A Educacao Pelo Silencio

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Importante referencia da cultura afrobrasileira, essa obra é resultado de pesquisa impreendida pela professora Marialda Jovita Silveira no núcleo Kawè da Universidade Estadual de Santa Cruz.

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    Ilustraes da capa e aberturas de captulo retiradas de:Os deuses africanos no candombl da Bahia, Caryb, 2 ed., Salvador, 1993.

    Este livro tambm resultante da pesquisa realizada no Kw Ncleo deEstudos Afro-Baianos Regionais, atravs do projeto de pesquisa Viver e

    fazer de culturas afro-brasileiras na rea de influncia da UESC.

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    Ilhus-Bahia2004

    A educaopelo silncio:o feitio da linguagem no candombl

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    2003 by MARIALDA JOVITA SILVEIRA

    Direitos desta edio reser vados EDITUS - EDITORA DA UESC

    Universidade Estadual de Santa CruzRodovia Ilhus/Itabuna, km 16 - 45650-000 Ilhus, Bahia, Brasil

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    PROJETO GRAFICO E CAPAALENCAR JNIOR

    CONSELHO EDITORIAL:

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    LURDES BERTOL ROCHAMARIA DE LOURDES NETTO SIMES

    MARIA LAURA OLIVEIRA GOMESNORMA LCIA VDERO VIEIRA SANTOS

    PAULO DOS SANTOS TERRAREINALDO DA SILVA GRAMACHO

    SAMUEL MACDO GUIMARESSEBASTIO CARLOS FAJARDO

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    EEEEEQUIPEQUIPEQUIPEQUIPEQUIPE E E E E EDITUSDITUSDITUSDITUSDITUSDDDDDIRETIRETIRETIRETIRETOROROROROR DEDEDEDEDE P P P P POLTICAOLTICAOLTICAOLTICAOLTICA E E E E EDITDITDITDITDITORALORALORALORALORAL::::: JORGE MORENO; RRRRREVISOEVISOEVISOEVISOEVISO: MARIA LUIZA NORA;

    SSSSSUPERUPERUPERUPERUPERVISOVISOVISOVISOVISO DEDEDEDEDE P P P P PRRRRRODUOODUOODUOODUOODUO: MARIA SCHAUN; CCCCCOORDOORDOORDOORDOORD..... DEDEDEDEDE D D D D DIAIAIAIAIAGRAMAOGRAMAOGRAMAOGRAMAOGRAMAO::::: ADRIANO LEMOS;DDDDDESIGNESIGNESIGNESIGNESIGN G G G G GRFICORFICORFICORFICORFICO::::: ALENCAR JNIOR.

    Ficha catalogrfica: Silvana Reis Cerqueira - CRB5/1122

    S587 Silveira, Marialda Jovita.A educao pelo silncio: o feitio da linguagem no candombl /Marialda Jovita Silveira. Ilhus, Ba : Editus, 2004.207p.

    Originalmente apresentada como dissertao de Mestrado.Inclui glossrio.Bibliografia: p. 193-201ISBN: 85-7455-066-3

    1. Educao - Linguagem. 2. Candombl- Bahia. 3. Religio e linguagem. I. Titulo.

    CDD 372.6

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    Aos que me disseram que construir o tecido valia a pena

    Il Ax Ijex, espao de luz e sabedoriaMaura, me de existncia e alegria

    Meus amigos, compreenso e afeto de toda a vidaDavid Barkats, corao e graa do meu cotidiano

    Vocs so Silncio e Festa em mim.

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    UM UM UM UM UM TRABTRABTRABTRABTRABALHO DE ALHO DE ALHO DE ALHO DE ALHO DE TECELATECELATECELATECELATECELAGEMGEMGEMGEMGEM ...................................................................... 9RETRETRETRETRETOMEMOSOMEMOSOMEMOSOMEMOSOMEMOS............... .............................................................................................. 11

    BUSCANDO O FIO EM MUITOS NOVELOSINTRINTRINTRINTRINTRODUOODUOODUOODUOODUO ................................................................................................ 19

    CRUZANDO OS PONTOS NA TENTATIVA DE UM BORDADOPERSPECTIVPERSPECTIVPERSPECTIVPERSPECTIVPERSPECTIVA A A A A TERICATERICATERICATERICATERICA ................................................................................. 33OPO METOPO METOPO METOPO METOPO METODOLGICAODOLGICAODOLGICAODOLGICAODOLGICA ............................................................................... 40

    SENTIR O SILNCIO: UMA EXIGNCIA EM MIM ....................................................... 42QUEM SE FEZ PARCEIRO DE CAMINHADA METODOLGICA .......................................... 45COMO FOTOGRAFEI AS SITUAES NA COLETA DE DADOS ......................................... 47OS PROTAGONISTAS DA PESQUISA .................................................................... 50O ESPAO DA PESQUISA: O TERREIRO, ESSE LUGAR DA HISTRIA, DA FESTA E DO SILNCIO .... 51DE UM SILNCIO, MUITOS .............................................................................. 53

    TECENDO REDES DE SILENCIOPOR UMA PEDPOR UMA PEDPOR UMA PEDPOR UMA PEDPOR UMA PEDAAAAAGOGIA DGOGIA DGOGIA DGOGIA DGOGIA DA EXISTNCIA:A EXISTNCIA:A EXISTNCIA:A EXISTNCIA:A EXISTNCIA: A FA FA FA FA FAAAAACE SIMBLICA DO SILNCIOCE SIMBLICA DO SILNCIOCE SIMBLICA DO SILNCIOCE SIMBLICA DO SILNCIOCE SIMBLICA DO SILNCIO .................... 57

    APRENDER A PALAVRA: GESTO INAUGURAL .......................................................... 57SILNCIO: UM APELO AO CONHECIMENTO ............................................................ 64SILNCIO: A APRENDIZAGEM DA ESCUTA ............................................................. 77O SILNCIO EM MOVIMENTO .......................................................................... 86

    O dito do babalorix ............................................................................ 87O dito dos filhos-de-santo ................................................................ 100

    POR UMA PEDPOR UMA PEDPOR UMA PEDPOR UMA PEDPOR UMA PEDAAAAAGOGIA DGOGIA DGOGIA DGOGIA DGOGIA DA RESISTNCIA:A RESISTNCIA:A RESISTNCIA:A RESISTNCIA:A RESISTNCIA: A FA FA FA FA FAAAAACE DO SILNCIO-SEGREDOCE DO SILNCIO-SEGREDOCE DO SILNCIO-SEGREDOCE DO SILNCIO-SEGREDOCE DO SILNCIO-SEGREDO .................... 109SEGREDAR: UM VERBO NECESSRIO ................................................................ 109

    NDICE

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    O JOGO DO SILNCIO: PSIU, H ESTRANHOS EM CASA! ......................................... 134SILNCIO: A NEGAO DO DIZER .................................................................... 144A PALAVRA SUSPENSA: O DIZER DO SILNCIO ................................................... 149

    POR UMA PEDPOR UMA PEDPOR UMA PEDPOR UMA PEDPOR UMA PEDAAAAAGOGIA GOGIA GOGIA GOGIA GOGIA TRANSCULTRANSCULTRANSCULTRANSCULTRANSCULTURAL:TURAL:TURAL:TURAL:TURAL: A FA FA FA FA FAAAAACE CE CE CE CE APELAAPELAAPELAAPELAAPELATIVTIVTIVTIVTIVA DO SILNCIOA DO SILNCIOA DO SILNCIOA DO SILNCIOA DO SILNCIO ... 159UM DIZER QUE FEZ FALTA: AS PALAVRAS DO SILNCIO ......................................... 159

    MOSTRANDO UMA DENTRE AS MUITAS TAPEARIAS POSSVEISCONSIDERAES FINCONSIDERAES FINCONSIDERAES FINCONSIDERAES FINCONSIDERAES FINAISAISAISAISAIS ............................................................................. 183

    BIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 193

    GLGLGLGLGLOSSRIOOSSRIOOSSRIOOSSRIOOSSRIO ................................................................................................. 203

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    O livro, j pelo seu ttulo, anuncia a origininalidade que apresen-ta. Trata da Educao pela tica inusitada do silncio. Como se isso nobastasse, examina essa categoria num ambiente tambm inusitado: oterreiro de candombl. Alm disso, o faz deixando claro o lugar dosilncio como forma de linguagem. Embora evidente, ao mesmo tempo,o ttulo apresenta instigante ambigidade quando afirma o carter defeitio: o carter prprio da linguagem? Uma feio adquirida no espaodo candombl? Feitio porque vai tratar do silncio?

    Desde o ndice, pelos ttulos bem achados, o texto instiga leitu-ra e deixa visvel a estruturao bem urdida: a tecelagem que, fio a fio,vai sendo construda at atingir a tapearia final: o evidenciar do siln-cio como uma das hipteses de acesso para a percepo do espaopedaggico presente no terreiro de candombl.

    O livro de fato um tecido, principalmente quando se leva emconta a perspectiva terica bem trabalhada e a postura metodolgicaque, sem dvida, uma das contribuies que este trabalho oferece: osentir precedendo o pensar, no sentido bem pessoano. Pesquisa decarter qualitativo, os passos do sentir so, pois, antecedentes meto-dolgicos pertinentes e necessrios para a possibilidade da constru-o do operar terico. A escuta sensvel e a gradativa construo docorpus, fruto da vivncia, constituem-se, ento, momentos imprescind-veis da metodologa processual. Assim, da vivncia (escuta sensvel) que surge a necessidade da definio do approach terico que d contada cotidianidade emergente que traz tona a linguagem do silncio,imprimindo dinmica s relaes educativas.

    UM TRABALHO DE TECELAGEM

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    Como se sabe, muitos sao os estudos e enfoques sobre o silncio.mesmo na perspectiva do discurso e na direo dos mais atuais enfo-ques, mas a contribuio desse trabalho ultrapassa as questes da lin-guagem e, para alm dela, encontra ressonncia tambm na educao.

    Sem dvida, este um texto de referncia obrigatria para osestudos atuais que pretendam caminhar pela trilha da transculturalida-de e muldisciplinaridade em repensando o processo educativo.

    Maria de Lourdes Netto Simes,Professora e Pesquisadora da UESC.

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    Marialda, Amiguirm:

    RETOMEMOS... Este verbo me leva de volta a Valdelice Pinheiro.Com ela, aprendi a retomar sempre e sempre o que foi falado ou escritoanteriormente. Para Val, assim que se constri a vida, sem que come-tamos injustias conosco mesmos ou com o outro. Ou ainda: para quepermaneamos fiis no exerccio da coerncia. Por isso, aqui estou,retomando todo o caminho percorrido por voc, nos vrios momentosem que voc se debruou sobre A educao pelo silncio.

    E como eu me lembro do incio: sua proposta de fazer o Cursode Mestrado... Que nada, foi muito antes. Voc trabalhava na CEPLAC etornou-se minha aluna no Curso de Letras da FESPI. Trabalhamos oitosemestres de Lngua Portuguesa. Ah, bons tempos aqueles! Ali, justa-mente, deu-se o encontro e eu apostei em voc. O tempo encarregou-se de mostrar a todos ns que eu estava certo. E eis voc, agora,cruzando caminhos, juntando pontas que h sculos esto separadas,porque os construtores do conhecimento s enxergavam antes anta-gonismos.

    Depois, voc saiu da CEPLAC e, quando voc fez o concursopara a UESC, l estava eu presidindo a Banca Examinadora. Voc foiaprovada e, outra vez, a parceria ganhava impulso. De repente, voc,eu e Consuelo Oliveira demos a grande guinada e propusemos a cria-o do Kw Ncleo de Estudos Afro-Baianos Regionais. E quando asestncias burocrticas da UESC legitimaram o Kw, ns j estvamosfazendo circular o Boletim Kw, o Jornal Tkd e o Caderno Kw.

    RETOMEMOS...

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    Pois , como diz o profeta bblico, At aqui, nos ajudou o Senhor.Contar esse percurso por inteiro, no entanto, pode me conduzir paraassuntos diversos dos interesses centrados neste seu livro. E justa-mente sobre a construo dele que eu quero dar meu depoimento.

    Um dia, voc estava em plena agonia de quem faz Mestrado eme procurou, dizendo que seu objeto de dissertao seria o conheci-mento do terreiro e que voc queria fazer um corte em Educao. Per-guntou-me o que deveria fazer. Lembra? E eu recomendei os procedi-mentos de praxe: comear tudo pelo incio, isto , pela consulta. A,cumprimos as recomendaes expressas no jogo de bzios e apresen-tei sua proposta ao Conselho dos Mais-Velhos. Veio o momento seguin-te: ver de perto a comunidade, participar do cotidiano do terreiro. E lse foi voc dormir a primeira noite no Il Ax Ijex. Voc chegou comConsuelo, que tambm queria observar o conhecimento do terreiro,para dissertar sobre A Dimenso Pedaggica do Mito, justamente numaquinta-feira que antecedia o ritual das guas de Oxal. Foi a que voccomeou a perceber, a sentir (e, parece, tambm a desejar) o silnciocomo ato pedaggico nos terreiros de candombl. Naquele momento,comeava o seu texto.

    A caminhada foi comprida, demorada, cheia de altos e baixos.Havia um calendrio do terreiro, revelia do tempo ao qual voc estavaacostumada e muito diverso do tempo vivenciado pela comunidade ex-terna. Nas madrugadas em que os rituais eram celebrados, voc esta-va l, firme, acompanhando tudo. Acompanhando? No; era mais doque isso: voc vivenciava. Era a sua crena na Pesquisa Participante. Eao tempo em que voc coletava, analisava e testava os dados, textosiam surgindo. Mas houve tambm inmeros subprodutos dessa cami-nhada: as relaes de confiana que surgiram entre voc e os mem-bros do terreiro, o Jornal Tkd, as oficinas, as vivncias e tudo desa-guou na Revista Kw, nos Encontros com a frica, nos Encontros deComunidades Afro-Descendentes, nos seminrios, nas viagens, nos de-bates, nas aulas pblicas, no fazer e no viver de culturas afro-descen-dentes na rea de influncia da UESC.

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    Voc chegou, enfim, no centro da grande Encruzilhada, na ten-tativa de construir um conhecimento pelo vis das africanidades, seucompromisso maior. E foi justamente isso que possibilitou nosso encon-tro e nossa parceria, desde aqueles tempos em que voc ainda era aaluna do Curso de Letras.

    A caminhada, na construo de seu texto final de Mestrado, foito sria, to profunda, que construiu tambm vrias estncias de en-contro com o outro. Lembro: durante o tempo em que durou sua pes-quisa, em algumas vezes em que voc no tinha como ir ao terreiro,todos procuravam saber: Cad ela? Ela era voc, cuja ausncia eranotada, sentida e provocava saudade. Sua defesa de dissertao, porisso mesmo, inaugurou um novo tempo na UESC. Muito mais que isso:na Bahia. Pensando bem, muito mais ainda: no Brasil. As pessoas doterreiro que voc conquistou se vestiram a carter, levaram seus ata-baques, e invadiram a Academia com seus cnticos, com a fala afro-descendente. Claro que isso gerou alguns comentrios. Mas isso mes-mo: faz parte... Como eu me lembro: a mesa de examinadores, formal,sria, sisuda. Na platia, os filhos-de-santo do Il Ax Ijex cantavampara voc. Mas... pensando bem... me lembro que, na mesa sisuda,entre os examinadores seus, havia um Doutor em Comunicao, MunizSodr, ele mesmo Ob de Xang do Op Afonj. Tambm havia umoutro acadmico, Mestre em Letras Vernculas, mas tambm Babalori-x do Il Ax Ijex. Me Diol Bidi, Ialorix do Il Ogum Kariri, deNazar das Farinhas, terra de nossos ancestrais, estava presente. Eela falou em nome do povo do candombl. Quem diria? Uma me-de-santo, sem o chamado lustro das Letras vindas da Europa, falandopublicamente, numa Banca Examinadora de Ps-Graduao, no mo-mento em que a Universidade conferia o ttulo de Mestre a uma pro-fessora... Finalmente, a travessia tinha sido feita e acontecia o instan-te do encontro.

    Naquele momento, abriu-se a janela do tempo e eu vi V Meji-gan, a sacerdotisa de Oxum, que foi trazida da frica, acorrentada, paraser escrava no Engenho de Santana, em Ilhus. Vi o sangue escorrendo,

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    nas costas dos escravos, nos lanhos abertos pelo chicote do feitor. ViPedrito Gordo, a mando do Governo da Bahia, invadindo os terreiros,quebrando tudo, prendendo os filhos-de-santo e os conduzindo amar-rados, num desfile macabro, humilhante, pelas ruas das cidades. ViCardoso, delegado regional de Ilhus, invadindo o terreiro da VelhaRaquel, da Velha Joana da Rodagem, de Benzinha de Nanan Boroc,confiscando os smbolos e objetos sagrados, proibindo o exerccio da fafricana, em nome de uma lei tirana e dspota. Vi meu povo negrorejeitado, sem poder participar dos bens de cultura que ele mesmoajudou a construir. E vi voc, a Mestra Marialda, proclamando aosquatro cantos o saber do povo de terreiro, agora reconhecido pelaAcademia. Que fazer numa hora dessa? Chorar. Foi o que eu fiz edisso no me arrependo. Alis, j prprio de mim viver para quebrarprotocolos. E quando eu chorei, choraram comigo a Academia e oTerreiro, por causa dos sculos sem convivncia. Afinal, Marialda, ns,os humanos, estamos fatalmente destinados ao encontro com o ou-tro, seja ele o igual ou o diferente, pouco impor ta quantos milniosisso leve para acontecer. Ou subimos todos juntos, ou permanecere-mos milnios no mesmo degrau, para aprendermos o exerccio datolerncia.

    Isso tudo, Marialda, para mim, o seu livro. A construo delefoi, antes de tudo, construo de pontes pelas quais atravessaram, emdireo ao espao do encontro, o popular e o erudito, o formal e oinformal, o oral e o escrito, a Religio e a Cincia, a Academia e o Povo,o saber oriundo da Europa e aquele outro vindo da frica. Ele descorti-na um saber preservado nos terreiros e revela a possibilidade de ou-tras vias para a construo da Educao. O prprio ttulo que vocescolheu, A Educao pelo Silncio, pontua o no-dizer que carregafora to majestosa quanto ou mais que o dizer.

    Em vrios momentos de seu percurso, eu tive de me pronunciarcomo acadmico, professor e africanista. Um deles me volta agora mente, recuperado por voc mesma. Foi o meu pronunciamento, naformalidade da mesa sisuda que lhe conferiu o ttulo de Mestre:

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    O tema abordado prima pela singularidade e instaura umcaminho novo de pesquisa: o estudo da tradio e cultu-ras africanas na Regiao Sul da Bahia.Na condio de participante e dirigente da comunidadeescolhida como objeto de estudo, posso atestar que otexto no um inventrio de curiosidades sobre um ter-reiro de candombl. Ainda que haja um bom trajeto etno-grfico e etnolgico, o estudo em apreo , antes de tudo,uma anlise criteriosa, que obedece a um rigor cientficode observao e registros, sobre problemas epistemol-gicos em que um tema inusitado posto em voga: o siln-cio. Estamos acostumados, na nossa cultura, a de origemeuropia, a compreender o silncio como algo reveladorda tristeza, da depresso, da proibio, estados que semanifestam desde que algum esteja submetido opres-so: dos males de amor, sujeio da lei. Mas eis quesurge o silncio falante, revelador, motivador da aprendi-zagem.O texto, em falando do silncio, polifnico; em analisan-do o que calado, revela a pujana do que dito semdizer: milagres do discurso.

    Certamente os seus leitores mergulharo na clareza de seutexto e navegaro por nveis que eu no percebi. Deixemos que elesfaam isso. melhor assim. Mesmo, seu livro no precisa de intrpre-tes. Aqueles que lidam com Educao, aqueles afeitos discusso doconhecimento terico-metodolgico e tambm os que gostam de afri-canidades tero oportunidade de um brinde construdo por voc, comtanto cuidado e amorizao, competncia e sabedoria. E o povo deterreiro, os afro-descendentes? Ah, eles se rejubilaro, ao ver que,finalmente, o saber oficial sul-baiano, acantonado na Academia, en-xerga o real valor de sua cultura, de seu saber conservado a duraspenas, apesar de todas as tentativas de expropriao sofridas aolongo desses cruis 500 anos.

    Por isso, Marialda, RETOMEMOS, como fazia nossa meiga, purae sbia Valdelice. Pois na retomada que os laos se revigoram, osaber assentado e as fronteiras alargadas. Lancemos, pois, seu livro

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    ao seu prprio destino. E ele ir, em silncio de ouro, revelando sabe-res, construindo outras pontes, pelas quais outros parceiros viro anosso encontro, enquanto caminhamos em direo deles.

    Coisas de Marialda: gente de Leo, cabea de Oxal. Deus sejalouvado!

    Ruy Pvoas*Ajal Der

    *Prof. titular de Lngua Portuguesa da UESC e coordenador do Kw - Ncleo de

    Estudos Afro-Baianos Regionais da UESC.

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    Buscando o fioem muitos

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    O presente estudo constitui-se numa reflexo que entrelaa edu-cao e linguagem. Trata-se de pensar a educao luz da linguagem,considerando o discurso do silncio como o mediador dessa relao.Mais especificamente, a temtica aqui expressa revela a preocupaoem entender como o silncio, em uma comunidade de tradio africana,possibilita relaes com o saber, constri conhecimento, intervm, por-tanto, na configurao de um espao pedaggico.

    O estudo resultado da minha experincia com o povo-de-santodo Il Ax Ijex, terreiro de candombl de origem nag, filiado, portradio, nao Ijex e situado em Itabuna (BA).

    Percorrer os rastros do silncio como elemento que engendraeducao, e perceb-lo concretizado em um espao como o candom-bl, exige reconhecer o terreiro, no apenas como dinamizador de aesreligiosas, mas, sobretudo, como espao de preservao de fortes ele-mentos do patrimnio simblico da cultura africana.

    Pensar o candombl, impe situar o povo africano no espaohistrico de colonizao do territrio brasileiro, quando os escravos,dada a tentativa fracassada de escravido indgena, representaram amo-de-obra barata para os trabalhos braais, demandados pela con-quista da nova terra.

    Na Bahia, essas marcas da escravido africana se fizeram sentircom mais evidncia em face de ter sido um lugar do trfico de negrosegressos de diferentes reinos africanos, chegando a ser o principalporto recebedor de escravos. Na ao de serem espalhados por todacosta brasileira, este Estado da Bahia ganhou fortemente a marca da

    INTRODUO

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    presena africana, havendo nele a concentrao de vrias etnias. Pri-meiro chegaram os oriundos da Costa da Mina. No sculo XIX foi a vezde grupos sudaneses representados pelos povos ioruba, da Nigria(nag, egb, ketu, ibadan, ijebu, ijex) e pelos daomeanos (grupos jje,ewe, fon).

    Importado como bens dos colonizadores e destitudo de suasrazes civilizatrias, o povo africano foi submetido a uma srie de opres-ses que o obrigava a moldar-se a costumes, valores, lngua, a umanova organizao societal, dspares das suas origens, o que obrigou osnegros das diferentes naes a aprenderem, na dispora, a construirestratgias que garantissem a sobrevivncia das suas referncias cul-turais mais importantes. O candombl foi uma dessas referncias, comobem retrata Reis (l989:89):

    Os africanos dificilmente poderiam esquecer seus valorestnicos na Bahia do sculo XIX. Eles eram muitos e sem-pre renovados pelo trfico. Apesar das adaptaes e ino-vaes impostas pela realidade da escravido e o contatocom diferentes povos num novo ambiente, os africanosretiveram, ou pelo menos tentaram reter, laos for tes como passado. [...] As sobrevivncias que porventura fica-ram nunca foram integrais, e resultaram de escolhas es-pecficas dos africanos, escolhas orientadas por critriosde importncia, funcionalidade e eficcia na organizaoda vida comunitria sob a escravido. Foi claramente ooooocaso do candombcaso do candombcaso do candombcaso do candombcaso do candombl na Bahial na Bahial na Bahial na Bahial na Bahia (grifo meu).

    O candombl nasceu, portanto, nesse contexto e tem as origensmais fortes nas senzalas onde os segredos dos orixs eram transmiti-dos por escravos aos seus filhos. Burlando preconceitos, perseguies,inclusive as que obrigavam o negro a assumir uma nova identidadereligiosa baseada no catolicismo, e todo o tipo de represso, essessegredos, ainda hoje, guardados e transmitidos entre geraes, cons-tituem-se o cerne do candombl de origem nag. A resistncia que ocandombl imprimiu, inclusive marcando fortemente a sua presena em

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    muitos estados brasileiros, vai de encontro, sobremaneira, a previseshistricas de que essa religio desapareceria (Rodrigues, 1976).

    A religio africana , pois, reconhecidamente o mais forte ele-mento viabilizador da preservao do patrimnio simblico negro noBrasil, legando, sociedade brasileira, costumes, msica, literatura,arte, imprimindo, portanto, no fazer e viver brasileiros, a sua concep-o filosfica de existncia.

    Na Regio do Cacau da Bahia, espao onde esse estudo se ins-creve, pouco se sabe sobre a participao dos negros na construoda histria local. Os poucos rastros histricos falam de uma regio cujaprincipal atividade agrcola, o cacau, no demandava muitos braos enem um trabalho contnuo que requeresse um comrcio lucrativo deescravos. Assim que, os registros apontam para um grupo que foiaglomerado em torno das atividades de um engenho de cana-de-a-car, no municpio de Ilhus, o Engenho de Santana.

    Ao objetivar compreender o terreiro como um espao educativo,em verdade, acredito estar indiretamente caminhando tambm, na his-tria dessa participao negra na Regio Cacaueira, tendo em vistaque o Il Ax Ijex, campo de nosso estudo, tem as suas origens finca-das nesse Engenho, legadas por Mejigan, escrava que l viveu.

    As comunidades de candombl so sociedades organizadas quetm o seu funcionamento em espaos chamados de terreiros, local ondeest assentado o ax da casa, fora que emana do universo e de tudonele posto, sem a qual a existncia no se dinamiza. Cultuando os ori-xs, divindades do panteo africano ligadas s foras da natureza, ar,gua, fogo e terra, os fiis do candombl concebem o universo e a vida,perfilam as suas relaes sociais, organizam-se, trabalham, ensinam,afirmam a sua identidade, privilegiando as relaes interpessoais e alinguagem oral como asseguradoras dessa dinmica. No dizer de San-tos (1986:38), os membros da comunidade Ng esto unidos noapenas pela prtica religiosa, mas, sobretudo, por uma estrutura scio-cultural cujos contedos recriam a herana legada por seus ancestraisafricanos.

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    Como sociedade de tradio oral, no terreiro, todo o conheci-mento processado verbalmente, cada gerao transmitindo outraum patrimnio simblico. Para o povo-de-santo, a palavra tem valorespecial e o homem o resultado daquilo que atravs dela imprime.Ela no s reflete o valor simblico do sagrado, mas ela prpria umcompromisso que une os membros da comunidade na guarda zelosados contedos que integram uma memria ancestral de conhecimento.Por isso, para o povo-de-santo, escrever sempre trair o sistema. Daa importncia de experienciar o conhecer das narrativas mticas, oscnticos sagrados, os depoimentos de vida, e tambm de viver a valo-rao da fala cotidiana.

    Essa tradio oral, fonte de toda a dinmica de circulao dosaber do grupo, contrasta com o valor que a escrita assumiu na socie-dade moderna. Para Michel de Certeau (l994:224), escrever umaprtica mtica moderna porque a idia de progresso e de histria quea sociedade ocidental construiu vincula-se ao valor da prtica escritu-rstica. Segundo esse autor,

    de modos os mais diversos, define-se portanto pela ora-lidade (ou como oralidade) aquilo de que uma prtica le-gtima - cientfica, poltica, escolar etc - deve distinguir-se. Oral aquilo que no contribui para o progresso; ereciprocamente escriturstico aquilo que se aparta domundo mgico das vozes e da tradio.

    A tradio oral guardada pelo candombl parece no ter se con-taminado com esse olhar ocidental. Talvez porque a idia de histria ede progresso que detm se afaste da concepo ocidental e seja en-tendida como uma histria de mensagens, contos, narrativas mticasque , constantemente, atualizada por valores que vm do passado.Essa viso de histria como transmisso de mensagem significa o aban-dono de uma concepo unitria e global, manifestao de um saberabsoluto, para ser a histria tambm das pessoas nas suas experinci-as comuns, cotidianas.

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    Assim, a cosmoviso africana repassada na experincia dapalavra, da interao com o outro, e esse carter experiencial marca asrelaes com o saber, com a construo do conhecimento. Aprender eensinar, no terreiro, representam integrar-se experincia da vivnciadiria, tarefa que para o povo do Il Ax Ijex infinita, pois, como bemexpressa a Iabass do terreiro, Naneu, ningum mesmo sabe tudo.Tratar o conhecimento nag , portanto, inserir-se na sua simbologiaque se presentifica na linguagem da dana, da msica, da expressogestual, da alimentao, do vesturio, da narrativa mtica. Tudo issoedifica uma complexidade para a realidade vivenciada nos terreiros.

    Este estudo considera o valor dado linguagem oral e, tambmpor ela, pretende reconhecer no silncio - linguagem compreendidacomumente como uma no-fala - um lugar do discurso, espao dodizer. O silncio, como acontecimento de linguagem, no Il Ax Ijex,revela-se como uma trajetria que os seus membros percorrem paraconstruir conhecimento.

    Quase sempre naturalizado e tomado como contedo residualnas comunicaes ordinrias, o silncio raramente tem sido tratadocomo construtor de significao, principalmente no campo da educa-o. No caso especfico do candombl, ele no tem chamado a atenode estudiosos da cultura africano-brasileira. Para o senso comum, si-lncio e candombl no se constitui uma parceria muito harmoniosa emesmo para o povo-de-santo, ele no problematizado como uma lin-guagem que ultrapassa o mbito da comunicao religiosa, lugar ondeo divino tambm se presentifica.

    Historicamente, conforme Orlandi (1995), o silncio visto nasua concepo mstica e essa maneira de perceb-lo tem sido a maisdominante porque um tema que se ligou sempre ao sagrado e sreligies. assim que ele foi experienciado por grupos em quase todosos perodos da histria religiosa no mundo. Exemplo disso est naGrcia, onde nas sociedades pitagricas e nos crculos rficos, o si-lncio exercia importante papel. Foi assim que Pitgoras fazia exign-cia de anos de silncio como forma de iniciao na ordem religiosa e

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    Scrates afirmava que, quando comparado com a fala, o silncio bem mais decisivo que aquela, ressaltando o seu valor como formade conhecimento.

    Ainda segundo Orlandi (1995), a presena do silncio como ele-mento do sagrado est na Bblia e em Santo Agostinho. Est ainda naprtica religiosa de persas, hindus, rabes, judeus na Idade Mdia, ne-oplatnicos. Da mesma forma, os msticos catlicos da Contra -Reformae os Quietistas do sculo XII faziam da prtica da presena divina nosilncio o centro de sua religio. Assim tambm os religiosos da ordemmonstica da Trapa fazem voto de silncio eterno. Exemplo de socieda-de que advoga o valor do silncio tambm a protestante, na ordem daSociedade dos Amigos ou, mais particularmente, os Quakers, para quemo silncio ocupa um lugar central. No se pode esquecer tambm, oseremitas que trazem o silncio como essncia de vida, e a ordem religi-osa das Carmelitas Descalas. Alm dessas manifestaes religiosas dosilncio, deve-se reconhecer que esse tema ocupa a msica, o terrenoda literatura, o texto cinematogrfico.

    Na ordem de outras investigaes, o silncio permeia estudospsicanalticos (Nasio, 1989), estudos filosficos (Beiani, 1990) e soci-olgicos (Steiner, 1988), semnticos (Ducrot 1972) e temtica doimportante trabalho de Anlise de Discurso, de Orlandi (l995), cujolastro de anlise se vincula Escola Francesa de Anlise de Discurso,mais especificamente ao terico M. Pcheux.

    O que se pode observar, porm, ainda uma lacuna na percep-o do silncio como articulador de relaes educativas. Esse vazio detratamento, essa atitute de negligncia para com o silncio dada pelaeducao instalam em mim a desconfiana de que, embora a educaoesteja reconhecendo as diversas formas de conhecimento construdaspelo homem, ainda muito comum a atitude de validar alguns em detri-mento de outros. Esse olhar revela que ainda tem prevalecido um mo-delo de validao do conhecimento que alija todas as formulaes queno esto reconhecidas pela epistemologia, como o caso daquelasdenominadas cotidiana, leiga ou emprica.

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    No caso particular deste estudo, a linguagem do silncio emanaexatamente da, desse lugar que no visto, que passa despercebi-do. Entretanto, os saberes que escapam desses lugares so proceden-tes, no da comprovao atestada pelos rigores avaliativos de umacincia, mas so identificados e originam-se do dia a dia das pessoas,no obedecendo a uma sistematizao rigorosa que permita cinciaconceb-los como erudito, portanto verdadeiros. No entanto, essessaberes cotidianos relevam a necessidade de se estabelecer uma des-confiana para com o real e o que est nele posto, porque o que estelegitima, conceitua, consolida e/ou circunscreve no revela a totalidadede formas e estratgias utilizadas pelo homem para produzir e elabo-rar conhecimento.

    Um desses saberes, no meu ponto de vista, o silncio que, noseu estatuto de linguagem, constitui-se espao criativo para o conheci-mento. Como tal, ele quase nunca problematizado pelo pensamentocrtico, principalmente no mbito da educao e dos seus processos deconstruo. Apesar disso, a linguagem do silncio a est, ela habita oterreno do no-institudo, mas existe; permeia o no-concebido, mascorresponde ao vivido, ao experimentado.

    Ratificando o que discuto, Orlandi (1995:37-38) afirma que

    para o nosso contexto histrico-social, um homem em si-lncio um homem sem sentido. Ento, o homem abremo do risco da significao, da sua ameaa e se preen-che: fala. Atulha o espao de sons e cria a idia de siln-cio como vazio, como falta. Ao negar sua relao funda-mental com o silncio, ele apaga uma das mediaes quelhe so bsicas. [...] O nosso imaginrio social destinouum lugar subalterno para o silncio. H uma ideologia dacomunicao, do apagamento do silncio, muito pronun-ciada nas sociedades contemporneas. Isto se expressapela urgncia do dizer e pela multido de linguagens queestamos submetidos no cotidiano. Ao mesmo tempo, espe-ra-se que se esteja produzindo signos visveis (audveis) o

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    tempo todo. Iluso de controle pelo que aparece: te-mos de estar emitindo sinais sonoros (dizveis, visveis)continuamente.

    nessa trajetria de perceber a linguagem cotidiana do silnciono candombl que esse estudo se inscreve. Aqui, o cotidiano tomadono sentido que tambm lhe empresta Maffesoli (l985:146), como olugar privilegiado de percepo do social. Segundo ele, a vida cotidia-na constituda de micro atitudes, de criaes minsculas, de situaespontuais e totalmente efmeras. , stricto sensu, uma trama feita deminsculos fios estreitamente tecidos, onde cada um em particular totalmente insignificante ou como quer Teixeira (1990:38), para quem

    o cotidiano considerado o lugar privilegiado da anlisesocial, pois nele que apreendido o irracional, o nolgico, a desordem, o acaso, a diferena, isto , a organi-zao dos mltiplos e complexos elementos componen-tes de uma organizao social.

    Dessa maneira, considero o silncio como uma micro atitude nasaes do cotidiano no terreiro, que emana tanto da experincia com anarrativa mtica de Oxal, orix cuja comunicao com os fiis do can-dombl se d fortemente por essa linguagem, como nas conversaesordinrias em que o silncio produzido, negociado. Essa produoremete a entend-lo como resistncia invaso do olhar estrangeiropara a religio, como revelador de embates da cultura africano-brasilei-ra com o seu exterior. O silncio , enfim, um elemento da ordem sim-blica que permite a estruturao de uma ordem social mais ampla nacomunidade.

    Em verdade, a categoria silncio aqui trabalhada vista no inte-rior de uma trama discursiva na qual o que importa ao produtor dosilncio a manuteno de uma cadeia comunicativa com o outro, sejapara dizer que ele existe e que est num espao comum onde trocaspodem ser estabelecidas, seja sugerindo ao sujeito rever a sua relao

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    com o prprio saber ou para reafirmar certos contedos da cultura. Osilncio lugar do imaginrio, do estar-com, da reafirmao de que asrelaes educativas se efetivam pelo jogo intersubjetivo.

    Tomo a linguagem, portanto, inserida no paradigma interacio-nista cuja formulao sustenta que ela , antes de tudo, acontecimen-to, evento. Os fatos de linguagem so sempre interlocuo em que ossujeitos, ao mesmo tempo em que os constrem, so por eles constru-dos. Nessa construo, considera-se as condies de aparecimentodesses fatos, o que inclui o ambiente scio-histrico e ideolgico emque estes esto inscritos.

    Considero a educao como processo interacional, dado entresujeitos; uma realidade construda a partir da eleio de um conjuntode estratgias e meios que uma sociedade pe em prtica para trans-mitir seus valores s geraes ascendentes e, dessa forma, manter oseu ethos, a sua identidade e a sua sobrevivncia. Assim, tomo a edu-cao como um processo em que, cotidianamente, os sujeitos cons-trem novas subjetividades dentro das relaes sociais historicamenteconstrudas. A educao ento, se relaciona com os sentidos e as signi-ficaes com que os indivduos constrem, nas suas relaes cotidia-nas, a representao do que sabe sobre si prprio, o seu grupo e asociedade mais ampla. A educao linguagem, e pens-la assim exigeentend-la, como afirma Osakabe (1991:8),

    enquanto processo constitutivo (de) e constitudo (por)sujeitos. E como tal, como um processo que tem a densi-dade, a precariedade e a singularidade do acontecimen-to. Da que no se pode pensar num processo educacio-nal consistente sem admiti-lo como tenso, instaurado so-bre a singularidade da prpria temporalidade que o espe-cfico do momento implica.

    Concebo a cultura como um feixe de smbolos tecidos como umtexto e como tal entendo que est exposta a interpretaes mltiplas, adepender dos contextos em que est construda. Nesse sentido, a

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    categoria religio tambm vista na perspectiva formulada por Geertz(1989:104), como um sistema de smbolos que atua para estabelecerpoderosas, penetrantes e duradouras disposies e motivaes noshomens atravs da formulao de conceitos de uma ordem de existn-cia geral.

    Diante do exposto, diria que o meu limite de inqurito para coma reflexo colocada neste estudo traduz-se na seguinte questo orien-tadora: como a linguagem do silncio pode fundamentar a produo decontedos educacionais, em um terreiro de candombl, organizandoum modo prprio pelo qual os seus membros percebem a si prprio, ooutro, e explicam o mundo?

    Para efeito metodolgico, o trabalho submeteu-se a diviso emcaptulos, nos quais os dados coletados so discutidos e os referenci-ais, que sustentam as anlises, so verticalizados. No captulo I, discutoo valor simblico do silncio no terreiro e o afirmo como um discursomatriz, na comunidade, que edifica relaes educativas de naturezainterativa. No captulo II, tomo o silncio na sua face discursiva e anali-so os jogos enunciativos que os membros do terreiro constrem para aproduo do que chamo silncio-segredo: trata-se de perceber o siln-cio como discurso de resistncia ao olhar do estranho comunidade eque reflete um aprendizado tacitamente processado no grupo. O cap-tulo III assume o silncio na perspectiva discursiva, sustentado na idiade que todo dizer cala algum sentido, inscreve-se numa histria: a dis-cusso remete percepo do silncio em sua materialidade significa-tiva, analisando-o inserido numa poltica de silenciamento, essa polticarevelando-se apelo emergncia de uma pedagogia que integre a cos-moviso da cultura africano-brasileira.

    Como se pode observar, o silncio tratado em suas mltiplasfaces na tessitura com a educao. Ele ultrapassa uma ordem que no s mstica, transita em outros lugares, formula-se tambm como re-sistncia cultural, elaborao e transformao de conhecimento.

    pertinente acrescentar que, por estar consciente da naturezada minha proposta e do inexplorado da temtica, assumo-a como desafio

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    e, tambm, como aposta na contribuio para a educao. Isso porque,no meu entendimento, ela inaugura mais uma forma de validao decontedos do senso comum na transformao da realidade e reafirmaa educao como um processo e a linguagem como evento produzidocotidianamente, na sua historicidade. Alm disso, ao perceber o silnciocomo uma importante linguagem no candombl, abre caminho pro-blematizao e compreenso de sua produo em outros espaos edu-cacionais.

    A ttulo de esclarecimento, registro que, embora eu tenha pro-curado realizar o tratamento terico-metodolgico ao longo das dis-cusses, senti necessidade de trat-lo, de forma objetiva, em um espa-o prprio.

    Este estudo est acompanhado de um glossrio, em face dolargo uso de termos nag ao longo do texto. Informo, ainda, que opteipor registrar uma bibliografia bsica relacionada s obras referidas efundamentais.

    Finalmente, para validar o ttulo desta dissertao A Educaopelo Silncio: o feitio da linguagem no candombl, esclareo que o seusubttulo sugere reconhecer na linguagem o carter enfeitiante quelhe constitutivo. feitio porque magia, o seu verdadeiro apenasa expresso de uma ordem que transitria e precria, um aconteci-mento que envolve a magia das pessoas, a magia das palavras, a magiado conhecimento. A linguagem como feitio se transforma em convitepara o trnsito entre as suas mscaras que, por mais que sejamretiradas, h sempre um sentido que eternamente se esconde, comose para afirmar que o feitio mora na sua natureza polissmica.

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    Este estudo pretende compreender a dinmica da atuao con-junta da linguagem com a educao, cuja mediao construda pelosilncio. A idia foi fazer emergir, dessa relao, a configurao de umespao pedaggico num ambiente especfico, singular, religioso e detradio africana.

    Esse entrecruzamento que proponho, por si s, j exige a nofixao em apenas um lugar terico, mas um movimento de percep-o multirreferencial que abrigue diversos pontos de vista numa mesmapostura paradigmal. Nesse entendimento, busco apoio terico em al-gumas formulaes que tm em comum a perspectiva de perceber alinguagem, a educao e a religio africana como questes dinamiza-das pelo paradigma interacional. Esse, visto como o que inscrevecotidianamente o sujeito nas suas relaes com as pessoas, com osobjetos, com os espaos, com o temporal, com a histria, construindoum sentido e uma significao para si e para o mundo, enfim umarelao que constri saber, pela interao. Seja como base especficade anlises ou como arcabouo que d lastro compreenso de cer-tas questes, nesse paradigma que inscrevo o meu olhar, a minhapercepo.

    Neste estudo, a primeira grande questo que se impe a com-preenso de que o terreiro, para alm do espao religioso que institui,formula-se como sociedade e, como tal, estabelece formas de organi-zao e funcionamento prprias. Considero, ento para consubstanciara minha anlise, o terreiro como espao de resgate e preservaocultural de valores africano-brasileiros, e considero essa dinmica de

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    resgate e preservao como edificadora de uma ambincia educativa,de uma pedagogia emergente.

    Por isso, considero o proposto por Geertz (l989:143), o qualentende que a religio como sistema cultural

    nunca apenas metafsica. Em todos os povos, as for-mas, os veculos e os objetos de culto so rodeados poruma aura de profunda seriedade moral. Em todo lugar, osagrado contm em si mesmo um sentido de obrigaointrnseca: ele no apenas encoraja a devoo como aexige; no apenas induz a aceitao intelectual como re-fora o compromisso emocional. [...] a religio fundamentaas exigncias mais especficas da ao humana nos con-textos mais gerais da existncia humana.

    Ainda segundo Geertz (1989:144), a religio se constitui emparte, em uma tentativa de conservar a proviso de significados geraisem torno dos quais cada indivduo interpreta sua experincia e organi-za sua conduta.

    Ainda tomando a religio como sistema cultural e a perspectivareligiosa como uma das perspectivas de percepo do mundo, maisuma vez opto pela postura terica de Geertz (l989:l26), para quemfalar de perspectiva religiosa , por implicao, falar de uma perspec-tiva entre outras. Uma perspectiva um modo de ver, no seu sentidomais amplo, significando discernir, apreender, compreender, en-tender. A religio est compreendida como forma particular de olhar avida, de construir o mundo, como quando falamos de uma perspectivahistrica, uma perspectiva cientfica, uma perspectiva esttica, umaperspectiva de senso comum. Isso remete a considerar a religio e ossaberes que nela circulam como um saber colocado na mesma escalaaxiolgica de outros saberes.

    Como lastro para a minha compreenso sobre o resgate epistmi-co do conhecimento comum e das relaes de construo do saber nelee por ele processadas pelos grupos marginalizados em seu viver - como

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    o caso das comunidades-terreiro, cujo ethos se distancia da religiohegemnica e dos espaos educativos tradicionais, busco apoio na com-preenso de Maffesoli (1985:145) que toma os pequenos fatos da vidadiria como elementos que permitem compreender questes maioresda dinmica social. O cerne do social est, ento, nas microatitudes davida cotidiana, as quais devem ser analisadas a partir de categoriascomo: aceitao de vida, duplicidade, solidariedade orgnica, siln-cio, astcia enquanto meios de existncia (grifos meus). Dessa manei-ra, discuto como a vida cotidiana no terreiro e as banalidades quedela emergem refletem questes mais amplas da ordem social. Analiso,ento, como as aes dirias dos sujeitos envolvidos no terreiro dosustentao a um fazer pedaggico prprio, a uma prtica educativadona de singularidades. No caso especfico desta abordagem, tomo osilncio como banal, cotidiano, mas construtor e revelador de impor-tantes indicadores para a compreenso da prtica educativa processa-da num terreiro de candombl.

    A idia de que o conhecimento possui uma natureza processuale que a sua elaborao funda-se na teia das relaes sociais, numadinmica relacional entre sujeito-mundo, convidou-me a buscar na pe-dagogia humanista e libertadora de Freire (1979), apoio ao entendi-mento do projeto pedaggico construdo no Il Ax Ijex. Freire conce-be o homem como um ser de relao, que edifica relaes espao-temporais com a realidade mais imediata que o circunda e o determina.Nessa direo, como ser contextualizado scio e culturalmente, o ho-mem no apenas est localizado num dado contexto, mas est com eleimprimindo a sua marca e deixando-se ser por ele marcado. Por isso, ohomem guarda em si conotaes de pluralidade, criticidade, conseq-ncia e temporalidade.

    Para esse educador, o carter de pluralidade est encerradonas relaes do homem com o mundo, na medida em que ele produzrespostas aos desafios desse mundo, e por e nesse jogo que o ho-mem reflete e produz novos contedos s exigncias do seu cotidiano.A criticidade reside na atitude reflexiva que faz o homem transgredir,

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    discernir, transcender, distinguir, o que e no melhor ao seu projetoexistencial. Da capacidade de discernir emerge a sua conscincia detemporalidade do que presente, passado e futuro. Segundo a peda-gogia freireana, essas caractersticas, que apontam para o modo dohomem relacionar-se com o seu contexto, possibilitam que ele se torneum ser que cria e recria a sua ambincia, respondendo aos seus desa-fios, auto-objetivando-se, discernindo e promovendo a transformaoda histria e da cultura.

    Esta concepo , portanto, compreendida dentro da esferada cultura e novamente em Geer tz (1989:15) que eu me apoiopara compreender a cultura como um conceito essencialmente semi-tico em que o homem um animal amarrado a teias de significadosque ele mesmo teceu, da afirmar que assume a cultura como sen-do essas teias e a sua anlise; por tanto, no como uma cincia expe-rimental, em busca de leis, mas como uma cincia interpretativa, procura do significado.

    Na ancoragem dos postulados acima, considero a linguagemcomo cerne para o meu estudo, entendendo-a como elemento reve-lador e de compreenso das relaes educativas estabelecidas noterreiro.

    preciso considerar para isso que as comunidades de candom-bl constituem-se grafas, no que se refere manuteno dos seusfundamentos, acreditando que o registro escrito fere o sistema do povo-de-santo e somente a relao face a face e os ensinamentos boca-ouvido traduzem com fidelidade o que pensam, o que transmitem. En-to, dado o valor que tem a oralidade para o grupo, tambm nasconversaes cotidianas que centro a minha ateno.

    A linguagem est compreendida na dinmica do resgate e dapreservao da cultura do grupo. Ela tomada, em termos gerais e emcoerncia com a concepo de educao adotada, na sua acepo deinterao. A conseqncia desse entendimento o rompimento com acompreenso do fenmeno da linguagem circunscrito apenas ao cdi-go, como apregoado pela estudos estruturalistas. Aqui, a linguagem

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    passa do estatuto de ideologicamente neutra (estatuto embutido naconsiderao dicotmica lngua/fala, como sendo a-histrica, natural),para ser perpassada por embates subjetivos e sociais. A linguagem vista a partir disso, como um modo de produo social. O trabalho dossujeitos na e pela linguagem um trabalho constitutivo, no existindo,portanto, o sujeito fora da linguagem e vice-versa. Nessa concepointeracionista sujeitos e linguagem so constitudos e engendram umadinmica na qual se constrem e se interdependem. Considero aqui afuno subjetiva da linguagem e o seu valor sendo evidenciado do pon-to de vista do seu uso e de seus usurios. Esta acepo de linguagemse constitui fio condutor da anlise, entretanto, a depender da recor-rncia dos dados, ela poder ser vista no interior do dialogismo bakhti-niano ou da anlise do discurso de orientao francesa, mas semprecompreendida como processo interacional.

    Na perspectiva da interao e para operacionalizar a posturaparadigmal na qual me inscrevo, tomo, como categoria compreensivado objetivo que norteia este estudo, a linguagem do silncio. Consi-dero o silncio como um discurso. O discurso entendido como instn-cia da linguagem e esta se constituindo como a sua possibilidade derealizao.

    O conceito de discurso no qual sustento a abordagem do siln-cio est alicerado na interdependncia enunciado x enunciao. Enun-ciado entendido como produto lingstico e enunciao como a trajet-ria de produo do enunciado, o seu ato produtor. Ou ainda: o primeiro,como fenmeno lingstico e a enunciao como fenmeno extra-lin-gstico. A enunciao, conceito fundamental no interior de uma con-cepo de linguagem enquanto interao, est compreendida comoum ato individual, momento nico e no passvel de reproduo, doscontedos de expresso de sujeitos historicamente determinados notempo e no espao. Considero, nessa perspectiva, que todo dizer produtor, mas tambm produo cujos efeitos de sentidos decorremdas relaes estabelecidas entre o sujeito que produz, os lugares deonde diz, para quem diz, como registra a sua expresso enunciativa e

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    quais outros dizeres essa expresso condensa ou recupera.Tomado como uma prtica discursiva, trabalho de ao e intera-

    o da linguagem, o silncio revela, em sua opacidade, elementos sim-blicos e culturais. Especialmente no candombl, o silncio se revelacomo fala, como dizer, porque nas comunidades-terreiro o seu valor fundante medida em que ter a capacidade de silenciar condiofundamental para ser considerado na comunidade. Procuro concretizaresse pensamento tornando aproximado o valor simblico do silncioquele que possui a palavra para o povo-de-santo, como transmissorade ax. Busco em Santos (1975), Pvoas (l989), Sodr (1988), Wondji(1996) e Heidegger (1993) a reafirmao desse valor, discutindo que,embora o silncio esteja naturalizado nas interaes cotidianas ecolocado como assunto de segunda ordem para a maioria dos estudio-sos, ele sugere novas formas do sujeito estar no mundo, de se relacio-nar com o outro, de construir estratgias de sobrevivncia no coletivo.Nessa perspectiva, busco, nos estudos antropolgicos, filosficos e et-nogrficos, a compreenso do silncio como mito e os significados queessa simbologia deixa vazar.

    Por conta dessas constataes, analiso, em termos pragmti-cos, os jogos enunciativos que presentificam o silncio como dono deregras prprias e princpios discursivos definidos e definidores deestratgias de interao entre sujeitos. Embora o silncio no tenhasido tomado como categoria especfica por este terico, procuro emBakhtin (1992) a compreenso dos esquemas de negociao ope-rados pelos interlocutores nas suas formas de produzir o silncio edar-lhe sentido.

    Recupero assim, o dialogismo bakhtiniano, quando este postulaque a produo e a compreenso de todo enunciado s pode se dar nocontexto dos enunciados que o precederam. Todo discurso, na formu-lao de Bakhtin(1986:113), est constitudo na fronteira entre aquiloque seu e aquilo que do outro. A linguagem, ento, no algoneutro e o dialogismo passa a ser uma condio constitutiva do senti-do. Nessa direo, ele expressa que

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    na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela determinada tanto pelo fato de que precede de algum,como pelo fato de que se dirige para algum. Ela cons-titui justamente o produto da interao do locutor e doouvinte. Toda palavra serve de expresso a um em re-lao ao outro. Atravs da palavra, defino-me em rela-o ao outro, isto , em ltima anlise, em relao cole-tividade [...] A palavra o territrio comum do locutor edo interlocutor.

    Esse quadro de formulaes apia, principalmente, a discus-so que enceto quando afirmo existir, no jogo da constituio do si-lncio, processos histricos e sociais, pois essa constituio encontramotivao no contexto social a que se vincula o sujeito da enuncia-o. Recorro a Foucault (1971) para tambm explicar o controle dediscursos que nesse espao se efetiva e as formaes imaginriasque os sujeitos constrem na interlocuo. Osakabe (1991) e Geraldi(1993) fornecem os quadros de configurao dessas formaes anvel prtico.

    A proposta para compreenso do silncio como discurso ganharealce tambm apoiada nos pressupostos defendidos pela Anlise doDiscurso (AD) de linha francesa, pois considero o discurso, apoiando-me em Pcheux (1969), no como processo de simples transmisso deinformaes, mas como efeitos de sentidos. Nessa linha terica, buscodiscutir em Orlandi (1995), autora cuja orientao terica se vincula AD de linha francesa, o silncio como fundante ao dizer e tambm comoefeito de uma poltica de silenciamento nascida das relaes de poderestabelecidas na interlocuo. Assim, para fundamentar a configuraoda prtica educativa processada no terreiro pela compreenso de umatipologia discursiva, recorro categoria trazida por Orlandi (1987) paraquem o discurso se efetiva na tenso entre os eixos parafrstico epolissmico. Um que se inscreve no eixo do mesmo, da repetio e ooutro que se inclina para a inaugurao do novo.

    O quadro apresentado, em verdade, espelha as linhas tericas

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    bsicas nas quais me inscrevo. Entretanto, ao longo das discussesque opero, recorro, aqui e ali, e no na mesma dimenso, a refernciastrazidas por outros autores.

    A OPO METODOLGICA

    Um tema como o que proponho, A Educao pelo Silncio, noparece trazer, facilmente, para ele, uma metodologia de trabalho, prin-cipalmente quando se tem em vista um entrelaamento da educaocom a linguagem, dois terrenos nos quais a dinamicidade constituti-va. Some-se a isso o fato de que esses processos so vistos num ter-reiro de candombl, espao que j atraiu um bom nmero de estudosetnolgicos, sociolgicos, antropolgicos, mas sobre o qual muito pou-co foi visto no plano da educao e da linguagem.

    O trabalho com o silncio, o seu carter fluido, opaco, no-calcu-lvel, no segmentvel, requer lanar mo de um procedimento analti-co significando muito mais do que a viso cartesiana empresta ao ter-mo anlise (trabalho de fragmentao do todo, tendo em vista umasntese explicativa de um fenmeno). Se tomarmos o silncio na com-plexidade que encerra, esta entendida como quer Ardoino (apud Burh-nam, 1993), como o que contm, engloba(...), o que rene diversoselementos distintos, at mesmo heterogneos, envolvendo uma polis-semia notvel, preciso admitir que a linguagem do silncio chamapara si uma nova compreenso de anlise, aquela que remete, comoafirma Burhnam (1993), a acompanhar o processo, compreend-lo,apreend-lo mais globalmente atravs da familiarizao, nele reconhe-cendo a relativamente irremedivel opacidade que o caracteriza. Aanlise, diz a educadora,

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    passa a ser, tambm ( diferentemente da explicao raci-onal que o outro estatuto de anlise exige) produzir aexplicitao, a elucidao desse processo sem procurarinterromper o seu movimento, mas realizar esta produ-o ao mesmo tempo em que tal processo se renova, serecria, na dinmica intersubjetiva da penetrao na suaintimidade, na multiplicidade de significados, na possibili-dade de negao de si mesmo, que caracteriza o sujeitodas relaes sociais.

    Isso ratifica o desafio que tive de percorrer neste estudo. Aolongo da definio da proposta metodolgica, uma questo sempre seimpunha: como pesquisar algo que no-representvel e cuja obser-vao no pode ser feita pelos mtodos correntes? Como perceb-lo,em um percurso metodolgico atrelado educao? Pela anlise dedados estatsticos ou pela regularidade de processos de fala, por exem-plo? Segundo Orlandi (1995:57),

    esses mtodos [...] so a prpria negao do silnciocomo matria significativa diferente e especfica. Assim, adificuldade na anlise - quando se coloca a questo dosilncio - no , como para outras disciplinas da lingua-gem, ora excesso de dados, ora falta de teoria, mas sim anecessidade de ruptura [...] mais do que marcas (pa-radigma da demonstrao) temos pistas (conjecturas).Para analisar o silncio assim preciso fazer intervir ateoria enquanto crtica.

    Essa fala proposta pela autora me faz retomar a trajetria decontato com o meu tema de pesquisa e as exigncias metodolgicaspor ele apontadas.

    Para espelhar melhor essas exigncias, retrato, a seguir, algunspassos que considerei imprescindveis construo de um fazer meto-dolgico, quais sejam: a experincia de sentir o silncio, a convivnciaprxima com a comunidade. Isso concorreu, de forma decisiva, deli-mitao do tema, seleo de processos de anlise, construo do

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    corpus da pesquisa, ancoragem de orientaes tericas. Acredito queessas etapas retratam como a teoria deve ser buscada sempre, numprocesso de pesquisa qualitativa, a partir da experincia.

    SENTIR O SILNCIO: UMA EXIGNCIA EM MIM

    Quando iniciei a configurao do meu projeto de dissertao, osilncio como temtica se apresentava como uma das questes que mepossibilitariam compreender, entre outras que se evidenciavam, a emer-gncia de um espao pedaggico no terreiro de candombl. Essa ques-to surgia de um contato que havia estabelecido no terreiro, por contade uma monografia realizada em parceria, sobre a construo do co-nhecimento numa comunidade nag, o Il Ax Ijex. Eu intua que osilncio daquela comunidade deixava vazar significaes que se inseri-am no s na ordem do cultural, mas tambm do pedaggico. Mas, demaneira transparente, o que se apresentava para mim era a presenaque o silncio impunha nos rituais religiosos, o que o ligava diretamen-te a seu entendimento como lugar de meditao e de espiritualidade. Afase que marcou a minha experincia no candombl, que teve incio noano de 1995, me fez sentir o silncio em suas vrias faces.

    A primeira delas foi a experincia profunda em grandeza, rica deacontecimentos: a festa de Oxal e o silncio que ela traduz, da qual falono primeiro captulo dessa reflexo. Vivi a experincia de passar algunsdias no terreiro e silenciar nas doze horas que se faz em homenagem aOxal. Horas de sentimento do silncio. Isso me fez perceber a sua impor-tncia enquanto smbolo para a comunidade e ratificou em mim a descon-fiana de que ele perpassava outros campos, emanava de um referencialmtico, mas o atravessava e atingia modos de comportamentos, forma deencarar a vida, edificava estratgias de resistncia, construa saber.

    A fase da experincia primeira tambm faz-me lembrar o prprioprocesso de minha entrada no terreiro que esteve submetido anuncia

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    do conselho religioso da Casa. O acolhimento na comunidade ento,naquele momento, dava-se legalmente. Entretanto, aos poucos, fui per-cebendo que acolher, para o povo-de-santo, tinha uma significao queultrapassava essa legalidade de ingresso na comunidade. A condiode no-iniciada dava-me a compreenso, cada vez mais clara, disso. Ogrupo, apesar de corts e afetuoso, guardava um silncio imposto pelaminha presena e j a questes da ordem do falar e no-falar, do dizere no-dizer se evidenciavam. Isso impunha o convite a uma observaovivencial, experincia do sentir, atravs da participao nas prticasdo cotidiano, como as pessoas se relacionavam, como as experinciaseram vividas. Era a que eu experimentava a acolhida menos desarma-da e as resistncias a minha presena se faziam em ns cujas cordasestavam mais soltas.

    Ento, veio a participao em cerimnias que antecedem as fes-tas pblicas, na preparao das festas, nos rituais diversos, no pad deExu, nos boris, na inaugurao de pejis, nas folia do bumba-meu-boidurante a festa dos Ibeji. A depender da natureza da cerimnia partici-pava, ora como algum que integrava a roda, cantava e danava paraos orixs (no pad, por exemplo, na folia do bumba ou numa cerimniade plantio de rvore); ora como algum que integrava o grupo, emoutras condies. A essa altura eu j tinha roupas especiais para talfim. Acompanhava as reunies do grupo, ouvia os assuntos mais do-msticos, participava das festas civis, partilhava afazares rotineiros.Freqentava o seu cotidiano mais familiar. Entrei nas regras da comuni-dade, hospedava-me com eles, acordava na madrugada, quando ne-cessrio e, aos poucos, estabelecia com as pessoas uma relao queme fazia ouvir os seus afetos, os seus sonhos, as suas histrias de vida.E eles, do meu lado, significavam tambm essa partilha, e eu assumia odesprendimento do caador que se deixa transformar em caa. E issome fazia acreditar, cada vez mais, que o cotidiano trazia uma riquezaque o faz mesmo fermento da histria. Histria que eu construa,sentindo e ouvindo os outros, sendo ouvida pelas pessoas. Histria quese construa pelos silncios do/no Ijex.

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    Ao final de um ano no terreiro, eu j integrava a equipe queproduzia e editava o Jornal Tkd, informativo da comunidade e, cadavez mais, o tema do silncio me intrigava, formulava em mim convites. Aessa altura, o meu caderno de campo, instrumento de registros dasobservaes feitas, j se constitua num rico material de anlise.

    O interessante que, mesmo a despeito de toda a integrao,as questes de ordem do no-dizer permaneciam e me faziam seduzi-da pelo silncio que a se instalava. A minha condio de no-iniciadamarcava resistncia abertura de certos assuntos, imprimia tangenci-amentos a temas e respostas monossilbicas para as minhas curiosida-des. Da a deciso por entender a(s) ordem(s) desses no-ditos. E osilncio tomava corpo. Nascia o olhar para o silncio-segredo, tema dosegundo captulo deste estudo. Eu confirmava as minhas suspeitas deque o silncio perpassava outros campos, espelhava a marca da hist-ria vivida pelo povo-de-santo. Agora, ele tinha a face da resistncia.Simultaneamente, as outras questes que originalmente faziam partedo estudo ganhavam menor dimenso.

    A convivncia efetiva com o terreiro, que, inclusive, se dava emquase todos os finais de semana, levou-me a Nazar das Farinhas,cidade prxima a Salvador (BA), para acompanhar a comunidade numafesta religiosa: a festa de Iansan. Nessa festa, tambm o cotidiano serevelou importante para a compreenso da migrao que o silncioopera. Uma conversa de uma criana de nove anos de idade que se-gredava para mim os seus desejos, veio confirmar a necessidade deperceber o silncio em sua materialidade histrica, como processo eproduto resultante de embates que se do de uma forma mais ampla,no social. Nascia a idia do terceiro captulo da nossa dissertao, a deouvir a significao do silncio no seu embate entre o prprio terreiro eo seu exterior, a escola.

    Percebia ento que esse mesmo silncio, que assumia vrias fa-ces apontava, em cada uma delas, uma via para perceber a constituiodo espao pedaggico do terreiro. A, no havia mais recuo, o silnciotomava os espaos, ganhava fora, se corporificava. Era ele a temtica

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    do meu estudo, mais tarde formalmente transformada em projeto de pes-quisa. Queria entender como a educao se dinamizava pelo silncio.

    QUEM SE FEZ PARCEIRO DE CAMINHADA METODOLGICA

    A essa altura, a minha experincia, as construes operadas nocotidiano j me deixavam mapear um caminho metodolgico coerente,que no rompesse (por estar instituindo uma pesquisa) com a obser-vao experiencial, com a ligao que havia construdo com o grupo eque desse conta de tratar o silncio e a educao como processo deinterao cotidiana. J estava claro para mim o fato de estar inscreven-do-me numa postura metodolgica de anlise do microssocial, da an-lise das situaes menores, consideradas pela macrossociologia comouma categoria residual.

    Da encontrar apoio, tambm, na Abordagem Transversal pro-posta por Ren Barbier (1993:3), referencial terico-metodolgico quepostula a necessidade de que em toda situao de pesquisa, educaoou na vida comum, haja trs tipos de escuta: a cientfica-clnica, quecaracteriza a pesquisa-ao; a mito-potica e existencial, que buscaentender os sentimentos que ligam os membros de um grupo a suahistria mtica, por exemplo; e a espiritual filosfica, que se define comoa escuta dos valores ltimos, que do um sentido vida de um sujeito(indivduo ou grupo), e esclarecem suas prticas. Para esse autor,

    o grupo, como cada um de ns, precisa da interpelaodo outro para encaminhar-se a seus valores ltimos epara deles fazer uma verdadeira fora interior. No dooutro que se arroga grande interpretador e que procu-ra dizer quem voc em funo de referentes totalmenteexternos a voc. Mas do outro como espelho ativo, capazde entrar em conflito com voc para lhe fazer descobrir,na relao humana, [...] os valores essenciais do seu devir.

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    Foi nessa trajetria, principalmente tentando percorrer as duasltimas escutas anunciadas acima, que deixei que a escuta do silnciose fizesse em mim e no outro, sem tentar uma interpretao rgida dosfatos que se apresentavam. Exerci uma escuta que se efetivava nosmais diferentes espaos: barraco, pia de prato, fogo de lenha, con-versas em rodas informais etc, no lugar-acontecimento que, na ex-presso de Barbier (1993:6)

    , muitas vezes, frutificante para a pesquisa [...] o lugarque emerge de um acontecimento imprevisto, muitas ve-zes dramtico. Nesse lugar-acontecimento desabrochamcom todo seu vigor, o imaginrio e os esteretipos enrai-zados do grupo.

    Isso me ajudava a observar a percepo que o silncio tinha parao grupo, em funo mesmo das relaes que estabeleciam entre si. Fo-ram esses lugares-acontecimento que me auxiliaram a confirmar tambmas singularidades daquele grupo, as relaes hierrquicas, a conhecer osmodelos csmicos a que cada membro se filiava, por exemplo.

    Por conta dessa compreenso, apliquei, junto a uma colega pes-quisadora, uma vivncia de pesquisa com o grupo, que esteve funda-mentada na Sociopotica (Gauthier, 1996:6), considerada como

    uma teoria do conhecimento do social pelos seus prpri-os atores [...] ela institui condies de produo de da-dos que pretendem despertar a potica social, isto , asforas criativas dos grupos e dos indivduos, tal como exis-tem - geralmente recalcadas, silenciadas, ignoradas.

    A vivncia consistiu na reunio de um grupo de pessoas, dediferentes modelos csmicos e tempo de iniciao no terreiro, portantoidosos, crianas, adolescentes e jovens, homens e mulheres de diferentesfaixas etrias. Atravs da escolha de cartas de tarot, os participantesdiscorriam sobre como a figura ali impressa refletia a sua trajetria deaprendizado na comunidade. Essa experincia permitiu interagir com o

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    grupo, no sentido de captar importantes questes epistemolgicas so-bre as relaes educativas no terreiro que outras tcnicas de pesquisano oportunizariam. Essa vivncia indicou-me tambm alguns caminhosque eu deveria seguir na trajetria metodolgica. Essa, seguramente,teria como componente principal a compreenso no dos produtos dapesquisa, mas de seus prprios processos.

    Ao lado dessa escuta sensvel que promovi, deixava-me ser po-voada pelo estranhamento das coisas e dos acontecimentos que merodeavam. Como num tecido, vivi a experincia de tambm ver impres-sos em mim vrios bordados. Fui, ento, buscando parceiros para per-correr um caminho metodolgico que me desse conta da cotidianidadeemergente que trazia tona a linguagem do silncio, imprimindo din-mica s relaes educativas.

    A idia que se consolidava era a de compreender como as expe-rincias humanas no terreiro eram produzidas, aceitas, contestadas,legitimadas, dentro da dinmica da vida diria.

    Foi ento que vi na etnometodologia (Coulon, 1990), tambm,um caminho necessrio ao meu fazer como pesquisadora. Os seus pos-tulados de: respeito integridade dos fenmenos estudados, de consi-derao dos indivduos em seus contextos naturais, de crena em quea estrutura e a ordem sociais no tm existncia independente dosindivduos que as constrem, da viso do indivduo (como ator socialque, ao mesmo tempo em que socializado pela interao, esta tam-bm gerada por ele), me asseguravam um caminho mais seguro minha caminhada metodolgica.

    COMO FOTOGRAFEI AS SITUAES NA COLETA DE DADOS

    A etnometodologia considera a ao individual como ponto deorigem da observao, postulando tambm que anlise de qualquerfenmeno social deve ser feita do ponto de vista dos seus participantes,

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    a partir das negociaes de sentido que engendram.Isso me fez pensar nos instrumentos de coleta de dados e nos

    procedimentos dessa coleta. Interessou-me, ento, perceber o silncioe as relaes educativas que ele dinamiza. Como me interessava per-ceber no s a compreenso que os membros da comunidade possui-am a respeito do silncio, mas o seu acontecimento discursivo dado emsituaes naturais, os dados foram coletados a partir de trs procedi-mentos bsicos: entrevistas semi-estruturadas, individuais e em grupo;depoimentos de vida e conversaes ordinrias que eu vivenciava comoprotagonista ou como ouvinte.

    As entrevistas, em verdade, apresentavam um fio condutor,estavam sempre relacionadas compreenso do silncio ligado experincia individual, no obedeciam, naturalmente a uma rigidez, oque me facultava a interveno para a formulao de novas ques-tes. Os depoimentos de vida eram, quase sempre, vinculados snarrativas mticas sobre os orixs. A coleta das conversaes ordin-rias exigiram de mim um olhar atento na percepo do acontecimentoenunciativo. Porque acontecimentos, eles apareciam nos momentos enos horrios os mais imprevistos, exigindo um esforo na sua capta-o. Muitas vezes eles aconteciam, como est registrado nos captu-los seguintes, em meio a uma cerimnia em que no se podia gravare, ento, o registro acontecia a posteriori, o que exigia a precisoda memria para ser fiel ao acontecimento. Outras vezes, de maneirainusitada, no fogo, na pia de pratos, na madrugada, nas reunies,nos grupos de trabalho etc. Mas, foi exatamente essa linguagem-acontecimento que me permitiu recolher uma gama significativa deinformaes que as entrevistas no opor tunizariam ou que, muitavezes, deixavam subjacentes. Isso tambm exigiu a minha presenaconstante no terreiro, nos finais de semana e em todas as festas eobrigaes (rituais internos) do calendrio litrgico, comemoraesscio-religiosas, aniversrios etc.

    As conversaes se apresentavam como processo de interao,composto, na acepo discursiva, de cenas enunciativas que eram

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    constitudas pelas falas de seus protagonistas e pela situao contex-tual, o que me oportunizou verificar como a compreenso dos mecanis-mos discursivos davam conta da relao da linguagem com a educa-o. As conversaes foram tomadas como microatitudes capazes derevelar questes maiores da ordem do social, a exemplo do estabeleci-mento de regras, da utilizao comum de procedimentos diretamenteligados a formas de compreender o simblico, o social e as relaesque neles so estabelecidas.

    Na etnometodologia, encontrei em Coulon (1995) a afirmaode que a linguagem que acontece na cotidianidade mais banal refleteuma competncia e um conhecimento aprofundado e detalhado da es-trutura social.

    Como se pode perceber, esse procedimento de coleta, alm deexigir a presena efetiva do pesquisador no ambiente da pesquisa, con-sidera um tempo dado pela prpria dinmica do grupo. O tempo dacoleta desses dados no pde portanto estar amarrado na fixidez docronograma institucional da pesquisa. A coleta esteve submetida aoaqui-agora do acontecimento discursivo. Esse procedimento ratifica anatureza processual da pesquisa que toma a realidade cotidiana comocriada por seus atores, no sendo um dado pr-existente. Ento a no-o que emerge a de funcionamento. O que importou nessa fase foidar destaque ao modo de funcionamento dos fatos de educao e delinguagem, entendendo-os dentro das suas condies contextuais deaparecimento. Isso representou situar protagonistas e os objetos dosseus discursos.

    exatamente essa nfase no acontecimento que a etnometodo-logia postula. Ela enfatiza a importncia de pesquisas do interior dascenas que so bvias e corriqueiras, porque essas cenas vo revelaras relaes entre as pessoas, as regras estabelecidas, normalmenteinvisveis: to habituais e prximas que no so percebidas.

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    OS PROTAGONISTAS DA PESQUISA

    A seleo dos membros do terreiro para a participao na pes-quisa obedeceu a diferentes parmetros, a depender dos objetivos ime-diatos para a coleta de dados. Foi assim que, nas entrevistas que obje-tivavam compreender a percepo do grupo sobre o silncio, o segre-do e o seu valor simblico, diferentes membros foram ouvidos. Os crit-rios para a sua seleo obedeceram ao tempo de iniciao no terreiro(o que deixa emergir um sentido dado pela experincia com a comuni-dade), o modelo csmico de filiao (orix de cabea) e a ocupao dediferentes cargos na hierarquia da comunidade.

    Como se pode ver, apesar de posicionarem-se, nesse mesmoconjunto, pessoas dos sexos masculino e feminino e faixas etrias di-versas, esses dados no eram relevantes para o nosso estudo. Isso seexplica pelo fato de, no terreiro, as relaes serem pautadas nos mo-delos csmicos, o que significa que uma mulher pode ter orix masculi-no de cabea e um homem um orix feminino. Esse fato fundamen-tal para o auto-conhecimento, a compreenso dos referenciais de vidae do estabelecimento das relaes com o parceiro. Do mesmo modo, afaixa etria no um dado relevante, tendo em vista que essa, quasenunca, coincide com o tempo de entrada do membro na comunidade.Assim, um jovem pode ser mais-velho no terreiro que uma pessoa demais idade cronolgica, pelo fato de ter sido iniciado antes. O que meinteressou, ento, foi o conhecimento inicitico.

    A coleta dos depoimentos de vida obedeceu ao mesmo critriode seleo dos protagonistas, acima descrita. Nessa fase, entre entre-vistas e depoimentos, foram ouvidos 41 membros da comunidade quese constitui de mais de 90 pessoas com presenas constantes e umasvinte espalhadas por outras cidades e estados.

    Os dados coletados nas conversaes cotidianas foram colhidosno acontecimento discursivo, naturalmente no obedecendo seleoprvia dos sujeitos. A coleta de dados esteve submetida ao seu apare-cimento. No tratamento que dispensei aos dados, entretanto, esses

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    eventos discursivos foram compreendidos a partir das regularidadesque apresentavam. Isso pode ser verificado nos captulos seguintes.

    O ESPAO DA PESQUISA: O TERREIRO, ESSE LUGAR DA HISTRIA, DAFESTA E DO SILNCIO

    [...] Em cada semana nos h de dar os dias de sexta-feira e de sbado para trabalharmos para ns, no tiran-do um destes dias por causa de dia santo;No nos obrigar a fazer camboas nem a mariscar, e quan-do quiser fazer camboas e mariscar mandar chamar osseus pretos de Minas;Poderemos plantar nosso arroz onde quisermos, em qual-quer brejo, sem que para isso peamos licena, e cadaum poderemos tirar jacarands ou qualquer pau sem dar-mos parte para isso;Brincar, folgar e cantar em todos os tempos que quiser-mos sem que nos impea nem seja preciso pedir licena(Reis:1989).

    Este fragmento de manifesto, produzido num tempo distantepor escravos do Engenho de Santana (Ilhus,BA), recupera uma mar-ca da histria do Il Ax Ijex, terreiro de candombl situado em Ita-buna (BA).

    Esse engenho, espao-herana da presena escrava na Regiodo Cacau, abrigou Mejigan: escrava vinda da frica, das terras por ondecorre o rio Oshun. Mejigan, cabea de Oxum. Dela, o ax, a herana desucessores que garantiram a permanncia da sua f, da sua fora, doseu ax. Em Itabuna, a sua marca: O Il Ax Ijex, Casa de origem nag,filiada nao Ijex, conduzida pelo babalorix Ruy do Carmo Pvoas,descendente de Mejigan pelo lado materno.

    Fundado em 1975 e funcionando no Bairro Santa Ins, o Il AxIjex uma comunidade que conta com noventa membros. Seu patrono

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    Oxal, orix da criao, por isso considerada pelos seus fiis comouma casa branca.

    O funcionamento do terreiro de responsabilidade de uma ad-ministrao superior e de um ministrio sacerdotal. Essa administraotem a funo de direo do terreiro, estando subdividida em: Presidn-cia do Ijex, executora das decises religiosas e civis e Conselho deEgbn-Mi, responsvel pela administrao das questes religiosas. Aoministrio sacerdotal cabe o exerccio das funes de direo. Com-pem esse ministrio: o babalorix sacerdote superior, o Corpo dosOloy, responsvel pela rotina dos trabalhos litrgicos, disciplina, hie-rarquia e obrigaes, e o Grande Conselho Agb, que executa aes deconservao, transmisso e continuidade dos fundamentos do terreiro.

    No rol de atividades do Il Ax Ijex integram-se aes de tera-pia alternativa nos moldes africanos, ofcios religiosos, festividades, la-zer, informao, assistncia social, cultivo de ervas medicinais, cursos,oficinas vivenciais.

    O seu espao fsico recobre uma rea de seis mil metros qua-drados distribudos entre o espao civil, espao ritual e de mata. Aexemplo de outros terreiros de candombl, no Ijex tem reas reserva-das ao culto de vrios orixs, oriundos dos mais diversos lugares dafrica. Os cultos aos diversos orixs, que, no continente africano, acon-teciam nas diversas cidades-estado (Ilex, Oi, Keto, Ijebu, Ir, Ejigboetc.) tambm acontecem no Il. Esses espaos africanos so simboliza-dos por casas que compem o panteo africano-brasileiro. Por isso, noIjex, existem a mata de Oxssi, a fonte de Oxum, as casas de Xang,Obaluayi, Ossin, Oi, Oxal, Exu, Oxssi e Egun, o que o faz parecido,em sua redimenso, com uma miniatura da frica.

    A minha opo em selecionar o terreiro Il Ax Ijex, para ser omeu espao de pesquisa, justifica-se porque um espao cujo funcio-namento da estrutura administrativa atesta a sua organizao; ele con-grega uma associao, reconhecidamente, de utilidade pblica, quepresta atendimento a vrias comunidades da Regio Cacaueira; umadas mais antigas comunidades religiosas de tradio africana no eixo

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    de influncia da Universidade Estadual de Santa Cruz; comporta umnmero significativo de membros, alm de ser um terreiro fiiado na-o Ijex, um dos poucos existentes no Brasil.

    DE UM SILNCIO, MUITOS

    Recolhidos os dados, busquei orden-los em trs grandescategorias:

    a) a primeira, que permite perceber o silncio como um smbolo. Inte-grando um referencial mtico, o silncio possibilita uma relao como saber. Uma relao que aponta para um auto-conhecimento, en-gendra formas de convivncia no grupo e constri representaesacerca das relaes educativas processadas no terreiro;

    b) A segunda categoria, que remete ao silncio-segredo, na qual tomoa linguagem como forma de construir resistncia preservao dopatrimnio simblico do grupo e produzir saber;

    c) A terceira categoria que reflete uma das faces que o silncio cons-tri, a de ser tambm apelo a um reconhecimento da cultura africa-no-brasileira. Trata-se de tomar o silncio, na sua natureza histri-co-social e nas relaes que estabelece com o prprio grupo e como seu exterior, no caso a escola.

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    Tecendo redes

    de silncio

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    APRENDER A PALAVRA: GESTO INAUGURAL

    As discusses em torno do valor da palavra sempre se evidenci-aram como preocupao nos mais diferentes campos do conhecimento.As interpretaes que a cercam so mltiplas. Passando pelo campo doreligioso - palavra como verbo primordial que se faz ao - vista comocdigo, signo, ato ou atividade, no campo dos estudos da linguagem, apalavra sempre mantida como elo simblico entre indivduos e/ougrupos, instalando sentidos no fazer humano.

    De um modo geral, em trajetria contrria palavra, o silnciotem sido encarado como uma expresso residual, habitando o terre-no do bvio, algo que o homem produz, cotidianamente, mas que noencerra grandes significados e nem suscita a ateno de reas queno incluem a linguagem como objeto de investigao. Duas posiesesto a reveladas: a primeira delas aponta para pensar que a questodo silncio se circunscreve apenas ao universo do lingstico-discursi-vo, a segunda sugere que essa linguagem no est discutida comodesencadeadora de processos pedaggicos, nem como capaz de estarrelacionada com a construo de subjetividades e a produo de co-nhecimento.

    O silncio, entretanto, est implicado nas interaes e regulari-dades da comunicao diria entre os homens, do mesmo modo que apalavra e, como esta, revelador de sentidos. Dizer e calar so facesde uma mesma dinmica que impele o homem busca incessante designificados para o mundo.

    POR UMA PEDAGOGIA DA EXISTNCIA: A FACESIMBLICA DO SILNCIO

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    No candombl, essas duas faces da interao humana dadaspela linguagem - a palavra e o silncio - esto intimamente relaciona-das, principalmente quando so tomadas na sua capacidade de instau-rar um espao de concretizao da pedagogia de filiao africana.

    Nessa direo, para discutir o valor do silncio, como elementoque tambm edifica relaes educativas e produz saber, importanterecuperar o papel que desempenha a oralidade na dinmica das comu-nidades-terreiro. Nessas comunidades, as relaes interpessoais se dopelas interaes face-a-face e predominantemente, pela prtica da lin-guagem oral. Santos (1986:52), afirma que

    uma das mais importantes caractersticas da religio Ngo que ela se transmite oralmente. Esta forma de trans-misso particular tem conseqncias muito ricas e muitoprofundas e to importante que se pode afirmar que seconstitui no princpio de base de todo o sistema ou, se sequer, na sua conseqncia.

    Essa transmisso oral tem para o povo-de-santo uma significa-o especial, a medida em que ela a asseguradora da transmisso depreceitos e segredos que fazem parte do seu patrimnio ancestral afri-cano, conforme ratifica Pvoas (1989:5),

    para fazer face a uma srie de presses e opresses, ocandombl criou ar tifcios que permitem conservar todaherana cultural, transformando pedaos do Brasil emverdadeiras miniaturas da frica. Um dos fatores que oca-siona o equilbrio e a sobrevivncia do terreiro a preo-cupao com a lngua. Escrever trair o sistema, por issoa comunicao se estabelece de boca-ouvido. [...] noaceitando a escrita para registrar e perpetuar os segre-dos dos rs, a comunidade do candombl confiou ape-nas no sistema de transmisso boca-ouvido. E durante400 anos assim tem acontecido na Bahia, cada geraovelando e transmitindo o preceito.

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    Santos (1986:47), ao discutir o espao do candombl como sis-tema dinmico que presentifica o ax, coloca em relevncia o papel quea transmisso oral desempenha nessa dinmica. Para a autora, o ax distribudo e comunicado atravs dos mais diferentes veculos e/ou ob-jetos-smbolos. Dentre esses elementos simblicos esto, por exemplo,os frutos, as ervas, as oferendas rituais e tambm a palavra pronunci-ada. Segundo Santos (1986:47),

    Duas pessoas, ao menos, so indispensveis para quehaja a transmisso inicitica. O se e o conhecimento pas-sam diretamente de um ser a outro, no por explicaoou raciocnio lgico, num nvel consciente e intelectual,mas pela transferncia de complexo cdigo de smbolosem que a relao dinmica constitui o mecanismo maisimportante. A transmisso efetua-se atravs de gestos,palavras proferidas acompanhadas de movimento corpo-ral, com a respirao e o hlito que d vida matriainerte e atingem os planos mais profundos da persona-lidade. Num contexto, a palavra ultrapassa seu conte-do semntico racional para ser instrumento condutorde se, isto , um elemento condutor de poder de reali-zao. A palavra faz par te de uma combinao de ele-mentos, de um processo dinmico, que transmite umpoder de realizao.

    Se a palavra adquire tal poder de ao, porque ela estimpregnada de se, pronunciada com o hlito - veculoexistencial - com a saliva, a temperatura; a palavra so-prada, vivida, acompanhada das modulaes, da cargaemocional, da histria pessoal e do poder daquele que aprofere.

    Para o povo-de-santo a palavra tem um valor simblico espe-cial, exatamente porque tem poder de ao, de sair de um sujeitopara outro. assim que, para o integrante do candombl, ela possuium carter sagrado. Isso retomado por Santos (1986: 47), quandoafirma que:

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    A transmisso oral uma tcnica a servio de um sistemadinmico. A linguagem oral est indissoluvelmente ligada dos gestos, expresses e distncia corporal. Proferiruma palavra, uma frmula acompanh-la de gestos sim-blicos apropriados ou pronunci-la no decorrer de umaatividade ritual dada. Para se transmitir s, faz-se usode palavras apropriadas da mesma forma que se utilizade outros elementos ou substncias simblicas.

    Essa atitude para com a palavra pode ser constatada na formacomo os membros do terreiro se comunicam com os Orixs, como, porexemplo, na maneira como formulam um pedido. Para os membros docandombl, essa comunicao no deve ser apenas pensada, mas arti-culada em som, sendo esse som capaz de instaurar movimento. as-sim que nas comunidades-terreiro, na comunicao que se estabelececom as divindades, os pedidos so pronunciados junto aos objetos emoferenda, porque assim procedido, a fora e o poder da palavra articu-lada traz a concretude, a materialidade daquilo que est sendo reque-rido. Do mesmo modo que comum aos fiis do candombl, ao relacio-nar a sua fala a aes que gostariam de ver acontecer, faz-lo semprepelo uso de frases afirmativas e nunca sob condicionais.

    Como se pode perceber, no espao do terreiro a palavra tempoder que induz ao, e atravs da materialidade de seu som queela pode atingir um outro sujeito. Segundo Sodr (1988:96b),

    a transmisso do ax implica na comunicao de um cos-mos que