A Dispersão Do Pensamento Psicológico

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  • 7/23/2019 A Disperso Do Pensamento Psicolgico

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    BOLETIMDEPSICOLOGIA, 2008, VOL. LVIII, N 129: 147-160

    CARMEM LCIA BRITO TAVARES BARRETOUniversidade Catlica de Pernambuco

    HENRIETTE TOGNETTI PENHA MORATOInstituto de Psicologia da USP

    RESUMO reconhecida a extensa disperso sofrida pela Psicologia, decorrente da utilizao de perspectivasepistemolgicas, metodolgicas e conceptuais diversas. Esse processo expressou-se por meio da produo dediferentes teorias e sistemas que marcaram a primeira metade do sculo XX. Tal situao motivou, segundo

    Penna (1997), uma intensa crise dissertada por alguns psiclogos, objetivando alcanar a unidade do saberpsicolgico, principalmente pelos integrantes do movimento behaviorista. No presente texto, centrado naproblemtica da disperso, sero focalizados os diversos sistemas e projetos que caracterizam a Psicologia, aemergncia da Psicologia como cincia independente, delineando diferentes trajetos para os estudos psicolgicos,envolvendo mtodos e conceitos que evidenciam a disperso do campo da Psicologia como irremedivel.

    Palavras-chave:Disperso do pensamento psicolgico; teorias e sistemas da Psicologia; Histria da Psicologia

    ABSTRACT

    THE DISPERSION OF PSYCHOLOGICAL THINKINGThe extended dispersion as a mark in the Psychological thinking is well known, due to the employment ofdifferent epistemological, conceptual and methodological perspectives. Such a process has been expressedthrough the production of many and diverse theories end systems, mainly in the first half of the XX century.This situation resulted in an intense crisis that has been discussed by some historical psychologists, with theaim to think about the so-called unity for the Psychological knowledge, mainly among the participants of thebehavioral movement. In this present work, the problematic dispersion will be pursued by presenting thediversity of systems and projects that aimed to characterize Psychology as an emergent science. It will be

    presented the different paths for the Psychological thinking by their concepts and methods in order to give thatthe dispersion in the Psychological field is inevitable.

    Key words:Dispersion of the psychological thinking; theories and systems in Psychology; History of Psychology.

    Endereos para correspondncia: Carmem Lcia Brito Tavares Barreto E-mail: [email protected];Henriette Tognetti P. Morato E-mail: [email protected].

    A DISPERSO DO PENSAMENTO PSICOLGICO1

    1. O presente artigo foi extrado da tese de Doutorado da primeira autora Ao clnica e os fundamentos fenomenolgicosexistenciais (2006), defendida no Instituto de Psicologia da USP e orientada pela Dra. Henriette Morato.

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    Um breve olhar sobre a histria do pensamento psicolgico aponta para o atravessamento de

    diversas questes conceituais, metodolgicas e epistemolgicas na constituio e delimitao do

    campo e do objeto de estudo da Psicologia. Tal quadro pode ser cartografado como um arquiplago

    representado por uma confederao sem centro de sistemas, escolas, pequenas teorias e prticas dispersas

    (Ferreira, 2006, p. 228).

    Ainda importante ressaltar que as idias psicolgicas foram sendo gestadas em diferentes

    pases da Europa e nos Estados Unidos, assumindo a influncia da composio de foras do tecido

    social e cultural do pas de origem e marcadas pela esperana na cincia como conhecimento, que

    solucionaria os problemas humanos. A definio do objeto de estudo da Psicologia sofreu alteraes ao

    longo do tempo, o que ressaltado por Gomes (2005, p.107) ao considerar que da alma substancial da

    Psicologia racional ao eu fenomenal da Psicologia emprica o progresso em direo do psiquismo foi enorme,

    pois o objeto da Psicologia desceu do cu transcendente da metafsica para o solo fenomenal da cincia

    O breve contexto apresentado configura certas peculiaridades do saber e do pensar psicolgicoque se desdobram em um espao de disperso, constitudo pela utilizao de diversas perspectivas

    epistemolgicas, metodolgicas e conceituais. O objetivo deste artigo contribuir para compreender

    a natureza dessa disperso, com base em um breve percurso sobre a histria da Psicologia apoiado

    nas condies que concorreram para a produo das diversas teorias e sistemas que constituram o

    projeto da Psicologia como cincia independente, dialogando-se com texto de Bruno Latour (1994)

    para empreender tal disperso como constituinte do saber psicolgico.

    A Psicologia cientfica, vinculando-se influncia do Positivismo, revelava a idia de uma

    Psicologia capaz de se fundamentar no modelo da Fsica, preocupada com o rigor da quantificao.

    Wilhelm Wundt (1832-1920), amparado pelas crticas de Comte utilizao de uma metodologiaintrospectiva para o estudo dos processos mentais, recorreu tanto ao mtodo experimental para os

    estudos desenvolvidos pela Psicologia fisiolgica quanto ao mtodo histrico para a investigao da

    Psicologia dos povos (Penna, 1997). Fundou, segundo Gondra (1997, oficialmente a Psicologia como

    disciplina acadmica formal ao estabelecer o primeiro laboratrio na Universidade de Leipzig,

    Alemanha, em 1879.

    Apesar dessa abertura para a dimenso scio-cultural dos fenmenos psquicos, Wundt no

    renunciou condio de cientista e idealizou uma disciplina hbrida, por ele denominada de Psicologia

    Experimental, em que combinava os papis do filsofo e do fisiologista de laboratrio. Recorreu

    tanto aos mtodos experimentais das cincias naturais a fim de adapt-los nova cincia quanto anlise dos fenmenos culturais pelos mtodos comparativos da Antropologia e da Filosofia. Assim,

    Wundt considerou que a Psicologia individual poderia ser complementada com o estudo do coletivo:

    Psicologia dos Povos, que focalizaria a linguagem, os mitos e os costumes. Por esse enfoque,

    reconheceu a importncia do contexto social para a compreenso da conscincia individual.

    Por conseqncia a Psicologia j foi constituda abarcando duas perspectivas: uma, experimental

    com foco no estudo dos processos elementares da conscincia, e outra, coletiva enfocando o estudo

    das produes da mente coletiva. Nessa direo, j apresentava dois enfoques metodolgicos. O

    enfoque experimental utilizava o mtodo experimental, caracterstico das cincias naturais, com

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    vis emprico e independente da metafsica. J a Psicologia dos Povos que pertencia ao domnio

    das Cincias Humanas, recorria aos mtodos descritivos das Cincias Sociais, baseados na observao

    das produes culturais. Portanto, desde o incio, a Psicologia j se configurava como um espao de

    disperso do pensamento psicolgico, ocupando um espao intermedirio entre as cincias da

    natureza e as da cultura. Para Penna (1997), tal disperso do pensamento psicolgico irremedivel

    e a sua unificao impossvel, pois reflete a extensa disperso sofrida pela Psicologia imposta pela

    utilizao de perspectivas epistemolgicas, metodolgicas e conceptuais totalmente diversas (p.57).

    Ao longo de sua histria os sistemas de pensamento foram surgindo quase ao mesmo tempo,

    configurando propostas diversas com diferentes concepes do que o mundo e o homem, como

    tambm do que o objeto da Psicologia e de como abord-lo. Desse modo, a polarizao bsica da

    Psicologia, j apontada por Wundt, permanecia dividindo as diversas teorias e sistemas do pensamento

    psicolgico. Estes se diferenciavam, entre outras coisas, por se posicionarem ou mais prximas de

    uma Psicologia fisiolgica e experimental, ou mais prximas de uma Psicologia dos povos, em que orecurso metodolgico atrela-se abordagem das Cincias Sociais ou da cultura, vinculando a Psicologia

    ao campo das Cincias Humanas. Como, ento, pensar na constituio de uma Psicologia seno pela

    interdependncia relativa, transitando pelo entre, isto , remetendo-se tanto ordem dos fenmenos

    vitais e de suas leis vinculadas a perspectivas cientificistas, quanto ordem dos fenmenos expressivos

    e dos seus significados vinculados a perspectivas compreensivas? Nessa mesma linha de pensamento,

    Figueiredo (2004, p. 111) aponta: creio que no h como dar conta do humano, da constituio e da

    dinmica das subjetividades seno trabalhando pela construo deste lugar to precrio.

    nessa direo que, aqui, ser retomado o projeto de constituio da Psicologia como cincia

    independente, buscando compreender como diferentes teorias e sistemas psicolgicos constituram oespao psicolgico. Apesar da extensa disperso decorrente de perspectivas epistemolgicas,

    metodolgicas e conceituais totalmente diversas, possvel focalizar a produo de teorias e sistemas

    que marcaram a primeira metade do sculo XX. Assim o Estruturalismo, o Funcionalismo, o Condutivismo

    ou Behaviorismo, a Gestalt ou Psicologia da Forma e a Psicanlise perspectivas tradicionalmente

    recuperadas em quase todos os compndios sobre a Histria da Psicologia - so ressaltados. Cada uma se

    caracterizou pela sua definio de Psicologia, pelos seus contedos especficos e pelos mtodos empregados

    no desenvolvimento de atividades e pesquisas que visavam produo do conhecimento psicolgico.

    ESTRUTURALISMO

    Ao fundar a Psicologia Estrutural, Edward Bradford Titchener (1867-1927), marcou a clara e

    decisiva diviso entre a Psicologia estruturalista, de Wundt, e a funcionalista, com Franz Brentano

    (1838-1917) na Europa e William James (1842-1910) na Amrica (Figueiredo, 2002).

    Titchener, preocupado com o pragmatismo que a compreenso funcionalista passara a enfatizar,

    quando desenvolvida em solo americano, defendeu a prioridade do estruturalismo por meio de um

    projeto que considerava tarefa fundamental da Psicologia, isto , a anlise da conscincia em seus

    elementos, na direo de determinar sua estrutura.

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    Segundo Gondra (1997), o estruturalismo, ao se ocupar das estruturas mentais, pretendia

    determinar os elementos constitutivos da conscincia. Para tanto, a Psicologia deveria decompor as

    experincias complexas em elementos mais simples, a fim de definir, com preciso, a sua natureza.

    Tais elementos deveriam ser classificados, dando origem s leis de associao que expressariam as

    relaes regulares existentes entre eles. Essas relaes explicariam as conexes entre os processos

    da conscincia e os processos paralelos do sistema nervoso. Assim, a explicao psicolgica se limitava

    descrio das relaes funcionais entre a experincia psicolgica e o sistema nervoso, evitando as afirmaes

    causais (Gondra, 1997, p.29).

    Desta maneira Tichener evitou o reducionismo e se manteve dentro do paralelismo psicofsico,

    como fica claro na definio que apresenta para a Psicologia: na Psicologia tratamos o mundo total da experincia

    humana; porm o fazemos somente desde seu aspecto dependente, enquanto condicionado por um sistema nervoso

    (Titchener, 1910, p.25). Comeou, ento, a desaparecer a concepo do homem como unidade psicofsica

    e, em seu lugar, surgiu o paralelismo psicofsico, que defendia a idia de que os atos mentais ocorremconcomitantemente aos processos fisiolgicos. Para isso, Titchener recorreu ao mtodo da introspeco

    experimental sistemtica em laboratrio, onde sujeitos experimentais eram treinados para observar e

    descrever, com objetividade, suas experincias subjetivas. Diferentemente de Wundt, que limitou a

    introspeco aos processos mentais mais simples, Titchener, de acordo com Gondra (1997), acreditava que

    os processos mentais mais complexos tambm poderiam ser estudados em laboratrio, o que requeria uma

    observao realizada com pleno controle das variveis e susceptvel a se repetir.

    Apesar do estruturalismo ser considerado herdeiro direto da tradio cientfica inaugurada

    por Wundt, a definio de Psicologia e a proposta metodolgica desenvolvida por Tichener foram

    consideradas artificialistas e estreis, por partirem da decomposio dos elementos dos processosconscientes. Ao centralizar a noo de sujeito nas funes do sistema nervoso, afastava-se da

    experincia imediata, subordinando novamente a Psicologia ao campo das Cincias Naturais. Assim,

    seguia o modelo da Fisiologia sensorial alem, defendendo uma atitude elementarista e atomista.

    Desse modo, tal proposta no alcanou muita projeo no processo de desenvolvimento da Psicologia

    e desapareceu logo aps a morte de Titchener, apesar de sua significativa influncia no campo da

    Antropologia e da Lingstica.

    FUNCIONALISMO

    Segundo Gondra (1997), a Universidade de Chicago centralizou a oposio ao Estruturalismo e,

    as crticas de John Dewey (1859-1952) ao atomismo de Titchener estimularam o movimento funcionalista.

    Essa atitude provocou a organizao de uma Psicologia das funes mentais por James R. Angell (1869-

    1949), trabalhada em laboratrios por Harvey A. Carr (1873-1954). Tal movimento no pretendia ser

    uma teoria sistemtica, mas, sim, uma atitude ou modo de enfocar os fenmenos psicolgicos.

    Apesar de ser considerado oposio sistemtica Psicologia titcheneriana, o Funcionalismo

    continuou a situar os estudos psicolgicos no campo das Cincias Naturais, prximos Biologia e

    teoria evolucionista de Darwin, com nfase nas variaes individuais e na observao naturalista.

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    Segundo Gondra (1997, p.21), o funcionalismo definia a Psicologia como cincia dos processos e operaes

    mentais, interessando-se no mais pelos contedos sensaes, percepes, emoes, vontade e

    pensamento , mas pelos atos de sentir, perceber, emocionar-se, querer e pensar.

    Ainda de acordo com Gondra, o interesse pela funo implicava, tambm, uma esfera

    utilitariamente prtica, representada pela questo Para que serve?. Desse modo, os funcionalistas

    assumiram a dimenso pragmtica da Psicologia, ocupando-se em estabelecer as contribuies prticas

    da mente no processo de adaptao ao meio ambiente. Por enfatizar o prtico, o til e o funcional,

    encontrou solo frtil no esprito pragmtico americano, que, acolhendo a idia evolucionista e a

    atitude funcionalista dela derivada, legitimou o prprio projeto da Psicologia funcionalista.

    Desse modo, a posio wundtiana a Psicologia como cincia intermediria era

    gradativamente abandonada e, cada vez mais, subordinada ao campo das Cincias Naturais pelo

    pragmatismo funcionalista americano.

    Precursor desse projeto, William James desenvolveu o preceito bsico do funcionalismoamericano: o objetivo da Psicologia no a descoberta dos elementos da experincia, mas o estudo das

    pessoas vivas em sua adaptao ao ambiente(Schultz e Schultz, 1981, p.152). Tal definio evidencia

    tanto sua orientao naturalista como a importncia que concedia ao estudo da conscincia no seu

    ambiente natural. Nessa direo,

    James define a Psicologia como a descrio e explicao dos estados de conscincia enquanto estados

    de conscincia. Por estados de conscincia entende James as sensaes, os desejos, as emoes, os

    conhecimentos, os raciocnios, etc. Sua explicao compreende o estudo e a determinao cientfica

    de suas causas, condies e conseqncias imediatas(Penna, 1991, p. 141).

    Assim, assumindo como objetivo da Psicologia a descrio e a explicao dos estados de

    conscincia, James elaborou a concepo de fluxo de conscincia, defendendo a impossibilidade de

    dividi-la em fases ou em elementos temporariamente distintos. Apontava para a dimenso processual

    contnua de mutao seletiva e cumulativa como caracterstica da conscincia, o que o afastava do

    elementarismo associacionista.

    DEWEY E A PSICOLOGIA APLICADA

    Para apresentar esta perspectiva, acompanha-se o texto de Figueiredo e Santi (2002). Assim,

    Dewey (1859-1952) apontou as limitaes e a incapacidade da Psicologia cientfica oficial para resolver

    a problemtica da vida, considerada no mais a soma de elementos, mas um processo contnuo. A

    partir da, Dewey defendeu a proposta de que o comportamento deveria ser estudado, no como

    uma construo cientfica artificial, mas em termos da sua significao no processo de adaptao do

    organismo ao ambiente. Tal nfase o aproximou daPsicologia Aplicada, que, preocupada com as funes

    e processos na busca de resultados prticos e atividades adaptativas, teve seu desenvolvimento

    favorecido pela perspectiva funcionalista.

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    Os mesmos autores citados apresentam que, em continuidade aos estudos de Dewey, Angell

    estabeleceu os princpios do Funcionalismo, confirmando a inteno de se ocupar com as condies

    e com o modo de atuao do processo mental. Nesse sentido, a nfase voltou-se para a utilidade dos

    processos mentais, ou seja, privilegiou-se a funo adaptativa da mente. Conseqentemente, retomou

    a discusso acerca da interao corpo e mente, indicando que a diferena entre fsico e psquico era

    apenas metodolgica, porquanto tal diferena no se percebe no momento da realizao do ato e

    sim, no momento da reflexo sobre o ato.

    Na mesma direo proposta por Dewey e Angell, Carr continuou as pesquisas do projeto

    funcionalista na escola de Chicago. A partir da perspectiva processual da atividade mental, ao reconhecer

    uma base psicofsica nessa atividade, associou introspeco o mtodo de observao objetiva.

    Tal possibilidade de complementao metodolgica representou uma herana do Funcionalismo

    para a Psicologia americana, que passou a utilizar o mtodo de introspeco junto com outras tcnicas

    de obteno de dados: os testes psicolgicos, a pesquisa fisiolgica, os questionrios e as descriesobjetivas do comportamento. Isso contribuiu significativamente no s para as descobertas da

    Psicologia com relao aos fenmenos de aprendizagem, desenvolvimento e personalidade, mas

    tambm para o desenvolvimento da Psicologia aplicada como tcnica situao intensificada aps

    entrada da Amrica na guerra em 1917, quando os psiclogos passaram a ser requisitados para tratar

    de problemas prticos e imediatos.

    Nesse perodo, Robert M. Yerkes (1876-1956) incentivou a aplicao macia dos testes de

    inteligncia nos recrutas do exrcito e manteve, mesmo aps a guerra, a importncia e o valor de tal

    procedimento. Esse fato abalou o statusda Psicologia acadmica, j que salientava o papel e o valor

    dessa cincia como aplicao, orientando o interesse para uma Psicologia menos pura e maispreocupada com a vida das pessoas em sociedade. Por conseguinte, permitiu aos psiclogos aplicados

    irromperem como especialistas nas principais esferas das atividades humanas a partir dos anos 40.

    Nas empresas, eles marcaram participao nos servios de seleo e treinamento de pessoal; na

    clnica, ressaltaram a aplicao de testes de inteligncia e de orientao vocacional como atividades

    especficas dos psiclogos; nos centros escolares, contriburam com a elaborao de provas de

    rendimento e investigao da eficcia dos diversos mtodos de aprendizagem.

    Progressivamente, os psiclogos foram se afastando da pesquisa pura para se dedicarem s

    reas aplicadas. A mudana de ao para atuao influenciou o desenvolvimento da Psicologia clnica

    nos Estados Unidos, rea at ento considerada privilgio da Psicologia francesa, que, desde o incio,caracterizou-se, sobretudo, pela orientao clnica e aplicada. Seu fundador, Thodule Ribot (1839-

    1916), recomendava o mtodo clnico aos seus discpulos e seu sucessor, Pierre Janet (1859-1947),

    dedicou-se clnica psiquitrica. J Alfred Binet (1857-1911), o psiclogo francs mais conhecido,

    comeou a carreira no Hospital de Salptrire, dirigindo seus estudos Psicologia aplicada e realizando

    trabalhos significativos, como a famosaEscala Mtrica da Inteligncia, que influenciou sobremaneira a

    Psicologia do Desenvolvimento e a Psicologia Educacional.

    Compreende-se, por esse percurso histrico, como a Psicologia passou a focalizar as operaes

    e processos mentais enquanto instrumentos de adaptao para comportamentos observveis. Como

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    ser visto adiante, a proposta de Wundt Psicologia como cincia intermediria, centrada na experincia

    imediata do sujeito e voltada para os processos coletivos percorreu uma direo aproximada.

    Direcionou-se para uma Psicologia preocupada com o paralelismo psicofsico dos processos mentais e

    ou com as possibilidades adaptativas dos referidos processos, visando normalidade do

    comportamento humano e aplicabilidade tcnica especializada para sua aplicao eficiente.

    BEHAVIORISMO

    O surgimento do condutivismo ou behaviorismo,com John Watson (1878-1958), nos Estados

    Unidos, foi influenciado pela teoria evolutiva de Darwin, pela teoria objetiva e mecanicista da

    aprendizagem de Edward Lee Thorndike (1874-1949) e pelas tcnicas de condicionamento (reflexos

    condicionados) de Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936). Em relativa oposio atitude funcionalista em

    Psicologia, marcou uma transio importante na Psicologia americana: mudana do foco de estudoda conscincia para o comportamento mesmo e suas interaes com o ambiente, na direo da

    adaptao normalidade. Assim, Watson demarcou o final do introspeccionismo e o comeo de uma

    Psicologia objetiva voltada predio e ao controle do comportamento humano, redefinindo a

    Psicologia como cincia do comportamento. Com tal direcionamento, a experincia imediata foi

    esquecida pelos psiclogos, que, por conseqncia, passaram a considerar queo sujeito do

    comportamento no um sujeito que sente, pensa, decide, deseja e responsvel pelos seus atos: apenas um

    organismo(Figueiredo e Santi, 2002, p. 67).

    Na mesma linha de pensamento, Burrhus Frederik Skinner (1904-1990) deu continuidade ao

    projeto behaviorista, definindo como objeto de investigao cientfica o estabelecimento dosrelacionamentos funcionais entre as condies de estmulo controladas pelo experimentador e a

    resposta subseqente do organismo. Da, o ser humano passou a ser considerado como qualquer

    mquina: comporta-se de maneiras previsveis e regulares em resposta s foras externas, consideradas

    como estmulos.

    Estava, ento, estabelecida a nfase na teoria como possibilidade de desenvolver novos

    instrumentos orientados pela lgica da cincia e do mtodo cientfico. Nesse contexto, que Skinner

    construiu sua proposta terica: um construtivismo descritivo, baseado na anlise experimental das

    condutas observveis. A tecnologia dela decorrente, apesar de repercusses significativas para a

    aprendizagem e para a clnica, sofreu as mesmas crticas endereadas a seus antecessores. Essaproposta enfatizava como pressuposto bsico a natureza maquinal do ser humano, o que possibilitaria

    a construo de um mundo perfeito mediante o controle experimentalmente previsvel do

    comportamento humano. Segundo Schultz e Schultz (1981, p. 285),

    a abordagem mecanicista analtica e determinista da cincia natural, reforada pelos

    experimentos de condicionamento de Skinner, persuadiu os comportamentalistas de que o

    comportamento humano poderia ser controlado, orientado, modificado, moldado pelo uso

    adequado do reforo positivo.

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    Em continuidade ao projeto comportamentalista, abriu-se outro desdobramento que, embora

    fundado numa abordagem scio-comportamentalista, propunha associ-la perspectiva da cognio

    como intermediria para a modificao comportamental. Isso revolucionou mais amplamente a

    Psicologia, j to descaracterizada e personificada por pensamentos singulares. Nesse momento,

    despontou, como referncia, Albert Bandura e sua teoria cognitiva social: apesar de permanecer no

    mbito do projeto comportamentalista, enfatizava o papel do reforo na aquisio e na modificao

    dos comportamentos, defendendo a idia dos processos cognitivos como mecanismos mediadores

    entre estmulo e resposta. Tal concepo retomava o aspecto dos fenmenos mentais, apesar de

    privilegiar o papel do reforo externo para alterao e modificao de comportamentos considerados

    indesejveis ou anormais pela sociedade.

    PSICOLOGIA DA FORMA OU GESTALT E A FENOMENOLOGIA

    Enquanto as idias do estruturalismo, do funcionalismo e do behaviorismo foram legitimando-

    se, cientificamente, na cultura pragmtico-tecnolgica americana, na Europa, em especial, na Alemanha

    de Wundt, um movimento, diretamente decorrente do pensamento originrio do fundador da

    Psicologia, fazia-se notar: a Psicologia da Gestalt ou Psicologia da Forma. Seus fundadores, Max

    Wertheimer (1880-1943), Kurt Koffka (1886-1941) e Wolfgang Khler (1887-1967), no aceitavam a

    idia de decompor a conscincia em seus elementos, nem a compreenso de que a percepo dos

    objetos consistia apenas na acumulao ou soma dos elementos em grupo. Reconhecendo o carter

    originrio da experincia perceptiva, consideravam tarefa primeira da Psicologia da Gestalt restituir

    esta mesma experincia em seu fazer-se, sem reduzi-la antecipadamente aos propsitos de uma teoria pr-construda (Bonomi, 1974, p. 71).

    A proposta principal defendia a idia de que o ponto de partida era o prprio fenmeno, quer

    dizer, a experincia imediata inicialmente acessada pelo mtodo introspectivo. Contudo, valendo-se

    dos novos questionamentos filosficos impostos s Cincias Humanas quanto pertinncia de uma

    metodologia cientfica importada das Cincias Naturais, optaram pelo mtodo fenomenolgico proposto

    por Husserl (1982) como procedimento metodolgico para a apreenso da experincia imediata.

    A fim de encaminhar a proposta da Psicologia da Gestalt, faz-se necessrio, agora, retomar a

    perspectiva de Husserl na proposio do mtodo fenomenolgico. Recuperando a crtica feita por

    Brentano questo do conhecimento orientado pela razo, a fenomenologia para Husserl partiria dopressuposto de que os fenmenos se do no homem atravs dos sentidos, implicando um sentido ou

    uma essncia, para responder questo: o que o que ? (Bonomi, 1974).

    Assim, a tarefa da fenomenologia seria alcanar a compreenso do ser, partindo da intuio das

    essncias como possibilidades puras, questionando os fundamentos cientficos, j que tudo o que sei do

    mundo, mesmo devido cincia, o sei a partir de minha viso pessoal ou de uma experincia do mundo sem a qual

    os smbolos da cincia nada significariam (Merleau-Ponty, 1971, p. 6). Para atingir esse objetivo, Husserl

    (1982) recorreu noo fundamental de intencionalidade,evitando enredar-se nas malhas do psicologismo

    e das especulaes metafsicas. Pelo princpio da intencionalidade, exps a idia de que a conscincia

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    sempre conscincia de alguma coisa; apresenta-se sempre dirigida a um objeto (sentido de intentio),

    que s pode ser definido pela relao com a conscincia, sendo, desse modo, sempre objeto-para-um-

    sujeito.As essncias no estariam na conscincia; s teriam existncia no ato de conscincia que visa a

    elas e no modo de dar-lhes um sentido. Dessa forma, a relao que se estabelece entre conscincia e

    objeto de correlao,de maneira co-original; cabe fenomenologia elucidar a essncia dessa correlao,

    atravs da qual seria possvel a compreenso do mundo.

    Para as autoras do presente texto, os gestaltistas, respaldados no mtodo fenomenolgico, descobriram

    como os fenmenos psicolgicos eram percebidos sob a forma de relaes entre as partes de uma experincia.

    Esta, por sua vez, apresentava-se como sendo muito mais do que a mera soma das suas partes: podia ser

    compreendida como uma configurao pela qual os elementos se organizavam, mostrando novos significados.

    Assim, possvel dizer que se aproximavam da idia de Psicologia dos povos, presente em Wundt: a

    experincia imediata seria o produto de processos de criao a expressar novos significados. S que, ao

    contrrio de Wundt, os gestaltistas no dissecavam a experincia imediata buscando identificar suas unidadesmnimas, para, em seguida, reconstruir os fenmenos complexos; procuravam descrever e compreender os

    fenmenos que espontaneamente se ofereciam na experincia dos sujeitos.

    Entretanto, para alm de Wundt, eles procuraram organizar e relacionar a experincia imediata

    estruturao fsica e fisiolgica do campo perceptivo, explicando-a por meio de leis gerais.

    Apontavam, assim, para o significado das formas percebidas, doado pela configurao do campo

    organizado em que se situam e em relaes precisas com os outros elementos desse campo. Caberia

    cincia a tarefa de compreender como os sujeitos organizavam seus campos perceptivos.

    No entanto, por meio da tese do isomorfismo, sustentavam a equivalncia entre processos

    psicolgicos e processos fisiolgicos. Afastavam-se, assim, da compreenso de subjetividadeintroduzida pela descrio e compreenso da experincia imediata, para no incorrer em possvel

    crtica ao mtodo introspeccionista como solipsista. Para Figueiredo (1996, p.159,), na tese do

    isomorfismo, se consuma o rompimento da Psicologia da forma com as Cincias Morais ou do esprito e, em

    que pesem as muitas verbalizaes em contrrio, se revela a ndole positivista do gestaltismo.

    Curiosamente, aps a rendio dos gestaltistas alemes explicao dos fenmenos do campo

    perceptual por meio de leis gerais, o questionamento acerca da organizao da percepo como

    experincia imediata criadora de significados foi levado adiante por Merleau-Ponty (1971). Em A

    Fenomenologia da Percepo, o autor resgatou a proposta da Psicologia da Forma, implcita na Gestalt.

    Retomou a experincia como fonte de conhecimento ao reconhecer queA percepo no uma cincia do mundo, no mesmo um ato, uma tomada de posio

    deliberada, o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela est pressuposta por eles. O

    mundo no um objeto no qual possuo em meu ntimo a lei da constituio, ele o meio

    natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepes explcitas. A

    verdade no habita somente o homem interior, ou mais precisamente, no h homem

    interior, o homem est no mundo, no mundo que ele se conhece. Quando volto a mim a partir

    do dogmatismo do senso comum ou de dogmatismo da cincia, encontro no um foco de verdade

    intrnseca, mas um sujeito voltado para o mundo (p. 8- 9).

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    At o presente momento, foram apresentadas diversas noes de realidade, de mundo,

    de verdade, de psiquismo, de objeto de estudo e, conseqentemente, de mtodos e

    procedimentos de conhecimento como possibilidades de constituio de uma cincia psicolgica.

    A seguir, encaminha-se uma outra perspectiva que revolucionou a compreenso dessa viso.

    PSICANLISE

    Diferentemente dos mencionados sistenas, apesar de contempornea a eles em termos

    cronolgicos, a perspectiva psicanaltica, desenvolvida por Sigmund Freud (1856-1939), se entrecruzou

    com a constituio da Psicologia como cincia independente. No entanto, porque no se desenvolveu

    como produto da academia, no se ocupou das reas tradicionais da Psicologia. Partindo de outra

    direo, optou pelo estudo do comportamento patolgico, negligenciado pelos outros sistemas,

    trabalhando com a observao clnica e no com a experimentao laboratorial controlada. Nessesentido, foi possvel abrir-se outra dimenso da experincia humana at ento ignorada pelos outros

    sistemas de teorizao acerca do psicolgico: o estudo do inconsciente, no passvel de conhecimento

    pelas vias legtimas da cientificidade.

    Fica assim ampliado o processo de disperso vivido pela Psicologia, apesar de Penna (1997,

    p.40) ressaltar que,

    no obstante a reivindicao de psiclogo sempre expressamente sustentada por Freud, muitos

    de seus atuais seguidores, pretendendo representar a vanguarda do movimento psicanaltico,

    renegaram a Psicologia, ressaltando a condio de saber novo e diverso da Psicanlise.

    Ainda nessa mesma linha de pensamento, Penna questiona como possvel afirmar que a

    Psicanlise nada tem a ver com a Psicologia, se a identidade desta ltima ainda no foi definida?

    Entre os antecedentes intelectuais e culturais da Psicanlise, h especulaes filosficas sobre a

    natureza de fenmenos psicolgicos inconscientes e trabalhos iniciais no campo da psicopatologia.

    Assim, sua teoria fez-se tributria de diversas tradies filosficas, teolgicas e mticas, apesar de

    buscar legitimar-se, em seus primrdios, pela tradio da Cincia Natural.

    Segundo Figueiredo (1996), algumas leituras da Psicanlise sublinharam a presena da

    perspectiva funcionalista e organicista, mais especificamente, a partir da Fisiologia de ndolemecanicista e da Biologia funcionalista, na esteira da teoria da evoluo. No entanto, o reconhecimento

    da noo de conflito de foras nas dimenses fsicas e energticas como mecanismo gerador de

    smbolos aproximou a Psicanlise de uma dimenso compreensiva. Nessa direo, consideram-se os

    fenmenos psquicos totalidades expressivas a serem interpretadas, enfatizando, assim, a dimenso

    hermenutica da Psicanlise, que conserva, porm, distncia significativa da tradio romntica, por

    ser a Psicanlise uma cincia do sentido, mas no uma cincia do sentido imediato (p. 169).

    Assim, a Psicanlise, ao articular um evento corporal ao universo representacional da pessoa,

    superou, via a noo de inconsciente, a clssica distino entre corpo e mente. Para Figueiredo

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    (2002, p.81), neste ponto em que se coloca o impedimento para que a Psicanlise seja reconhecida como

    cincia nos moldes positivistas, reside provavelmente o que a Psicanlise tem de mais particular entre as

    teorias psicolgicas.

    O reconhecimento do inconsciente derrubou a idia de um eu consciente como centro da

    subjetividade humana. Tal entendimento no deixa de reconhecer a importncia da vivncia na

    experincia imediata, mas se abre para a necessidade de ultrapassar o sentido aparente em busca de

    outra possvel compreenso mediata do sentido.

    Apesar do reconhecimento do lugar que a Psicanlise exerceu para a constituio do espao

    psicolgico, algumas crticas foram construdas pela Psicologia dominante na poca, tanto com relao

    forma como Freud coletou seus dados considerada incompleta e imprecisa quanto com relao

    s inferncias e generalizaes a partir deles, porquanto os conceitos que elaborou no podiam ser

    corroborados pelo mtodo experimental. Apesar das crticas, o mtodo clnico foi configurando

    diferenas com relao ao mtodo experimental, abrindo outra possibilidade de compreenso daPsicologia e da ao clnica como forma de conhecer o humano do homem.

    CONSIDERAES FINAIS

    Revisitados os principais sistemas e teorias empenhados na constituio da Psicologia, possvel

    reconhecer que todos trouxeram contribuies significativas, marcando posies particulares

    indicadoras de perspectivas distintas.

    No estruturalismo, a Psicologia estava voltada para a anlise da estrutura da conscincia.

    Depois, com o funcionalismo, centrou o interesse no fluxo da conscincia e em suas funesadaptativas. Porm, com o behaviorismo, deslocou-se dos elementos ou funes da conscincia para

    o comportamento observvel, propondo-se a investigar desde o estudo das relaes funcionais entre

    as condies de estmulo e a resposta do organismo ao reconhecimento dos processos cognitivos na

    modificao do comportamento. Entretanto, pela Psicologia da Forma (Gestalt),retornou ao estudo

    da experincia consciente, no mais direcionado decomposio dos elementos da experincia,

    nem ao modo de esses elementos se associarem, mas dirigido descrio e compreenso dos

    fenmenos da experincia imediata, buscando identificar as leis gerais constituintes dos campos

    perceptivos. Por outro lado, com a Psicanlise, abriu-se a possibilidade de voltar-se para o estudo do

    inconsciente via hermenutica.Desse modo, este breve percurso buscou retomar a questo da pluralidade de perspectivas

    presentes no pensamento psicolgico, apesar da preocupao de sua unificao estar presente entre

    os integrantes do movimento behaviorista, de resto, expressando o amplo projeto de unificao das cincias

    que se revelou central no positivismo (Penna,1997, p.57-58). Mas, tal pluralidade implicaria

    impossibilidade de unificao da Psicologia enquanto cincia? Ou poderia, ao contrrio, expressar a

    diversidade significativa de modos de compreenso implicados na constituio do psicolgico humano

    como campo de saber: qual sua especificidade singular, ou seja, quem o humano por quem essa

    cincia se preocupa e do qual se ocupa?

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    Na tentativa de contribuir para compreender a natureza dessa disperso, j apontada como a

    problemtica destas consideraes, recorre-se ao texto do antroplogo das cincias, Latour (1994),

    para, atravs de interlocuo com os questionamentos aqui apresentados, encaminhar uma possvel

    interpretao da diversidade da Psicologia. Tal escolha justifica-se pela discusso acerca da

    determinao das condies de possibilidade do conhecimento cientfico sugeridas pelo referido

    autor.

    De acordo com Latour (1994), como projeto de conhecimento, a Constituio Moderna

    representa a construo ideolgica que fundamenta a modernidade. Nesse sentido, fundado na

    tentativa de clivagem entre entes humanos e a natureza, o projeto da modernidade seria considerado

    impossvel, notadamente por defender a ciso entre dois entes purificados: Ser Humano e Natureza,

    ou seja, entes subjetivos e objetivos. Mas, em que medida essa polaridade permite pensar a

    especificidade do saber psicolgico?

    Latour discute como a polarizao, proposta pela Constituio Moderna, entre sujeito/sociedadee natureza foi absorvida pelas filosofias do sculo XVIII que, apoiadas na perspectiva kantiana, defendiam

    a separao total entre as coisas-em-si e a conscincia transcendental. Porm, ao mesmo tempo em que

    empreendiam a defesa do trabalho da purificao, deixaram visvel o trabalho de mediao, que revelava

    a multiplicao dos quase-objetos, reconhecidos como hbridos. Assim, todos os grandes movimentos

    filosficos acreditavam ser possvel encaixar e digerir os hbridos somente pelo trabalho de purificao,

    voltado para as Cincias Exatas e para as tcnicas. Segundo Latour (1994, p. 12),

    os fatos cientficos so construdos, mas no podem ser reduzidos ao social porque ele est povoado

    por objetos mobilizados para constru-lo. O agente desta construo provm de um conjunto deprticas que a noo de desconstruo [como mtodo] capta da pior maneira possvel (p.12).

    Em tal perspectiva, os entes humanos passariam a ser assunto da poltica com representao

    nos parlamentos e os seres naturais passariam a ser o tema das cincias, representados nos

    laboratrios. Contudo, como efeito colateral dessa tentativa de diviso e purificao, a Constituio

    Moderna produziria, como j foi apontado, a proliferao de hbridos, seres com marcas humanas e

    naturais: seres mestios que no seriam mais compreendidos como a mistura entre entes puros e

    possuiriam primazia ontolgica.

    Tendo a Psicologia surgido no contexto em que se configurou o projeto moderno, propunha-se aassumir a tentativa irrealizvel de dividir e buscar a purificao entre os entes humanos e a natureza. Ao

    tentar sistematizar o saber psicolgico, os diversos sistemas e teorias psicolgicas, ao fundirem os

    operadores cientficos das Cincias Naturais aos conceitos antropolgicos, possibilitaram revelar-se a

    prpria tendncia hibridizante da Psicologia. Alguns tentaram desconhecer a singularidade do sujeito

    subjetivo em busca de uma realidade independente do sujeito que a conhece e a ordem natural dos

    fenmenos psicolgicos, via modelo cientifico de cincia. Outros reconheceram e sublinharam a

    especificidade do sujeito, direcionadas para o esclarecimento da lgica e da trama conceitual, desenvolvendo

    um conhecimento que busca a articulao entre os processos cognitivos e as outras dimenses das prticas

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    sociais. Tentaram, assim, atravs da separao, da contradio e da tenso insupervel, purificar a

    polaridade sujeito/sociedade e natureza, indicando que no h medida comum entre o mundo dos sujeitos

    e dos objetos, mas anularam esta distncia ao praticarem a hibridao, medindo, por exemplo, humanos

    e objetos em conjunto e pelas mesmas medidas. Afinal, o ponto essencial dessa Constituio moderna o de

    tornar invisvel, impensvel, irrepresentvel o trabalho de mediao que constri os hbridos (Latour, 1994, p.40),

    conduzindo o conhecimento representao de que o mundo, embora hbrido, como todos os coletivos,

    teria essa caracterstica negada. Recorrendo a isso, a cincia legitimava recursos que

    pareciam estar separados, em conflito uns com os outros, misturando ramos ... que se

    degladiavam, cada um deles apelando a fundamentos distintos.... esta concepo, que libera

    uma esfera de ao das amarras da outra, que possibilitou aos modernos sentirem-se livres

    para no mais seguir as restries ridculas de seu passado que exigia que pessoas e coisas

    fossem levadas em conta ao mesmo tempo(p.44).

    Desse modo, a presente interlocuo com Latour (1994) possibilita compreender a ideologia

    presente no projeto moderno: o enunciado da separao como condio de conhecimento. Contudo,

    essa mesma dicotomia apresentou-se na Psicologia de forma mais intensa, abrindo possibilidade de

    obscurecimento do fato real que se mostrava: a mistura entre humanos e no-humanos continuou a

    se processar em escala jamais vista.

    E, de fato, por ter obscurecido isso, que os hbridos nela proliferaram com vigor ainda

    maior: a disperso do psicolgico. A partir do percurso histrico empreendido, pode-se compreender

    o lugar e o carter paradoxal e plural da Psicologia, que, ao tentar juntar o que a modernidadeseparou, permitiu ao saber psicolgico circular por outras vias, diferentemente das demais cincias.

    Nessa mesma linha de pensamento, Ferreira (2006) considera a Psicologia como um saber

    mestio, produto da impossvel modernidade proposta por Latour (1994). Desse modo, possvel

    reconhecer na sua constituio

    uma srie de ns e vnculos conceituais parciais, sem um n maior que a amarre. Este n

    frouxo at mesmo na definio do que vem a ser a Psicologia (cincia das condutas? dos

    fenmenos mentais? da experincia? do inconsciente?). Portanto, podemos dizer que a Psicologia

    composta de diversos sistemas circulatrios, de forma semelhante ao polvo, que possui trscoraes, mas que no se comunicam entre si, bordando e moldando a nossa subjetividade de

    acordo com algumas orientaes(Latour, 1994, p. 312).

    Ao assumir essa disperso irremedivel e essa unificao inalcanvel como produto da

    impossvel modernidade vislumbra-se um quadro de mestiagem e de hibridismo como condio

    constitutiva do saber e do pensar da Psicologia. Na mesma direo, compreende-se como o fazer

    psicolgico tambm se apresenta mltiplo, confundido que com a mera aplicabilidade tcnica de

    cada um dos diferentes sistemas, obedecendo constituio moderna na viso de Latour.

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    Entretanto, procede uma considerao final e instigante. A proposta de Wundt poderia ser

    responsabilizada pela disperso de diversos projetos da Psicologia, por ter recorrido tanto aos mtodos

    experimentais das Cincias Naturais quanto anlise dos fenmenos culturais (Psicologia dos Povos)

    pelos mtodos comparativos da Antropologia e da Filosofia? Ou seria possvel compreender que,

    embrionariamente, desde sua fundao por Wundt, o saber psicolgico teria apresentado o sentido

    de sua condio constitutiva hbrida, implicando que seu fundador buscasse conhecer a experincia

    humana pela possibilidade da mediao nela implicada, assim j revelando como a forma de

    conhecimento ao modo da Constituio moderna abria brechas para a multiplicao de hbridos?

    Seria, ento, possvel compreender que o sentido da disperso do pensamento na Psicologia

    expressaria a mestiagem entre humanos e no humanos (mundo/natureza), entre subjetivo e objetivo?

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    Bonomi, A.(1974). A fenomenologia e o estruturalismo. (J. P. Monteiro et al., trad). SoPaulo: Perspectiva.

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    Recebido em 6/03/07Revisto em 10/07/08

    Aceito em 16/07/08