A doutrina husserliana da consciência_Dialegesthai

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A DOUTRINA HUSSERLIANA DA CONSCINCIA Um estudo a partir das Investigaes Lgicas (V) e das Meditaes Cartesianas (V) Everaldo Cescon1 RESUMO: Apresentao e discusso de trs conceitos de conscincia apresentados por Husserl, a partir daanlise da Quinta das Logische Untersuchungen e da Quinta das Cartesianische Meditationen. Nomeadamente: a) a conscincia como unidade fenomenolgica real total do eu emprico, no fluxo temporal; b) a conscincia como autoconscincia, como a percepo interna das prprias vivncias psquicas; c) a conscincia como vivncia intencional ou ato psquico. Tambm se analisa como Husserl foge ao solipsismo transcendental elaborando o conceito de alter ego, ou seja, de um segundo ego que, mesmo remetendo ao sujeito no que se refere ao seu sentido, acaba tendo uma existncia objetiva no mundo real. Husserl aborda o problema da experincia do outro e, assim, apresenta uma teoria transcendental da experincia do outro, simultaneamente a uma teoria transcendental do mundo objetivo e uma teoria transcendental do eu primordial. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia Contempornea, Fenomenologia, Filosofia da Mente, Husserl, Conscincia

ABSTRACT: Presentation and discussion of three concepts of consciousness presented by Husserl, startingfrom the analysis of the 5th of the Logische Untersuchungen and the 5th of the Cartesianische Meditationen. Nominally: a) the consciousness as phenomenological total real unity of the empirical Self, in the time flow; b) the consciousness as auto-consciousness, as the internal perception of the proper psychic experiences; c) the consciousness as intentional experience or psychic act. It is also analyzed the way how Husserl rejects the transcendental solipsism formulating the concept of alter ego, in other words, of a second ego that, even remitting to the subject as far as its sense is concerned, it has an objective existence in the real world. Husserl approaches the problem of the experience of the other and, thus, presents a transcendental theory of the experience of the other, simultaneously to a transcendental theory of the objective world and a transcendental theory of the primordial Self. KEY-WORDS: Contemporary Philosophy, Phenomenology, Philosophy of Mind, Husserl, Consciousness

Introduo Por muito tempo a conscincia ficou sendo a terra de ningum. Os psicanalistas, sob a liderana de Sigmund Freud, desde o incio do sculo XX, enfatizaram os processos mentais inconscientes, considerando a conscincia como mero teatro de um script escrito em outro lugar. Preocupados com a compreenso e a cura das doenas mentais, julgaram estar no inconsciente a primeira fonte de conflitos e desordens mentais.2 Os comportalmentalistas mantiveram uma atitude ctica diante da conscincia, que no passava de uma cmara obscura. Liderados por John B. Watson, seu interesse inicial era a experimentao com animais, que, sendo objetiva, eliminava a subjetividade dos estudos da1 Ps-doutorando em Filosofia, Universidade de Lisboa. Orientador Prof. Dr. Pedro M. S. Alves. Bolsista Fundao para a Cincia e Tecnologia, Portugal. Doutor em Teologia, Pontifcia Universidade Gregoriana, Itlia. Professor de Filosofia, Universidade de Caxias do Sul, Brasil. 2 Cf. Sperling, A. P.; Martin, K. Introduo psicologia. So Paulo: Cengage Learning, 2003.

conscincia, dos relatos introspectivos e das associaes livres do inconsciente.3 Os cognitivistas esto interessados em saber como a mente estrutura ou organiza as experincias - influncia da Gestalt, que ressaltava, assim como Piaget, uma tendncia inata da mente de organizar a experincia consciente (as sensaes e as percepes) em unidades e padres de significado. A mente d forma e coerncia experincia mental. Durante as dcadas 60 e 70 do sculo XX, o cognitivismo assumiu a doutrina do computacionalismo que pode ser resumida em trs teses: 1) o crebro comparvel a um computador digital; 2) a mente comparvel a um programa computacional; e 3) as operaes do crebro podem ser simuladas em um computador digital. No entanto, nos ltimos anos, segundo Bruner,4 o cognitivismo abandonou o computacionalismo e passou a dar nfase a aspectos que considerava esquecidos pela revoluo cognitiva, defendendo que originalmente era o significado, e no o processamento de informaes, o objeto central deste movimento. A questo da natureza da conscincia comeou a ocupar o lugar central nas pesquisas em Filosofia da Mente e em Cincia da Cognio, do qual os estudos de Jackendoff,5 Calvin,6 Dennett7 e Flanagan8 so marcos. O notvel desenvolvimento das neurocincias alimentou a convico de poder penetrar facilmente na mente utilizando os mesmos instrumentos ou modalidades de investigao que geraram tanto sucesso nas cincias fsicas. Porm, uma compreenso autntica da mente continua sendo um objetivo distante. Se verdade que numerosas experincias indicam uma estreita correlao entre os nossos estados mentais e as atividades observadas em algumas regies cerebrais, tambm verdade que tal correlao no nos diz substancialmente nada acerca da relao causal existente entre os dois domnios de fenmenos.9 A correlao no consegue explicar como de um conjunto de processos que acontecem impessoalmente dentro dos neurnios cerebrais seguindo leis fsicas se chegue a experincias subjetivas vividas em primeira pessoa por um determinado indivduo. Embora muitos cientistas mantenham a convico de que o computador seja um bom modelo da mente humana, no podem ignorar as problemticas referentes principalmente a algumas caractersticas da conscincia, como a subjetividade da experincia e a liberdade3 Cf. Ibidem. 4 Cf. Bruner, J. Atos de Significao. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1997. 5 Jackendoff, R. Consciousness and the computational mind. Cambridge, MA: MIT Press, 1987. 6 Calvin, W.H. The cerebral symphony. New York: Bantam Books, 1990. 7 Dennett, D. Consciousness explained. Boston: Little; Brown, 1991. 8 Flanagan, O. Consciousness reconsidered. Cambridge, MA: MIT Press, 1992. 9 David Chalmers chama a este de o problema difcil [hard problem: Why is all this processing accompanied by an experienced inner life? (1996, p. xii)] desqualificando as tentativas de explicao funcional (easy problems). The conscious mind. New York: Oxford University Press, 1996.

implcita no conceito de vontade consciente, contrapostas objetividade e impessoalidade dos processos computacionais. A questo que se coloca a seguinte: por que o desempenho destas funes acompanhado por experincias? Como e porque surge a experincia no decorrer do processamento de informao?10 Diante de uma insatisfao crescente por tal modelo, percebe-se a falta de uma alternativa capaz de se inserir coerentemente no atual paradigma cientfico. Provavelmente este seja o motivo pelo qual, enquanto as pesquisas experimentais no campo neurofisiolgico continuam acumulando dados acerca da relao mente-crebro, os cientistas tericos parecem andar em crculos, fazendo retoques marginais, introduzindo conceitos ou distines ad hoc em concepes insatisfatrias, alimentando um debate que parece estril.11 exceo de alguns casos, como o do fsico Roger Penrose,12 a maioria dos cientistas no parece admitir a possibilidade de que as dificuldades encontradas, ao invs de serem devidas extraordinria complexidade do crebro humano em relao aos ainda limitados conhecimentos e instrumentos disponveis, possam advir do fato de ter adotado um quadro de referncia inadequado. Segundo Silva Filho,13 a maioria dos filsofos contemporneos compartilha uma viso naturalista do mundo que prov uma crtica devastadora ao mentalismo e ao dualismo que dominaram as filosofias do conhecimento e da subjetividade na modernidade. Nesta perspectiva, segundo ele, a pergunta sobre qual o lugar que a mente ocupa no mundo envolve duas coisas: de um lado, o mundo do qual se fala necessariamente o mundo fsico; do outro, ou a mente deve ser entendida no quadro referencial14 ou o conceito de mental no passaria de um erro categorial, um mito, uma iluso ou simplesmente um mistrio.10 As alternativas mais freqentes frente a tais dificuldades so essencialmente duas: 1) tendncia a diminuir a importncia dos fenmenos conscientes no interior do processo de adaptao do organismo ao ambiente, que chega em certos casos a considerar a conscincia como um mero epifenmeno, sem qualquer funo na determinao e no controle do comportamento; 2) uso da noo de emergncia, segundo a quela nveis muito elevados de complexidade estrutural ou funcional dariam origem a caractersticas e capacidades totalmente novas, no previsveis e no explicveis com base em leis vlidas nos nveis inferiores. 11 Segundo Plnio Junqueira Smith, em Do comeo da filosofia e outros ensaios, So Paulo: Discurso, 2005, no somente no chegamos verdade, como tambm no nos aproximamos dela. Tal se deve s dificuldades inerentes ao assunto. [] talvez no seja exagero dizer que no somente existe uma falta de consenso, quanto de uma perspectiva de consenso. (p. 288). Smith considera que a raiz desta situao de conflito a aceitao por parte dos participantes no debate de certas dicotomias tais como mente-corpo e primeira (conhecimento dos prprios estados mentais) e terceira pessoa (conhecimento dos estados mentais dos outros). Tal distino, segundo ele, no reflete a realidade humana, arbitrrio e improcedente. A soluo por ele proposta comearia por um profundo questionamento acerca dos prprios termos do debate. 12 Cf. Roger Penrose, Shadows of the mind: a search for the missing science of consciousness. Oxford: Oxford University Press, 1994. Nesta obra, o autor afirma que as leis fsicas atualmente disponveis so insuficientes para explicar certas caractersticas e propriedades da mente humana. 13 Cf. Waldomiro Jos da Silva Filho, Ceticismo e filosofia ctica da mente, Skpsis Revista de Filosofia, So Paulo, ano 1, n. 1, p. 142-148, 2007, p.145. 14 Segundo Chalmers, deve-se ampliar o conceito de mundo natural para tornar possvel uma teoria naturalista da conscincia. The conscious mind. New York: Oxford University Press, 1996.

Talvez seja prematuro pretender uma mudana drstica de rota. Contudo, poder-se-ia comear promovendo uma volta s coisas mesmas, buscando uma reconduo do conceito de conscincia, um conceito que foi vtima, desde o incio, de uma grande confuso semntica, que ainda perdura. neste sentido que acreditamos ser de grande valia retomar as investigaes de Edmund Husserl acerca da conscincia. Tomar-se- por base a Quinta Investigao lgica, intitulada Sobre vivncias intencionais e seus contedos,15 a qual o horizonte operativo em que Husserl comea a analisar o problema da conscincia e das vivncias intencionais, em relao s problemticas tratadas por ele precedentemente, e a Quinta Meditao cartesiana, intitulada Determinao do domnio transcendental como 'intersubjetividade monalolgica', a qual a exposio de uma teoria fenomenolgica da intersubjetividade.16 Na temtica consciencial, segundo a qual a conscincia deve ser livre de prejuzos matemticos e cientfico-naturais e deve estar em condies de unificar todas as esferas culturais e todos os modos de conscincia (percepcionar, pensar, recordar, simbolizar, amar, querer), a obra de Husserl se conecta tradio neokantiana, como conseqncia do desenvolvimento do positivismo na Alemanha. O principal alvo da crtica de Husserl a impostao empirista e psicologista da Lgica e, em geral, da Teoria do Conhecimento.17 A anlise fenomenolgica da conscincia parte do pressuposto de que todas as formas de apriorismo idealista, assim como todas as formas reducionistas de empirismo, j tiveram o seu tempo. Husserl desenvolveu a temtica usando o mtodo fenomenolgico-transcendental. Ele realiza uma diferenciao psicolgico-descritiva dos vrios conceitos de conscincia, em15 Husserl, E. Investigaes lgicas. Segundo volume, Parte I: Investigaes para a Fenomenologia e a Teoria do Conhecimento. De acordo com o texto de Husserliana XIX/1, editado por rsula Panzer. Trad. de Pedro M. S. Alves e Carlos Aurlio Morujo. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007. Doravante Hua XIX/1: Logische Untersuchungen. Ergnzungsband. Erster Teil. Entwrfe zur Umarbeitung der VI. Untersuchung und zur Vorrede fr die Neuafulage der Logischen Untersuchungen (Sommer 1913). Hrsg. von Ullrich Melle. 2002, liv + 442 pp. A indicao das pginas segue a Husserliana. 16 Husserl, E. Meditaes cartesianas. Quinta. 2.ed. Porto: Rs, [1986?]. p. 115-198. De acordo com o texto de Husserliana I: Cartesianische Meditationen und Pariser Vortrge. Hrsg. und eingeleitet von Stephan Strasser. Nachdruck der 2. verb. Auflage. 1991. xxii + 260 pp. Doravante apenas MC. 17 O psicologismo em geral considera os pensamentos como meros "eventos mentais" e, conseqentemente, como o biologismo, interpreta a lgica como um ramo da psicologia. Disto deriva que a impossibilidade de admitir proposies contraditrias no deriva da validade em si do princpio de no contradio, mas sim de um dado de fato: a nossa mente feita de um modo que a impede de pensar contraditoriamente. Se ns temos uma certa concepo do mundo, uma certa lgica e, portanto, uma certa idia de razo, isto depende da nossa constituio psquica, que poderia ser diferente e, em tal caso, nos faria viver num outro mundo. O psicologismo considerado por Husserl uma variante do naturalismo, afim ao biologismo, que interpreta as leis lgicas como leis do funcionamento do crebro. Com base nisso se poderia argumentar que a lgica aristotlica deriva de uma certa estrutura do crebro e que com a mudana da massa cerebral, por conseqncia dos processos evolutivos, mudaria tambm a nossa lgica. Cf. Infopdia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2008. Disponvel em: . Data de acesso: 03Abr.08.

perspectiva analtico-essencial,18 fundindo-os uns nos outros, desdobrando os conceitos implicados a fim de delimitar o seu campo especfico. Na Introduo Quinta Investigao, o pai da fenomenologia indica que, muitas vezes, se define conscincia como uma expresso abrangente para atos psquicos de todo tipo.19 Definir a essncia fenomenolgica de tais atos tarefa relacionada separao entre fenmenos psquicos e fsicos operada por Descartes no sculo XVII, delimitao surgida precisamente para circunscrever o domnio psicolgico. Assim, definir a essncia de ato, na qual se deve distinguir carter ou qualidade e contedo, assume uma centralidade. Discutiremos, portanto, trs conceitos de conscincia apresentados por Husserl, a partir de vivncia (Erlebniss): a) conscincia como unidade fenomenolgica real total do eu emprico, enquanto entrelaamento das vivncias psquicas na unidade da corrente de vivncias (ao qual corresponde uma teoria do fluxo ou dos horizontes temporais - 2); b) conscincia como autoconscincia, o interno dar-se conta das vivncias psquicas prprias, ou a percepo interna que acompanha as vivncias atualmente presentes (ao qual corresponde uma teoria das fases do ato intencional e de temporalidade - 5); c) conscincia como vivncia intencional ou ato psquico, ou melhor, como conscincia de objeto (ao qual corresponde uma teoria da intencionalidade - 9 e seguintes). Noutro texto, Husserl afirmou o seguinte: " a intencionalidade que caracteriza a conscincia no sentido pleno e que, ao mesmo tempo, permite considerar o fluxo da vivncia como fluxo consciente e como unidade de uma conscincia".20P

aralelamente, partindo da Quinta Meditao cartesiana, abordaremos a questo da

intersubjetividade (esfera intermondica). Analisaremos como Husserl escapa ao18 Atualmente a expresso filosofia da mente utilizada em contexto anglo-americano para designar importantes estudos analticos interdisciplinares sobre as operaes mentais que se distanciam da perspectiva analtico-essencial de Husserl. Para exemplificar, basta olhar para o naturalismo biolgico de John R. Searle, para o funcionalismo computacional do primeiro Hilary Putnam, ou ainda para o funcionalismo da nova gerao, batizado por Daniel Dennett justamente de heterofenomenolgico. Dennett, Daniel C. Sweet Dreams: Philosophical Obstacles to a Science of Consciousness. Cambridge, MA, USA: The MIT Press, 2005. 199p. Tais iluses so, para Dennett, a identidade individual (via individuationis) e a capacidade introspectiva da conscincia, s quais ele contrape a estrutura real do sistema cerebral e a negao dos contedos conscientes. Este ponto de vista naturalista ou heterofenomenolgico seria o nico em condies de definir a conscincia sem recorrer s extravagncias da metafsica. Neste horizonte, a filosofia da mente resulta entrelaada com a psicologia e limtrofe com uma gama de outras disciplinas tais como a neurobiologia, as cincias cognitivas, a inteligncia artificial, a lingstica, a teoria da ao, a pragmtica, a teoria da identidade subjetiva. Justamente a estreita conexo com as cincias cognitivas deu o impulso inicial reflexo sobre o primado da intencionalidade da mente, considerada originria em relao linguagem e questo do significado. 19 Hua XIX/1, V, Introduo, p. 353. 20 Husserl. Ideen I, 84, p. 203. Ideen zu einer reinen Phnomenologie und phnomenologischen Philosophie. Erstes Buch: Allgemeine Einfhrung in die reine Phnomenologie. In zwei Bnder. 1. Halbband: Text der 1.-3. Auflage; 2. Halbband: Ergnzende Texte (1912 - 1929). Neu hrsg. von Karl Schuhmann. Nachdruck. 1976. lvii + 706 pp. Idias I no constitui obra de estudo. Esta citao foi retirada da obra de Jlio Fragata, A Fenomenologia de Husserl como Fundamento da Filosofia, Braga: Livraria Cruz, 1983.

solipsismo. Como que tenho conscincia do que eu sou e, ao mesmo tempo, como que tenho conscincia de outro eu? Em sntese, tenho conscincia do outro enquanto meu analogon. E tenho conscincia do eu por meio de um processo de supresso, de amputao do que pertence esfera do outro, isto , das individualidades objetivas (coisas) que me so externas e dos outros eus. Por meio de uma abstrao metodolgica (e no pela dvida metodolgica de Descartes), chega-se ao mundo primordial. 1 Conscincia enquanto unidade real-fenomenolgica das vivncias do eu A primeira anlise de Husserl tem por objeto a conscincia como unidade realfenomenolgica das vivncias do eu. Comecemos, ento, explicitando o que sejam, segundo Husserl, vivncias. Na atitude natural, temos experincias que comeam a nvel perceptivo. Se isolarmos essencialmente o nosso modo de viver esta experincia, pondo entre parnteses todos os elementos contingentes, ficaremos com o puro percepcionar como ato de vivncia, ou melhor, como ato que possvel que todos vivam. Tomar o ato na sua pureza quer dizer examin-lo em si mesmo como ato vivido, como elemento integrante de uma unidade de conscincia na corrente de conscincia fenomenologicamente unitria de um eu emprico. 21 Em outras palavras, um ato psquico.22 A vivncia perceptiva, tal como outras vivncias que podem ser isoladas na anlise fenomenolgica, por exemplo a vivncia rememorativa, a vivncia imaginativa e a vivncia judicativa, se apresenta como uma vivncia caracterizada pela intencionalidade, pelo ser conscincia de, portanto, pelo estar dirigida intencionalmente a algo, que pode ser imanente (no caso de a coisa qual estar dirigida ser a prpria percepo interna) ou transcendente (no caso de estar dirigida a coisas externas). Significa que a Erlebnis fenomenolgica no se refere relao factual entre um evento psquico e um objeto, ou seja, relao existente na realidade objetiva, mas sim sua essncia. Portanto, Husserl distingue o conceito de Erlebnis do conceito de experincia vivida, onde ocorre comumente um entrelaamento entre contedos objetivo-mundanos e contedos psquicos. Podemos distinguir duas modalidades de vivncias intencionais: as proposicionais e as no-proposicionais. As proposicionais so aquelas em que a palavra algo no se refere propriamente ao objeto, mas a fatos que podem ser expressos por frases do tipo "que isto".21 Hua XIX/1, V, 4, p. 364.

22 Atos psquicos so atividades da conscincia, relao da conscincia com um contedo (objeto). Envolve, portanto, uma fenomenologia das representaes, pois, como Husserl afirma,partindo de Brentano, cada ato ou uma representao ou tem representaes por base. (Hua XIX/1, V, Introduo, p. 354).

Porm, h casos de vivncias intencionais em que o objeto s pode ser expresso por termos singulares, que designam objetos. Por exemplo, amar, admirar. Ora, uma tese fundamental da fenomenologia que essas formas de conscincia no-proposicionais no necessitam da mediao lingstica, pois pressupem uma relao sujeito-objeto livre de qualquer mediao lingstica. Para a Psicologia moderna, vivncia uma ocorrncia real que, mudando de momento para momento, em mltiplas ligaes e interpenetraes, faz a unidade real de conscincia do respectivo indivduo psquico. Neste sentido, so vivncias as percepes, as representaes da fantasia e as representaes de imagem, os atos do pensamento conceitual, as suposies e dvidas, as alegrias e as dores, as esperanas e os temores, os desejos e as volies, e coisas semelhantes. Mas de pouco importa se tais so objeto de percepo interna ou no. O que importa que elas sejam contedo real23 da conscincia. No caso de uma percepo, por exemplo, a existncia real das determinidades singulares, extra mentis, daquilo que perceptivamente visado no afeta o carter interno do vivido. Aquilo que percepcionado no vivido, nem est na conscincia. A vivncia corresponde ao que do aparecente vivido e no coisa em sua ipseidade, contribuindo para a tessitura da conscincia. Assim, o mundo objetivo externo no faz parte da conscincia, mas contribui para a sua construo. Diferentemente de Kant que identifica o aparecente ao fenomnico, Husserl identifica o aparecente ao vivido. Husserl transforma a estrutura didica kantiana numa estrutura tetrdica, ou seja, o nmeno (a coisa em si) e o fenmeno (aquilo que aparece), agora se tornam: o objeto que visado (dado numa sntese de identificao, um mero produto lgico); o objeto tal como visado (modos de inteno); o ato de visar; e as vivncias. Tal ponderao fica ainda mais evidente quando Husserl afirma que a vivncia no , ela prpria, aquilo que 'nela' est intencionalmente presente.24 Como parte do mundo fenomnico, podemos naturalmente aparecer-nos a ns prprios, tornando-nos objeto fenomnico. uma relao entre duas coisas aparecentes. No23 Real (as coisas, os objetos) ope-se a ideal;(objetos pensados, matemticos, por exemplo) ao passo que reell (atos ingredientes da intencionalidade) ope-se a ideell (objetos visados, que esto na mente enquanto visados, mas no realmente). 24 Cf. Hua XIX/1, V, 2, p. 360. bom registrar que o postulado kantiano da coisa em si (nmeno) quer significar uma realidade independente do sujeito cognoscente. A Teoria do Conhecimento denomina esta concepo de realismo ontolgico. A fenomenologia, sob pena de filiar-se ao Idealismo (conceber a realidade como fruto do pensamento) ou ao Solipsismo (concebe que a nica coisa existente no mundo o eu), no pode negar este realismo, como o fazem outros filsofos (p. e., Thomas Kuhn, o qual, no posfcio de sua obra A estrutura das revolues cientficas (Trad. de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira, So Paulo: Perspectiva, 2001), rejeita textualmente a categoria ontolgica mundo em si). No se pode acusar a fenomenologia de irrealismo ontolgico, pois passa margem da categoria kantiana. Husserl no nega a relao do fenmeno com o mundo exterior, mas prescinde desta relao, suspendendo o juzo em relao a ele para chegar ao fenmeno puro. Decididamente, a fenomenologia no fenomenismo, no sentido de que tudo o que existe se reduza a um fenmeno da conscincia.

entanto, tal contedo de conscincia no tem absolutamente nada a ver com a conscincia no sentido da unidade dos contedos de conscincia (a consistncia fenomenolgica do eu emprico). uma vivncia singular com a complexo das vivncias.25 At agora se falou das vivncias intencionais. Entretanto, como bem observa Ales Bello,26 nem todas as vivncias so intencionais. H tambm aquelas chamadas por Husserl de momentos efetivos presentes no fluxo das vivncias que no possuem o carter da intencionalidade, isto , de ser conscincia de alguma coisa. Se se percepciona uma folha branca, o branco da folha no conscincia de alguma coisa, mesmo se apresentando como latore, isto , como portador de intencionalidade enquanto contedo que presenta o branco da folha. Tudo o que foi dito at agora sobre as vivncias s foi possvel graas a uma vivncia particular e especificamente humana, a vivncia da reflexo, pela qual toda vivncia pode se tornar objeto de uma percepo interna e objeto de uma reflexo teortica ou avaliativa. As vivncias espelham todas as operaes, todas as experincias, toda a constituio do sujeito humano e da realidade natural, mas as conexes de sentido s acontecem entre as prprias vivncias: o ser como realidade e o ser como conscincia esto correlacionados, mas distintos. Os diferentes tipos de vivncia encontram-se na unidade de uma corrente de vivncias, qual Husserl denomina conscincia. A conscincia para Husserl, nesse sentido, um movimento permanente de fenmeno. Tudo encontra seu lugar na unidade dessa corrente que o "fenmeno originrio". Toda vivncia, ultrapassa-se necessariamente a si mesma na direo de outras vivncias que constituem, em sua inter-relacionalidade, uma unidade. Mas de onde vem, ento, a unidade de conscincia real? Tal unidade dada pelas prprias propriedades fenomnicas unidas, unidade que se funda na prpria consistncia do seu contedo.27 Significa dizer que o eu fenomenolgico reduzido no nada de peculiar que paire sobre as mltiplas vivncias, mas simplesmente idntico prpria unidade de ligao dessas vivncias. No carece de um princpio egolgico prprio como contentor ou recipiente,28 ou um centro no crebro em direo ao qual todos os sinais convergem dando lugar ao fenmeno da conscincia. Dennett29 chama esta ltima concepo de Modelo do Teatro Cartesiano porque remontaria, precisamente, a Descartes. Definitivamente, no existe um lugar central, um Teatro Cartesiano para onde tudo converge para ser examinado por25 Ibidem, p. 360. 26 Ales Bello, A. Husserl interprete di Kant. Dialeghestai. Rivista telematica di filosofia. Roma, Ano 7, jul. 2005. Disponvel em: http://mondodomani.org/dialegesthai/aab02.htm Acessado em: 07maio2008. 27 Hua XIX/1, V, 3, p. 362. 28 Hua XIX/1, V, 4, p. 364. 29 Cf. Dennett, D. Consciousness explained. Boston: Little, 1991.

um observador privilegiado. Ao mesmo tempo em que se percepciona uma alterao contnua de contedos, o eu percepciona uma unidade de coexistncia que passa de ponto temporal a ponto temporal; unidade de alterao. Ocorre um fluxo de conscincia sem a diluio do eu fenomenolgico. Em tal fluxo, a conscincia exige constante persistncia ou constante alterao de pelo menos um momento, essencial para a unidade do todo.30 Em suma, a unidade de conscincia real provm do tempo que pertence de modo imanente forma de apresentao do fluxo de conscincia, enquanto unidade que aparece temporalmente. Modernamente, fala-se acerca da durao do processamento de informaes como um elemento central da conscincia, com grande nfase na temporalidade dos processos cognitivos. A conscincia no um recipiente no qual estariam as vivncias, mas percebida como um fluxo. Cada fase atual do fluxo de conscincia, portanto nela se apresenta todo um horizonte temporal do fluxo, possui uma forma que abarca todo o seu contedo, que permanece continuamente idntica, enquanto o contedo se altera constantemente.31 Logo, sem alterao, sem fluxo de contedo, tambm no haveria conscincia. Sem persistncia, tambm no haveria conscincia. Seria como se o eu emprico perde-se a sua identidade, perde-se a sua anima, o seu esprito vivificador. A expresso contedos remete justamente a uma unidade englobante que os possui. Em sentido comum poderia referir-se a algo que pairasse sobre as mltiplas vivncias, como um princpio egolgico portador de todos os contedos, mas no no sentido da psicologia descritiva, para a qual o ponto de referncia o todo, a unidade de conscincia real, a soma total das 'vivncias' presentes, que constitui o eu fenomenolgico ou conscincia. O 'eu fenomenolgico' [...] simplesmente idntico prpria unidade de ligao dessas vivncias.32 Como se d a conscincia-de-conscincia, isto , como se d o estado normal de conscincia? Pode-se dizer que, para Husserl, a esfera da atualidade das vivncias, considerando que h tambm Erlebnisse cuja conscincia se move do modo atual ao inatual e viceversa. A conscincia abraa as Erlebnisse que so atuais, mesmo que a conscincia nunca possa consistir de puras atualidades. As atuais esto em contraste com as inatuais por estarem na evidncia do cogito - eu tenho conscincia de alguma coisa -, enquanto as inatuais constituem o halo de conscincia de modo que as cogitationes estejam circundadas por inatualidades. Atualidades e inatualidades esto sempre expostas a uma fluidificao30 Hua XIX/1, V, 6, p. 369. 31 Hua XIX/1, V, 6, p. 369. 32 Hua XIX/1, V, 4, p. 364.

consciencial de ascenso e descenso, que se articula constantemente na forma da contnua conscincia interna do tempo, no qual cada vivncia seguinte mantm o resultado da vivncia que a precedeu e acrescenta novo material para a vivncia futura. Quando podemos captar uma vivncia de modo mais ntido (atual), ento, naquele momento, estamos diante de um estado bem definido da conscincia. Mas no significa que seja um estado ordinrio da conscincia. Antes pelo contrrio, a tranqila ordinariedade se torna descontnua. A corrente contnua das vivncias se bloqueia. A algo que oferece caractersticas homogneas de durao como a conscincia vivida, se opem estados de conscincia tais a ponto de perturbar o fluxo da vida interior do sujeito e que nos permitem capt-lo por meio de uma ressonncia entre aquele estado particular e algo dentro de ns ao qual aquele mesmo estado remete. Segundo outros filsofos e estudiosos do tema, tais como Bernet, Kern e Marbach,33 o fluxo da concincia de que fala Husserl pe em evidncia a caracterstica da concincia a imergir-se no tempo, ou seja, a sua capacidade de se encontrar em diferentes dimenses durante o ato cognoscitivo da realidade. O fluxo de concincia no tem, portanto, propriedades espaciais e a sua atividade ocorre na corrente de temporalidade imanente. Segundo Husserl, a concincia, no tempo, segue duas dimenses: uma direo objetiva, ou seja, tem a possibilidade de captar um objeto temporal; e uma subjetiva, como fluxo de concincia, que continuum personale das experincias vividas. Este continuum da concincia se constitui de uma reteno, de uma atualidade potencial presente e de protenso. Para Husserl, na reteno os acontecimentos cotidianos so retidos na forma de passado e na protenso o existente humano antecipa os acontecimentos; contudo, esta antecipao sempre feita a partir do momento presente. Assim, o passado retido como passado no presente e o futuro antecipado como futuro, tambm a partir do presente. Poderamos dizer que o presente uma sntese do que retido e do que antecipado. Conforme o antecipado passa, retido como passado. Portanto, atravs do tempo que se d a unificao das vivncias que o eu tem do mundo. E a partir do tempo que se constitui a subjetividade do eu transcendental.34 Em suma, analisando a prpria vida de conscincia, portanto, o ego capta a si mesmo sob dois aspectos: 1) como corrente ou fluxo das vivncias; e 2) como eu estvel e permanente, plo idntico deste fluxo, ao qual todos os momentos de conscincia fazem referncia.33 Bernet, R.; Kern, I.; Marbach, E.. Edmund Husserl. Bologna: Il Mulino, 1989. 34 Husserl, E. Lies para uma fenomenologia da conscincia ntima do tempo. Trad. e notas de Pedro M. S. Alves. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1994. Cf. Belibio, E. A Fenomenologia do tempo em Heidegger e Husserl. Analecta, Guarapuava, vol. 6, n. 2, p. 77-83, jul./dez. 2005. Disponvel em: http://www.unicentro.br/editora/revistas/analecta/v6n2/06%20Artigo.pdf. Acessado em: 13Maio2008.

A partir das consideraes de Husserl sobre o fluxo de conscincia, sobre a conscincia de em relao realidade natural, Searle, j em A redescoberta da mente,35 postular a hiptese de que tambm a conscincia uma propriedade biolgica do crebro dos seres humanos, determinada por processos neurobiolgicos, ou seja, como parte integrante da ordem biolgica, ao invs de restringir-se, como fez Husserl, na relao entre a conscincia intencional e o objeto. Cabe ainda perguntar-se se acima de cada conscincia, no fluxo, no reine ainda a conscincia ltima, enquanto intencionalidade ltima que no pode jamais ser objeto de ateno, ou seja, chegar conscincia. Se em 1901 a diviso brentaniana de todos os fenmenos em fsicos ou psquicos era considerada por Husserl como uma das mais notveis e filosoficamente importantes o que circunscrevia a conscincia realidade psquica j em 1906 ele protestar contra a idia oriunda do pensamento natural de que todo e qualquer dado ou fsico ou psquico. A partir de ento, Husserl reconhecer que a conscincia no nenhuma vivncia psquica, nenhum entrelaamento de vivncias psquicas, nenhuma coisa, nenhum anexo (estado, atividade) em um objeto natural.36 Com a evoluo do pensamento husserliano, a idia da conscincia como representao, idia racionalista, se tornar superada e proscrita. 2 Conscincia enquanto autoconscincia ou percepo interna das prprias vivncias psquicas O segundo conceito de conscincia apresentado por Husserl nasce da oposio entre a percepo dos objetos e a percepo imanente que a conscincia tem de si mesma. Neste sentido, conscincia a percepo 'interna' que acompanha as vivncias atualmente presentes [...] e que lhes deve estar referida enquanto elas so os seus objetos.37 Interna aqui no est em oposio a externa, indicando objetos. Neste sentido, as percepes sempre so internas. Interna quer apenas indicar o carter do objeto de percepo, neste caso as prprias vivncias. At porque nenhum corpo internamente percepcionvel, no porque seja 'fsico', mas antes porque, por exemplo, a forma espacial tridimensional no susceptvel de ser adequadamente intuda por nenhuma conscincia.3835 John Searle, The rediscovery of the mind. Cambridge, MA: The MIT Press, 1992. (Trad. port.: A redescoberta da mente. Trad. Ana Andr; Rev. Maria Jos Figueiredo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. 304p). 36 Husserl, Manuscrito A I 36, p. 193 a (1920). Apud Moura, C. A. de. Husserl: significao e fenmeno. doispontos, Curitiba, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril 2006, p. 45. 37 Hua XIX/1, V, 5, p. 365. 38 Hua XIX/1, V, 7, p. 370.

Uma percepo interna uma percepo adequada: uma percepo na qual o objeto est presente em ipseidade (em carne e osso); uma percepo na qual o objeto captado naquilo que ele mesmo ; uma percepo na qual o objeto est includo no prprio percepcionar. Neste sentido, a percepo adequada unicamente a interna, a percepo das prprias vivncias, daquilo que internamente percepcionado. Aqui, deve-se evitar o equvoco de interpretar a percepo interna como um saber. Se assim fosse, alerta Husserl, incorreramos na regresso ao infinito que decorre do fato de a percepo interna tornar-se novamente uma vivncia, que careceria de nova percepo, e assim sucessivamente. Deixa-se tal problema de lado, visto no ser fenomenologicamente verificado.Em Einleitung in die Psychologie

nach kritischer Methode,39 Natorp apresenta uma objeo idia de que o eu puro seja o centro no entanto, o eu est referido aos contedos enquanto estes lhe esto conscientemente dados, poderamos dizer, o

de referncia subjetivo de todos os contedos, chamado por Husserl tambm de consciencialidade. A consciencialidade, segundo o pai da fenomenologia, a relao que o eu tem com os seus contedos. Para Natorp,

mas ele, por sua vez, no est relacionado aos contedos da mesma forma, isto , o eu no est conscientemente dado aos contedos. Esta relao singular faz do eu puro o centro de referncia subjetivo. Por isso, segundo ele, no poderamos descrev-lo, porque tudo o que dele

diramos como contedo da conscincia e o eu puro no pode se tornar contedo nem em nada semelhante a tudo o que, de algum modo, pode ser um contedo de conscincia. Uma vez que o sujeito se torna objeto deixa de ser sujeito. Seria como admitir a possibilidade de ser sujeito e objeto contemporaneamente. Para Husserl, entretanto, o eu centro de referncia e a relao do eu com um contedo podem ser objeto da conscincia, podem ser objetivamente dados conscincia, enquanto expressamente notados. Assim, as vivncias podem ser dadas simultaneamente com a conscincia: o eu a si prprio aparece, tem 40 de si prprio conscincia e especialmente percepo.

,

O eu se auto-pertence.

Para Sartre, a consciencialidade incide, conseqentemente, num ser-para-si. Se de um lado a conscincia sempre conscincia de alguma coisa ( conscincia intencional), do outro lado ela tambm autoconscincia, ou seja, conscincia de ser conscincia de alguma coisa. De acordo com o filsofo francs, a conscincia de si mesma uma condio necessria para que uma conscincia cognoscente seja conscincia do seu objeto.41 Ela conscincia parasi. Entretanto, a conscincia de si mesmos nunca uma conscincia de tipo reflexo, ou seja, uma conscincia posicional,42 mas uma conscincia substancialmente irreflexa, no plenamente consciente. A irreflexividade da autoconscincia indicada por Sartre com a expresso conscincia-(de)-si, na qual o (de) possui a funo de exprimir a no39 Einleitung in die Psychologie nach kritischer Methode (Introduo psicologia segundo o mtodo crtico), obra de Paul Natorp, qual Husserl se refere, publicada em Friburgo, em 1888. 40 Hua XIX/1, V, 8, p. 372-375. 41 Cf. Sartre, J. P. Ltre et le nant. 41.ed. Paris: Gallimard, 1953. 722p. 42 Eu tenho conscincia posicional de alguma coisa quando tenho plena conscincia do que tenho conscincia. Em tal sentido, posicional a conscincia que eu tenho dos entes externos a mim (por exemplo, tenho uma conscincia posicional da mesa que estou vendo agora). De mim mesmo, como cogito, tenho pelo contrrio uma conscincia imediata, irreflexa.

posicionalidade da conscincia de ser conscincia. 3 Conscincia intencional O mundo, objeto de conscincia, enquanto a ela correlacionado, no deve ser considerado de modo ingnuo, naturalista, como existente em si, existente fora e independentemente da conscincia, mas sim como fenmeno, no seu aparecer prpria conscincia, ou seja, a inegvel manifestao do mundo dentro da conscincia do homem. Assim, a atitude fenomenolgica tem como premissa que se ponha entre parnteses a considerao ingnua da existncia fsica dos objetos e dos seus modos fsicos de existncia, como so imediatamente captados. O que acontece com a epoch.43 A atitude fenomenolgica destaca o aspecto ativo da prpria conscincia, o seu referir-se s coisas, o que implica, evidentemente, que a conscincia se divida, se duplique, se torne conscincia observante, de modo analtico-descritivo, dos atos que ela mesma realiza de modo irreflexo. A atitude natural pode ser resumida na tese do mundo, isto , na posio da existncia de um mundo em si. Para Husserl no preciso sequer duvidar deste juzo, mas sim p-lo entre parnteses. Portanto, preciso suspender o juzo. Agora, podemos substituir a tentativa cartesiana de uma dvida universal pela universal epoch. O mundo natural inteiro posto entre parnteses. Entretanto, fazendo isto eu no nego este mundo, como se fosse um sofista, no o ponho em dvida, como se fosse um ctico, mas exercito a epoch fenomenolgica, isto , eu no assumo o mundo que me constantemente j dado enquanto ser, como fao, diretamente, na vida prtico-natural, mas tambm nas cincias positivas. Evidentemente, pondo entre parnteses o mundo, pomos entre parnteses tambm a ns mesmos, que fazemos parte deste mundo. Ento, o que se nos revela ser o nosso eu? O sedimento originrio, aquilo que permanece do mundo na conscincia, depois que se retirou toda reflexo terica e cientfica que exceda a viso imediata das coisas , para Husserl, puras experincias vividas; ou, pode-se dizer tambm, o fluxo das experincias vividas no qual a conscincia se relaciona com o mundo.43 A palavra grega epoch teve o emprego inicial com os cticos em sua postura de nada aceitar e nada refutar; assim a suspenso do juzo em Pirro: nada se afirma; nada se nega. Com Husserl o termo ganha um novo sentido e empregado como contemplao desinteressada: as cincias em geral se interessam pelo mundo, o que as impede de contempl-lo, captando a sua essncia. Por meio da epoch fenomenolgica tudo o que informado pelos sentidos reduzido a uma experincia de conscincia, que consiste em estar consciente de algo. Requer a suspenso das teorias, atitudes, crenas, para concentrar-se exclusivamente na experincia em foco, tornando possvel a intuio da coisa mesma.

Mas qual a estrutura fundamental da relao conscincia-mundo? Husserl diz, retomando um conceito de Brentano que, por sua vez, o retomara dos Escolsticos medievais: a intencionalidade. A Escolstica utilizou a palavra intencionalidade para indicar o carter representativo do objeto imanente em relao ao objeto exterior e, portanto, para designar a conscincia como tendo um sentido relativamente a esse objeto. O termo inteno (do latim intentio) foi fixado pela primeira vez no texto latino por Avicena e retomado, depois, pelos escolsticos (Alberto Magno, Toms de Aquino, Duns Scoto e outros). Significa, originariamente, o mesmo que conceito, assumindo o sentido de mental ou conceitual. Portanto, os escolsticos definiram conceito como intentio enquanto nele se exprime um in alium tendere, isto , uma referncia a algo objetivo. O conceito de intencionalidade foi retomado, posteriormente, por Brentano que o tornou caracterstica distintiva de todos os fenmenos psquicos, contrapostos queles fsicos. Intencionalidade significa para Brentano relao ao contedo ou direo ao objeto. Assim, todo fenmeno psquico se distingue por ser uma conscincia de alguma coisa. Brentano44, citado por Husserl nas suas Investigaes Lgicas, afirmou:Todo e qualquer fenmeno psquico caracterizado pelo que os escolsticos da Idade Mdia denominavam como inexistncia intencional (ou tambm mental) de um objecto e que ns, se bem que com expresses no completamente inequvocas, poderamos denominar como a referncia a um contedo, a direco para um objecto (pelo qual no se deve entender uma realidade) ou a objectividade imanente.45

Entretanto, a concepo husserliana da intencionalidade se diferencia daquela brentaniana em diversos pontos. Primeiramente, Husserl no atribui um significado intencional a todos os fenmenos psquicos e no considera a intencionalidade um elemento real e objetivo para a distino entre o psquico e o fsico. Nem todas as vivncias so intencionais, como j vimos. A intencionalidade , antes, segundo Husserl, o carter a priori da essncia fenomenolgica da conscincia, a tpica e invarivel estrutura da vivncia. Se ns nos elevarmos mediante a epoch e a reduo fenomenolgica considerao da intencionalidade da vivncia, notaremos, em primeiro lugar, que na prpria vivncia h componentes imanentes, evidentes e imediatos, mas no intencionais: para Husserl so as impresses sensveis que servem de matria intencionalidade, mas que no so, por sua vez, intencionais. 4644 Ver a obra de F. Brentano, Psicologia sob o ponto de vista emprico, trad. espanhola, Madrid: Revista Ocidente. 45 Hua XIX/1, V, 10, p. 380. 46 Hua XIX/1, V, 10, p. 382.

Em segundo lugar, percebemos que o objeto no imanente intencionalidade. Husserl critica a tese brentaniana segundo a qual a intencionalidade contm imanentemente um objeto como representao psquica do objeto real. Pelo contrrio, o objeto transcendente intencionalidade e se manifesta na prpria intencionalidade somente como componente no-real, isto , como significado, sentido. No-real significa ideal; reais so os atos subjetivos, componentes da intencionalidade que se correlacionam intuio desta idealidade. Para Brentano, os objetos percepcionados, fantasiados, julgados, desejados, etc. entram na conscincia, so recebidos na conscincia ou, inversamente, a conscincia entra em relao com eles. De tal tese, Husserl aponta duas possveis ms interpretaes: 1) que se trataria de uma relao real pertencente ao contedo real da vivncia; 2) que se trataria de uma relao entre duas coisas encontradas na conscincia, de acordo com a expresso escolstica inexistncia intencional. A intencionalidade da conscincia no significa uma referncia real ou um processo real que tenha lugar entre a conscincia por um lado e a coisa consciente por outro. Nem tampouco consiste numa relao entre duas coisas que se encontram da mesma maneira, realmente, na conscincia, um estado psquico e um objeto intencional, dois contedos da conscincia encaixados um no outro. S uma coisa presente: a vivncia intencional,47 cujo carcter descritivo essencial precisamente a inteno em questo. Segundo a sua particularizao especial, ela que constitui completa e exclusivamente o representar, o ajuizar, etc., deste objecto. Se esta vivncia est presente, ento a relao intencional com um objecto est eo ipso tal reside, sublinho, na sua prpria essncia consumada, um objecto est eo ipso intencionalmente presente, pois uma coisa e outra querem dizer precisamente o mesmo.48 A inexistncia mental ou intencional, assumida por Brentano no sentido original de existncia in mentis, deve ser entendida no sentido de existente em inteno, mas no existente naturalmente na mente, em ipseidade (carne e osso). Husserl evidenciou que as vivncias intencionais se referem de vrios modos a objetos representados, mas o objeto nelas visado, tido em vista.49 Entretanto, no significa que haja duas coisas presentes na vivncia: o objeto e a vivncia intencional. O que h a vivncia intencional de um objeto, vis-lo uma vivncia, at porque o objeto pode absolutamente no existir extra mentis.50 O47 Cf. Hua XIX/1, V, 11, p. 385. 48 Cf. Hua XIX/1, V, 11, p. 386. 49 Cf. Ibidem, p. 386. 50 Como exemplo pode-se tomar a prpria ilustrao realizada por Husserl a partir do deus Jpiter. Se me represento Jpiter, o objeto representado tem inexistncia mental. Significa que tenho uma certa vivncia de

significativo aqui que, do ponto de vista fenomenolgico, a existncia ou no do objeto no muda a situao: Para a conscincia, o dado essencialmente idntico, quer o objeto representado exista, quer seja ficcionado, quer seja mesmo um contra-senso.51 Em suma, Husserl adota a expresso objeto intencional porque, com ela, indica uma forma de representao que real na vivncia sem que tal indique uma existncia natural extra mentis dos objetos intencionados. Os objetos intencionais sempre existem na conscincia enquanto visados. A conscincia pode, portanto, pronunciar-se sobre este ser segundo a maneira como ele se apresenta, elucidando o modo pelo qual ela o visa. Para isto, no tem necessidade de sair de si prpria tarefa contraditria com a qual esbarrava qualquer teoria do conhecimento e que a inclinava quer ao idealismo, quer ao ceticismo mas somente de proceder ao exame destes modos de inteno. A conscincia se mostra conscincia de objetos constitudos no prprio ato cognoscente. Entretanto, apesar da palavra fenmeno designar o que aparece, ela usada preferencialmente para designar o prprio aparecer, isto , o fenmeno da conscincia ou, usando o que Husserl considerava uma expresso grosseiramente psicolgica, o fenmeno subjetivo. Em virtude deste uso ambguo, a palavra fenmeno favorece a formao de equvocos, pois o prprio aparecer torna-se objeto de investigao, ou seja, o prprio sujeito do conhecimento investigado na sua estrutura comportamental, em virtude da correlao essencial entre o seu aparecer e o que aparece. Trata-se, no caso, de uma relao interdependente entre o aparecer e o que aparece, entre o sujeito do conhecimento e o mundo conhecido, entre a conscincia que conhece e o mundo ou objeto que aparece ou se mostra cognoscvel. Portanto, no existe uma conscincia em si, um ser em si, pois a conscincia s se apreende como relao, isto , ela existe enquanto relao de eventos vivos e concatenados: a conscincia sempre conscincia de um ser-no-mundo, portanto, um existencial concreto. De modo algum devemos compreender tratar-se de uma espcie de conscincia em si. A conscincia apenas conscincia humana, isto , um modo de ser-no-mundo, portanto, um existir fenomenal. Por outro lado, a conscincia consiste justamente em ser aquilo que transcende e, como tal, no deve ser confundida com os entes em estado natural. A conscincia, no caso, no mais aquela figura associada ao sujeito transcendental de Kant, e sim muito mais o prprio ser-do-homem-no-mundo, o que descortina uma perspectivarepresentao que, na minha conscincia, se consuma um representar-o-deus-Jpiter sem encontrar a naturalmente algo como o deus Jpiter. Mesmo que ele no seja algo extra mentem. Cf. Hua XIX/1, V, 11, p. 387. 51 Hua XIX/1, V, 10, p. 387.

completamente nova para a filosofia transcendental. Dizer que a conscincia essencialmente intencional significa afirmar que ela remete a algo diferente de si, que tende sempre em direo a um contedo que, de alguma forma, o seu oposto. O ato de conscincia, portanto, no pensvel e analisvel seno em relao com o objeto, e o prprio objeto no pensvel e analisvel seno em relao com o sujeito, com a conscincia. Gnosiologicamente, o estudo da conscincia se d em duas direes interconectadas: a primeira se refere aos modos do cogitatum, ou seja do objeto intencional, ao qual Husserl chama tambm noema, por exemplo o percebido, o recordado, o imaginado, etc. (descrio noemtica); a segunda dirigida aos modos de ser do prprio cogito, ou seja da noese, por exemplo o perceber, o recordar, o imaginar, etc. (descrio notica). A descrio notica, ou seja, dos modos de conscincia, mostra que a forma originria da conscincia a sntese, a qual representa uma coeso inseparvel que unifica os momentos conscienciais uns aos outros, atravs do ato fundamental da identificao. A sntese se articula constantemente na forma da contnua conscincia interna do tempo, no qual cada vivncia seguinte mantm o resultado da vivncia que a precedeu e acrescenta novo material para a vivncia futura. Toda a vida subjetiva se insere numa dimenso temporal mais ampla, em conformidade qual as estruturas conscienciais se constituem num processo continuamente fluente. Partindo de uma determinada concepo da conscincia, Husserl pretendeu liberar a filosofia de todas aquelas tendncias empirismo, positivismo, subjetivismo, psicologismo que pem as bases do conhecimento na relao de um eu com a realidade externa e transcendente da natureza. O ponto de vista intencional considera um absurdo o pressuposto terico de que o eu e o mundo objetivo devam entrar em relao no ato cognoscitivo, subsistindo j como eu e como realidade objetiva antes de entrar nesta relao. Para Husserl, o objeto intencional implica os atos constitutivos da conscincia que conferem o sentido, mas no dissolvido na realidade absoluta do sujeito. O objeto simplesmente aquilo que tem um sentido em virtude da atividade constitutiva do eu, ou seja, um noema em relao noese, isto , um conjunto de atos da conscincia, a qual, em virtude da estrutura e da forma dos seus atos, condiciona a estrutura e a maneira na qual o correlato da conscincia dado. Tambm no devemos supor que a conscincia exista como substncia, possuindo, entre outros atributos, a intencionalidade que lhe permitiria entrar em contato com uma outra realidade a seu lado. A conscincia consiste na intencionalidade. A substncia desta o seu

transcender-se, o seu referir-se a Com tal, Husserl pode demonstrar que o sujeito no uma coisa que exista primeiro e em seguida se reporte ao objeto. A relao sujeito-objeto constitui o fenmeno verdadeiramente primeiro e nele que os chamados objetos se do. A essncia mesma da conscincia visar outra coisa diferente dela; nisso reside a sua vida prpria. A concepo husserliana pe no corao do ser da conscincia o contato com o mundo. Na Quinta Investigao Husserl assevera que a substancialidade da conscincia a intencionalidade. Por isso ope-se idia do eu como substncia da conscincia, no receio de se poder interpretar a intencionalidade como um acidente desse eu substncia.52 Afastadas as controvrsias, Husserl abandonar definitivamente a expresso fenmeno psquico e assumir a expresso vivncia intencional, ou simplesmente ato. Por ato no se entenda a idia de atividade, mas um modo especfico de algo ser, dependendo do modo como se repara nele. Ou seja, diferentes modos implicam diferentes atos. Por outro lado, diversos atos podem percepcionar o mesmo e, no entanto, sentir coisas totalmente diferentes. O ser de algo a conscincia que tenho dele, o que significa que o contedo sentido diferente do ser do objeto percepcionado. Nesse sentido, a minha conscincia constitutiva. A conscincia que tenho do objeto a apreenso que tenho dele. Por fim, a apreenso no se reduz a um afluxo de novas sensaes; depende das disposies sedimentadas das vivncias anteriores. Portanto, a conscincia no algo em si, esttico. , antes, algo dinmico, que avana medida que vai incorporando novas apreenses. Contemporaneamente, algo que permanece, no prprio fluxo de sedimentao das vivncias anteriores. Significa dizer que, mesmo se diferentes atos percepcionarem o mesmo, no entanto, podero sentir coisas diferentes. Assim, fica definitivamente evidenciado que uma coisa a conscincia de algo e outra o objeto natural real; uma coisa a vivncia intencional que se tem de algo e outra o objeto em si. Mas disso decorre outra dificuldade: que est na base da conscincia de identidade (ato que consiste na designao de identidade) que tenho de um objeto percepcionado, mesmo tomado em diferentes apreenses? Para contornar a dificuldade, Husserl introduz a distino entre contedo de percepo, sensaes apresentadoras, e inteno apreensora. O contedo provm das sensaes que apresentam o objeto percepcionado e a inteno, em visando algo, atribui identidade ao objeto percepcionado. E a modificao, em que consiste? Consiste, segundo Husserl, nos caracteres intencionais da vivncia respectiva. Afirma ele: Suponhamos, por exemplo, que certas52 Cf. Hua XIX/1, V, 8, p. 372-376.

figuras ou arabescos atuaram sobre ns, de incio, de um modo puramente esttico e que, subitamente, faz-se luz e compreendemos que pode tratar-se de smbolos ou de signos verbais.53 O que mudou? Mudaram simplesmente os caracteres intencionais segundo os quais um determinado contedo foi apreendido. Para a fenomenologia, a diferena devida ao carter descritivo e no a supostas estruturas transcendentais ocultas, ou a processos fisiolgicos. Dessa forma, Husserl parece tanto se distanciar da tradio kantiana, quanto refutar o psicologismo. Para o fenomenlogo, a modificao no reside na sensao, muito menos no objeto; a modificao reside, sim, na apercepo, na vivncia das sensaes. Husserl tambm ressalta a funo desempenhada pela ateno como fator de destaque de caracteres de ato influenciando, assim, essencialmente a estrutura fenomenolgica dos atos compostos. A ateno uma funo distintiva, que pertence aos atos no sentido de vivncias intencionais. Os objetos de ateno so objetos de percepo, de recordao, de expectativa ou tambm estados-de-coisas de uma ponderao cientfica, etc Considerando que percepo um ato em que o contedo se torna objeto para ns, objeto intencional aquilo de que, em cada caso, estamos ou podemos estar conscientes. Tambm deduz-se que s se pode falar de ateno quando temos na conscincia aquilo ao qual estamos atentos, pois no notado aquilo que no contedo de conscincia.54 Ao que parece, a relao intencional suficiente para delimitar os fenmenos psquicos, mas no caso dos sentimentos deve-se distinguir as sensaes de sentimento, que so contedos apresentantes ou objetos de intenes, dos sentimentos, que so vivncias intencionais. As primeiras so fenmenos fsicos e apresentam objetos; os segundos so fenmenos psquicos e tm uma relao com uma representao. Se, entretanto, investigarmos a conscincia do ponto de vista da noese, ou seja, dos atos de conscincia, devemos considerar uma distino fenomenolgica fundamental, a de que estes contm partes distinguveis: contedo real e contedo intencional. Por contedo real fenomenolgico de um ato, Husserl entende a totalidade englobante das suas partes, [] a totalidade englobante das vivncias parciais de que ele realmente constitudo (a anlise desta dimenso cabe psicologia descritiva). o conceito mais geral de contedo, vlido em todos os domnios. De contedo intencional,55 Husserl distingue, na peculiaridade das vivncias intencionais, trs aspectos: 1) objeto intencional do ato; 2) matria intencional (em oposio sua qualidade) e; 3) essncia intencional.5653 Hua XIX/1, V, 14, p. 398. 54 Cf. Hua XIX/1, V, 19, p. 423, 424. 55 Cf. Hua XIX/1, V, 18, p. 417-429. 56 Cf. Hua XIX/1, V, 16, p. 412, 413, grifo do Autor.

Em relao ao contedo intencional, entendido como objeto intencional, deve-se primeiramente distinguir o objeto, tal como intencionado, e pura e simplesmente o objeto, que intencionado. Ou seja, um mesmo objeto pode ser intencionado de diversos modos. Husserl usa como exemplo o Imperador da Alemanha. Aqui, o objeto intencionado enquanto imperador e precisamente o da Alemanha. Mas o mesmo o filho do Imperador Frederico III, o neto da Rainha Vitria, etc. Um o objeto intencionado, mas diversas so as intenes.57 Em relao ao contedo intencional, entendido como matria intencional do ato, devese distingui-la da qualidade de um ato. Por qualidade, Husserl entende aquilo que caracteriza o ato, por exemplo, como representao ou juzo, determina apenas se aquilo de que, de um modo determinado, j fazemos uma representao, est intencionalmente presente enquanto desejado, questionado, judicativamente posto, e coisas semelhantes.58 J por matria, o pai da fenomenologia entende aquilo que ao ato confere a direo determinada para algo objetivo, que faz, portanto, por exemplo, com que a representao represente precisamente isto e nada diferente; confere a direo para precisamente este objeto e nenhum outro.59 A matria determina o objeto que o ato visa, mas tambm o modo como ele o visa, ou seja, o enquanto que ele o apreende.60 O contedo como matria uma componente da vivncia ato que esta ltima pode ter em comum com atos de qualidade completamente diferente; a matria no se limita a fazer com que o ato apreenda a objetualidade, mas determina de que modo ele a apreende. A matria aquilo que distingue um juzo de um outro juzo, aquilo que confere ao ato a sua referncia determinada ao objeto. Por fim, por essncia intencional do ato entenda-se a unidade de matria e qualidade do ato, que, entretanto, constitui apenas uma parte do ato completo. A essncia intencional a identidade do ato. Mas diga-se que ter a mesma representao, representar o mesmo objeto, no significa identidade individual dos atos.61 Duas representaes so, na essncia, a mesma quando, com base em cada uma delas, considerando cada uma puramente por si prpria, se pode asserir sobre a coisa representada precisamente o mesmo e nada mais.62 A identidade, portanto, reside na significao idntica.57 Cf. Hua XIX/1, V, 17, p. 414-415, grifo do Autor. 58 Hua XIX/1, V, 20, p. 428, 430, grifo do Autor. 59 Hua XIX/1, V, 20, p. 429. 60 Hua XIX/1, V, 20, p. 430, grifo do Autor. 61 Ambos podemos nos representar o mesmo objeto, a Ilha de Pscoa, por exemplo, mas nossas representaes do objeto Ilha de Pscoa sero diferentes. 62 Hua XIX/1, V, 21, p. 433, grifo do Autor.

Os atos podem ser simples ou compostos, fundantes ou fundados. Atos simples tm uma relao intencional particular, cada um tem o seu objeto unitrio e o seu modo de se lhe referir. Mas os atos simples podem se combinar num ato global tornando-se, assim, parciais. O ato global ou composto no um encadeamento de outros atos parciais, mas um tipo tal que a intencionalidade total precisamente uma intencionalidade total na qual se incorporam as intenes dos atos parciais. Os atos parciais (juzo, suposio, dvida, questo, desejo, atos da vontade, etc) podem se combinar de mltiplas formas para constiturem um ato global. Na combinao, fundante sempre ser o ato que determina o contedo do ato fundado. Por exemplo, a partir da verificao de um estado-de-coisas, pode sobrevir uma alegria. Nesse sentido, o juzo acerca de um estado-de-coisas ato fundante da alegria acerca do estado-decoisas.63 4 O Ego e a experincia de outro64 As Meditaes cartesianas, editadas em 1931 em lngua francesa e s em 1950 em alemo, so uma reelaborao dos Discursos parisienses, ou seja, das conferncias que Husserl realizou em Paris em 1929. Nas cinco meditaes, Husserl retoma a pretenso cartesiana, manifestada por Descartes na sua obra Meditationes de prima philosophia (1641), de elaborar uma nova cincia universal dotada de fundamento absoluto, ou seja, imune a qualquer objeo de carter ctico. A nova cincia dever fundar-se na evidncia, isto , na experincia direta do ente, daquilo que existe. Esta evidncia representada pelo ego puro ou transcendental, cuja descoberta o fruto da reviravolta subjetiva iniciada pela obra cartesiana. Husserl reafirma que a epoch no modifica em nada a intencionalidade da conscincia. O dado originrio e indubitvel permanece sendo o fato de que o objeto est presente conscincia e no uma parte sua. E visto que tudo o que dado dado conscincia, este constitudo no seu ser pela conscincia que se torna, porm, enquanto pura, a nica realidade originria, enquanto o mundo depende dela geneticamente como produto da sua constituio (no construo) a partir dos atos da sua intencionalidade. Assim, o pai da fenomenologia postula um Idealismo Transcendental65 enquanto defende a anterioridade e a63 Cf. Hua XIX/1, V, 18, p. 418. 64 P. Ricoeur, em seu texto La cinqume mditation cartsienne ( Lcole de la phnomnologie. Paris: Vrin, 1986, p. 196-225) indica que a extenso da quinta meditao cartesiana de Husserl (to longa quanto as quatro demais meditaes juntas) atesta a importncia da experincia do outro na Fenomenologia de Husserl. a pedra de toque da Fenomenologia transcendental. 65 Sobre o Idealismo Transcendental, veja-se Ideen I, 41 em Hua I. Fica por verificar se constituio signifique a criatividade da conscincia ou modo, condio na qual a conscincia apreende um objeto como tal. Cf. Pancaldi, M.; Trombino, M.; Villani, M. Atlante della filosofia: gli autori e le scuole, le parole, le opere.

originariedade da conscincia. A auto-evidncia se mantm independentemente da experincia do mundo, que apenas uma possibilidade. Entretanto, tambm acaba expondo-se ao solipsismo transcendental,66 ou seja, impossibilidade de conceber algo verdadeiro existente fora do prprio sujeito. A objeo, segundo Ricoeur, o resultado lgico da reduo realizada na quarta meditao: tudo incorporado via intencional do ego concreto; o sentido do mundo acaba sendo unicamente a explicitao do ego, a exegese da sua vida concreta. O monadismo absorve toda a alteridade em mim mesmo: todo sentido nasce dentro de (in) e a partir de (aus) mim.67 Husserl s sair do solipsismo elaborando o importante conceito de alter ego, ou seja, de um segundo ego que, mesmo remetendo ao sujeito no que se refere ao seu sentido, acaba tendo uma existncia objetiva no mundo real. Portanto, a partir do ego mnada se desenvolve a possibilidade de pensar e conhecer os outros sujeitos, os quais vo, enfim, formar a comunidade intermondica, a partir da qual resultar o mundo objetivo. A experincia de um mundo obra de um ego inserido na conscincia de uma comunidade de sujeitos em conscincia recproca da harmonia dos seus fluxos de experincia. Ele busca, assim, numa filosofia da intersubjetividade, o fundamento superior da objetividade que Descartes encontrou na veracidade divina. Na quinta das suas Meditaes Cartesianas, Husserl aborda o problema da experincia do outro como objeo ao solipsismo e, assim, apresenta uma teoria transcendental da experincia do outro. Pensamos que, ao fazer tal, o Autor tambm apresenta, conseqentemente, uma teoria transcendental do mundo objetivo e uma teoria transcendental do eu primordial, pois no tem sentido falar de um ego destitudo da experincia de um alter ego e de um mundo natural como estrato subjacente. Vale entretanto lembrar, como observa Pedro M. S. Alves, que o intento da Fenomenologia no indicar provas da existncia de um outro sujeito, ou do mundo em geral, mas explicitar o sentido dos actos intencionais em que um outro sujeito visado e posto como existente.68Milo: Hoelpli, 2006. 648p. Disponvel parcialmente em: http://books.google.com.br/books?hl=ptBR&id=KwNdfj_QwPAC&dq=trombino+atlante+della+filosofia&printsec=frontcover&source=web&ots=dLC9wSTPv&sig=m6pC3_j9j-fPpQzEk2O6Eld-ibo#PPP5,M1 Acessado em: 09Maio2008. 66 O solipsismo, dificuldade na qual a filosofia caiu, especialmente a partir de Descartes, ao ter realizado a separao entre corpo e mente (corpus e mens), consiste na incapacidade de estabelecer relao direta entre os estados de experincia interiores e pessoais e o conhecimento objetivo de algo para alm deles, ou seja, do mundo e do outro. 67 tout sens naisse dans (in) et partir de (aus) moi. Ricoeur, P. La cinqume mditation cartsienne. Lcole de la phnomnologie. Paris: Vrin, 1986, p. 198. 68 Em seu estudo Empatia e ser para outrem, publicado na revista Phainomenon, Pedro M. S. Alves parte do significado da experincia de um alter ego para analisar os conceitos de ser-para-outrem e de empatia para Sartre e para Husserl. Para tal, vale-se especialmente da quinta das Meditaes cartesianas de Husserl e de A transcendncia do ego (1936) e O ser e o nada (1943). Alves, P. M. S. Empatia e ser para outrem: Husserl e Sartre perante o problema da intersubjectividade. Phainomenon: revista de fenomenologia, Lisboa, n. 12, p. 123-

Pela epoch fenomenolgica, reduzo-me aos meus estados de conscincia puros. No entanto, os outros no so simples representaes em mim. Abstraindo do problema dos crebros numa cuba de Hilary Putnam,69 tambm exemplificado na srie de filmes Matrix, os outros esto para alm de mim. Como possvel, ento, estabelecer uma relao entre os estados de conscincia e o que est para alm deles? Husserl afirma que sobre o fundo do nosso eu transcendental se afirma e se manifesta o alter ego.70 Contudo, como o prope Alves: Como possvel uma doutrina da constituio do alter ego como um ser para si, se constituir significa reenviar esse para si ao para mim da minha experincia?71 Logo, pergunta como o sentido do alter ego se forma em mim, dever-se-ia contrapor esta outra: como o sentido do ego se forma em mim a partir do sentido do alter ego? Nossa tese de que perceber a si mesmo como um ego indissocivel de perceber um alter ego. Se verdade, como afirma Ricoeur, que o outro apenas um sentido logicamente secundrio, porque constitudo em mim e a partir de mim, tambm logicamente verdade que no posso dissociar o sentido de ego do sentido de alter ego.72 Invertendo a interpretao sartreana assuntada por Alves,73 poderamos dizer que o problema da autoconscincia deve ser formulado e tratado no horizonte do problema da alteridade. O outro percebido como correlativo do meu cogito. percebido como regendo psiquicamente o corpo fisiolgico que lhe pertence, como sujeito para o mundo no qual est, e, por isso mesmo, como algum que tem experincia de mim como eu tenho a experincia do mundo e, nele, dos outros.74 Logo, da mesma forma como a conscincia, em intencionalidade, constitutiva de, a conscincia do outro (pressuposta como anloga minha) -me constituinte. No me constitui, pois equivaleria a afirmar que me constitui nele, mas sim -me constituinte, pois me constitui em mim mesmo. Assim, preciso analisar e descrever as estruturas intencionais nas quais a existncia dos outros se constitui para mim no contedo que preenche as suas intenes e eu mesmo me constituo no espao de tal preenchimento. O que meu? Pertence-me, primeiramente, o meu ser concreto na qualidade de146, 2006, p. 125. Conforme tambm p. 127-128. 69 Putnam, H. Reason, truth, and history. Cap. 1: Brains in a vat. Cambridge: Cambridge University Press, 1981, p. 1-21. Disponvel em: http://www.cavehill.uwi.edu/bnccde/PH29A/putnam.html Acessado em: 14Maio2008. 70 MC, 42, p. 116. 71 Alves, P. M. S. Empatia e ser para outrem: Husserl e Sartre perante o problema da intersubjectividade. Phainomenon: revista de fenomenologia, Lisboa, n. 12, p. 123-146, 2006, p. 124. 72 Cf. Ricoeur, P. La cinqume mditation cartsienne. Lcole de la phnomnologie. Paris: Vrin, 1986, p. 202. 73 Cf. Ibidem, p. 129. 74 MC, 43, p. 117.

mnada. A seguir, a esfera da intencionalidade. Nela, segundo Husserl, tenho experincia do outro numa operao de transposio por analogia. Por outro lado, a experincia do outro acaba sendo uma oportunidade para a conscincia de mim mesmo. Ao contrrio da tese husserliana, a intuio fundamental de Sartre de que o outro mediador para a minha prpria autoconscincia. Adquiro conscincia de mim mesmo por meio da conscincia de meu devir-objeto para outrem.75 Se realizarmos a reduo de tudo o que estranho ao eu, permaneceremos na esfera de pertena do eu prprio, quilo que me prprio como resduo de uma epoch que retire do mundo tudo o que me estranho. O resduo de tal abstrao a natureza que me pertence. Primeiramente, o meu corpo orgnico (Leib), que se distingue dos demais corpos precisamente por ser orgnico, por ser o nico corpo de que eu disponho de uma maneira imediata assim como de cada um dos seus rgos.76 A seguir, pela atividade perceptiva, tenho (ou posso ter) a experincia de qualquer natureza, inclusive do meu prprio corpo. O resduo , segundo Husserl, um eu psico-fsico com corpo, alma e eu pessoal, integrado nesta natureza graas ao seu corpo.77 Assim, Husserl pretende superar o dualismo: a esfera de pertena uma unidade psico-fsica, mas que se percebe em dualidade de corpo (orgnico) e alma (conscincia). Entretanto, o mundo, existente para mim enquanto objeto das minhas intenes, inerente ao meu ser psquico. O mundo das entidades objetivas em geral, e inclusive o meu corpo enquanto me percebo a mim prprio como um ser do mundo, inerente minha conscincia como objeto das intenes do ego transcendental. A esfera de pertena ou ego , antes mesmo de qualquer determinao, percebida como um horizonte. Sem me objetivar, dou-me conta de sempre ter estado a numa intuio original. No dizer de Husserl: Sou-me presente com um horizonte aberto e infinito das propriedades internas ainda no-descobertas.78 Sou-me antecipadamente presente. Portanto, pode-se dizer que a conscincia a prpria apercepo da presencialidade. autopresencialidade e auto-pertena, antes de qualquer explicitao e determinao. A explicitao da percepo de si prprio, do meu ego concreto, se d sob a forma de uma infinidade aberta da corrente da conscincia, infinidade de todas as minhas

75 Alves, P. M. S. Empatia e ser para outrem: Husserl e Sartre perante o problema da intersubjectividade. Phainomenon: revista de fenomenologia, Lisboa, n. 12, p. 123-146, 2006, p. 135. 76 Ao que parece, Husserl descreve a esfera de pertena partindo de um ego transcendental que percebe ter um corpo. MC, 44, p. 124. 77 MC, 44, p. 125. 78 MC, 46, p. 130.

propriedades:79 em primeiro lugar, das propriedades atuais (percepo daquilo que se efetua no presente); em segundo, das propriedades possveis (futuro); o passado descortinado apenas na recordao. Esta explicitao da corrente de conscincia (presente e, a partir dele, futuro e passado) faz parte da evidncia apodtica de como eu me percebo a mim mesmo transcendentalmente. Isto significa duas coisas: 1) o que eu sou estende-se na explicitao da corrente da conscincia temporal; 2) a conscincia a explicitao da temporalidade. No pargrafo 48, Husserl declara que se pode estabelecer uma distino entre os modos de conscincia que me pertencem e os modos da minha conscincia de mim prprio,80 a partir da oposio que se pode realizar entre o ser que me prprio e qualquer outra coisa. O ego prprio, o Si a implicado, constitudo no interior da esfera da minha pertena primordial, surge como unidade psico-fsica, como um eu pessoa, mas tambm como um sujeito de uma vida intencional concreta, sujeito de uma esfera psquica que se refere a ela prpria e ao mundo.81 A conscincia, neste sentido, a esfera psquica auto-referida, mas tambm referida ao mundo apercebido como alter, como estranho. O mundo e o outro integram-me enquanto os percebo num acoplamento original, mas em nenhum momento o eu psico-fsico primordial se confunde, quer me viro ativamente para mim ou no. O outro aparece fenomenologicamente como uma alterao, uma modificao do meu eu; entretanto, o eu s adquire a caracterstica de ser meu graas ao acoplamento que os ope. Numa palavra, a conscincia minha por se opor ao outro. 82 Assim, cada compreenso de outrem que efetuo cria novas possibilidades de compreenso e, dialeticamente, cada compreenso efetuada desvenda a nossa prpria vivncia psquica na sua semelhana e na sua diversidade. Poder-se-ia mesmo dizer que as potencialidades do eu se concretizam em acoplamentos e que estes, por sua vez, tornam possveis novas potencialidades.83 Considerando que o meu ego s pode ser um ego que possui experincias do mundo se estiver em relao com outros ego, seus semelhantes, se for membro de uma sociedade de mnadas, os atos intencionais s so possveis numa comunidade intermondica. 84 Trago em79 Ibidem. 80 MC, 48, p. 134. 81 MC, 50, p. 141. 82 Cf. MC, 52, p. 147. 83 Cf. MC, 54, p. 153. 84 Mas como se d o estabelecimento da comunidade das mnadas? Primeiramente se d na percepo do ser comum da Natureza: o corpo do outro inseparvel de mim prprio enquanto o elemento determinante do meu ser prprio. O corpo do outro tem uma funo co-apresentativa, isto , tenho conscincia de outrem porque ele se revela num illic (ali) absoluto. Este illic inseparvel do hic (aqui) absoluto. a existncia do corpo dado a mim como illic que me permite percepcionar o meu corpo como hic, como corpo central, ponto zero. (Cf. MC, 55, p. 156-157). A Natureza, ento, constituda como identidade das multiplicidades. Esta estrutura -me dada originalmente como pertena. A co-apresentao estabelece uma identidade entre a minha

mim estruturas que implicam a co-existncia de outras mnadas.85 Ao explicitar o que me prprio, aquilo que me pertence, acabo compreendendo no prprio o no-prprio. Por analogia, o no-prprio adquire o seu sentido. Ainda que permanea como verdadeiro que tudo o que existe para mim s pode extrair o seu sentido existencial de mim, o solipsismo dissipado.86 A conscincia de mim prprio s possvel graas a esta comunho espiritual com o ser.87 a penetrao intencional de outrem na minha esfera primordial. A existncia de uma mnada constituda em mim como estranha estabelecendo uma comunidade em mim, mnada primordial, a partir da qual o mundo objetivo estabelecido.

natureza primordial e a natureza representada pelos outros. Secundariamente, o estabelecimento da comunidade das mnadas se d na percepo do outro como um corpo constitudo no interior da minha esfera primordial. Constituo em mim um outro eu, na minha mnada uma outra mnada graas verificao concordante da constituio aperceptiva (Cf. MC, 55, p. 160). A verificao concordante estabelece a normalidade e, a partir dela, as anomalias e, inclusive, a animalidade. Progressivamente, todo o mundo da objetividade constitudo. 85 Cf. MC, 60, p. 176. 86 Cf. MC, 60, p. 189. 87 MC, 56, p. 164.