A educação e a escola no olho do fura...

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A educação e a escola no olho do furacão... e o gestor diante disso? Vera Lúcia Duarte de Novais 01 1. A educação: sentidos e papéis contraditórios As últimas décadas de nossa história têm sido marcadas por inúmeras mudanças de caráter social, político e econômico. Embora tais mudanças apresentem peculiaridades decorrentes das diversas culturas e do poderio econômico desigual que tornam a maior parte das nações reféns de poucas, é interessante refletir sobre algumas dessas alterações que interferem na realidade das escolas, tanto em países desenvolvidos como nos demais, entre os quais, infelizmente se encontra o Brasil. Entre as que mais diretamente afetam o cotidiano escolar, podemos citar as decorrentes da ampliação do número de mulheres que têm acesso ao mercado de trabalho, as que nascem da descrença nas instituições — entre as quais a própria escola —, das profundas alterações nas formas de organização familiar, da degeneração do tecido social e da qualidade de vida — repercurtindo no aumento da violência e do tráfico de drogas, especialmente nos grandes centros urbanos. É nesse contexto adverso e desafiador que as famílias e a sociedade como um todo, atribuem à escola o papel central pela enorme responsabilidade de educar nossas crianças e jovens, reservando às empresas somente o papel de atualizar os diversos profissionais, de acordo com as demandas do mercado de trabalho; grande parte dessas demandas advêm das novas formas de se lidar com o conhecimento, em conseqüência das TIC - tecnologias de informação e comunicação. Talvez isso explique porque não precisamos remexer o baú de nossa memória para lembrarmos que quase sempre a educação é um dos itens mais importantes da lista de prioridades de todos aqueles que se candidatam a cargo executivo no Brasil. Isso parece indicar-nos que a sociedade brasileira valoriza a educação e reconhece que ela é o elemento indispensável para, entre outras coisas, acabar com nossa indecente desigualdade social e alavancar nosso desenvolvimento. Seria isso mesmo? Basta que folheemos alguns jornais e revistas ou que ouçamos os comentários veiculados em rádios e noticiários de tv

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A educação e a escola no olho do furacão... e o gestor diante disso?

Vera Lúcia Duarte de Novais

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1. A educação: sentidos e papéis contraditórios

As últimas décadas de nossa história têm sido marcadas por inúmeras mudanças de caráter social, político e

econômico. Embora tais mudanças apresentem peculiaridades decorrentes das diversas culturas e do poderio

econômico desigual que tornam a maior parte das nações reféns de poucas, é interessante refletir sobre algumas

dessas alterações que interferem na realidade das escolas, tanto em países desenvolvidos como nos demais, entre os

quais, infelizmente se encontra o Brasil. Entre as que mais diretamente afetam o cotidiano escolar, podemos citar as

decorrentes da ampliação do número de mulheres que têm acesso ao mercado de trabalho, as que nascem da

descrença nas instituições — entre as quais a própria escola —, das profundas alterações nas formas de organização

familiar, da degeneração do tecido social e da qualidade de vida — repercurtindo no aumento da violência e do tráfico

de drogas, especialmente nos grandes centros urbanos.

É nesse contexto adverso e desafiador que as famílias e a sociedade como um todo, atribuem à escola o papel central

pela enorme responsabilidade de educar nossas crianças e jovens, reservando às empresas somente o papel de

atualizar os diversos profissionais, de acordo com as demandas do mercado de trabalho; grande parte dessas demandas

advêm das novas formas de se lidar com o conhecimento, em conseqüência das TIC - tecnologias de informação

e comunicação.

Talvez isso explique porque não precisamos remexer o baú de nossa memória para lembrarmos que quase sempre a

educação é um dos itens mais importantes da lista de prioridades de todos aqueles que se candidatam a cargo executivo

no Brasil. Isso parece indicar-nos que a sociedade brasileira valoriza a educação e reconhece que ela é o elemento

indispensável para, entre outras coisas, acabar com nossa indecente desigualdade social e alavancar nosso

desenvolvimento. Seria isso mesmo?

Basta que folheemos alguns jornais e revistas ou que ouçamos os comentários veiculados em rádios e noticiários de tv

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para que nos deparemos com frases e imagens associadas à educação e à escola que nos levam a duvidar do que

acabamos de dizer. Vejamos alguns exemplos entre recentes manchetes de jornais: Paraguai e Uruguai têm

porcentagem de graduados maior que Brasil; apenas 13,32% são aprovados no exame da OAB-SP; estudo do Inep mostra

que 41% dos estudantes não terminam o ensino fundamental; 59% dos alunos na 4ª série têm desempenho precário, diz

MEC; 52% dos alunos da 8ª série têm mau desempenho em matemática, diz MEC.

Para tentar entender melhor o paradoxo presente em nossa cultura com relação ao binômio importância/falta de

importância da educação e à complexidade das questões educacionais da atualidade, vamos recorrer a exemplos de

dois países desenvolvidos: Inglaterra e França.

Na Inglaterra, por exemplo, na última eleição para o cargo de primeiro-ministro, o Partido Trabalhista — quando Tony

Blair se elegeu —, fixou sua imagem na mídia, repetindo que suas três prioridades de governo seriam: educação,

educação, educação. Vale dizer que, apesar de suas diferenças, tanto trabalhistas quanto conservadores tinham a

educação como plataforma eleitoral. Entre os exemplos de preocupações que ocupavam ingleses nessa época, estavam

questões como: a defasagem de dois anos da média de conhecimentos matemáticos das crianças de 11 anos; o fato de

30% dos meninos e 17 % das meninas — considerados todos os adolescentes do Reino Unido entre 14 e 15 anos — irem

para a escola portando algum tipo de arma para se proteger.

Textos recentes da mídia francesa inclusive de sites de órgãos governamentais e associações de educadores, também

explicitam as preocupações do país com o tema. Nesse caso, as preocupações com a educação levaram o governo

francês a realizar um amplo processo de avaliação do sistema escolar, no qual em setembro de 2003, o primeiro ministro

francês instalou a comissão do debate nacional sobre a escola — responsável pela coordenação de dezenas de

milhares de encontros nos meses seguintes, envolvendo diversos segmentos da sociedade. Nessa ocasião ele enfatizou

seu objetivo de reconciliar os franceses com o sistema escolar — o grifo é nosso, para chamar-lhe a atenção quanto à

tentativa de fazer com que a sociedade “compre” a idéia de que é importante valorizar a escola

como instituição.

A mídia em geral seguiu dando o devido destaque ao assunto como evidenciam as manchetes dos jornais. La dernière

chance de l’école, título de editorial do final de 2003, reforça o tom da mensagem do governante relativa ao fato de a

sociedade francesa ter uma imagem negativa de seu sistema educacional, o que para nós, brasileiros, beira o

inacreditável. Preocupam-se os franceses com o fato de que o contingente de alunos que têm grande dificuldade de ler

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oscila entre 15 e 25% - índice esse que não melhora há anos. Também foi motivo de alerta para eles o resultado obtido

na avaliação do PISA, programa de avaliação internacional de estudantes de 15 anos, promovido pela Organização para

Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Avaliados com relação à sua capacidade de leitura, obtiveram

apenas o nível médio, inferior ao de outras nações economicamente menos importantes, conquistando a 15ª posição em

um conjunto de 41 países (vale lembrar, com tristeza, que o Brasil ficou entre os últimos, na 37ª posição).

Apesar de serem óbvias as diferenças de magnitude das questões educacionais desses países com relação à nossa ou

com as de outros países pobres, vale-nos o consolo de que a natureza dos temas mais preocupantes no Brasil é

semelhante à de franceses e ingleses: rendimento escolar precário; violência; baixo nível do ensino. Por outro lado, de

todas essas realidades é evidente que emergem os problemas ligados à educação e não as soluções, embora os

franceses mobilizem-se em torno delas.

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Diante de tudo o que analisamos, talvez nossa tendência como educadores seja a de nos sentirmos culpados pelo que

acontece na escola na qual/pela qual trabalhamos. Para evitar que se caia em um raciocínio que nos paralise e nos

impeça de entender melhor nosso papel no contexto educacional, devemos entender outros lados dessa questão.

2. Desafios e oportunidades do gestor escolar

O panorama que descortinamos no início, deixa-nos claro que, se por um lado há muitos problemas a enfrentar, muitos

deles inerentes à própria complexidade do processo educativo, há muitas novas oportunidades para quem trabalha em

instituições escolares, especialmente no Brasil, onde ainda há um grande contingente de brasileiros à espera de

educação de qualidade.

As mudanças na forma de lidar com o conhecimento e o papel que a sociedade atribui à educação, colocam-nos, como

educadores que somos, no “olho do furacão”. É nesse contexto que os gestores podem fazer a diferença. Por quê?

Muitos setores de nossa sociedade, ingenuamente exacerbam o papel das TIC, como garantia de acesso ao

conhecimento, em detrimento do papel da educação convencional. Diante disso, é importante lembrar que apesar de o

acesso à informação ampliar-se de modo acentuado, cabe à escola uma missão fundamental: fazer com que o aluno

aprenda a aprender, tarefa essa que implica um processo, pessoal e coletivo, segundo o qual as informações adquirem

significados próprios, incorporando-se a um conjunto de conhecimentos estruturados ou, em outros termos, que

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resultem em aprendizagem.

Nesse aspecto, os estudos mais recentes têm mostrado que não basta investir na formação de professores, levada a

cabo em cursos avulsos, descontextualizados do meio em que esses profissionais atuam, uma vez que tais cursos são

desprovidos de peculiaridades que permeiam a cultura profissional do professor. Em parte, a dificuldade de os

professores procederem à transposição do que aprendem em cursos de formação para sua efetiva ação profissional no

cotidiano escolar, decorre de mecanismos, mesmo inconscientes, que os fazem atuar de modo a repetir os modelos de

professor, fortemente interiorizados desde o início de sua própria escolarização, do que a sociedade acredita ser a

maneira de atuar de um professor e até mesmo da expectativa que os alunos têm do papel do professor.

Se tomarmos por base essa questão, devemos considerar que essas representações profissionais, construídas ao longo

da vida dos docentes, certamente não se identificam com uma concepção de professor que atue no sentido de preparar

seus alunos para construir aprendizagens a partir do amplo e variado tipo de acesso às informações, pois tal perspectiva

educacional só se tornou possível mais recentemente com a expansão das TIC. Assim sendo, o que está em jogo implica

substancial mudança de paradigma educacional, pois não se trata apenas de alterar os recursos tecnológicos utilizados

no ensino, mas a própria concepção profissional do professor e do papel da escola.

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Nessa tarefa de educar, é importante destacar que o professor precisa desenvolver sua capacidade de despertar a

vontade de aprender àqueles que ensina e isto, só será viável se “uma criança espontânea e ávida de conhecimento

estiver dentro dele”.

Nesse sentido, é essencial refletir sobre o papel da escola, fundamental no sentido de viabilizar ou impedir que a

inovação, expressa por uma nova forma de ensinar, facilitada com uso das TIC, incorpore-se à cultura escolar. Por isso

é importante combater a tendência ao isolamento e à fragmentação dos vários setores e das diversas tarefas, que

costumam impregnar as instituições escolares.

É bom lembrar que a dificuldade de mudar é inerente a qualquer sistema permanente - indivíduos, grupos ou

organizações. Ao longo do funcionamento de uma organização escolar surgem e cristalizam-se estruturas de poder e

focos de cultura que resistem à mudança. Isso explica o fato de a maior parte da energia disponível nas escolas ser

consumida na execução de ações de rotina e na manutenção de suas relações internas, ao passo que, em geral,

são muito reduzidos os esforços organizacionais direcionados às questões de diagnóstico, de planejamento,

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de inovação, de mudança deliberada e de desenvolvimento da instituição escolar.

É urgente, portanto, avançar na direção de uma escola mais apta a enfrentar sucessivos desafios, atuando de modo não

fragmentado, isto é, sistêmico. Para a consecução de tal objetivo é preciso analisar as questões da instituição de modo

global, uma vez que, segundo SENGE, apud NOVAIS, as organizações funcionam de modo semelhante a um sistema vivo

e tanto as características como a integridade, dependem do conjunto. Assim sendo, tanto para entender os mais

complicados problemas administrativos, quanto para projetar inovações, é preciso que se veja o sistema por inteiro.

Quer dizer, para produzir mudanças em uma organização social como a escola é preciso bem mais do que conseguir

mudar a ação individual. Essencialmente trata-se de mudar as formas de interação social, o que só poderá ocorrer se a

mudança tiver sentido coletivo.

A instituição escolar pode constituir-se um entrave ou uma alavanca a impulsionar a incorporação de mudanças. Quanto

mais as escolas estiverem preparadas para a aprendizagem institucional, garantindo um clima de confiança, de apoio

mútuo, de respeito, de espaços institucionais para trocas entre seus vários segmentos, mais a instituição como um todo

e cada um de seus membros terão condições de evoluir.

A utilização das TIC como maneira de formar os professores a partir de um projeto voltado à aprendizagem institucional,

permite que encolhamos nossos medos e resistências ao novo e por meio de interações entre os educadores possamos

pensar na solução de problemas e desafios institucionais mais amplos.

Uma liderança preocupada em atingir o objetivo de construir um grupo institucional cooperativo, pode ser elemento

essencial para romper algumas barreiras — solidamente construídas ao longo do tempo — entre profissionais da

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mesma escola, permitindo que novas composições grupais se constituam, tornando viável o crescimento profissional e

institucional. Creio que seja esse o desafio atual que se coloca aos gestores escolares. Se por um lado pode parecer

grandioso, caminhar nessa direção, segundo a qual a escola pode fazer a diferença, é sem dúvida, gratificante.

BIBLIOGRAFIA:

BAILLAUQUÉ, Simone. Trabalho das representações na formação dos professores. In: PAQUAY, Léopold et al. Formando

professores profissionais: Quais estratégias? Quais competências? 2. ed. rev. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2001.

BOLÍVAR, Antonio. Formação e situações de trabalho. In: CANÁRIO, Rui. Instituição escolar em análise. Porto: Porto

Editora, 1997.

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FULLAN, Michael & HARGREAVES, Andy. A escola como Organização Aprendente: buscando uma educação de

qualidade. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

NOVAIS, Vera Lúcia Duarte de. A relação da Escola com a Formação do Professor de Ensino Fundamental e Médio: da

grade ao caleidoscópio. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2000.

SAIANI, Cláudio. Jung e a Educação – uma análise da relação professor/aluno. São Paulo: Escrituras Editora, 2000.

Este texto foi produzido para o curso Gestão Escolar e Tecnologias.

NOVAES, V. A educação e a escola no olho do furacão... e o gestor diante disso?. São Paulo, PUC-SP, 2004