo de ensino realizado pelos professores indígenas. Há uma clara necessidade de um trabalho pedagógico, político e de desenvolvimento humano de pesso-al que permita a integração da equipe educativa e o diálogo em prol da educação das crianças.

A falta de interação entre os professores índios e não índios e a alfa-betização da língua portuguesa efetivada por professores não índios, não bilíngues, que não falam o apinayé, é contrário ao RECNEI (2005, p. 22)

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(Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas) que diz em seus princípios “(...)pensar a escola a partir das concepções indígenas do mundo e do homem e das formas de organização social, política, cultural, econômica e religiosa desses povos.” O bom professor indígena é tido por este documento como aquele apoiado e indicado pela comunidade, pois desta forma as expectativas da aldeia podem ser integradas às da escola. Esta integração comunidade-escola deveria acontecer com os professores não índios como uma forma de garantir o desenvolvimento dos alunos. A participação do professor numa aldeia está para além do ensinar conteúdos específicos, ele deve se comprometer com a identidade do povo, adquirir conhecimentos de sua cultura, aprender sua língua e suas interpretações para questões de sociedade, mundo e universo, para, assim, efetivar junto com eles seu papel sociopolitico-pedagógico. Apesar destas dificuldades, podemos ressaltar que a existência de um diretor apinayé, como ocorre nesta escola, pode servir como mediador nas relações de grupo e minimi-zar tais questões no universo da escola.

Voltamos aqui, novamente, à necessidade de se pensar em professores não índios e que não falam o apinayé. É inconcebível um processo edu-cativo em que a língua se torna a principal barreira de trabalho. Tal fato é contrário inclusive aos debates sobre inclusão que diz da necessidade do outro de se adequar para poder ensinar. É nesta lógica que os professores aprendem libras e braille. E é nesta lógica que os professores não índios devem aprender o apinayé. Se por um lado é essencial o bilinguismo para a comunidade indígena, por outro lado é essencial para o professor-educa-dor saber a língua da população para a qual irá ensinar.

As divergências entre os professores índios e não índios são ameniza-das pela presença, nesta escola, de um diretor indígena que consegue em seu trabalho mediar as relações em prol da qualidade da educação para as crianças.

c) Professor polivalente. Os professores não índios que trabalham nas sé-ries finais do ensino fundamental e ensino médio precisam ser poli-valentes e se desdobrar para efetivar seu trabalho educativo, uma vez que eles assumem uma série de disciplinas que necessitam de formação específica. Por exemplo, uma professora com formação básica em Pe-dagogia que leciona as disciplinas de história e matemática; outra pro-fessora também formada em Pedagogia lecionando língua portuguesa, sociologia e filosofia entre outros que lecionam disciplinas fora de área.

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Outra questão para os professores não índios: é que há um discurso permanente de que eles trabalham nas aldeias, provisoriamente, uma vez que os próprios professores indígenas estão em processo de forma-ção para assumir a educação escolar de suas aldeias.

Temos dois problemas de origens e soluções diferentes. O primeiro diz respeito a uma prática muito comum na educação brasileira que é de con-siderar que o professor está apto a dar aula de qualquer conteúdo. Este fato não é exclusividade das aldeias indígenas. Nas cidades e até mesmo nas uni-versidades vemos professores assumindo cadeiras para as quais não possuem nenhum tipo de formação específica. Mais recentemente, o governo federal se preocupou com tal fato criando um programa4 de formação docente para professores que não tinham nenhuma formação e para aqueles que, apesar de terem uma formação específica, estão trabalhando fora de área. Talvez tal política governamental venha a coibir estas práticas, melhorando o ensino de nossas escolas públicas. O segundo se refere à desmotivação provocada pela política de desenvolvimento das escolas indígenas, processo importante, porém ainda em construção. Apesar da expectativa de que, com o tempo, as escolas nas aldeias sejam formadas somente por professores índios capacita-dos, existe a necessidade de professores não índios e índios compreenderem o seu papel social e sua importância para este momento da educação dos povos indígenas, o que diminuiria os conflitos e aumentaria a adesão e o in-vestimento subjetivo na escola, nos alunos e em todo o processo educacional.

Quando as escolas indígenas alcançarem o objetivo de ter uma insti-tuição pensada, organizada e trabalhada somente por pessoas da própria aldeia, provavelmente a instituição se torne um espaço de firmação da identidade e de lutas por direitos. Mas até o momento a escola indígena é palco da sociedade não índia, como nos aponta Albuquerque (2008, p. 87)

“Um dos mais contundentes problemas com relação à educação in-dígena é o de que o processo educacional utilizado nas comunidades

4PARFOR – Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica –“ é resultado de um conjunto de ações do Ministério da Educação - MEC, em colaboração com as secretarias de educação dos estados e municípios e as instituições públicas de educação superior neles sediadas, para ministrar cursos superiores gratuitos e de qualidade a professores em exercício das escolas públicas sem formação adequada à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, de dezembro de 1996”. Disponível em: <http://www.capes.gov.br/educacao-basica/parfor>. Acessado em: 09 maio 2011.

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indígenas é um dos principais vínculos de dominação da sociedade majoritária, já que está sujeita a um sistema educacional concebido e inspirado por aquela sociedade, portanto, carregado de seus valores ideológicos.”

d) Professor indígena. O professor indígena é contratado mediante a indi-cação da comunidade, o que vem gerando, segundo eles, uma série de problemas em relação à liderança da aldeia e à da escola. Nem sempre o interesse do cacique se ajusta aquilo que a escola precisa. E muitas vezes a indicação não é feita com base no mais qualificado e sim nas relações sociais que se estabelecem dentro da aldeia.

Esta forma de contratação dos professores indígenas está amparada pelo RCNEI (2005), diz que o professor indígena deve ser apoiado pela sua comunidade. Contudo o próprio grupo levantou os conflitos de inte-resse e a dificuldade de se chegar a soluções para tal fato. Segundo Novaes (2011, p. 9)

“o professor deve desenvolver sua capacidade bilíngüe e realizar pes-quisas, tornar-se gradativamente um intelectual que reflete e faz refletir criticamente sobre a realidade do seu povo trocando experiências com outros professores indígenas e não indígenas .”

Falta, ainda, de uma forma geral, a comunidade compreender a fun-ção da escola e o papel social que ela tem na luta pela firmação da identi-dade indígena e pela conquista de instrumentos de mediação com outros povos. Contudo a indicação ainda passa pela ideia de favoritismo de alguns líderes e até pela necessidade de se ter uma renda. D’angelis (2007, p. 16) dia que as escolas nas aldeias vêm sendo almejadas “como um ponto de car-reira pessoal bem sucedidas”, como uma forma de resolver individualmente problemas que são de todos.

e) Falta de material didático e de apoio. Outro ponto apresentado pelos professores é a falta de material pedagógico adaptado à língua e à cul-tura apinayé. Não existem livros didáticos e de literatura apropriados a esta população, o que dificulta o trabalho dos professores em sala de aula e a construção de um ambiente alfabetizador que favoreça o con-tato com a cultura escrita.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

A falta de material apropriado talvez seja um problema recorrente nestas comunidades, contudo, como nos aponta Albuqueque (2008), tal escola conta com a vantagem de estar instalada na própria aldeia, de pos-suir um ensino bilíngue e de ser uma das que mais possui material escrito em apinayé, apesar de ser insuficiente. Além disso, os apinayé na última década vêm sendo acompanhados pelo Laboratório de Línguas Indígenas5 da Universidade Federal do Tocantins, que, através de apoio pedagógico, está conseguindo ao longo do tempo minimizar as dificuldades e oferecer condições pedagógicas mais adequadas de trabalho. Este Laboratório, com o apoio financeiro do Observatório da Educação Escolar Indígena/CAPES, estará em breve lançando o livro de alfabetização apinayé. Talvez um pró-ximo ponto a ser pensado é a preparação destes professores para aprender a utilizar o material pedagógico que está sendo construído e o desenvolvi-mento de outros materiais a pedido da comunidade.

f) Transporte, estrutura e recursos. A escola Mariazinha tem uma estru-tura física adequada, contudo falta assumir a identidade indígena. No momento de nossa visita, não havia nenhuma placa nem avisos escritos em apinayé, todos eram em língua portuguesa. A escola é pintada e tem o mesmo layout das escolas do governo na zona urbana. Falta um para apropriar-se da construção de forma a imprimir a identidade Apinayé, como, por exemplo, o uso de suas pinturas e a presença de instrumen-tos e objetos típicos da população local. Com relação à locomoção, a escola recebe alunos de outras aldeias apinayé, mas foi relatado que o ônibus oferecido permanecia mais tempo quebrado que funcionando, prejudicando assim a frequência dos alunos à escola.

O espaço físico precisa ser ressignificado subjetivamente. Enquanto a escola for vista como do não índio, a população local não se sentirá no di-reito de se apropriar do espaço como pertencente a seu povo e à sua cultura. Para que os alunos consigam ser bem sucedidos na escola, precisam se ver nela. O espaço educativo formal deve representar o que eles são, até como uma forma de diminuir as barreiras culturais existentes entre os membros participantes da comunidade escolar, que incluem índios e não índios.

5 A existência do Laboratório e todo trabalho desenvolvido devem-se ao trabalho incessante de seu coordenador diante das questões indígenas prof. Dr. Francisco Edviges Albuquerque.

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g) Trabalho infantil. Um ponto importante ressaltado pelo professores indígenas foi o uso das crianças indígenas na coleta de coco babaçu. Elas saem de manhã nos caminhões da empresa e retornam no final da tarde em cima dos caminhões lotados de coco.

Entramos num assunto delicado, mas podemos dizer que esta não é apenas uma prática dos apinayé. No último censo, o IBGE (2009) divulgou dados mostrando que o Tocantins é o estado que tem mais crianças traba-lhando, no total de 15,7% de sua população entre 5 e 17 anos de idade. O que menos tem crianças trabalhando é o estado do Rio de Janeiro, com 3,93%. Apesar de existir uma discussão acerca de mudança no Estatuto da Criança e do Adolescente para incluir a visão indígena de trabalho infantil, gravidez precoce etc., devemos ressaltar que sair com os mais velhos para aprender a caçar, pescar, plantar, ajuda a criança a conhecer e ter contato com a cul-tura de seu povo, não configurando como exploração do trabalho infantil. Porém o que nos foi apresentado, pelos próprios professores índios, é que tal trabalho é degradante e que tem características de exploração de seu povo.

h) Alcoolismo e doenças sexualmente transmissíveis. Os professores in-dígenas trouxeram com grande preocupação estes dois pontos. O pri-meiro deles, o alcoolismo, afeta diretamente o andamento das aulas na escola, primeiro pelo fato de que em muitos momentos alguns profes-sores índios vão trabalhar alcoolizados e, em segundo, pelo fato de a escola ser dentro da aldeia, outras pessoas alcoolizadas acabam interfe-rindo no andamento da rotina escolar. O alcoolismo aparece como um grande mal e com tentativas por parte da comunidade de controlar a situação, porém todas as medidas tomadas foram inócuas. Outro fator que aparece é o crescente surgimento das doenças sexualmente trans-missíveis, com uma preocupação focada no aumento dos portadores do vírus HIV. Existe uma demanda para que esclarecimentos, informações adentrem a aldeia para se evitar o aumento da propagação da doença.

Dalgalarrondo nos diz que os etnopsiquiatras do século XIX já apon-tavam que um dos problemas do contato dos povos indígenas com o mun-do ocidentalizado era o uso de substâncias abusivas e a crescente entrada de doenças da alma e do corpo. Em 1907 o psiquiatra Juliano Moreira, um dos iniciantes no estudo psiquiátrico no Brasil, em uma viagem de 6 meses às selvas amazônicas, para estudar o alienismo nos povos indígenas, cons-

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tatou os problemas advindos do álcool e da neurossífilis. Vemos que, desde que se tem estudos sobre o tema, se faz presente o problema do álcool e das doenças sexualmente transmissíveis, sendo necessário um trabalho mais específico da FUNASA no sentido de reverter tal quadro e prevenir o cres-cente problema nesta e em outras comunidades indígenas, mesmo porque já observamos a entrada do crack nos Apinayé.

O diagnóstico feito pela própria comunidade escolar apinayé nos leva a crer que os problemas são visíveis a todos, o que por um lado facilita o problema, contudo eles vão muito além da capacidade isolada da escola de resolvê-los, necessitando de apoio externo para tal. Segundo Albuquer-que (2008, p. 87) “esses indígenas têm vivido um processo de perda étnica, com seus valores culturais subjugados pela sociedade majoritária.” Isto é perceptível na falta de material didático, na presença de professores não índios que não conhecem a língua apinayé, na entrada de álcool e de outras substâncias psicoativas.

Percebemos já algumas alternativas como a construção de material didático, o apoio da Universidade Federal do Tocantins, através de seu La-boratório, e da criação de cotas no vestibular para indígenas, o que vem garantindo sua entrada nos mais diversos cursos de graduação desta ins-tituição, a permanente presença da Secretaria Estadual de Educação, que fornece capacitação e tem demonstrado grande preocupação e interesse na solução dos problemas, a FUNAI de Araguaína que oferece apoio logístico e de pessoal para o trabalho do Laboratório da Universidade, a formação de professores indígenas nos cursos de graduação intercultural da Universida-de Federal de Goiás e a consciência deste povo com a sua história e a sua educação. No entanto existe a necessidade de se fazer mais e buscar uma integração com a comunidade indígena, professores não índios, governo nas diversas esferas, na tentativa de tornar o espaço subjetivo escolar como um local de construção de representações do povo apinayé, auxiliando na identidade de sua cultura, no fortalecimento de sua língua e na mediação dos debates políticos.

Atualmente, o Governo do Tocantins, por meio da Secretaria da Edu-cação, mantém 104 escolas que atendem 5.180 alunos de 140 aldeias nas diversas regiões do Estado. A educação indígena no Tocantins contempla as etnias Krahô, Xambioá, Apinajé, Karajá, Javaé e Xerente. Os professores que lecionam nas escolas indígenas passam por uma formação de licencia-tura intercultural, utilizam a língua indígena como meio de instrução e o português como segunda língua.

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No campo federal, o sistema de cotas foi uma conquista. Na UFT – Universidade Federal do Tocantins – são destinadas 5% de suas vagas para os indígenas, como reserva de vagas (cotas). Segundo informações da Pró--Reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos Comunitários (Proex), na UFT, atualmente somam-se 142 alunos indígenas nos mais variados cursos de graduação da universidade. Para este ano de 2011, estão em andamento quatro projetos do campus de Miracema, Palmas e Araguaína, tais como Grupo de Trabalho Indígena, apoio às Organizações Indígenas Xerentes, reconstrução de sua imagem e o Ensino de Matemática nas escolas indí-genas Apinajé Mariazinha e São José - Na Perspectiva da Etnomatemática.

No Tocantins, esses povos estão distribuídos em oito grupos indíge-nas predominantes, que habitam essas terras desde tempos imemoriais: Apinajé, Avá-Canoeiro, Guarani, Javaé, Karajá, Krahô, Tapirape e Xerente, que atualmente correspondem a uma população de 12.155 indivíduos, de acordo com a Funai - Fundação Nacional do Índio.

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2. ALMEIDA, Severina Alves de. Bilingüismo e Educação bilíngüe Intercultural: os apinayé e o uso das línguas apinayé e portuguesa nos seus domínios sociais. In: Anais do VII Congresso Internacional da Abralin. Curitiba, 2011.

3. BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria da Educação Continuada, alfabe-tização e diverdidade. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indíge-nas. Brasília: Mec/SECAD, 2005.

4. DALGALARRONDO, Paulo. Civilização e loucura: uma introdução à História da Etnopsiquiatria. São Paulo: Lemos, [Ca.2000].

5. D’ANGELIS, Wilmar da Rocha. Como nasce e por onde se desenvolve uma tradi-ção escrita em sociedades de tradição oral? Campinas: Curt Nimuendajú, 2007.

6. NOVAES, Gabriela Pontin Novaes. Uma reflexão sobre a educação escolar indí-gena ao longo da história. Disponível em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer.../Gabriela%20pontin%20novaes.pdf>. Acessado em: 9 mai. 2011.

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8 Alfabetização das Crianças Apinayé: subsídios para o processo educativo

Thelma Pontes Borges 1Gustavo Carvalho Viveiros 2Mayco Pereira Coimbra 3

O Brasil vem se preocupando nas últimas décadas com a entrada e permanência de todas as crianças na escola como uma maneira de aten-der às pressões políticas e econômicas internas e externas. O aumento das crianças na escola culminou com o aparecimento de um dos grandes pro-blemas de nossa educação que é a (im)possibilidade de todos aprenderem a ler, escrever e fazer contas. Hoje nos deparamos não só com o analfabetis-mo, mas também com o analfabetismo funcional e a incapacidade da maior parte das pessoas de conseguirem entender a mensagem lida. Tal problema não está distante das comunidades indígenas de nosso país, uma vez que nos últimos anos houve um aumento significativo na oferta da educação indígena (Nascimento, 2011), com o agravante de que a aprendizagem es-colar indígena traz em seu bojo a difícil missão de auxiliar no processo de recuperação, manutenção e preservação da língua e da cultura indígena.

Discutir a alfabetização em escolas indígenas é ir mais além do que fazer levantamentos de dificuldades específicas e/ou problemáticas no pro-cesso, é pensar até que ponto a inserção das escolas nas aldeias atende de fato às necessidades daquelas comunidades e como a retirada das crianças para viver outras aprendizagens e de uma forma eminentemente pensada

1 Professora Assistente II do curso de Gestão de Cooperativas da Universidade Federal do Tocantins. Membro do projeto aprovado pelo edital Observatório da Educação Escolar Indígena/CAPES.

2 Discente do curso de Biologia, bolsista de iniciação cientifica Observatório da Educação Escolar Indígenas/CAPES.

3 Discente do curso de Gestão de Cooperativas, bolsista modalidade Permanência da Universidade Federal do Tocantins, campus de Araguaína.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

pelos não índios poderia de fato contribuir com a preservação da língua e da cultura de um povo. Segundo Nascimento

“(...)uma vida de bricolage – para um espaço de organização sócio tem-poral diferente: outra lógica, outro lócus de saber, outras relações (afe-tivas, de poder, hierarquias...) ainda que haja uma preocupação com a diferença e a especificidade” (2011, p. 40).

Pensar a educação indígena como um espaço de fronteira, como nos propõe este autor baseado em Barth (2000), é considerar que, uma vez na escola, a criança se distancia de seu mundo espacial, temporal, interrelacio-nal, cultural e emocional. O deslocamento subjetivo provocado pela entra-da na escola pode colocar à prova suas crenças, seus valores e sua visão de mundo, uma vez que o que a escola valoriza passa em muitos momentos como algo distante do que a comunidade considera como importante.

A cosmovisão da criança sofre fissuras e até rupturas por entrar em contato com elementos distantes de seu cotidiano e visão de mundo. Sabe-mos que a infância é em definição o momento de formação da identidade e da personalidade e que a escola assume boa parte dos laços identificató-rios que irão compor tal processo (Freud, 1996). Devemos considerar o se-guinte: se a escola não representa um elemento vivo da cultura, se escrever diverge da tradição oral de seu povo e se parte das figuras de referência, no caso os professores, não são indígenas, como formar uma identidade calcada nos valores de seu povo? Como negociar com outras culturas, no espaço típico de fronteira (Barth, 2000), sem antes mesmo ter adquirido e sedimentado a própria?

O tempo que permaneci nas aldeias pesquisando e observando, o con-tato que tenho com alunos indígenas na Universidade4, a participação no encontro de Línguas Tupi5 me fizeram presenciar discursos feitos por li-deranças e professores indígenas na tentativa de problematizar justamente isto, até que ponto as escolas nas aldeias se caracterizam por projeto que va-loriza a cultura indígena e como a escola, lugar formal de educação, altera o processo educativo promovido pelos mais velhos nas aldeias. A bibliografia sobre o tema ainda não nos permite responder estas indagações, mas apon-ta outro lado da situação, que é a necessidade destes povos conseguirem

4 A Universidade Federal do Tocantins destina 2% de suas vagas para alunos indígenas.5 VII Macro-Jê e III Encontro Internacional sobre Línguas e cultura Tupi.

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entender o mundo no qual suas comunidades estão inseridas a fim de não serem engolidas por ele. Falamos de comunidades que ficam próximas de regiões urbanas, como nos casos das aldeias Apinayé. Agora, conseguir de-finir qual o limite que permite conhecer sem se perder, dialogar, participar e interferir em prol de sua cultura, de seu povo e de sua língua já se torna mais difícil. Chegamos a outro questionamento: qual o limite entre con-quistar instrumentos de negociação com outras culturas e ser absorvido por ela, justamente por ser ela ideologicamente mais forte e definidora das políticas educacionais e sociais?

Barth (2000) vai nos mostrar que as fronteiras são dadas pelos pró-prios autores nos jogos interacionais e que as relações vão se moldar pela identidade étnica de um povo. Contudo esta identidade não é estática, ela se movimenta conforme o contexto e as interações. A escola como espaço de fronteira vai alterar a identidade étnica pela simples existência, e as prá-ticas ali dentro irão determinar o espaço do ‘eu’ (meu grupo étnico, minhas características) e do outro, estranho a mim. A autodefinição de quem eu sou, no caso as crianças indígenas, irá determinar qual é a minha fronteira étnica, contudo, para isso ela precisa passar por um processo de construção e sedimentação de sua própria cultura, ou o que teremos será(se já não é) um grande amálgama de culturas que se reorganizam e se autodefinem. Não que isso seja ruim, mas esta mudança deve passar pelo desejo destas comunidades, e o que vemos em seus discursos é uma grande batalha na preservação de seus traços culturais identificatórios, tais como a língua, vi-são de mundo, hierarquias etc.

Foi com todos estes questionamentos que iniciamos nosso trabalho de verificar como os professores alfabetizadores realizam e pensam seus (a)fazeres nas escolas das aldeias Apinayé Mariazinha e São José. Para tanto realizamos quatro visitas de uma semana a cada aldeia, realizando observa-ções e entrevistas, além de dois cursos ministrados na Universidade Federal do Tocantins por duas professoras índias com o objetivo de demonstrar como elas alfabetizam as crianças apinayé. Com este material elaboramos algumas discussões baseadas na análise de sentidos (Mendes, 2007) como forma de melhor visualizarmos os resultados.

Podemos a princípio entrar numa discussão já desenvolvida e apon-tada por outros autores como D’Angelis (2007), sobre as dificuldades em se desenvolver uma tradição escrita em povos com eminente tradição oral. O que percebemos é que a escrita não tem função social. Em entrevista com as professoras alfabetizadoras percebemos que em momento algum no co-

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

tidiano das aldeias eles utilizam da escrita; somente na escola. Não se man-dam bilhetes, não se fazem listas de compras, não se enviam cartas, não se escrevem histórias. Todo este processo ocorre de maneira oral, as histórias são contadas e não lidas, os recados são falados. Diante disso as professo-ras precisam se desdobrar na tentativa de aproximar a escrita da realidade das crianças. Para isto elas trabalham relacionando as vogais, consoantes e palavras a desenhos de animais e objetos conhecidos pelas crianças. Ainda assim temos que contextualizar que estas crianças chegam à escola e pre-cisam se adequar a uma série de regras institucionais e educativas, que até então lhes eram desconhecidas. Ficar confinada dentro de quatro paredes, sentada no mesmo lugar e ter que utilizar da capacidade imaginativa para aprender se distancia de toda e qualquer experiência que ela havia experi-mentado até então.

Segundo Nunes (2002) as crianças aprendem nas aldeias de forma li-vre, no cotidiano, observando as experiências e realizando pequenas tarefas condizentes com a sua realidade e costumes de seu povo. Quase tudo é vivenciado, livre e com autonomia para que se possa conhecer a vida e as responsabilidades da vida na aldeia. A escola limita seus movimentos, seu espaço de ação e sua capacidade de experimentar. Solicita que imagine, re-lacione e adquira uma docilidade do corpo, nunca antes sofrida. A criança na escola terá que se adaptar a estes fatores e aprender os conteúdos previs-tos. É isto que se espera de uma educação indígena adequada aos interesses de sua comunidade? Nos parece, que essa educação é moldada com base em parâmetros conhecidos - docilidade dos corpos, esquadrinhamento do espaço e tempo, preparação para a obediência e para a produção (Foucault, 2004). Como nos lembra Nascimento & Brand (2011, p. 1) “esta educação é calcada no contexto da urbanização e no objetivo explícito de disciplinar para o trabalho dentro de valores sociais dominantes.”

Num outro contexto, Paulo Freire (1980), ao trabalhar com a alfabe-tização de adultos através dos ‘círculos de cultura’, nos lembra da necessi-dade daquelas pessoas vencerem não somente os aspectos cognitivos, mas também os ideológicos para se situar de forma menos ingênua no mundo e desvelar seu pertencimento, podendo assim se expressar numa nova forma de linguagem – a escrita. Freire escreve (1976, p. 49)

“enquanto ato de conhecimento, a alfabetização que leva a sério o pro-blema da linguagem deve ter como objeto também a ser desvelado as relações dos seres humanos com seu mundo”.

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Existe a necessidade de tornar a alfabetização um ato político, como bem coloca Freire (1980). A consciência de si, de pertencimento a um povo e a uma cultura, transforma o ato de ler e escrever em bandeira de (re) situação no mundo e diminui a resistência frente a participação na escola. D’Angelis (2000) em seus debates, caminha no mesmo sentido que Frei-re (1980), quando propõe que a política de alfabetização está diretamente atrelada a política linguistica de um povo.

Muitos pais tem medo de enviar os filhos para a escola, existe uma percepção de que aprender a língua portuguesa pode prejudicar na manu-tenção da própria língua e cultura,

“alguns pais não querem que os filhos estudem, já a maioria querem que eles aprendam a ler, escrever a língua apinayé e o portugues. Tem pais que são contra os filhos aprenderem o português porque acabam esquecendo o apinayé” (professora indígena alfabetizadora).

Devemos perceber que a entrada nas aldeias da língua portuguesa não é algo que se processa somente via escola, quase todos os lares apinayé pos-suem aparelhos de televisão e de rádio, nos finais de semana acontecem forrós com a presença de não índios, gerando uma despersonalização do uso da língua no cotidiano das aldeias. Um líder da comunidade aponta

“as crianças conhecem e falam a palavra pica-pau do desenho que passa na TV, mas não sabe na própria língua o nome pica-pau, apesar de ter vários pássaros destes por aí.” (líder apinayé, professor da escola Ma-riazinha)

O medo dos pais e dos mais velhos se justifica, a entrada maciça da língua portuguesa nas aldeias é um fator preocupante e que merece atenção de todos. D’Angelis (2000:1) escreve

“quando uma comunidade indígena vê que a língua portuguesa começa a ser falada cada vez mais pelos seus membros, que se tornam bilín-gües, ela tem razão de se preocupar e pensar numa política lingüística para defender e manter sua lingua.

D’Angelis (2000) aponta que decidir continuar falando a própria lín-gua ou optar pela língua dominante é uma decisão política que cabe à co-

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

munidade. Nos parece que os apinayé optaram politicamente pela manu-tenção e fortificação de sua língua, mas ainda estão sem direção no sentido de verificar quais caminhos mais apropriados a seguir a fim de se alcançar tal objetivo. Contudo, apesar de não terem traçado metas, conseguem visu-alizar aspectos que podem colaborar com a fortificação de seu povo, como a participação de membros na graduação intercultural da Universidade Fe-deral de Goiás e nos cursos regulares da Universidade Federal do Tocan-tins, a crescente entrada de professores indígenas nas escolas das aldeias, diminuindo a participação dos não índios, a elaboração de material didá-tico próprio e adequado à língua e cultura apinayé,6entre outras medidas.

A escola, por sua vez, pode se tornar um instrumento de fortalecimento da própria cultura, uma vez que a escrita da própria língua, longe de compe-tir com a língua falada, pode ser pensada como mecanismo de fortalecimen-to e perpetuação (D’Angelis, 2000), mas para tanto os indígenas precisam assumir e discutir quais os rumos que querem dar para a educação de suas crianças. Enquanto não assumem as rédeas da situação, jogam com o sistema e burlam aquilo que foi colocado como projeto enquanto política de governo

“é incabível os alunos das séries iniciais aprenderem nove disciplinas de uma vez: matemática, português, ciências, geografia, história, artes, estudos religiosos, educação física e língua materna (...) mas diga-se de passagem que isto acontece só no programa de ação da Secretaria de Estado’. (professora do ensino médio, não indígena)

As professoras alfabetizadoras confirmam tal informação:

“leciono só a língua materna, ensino o alfabeto apinayé e coordenação motora”

O trabalho dos professores das séries iniciais vai além de alfabetizar, eles precisam aproximar as crianças de materiais escolares distantes de sua cultura, lápis, caneta, caderno, livros, são objetos novos e devem ser in-corporados ao cotidiano escolar. No relato das professoras, aparecem em

6 O laboratório de Línguas Indígenas, coordenado pelo professor Dr. Francisco Edviges Albuquerque e ao qual este trabalho encontra-se vinculado, ao longo da última década prestou acessoria pedagógica aos povos apinayé e desde então vem desenvolvendo material didático juntamente com estas comunidades, estando prevista a publicação do livro de alfabetização apinayé (Observatório da Educação Escolar Indígena/CAPES)

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

diversos momentos a dificuldade de se pegar no lápis, de realizar movimen-tos finos e de adequar as condições motoras necessárias à escrita. O pegar nas mãos e cobrir desenhos são recursos didáticos constantes na tentativa de apurar o corpo para o trabalho escolar.

O interesse e esforço das professoras responsáveis pela alfabetização im-pressionam, a disposição em ensinar e a forma como tentam, sem muito conhe-cimento, garantem, com certeza, a permanência da maior parte das crianças na escola. Contudo, o resultado nem sempre é o esperado. Uma professora indíge-na alfabetizadora, quando indagada do que as crianças gostam mais, responde

“gostam mais da língua, gostam mais de pintar e brincar, tem vezes que eu libero elas para brincar a vontade dentro da sala de aula. Eu quero que eles aprendam a ler e a escrever a língua materna, porque os alunos do sexto ano A e B não sabem, e eu não quero que aconteça o mesmo com estas crianças”.

Para tentar garantir a alfabetização da língua materna, os professores optaram por alfabetizar primeiro na língua e somente depois em portu-guês, o que segundo D’Angelis (2000, p. 2) favorece o processo de aprendi-zagem da língua materna

“(...) e é mais do que provado que, emocional e cognitivamente, é mui-to mais fácil e produtivo alfabetizar em uma só língua (a língua mater-na). (...) deve-se ressaltar também a importância política disso, pelo reforço da imagem positiva da língua perante as crianças.”

Falta ainda aos Apinayé reivindicarem politicamente o direito de pro-cessar o currículo desta maneira e não permitir que a política de educa-ção seja pensada e decidida fora da realidade e do debate da comunidade. Apesar da decisão aparentemente acertada, caberiam outras investigações a fim de se verificar o porquê de as crianças passarem pelos anos iniciais e continuarem sem aprender a escrever, conforme aparece na fala da pro-fessora sobre os alunos da sexta série e na fala de vários outros professores da escola. A princípio tentamos compreender isso à luz da função que a ignorância7 pode assumir nesta comunidade: não aprender é uma forma de 7 Para conhecer um pouco mais do debate sobre a função da ignorância ver: LIMA,

Raymundo. Sobre a ignorância: efeitos na educação contemporânea. In: Revista Espaço – Acadêmico. Maringá: Revista da UEM, Nº 120, maio de 2011.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

resistência cultural ou de sintoma social? Ou é simplesmente dificuldade no processo em decorrência de falta de material adequado e metodologia mais apropriada? Também devemos considerar que os indígenas estão ex-perimentando uma categoria social desconhecida em suas comunidades – a de professor. Que representações isto pode ter na comunidade? Como se processa este saber especializado com o saber tradicional nestas comuni-dades? Será que o não aprender não tem relação direta com o suposto lugar do saber (dos mais velhos ou dos professores)? (Franchetto, 2001).

Aparentemente optar pela alfabetização da língua materna num pri-meiro momento e posteriormente na alfabetização da língua portuguesa parece ser um processo interessante, mas cabe ainda analisarmos que ru-mos seguirá a educação apinayé e que forças políticas conseguirão deter-minar os modelos de educação bilíngue que ali se encontram. Temos que considerar que no discurso vigente nas aldeias apinayé, existe uma tenta-tiva de valorização da língua e da cultura e uma defesa política de uma educação que favoreça tal situação, o que nos leva a considerar que existe um bilinguismo de vitalização lingüística. Contudo na prática, existe uma ruptura marcadamente complicada: a alfabetização da língua portuguesa é realizada por professores não indígenas e que não falam o apinayé, e os professores de matemática, história, geografia, entre outros, que desconhe-cem a língua materna destes povos. “(...) a escola não pode simplesmente alfabetizar na língua indígena; a língua indígena tem que ser, de fato, língua de instrução, isto é, de ensino8” (D’Angelis, 2000, p. 3)

Evidenciamos uma situação política delicada: se, por um lado, o dis-curso é de preservação, por outro, até o momento, a língua de instrução (de ensino) é feita em português, o que contraria a ideia de bilinguismo de vita-lização e se apresenta muito mais como o bilinguismo de transição, que tem por objetivo a substituição da língua materna num curto espaço de tempo. Por outro lado, se diz que tal situação é temporária, pois politicamente se espera que com o tempo os próprios professores indígenas assumam todas as disciplinas das escolas. Assim, esperamos que a formação dos professores in-dígenas nas graduações, que a elaboração de material didático na língua, que o apoio da Universidade Federal do Tocantins auxiliem na passagem para um processo educacional mais apropriado aos anseios destas comunidades.

O espaço escolar, dentro das aldeias, se configura como o fio da nava-lha. Sua essência marca a assimilação e a integração cultural e mesmo num

8 Grifo meu.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

momento de total debate de participação e respeito à diversidade, a escola é o local de “neutralização da diversidade, inclusive lingüística” (Franchet-to, 2001, p. 77). A definição e a luta política deste povo devem marcar que rumo suas escolas seguirão e isto estará diretamente atrelado ao futuro de seu povo.

Referências

1. BARTH, Fredrik. Guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000.

2. D’ANGELIS, Wilmar da Rocha. Como nasce e por onde se desenvolve uma tradição escrita em sociedade de tradição oral? Campinas: Curt Nimuendajú, 2007.

3. D’ANGELIS, Wilmar da Rocha. Alfabetizando em comunidade indígena. (2000) Disponível em: <http://www.portalkaingang.org/alfabetização.pdf>. Acessado em: 23 de jun. 2011.

4. FOUCAULT, M. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2004.

5. FRANCHETTO, Bruna. Assessor, pesquisador: reflexões em torno de uma ex-periência em educação indígena. In: Práticas pedagógicas na escola indígena. São Paulo: Global, 2001.

6. FREIRE, Paulo. A ação cultural para a liberdade. E outros escritos. Rio de Ja-neiro: Paz e Terra, 1976.

7. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Ter-ra, 1980.

8. FREUD, Sigmund. Psicologia do escolar. (1914).Obras Completas. Rio de Janei-ro: Imago, 1996.

9. LIMA, Raymundo. Sobre a ignorância: efeitos na educação contemporânea. In: Revista Espaço – Acadêmico. Maringá: Revista da UEM, Nº 120, maio de 2011.

10. MENDES, Ana Magnólia. Pesquisa em psicodinâmica: a clínica do trabalho. In: Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisa. São Paulo: casa do Psicólogo, 2007.

11. NASCIMENTO, Adir Casaro; AGUILERA URQUIZA, Antonio H. Entender o outro – a criança indígena e a questão da educação infantil. Texto publi-cado na página da ANPED/29ª. Disponível em: <http://www.anped.org.br/reunioes/29ra/trabalhos/.../GT07-2355-int.pdf>. Acessado em 15 jun. 2011.

12. NUNES, Angela (org.). Crianças indígenas; ensaios antropológicos. São Paulo: Global editora, 2002.

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9 Resistência e Construção do Cotidiano entre os Apinayé

Miguel Pacífico Filho 1Carlos Joeverson Azevedo de Oliveira 2

1 – Construindo um Cenário: o Campo do Outro

Mesmo que consideremos as sucessivas políticas não oficiais de ex-termínio das populações indígenas levadas a cabo pelo Estado português e posteriormente pelo Estado brasileiro, ainda é possível afirmar que o Brasil é um país composto por um número extremamente significativo de povos etnicamente diferenciados quer por suas línguas próprias, quer por seus fazeres e saberes, histórias e visões de mundo. De acordo com dados forne-cidos pela FUNAI, o Brasil conta atualmente com 230 povos indígenas fa-lantes de aproximadamente 180 línguas diferentes. O censo de 2000 revelou ao IBGE 734.127 pessoas que se auto identificam como indígenas.

Inúmeros são os problemas que, historicamente, envolvem estas po-pulações, os indivíduos que as compõem e sua relação com as sociedades não indígenas. A percepção que significativas parcelas das populações não indígenas têm sobre as populações indígenas certamente é desencadeado-ra de diversas outras questões, abordadas por pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento. Tal interpretação, historicamente construída, es-truturou-se a partir de referenciais fornecidos pela historiografia e pelas ci-ências jurídicas contribuindo para a formação de uma imagem atrelada ao atraso tecnológico e consequente inaptidão à nova realidade imposta pelos colonizadores europeus. Somente durante as três últimas décadas torna-se perceptível uma mudança de foco nos estudos que envolvem as populações 1 Professor Adjunto II da Universidade Federal do Tocantins – Campus Araguaína.

Professor do curso de Gestão de Cooperativas.2 Aluno do curso de Gestão de Logística. Bolsista / CAPES – Observatório da Educação

Escolar Indígena.

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194 Resistência e Construção do Cotidiano entre os Apinayé

A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

indígenas. É dentro desse contexto que buscamos situar nosso trabalho. A perspectiva que busca visualizar as populações indígenas como agentes capazes de influenciar diretamente a construção de suas relações com a so-ciedade não indígena, capazes de mensurar a importância da manutenção de determinadas práticas sociais, referenciais atrelados a saberes e fazeres, as percepções de mundo e de práticas culturais.

Um breve histórico se faz necessário para situarmos nossa proposta dentro de um vasto campo de discussões que permeia diversos setores da academia. O entendimento que grande parte da sociedade brasileira tem dos povos indígenas, ainda nos dias de hoje, está baseado na ideia de sua inadequação ao trabalho escravo, sua indolência e impossibilidade de lidar com a nova realidade mercantil trazida pelos colonizadores. Em suma, está vinculada à sua incapacidade de influenciar historicamente os rumos da sociedade na qual foram inseridos. Podemos afirmar que tal compreensão encontrou, ao longo da história do Brasil, fundamentação em referenciais historiográficos e jurídicos. Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857) defendia em meados do século XIX, com sua História Geral do Brasil, a ideia de que as populações indígenas não tinham história; que seria pos-sível tão somente fazer-lhes a etnografia. Notamos que tal interpretação encontra-se como sustentação de uma visão que só muito recentemente recebeu críticas no meio acadêmico. O Código Civil brasileiro de 1916 (Brasil, 1916) consolida a ideia de incapacidade ao propor a perspectiva de tutela das populações indígenas pelo estado brasileiro.

Os anos 80, com a multiplicação dos programas de pós-graduação em História pelas universidades brasileiras e sua consequente consoli-dação nos anos 90, trouxeram a construção de uma percepção diferente daquela em vigor, quer através de dissertações e teses, quer através de grupos de pesquisa voltados ao tema. A participação do indígena como agente histórico veio à tona através de diversos estudos que se utilizaram não só de novos métodos como de novas fontes de investigação. Como exemplo, podemos citar o Núcleo de História Indígena e Indigenismo (NHII) da Universidade de São Paulo, fundado no ano de 1990. Tam-bém no ano de 1990 foi publicado o trabalho História Geral do Brasil, organizado pela professora Maria Yedda Linhares (1990), em cujo capí-tulo Conquista e Colonização da América Portuguesa o autor Francisco Carlos Teixeira da Silva nos diz o seguinte a respeito das práticas das po-pulações indígenas, quando do processo de ocupação de seus territórios pelos portugueses:

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195Miguel Pacífico Filho, Carlos Joeverson Azevedo de Oliveira

A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

“as guerras, cruentas e exterminadoras, foram conseqüência direta da implantação agrícola do colono. A resistência indígena foi mais forte no Rio de Janeiro, a cargo dos tamoios, e no nordeste, para onde con-vergiam inúmeras nações, opondo-se duramente à penetração euro-péia” (Teixeira, 1990, p. 66)

Outros fatores também influenciaram na construção dessa nova for-ma de interpretação:

no final dos anos e 1970 e início dos anos de 1980 multiplicam-se as or-ganizações governamentais e não-governamentais de apoio aos índios. Nasce também a primeira organização indígena de âmbito nacional, a (UNI), a partir da qual se formam outras organizações regionais ou étnicas. São freqüentes os “Encontros de Educação Indígena”. Foram escritos muitos documentos desses encontros, com reivindicações por escolas diferenciadas e Declarações de Princípios. (ALBUQUERQUE apnd MARFAN, 2003, p. 46)

É possível apontar também uma série de estudos que corroboram nossa proposta; para outras regiões do país e outros povos indígenas pre-ocupações semelhantes são temas de pesquisas, entre as quais, citamos o seguinte trecho:

neste sentido, a partir do caso Terena, pretendemos ver como se dão os processos de resistência étnica diante das diversas formas de domi-nação que diferentes setores da sociedade brasileira e o Estado exer-cem sobre os povos indígenas. A análise da relação entre as formas de poder exercidas sobre as populações indígenas caminha assim lado a lado com a reflexão acerca das formas de resistência construídas pelos próprios grupos indígenas como estratégia de sobrevivência e forta-lecimento. Mas também consideramos as formas de dominação ope-rantes dentro dos próprios grupos indígenas. Uma história Terena é necessária e também uma compreensão da história dos pontos de vistas indígenas. (Ferreira, 2007, p. 19).

Tão recente quanto os estudos acima apontados é possível destacar, sem qualquer sombra de dúvida, a questão da educação escolar indígena.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Atualmente o tema é objeto de estudo de pesquisadores com formação nas mais diversas áreas e, como exemplo, podemos citar o grupo de antropólo-gos e educadores cujos trabalhos foram organizados por Maria Aparecida Bergamschi (2008) e os trabalhos do linguista-indigenista Wilmar da Ro-cha D’Angelis (2007). Inserido nesse contexto, o presente trabalho é resul-tado de dois fatores determinantes.

O primeiro deles diz respeito à localização geográfica da instituição que originou esta proposta de pesquisa. A Universidade Federal do To-cantins está situada geograficamente em local de forte presença de povos indígenas. O campus dessa mesma universidade, no qual se desenvolve a pesquisa que ora discutimos, situa-se na cidade de Araguaína e encontra-se próximo de povos como os krahô, os Krikati, os Karajá e os Apinayé. Estes últimos foram selecionados como objeto dessa pesquisa e concentramos os esforços de investigação nas aldeias Mariazinha e São José. Cabe dizer que nosso critério de escolha baseou-se, entre outros fatores, nos baixíssimos resultados apresentados por uma das escolas localizadas entre os Apinayé no ENADE de 2008.

O segundo diz respeito ao trabalho de pesquisa que desenvolvemos, e aqui demonstramos os resultados. Atrelada a um contexto investigativo mais amplo, a saber, às outras duas pesquisas que compõem a proposta aprovada no Edital n° 001/2009 do Observatório da Educação Escolar In-dígena; com o título A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Intercultural podemos dizer que nosso objetivo primeiro é fornecer subsí-dios para uma educação escolar bilíngue e intercultural.

Faremos agora a exposição da estrutura desenvolvida para dar cabo das discussões levantadas até aqui. Em primeiro lugar, demonstraremos uma breve contextualização da história das sociedades apinayé. Em segundo lugar, discutiremos nossos referenciais teóricos buscando dialogar com ou-tros estudos, com objetivos semelhantes, e suas respectivas opções teóricas. Em terceiro e último lugar, apresentaremos a metodologia proposta para a obtenção e análise das informações obtidas durante o trabalho de pesquisa.

2. Os Apinayé: informações sócio-históricas

Para contextualizar historicamente os apinayé, recorreremos a uma recapitulação que busca não apenas apontar seus traços identitários, mas sobretudo expor como foram retratados pelos pesquisadores que se dedi-caram a estudar suas mais diversas características. A partir de diferentes

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197Miguel Pacífico Filho, Carlos Joeverson Azevedo de Oliveira

A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

pontos de vista narrativos, científicos, teóricos e metodológicos, viajantes, antropólogos e linguistas se dedicaram à observação e estudo das socie-dades apinayé. Citaremos quatro nomes que, não necessariamente nessa ordem, fornecem-nos subsídios para a contextualização das populações apinayé: Curt Nimuendaju, Roberto da Matta, Odair Giraldin e Francisco Edviges Albuquerque; os dois últimos professores da Universidade Federal do Tocantins. Além desses pesquisadores, devemos também mencionar a presença dos viajantes que, durante o século XIX, fizeram registros signifi-cativos das diversas características dos povos que aqui viviam.

Pode-se afirmar que um dos primeiros contatos dos apinayé com a sociedade não indígena se deu com os viajantes, e o naturalista inglês Fran-cis de La Porte de Castelnau (2000) registra esses momentos em sua obra Expedições às Regiões Centrais da América do Sul, de 1844. Citado por Nimuendaju (1983, p. 3), Castelnau registrara a utilização de embarcações fluviais pelos apinayé “Castelnau, em 1844, também menciona plusieurs pirogues no porto dos Apinayé, no Rio Araguaia”.

As relações conflituosas entre os Apinayé e as populações não indíge-nas são também mencionadas por Nimunedaju:

A partir de 1707 entraram os apinayé em contato permanente com os civilizados. Neste ano o governo do Pará fundou na boca do Araguaia o posto militar de São João das Duas Barras ( hoje São João do Araguaia). Porém, ao invés de se estabelecer uma paz permanente, começaram desde logo lutas sangrentas entre os Apinayé e a guarnição do posto. Silva e Sousa relata que os apinayé mantiveram-se em paz, mas ao en-contrarem alguns soldados da guarnição destruindo suas plantações, os mataram, sendo então as suas aldeias cercadas e destruídas com au-xilio de peças de artilharia. (Nimuendaju 1983, p. 3).

Roberto da Matta, que num dado momento de suas pesquisas se de-dicou pontualmente a estudar os apinajé e suas relações com as sociedades não indígenas, também destaca a natureza desses contatos. Segundo ele, as questões envolvendo a disputa pela terra teriam influenciado significa-tivamente a estruturação das sociedades apinayé. Para Da Matta (1976) os problemas envolvendo controle e ocupação das regiões beneficiadas pelos Rios Araguaia e Tocantins com a finalidade de ampliação das fronteiras destinadas a bovinocultura impôs às populações apinayé questões envol-vendo fazendeiros, posseiros e meeiros.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Envoltos num contexto de ocupação de terras proposto pelo Regime Militar, os apinayé viram suas terras transformar-se em palco involuntário de uma das maiores disputas por terras já vistas pela sociedade brasileira bem como a repressão a um dos mais destacados movimentos de oposição ao regime militar. Segundo Oliveira,

Zona de confluencia dos rios araguaia – tocantins e região de fronteira entre os estados do Pará, Maranhão e Tocantins, o bico do papagaio nas décadas de 1960/70 do século passado foi porta de entrada para toda a amazônia legal constituindo-se numa região de intensos conflitos en-volvendo posseiros, grileiros e fazendeiros durante todo o Regime Mi-litar (1964-1985). Não obstante, a questão fundiária era um problema de segurança nacional (...) estava em curso um projeto que não consi-derava a realidade sócio cultural da maioria da população do Bico do Papagaio, um “espaço vazio” a ser explorado por homens e mulheres da cidade. (Oliveira, 2008, p. 1)

É nesse contexto que se situa nosso objeto de pesquisa. Certamente influenciada por toda essa gama de acontecimentos, as populações apinayé possuem sua visão própria de todos esses acontecimentos. Como lidar com eles? Haveria algum grau de aproximação possível com tais acontecimen-tos? Quais os mecanismos e visões de mundo construídos pelos apinayé para lidar com esse contexto?

3 – Referenciais teóricos Situamos nossa proposta dentro do campo de estudos históricos co-

nhecido como história do cotidiano que, grosso modo, pode ser assim compreendido:

“em termos bem gerais, os estudos sobre cotidiano tendem a valorizar, como foco de atenção, as ações individuais frente às circunstâncias da vida, sobretudo no plano da intersubjetividade. Para alguns, importam menos as “estruturas do cotidiano” que os tipos de ação observados em seu interior”. (Guarinello, 2004: 32 ).

Noções de resistência observadas a partir de ações cotidianas dos su-jeitos históricos podem ser interpretadas à luz de trabalhos desenvolvidos

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

por autores como Michel de Certeau (1994) e Michel Maffesoli (2001), que ora passam a ser, através de determinados conceitos que propuseram, a sus-tentação teórica para abordagem que apresentamos. Discutiremos então, os conceitos de tática e socialidade e a forma como serão empregados.

Não por acaso selecionamos nosso referencial teórico. Podemos dizer que a percepção dos povos indígenas sobre seu atual posicionamento na sociedade brasileira nos levou a cogitar a possibilidade de visualizar suas práticas cotidianas de resistência. Aílton krenak, destacada liderança indí-gena e coordenador da Rede Povos da Floresta assim percebe a situação dos povos indígenas no Brasil:

“nós estamos assistindo de uma maneira imperativa, participando nem sempre de uma maneira que resulte para nós em conquistas efetivas. Muitas vezes a gente participa desse processo mais como vítima – é ruim adotar essa condição – mas, na maioria das vezes, as comunida-des indígenas estão à margem do processos de decisão e sofrendo a vi-timação movida por uma cultura. Eu estou fazendo essa referência um pouco incisiva no aspecto do conflito de territórios de um povo e ocu-pação desse território por uma outra tradição, por uma outra maneira de viver, por uma outra forma de expressar uma cultura. Estou procu-rando com isso iluminar este passado recente, pois acho importante que nós nos esforcemos daqui para frente no sentido de reconhecer que o que sobreviveu destas culturas à revelia, longe do esforço do Estado ou da sociedade regional em proteger, respeitar, preservar, ou qualquer coisa que tenha semelhança com solidariedade, merece respeito e deve-rá ser reconhecido” (Krenak, 1992, p. 202).

Fica explícita tanto a consciência de todo um conjunto de práticas culturais que sobreviveu sem mecanismos de proteção do Estado quanto a compreensão de que não muito dessa mesma cultura restou. As pergun-tas que fazemos são sustentadas por essa percepção: quais os mecanismos utilizados por esses povos para resistir e preservar traços culturais? Quais procedimentos cotidianos foram adotados para fazer frente a essa imposi-ção de outras visões de mundo? Diversas perguntas são feitas acerca desse processo histórico, segundo Bessa Freire:

“ qual a versão da sociedade brasileira, por exemplo, sobre o emba-te histórico da conquista e de todo o processo de contato? Em que

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

contexto, sob quais condições e com base em quais fontes foi pro-duzido esse saber? Em que medida a difusão de um conhecimento assim produzido contribui para uma relação positiva dos índios com a sociedade nacional ou reforça preconceitos discriminatórios? Qual a contribuição indígena para a formação da identidade nacional? Afi-nal, o que é que a atual sociedade brasileira sabe sobre as experiên-cias passadas dos povos que habitaram milenarmente seu território? Como reconstruir a história de sociedades sem escrita?” (Bessa Frei-re, 2010, p. 4)

Os dois autores que utilizamos como suporte teórico têm suas propo-sições acerca do cotidiano entendidas como complementares, pois enquan-to De Certeau (1994) se preocupa com os procedimentos dos sujeitos den-tro do território do outro, Maffesoli (2001) demonstra como esses mesmos sujeitos colaboram de maneira furtiva dentro das condições impostas pelo outro como objetivo de construção de espaços próprios.

Vejamos os conceitos utilizados. Michel De Certeau (1994) propõe a tática como procedimento adotado por aqueles que necessitam opera-cionalizar o jogo cotidiano dentro de referenciais estabelecidos pelo outro, dentro de determinados padrões que não raro lhes são estranhos. Sabe-se que, atualmente, muitos povos indígenas vivem em permanente contato com a sociedade não indígena. Para observar as diversas nuances dessa relação e, consequentemente nela buscar as resistências cotidianas, busca-remos as proposições de De Certeau (1994). Assim ele estrutura e expõe aquilo que entende como tática:

“um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. Ela não dispõe de base onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias. O próprio é uma vitória do lugar sobre o tempo. Ao contrário, pelo fato de seu não--lugar, a tática depende do tempo, vigiando para captar no vôo possibi-lidades de ganho. O que ela ganha, não o guarda. Tem constantemente que jogar com os acontecimentos para os transformar em ocasiões. Sem cessar o fraco deve tirar partido de forças que lhe são estranhas.” (De certeau, 1994, p. 78).

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Uma outra possibilidade de observação encontra-se no conceito de socialidade proposto por Michel Maffesoli (2001). Este autor nos expõe os mecanismos através dos quais aqueles que, em desvantagem no jogo so-cial, assimilam parcial e aparentemente determinados valores somente para efetuar pequenas trapaças em relação àquilo que traz o traço do controle social. Na construção de seu cotidiano e consequentemente na aproxima-ção com práticas e percepções de mundo divergentes das suas, os apinayé constroem maneiras de lidar com o outro e lhe observar as práticas. Bus-camos nas proposições de Maffesoli (2001) ferramentas para dimensionar características dessa aproximação. Particularmente trabalhamos o conceito de socialidade:

“tudo a que chamamos a socialidade está resumida numa fórmula: pra-tica-se o sistema D em relação a tudo o que parece exterior, seja o oficial ou o dominante, e, ao mesmo tempo, se é firmemente fiel aos valores do grupo ou da rede. A lealdade ao local admite muito bem pequenas tra-paças em relação a tudo o que traz o controle social, da ajuda pública, do trabalho, da propriedade privada ou pública”. (Maffesoli, 2001, p. 61.).

4 – As aldeias apinayé Mariazinha e São José: seleção de informantes e obtenção de dados.

Estruturamos a metodologia de pesquisa objetivando observar não somente através da fala membros das aldeias, mas também seus compor-tamentos dentro das questões cotidianas que se apresentavam. Realizamos quatro visitas à aldeia São José e quatro visitas à aldeia Mariazinha, com permanência de uma semana em cada uma das visitas, durante as quais desenvolvemos procedimentos de seleção de informantes e coleta de dados. Buscamos referenciais em vários setores da organização social das aldeias. Autoridades políticas, como os caciques e vice-caciques, professores indíge-nas e indivíduos sem qualquer destaque político, religioso ou educacional. Foram realizadas entrevistas de aproximadamente 60 minutos com cada um dos selecionados e procuramos, dentro do tempo em que permane-cemos nas aldeias, observar as atitudes cotidianas desses mesmos sujeitos.

Os objetivos dizem respeito à busca de interpretação de formas coti-dianas de resistência e da percepção dos apinayé acerca das questões en-volvendo a relação entre estes e a população não indígena. A resistência

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

interpretada como atos de conquista de um dia a dia que deve ser vivido que, na percepção de Michel Maffesoli (2001), deve passar pela chamada conquista do presente.

Obtivemos, nas entrevistas e observações, respostas que nos possibili-tam realizar uma série de discussões acerca daquilo que propusemos como objeto de pesquisa. Nas respostas dadas por um vice-cacique da aldeia São José, é possível visualizarmos um pouco da visão dos apinayé sobre essas questões. Questionado acerca da relação estabelecida entre a cultura apinayé e as práticas não indígenas, nos mencionou a preocupação com a compreensão e manuseio de referenciais de origem externa. Disse-nos ainda que há uma inegável importância no aprendizado de referenciais não índios, que são necessários para um melhor viver. No entanto, prossegue: é preciso haver um cuidado para que esses referenciais não subjuguem os dos indígenas, que sirvam somente como uma ponte para as relações que devem se estabelecer entre índios e não índios.

A percepção de que há a necessidade de compreensão e utilização de determinados mecanismos utilizados pelas sociedades não indígenas bem como o conhecimento de um passado marcado por conflitos expõem a ampla capacidade de visualização das questões envolvendo o processo de relação entre índios e não índios. Diz o vice-cacique : “antigamente os mais velhos sempre lutavam e brigavam através das burdunas, arco e flecha, mas hoje não. Nós jovens sempre brigamos através da caneta, e hoje esse mundo muito tecnológico, avançado, nós temos que acompanhar essa tecnologia avançada”.

Entendimento oposto ao verificado acima podemos encontrar nas palavras de um dos mais velhos habitantes da aldeia São José. Segundo ele, as práticas não indígenas exerceram tal poder de influência entre os apinayé que tornaram-se elementos de desconfiguração de seus hábitos. Diz ele: “a questão da cultura é o seguinte os novos não querem mais sa-ber é por isso que eu tava brigando com os caciques, que os caciques que entraram não interessam também de ativar a rapaziada, a mãe e o pai das pessoas, que é para cantar no pátio, porque fizemos uma festa aí no dia do índio, aí os mais novos não querem porque vocês já ensinaram a cultura de vocês para eles, aí eles querem acompanhar a cultura de vocês, eles não querem acompanhar a nossa cultura, eu tava cantando para um vizinho que se acabou, a eu disse quando os mais velhos se acabar tudo, vocês não sabem nem mais a cultura de vocês as cantigas de vocês, vocês vão ficar aí que nem os Carajá (...)”.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

Essa descontinuidade é igualmente verificada nas palavras de uma das professoras indígenas da aldeia São José. No entanto, há a percepção de que o papel exercido pela escola pode auxiliar no estancamento e reversão desse processo. Segundo ela: “a cultura já está enfraquecendo porque quan-do acontece alguma festa os mais velhos é que participam os jovens não tão nem aí, alguns jovens participam, por isso que nós estamos querendo incentivar as crianças para aprender mais, por que assim se os professores não ensinar acaba senão, não vão participar das festas culturais”.

De acordo com o entendimento do diretor da escola da aldeia São José tal aproximação entre os apinayé e as sociedades não indígenas não ocorre livre de qualquer tensão. Percebe-se que ela carrega vestígios daquele pas-sado conhecido e apontado por um dos informantes anteriormente citados. Perguntado sobre a relação dos apinayé com a sociedade não índia e suas consequências para a manutenção de traços identitários, nos demonstrou plena capacidade de contextualizar o atual estágio dessas relações com o seu continuum histórico. É possível também verificarmos a percepção de que houve um processo de quase desaparecimento de muito daquilo que os define como apinayé. O diretor nos diz o seguinte: “sempre tem conflito, através da discriminação, preconceitos, sempre existe. Interfere, por que ve-mos que todas as aldeias têm energia, têm televisão, têm o som, então com isso interfere na cultura, por isso, a escola está buscando resgatar o pouco que restou, para não perder. Por que se ficar só na televisão, DVD, assistin-do só essas coisas, perde a cultura, perde a língua”. Referenciais externos são vistos, a partir de sua utilização exclusiva, como algo desestruturador.

A necessidade permanente de posicionamento combativo junto às estruturas políticas não indígenas e o conhecimento de sua dinâmica de funcionamento são perceptíveis na fala do vice-cacique da aldeia Maria-zinha e conselheiro de educação escolar indígena do estado do Tocantins, representante da área apinajé. Questionado sobre a atuação da gestão po-lítica não indígena acerca das escolas, nos disse o seguinte: “sempre eu fui lutador, comecei jovem e até essa idade eu estou lutando. Sou conselheiro de educação escolar indígena do estado do Tocantins, representando essa área apinayé. Sempre busquei muito alguma forma de melhoria também na qualidade da escola, então é por isso que a gente luta, por que hoje sempre muda principalmente os políticos que mandam; os governantes que manda nesse país. Então a gente sempre luta, a gente cobra para o bem da escola e da comunidade, também pela partes dos governantes eles têm que sempre olhar para a escola indígena”.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

A percepção de que a escola é uma importante ferramenta não indíge-na capaz de auxiliar os apinayé na concretização de suas visões de mundo bem como na equalização de sua relação com a sociedade externa surge nas palavras de uma das professoras apinayé: “é importante que a escola vá para frente para não acabar, de primeiro não tinha nem professor índio que ensinava a língua, mas agora já tem professor que está ensinando a língua, eu acho importante eles aprenderem a língua para não acabar”. A escola é entendida como local de transmissão e continuidade para a língua apinayé considerando que a apropriação de seu espaço, através da figura do profes-sor indígena, permitiria direcionar seu uso.

5 – Discussões finais

Durante nossa permanência nas aldeias apinayé, pudemos colher di-ferentes posicionamentos de seus integrantes no que diz respeito às nossas indagações, o que fica explícito nas falas apresentadas no tópico anterior. Porém , é possível traçar um fio condutor que se faz presente nas respostas dadas pelos sujeitos, formado por quatro referenciais, presentes em prati-camente todas as falas. O primeiro deles diz respeito ao entendimento de que muitos dos traços definidores dos apinayé foi substituído por práticas alheias. Segundo: a necessidade de apropriação de elementos externos à cul-tura apinayé e seu correto manuseio, a fim de que venham a ser utilizados em favor de suas visões de mundo. Devemos destacar que a escola faz parte desse conjunto de referenciais externos. Terceiro: a identificação dos agentes externos responsáveis pela descontinuidade de muitas das praticas sociais dos apinayé. Quarto: o entendimento de que há a necessidade de permanên-cia de determinados traços identitários, sendo a língua o suporte principal.

É fato presente na quase totalidade dos estudos que se dedicam às populações indígenas questões formuladas a partir de preocupações cujas respostas integrarão e definirão um devir, cuja concretização depende de variáveis históricas, cuja herança vem sendo apropriada e alterada, em maior ou menor grau, pelas diversas populações indígenas do Brasil. Ques-tões populacionais, educacionais, linguísticas, estruturação social e rela-ções parentais exemplificam as questões mencionadas. Optamos por uma outra via, por questões cujas respostas devem ser construídas dia a dia. Nos interessamos pela construção do cotidiano dessas populações, por respos-tas que devem ser formuladas e dadas às diversas situações do presente. Resistir? Flexibilizar? Assimilar? Pelo que pudemos verificar, suas ações

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

cotidianas são construídas a partir de diferentes gradações dessas variáveis e o devir de suas sociedades será fortemente influenciado por essas ações.

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206 Resistência e Construção do Cotidiano entre os Apinayé

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10 Etnomatemática e Investigação Matemática em Contextos Indígenas

Elisângela Aparecida Pereira de Melo1

OS CONTExTOS INvESTIgADOS

Os Indígenas xerente

As comunidades indígenas do estado do Tocantins estão em contato com a sociedade não indígena há mais de 250 anos. Esse contato tem se in-tensificado por meio dos processos de aculturação e enculturação, ou seja, do mesmo modo que os indígenas adquirem os conhecimentos dos povos não indígenas por meio da relação intercultural, lutam internamente para manterem vivas as suas tradições culturais.

A intencionalidade dos povos indígenas em preservar suas tradições e manifestações como povos distintos culturalmente nos conduz a olhar a cultura do outro na perspectiva de investigar e descrever o ambiente pró-prio e específico do ser indígena. No ambiente em questão encontram-se práticas culturais próprias, vivenciadas unicamente por povos indígenas. Entretanto, em dias atuais, os indígenas de modo geral vivenciam seus et-noconhecimentos em constantes processos de formação e assimilação em relação aos conhecimentos que são e estão sendo adquiridos por meio do contato com o não indígena. Vale ressaltar que há empreendimento de es-forços de diferentes atores ao longo dos anos em manterem a preservação e, em outros momentos, a revitalização de seus hábitos e costumes.

Diante da posição dos que ensinam e dos que aprendem adentramo--nos no mundo peculiar dos indígenas de modo a observar o não obser-vado, as sutilezas que subjazem suas práticas, de registrar o não registrado,

1 Professora da Universidade Federal do Tocantins, Campus Universitário de Araguaína, Colegiado de Matemática, Tutora do Programa de Educação Tutorial – PET/Conexões de Saberes para Estudantes Indígenas – e Colaboradora do Projeto Observatório da Educação Escolar Indígena.

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de vivenciar o não vivenciado. Com tais intencionalidades, nos períodos de 2006 e 2007 realizamos a pesquisa de campo, por meio da observação participante e direta junto ao povo Xerente, buscando então vivenciar sua cultura por meio da realização de atividades laborais, abstraindo as infor-mações inerentes às suas práticas culturais e verificando a possibilidade de vinculá-las ao ensino de Matemática na escola indígena.

Em relação a esse contexto, Melo (2007) descreve a etnografia do povo Xerente na perspectiva de estudos e pesquisas em Etnomatemá-tica e toma como referência de investigação os moradores da Aldeia Porteira, a Escola Indígena, os professores e suas práticas educativas, envolvendo o protagonismo dos alunos, dos jovens e de seus saberes e fazeres. Tais saberes e idosos fazeres em parte se caracterizam como atividades cotidianas e laborais as quais muitas vezes são compartilha-das com outros indivíduos que indiretamente ou diretamente convivem com os Xerente.

Para Melo (2007), os Xerente constituem-se como uma comunidade singular, com traços de formação étnica e de afirmação da identidade in-divíduos em um contexto sociocultural de contato direto e indireto com a sociedade não indígena. Em tal situação, eles buscam a cada dia a sua auto--afirmação, que ora emerge como um fator propício para aculturação de seus saberes tradicionais.

Enfatizo ainda que os Xerente são um povo conhecido e autodeno-minado Akwẽ, que significa “indivíduo” e/ou “gente importante”. Com mais de duzentos e cinquenta anos de contato, os não indígenas têm leva-do-os a elaborar e reelaborar os seus valores culturais, bem como incor-porar em suas tradições religiosas muitos dos valores das religiões pro-testantes e católicas. Tal situação evidencia-se nitidamente nas Aldeias e nas cidades circunvizinhas, uma vez que os indígenas frequentam ou moram nos municípios de Tocantínia e Miracema do Tocantins. Apesar dessa influência, a cultura mítica religiosa dos Xerente, ainda é muito for-te e a prova disso é a participação direta dos pajés na vida social e política da comunidade.

Outros fatores que também referenciam as expressões de rituais são as curas com ervas medicinais, os rituais fúnebres, os casamentos de acordo com os padrões estabelecidos pela tradição, os ritos de nomi-nação, os mitos, a cosmologia, a simbologia da pintura corporal, entre outras expressões que, de algum modo, fortalecem os valores e saberes tradicionais Xerente.

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Práticas Socioculturais do povo xerente: um estudo de ideias matemáticas

O mundo Xerente é um grande espaço, de ensinamento e aprendiza-gem no qual nos adentramos de modo a evidenciar as ideias matemáticas desenvolvidas ou praticadas cotidianamente pelos indígenas. De que forma estas poderiam contribuir metodologicamente com os professores no exer-cício de suas ações didático-pedagógicos em sala de aula, em especial, para o ensino de Matemática, que ora é vivenciado de forma desarticulada com as manifestações deste povo?

Nessa perspectiva, Melo (2007) focaliza sua investigação em alguns traços culturais, tradicionais, simbólicos e de atividades laborais. Entre-tanto, vale mencionar que, neste trabalho, nos reportaremos aos aspectos simbólicos da pintura corporal e faremos a descrição de dois tipos de arte-sanatos: as cestas/fruteiras, confeccionadas com a matéria-prima do capim dourado e o cofó, de produção artesanal com a palha de buriti.

Contudo a busca da evidência tdas ideias matemáticas praticadas em diferentes espaços de vivência e de aprendizagem não deve se restringir apenas à descrição destas, mas também possibilitar a discussão, a interação e a reflexão entre os saberes próprios e os instituídos por meio da educação escolar. Com esse paciente, a etnomatemática possibilita uma conexão en-tre a matemática e as ideias ou formas de pensamentos matemáticos desen-volvidos por culturas distintas, por considerar que

O pensamento matemático desenvolvido por diferentes sociedades emerge, hoje, como rica fonte de conhecimentos, com a qual profes-sores devem trabalhar partilhando da premissa fundamental de com-partilhar, com as pessoas envolvidas, o processo coletivo e holístico da construção de conhecimentos (LEAL FERREIRA, 2002, p. 13).

Em sua atual conjuntura, etnomatemática, um programa de ações e pesquisas, em que as interações entre o empírico e o científico entrelaçam, as ideias e atitudes daqueles que buscam o diferencial na educação escolar. Assim esse programa converge para os espaços da escola, por meio de um currículo dinâmico e participativo, no qual os povos culturais e de mino-rias articulam e utilizam seus saberes.

Saberes estes que são constituídos em suas essências como “ser” em seus próprios ambientes de aprendizagem.

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A compreensão que temos da etnomatemática como um programa que visa possibilitar aos que o exercem o papel de educador e formador, um novo fazer em sala de aula, nos dá uma das características básicas deste programa, que pode ser definido com uma

[...] ação pedagógica que irá atuar como mediador entre o conheci-mento matemático, adquirido pelo grupo cultural, e o conhecimento matemático acadêmico. [...] Partindo destes pressupostos, o programa etnomatemática oferece aos professores e aos educadores as ferramen-tas necessárias para o desenvolvimento de um trabalho pedagógico di-recionado [...]. (ROSA; OREY, 2006, p. 31-33).

Nessa perspectiva, tanto as cestarias como os cofós dos Xerente mos-

tram a exemplificação de uma riqueza de saberes e fazeres próprios, evi-denciados por meio de conceitos de uma matemática não vivenciada pelos indígenas, uma vez que a criação e/ou confecção dos artesanatos tem em si a cientificidade e sim a manutenção desta tradição herdada de geração a geração.

Neste ponto do nosso estudo comungamos com Almeida (2010), no que se refere à complementaridade entre a régua e o compasso, entre a reta e o círculo, haja vista que

[...] o lugar, ou não-lugar a partir do qual a etnomatemática pode inau-gurar uma atitude cognoscente e um modelo epistemológico capazes de religar a Matemática considerada universal com os saberes das ma-temáticas culturais diversas (ALMEIDA, 2010, p. 124).

A esse olhar que diríamos crítico e ao mesmo tempo ousado e ins-tigador de Ceiça Almeida que consideramos a diversidade das práticas culturais dos indígenas Xerente e os conhecimentos tradicionais por eles praticados, desenvolvidos e representados em seus artefatos, o que evidencia nitidamente alguns conceitos matemáticos, em particular, a Geometria.

Esses conhecimentos tornam-se evidentes, quando observamos os in-dígenas em suas atividades laborais de confecção de seus artesanatos, onde podemos notar no manuseio das palhas de buriti ou das fibras do capim dourado a vida estética que estes vão ganhando através dos traçados. Con-forme indicam as seguintes figuras.

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Enfatizamos que nesses traçados estão contidas praticamente todas as simetrias estudadas em escolas não indígenas e hoje também nas escolas indígenas com o uso dos livros didáticos2 no contexto da sala de aula, res-saltando que a escola indígena não pode negar o conhecimento matemático aos seus alunos, haja vista que é concebida com as seguintes características: comunitária, intercultural, bilíngüe/multilíngue e específica e diferenciada (BRASIL, 1998, p. 24).

Figuras 1 e 2: Confecção de cofós com a palha de buriti.Imagem: Elisângela Melo

Figuras 4 e 5: Artesanato com capim douradoImagem: Elisângela Melo

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Ainda no tocante a esses artefatos, observamos também a formação de ângulos no cruzamento entre uma palha e outra, formação de triângulos e, no caso, das cestas ou fruteiras, notamos ainda na elaboração dos potes e dos porta-jóias as várias formas geométricas, desde as arredondadas às retangulares, conforme a sua utilidade. Observamos também as dimensões destes artefatos, quer profundidades, larguras, comprimento, quer detalhes coloridos que são adquiridos com o tingimento das fibras de buriti, como podemos visualizar nas figuras anteriores.

Na análise do contraste dessas atividades artesanais, emergem alguns questionamentos, por exemplo, se você perguntar a uma indígena se ela sabe que conceitos ou conteúdo matemáticos estão sendo abordados nos artesanatos, elas dirão que são apenas cestas ou cofós e que elas aprenderam com suas mães, ou seja, são aprendizados que são repassados de geração a geração de Xerente, por meio da oralidade, da observação participante do fazer destes que ocorre desde os primeiros indivíduos deste povo. Na particularidade do ensinar e do aprender a fazer entre os povos indígenas, Maher (2006, p. 17) nos coloca que

Uma característica que chama a atenção na Educação Indígena tradi-cional é o fato de, nesse tipo de educação, o ensino e a aprendizagem ocorrerem de forma continuada, sem que haja cortes abruptos nas ati-vidades do cotidiano. Entre nós, o ensino e a aprendizagem se dão em momentos e contextos muito específicos: ‘Está na hora de levar meu filho para a escola para que ele possa ser alfabetizado’; ‘Minha filha está fazendo um curso, em uma escola de informática, das 4:00 às 5:30 da tarde’. Nas sociedades indígenas, o ensinar e o aprender são ações mes-cladas, incorporadas a rotina do dia a dia, ao trabalho e ao lazer e não estão restritas a nenhum espaço específico. A escola é todo espaço físi-co da comunidade. Ensina-se a pescar no rio evidentemente. Ensina-se a plantar no roçado. Para aprender, para ensinar, qualquer lugar é lugar, qualquer hora é hora...

Mas, no que se refere à geração de ideias matemáticas que nos são evidenciadas nos artesanatos ou em outras atividades laborais, o indígena não está preocupado em transmitir para as crianças que o observam em sua arte qualquer conhecimento, além daquele da tradição e manutenção de sua cultura, sendo esta uma das formas de identificação, diferenciação e caracterização de cada etnia brasileira. A esse contexto saberes da tradição

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e a geração a nosso ver de ideias matemáticas, geométricas, história, cultura etc., que de acordo com Gerdes (1991, p. 22), [...] “quer ele/ela queira ou não. Inicialmente ele não terá, talvez, consciência da ideia de simetria, mas em todo o caso o desenvolvimento do conceito de simetria já começou”.

Dessa perspectiva e imersa em tantos conhecimentos próprios, cujo contato com a sociedade não indígena não foi capaz de aculturar tamanhos conhecimentos da tradição de um povo, entretanto, não vale afirmar que estes saberes não tenham passado por processos de enculturação. Haja vista que o contato, seja ele intracultural intercultural, favorece aquisição de no-vos conhecimentos que muitas vezes estão sendo incorporados paulatina-mente aos já vivenciados e apreendidas anteriormente durante o processo de formação da identidade étnica do povo.

Todavia são esses e outros saberes e fazeres dos indígenas Xerente que nos instigam a pensar o ensino da Matemática, a formação dos professores, sendo estes os investigadores de sua cultura tradicional. Assim, buscamos juntamente com os professores Xerente da Escola Indígena Srêmtôwẽ, Al-deia Porteira, o diálogo e a reflexão acerca da possibilidade de uso em sala de aula dos artefatos, ou seja, dos artesanatos em questão.

A princípio, delineamos algumas ações tanto didáticas como pedagó-gicas com professores para que eles pudessem realizar a pesquisa de campo, pois não nos interessava apenas os conceitos matemáticos presentes nos artesanatos, mas a história, a importância dos artesanatos, além da cultura, como também a geração e produção destes como um meio de subsistência. Detemos em investigar se ocorreu alguma mudança na confecção destes, quais são as matérias-primas utilizadas, considerando a natureza como a principal fonte dos recursos materiais de confecção dos artesanatos, e, por fim, a transmissão oral destes saberes, como vem se dando as gerações pre-sentes e futuras de Xerente.

Deste modo, saímos a campo com a intenção de investigar o não in-vestigado, de registrar o não registrado, de tornar visível o invisível, entre outros, que pudessem contribuir de algum modo com elementos da cultura favoráveis ao processo de ensino e aprendizagem em Matemática e demais disciplinas da estrutura curricular.

De posse das respostas das perguntas de pesquisa descritas anterior-mente, passamos à análise dos dados coletados (ver figuras 1, 2, 3 e 4). Para tanto, adotamos a pesquisa qualitativa e suas técnicas, assim, traçamos algumas ações didáticas para que os professores posteriormente pudessem desenvolvê-las com seus alunos.

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Da análise da produção dos artesanatos tanto os de capim dourado como os de palha de buriti, optamos por realizar juntamente com os alu-nos uma descrição dos mesmos. Partindo da natureza, ou seja, de onde se encontra e extrai as matérias-primas para a confecção destes, o seu uso e manuseio, considerando a escassez futura do produto em questão.

Em seguida, procuramos enfatizar a importância dos artesanatos que, em tempos passados, eram usados como utensílios domésticos, em que os indígenas guardavam alimentos, objetos de uso pessoal, ferramentas, ervas medicinais e, muitos destes, por exemplo os cofós, serviam também como meio alternativo de transportar os objetos adquiridos nas cidades circun-vizinhas às aldeias.

As descrições dos artesanatos apontam entre estes e outros caminhos a serem trilhados pelos professores em direção a um fazer diferenciado em sala de aula por meio da revitalização e constituição de tantos outros sabe-res e fazeres Xerente que ora adormecem no espaço e no tempo da crono-logia dos indígenas.

A esse contexto de saberes tradicionais que nos reportamos à esco-la e ao seu papel social, político e de formação de cidadãos, em especial a escola indígena que tem como cerne de discussão e reflexão a gera-ção de conhecimentos formalizados. Entretanto, ressaltamos ainda que a escola é um ambiente favorável para a reconstituição e disseminação de saberes que se constituem por meio da agregação entre o novo e já o conhecido.

O Programa Etnomatemática percebe seus encaminhamentos filosófi-cos e educativos, pautados em conhecimentos científicos e conhecimentos advindos das práticas culturais dos mais diversos grupos socioculturais. Assim este Programa [...] oferece aos professores e aos educadores as fer-ramentas necessárias para o desenvolvimento de um trabalho pedagógico direcionado (ROSA, OREY, 2006, p. 33).

Contudo, a abordagem didática a ser dada ao uso em sala de aula dos saberes e fazeres da tradição de um povo deverá ser uma construção cole-tiva e eletiva entre os envolvidos com o processo educativo, cabendo eles articularem-se de forma consciente e harmônica entre os saberes da tra-dição e os conhecimentos instituídos de modo a beneficiar novas formas de conhecer e de fazer acontecer a melhoria na qualidade do ensino que certamente viabilizará o redimensionamento da ação didática e pedagógica dos professores e com isso da escola em contextos indígenas, cumprindo, dessa maneira, o seu papel social e educativo.

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Magistério Indígena: uma ação favorável ao ensino de Matemática

O magistério indígena é uma ação de formação dos professores indí-genas de responsabilidade social e política da Secretaria Estadual de Edu-cação e Cultura do Estado do Tocantins/SEDUC, cujo objetivo é formar o indígena professor para atuar nas séries iniciais da Educação Básica.

O curso de formação dos professores indígenas ocorre nos meses de julho e janeiro (períodos estes de férias dos professores). O curso atual-mente é realizado na cidade de Paraíso do Tocantins. Durante o curso as disciplinas são ofertadas de forma modular, de modo que os professores possam cursar todas as disciplinas previstas no curso e sem causar prejuízo de carga-horária para os alunos.

Nossa atuação no curso de magistério indígena ocorre como formadora dos indígenas professores na área do ensino de Matemática, no qual busca-mos efetivar um ensino de Matemática aliado às vivências dos professores em sala, considerando suas experiências, seus anseios, suas necessidades e suas dificuldades em relação à didática, em especial no que tange ao uso das prá-ticas culturais indígenas e o conteúdo da Matemática escolar. Tal caracteri-zação se dá ao fato de que os professores indígenas almejam em suas práticas educativas o congregar dos saberes tradicionais indígenas em sala de aula.

Pensar a formação do indígena professor a partir de suas necessidades didáticas e pedagógicas é voltar o olhar para a constituição e concepção do saber indígena no seu próprio contexto de aldeamento e as vias do fazer da sala de aula da escola indígena, haja vista que

[...] é extremamente importante reconhecer que os povos indígenas mantêm vivas as formas de educação tradicional, que podem con-tribuir na formação de uma política e prática educacional adequada, capaz de atender aos anseios, interesses e necessidades diárias da re-alidade hoje. [...] onde a relação entre os conhecimentos tradicionais e os novos conhecimentos poderão se articular de forma equilibrada (SILVA, 2002, p. 113-114).

Por isso, torna-se extremamente importante considerar e respeitar os desejos e anseios dos professores no que tange a sua formação inicial e con-tinuada, estes sim, tem sido um dos principais objetivos que temos buscado concretizar ao longo dos anos de atuação no curso de magistério indígena e de formação continuada dos professores indígenas.

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Reportando-nos às atividades do curso de magistério indígena temos desenvolvido ações didáticas e pedagógicas com os professores dos povos Krahô e Krahô Kanela, Xerente, Apinajé, Karajá da Ilha e de Xambioá e Javaé. Assim, no início de cada módulo, buscamos junto aos alunos pro-fessores conhecer as suas ações educativas e as suas dificuldades, tanto metodológicas quanto de cunho conceituais, no que tange aos conteúdos matemáticos. Esse momento é promovido por meio dos relatos e diálogos que são constituídos entre os professores indígenas e nós, os formadores. A riqueza destes momentos está na fala dos professores, como, por exem-plo, ao dizerem:

Nossas escolas são diferentes das escolas da cidade, aqui tem muitos materiais (livros, computadores, energia...), Em muitas de nossas Al-deias as escolas são de palhas, falta material (caderno, merenda esco-lar...). Por isso estamos aqui para aprender novas coisas para ensinar para as nossas crianças indígenas. [...] A matemática é muito importan-te e nós não sabemos como lidar com ela, muitos de nós não sabe fazer contas. O livro de matemática é o mais difícil, por isso o usamos muito pouco na escola.

E, são a partir das reflexões dos professores que as tomamos como res-

postas aos nossos questionamentos e passamos então a atuar diretamente com eles, tendo-os como os sujeitos do ensino e da aprendizagem, ou seja, os professores indígenas são envolvidos como pesquisadores de sua própria formação inicial, “[...] como criador de estratégias didáticas com base em seu saber, em elementos de sua cultura, expressos segundo sua própria vi-são de mundo, sua sensibilidade e criatividade” (CORRÊA, 2004, p. 331).

Dessa forma, a cada atividade que propomos tomamos como referên-cia o conteúdo matemático e juntamente com os professores buscamos as interações e conexões entre os aspectos culturais próprios e os conheci-mentos ora apreendidos, por meio do contato com o não-indígena e com professores indígenas de outros povos que frequentam o mesmo curso de formação. Isso nos induz a caminhar rumo à ação pedagógica alicerçada na interculturalidade e na intraculturalidade, de tal modo que os alunos professores possam, “[...] representam o potencial criativo da espécie” (D’AMBROSIO, 2004, p. 42).

De modo a despertar o interesse e a criatividade do indígena professor, buscamos na realização das atividades de ensino a expressão da identidade

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cultural por meio de elementos que viessem a configurar os conteúdos ma-temáticos estudados. Por exemplo, quando o conteúdo ensinado se referia a sistemas de medidas, solicitávamos aos professores que discutissem entre si e posteriormente descrevessem os seus sistemas de medidas tradicionais.

Na sequência da atividade, propiciávamos um momento para que re-gistrassem suas informações, promovendo situações para que, a partir destas criassem e recriassem outras atividades em suas aulas com os seus alunos.

Na socialização das informações, os professores resolviam os exercí-cios propostos e criavam e recriavam seus exercícios. Em muitos destes que se observam por meio da ilustração a seguir a forma de evidenciar os seus etno-conhecimentos.

Fotos 5 e 6: Atividades realizadas no Curso de Magistério Indígena em julho de 2010.Imagem: Elisângela Melo

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

A elaboração, a constituição e a realização destas e a outras ativida-des tiveram como objetivo proporcionar a leitura didática e pedagógica de saberes da tradição que se constitui na visão de mundo do indígena, por meio da cosmologia, da simbologia, da história de vida, da formação do ser indígena em uma sociedade étnica e de interação com o outro, pois, por meio destas se observa geração de conceitos/ideias matemáticas que se configurou nas ilustrações e na socialização da atividade realizada.

É nesse campo de interação de conhecimentos que se destaca o real pro-pósito da escola, em especial da escola que deve entre outros o congregarem da diversidade em que vivem os alunos e a própria comunidade indígena, por meio da interação com a cultura, com a tradição, com a educação indígena ou escolar, com outros indígenas ou com indivíduos não indígenas, cabendo, então,

[...] a escola como transmissora do conhecimento oficial, e a tradição, como detentora de um saber milenar, prova nos sujeitos o direito a outras verdades, sem, necessariamente, negar a verdade contrária para se afirma. [...] O estabelecimento de um intercâmbio entre esses saberes e o conheci-mento científico, disseminado pela escola, constitui-se em uma das novas vertentes pelas quais se nutrem as discussões teóricas que apostam em uma ciência da complexidade, aberta e mais dialogal (FARIAS, 2006, p. 22-23).

A análise das atividades desenvolvidas ao longo de nossa atuação no magistério indígena e em cursos de formação continuada que se pode ob-servar a riqueza do quão são expressivas as manifestações indígenas e que tais manifestações emergem como fonte de pesquisa para o indígena pro-fessor e que certamente favorecerá uma reorientação por parte da escola como um todo rumo a uma nova ação didática e pedagógica daqueles efe-tivam a educação escolar indígena específica e diferenciada.

A Investigação Matemática nas Escolas Indígenas Apinayéde Mariazinha e São José

No presente momento estamos investigando as práticas culturais do Povo Indígena Apinayé, em especial os professores e alunos, por meio de um projeto de extensão2 que tem por objetivo a formação do indígena pro-

2 Com o título “O Ensino de Matemática nas Escolas Indígenas Apinayé Mariazinha e São José na Perspectiva da Etnomatemática”, coordenado pela Profa. Elisângela Aparecida

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

fessor em contexto próprio. Este projeto foi idealizado com base em minha atuação como colaboradora do “Projeto Observatório da Educação Escolar Indígena3”, na área do ensino da Matemática.

As atividades delineadas para as nossas ações neste projeto estão vol-tadas para a extensão e cultura e visam, entre outros aspectos, propiciar ao indígena professor uma sustentação teórica em sua formação pedagógica e didática, por meio de estudos e pesquisa em Educação Matemática e Etno-matemática, a partir do ensino da Matemática, tendo por base a educação escolar indígena, sendo esta permeada pelo bilinguismo, a interculturalida-de, a intraculturalidade e a cultura indígena em sala de aula.

Mas, para que possamos proporcionar ao indígena professor a inte-ração entre suas práticas culturais, a sua formação e a sua atuação em sala de aula e, em especial, o ensino da Matemática em contexto sociocultural de aprendizagem, faz-se necessário conhecer o outro, no caso deste estudo, os Apinayé, no tempo e no espaço, considerando nesse contexto a própria constituição deste povo.

Assim, tomamos como referência os estudos e pesquisas que vêm sen-do realizadas por Albuquerque (2007; 2008), que há mais de 12 anos vem atuando em Projetos de Apoio Pedagógico à Educação Apinayé.

Os Apinayé estão localizados em terras indígenas, no município de Tocantinópolis, estado do Tocantins. Pertencem ao tronco Macro-Jê e à fa-mília linguística Jê, falada por aproximadamente 1 800 pessoas, são bilín-gues e mantêm com vitalidade seus hábitos e costumes tradicionais, mesmo com a imposição cada vez mais acirrada imposta pelo contato direto com os nãos indígenas, como descreve Albuquerque (2007, p. 212):

Ao longo dos anos de contato com a sociedade envolvente, os povos Apinayé vêm tentando manter-se enquanto comunidade minoritária, enfrentando conflitos tanto de ordem social quanto linguística, religio-sa e cultural. Mesmo diante de tal situação, os Apinayé têm aumentado suas aldeias e consequentemente a sua população.

Os Apinayé são organizados socialmente pelo dualismo, ou seja, por meio de duas metades cerimônias ou clânicas Kooti e Koore que se comple-

Pereira de Melo. Ação cadastrada na Pró-Reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos Comunitários, registrada com o código PE.EDU.096.07.32-2010.

3 Projeto Coordenado pelo Prof. Dr. Francisco Edviges Albuquerque, Colegiado de Letras, Universidade Federal do Tocantins/UFT – Campus de Araguaína.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

tam no próprio movimento e ritmo dos Apinayé, tendo em si o sol e a lua como elemento de criação, conforme indica Albuquerque (2007, p. 217),

De fato, para os Apinayé, o sol e a lua são as duas entidades que criaram o universo e a humanidade, quando resolveram descer para a terra que estava imersa no caos. Entretanto, os Apinayé sempre se referem ao sol como o principal elemento. Foi ele quem teve a iniciativa de vir para a terra e é ele quem, geralmente, tem a primazia nas ações do mito que relata a criação do universo.

A partir destes e em conformidade com a atuação didática e pedagó-gica do professor e pesquisador Albuquerque junto às comunidades Api-nayé, cujo cerne de estudo e proposição está na contribuição da “revitaliza-ção da Língua e da Cultura das comunidades Apinayé, e educação bilíngüe intercultural, que envolve toda a sociedade indígena” (ALBUQUERQUE, 2008, p. 72).

Neste processo de constituição e formação da ação didática são tam-bém ponderados os limites ora impostos pela própria situação dinâmica do povo e do contato, mas, estes não são determinantes, como afirma o próprio autor:

[...] mesmo diante de conflitos de ordem sócio-histórica, cultural e econômica, as comunidades Apinayé vêm resistindo a tudo isto, numa tentativa de manter vivas sua língua e sua cultura. E a escola tem sido um domínio social muito importante, onde essas comunidades vêm discutindo os seus problemas e tentando, através dos processos de lei-tura e escrita, resgatar seus processos culturais, com a escrita do ma-terial didático realizada pelos próprios professores índios, com a par-ticipação efetiva dos alunos e da comunidade, em especial, dos índios mais velhos, contando seus mitos e suas histórias (ALBUQUERQUE, 2008, p. 73).

Nessa perspectiva e em consonância ao delineamento do “Projeto do

Observatório de Educação Escolar Indígena”, temos corroborado com os professores no que tange ao ensino de Matemática via o uso da manifesta-ção cultural e tradicional do Povo Apinayé em sala de aula. Tal contribuição visa possibilitar tanto aos professores como aos alunos um olhar educati-vo em relação às suas práticas socioculturais, as quais são transmitidas de

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geração a geração por meio da oralidade e da representação simbólica e vivenciadas cotidianamente nas Aldeias.

Deste modo estamos colaborando com os professores e alunos das Escolas Indígenas Apinayé Mariazinha e São José, uma vivência entre os saberes e fazeres tradicionais indígenas e os conceitos matemáticos ora apreendidos no ambiente da sala de aula, na perspectiva da Etnomatemá-tica. Tal ação é norteada por meio de estudos, pesquisas e da realização de oficinas temáticas, a partir das investigações realizadas pelos professores no contexto de suas Aldeias.

As Ações de Extensão e Cultura nas Escolas Indígenas Apinayéde Mariazinha e São José

Objetivando promover o diálogo e o estabelecimento de ações que possibilitem aos professores redimensionarem a sua prática pedagógica e didática no tocante ao ensino da Matemática, tomando como referência os princípios que norteiam a Educação Escolar Indígena, assim se faz necessá-rio conhecer e reconhecer os valores socioculturais, as práticas e os saberes dos professores, para que possamos não apenas identificá-los, mas, princi-palmente, problematizá-los. Dessa maneira delinearemos uma proposta de ensino em conjunto com os mesmos.

Enfatizamos ainda que, nesta proposta, contemplaremos o diálogo, o respeito, os quereres, as vontades, as dificuldades, as comunidade, as escola, os alunos e a tradição cultural, pois, de acordo com Gerdes (2002), p. 222), “o processo de estudar as suas ideias em contextos culturais diversos per-mite aprofundar o entendimento do que constitui a atividade matemática. O pensamento matemático só é inteligível ao adotarmos uma perspectiva intercultural”.

Com essa intencionalidade, as ações de extensão e cultura são desen-volvidas em três momentos diferentes, porém convergentes entre si. Assim, em um primeiro momento, realizamos reuniões nos espaços do Labora-tório de Línguas Indígenas, Câmpus Universitário de Araguaína/UFT. As reuniões são coordenadas pela professora coordenadora, juntamente com os acadêmicos participantes do projeto4. Nessas reuniões, traçamos nos-sas linhas de trabalhos, ou seja, selecionamos os textos para serem lidos e

4 Márcia Ferreira da Silva; Fabiane Martins Lima e Haylla Rodrigues de Aguiar.

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discutidos com os professores, elaboramos as oficinas a partir de temas ou conteúdos indicados pelos professores e, por fim, realizamos as análises do material didático desenvolvido com os professores e alunos indígenas.

O segundo momento se caracteriza pela visitação in loco às Aldeias Mariazinha e São José, onde realizamos pesquisa de campo, de modo a elen-car elementos da cultura Apinayé que possam favorecer a relação de ensino e aprendizagem. Conversamos com os professores registrando as suas dificul-dades, limitações, anseios e desejos e, com base nessas informações, estru-turamos as oficinas que estamos realizando atualmente com os professores.

O terceiro momento está mais direcionado a ações de cunho didático e pedagógico, realizadas nos espaços das escolas indígenas, com a partici-pação dos professores indígenas, alunos e demais pessoas da comunidade interessadas em participar, como ouvintes ou contribuindo no tocante aos usos dos saberes e fazeres Apinayé em sala de aula.

Certamente que todos os momentos são importantes para a execução do projeto, mas devemos ressaltar que tem sido no terceiro momento que temos notado a efetiva participação da comunidade no projeto e no seu desenvolvimento. Percebemos que, durante as atividades propostas, muitos participantes da pesquisa buscam respostas para as suas dúvidas, procuran-do um ancião ou outra pessoa para sanar tais questões.

Interessante também destacar que, durante os momentos de realiza-ção das oficinas realizadas nas aldeias, observa-se o quanto os professores compartilham suas dificuldades e aprendizagem em relação aos conteúdos ensinados, evidenciando, assim, a interação despertando-os para que sejam eles próprios os pesquisadores de sua cultura e formação inicial.

Notamos ainda que, por meio destas e de outras ações desenvolvidas em diferentes contextos de aprendizagem, ocorre a construção de novos conhecimentos, a agregação de saberes escolarizados ou instituídos aos empíricos, a revitalização de saberes e fazeres que estejam adormecidas no tempo e no espaço do mundo do indígena. Esse processo de educação es-colar desperta também o interesse e a criatividade do indígena professor na realização das atividades de extensão as quais foram e ainda estão sendo propostas, com a participação direta deles.

Das Análises Preliminares: Alguns Encaminhamentos

As análises são realizadas em todas as etapas de investigações descri-tas anteriormente, de forma qualitativa e quantitativa, desde a organização

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das atividades, sendo pontuado, analisado e ponderado o grau de dificul-dades na execução por parte dos envolvidos, o ritmo e o tempo dos indíge-nas na assimilação e na compreensão dos textos e no desenvolvimento das oficinas.

São também analisadas, discutidas e refletidas as atividades elabora-das e desenvolvidas no contexto das escolas indígenas, no desenvolvimento das atividades didáticas do curso de magistério indígena, de modo a sa-bermos se os objetivos propostos estão sendo atingidos pelos participantes e o que precisa ser alterado ou ajustado para que todos tenham uma real captação do que está sendo solicitado.

Além destas, temos procurado realizar uma avaliação reflexiva com os envolvidos para que tenhamos conhecimento das suas necessidades no que se refere à proposição de novas ações educativas, não só para o ensino da Matemática, mas para que estas sejam evidenciadas e discutidas nos es-paços da sala de aula, de forma articulada e interdisciplinar entre o ensino formalizado e saberes e fazeres tradicionais indígenas, bem como da for-mação do indígena professor.

De igual modo temos buscado, em cada encontro com os professores indígenas, seja no Curso de Magistério Indígena ou nos contextos das Al-deias Xerente e Apinayé, motivar os professores para a investigação da di-versidade cultural que os cercam e se apresenta como uma riqueza infinita de pesquisas, em que diálogo entre o ensino da matemática na perspectiva da etnomatemática e da Educação Escolar Indígena poderá ser cada vez mais estabelecido e ampliado.

Referências

1. ALBUQUERQUE, Francisco Edviges. Os Apinayé: informações sócio-histó-ricas. Revista de Estudos e Pesquisas. Brasília: FUNAI: AAEP\CGGE, v. 4, n. 2, dez., 2007.

2. ALBUQUERQUE, Francisco Edviges. Os Apinayé: Aspectos do processo de educação escolar bilíngüe dos Apinayé. Cadernos de Educação Escolar Indíge-na. Barra do Bugres: UNEMAT, v. 6, n. 1, 2008.

3. ALMEIDA, Maria da Conceição de. Complexidade, saberes científicos, saberes da tradição. São Paulo: Livraria da Física, 2010.

4. BRASIL. Secretaria de Educação Continuada. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígena - RCNEI. 2. ed. Brasília, DF, 1998.

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A Educação Escolar Apinayé na Perspectiva Bilíngue e Interculural

5. CORRÊA, Roseli de Alvarenga. As possibilidades da educação matemática na escola indígena. In: KNIJNIK, Gelsa.; WANDERER, Fernanda.; OLIVEIRA, José Cláudio de. Etnomatemática: currículo e formação de professores. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004.

6. D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática e educação. In: KNIJNIK, Gelsa.; WANDERER, Fernanda.; OLIVEIRA, José Cláudio de. Etnomatemática: cur-rículo e formação de professores. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004.

7. FARIAS, Carlos Aldemir. Alfabetos da alma: histórias da tradição na escola. Porto Alegre: Sulina, 2006.

8. GERDES, Paulus. Cultura e o despertar do pensamento geométrico. Moçambi-que: Instituto Superior Pedagógico, 1991.

9. GERDES, Paulus. Sobre a produção de conhecimentos matemáticos em paí-ses da África central e austral. In: LEAL FERREIRA, Mariana Kawall. (Org.). Idéias matemáticas de povos culturalmente distintos. São Paulo: Global, 2002. (Série antropologia e educação).

10. LEAL FERREIRA, Mariana Kawall. Idéias matemáticas de povos culturalmen-te distintos (Introdução). In: LEAL FERREIRA, Mariana Kawall. (Org.). Idéias matemáticas de povos culturalmente distintos. São Paulo: Global, 2002. (Série antropologia e educação).

11. MAHER, Terezinha Maher. Formação de Professores Indígenas: uma discussão introdutória. In: GRUPIONI. Luís Donisete Benzi. (Org.). Formação de pro-fessores indígenas: repensando trajetórias. Brasília, 2006. (Coleção Educação para todos).

12. MELO, Elisângela Aparecida Pereira de. Investigação etnomatemática em con-textos indígenas: caminhos para a reorientação da prática pedagógica. 2007. 167f. Dissertação (Mestrado em Educação Linha Educação Matemática) – UFRN. Natal, 2007.

13. ROSA, Milton.; OREY, Daniel. Abordagens atuais do programa etnomatemá-tica: delineando-se um caminho para a ação didática. Bolema. Boletim de Edu-cação Matemática, Rio Claro, ano 19, n. 26, 2006.

14. SILVA, Helena Dias da. Afinal quem educa os educadores indígenas? In: Expe-riências étnco-culturais para a formação de professores. (Orgs.) GOMES, Nilma Lino.; SILVA, Petronila B. Gonçalves. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

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