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Paulo Bandeira Faria A DESPEDIDA DE JOSÉ ALEMPARTE

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Paulo Bandeira Faria

A DESPEDIDA DE JOSÉ ALEMPARTE

Sinais

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Não sei se a motivou o amor, se o desejo de fugir à solidão.

Só sei que me pregou uma grande partida, mas faz-me pena e

não consigo levar-lhe a mal.

Desconfio muito da televisão e já devia calcular que só podia

vir por aí uma coisa do género quando me contactaram para ir

a um programa. Mas a monotonia mata-me e pensei que podia

ter uns dias diferentes, com viagem e estadia pagas. Acabei trau-

matizado com uma frase: ponha em ordem os seus sentimentos

e depois dê-nos a sua decisão. Agora já sei que não a recordarei

por muito tempo, em todo o caso o suficiente para me enver-

gonhar cada manhã que me prepare para sair à rua. Julgava que

poucas pessoas assistiam a esses programas, mas descubro que a

ociosidade ou o sem-sentido da vida leva a que muitas os vejam.

Até as mais novas. Aqui há dias, no autocarro, uma rapariga encos-

tou-se a mim devido a uma travagem brusca e eu disse-lhe: não

se aproxime demasiado, menina, isso vai contra a minha religião.

E ela gracejou: imagino! Ainda não pôs em ordem os seus sen-

timentos, pois não?

Sei que ela está pior do que eu. Nenhuma mulher gosta de

ser desconsiderada com um não, ainda por cima presenciado por

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tantos piranhespectadores. Às vezes vejo-a na rua, aqui em Bou-

zas. Era uma mulher cheia de vitalidade, mas agora parece que

para mexer um pé tem de pedir licença ao corpo todo. Como

disse, tudo isto me faz pena e espero esquecê-lo depressa.

Entretanto, exorcizo o que foi. E foi assim.

Aquilo era para noivos empedernidos, o que nem era o meu

caso. Tenho pensado se alguma vez dei azo a essa ilusão e não

encontro resposta. Julgo que não, mas pelos vistos estou enga-

nado. A verdade é que ela era uma das que, vestida de noiva,

subia ao palco e fazia a sua declaração de amor. Claro que eu não

estava preparado, pensava que ia para outra coisa, como ouvir

um tonto qualquer vender as suas intimidades. Esperei com os

outros num sítio escuro, já desconfiado por me estarem a filmar

com a ajuda de infravermelhos, ou que diabo é isso. Quando

saímos, o som dos tambores nupciais antecedeu a voz do mes-

tre-de-cerimónias – ou, melhor dizendo, do verdugo.

Mas não quero precipitar-me. Foi assim.

Abriu-se uma porta de par em par e fomos recebidos – e

enca(n)deados – pelas luzes e pelos aplausos, um ou outro des-

locado assobio, a maldita marcha nupcial e o olho voraz das câma-

ras. Eu pensei logo: estou tramado. Então, vi-a, e a pena que hoje

sinto logo nos olhos dela a descobri. No escuro, tinham-nos pen-

durado a porra de uma tabuleta ao pescoço, pensava eu que para

identificar o nosso assento ou algo do género, e que logo a seguir

poderia tirá-la. Afinal, tinha escrito VIP, mas tal foi a minha humi-

lhação que nela temi ler esse RIP que põem em algumas cam-

pas. Os outros, de tão assustados, quase pareceram aliviados por

verem ali as namoradas, mas esse alívio não durou muito, visto

estarem enfarpeladas de noivas prestes a subirem ao altar. Só

faltava o futuro sogro com um enchumaço no bolso, fosse um

lenço para limpar as lágrimas, uma pistola para impedir a fuga do

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r/p/enitente, ou uma inopinada erecção, para quem ainda sofresse

dessas alegrias – o que nem era o meu caso e, nesse instante,

muito menos.

E começa o espectáculo. A primeira logo se declara ao des-

graçado que eu tinha ao lado, dizendo que o ama, que já namo-

ram há sete anos, mas que ele não desencalha, e chora segurando

um lenço ao lado do vestido de casamento, quer que se decida

aqui e agora, e não daqui a vinte anos, que a entenda. Algo enten-

derá ele, mas, mal abre a boca, o apresentacarrasco atalha de ime-

diato: não diga nada, não responda agora, fique tranquilo, vamos

dar-lhe um bocadinho de tempo para considerar o assunto e

para pôr em ordem os seus sentimentos. Mas quais, imagino-o

perguntar-se, seguro de que todos os que agora sentia começa-

vam por f.

Então, conduzem-no à sala VIP, elegante mas com a omnipre-

sente voracidade da televisão, essa que tudo vasculha, até os nos-

sos pensamentos mais ímpios. Na verdade, o próprio público os

capta e, julgo que para despistar, ele aceita de imediato, presumo

que também para fugir dali depressa. Se para isso tivesse de pas-

sar pelo altar, pois viesse ele e sem demora.

Depois de vários outros (a cujas peripécias me poupo, já me

basta tê-las sofrido uma vez), chega o momento de expiar os

meus próprios pecados.

Eu suava por todos os poros e mais algum, bom Deus! Aquilo

parecia-me um sonho, ou um pesadelo, não me podia estar a

acontecer, se era eu quem ali estava, a esse Eu só lhe restava uma

crise de pânico ou, pelo menos, de ansiedade que o levasse a

pisgar-se dali, não sem antes mandar à cabeça do apresentador a

gaita da tabuleta, claro. Mas não o fiz, em parte porque ninguém

me tinha obrigado a ir (apesar de me terem enganado), em parte

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porque ela já estava a falar e seria uma falta de educação não a

ouvir.

Disse que já tinha sessenta e cinco anos, mas idade ainda para

emoções profundas (por mim, surpreendeu-me descobri-lo), que

me sentia mais do que um amigo e por isso sonhava partilhar

comigo os anos que lhe restavam, etc. Confesso que deixei de a

ouvir, pois não conseguia parar de me perguntar que tropeção

teria sido o meu para lhe ter dado a ideia de que uma coisa

daquelas tinha sentido.

Então, veio uma menina esbelta pôr-se ao meu lado, com o

ar de quem pretende convencer-me a aceitar um purgante, e não

sei o que me deu, mas pensei o que logo temi todos terem cap-

tado, escapando-se da minha cabeça como uma aura: olha, com

esta casava-me eu, ou, pelo menos, fazia a despedida de solteiro.

E o apresentador arranca-me às minhas vergonhosas cogita-

ções, exclamando alto e bom som: bem-vindo ao seu casamento,

isto é a sério, uma das decisões mais sérias da sua vida, e eu logo

a pensar, mortinho por esganá-lo, pois sim, já tomei outras, mas

nenhuma tão desastrada como a de me apanhares aqui. E o sádico

prossegue, respire fundo, é para se casar hoje, neste mesmo ins-

tante – e faz-se um silêncio sepulcral –, neste mesmo programa,

insiste ele sem perda de tempo (já se sabe que não os pode haver

mortos na TV), e segue-se outro silêncio, definitivo este.

O público já tem o polegar preparado. Se eu disser que sim,

haverá palmas e coroa de louros; senão, um horrendo silêncio

pior do que assobios e vaias, que se perpetuará, estou certo, num

montão de sorrisos cínicos lá fora, que já intuo em toda a gente,

desde os meus conhecidos até uma futura rapariga num auto-

carro.

E esse nosso silêncio, por muito que dure só uns segundos

(sempre eternos na televisão), faz corar de vergonha o rosto de

todas as potenciais esposas, autoras confessas de uma situação que

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na Cosa Nostra se define como uma proposta que não se pode

recusar.

Pois, como dizia, são tão gritantes as nossas hesitações que o

mestre-de-cerimónias acaba sempre por propor o tal momento

de suposta intimidade e meditação na sala VIP, onde se poderá

telefonar a alguém, uma pessoa apenas, e apenas durante trinta

segundos, que lhe parece? Parece-lhes bem, pelo que aí são con-

duzidos pela minha inconfessada alegria de despedida de solteiro,

cabisbaixos e sem coragem já para fixarem a forma como a minis-

saia se saracoteia ao ritmo de uns sapatos de salto fino e alto.

Aí, todos optam pela mãe, excepto um, duplamente infeliz, que

já não a tem (e, se tivesse, quem sabe se à pobre não daria um

trecolareco), pelo que telefona à filha, aflito. Esta já tinha sido

industriada para dar a resposta em três segundos, não gastando

inutilmente os outros vinte e sete, que há quem desperdice, com

olhos de cordeiro sacrificial, repetindo mas tu achas bem? – claro

que sim, filho – mas tu achas bem? – e tudo isto salmodiado ao

som de uma melosa música de fundo.

Outras, pelo contrário, reforçam a indecisão do seu rebento,

insinuando reticências anteriores e confirmadas pela desleal jogada

da pretendente a futura nora: não sei, filho, pensa bem…

Ao mesmo tempo, emitida em voz off, uma pergunta ressoa

pelo cenário de cartão: qual será a resposta? Dirá que sim ou que

não? Dentro de momentos…

E um abrupto corta!

Eu desperto. Acordar transformado em insecto não me traria

maior surpresa. Vejo-os claudicar. Vejo nelas a tristeza de quem

venceu, mas não conquistou. Vejo que estes segundos meus se mis-

turaram agora, no meu recordar, com os dos outros. É natural,

encontro aqui presente e passado que já não destrinço. Tenho de

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me apressar a dizer tudo o que possa, pois a doença posterior-

mente diagnosticada tem apelido alemão, ou americano, sei lá,

parece que se prolongará durante anos.

Vejo os outros, engalanados pelos aplausos e exclamações de

júbilo e ânimo, descerem já uma escadaria virtual, vestidos de

noivos, preparando-se para ajoelhar o sim ao mesmo tempo que

seguram a mão da mulher corada. E, nesse mundo de estranheza

que não sei quanto tempo durou, ouço-me a responder, sensi-

biliza-me o que me acabas de dizer, mas não posso, ao mesmo

tempo que solto o microfone e me levanto, me dirijo à porta

que atravessara uma hora antes, parece-me, e entro num antro

escuro no qual me perseguem vozes repetindo volte, não faça

isso, não é para tanto, pense bem, mas eu já nada ouço, porque

sinto que algo começou a romper-se dentro de mim, algo den-

tro de mim se quebrou, e o que o médico dias depois me diz só

vem confirmá-lo.

Tenho agora momentos de alguma clarividência, em que digo

coisas como esta, para logo confundir o que vivi com o que li, o

que disse com o que calei.

Temo muito o que cresce dentro de mim. Pensa-se que esque-

cer é uma boa solução para depurar o excesso de informação,

quase uma libertação, mas temo que se torne a minha prisão, a

imagem definitiva da minha ausência presente mas incoerente, ba -

bando-me, confundindo tudo, completamente só… Temo muito

vir a não saber quem sou. Temo muito isso. Muito.

*

Olá. Chamo-me Alex tenho 8 anos 3 meses e uns dias e vivo

em Vigo. O meu avô chama-se Xosé. Ele era José mas mudou

para Xosé não sei porquê. O meu avô tem mais de setenta anos

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e prometeu-me um computador e eu disse-lhe que ele não ia cum-

prir. Ele disse: sim cumpro com uma condição.

Os adultos estão sempre com condições mas quando também

quero dizer as minhas respondem: chantagens não! Pensam que

por ser criança não penso.

Então o meu avô disse a condição para ter o computador e

eu aceitei. Disse que eu tinha de escrever. Eu disse: ó avô eu já

escrevo! Mas ele disse: na escola escreves sim mas eu quero que

escrevas mais. E eu que remédio aceitei.

Isto agora é assim: o meu avô vai buscar-me à escola e eu venho

para casa dele. Então escrevo neste computador novinho em folha.

É meu. O rato é uma coisa lisinha onde passo o dedo. Isto de escre-

ver cansa mas estou contente.

Gosto muito de futebol. O meu avô leva-me todos os sábados de

manhã a jogar com a minha equipa contra meninos das outras esco-

las. Somos bons mas perdemos quase sempre. Só ganham quando

eu falto. Eu ainda não disse isso a ninguém mas tenho medo de que

eles se lembrem de reparar nisso. É que eu gosto muito de jogar

futebol e na equipa estão os meus melhores amigos: o Guilherme

o Alejandro o John o Aurel o Antón o Abraham e outros. O meu

maior amigo é o Guilherme e a seguir o Alejandro. Bom às vezes

varia e é o Alejandro primeiro e o Guilherme a seguir. Mas o Gui-

lherme é sempre muito meu amigo e trocamos cromos da liga.

Adeus.

Olá. Não vou voltar a dizer olá e adeus porque o avô disse que

assim não parece uma história. Quer que me organize mas não sei

o que é isso. Ele disse: não contes tudo à papo-seco. Mas eu não

tenho nada para contar. Só escrevo isto porque me ameaçou que se

não escrever me tira o computador. O meu pai quando ameaça não

cumpre mas com o avô tenho de ter cuidado porque ele cumpre

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sempre o que promete. Prometeu-me o computador e deu-mo.

Os meus pais não gostaram mas ele disse: o que eu prometo cum-

pro. O Alex só se vai servir do computador para escrever e fazer

desenhos. Foi isso que disse e os meus pais calaram-se.

Temos um segredo: depois de escrever uma página ou duas jogo

aqui no computador. Não é tão giro como na play mas como não

me deixam jogar na play durante a semana jogo no computador.

Quando escrevo um erro aparece um sublinhado vermelho.

Eu carrego aqui no botão direito do rato e o computador cor-

rige. É fixe.

No computador cabe muita informação diz o meu avô. Enci-

clopédias inteiras não sei se sabem aqueles livros gordos com

muitos nomes. Os dicionários têm muitas palavras mas são só

um. As enciclopédias são vários. O meu avô tem dois dicionários

e uma enciclopédia. Podíamos pensar que dois dicionários são

mais do que uma enciclopédia mas não porque a enciclopédia

tem uns vinte livros. Eu perguntei ao meu avô se já os leu todos

e ele riu-se. Não sei que parvoíce disse eu.

Eu também gosto de rir. Quando nos rimos usamos muitos

músculos da cara. É por isso que me rio tanto. Os adultos riem

pouco e ficam com pouca ginástica na cara. Eu disse isso ao meu

avô e ele disse que eu tinha razão. Mas como ele diz sempre que

tenho razão só para me calar eu perguntei: porquê? E ele disse:

porque a seriedade da cara nos vem do coração. Eu não entendi

mas já aprendi que o meu coração bate 100 mil vezes ao dia.

Mas se uma menina de quem gosto me sorri bate 120 mil. E se

marco um golo dá 200 mil! Vai mais rápido do que 1 fórmula 1.

E agora despeço-me mas não digo adeus.

*

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Não sei porquê, mas ao saíres fechaste a porta devagar. Fizeste-o

com tal lentidão que até parecias querer voltar… Vivemos o desa-

mor há quanto tempo, Daniel? Esta ria está cheia de sítios onde

nos perdemos. Um farol nas Cíes, onde uma vez fizemos amor,

lembras-te? O café em San Adrián de Cobres, o cais de Santa Cris-

tina, o lento trajecto para Redondela. A praia de Cesantes, antes.

Ou a esplanada na Guia. Sítios entre Bouzas e Alcabre, tasquitas

de Canido, Panxón, caminhadas pelo Monte Ferro…

Sim, amor, não sei se houve idade do ouro, mas certamente esta

é a do ferro, ou nem isso, pois tudo em nós se tornou tão virtual que

já só comunicamos por sms, a que nem mensagem se pode chamar

porque a elidimos num curto msg. Até os beijos já não são beijos,

mas bjs. Entre nós já não há o calor das vogais, só a cortante trans-

crição das consoantes, já reparaste? Apenas passamos informações,

mas ao mesmo tempo fazes-me falta, Daniel, tanta falta como antes.

Às vezes recordo conversas que tiveste no início. Numa falaste

de trios. Eu era jovem e estava apaixonada. O despeito (Não lhe

chego?) levou-me a ripostar:

«Acho bem: traz um amigo!»

E de imediato morreu o assunto. Porém, passados todos estes

anos, não posso deixar de me perguntar que entusiasmo terias

posto tu nessas fantasias. Gostaria de saber, porque hoje quase

lamento tê-las matado.

Lembro-me de quando te insinuei, ao passarmos à frente de

um motel, que gostaria que me levasses a esse sítio em que o quarto

custa 32 €/4h. Pareceu-me interessante esse entrar clandestino,

de carro, e deitarmo-nos entre cetim e espelhos decididos a fazer-

mos tudo o que nos apetecesse. Mas tu olhaste-me como se eu

estivesse a delirar e respondeste:

«Estás louca? Sabe-se lá se não filmam o casal e depois fazem

chantagem!» Pareceu-me deslocada tanta desconfiança, mas tu

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insististe: «E eu tenho mais que fazer do que dar quecas com outros

a ver, porra!»

Se queres saber, era uma ideia que nem me desagradava. Mas,

mesmo sem espectadores, a perspectiva de estar ali contigo, num

sítio diferente e com um toque de transgressão, atraía-me muito.

Só que tu, pelos vistos, devias ser dos que pensam que a esses

sítios se levam outras (a quem, às vezes, até se paga), mas nunca

a respectiva. Meu Deus, que trogloditas! Custa a acreditar.

Uma amiga contou-me que o fez com o marido. Ele tinha-

-lhe dito:

«Na primeira oportunidade, trai-me comigo.»

E assim foi. Combinaram encontrar-se num bar, fazendo de

conta que não se conheciam. Contudo, ela levou o jogo tão a

peito e tanto resistiu aos seus avanços que o marido esteve prestes

a criticá-la, estragando tudo. Só que, no último instante, desco-

briu no olhar dela o desespero da mulher que deseja que o homem

não desista, apesar de parecer que sim. E ele aproximou-se da

cadeira alta em que estava sentada, insinuou-se entre as suas per-

nas e disse-lhe:

«Ouça, não quero ser chato, mas daqui não saio, nem que chame

a Polícia.»

«Para quê? Para que venha também?»

«Chego e sobejo, garanto-lhe.»

Ela riu-se:

«Todos os homens dizem isso, mas na hora da verdade…»

«Na hora da verdade, se algo falha, com empenho se recupera…»

«Ah sim? Empenho seu, ou dela?»

«Meu. Mas sou suficientemente humilde para agradecer uma

ajudinha…»

Ela riu-se mais ainda. Há semanas que não se ria tanto com

o marido.

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«Olhe, meu caro: os homens resistem nos pedidos, mas são bre-

ves nos agradecimentos, sabia? Já o dizia a minha avó…»

«A pobre. Não terá tido muita sorte com o marido…»

«É rara a que tem.» A rapidez com que ele ficou sério assus-

tou-a, pelo que acrescentou rapidamente: «Estava a brincar, não

é o meu caso!»

«Se estivesse, não estaria aqui comigo…»

Parecia triste. Ela pousou a mão na dele e murmurou:

«Estou com quem quero estar. Não acha que é altura de pagar?»

Enquanto fazia sinal ao empregado, ele perguntou, esforçando-

-se por sorrir:

«Acha que desta vez vai ter sorte?»

«Tenho sempre sorte quando se preocupam comigo. É capaz?»

«Prometo.»

Tanto quanto sei, a promessa foi cumprida.

Pois também eu precisava de me sentir mulher, de me sentir

viva! Queria essa simultaneidade de prazer e dor que é pensar cons-

tantemente numa pessoa com quem só estaremos dias depois e

da qual tudo se anseia, a mensagem escrita, a palavra sussurrada,

o olhar, a presença e o afago. E, quando sabemos essa ânsia cor-

respondida, é uma maravilha, uma oportunidade única com que

todas as mulheres sonham e que por norma não têm, porque há

muito a sua vida matrimonial se transformou numa pura rotina

carente de emoção, sobretudo se nem se encena de vez em quando

a fantasia da premência e do risco.

É isso: entre o sentir o bom e o mau, e o nada sentir, aspiramos

sempre à primeira hipótese. Pelo menos aí há segredo e senti-

mento, ciúme violento, discussões acaloradas, doces pazes, posse

com ardor, seja o que for, tudo menos esse tédio e essa desistência

em que até uma disputa resolvemos com um encolher de ombros,

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porque há muito optámos pelo pior tipo de confronto: o do silên-

cio, ignorando-nos mutuamente.

Mas uma relação não pode ser assim. Aceitamos que a paixão

passe; até o amor; mas não a comunicação a qualquer nível. Um

casal pode subsistir e ser feliz se se permitir – apesar dos filhos –

alguma proximidade. Se souber que, além de um pai e uma mãe,

continua a haver um homem e uma mulher. Se ainda souberem

apreciar pequenos gestos. Tu dirás – já o disseste – que não é pos-

sível continuar a admirar-se aquele de quem já se conhecem todos

os maus hábitos. Que tudo tem data de validade, ou de caducidade.

Não acredito que tenha de ser assim, porque, por cada defeito que

perdure, há uma qualidade que se impõe; por cada debilidade, uma

inesperada perseverança; por cada desilusão, um novo projecto.

Segundo o que intuo do teu argumento, quanto mais nos

fartamos do outro, mais insistimos em ver o que nos aborrece,

em vez de nos concentrarmos no que nos agrada. Talvez estejas

certo. Mas está-lo-ás porque de nós próprios nos fartámos, do

que agora somos, do que desistimos, do prazer que já não alcan-

çamos nem no gesto de nos abraçarmos para aconchegar a nossa

vulnerabilidade, tapando-nos com uma manta (como fazíamos

há séculos) para ouvirmos o vento, falarmos algum tempo, fazer-

mos amor ou dormirmos simplesmente.

É triste descobrirmos que há muito chegou, sem que nos

apercebêssemos, o tempo da desistência. Que quem amávamos

se tornou uma pessoa comodista no receber, mas parca no dar.

Que aos avisos fez ouvidos de mercador. E que, para se procurar

outra solução, nenhum dos dois teve coragem suficiente.

*

A conversa com o médico foi amena. Tudo o que faço é de

forma amena. Disse-me que os resultados dos exames indiciavam