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Universidade Estadual de Maringá 26 e 27/05/2011 1 A DITADURA MILITAR NA HISTÓRIA DE TABAJARA RUAS E FERNANDO GABEIRA VILLWOCK, Aparecida de França (UNIOESTE) FIUSA, Alexandre Felipe (Orientador/UNIOESTE) Introdução O objetivo deste trabalho é analisar as obras O crepúsculo do macho de Fernando Gabeira (1980) e O amor de Pedro por João de Tabajara Ruas (1982) focalizando nelas a forma como os autores retratam a Ditadura Militar Brasileira (1964 – 1984). Neste processo de análise, procuramos entender a forma como os autores tratam o assunto da Ditadura Militar. Neste trabalho utilizamos fontes históricas sobre o período da Ditadura brasileira, embora se saiba que este regime alastrou-se para outros países Latino – Americanos. Os intelectuais que vivenciaram o período Ditatorial tinham consciência de que aquele era um período que iria ficar na história, por isso, num intuito de engajamento, os autores relatam suas vivências num tom de sentimentalismo ou subjetivismo. Esse recorte histórico é evidenciado ao início e ao fim dessa forma de governo, que foi a Ditadura Militar no Brasil com suas consequências para as futuras gerações. Destacamos aí o senso crítico do narrador em relação à história oficial, contextualizando o papel da elite e focando a narrativa na visão dos oprimidos que é um aspecto relevante das obras em análise. Após a análise, registraremos uma breve conclusão, oriunda da revisão bibliográfica efetuada da análise. A abordagem a esse período histórico é, segundo nossa visão, uma das formas de construir uma consciência social e histórica crítica e a possibilidade de rever o passado sob outras óticas do que aquelas oficiais que, devido ao próprio regime político do momento, impedia o registro das vivências pessoais que se revelassem contrárias às normas vigentes.

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Universidade Estadual de Maringá 26 e 27/05/2011

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A DITADURA MILITAR NA HISTÓRIA DE TABAJARA RUAS E

FERNANDO GABEIRA

VILLWOCK, Aparecida de França (UNIOESTE)

FIUSA, Alexandre Felipe (Orientador/UNIOESTE)

Introdução

O objetivo deste trabalho é analisar as obras O crepúsculo do macho de

Fernando Gabeira (1980) e O amor de Pedro por João de Tabajara Ruas (1982)

focalizando nelas a forma como os autores retratam a Ditadura Militar Brasileira (1964

– 1984). Neste processo de análise, procuramos entender a forma como os autores

tratam o assunto da Ditadura Militar. Neste trabalho utilizamos fontes históricas sobre o

período da Ditadura brasileira, embora se saiba que este regime alastrou-se para outros

países Latino – Americanos.

Os intelectuais que vivenciaram o período Ditatorial tinham consciência de que

aquele era um período que iria ficar na história, por isso, num intuito de engajamento, os

autores relatam suas vivências num tom de sentimentalismo ou subjetivismo. Esse

recorte histórico é evidenciado ao início e ao fim dessa forma de governo, que foi a

Ditadura Militar no Brasil com suas consequências para as futuras gerações.

Destacamos aí o senso crítico do narrador em relação à história oficial,

contextualizando o papel da elite e focando a narrativa na visão dos oprimidos que é um

aspecto relevante das obras em análise. Após a análise, registraremos uma breve

conclusão, oriunda da revisão bibliográfica efetuada da análise. A abordagem a esse

período histórico é, segundo nossa visão, uma das formas de construir uma consciência

social e histórica crítica e a possibilidade de rever o passado sob outras óticas do que

aquelas oficiais que, devido ao próprio regime político do momento, impedia o registro

das vivências pessoais que se revelassem contrárias às normas vigentes.

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A Ditadura Militar brasileira pelo viés literário e histórico.

A Ditadura Militar Brasileira tem sido objeto de muitas produções histórico

literárias, nas quais se revelam algumas de suas principais características. Desse modo

podemos definir a Ditadura como atos de tortura, violência política, perseguições e

mortes, imputados pelo poder ditatorial dominante a certos políticos, intelectuais,

estudantes, artistas e trabalhadores que não comungam com as ideias do regime

imposto.

Esses fatos foram fomentados pelo realismo político da época e que em pouco

tempo mostrou sua verdadeira face. A releitura da história pela ficção traz a

possibilidade de ter um novo olhar sobre as “verdades” já consagradas, dando ênfase a

novas discussões e embates, as quais podem revelar um novo ponto de vista crítico

sobre a relação de um fato histórico brasileiro.

Os elementos de uma e outra área da história e literatura passam a conviver num

mesmo espaço de configurações e representações que entendê-las pode ser muito útil

para que a população brasileira possa imaginar outras perspectivas sobre o período da

Ditadura. Tais produções podem contribuir para que outras memórias da época possam

garantir um espaço de existência que a história oficial não lhes oportunizou durante o

Regime Ditatorial.

Com relação às obras selecionadas para nosso estudo, O Crepúsculo do Macho e

O amor de Pedro por João são produções que se voltam restritamente ao período

histórico-político dos anos de chumbo1, período cujas características evidenciam lutas,

dor, sofrimento e solidão. Resumidamente o regime militar brasileiro dos anos de 1964

a 1984 foi iniciado com um golpe que afastou o Presidente da República João Goulart

para assumir o poder o militar e político Marechal Humberto de Alencar Castelo

Branco. Este implantou um regime militar severo e autoritário, coordenando todas as

decisões políticas do país. Historicamente esse regime durou até a eleição de Tancredo

1 Os Anos de Chumbo foi o período mais repressivo da ditadura militar no Brasil. O período se destaca pelo feroz combate entre a extrema-esquerda, e o aparelho repressivo policial-militar do Estado, apoiado por organizações paramilitares e grandes empresas, tendo como pano de fundo, o contexto da Guerra Fria.<http://pt.wikipedia.org/wiki/RegimemilitarnoBrasil>

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Neves, em 1985. Nesse contexto, utiliza-se a figura de um ditador como símbolo de

autoritarismo dando margem à confusão. As características predominantes de repressão

são dadas por meio da censura aos meios de comunicações, com prisões arbitrárias,

sequestros, torturas, assassinatos e, também, o exílio. Spindel corrobora para a

compreensão, afirmando que

Os regimes autoritários são regimes políticos ditatoriais onde as liberdades individuais encontram-se cercadas em nome de um difuso conceito de segurança nacional. Eles não são como os regimes totalitários, portadores de uma ideologia definida que serviria de base para a construção de uma nova sociedade e tampouco estão interessados numa grande mobilização popular que lhes de suporte. (SPINDEL, 1984, p. 36)

O autoritarismo que Spindel mostra é o uso e o abuso do poder por um grupo de

militares a certa esfera social que, sem liberdade obedecem a ordens duras e exigentes,

para não correr o risco de ser exilado para qualquer outro lugar do mundo. Eles contam

suas experiências do exílio, a fim de preservar a memória desse período. A abordagem

que Gabeira e Ruas fazem a este período é restrita ao contexto do exílio, ao passo que

eles mostram detalhadamente as particularidades sórdidas dos personagens.

Segundo Gilmar Henrique da Conceição (2003, p. 30), o Brasil foi o primeiro

país Latino-Americano a sofrer um golpe militar e um dos últimos a buscar a abertura

política. Pois apesar da Ditadura Militar ser constantemente ofensiva Conceição (2003)

propõe uma reflexão ainda mais profunda sobre o período histórico brasileiro, pois

consiste em um momento histórico de difícil compreensão. Isso se dá porque até hoje

vivemos as consequências das ações aí ocorridas. Outro problema para sua compreensão

refere-se à questão do povo brasileiro não ter, em sua cultura, o hábito de interessar-se

pelas questões políticas que constituíram a atual situação.

Durante a administração do Presidente João Goulart (1961 - 1964) o Brasil não

se encontrava em boas condições, a economia permanecia instável com a taxa

inflacionária elevada, sem mensurar os inúmeros problemas estruturais que o país

apresentava. Como medida econômica de caráter nacionalista de maior intervenção do

Estado na economia, foi transferido o poder de João Goulart aos militares civis em 31

de março de 1964. Os militares assumiram a Presidência da República com “intuito” de

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“organizar” a sociedade que estava “descontrolada” em seus aspectos sociais, políticos e

econômicos. Para o senso comum é papel dos historiadores pensarem no legado deixado

por esse autoritarismo e, se há retrocesso, é preciso esquecer o passado e correr atrás do

prejuízo. Contudo, muitos estudiosos remetem não só aos historiadores o papel de

compreender este período de caos e desordem, mas também aos interessados no futuro

do país. Lembra Soares (1984, p. 2), que

No que toca o sistema político, o regime militar deixou um legado bastante negativo. O amordaçamento das instituições e as restrições as liberdades públicas não geraram o efeito utópico, desejado pela extrema direita, de silenciar toda voz de oposição no país e produziram um efeito perverso para a cultura política e a vida pública do Brasil.

A Ditadura Militar é uma forma de governo no qual o poder político é

controlado, exclusivamente, por militares. A atuação dominante não se deu apenas nas

diretrizes políticas, mas também, no controle das publicações, da educação propostas

nas escolas, na mídia, nas músicas, nas formas de pensar e até de falar sobre os mais

diferentes assuntos relacionados à sociedade. (FIUZA, 2006, p. 90)

Contudo a Ditadura Militar é pouco lembrada pela sociedade, pois hoje, se

questionarmos os jovens sobre este período, poucos, ou quase nenhum deles, sabe da

ocorrência desse Regime Ditatorial, embora muitos reflexos de nossa atual situação

econômica e social sejam consequências diretas desse período. É importante lembrar,

também, da atuação dos Estados Unidos no desfecho da trajetória política do governo

militar brasileiro, pois

[...] a questão da participação de empresas multinacionais e de governos estrangeiros, particularmente o dos EUA, foi objeto de muitas discussões, mas por falta de informações e acesso a documentos durante muitos anos não foi pesquisada. Não há a menor dúvida de que muitas multinacionais, assim como o governo norte-americano apoiaram o golpe. Em muitos setores políticos, jornalísticos e acadêmicos, tanto no Brasil quanto nos EUA, predomina a crença de que a participação norte-americana foi intensa e decisiva. (SOARES, 1984, p. 24)

Foi um alívio para os americanos ao verem o Brasil não se tornando uma cópia

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de Cuba, liderada por Fidel Castro, com a atuação de uma guerrilha armada. O sistema

econômico capitalista contribuiu fortemente para a atuação militar, pois são

predominantes o controle a propriedade privada. Mencionar que o movimento realizado

pelos militares foi uma objeção restritamente capitalista seria estar, de certa forma,

sendo simplório, pois é nítida a permanência dos valores, crenças e culturas que se

esgotam no dinamismo do “lucro”, de sempre ter mais, mesmo que tenha que passar por

cima de milhões de pessoas para conseguir alcançar esta meta.

Historicamente o Estado abre uma brecha para uma nova política se instalar e,

assim, governar o país da forma que melhor lhe convir. De acordo com Spindel (1984,

p. 8), podemos afirmar que

Todo regime político responde aos interesses de uma determinada classe social; o Estado é a Instituição que permite a uma das classes exercer seu poder sobre as demais classes da sociedade. Por este motivo, o poder do ditador não emana de sua própria figura e nem é irrestrito dentro dos limites estabelecidos pelos interesses econômicos desta classe social da qual ele é o representante.

Sabemos que a Ditadura Militar foi e vem sendo pauta para muitos estudiosos

estruturar suas pesquisas, cujas análises buscam mostrar sempre algo de novo, de

inédito de um momento que se tem muito pra falar, mas que pouco é falado, por isso

que ousamos apontar para esta temática como inesgotável, e pouco permeável, porém o

pouco que se sabe, muito se aprofundou.

O crepúsculo do macho e O amor de Pedro por João: relatos ficcionais sobre o

regime ditatorial brasileiro.

O crepúsculo do macho e O amor de Pedro por João são produções que se

constituem por meio da História e Ficção. Os autores adotam uma escritura que

privilegia diferentes perspectivas daquelas em que tais fatos aparecem configurados

pelo discurso histórico hegemônico. De acordo com o ano de produção das obras

mencionadas os autores iniciaram com um resgate que, em geral, se faz do passado,

buscando evidenciar o que foi mais marcante para o momento histórico. Ao final dos

anos 70 percebemos que a memória trouxe a possibilidade de novos olhares e novas

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discussões em torno dos discursos políticos contextualizado pelas consequências que a

Ditadura Militar brasileira trouxe às pessoas que vivenciaram este regime.

Quando conseguimos identificar as configurações discursivas jornalísticas e

testemunhais de Gabeira e de Ruas, a compreensão das suas particularidades tornam-se

mais visíveis. Isso abre possibilidades ao debate, especialmente, para aquele sujeito

crítico e conhecedor do cenário político e cultural do país, assim nessa perspectiva é

importante conhecer também função da esquerda socialista e suas reivindicações.

Grosso modo, as características presentes em ambos os textos intercalam-se

entre história e ficção, ora é nítida a história enquanto instrumento capaz de passar os

conhecimentos de geração em geração, ora de forma muito clara a construção da

história por meio da ficção.

O contingente de pessoas que passaram pela Ditadura Militar brasileira é de fato

muito grande, pois foram vinte e um anos de Regime Militar que se constituiu em um

controle rígido, humilhante e desonesto. No final das décadas de 70 surge um

sindicalismo forte com o processo de abertura que foi consolidado na lei da Anistia em

1979.

Os relatos feitos por Gabeira e Ruas são extremamente relevantes para constituir

a memória sobre o período da Ditadura no Brasil. As memórias, nesse caso, os relatos

testemunhais são chamados por alguns críticos, de literatura de sintoma ou de

engajamento, pois eles flagram o sentimento de opressão e angústia característico da

intelectualidade dos artistas.

O romance O crepúsculo do macho inicia-se caracterizando a capital da Suécia:

Estocolmo:

Cada vez que os cavalos pisavam a entrada do desfiladeiro, nossa angústia era precipitada pelos efeitos sonoros, anunciando que, a qualquer instante, a lona do carro seria crivada de flexas. Pois bem, é essa a angústia que sinto, quando entro na plataforma da estação central de Estocolmo, para ocupar o trem que vou dirigir rumo ao sul da cidade. (GABEIRA, 1980, p. 11).

A narrativa conta as aventuras do exílio, no qual o narrador assume o nome de

Fernando Gabeira que conduz o trem da estação de Estocolmo. Ele inicia mostrando

como os exilados são tratados pelas pessoas nos lugares públicos: “Estrangeiro do

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inferno, volte para o seu país”. (Gabeira, 1980, p.11) O trem partia de Estocolmo para a

Argélia, nesse curto percurso existem tempos e espaços variados, ora o narrador conta

um acontecimento da Suécia, ora ele já menciona algo sobre a realidade de Argel, assim

os fatos se interpõem mostrando um narrador em constante movimento.

O pano de fundo que configura o romance são as grandes dificuldades

enfrentadas pelos exilados nos chamados anos de chumbo da história que não

contempla, apenas, o Brasil, mas se amplia para países vizinhos.

Contamos com uma literatura baseada em fatos reais, cuja história retrata as

injustiças, os horrores, as contradições e as lutas de grupos sociais que objetivavam uma

revolução. Tudo isso partia de pessoas que não estavam contentes com a situação

econômica, política e cultural em que o seu país se encontrava.

O crepúsculo do macho (1980) é uma narrativa meditada a partir da experiência

de Gabeira no exílio, o qual esteve em contato com a luta armada e a militância em

organização clandestina. Torna-se necessário conhecer a obra anterior de Gabeira O que

é isso, companheiro? Que foi considerado um verdadeiro clássico do romance-

depoimento brasileiro, pois o próprio Gabeira diz que O crepúsculo do macho é como se

fosse uma continuação da obra anterior.

A obra O crepúsculo do macho é centrada no próprio Gabeira que conduz a

ordens dos acontecimentos em sua narração. O autor destaca as ameaças para as

centenas de pessoas vitimadas pela Ditadura brasileira, como as doenças, a falta de

comida, água, roupas, cobertores dentre outros elementos básicos para a sobrevivência

humana. O narrador é o maquinista, e conforme sua ordem psicológica vai contando as

cenas do passado que era carregado pelo trem da memória. (SILVA, 2006, p. 110).

Os fatos contados pelo narrador na viagem pelo metrô eram sempre relacionados

ao Brasil e aos brasileiros. Na transição por vários lugares diferentes Cuba, Havana,

França, Alemanha, o narrador destaca a personagem Vera Magalhães como sua atração

física por ela:

Vera resolveu me confiar um, segredo: dentro de pouquíssimo tempo começaria a andar. Já se sentia segura para abandonar a cadeira de rodas. Que bom saber aquilo no meio da noite, já com as luzes se apagando nas casinhas brancas. Que bom ficar ali, silenciosos,

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pensando que nosso amor era melhor do que muitos remédios. (GABEIRA, 1980, p. 25)

O narrador oscila entre a sua narração e as memórias mostrando-se

detalhadamente suas andanças pelo exílio. Os personagens, não ficavam muito tempo

em um só lugar, mesmo porque ocorriam muitas violências contras os estrangeiros e,

principalmente, contra as pessoas ligadas a política esquerdista. Assim, o narrador busca

revelar a relação social que os personagens construíram durante o período do exílio. A

narrativa faz uma viagem histórica pelas estações da Suécia, pelo golpe do Chile e uma

rápida passagem por Portugal, destacando a Revolução dos Cravos, complementando

teoricamente a Ditadura Brasileira.

Não seria meio incomodo viver como norte-americano no coração do primeiro país socialista do continente? Não iriam estar constantemente sob suspeita de pertencerem a CIA? Essas preocupações para eles pareciam secundárias. Buscavam apenas um território onde reinassem a fraternidade e a justiça. Se podiam encontrá-la assim tão perto, bastando cruzar para o Canadá e tomar o avião para Havana, tanto melhor. Martha não queria dançar em Nova Iorque nem Katie queria ensinar nos Estados Unidos. Era preciso dançar problemas concretos de um país latino, em vias de afirmar sua independência, e era preciso ensinar mais do que as primeiras letras, mas toda uma nova visão de mundo, as lutas, os cravos de Portugal. (GABEIRA, 1980, p. 53)

Ao final, vemos o narrador, Gabeira, expondo sua emoção pela sua liberação e

possível retorno ao Brasil com a Lei da anistia, falando da angústia em voltar ao Brasil,

à pátria amada.

Cheguei e aqui vai o primeiro cartão. Centenas de pessoas esperando. Felicidade geral e uma banda de música. No avião em Paris entrou um quadro de futebol e os amigos que me carregaram no aeroporto ao lado de uma imensa taça esportiva. Vi o filme na televisão ainda ontem. O repórter me perguntava o que iria fazer de agora em diante e respondi assim: não tenho a mínima ideia. Beijos! (GABEIRA, 1980, p. 245)

O foco narrativo da obra é demarcado pela configuração do Gabeira como

narrador em primeira pessoa que propõe um debate estabelecido no cenário político e

cultural do país. No desenvolvimento dessa obra Gabeira expressa sua ideologia sob o

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ponto de vista de luta e divisão de classes, culminando em discutir as consequências do

capitalismo em relação ao socialismo, sintetizando essa temática como íntima em sua

produção. Gabeira demarca seu encontro com o passado, cujo mecanismo de apoio é a

organização de suas experiências através da memória. O cenário que caracteriza sua

obra é o da luta armada de uma sociedade massacrada pelas ordens rígidas de militares.

A expressão crepúsculo2 no título da obra é uma metáfora criada pelo autor, pois a

palavra refere-se ao momento obscuro que a sociedade brasileira estava passando que se

materializa em síntese na temática que Gabeira expõe no interior da obra. A dureza do

cárcere não conseguia embriagar o coração dos exilados, pois, mesmo em contexto de

guerra, as paixões eram inevitáveis, é perceptível a paixão ou apego que o narrador

sente por Vera,

Nosso tempo na Argélia estava contado. Ficaríamos pouco, porque Vera também viajaria para a Europa. Um dia entenderíamos tudo aquilo, estudaríamos todos os seus detalhes para explicarmos melhor, dando um balanço do exílio. No momento, queríamos apenas namorar e trocar uns beijinhos sem que nos aborrecessem. Isso de ficar pouco nos países acabou nos deixando um pouco mais tolerantes com as coisas que não aprovamos (GABEIRA, 1981, p. 37).

No exílio as pessoas “perdiam” suas identidades, porque não se reconheciam

como brasileiros, e nem com as outras culturas, permanecendo, como estranhos,

negando-se a aderir ao que era novo. Todavia buscavam se adaptar dentro de seus

limites, o exílio era constituído por uma multidão de pessoas solitárias, perdidas, sem

consolo e sem esperança. Gabeira, como narrador, pontua sobre a falta de identidade das

pessoas mencionando, por exemplo,

O companheiro que cuidaria de nós era uma pessoa magra e alta, possivelmente um oficial do exército cubano. Seu nome era Gustavo, mas isso não tinha a mínima importância, pois nenhum deles usaria o nome verdadeiro naquelas circunstâncias. (GABEIRA, 1980, p. 40).

O narrador mostra mediante suas expressões que não era possível ter noção de

como se encontrava a situação dos exilados diante das (pseudo) organizações, o que 2 O crepúsculo nesse caso significa período que antecede o fim de algum período. Decadência, declínio e acaso.

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denota também sua falta de esperança quanto à volta ao Brasil, como se pode observar

no fragmento que segue:

Nosso grande medo era o de ficar fora do centro dos acontecimentos e perder com isto a oportunidade de aprender mais. O debate puro tinha seus limites. Muitos alemães saídos do movimento antiautoritário estavam completamente perdidos na sociedade. Eles se refugiavam no debate e na luta teórica por falta de oportunidades maiores. (GABEIRA, 1980, p. 115).

Tabajara Ruas foi, também, expatriado por envolver-se em partidos políticos e

para não ser preso, como muitos outros intelectuais, partiu. Ruas começou suas

andanças pelo mundo, tendo, então, de uma forma nada esperada a oportunidade de

conhecer outras realidades, como a do Uruguai, Chile, Argentina, Dinamarca, São Tomé

e Príncipe e Portugal. A obra O amor de Pedro por João (1982) narra a luta armada

brasileira contra a Ditadura, mostrando os extremos que os exilados enfrentam. A obra é

iniciada com o relato da chegada de Marcelo Oliveira na embaixada em Santiago no

Chile, onde se encontravam 580 pessoas exiladas, uma delas era Hermes, amigo de

Marcelo e a presença de cadáveres cobertos com lona preta. Esse grupo de pessoas

esperava ordens superiores para iniciar o exílio, no qual seriam mandados para países

diferentes. Um resumo da trajetória de Ruas nos é dado nas seguintes palavras de

Brancher (2007, p. 217).

O escritor brasileiro Tabajara Ruas viveu no exílio entre 1971 e 1981; em Copenhage, escreveu O amor de Pedro por João; nele retrata a trajetória (vivida por vários exilados brasileiros) de dois personagens que inicialmente vão para o Chile; após a queda de Allende em 1973, partem para o exílio na Europa onde vivem os paradoxos do exílio: ao mesmo tempo em que um incrível mundo se abria, também se apresentava distante pela condição de exilado, de estrangeiro.

Ruas utiliza a linguagem cinematográfica, o que não foi aprofundado nessa

abordagem, o foco narrativo é marcado por um narrador que não é personagem da

história, porém ele tem muita facilidade em narrar os sentimentos e os pensamentos dos

personagens. Permite-nos entendê-lo como um narrador que conhece intimamente seus

personagens, bem como o enredo.

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Toda a história decorre da troca incessante de lugares para se refugiar. Viver em

um país estrangeiro com hábitos alimentares, estilos de vida distintos e fortes diferenças

climáticas, longe da família e dos amigos em uma cultura diferente pode causar

isolamento e solidão. É preciso um grande esforço para compreender os hábitos e as

regras sociais do país de destino.

Os personagens Sepé e João Guiné fazem um longo trajeto, Sepé sai do norte do

Brasil para chegar a Santa Maria da Boca do Monte e João Guiné parte do extremo sul

do Chile com o mesmo destino. São nessas andanças que percebemos a descrição das

paisagens geográficas, como também, os diferentes dialetos dos estados brasileiros. As

ações dos personagens demonstram sentimento de solidão, ansiedade e inferioridade

dinamizado pela abordagem que Ruas faz em relação aos militantes.

Josias bebeu vários goles de cerveja, apanhou um cigarro do maço de Hollywood sobre a mesa. Escuro acendeu-lhe o cigarro. Sabia que o outro estava tenso, embora fizesse tudo para não demonstrar. (RUAS, 1982, p. 81)

Percebemos a atuação e a ação guerrilheira, a qual movimenta os personagens de

lugar em lugar, que se mostram, sempre, dispostos a encarar um novo cenário. A obra

fascina os leitores, pois Ruas relata o sofrimento do exílio, no qual ele consegue

adentrar nas subjetividades dos personagens dando vida as suas memórias. Isso pode ser

constatado no fragmento a seguir:

Apertou as mãos, a fome moveu-se no seu corpo. Barbaridade. Esse tiro atrofiou-lhe o cérebro. Nunca antes se sentira deprimido na vida. Também nunca antes levara um tiro que poderia arrancar-lhe a cabeça e nunca antes matara um soldado, muito menos dois soldados. Era demais. E nem sequer viram como eram, se havia medo ou ódio nos seus olhos quando as balas os derrubaram. Eram dois soldadinhos escuros, queimados de sol, cabeça chata, sub-alimentados e analfabetos, acostumados a prepotência e a crueldade. (RUAS, 1982, p. 84)

Em toda a história prevalece o convívio dos exilados, suas relações com a

população, seus sentimentos de medo, angústia, e as aventuras inesperadas, em meio a

um contexto catastrófico. Porém Ruas mostra que apesar de todas as controvérsias as

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pessoas buscam compartilhar o pouco que se tem com os companheiros, as atrações

amorosas, os amores passageiros, o sexo, as fofocas dentre outros fatos que temperam a

tumultuada vida.

Nego veio tá nervoso, pensa Marcelo, precisamos entrar em acordo logo. João Guiné passeia pela sala, se o guri do Josias estivesse aqui já tínhamos feito esse trabalhinho. Café também não tem mais, a Mara vem mais tarde, ela traz café e cigarro diz Hermes olhando firme para Guiné e Guiné sorri, senta na sua cadeira, coça o cavanhaque, vamos fazer uma pausa diz, assim não dá, precisamos clarear as idéias, tanto carro vai acabar dando engarrafamento de trânsito e tudo que queremos é fazer um trabalhinho rápido e limpo não é mesmo rapaziada? (RUAS, 1982, p. 86)

O autor incita o leitor, apresentando fatos com muitas reflexões sociais e

políticas que se caracterizam a partir de 1970, tornando-se mais acentuadas nos anos 80.

[...] quando começou a afastar-se em passos rápidos descobriu de repente que o medo estava dentro do seu estômago, movendo-se como um feto esverdeado. O estômago, porra. ‘Em operário e negro não percam tempo dando porrada na cabeça, o ponto sensível é o estômago’. O medo não o fazia suar nem tremer as pernas nem baixar a pressão. O medo dava-lhe náuseas, o medo escalava o esôfago, verde, apodrecido, cheirando mal, as pequenas mãos de aço e os olhos cegos, o medo o faria vomitar [...] (RUAS, 1980, p. 125).

Neste trecho o narrador faz menção ao medo que sente o personagem João

Guiné, um velho militante de esquerda, um negro que submerso nas ações políticas

sofre as consequências do momento. A figurativa descrição do medo mostra a realidade

dos exilados longe do Brasil no qual os indivíduos que ali estavam não tinham nenhuma

garantia de segurança, nem tranquilidade para refletir sobre as ações políticas, o que se

constata no fragmento a seguir:

- Atención, chilenos! - Este é o comunicado Número Uno de Las Fuerzas Armadas de Chile para o povo chileno. Desencadeamos a partir dessa madrugada uma operação militar contra os inimigos da pátria, em especial contra os mercenários estrangeiros que vieram a nossa terra derramar o sangue de nossos irmãos. A partir desse momento fica declarado o estado de Lei Marcial em todo o território chileno, já que o senhor Presidente da República não quis negociar nem aceitar as condições das Forças

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Armadas. A partir das doze horas será iniciado o toque de recolher. Todo cidadão que se encontra na rua será automaticamente preso. Todo cidadão que portar armas de qualquer espécie será fuzilado no ato. Repetimos: todo cidadão. (RUAS, 1982, p. 52)

Essas ações políticas buscavam vitimar os grupos de pessoas que eram excluídos

no exílio. Dentre as pessoas excluídas podemos destacar os homossexuais como os mais

citados e discriminados no interior da obra, as prostitutas e os negros. Ruas (1982, p.

108) expõe de forma muito clara a discriminação social existente nessa época,

Quando começou a briga foi que reparou que a maioria dos frequentadores era homossexual. Sentiu imediatamente um profundo – embora injusto – sentimento de fúria contra o proprietário do restaurante. Fazê-lo perder quase duas horas num bar frequentados por bichas era demais.

Outra discriminação que é muito recorrente na obra é em relação aos negros,

principalmente se fossem estrangeiros. É exemplificado quando se relata o contato de

um policial com Dorival na prisão no momento em que Dorival clama por um banho:

“Macaco não toma banho. E não me faz perder a paciência, crioulo, se não eu abro essa

jaula e te mostro com quantas bananas se faz um piquenique”. (RUAS, 1982, p. 173).

Por outro lado os exilados também se mostram preconceituosos e, além disso, enfrentam

as autoridades mesmo sabendo que muitas vezes o pagamento é a própria vida. Dorival

não fica na desvantagem e humilha o policial de dentro da prisão:

- Bicha. Tu não me engana com essa pinta não. Já te manjei sarará. Teu negócio é dar o rabo pros recrutas. Aposto que quem te enraba é o Catarina aí. Tá falando com macho, entendeu? Abre essa porteira que eu quero tomar banho. (RUAS, 1982, p. 173).

O exílio coincidiu com o momento em que Tabajara Ruas resolveu retratar sua

eloquência por meio da literatura, cujo momento é definido por Arrigucci (1979, p. 6)

“como um tempo de negação e reavaliação do passado, marcados por grande reflexão,

não somente pelos exilados (intelectuais e políticos), mas a sociedade como um todo”.

O romance de Ruas traz um vocabulário bastante informal, diríamos até, de

baixo calão, o que é considerado anormal para a sociedade em geral. Os exemplos de

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frases utilizadas trazem consigo um tom revolucionário e de personalidade forte e

decidida que contrasta com a liberdade de expressão.

Revolução é coisa de macho e de pobre, não desses menininhos bem falantes dessas bacanas metidas a santas ou então a falar palavrões em cada frase que dizem como se isso os tornasse mais independentes ou lhes dessem igualdade aos machos. (RUAS, 1982, p. 92)

As expressões são fortes, mas precisam ser destacadas, pois caracterizam o tipo

de linguagem que utilizavam os personagens de Ruas, no tocante “aqui estás, pois, filho

da puta. A salvo. Já pode deixar o medo derreter como uma barra de gelo, lentamente.

Vistes os cadáveres e estás aqui a salvo”. (RUAS, 1982, p. 9) Nesse discurso vemos a

forma como o funcionário da embaixada recebe Marcelo, caracterizando o autoritarismo

desrespeitoso no atributo do poder estabelecido pelos militares.

O que chama a atenção na obra é o capítulo seis (p. 121 – 147) em uma

passagem em que a personagem Ana Maria, mãe de Pedrinho, um menino de colo que

procura pelo marido, homem considerado comunista, capturado pelos ditadores e

certamente torturado até a morte. Ana Maria entra em um local escuro, um porão, onde

disseram estar seu marido, porém ela depara-se com um homem amarrado, sujo,

desidratado, mas que não era seu esposo.

O homem dobra o jornal com extremo cuidado, meticuloso e atento, o sorriso transformando-se em sarcasmo e humilhação recolhida, anda com dificuldade até a porta, joga de repente o jornal sobre a mesa, assustando Ana. Fechou a porta. A sala ficou em silêncio o tempo suficiente para ouvirem as pequeninas patas de aranha no piso frio. Vale deu passos compridos pela sala, mãos nas costas, cabeça baixa. Ana sentiu que ia desmaiar, mas resistiu ao receber contra o corpo a estremeção repentina de Pedrinho. (RUAS, 1982, p. 127)

Sovaco e Tadeu, dois personagens que representavam os militares, humilharam e

agrediram sexualmente a personagem que tentava resistir. Era uma mulher frágil e

honesta contra dois homens fortes e sedentos. Numa linguagem crua, o narrador

descreve a cena:

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Tadeu olhou para o vaso sanitário. Estava entupido, cheio até a borda. Na água imunda boiavam, ao lado de fezes e pedaço de papel, dois ratos mortos. Afundou o menino de cabeça no vaso sanitário. Ana mordeu o braço de Sovaco... – Agora é tua vez! Foi empurrado a cabeça dela para perto da água fedorenta, dos ratos mortos, do corpo de Pedrinho que se retorcia. A cabeça mergulhou ao lado da de Pedrinho, a água transbordou, um dos ratos caiu no piso, Tadeu chutou-o para um canto. (RUAS, 1982, p. 136)

Entretanto o sofrimento de Ana Maria não acabara na privada, Tadeu e Sovaco

eram mais maldosos do que se possa imaginar, aproveitando-se da situação. As ações

dos poderosos são relatadas sem rodeios pelo narrador: “Sovaco puxou a cabeça de Ana

Maria para perto do seu pênis. - Me chama de gostosão, puta, me chama de gostosão.

Tadeu ria, estridente. (RUAS, 1982, p. 137).

Outro momento que é marcante na obra de Ruas encontra-se no capítulo oito (p.

166 – 190), no qual o personagem Dorival, preso em uma cela a dias, implora por um

banho: “tudo que eu queria era tomar um banho” (RUAS, 1982, p. 171). Percebemos,

então, que faltavam coisas básicas a sobrevivência humana. Na prisão o soldado ouvia

uma voz que chamava

Aqui! Na cela 12. Pela janelinha gradeada espreitava a cara sinistra, suada, dum baita dum negrão. O negrão sorriu, cintilou um clarão branco na sua cara, o soldadinho se assustou mais. - Praça, seja camarada, me leva até o banheiro e deixa eu tomar uma ducha. Tô derretendo aqui dentro. (RUAS, 1982, p. 171)

“Ordens são ordens” e devemos segui-las, por isso que não podiam deixar os

presos ter nenhum tipo de liberdade, nem aquelas relacionadas à higiene pessoal, desse

modo o soldado diz a Dorival “acontece que tu tá em cana, crioulo, e malandro que é

malandro chia, mas não geme. Cala essa matraca e vai dormir” (RUAS, 1982, p. 173).

Nesta obra nenhum personagem é mais importante que o outro dentro do

romance, não há no interior da obra um personagem central, desse modo o romance gira

em torno dos acontecimentos. O que merece destaque, além dos acontecimentos, são as

menções que o autor faz a algumas personalidades revolucionárias da história: à Che

Guevara, Friedrich Engels, Karl Marx, Trotski dentre outros. (RUAS, 1982, p. 86)

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Ao final da obra a recorrência do exílio persiste na vida dos personagens sendo

destacado uma lista com os nomes para o próximo vôo e a direção que cada exilado iria

tomar, “Sepé esfregava as mãos, nervoso. O velho sorria enigmaticamente. Os

funcionários da embaixada aproximaram-se. Explicaram que os passageiros seriam

chamados um a um, conforme a lista. (RUAS, 1982, p. 266) Ruas utiliza de várias

estratégias narrativas para convencer o leitor, dar vida as memórias com descrições

detalhadas, enumeração de muitos personagens em suas relações sociais de momento,

etc.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo da narrativa para Gabeira é poder criar uma ficção mesclada com o

real, pois não há abstrações ou perdas, há uma identificação segura entre a realidade e o

documento escrito, sem que se busque uma verdade única, mas múltiplas possibilidades

de ver o passado pelo discurso.

Em Ruas percebemos um maior cuidado com a questão da estética literária ao

realçar em sua abordagem a verdade dos fatos por meio de uma linguagem

artisticamente construída. A memória está contida no próprio valor simbólico produzido

pelas pessoas no contexto em que as histórias acontecem. Acontece, então, que pela

memória são transmitidos os conhecimentos obtidos de uma geração a outra.

As abordagens dos relatos requerem análises como verdades históricas com

interesses ideológicos difundidos em tempos, espaços e culturas diferentes. De acordo

com Gabeira (1980, p. 246) enquanto muitos generais adotam hoje no Brasil poses

arrogantes e inflamam o peito para revelar que eles são os únicos autores pela gloriosa

“revolução de 1964”, ele evoca os mesmos acontecimentos, porém visto pelos olhos das

vítimas.

Assim Gabeira viu-se engajado na militância clandestina e armada depois de um

ritual de iniciação que ele considera, hoje, tocante e ridículo. Ele nos descreve o dia a

dia da clandestinidade, relembrando os mil problemas materiais que pontilham esse

mergulho revolucionário. Para os autores certos fatos têm poder de ultrapassar a ficção,

os quais parecem possíveis apenas no plano ficcional.

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Referir-se a memória requer colocar os leitores diante do passado e logo os

incitando as muitas lembranças, por vezes fortes e em muitos casos até constrangedoras

de momentos cruéis da história brasileira. Resgatando muitos sentimentos contraditórios

que afloram durante a leitura. Desse modo é possível considerar que qualquer criatura

pensante, na época, teria tido vontade de “descer” de tomar parte daquelas

manifestações contra um regime hediondo que se sustentava graças a um golpe de

estado que oprimia largos setores da sociedade e massacrava os trabalhadores do país.

(AGUIAR, 2001, p. 150)

Na visão de Fernando Gabeira a pergunta “o que é isso companheiro?” mostra-

se como o núcleo ideológico da temática, impossibilitando-se, assim estabelecer as

relações das demandas existenciais com as políticas estabelecidas entre aqueles que

desapontavam o Regime Militar. É notório que um período como o da Ditadura Militar

brasileira seja considerado como um momento obscuro da história, que busca

sistematicamente ser esquecido, mas somente, na decisão oficial de não acusar ninguém

e nem mesmo responder por aqueles que morreram. Com Silva (2006, p. 18) podemos

confirmar nossa hipótese:

A prática do esquecimento não é algo circunscrito somente a esse quarto de século que foi o período ditatorial, mas a muitos momentos da história da sociedade brasileira, a vários acontecimentos determinantes para a sua constituição. A prática social do esquecimento constitui-se, por si só, um problema sociológico de enorme relevância. No que se refere, portanto, as questões aqui levantadas, parece ser esta prática uma das chaves necessárias para a compreensão da atual configuração dos últimos vinte e cinco anos da sociedade brasileira.

A abordagem de Tabajara Ruas trata-se de um recorte obtido por meio da

memória do autor ao relatar os fatos de uma experiência bastante peculiar. Enfim, este

trabalho é uma mínima contribuição ao estudo de um aspecto da história brasileira

contemporânea. Não tem a pretensão de ser, de qualquer modo, conclusivo, porém de

ter a possibilidade de abordar a temática da Ditadura Militar da forma mais clara

possível.

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REFERÊNCIAS

AGUIAR, J. A. O astro da anistia. ALCEU - revista da PUC-RJ, Rio de Janeiro-RJ, v. II, p. 146-165, 2001. ARRIGUCCI JR, Davi. Achados e Perdidos: ensaios de crítica. São Paulo: Polis, 1979. BRANCHER, Ana. Políticas na exterioridade – notas sobre o exílio de escritores latinoamericanos. Revista Esboços nº 20 — UFSC. Disponível em: <http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/esbocos/article/viewArticle/10250 Acesso em: 17 out. 2010. CERRI, Luis Fernando. O ensino de história e a Ditadura militar – Curitiba: Aos quatro ventos, 2003. CONCEIÇÃO, G. H. O partido militar e as escolas do exército: a educação e a formação militar. 01. ed. Cascavel: EDUNIOESTE, 2003. v. 01. 193 p. FIUZA, A. F. Entre um samba e um fado: a censura e a repressão aos músicos no Brasil e em Portugal nas décadas de 1960 e 1970. Assis, SP: UNESP, 2006. (Tese de Doutorado em História). GABEIRA, Fernando. O crepúsculo do macho: depoimento / Fernando Gabeira. – 5a edição – Rio de Janeiro: Codecri, 1980. SILVA, Mário Augusto Medeiros da. Prelúdios e Noturno: Ficções, revisões e trajetórias de um projeto político. Campinas, SP: 2006. SOARES, Ismar de Oliveira. “Teoria y práctica de la comunicación: incidencia sobre los proyectos de educación para los medios en América Latina”, in CENECA, Educación para la Comunicación, Santiago, 1984. p. 273-289 SPINDEL, Arnaldo. O que são ditaduras. Editor brasiliense, São Paulo. 1984. RUAS, Tabajara. O amor de Pedro por João. Porto Alegre, L&PM, 1982.