A Desconstrução Do Herói

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A Apreciação dos Trágicos Gregos pelos Poetas e Teorizadores Portugueses do Século XVIII MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA "O único caminho para nos tornarmos grandes, até mesmo, se possível, imortais, éa imitação dos Antigos". Esta famosa frase de Winckelmann, o fundador do Neo-helenismo, como lhe chamou Pfeiffer,1 é também válida para a maior parte dos poetas portu gueses do Séc. XVIII. O renovado culto da Antigüidade tínha penetrado em Portugal por mediação francesa. A origem deste acontecimento cultural, que é considerado uma reação contra o barroco, reside, na opinião geral, na publicação de uma série de livros: primeiro, a tradução da Art Poétique de Boileau, por Fran cisco Xavier de Meneses, quarto Conde da Ericeira (escrita em 1697, e muito lida em manuscrito, mas impressa em 1793), depois do Exame Critico2 de Valadares e Sousa (1739); sete anos mais tarde saiu O Verdadeiro Método de Estudar de Verney que deu, como todos sabem, o primeiro grande impulso à reforma dos estudos. No ano seguinte, portanto em 1747, estalou a demorada polêmica entre o Marquês de Valença e Alexandre de Gusmão sobre o novo teatro, na qual o primeiro defendia a dramaturgia 1. History of Clasaical 8cholarahip 1300-1850, Oxford, 1976, p. 167. 2. A obra, editada sob o pseudônimo de Diogo de Novais Pacheco, tem, como era habitual na época, um longo titulo: Exame critico de uma Süva Poética feita á morte da Sereníssima Infanta de Portugal, a Senhora Dona Francisca. O significado deste Exame Critico foi posto em relevo por Hernanl Cidade, Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, Vol. II, Coimbra, 5 1968, p. 83-90.

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Hércules

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  • A Apreciao dos Trgicos Gregos pelosPoetas e Teorizadores Portugueses

    do Sculo XVIII

    MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA

    "O nico caminho para nos tornarmos grandes, at mesmo,se possvel, imortais, a imitao dos Antigos". Esta famosa frasede Winckelmann, o fundador do Neo-helenismo, como lhe chamouPfeiffer,1 tambm vlida para a maior parte dos poetas portugueses do Sc. XVIII. O renovado culto da Antigidade tnhapenetrado em Portugal por mediao francesa. A origem desteacontecimento cultural, que considerado uma reao contra obarroco, reside, na opinio geral, na publicao de uma srie delivros: primeiro, a traduo da Art Potique de Boileau, por Francisco Xavier de Meneses, quarto Conde da Ericeira (escrita em1697, e muito lida em manuscrito, mas s impressa em 1793),depois do Exame Critico2 de Valadares e Sousa (1739); sete anosmais tarde saiu O Verdadeiro Mtodo de Estudar de Verney quedeu, como todos sabem, o primeiro grande impulso reforma dosestudos. No ano seguinte, portanto em 1747, estalou a demoradapolmica entre o Marqus de Valena e Alexandre de Gusmosobre o novo teatro, na qual o primeiro defendia a dramaturgia

    1. History of Clasaical 8cholarahip 1300-1850, Oxford, 1976, p. 167.2. A obra, editada sob o pseudnimo de Diogo de Novais Pacheco, tem,

    como era habitual na poca, um longo titulo: Exame critico de uma SvaPotica feita morte da Serenssima Infanta de Portugal, a Senhora DonaFrancisca. O significado deste Exame Critico foi posto em relevo por HernanlCidade, Lies de Cultura e Literatura Portuguesas, Vol. II, Coimbra, 5 1968,p. 83-90.

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    espanhola, e o segundo a francesa.3 Apenas um ano mais tarde,publicou Francisco Jos Freire (o arcdico Cndido Lusitano) asua Arte Potica, que compendiava quase todas as regras provenientes, no s da Potica de Aristteles e de Horcio, mas tambm da de Franceses, Italianos e Espanhis. Que o livro no apresenta qualquer ponto de vista original, recnheceu-o o prprioautor, ao citar, incessantemente, para alm dos tericos gregos elatinos, os humanistas do Sc. XVI como Vossius, Scaliger, Castel-vetro, Minturno, Robortello, e os modernos dos Sc. XVII e XVTJJ,como Boileau, Le Bossu, Dacier, Rolin, Muratori, Luzn e muitosoutros.4 Conquanto estes teorizadores fossem conhecidos dos poetas portugueses, o tratado permaneceu como o compndio basilarda maioria, como se deduz das entusisticas palavras de Manuelde Figueiredo:6

    ... "Uma Potica hoje mais til que a de Aristteles, e a deHorcio, ilustrada pelo mesmo famoso Portugus... no seprecisar notcia que nelas se no encontre."

    3. Sobre o assunto, vide A. J. Costa Pimpo, La Querelle du ThtreEspagnol et du Thtre Franais au Portugal, Revista de Histria Literriade Portugal, 1 (1962), 259-278 Escritos Diversos, Coimbra, 1972, p. 465-484.De qualquer modo, o Cid despertou aqui, como em toda a parte, uma apaixonada discusso.

    4. Falta ainda fazer uma investigao exaustiva do assunto. Podemver-se exemplos convincentes de Imitao, de traduo mesmo, de Muratorlem A. J. Costa Pimpo, Um plgio de Francisco Joseph Freire (CndidoLusitano), Biblos 23 (1947), 203-209. Por sua vez, Anbal de Castro, Retricae Teorizao Literria em Portugal, Coimbra, 1973, p. 481-482, revelou a presena do mesmo processo na Ilustrao Critica de Cndido Lusitano. Tambmpara A. D. Cruz e Silva ele era o nunca assaz louvado Muratorl, conformese exprimiu na sua Dissertao sobre o Estilo das clogas (Poesias, Vol. n,Lisboa, 1833, p. 18). Modernizmos sempre a ortografia portuguesa doSc. xvm.

    5. Teatro de Manuel de Figueiredo, Vol. XIII, Lisboa, 1815, p. VII, (daquiem diante citado s com a indicao do volume e da pgina). Na sua dissertao sobre a tragdia, que anteps a Mgara, por ele escrita de parceria comReis Quita (Lisboa, 1767, p. LXIII, nota), Pedegache afirmou, no obstante,ter lido mais de trinta livros sobre Potica. Repare-se no entanto que aparenta nada saber da Arte Potica de Cndido Lusitano, publicada dezanoveanos antes, e, inversamente, elogia e cita com freqncia a verso da Epistulaad Plsones pelo mesmo autor.

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    Como todos os outros autores de tratados que o precederam,Cndido Lusitano elogiava a imitao dos escritores gregos e latinos, como era costume naquele sculo. Tal atitude era conformecom a esttica da Arcdia Ulissiponense ou Arcdia Lusitana fundada em 1757 sob a influncia da Arcdia Romana da qualele era membro. Pois, como todos sabem, Arcdia que cabea glria de ter ensinado e exercitado a chamada arte potica neo-clssica. Que este regresso ao passado ocultava a semente progressista do iluminismo, como lucidamente observou Antnio JosSaraiva,* est fora do mbito deste trabalho analis-lo.

    Tambm Correia Garo recomendava aos seus 'Compastores'a imitao dos Antigos, quando se lhes dirigia nos seus discursosacadmicos, sobretudo na "Dissertao Terceira", e tambm nassuas poesias. Contudo, dizia, imitao no deve ser traduo; fbulas, imagens, pensamentos, estilo, devem imitar-se, de maneira atornar prprio o que imita:?

    "Devemos imitar os antigos: assim no-lo ensina Horcio, no-lodita a razo e o confessa todo o mundo literrio. Mas estadoutrina, este bom conselho, devem abra-lo e segui-lo demodo que mais parea que o rejeitamos, isto , imitando e notraduzindo. Os poetas devem ser imitados nas fbulas, nasimagens, nos pensamentos, no estilo; mas quem imita devefazer seu o que imita."

    Na conhecida e muito citada Stira n exprimiu-se de modosemelhante:s

    6. Na sua edio de Correia Garo, (Obras Completas, Vol. I, Lisboa,1958, p. XXXVIII) (Coleo de Clssicos S da Costa). Daqui em diante, todasas citaes desta edio indicaro apenas o volume e a pgina. As opiniesde um Menndez y Pelayo, Histria de Ias ideas eatticaa en Espuna. Santan-der, 1940, p. 478-508, esto hoje ultrapassadas.

    7. Vol. II, p. 134-135.8. Vol. I, p. 228. Que esta imitao era sobretudo uma disciplina do

    estilo do assunto, exprime-o a famosa frase que Racine escreveu no primeiroprefcio a Britannicus: Et nous devons sans cesse nous demander: QueDiralent Homre et Virgile, s'lls llsaient ces vers? Que dirat Sophocle, s'ilvoyait reprsenter cette scene? (Racine, Theutre, Vol. IL Paris, 1960, p. 300).

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    "No posso, amvel Conde, sujeitar-mea que s cegas se imitem os Antigos

    Imitam o pior, mas no imitamos versos mais canoros e correntes,a sisuda dico, a frase pura."

    O modelo era vlido para todos os gneros, incluindo o teatro,cuja renovao era alvo dominante da Arcdia. O prprio Garoter escrito duas tragdias de assunto romano, Regulo e 8ofonisba.*Como sabido, porm, s as suas comdias chegaram at ns, umadas quais aquela que o pblico no consentiu que fosse representada at o fim, o Teatro Novo. A so passadas em revista asdiversas representaes dramticas do tempo, e cada actor exprimeos seus pontos de vista. nesse contexto que Gil, o defensor dasteorias arcdicas, prope que se presenteie o pblico com bonstextos com belos versos e fbulas elevadas e sem msica, pois oteatro pode por si s ensinar todas as virtudes.10 E, quando lhepedem que ponha em cena uma pea no gnero, prope que serepresente uma Ifignia em ulide.

    O Teatro Novo foi escrito em 1766. Havia muitos anos logo aps a fundao da Arcdia que Garo se ocupava dasregras do teatro grego, ou, mais exatamente, das regras que Castel-vetro e todos os subseqentes comentadores consideravam comopertencentes Potica de Aristteles. Ao tema dedicara j doisdiscursos, a "Primeira" e a "Segunda Dissertao", ambas lidasperante a Arcdia em 1757.

    Trata a primeira de um ponto controverso desde a Antigidade, designadamente, se lcito representar no palco cenas sangrentas, e em que medida tais acontecimentos despertam nos espectadores os devidos sentimentos de temor e compaixo. A oportunidade naturalmente utilizada para elogiar os Franceses pela suaobedincia aos preceitos aristotlicos; inversamente, Addison censurado pelos motivos opostos. Tal atitude , como todos sabem,

    9. A Informao provm de J. M. Costa e Silva, in: Ramalhete, tomo3", p. 134 (apud A. J. Saraiva, ed., Correia Garo, Vol. I, p. LX).

    10. Vol. II, p. 27.

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    um lugar comum da crtica europia dos sculos XVJJ e XVTJI etem a sua origem remota na falta de clareza do captulo XI daPotica de Aristteles.11 Seguidamente, Garo analisa a definioaristotlica da Traglia luz do comentrio de Dacier.12

    O difcil objeto da "Dissertao Segunda" de que maneirae com que meios se pode induzir uma verdadeira katharsis, esclarecido mediante o apelo a comentadores antigos e modernos. Aterminar, exalta o valor educativo da Tragdia.

    O significado profundo que estas Dissertaes comportam, noobstante a sua falta de originalidade, foi reconhecido h algunsanos por Luciana Stegagno-Picchio, ao dizer que Garo se esforou por falar uma linguagem europia em Portugal, e com issoabriu a porta a teorias estticas redescobertas e amadurecidasnoutros climas. Observou ainda que a sua teoria da 'imitao original' patenteava o nico caminho para a criao potica, que sepodia seguir nesta direco.13

    Outros membros da Arcdia escreveram dissertaes destegnero, esmaltadas com citaes colhidas em teorizadores antigose modernos. Pelo que ao teatro respeita, temos nos longos prlogosque Miguel Tibro Pedegache e Manuel de Figueiredo antepuserams suas reformulaes muitas vezes simples tradues detragdias gregas e francesas ou s suas prprias criaes.

    No mesmo ano em que Garo leu perante a Arcdia as mencionadas Dissertaes, comps Manuel de Figueiredo a sua primeiratragdia, dipo, que, pensava ele, eram as principais do gnero emPortugal; a outros podia ser dado o triunfo, mas a ele ficava aglria de ter sido o primeiro.14 Que em toda a parte o Oedipus

    11. Vide comentrio de D. W. Lucas, ed., Aristotele: Poetics, Oxford,1968, p. 134-135. Sobre a maneira como os exegetas e Horcio desvirtuaramo ponto de vista do Estagirita acerca de representaes realistas do horror,vide C. O. Brink, Horace on Poetry, Vol. n, Cambrldge, 1963, p. 114.

    12. Tratam tambm desta to famosa como discutida definio CndidoLusitano (que segue Luzn) e Pina e Melo, cada um na sua Arte Potica.

    13. L. Stegano-Picchio, Garo terico dl teatro In: Ricerche sulteatro portoghese, Roma, 1969, p. 257-288. As citaes provm das p. 260 e 287.

    14. Vol. xm, p. VI. A mesma reivindicao feita por Pedegache paraa Mgara, que escreveu conjuntamente com Reis Quita (supra, nota 5). Tal

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    Tyrannos era tido como o modelo mais acabado da tragdia grega,disso tnha ele conscincia. Alm disso, depois de Sfocles haviapoetas famosos que tinham tratado o tema, como Sneca, Corneille,Voltaire. La Motte. Ele, porm, entendera dever escrever de outrafeio, porquanto receava o seu minguado talento e a sua faltade prtica:u

    "No vereis copiadas as admirveis cenas patticas de Sfocles, os mesmos pensamentos, as mesmas desconfianas, a mesma moralidade, aquelas perguntas, e respostas sabidas; nemtambm achareis aqueles remorsos, aquelas pinturas, aquelasimagens poticas, aqueles sonhos, que so a alma destas composies; temi o meu pouco talento, temi a falta de prtica,temi o teatro."

    Anteriormente, tinha escrito que havia tido os modelos diantedos olhos, no s para os evitar, mas tambm para os imitar.16Nem episdios amorosos, nem Creonte, nem qualquer outra figurapara este papel, nem ama, nem monlogos, nenhuns apartes como preceituava Murator. Versos sem rima (como queria a Arcdia) 17 e os coros eram outro desvio da tradio (especialmenteda francesa, embora no o exprima claramente) .18

    como Manuel de Figueiredo, julga este dramaturgo que a famosa Castro deAntnio Ferreira (1587) estava composta contra as regras (Pedegache, p. I;Figueiredo, Vol. XIII, p. XII).

    15. vol. xm, p. xvn.16. vol. xm, p. m.17. Cf. Cndido Lusitano, Arte Potica, Livro II, p. 80; Garo, Epstola

    I e Stira II; Pedegache, Dissertao sobre a Tragdia, p. LXXVI. Pina eMelo, Arte Potica, Lisboa, 1765, p. 43, tinha proscrlto os versos sem rima.Com o tempo, podero vir a suportar-se, mas no para j, diz ele:

    Pode vir a aceitar-se com o tempo,mas ainda o nosso agrado no consegue.No mesmo ano comps, como veremos, uma traduo rimada do dipo,

    mas desprovida de coros. Sobre a discusso entre aqueles que tm Pina eMelo por um epgono do Barroco e os que reconhecem na sua Arte Potica asdoutrinas do Neoclassiclsmo, vide Hernni Cidade, Lies de Cultura e Literatura Portuguesas, VoL n, p. 250-256, V. M. Aguiar e Silva, Para uma interpretao do Claaaiciamo, Coimbra, 1962, p. 141-142; J. Prado Coelho, A musa

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    Com esta pea entramos directamente no cerne do nosso tema.Com efeito, o Oedipus Tyrannos foi, que saibamos, parafraseadoou imitado trs vezes pelos setecentistas portugueses: primeiro,por Manuel de Figueiredo (1757), como j se disse; depois porPina e Melo (1765) e por Cndido Lusitano (1760), cujo trabalhoficou por publicar.

    O facto no surpreendente, porquanto a pea foi sempre umparadigma para o teatro grego, e Aristteles escolheu-a nada menos de oito vezes para exemplo das suas teorias. Alm disso, Sfocles era considerado o mais perfeito dos trs grandes trgicos. Astrs unidades, que Castelvetro pretendia encontrar na Potica eque ele proclamava indispensveis, encontravam-se l todas, bemcomo uma anagnorisis com peripateia. Tambm Garo louvavaesta tragdia acima de todas as outras. Nos seus discursos, fezresumos em que claramente exaltava a boa ordenao dos acontecimentos que conduzem catstrofe.19 Tudo isto tinha sido postoem evidncia por Aristteles e seus sucessores. O que mais nosinteressa a explicao do mito que nos dada, no porque sejaoriginal,20 mas por ser aquela que Garo selecionou, a partir das

    negra de Pina e Melo e as origens do Pr-Romantismo portugus, Memriaada Academia das Cincias de Lisboa, Classe de Letras 8 (1959), p. 9; segue-oAnbal de Castro, Retrica e Teorisao Literria em Portugal, p. 643-644.

    18. A controvrsia sobre os coros tinha principiado havia muito. Racine,por exemplo, excluiu-os das suas tragdias de tema grego, mas manteve-osnas peas tomadas da tradio bblica (Esther, Athalie). No pensava assimPedegache, que entendia que por meio dos coros se torna a tragdia muitomais regular e ganha em variedade; o seu efeito mais notvel o patticodal resultante (Dissertao sobre a Tragdia, p. LVn e LXI). Defensor convicto dos coros era tambm Manuel de Figueiredo, que escreveu: Sem coros,nunca a Tragdia chegar perfeio e grandeza de que susceptvel (Vol.IX, p. 442).

    19. Dissertao Primeira, Vol. II, p. 111; Orao Stima, Vol. II,p. 217-218. No primeiro dos passos citados, o entusiasmo leva-o to longeque declara: Afirmo-vos, senhores, que nunca li esta tragdia de Sfoclesque no chorasse.

    20. No final da Discusso Segunda, Vol. II, p. 129, ' o prprio autorque reconhece que se tornou plaglador, para corresponder ordem da Arcdia,de proferir este discurso: Para oberecer-vos me tenho feito plaglrlo, nofazendo os meus discursos mais do que transcrever aqueles poucos autores

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    suas fontes, como sendo a que era exacta. Teria sido a curiosidadeque conduziu dipo sua destruio, e desse modo devem os espectadores aprender que necessitam resguardar-se dela: r

    "... E conhecendo ns qual foi a paixo que, por exemplo,precipitou dipo em semelhantes desesperaes, impossvelque no cuidemos muito em nos abatermos de uma temerriae cega curiosidade, pois uma vez que se leia aquele excelentedrama, facilmente se conhece que estas duas paixes, mais doque o incesto e do que o parricdio, foram a causa da desgraade dipo."

    A curiosidade de dipo vista aqui como uma espcie dehybris, que impele o homem muito para alm das fronteiras dohumano. Tambm grandes helenistas de hoje, como E. R. Dodds,consideram a curiosidade como causa das infelicidades do heri,conquanto a interpretem como um smbolo da condio do homem,cuja inteligncia no tem descanso, antes de ter decifrado todosos enigmas.22

    No essa a viso de Manuel de Figueiredo, que, como j sedisse, se esforou por fazer da uma nova tragdia. A pea no merecedora de leitura, pois Figueiredo no era, como todos sabem,um grande tragedigrafo. Contudo, sempre interessante conhecer a sua interpretao da histria de dipo. E isso podemos nsfaz-lo graas s regras da Arcdia, que sujeitavam todas as obrasdos seus scios censura dos outros 'pastores*. O censor entonomeado era o j mencionado Valadares e Sousa, que escreveuuma anlise pormenorizada da pea. No entraremos nos porme-nores desta anlise, sobrecarregada de citaes de teorizadores antigos e modernos. Mas dedicar-nos-emos dilucidao do sentido

    que a m fortuna que me persegue me no pode arrancar das mos. Multasvezes cita as suas fontes, mas multas outras no o faz.

    21. Dissertao Segunda, Vol. n, p. 127-128. Cf. tambm OraoStima, Vol. n, p. 218: Tanto examina, tanto se obstina e a tanto se atreveque o mesmo ardor da sua curiosidade o precipita em um plago de angstias,de maldio e de remorsos.

    22. D. R. Dodds, On Mlsunderstanding the Oedipus Rex in: The AncientConcept of Progreaa and Other Essays on Greek Literatura and Belief,Oxford, 1973, p. 64-77.

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    fundamental, que atribudo tragdia pelo autor e pelo seu censor, porquanto dai resultam diferenas de opinio que nos facilitamuma avaliao mais rigorosa do modo de compreender o assuntopelos poetas de ento.

    Para Manuel de Figueiredo, o tema central de OedipusTyrannos a proteo de Tebas contra a peste e o papel que adesempenha o rei. Esta tese posta em causa por Valadares eSousa, ao defender a viso corrente da poca de que o tema erao castigo, que dipo a si mesmo inflingia, quando se convencia doseu incesto e parricdio. A tonalidade moralizante desta interpretao clara. Tambm os preconceitos religiosos contra o carterpago da histria eram cuidadosamente afastados de incio, sobpretexto de que poetas modernos, como Corneille, a tinham retomado.23

    A pea ainda elogiada por Valadares e Sousa, porque o autorachou um caminho para tornar mais verossmil o facto de, durantetantos anos, ningum ter empreendido desvendar o assassino deLaio, fazendo do pastor becio o nico acompanhante do antigorei de Tebas que logo aps a morte do seu senhor se ps procurado filho deste, que ele havia entregado ao pastor corntio quandorecm-nascido. Pois a residia um erro de Sfocles, que Aristtelesem vo tentara desculpar no captulo XIV da Potica.M

    Tambm Manuel de Figueiredo se esforou, na sua 'Resposta censura', por demonstrar a existncia de erros em Sfocles, porexemplo, por que que no final do segundo 'Acto' o rei no conhecea sua verdadeira identidade, dado que a concordncia da fala deTiresias com as palavras do orculo, que lhe haviam causado toprofunda impresso, como quando lhe haviam chamado crianaexposta, no admitia nenhuma outra resposta, seno que aindafaltavam mais trs 'Actos' da tragdia. To-pouco era adequadoao carter de dipo desconfiar de Creonte. "Mas quem sou eu,para falar contra Sfocles?" pergunta ento Figueiredo, tomadode subida modstia.26

    23. Valadares e Sousa, Censura da tragdia portuguesa intituladadipo in: Teatro de Manuel de Figueiredo, Vol. XIII, p. 65.

    24. Vol. Xin, p. 67.25. Vol. XIII, p. 111-112.

  • 102 ENSAIOS DE LITERATURA E FILOLOGIA

    curioso que Valadares e Sousa e Manuel de Figueiredo parecem conhecer razoavelmente bem os teorizadores modernos de ento, como Dacier e Luzn, assim como os dramaturgos, tais comoRacine, Corneille, La Motte, Bouhier e Voltaire, ao passo que manifestamente s em traduo leram os gregos. Efectvamente, nos Aristteles citado segundo Dacier, mas tambm o texto deSfocles parece ser conhecido atravs da mediao dos Franceses.Valadares e Sousa menciona a traduo de Boivin; Figueiredo, oque ainda mais surpreendente, a de Dacier.26 Da resposta deManuel de Figueiredo e da dificuldade com que a Arcdia pareceter aceitado a sua tragdia deduz-se facilmente que ela no gozoude qualquer xito entre os conscios.27 que, como to bem oexprimiu Hernni Cidade, no recebeu "em partilha grandes favores das Musas".28

    Nada surpreende, por conseguinte, que trs anos mais tardeoutro scio da Arcdia, Cndido Lusitano, empreendesse uma traduo da mesma obra-prima, da qual parece estar ausente todo equelquer conhecimento da tentativa de Figueiredo. A verdade que no seu manuscrito (a obra nunca foi publicada) ele se vangloria de oferecer juventude duas peas do teatro grego, dipo eMedia, que eram "as mais judiciosas, mais bem imaginadas emais complexas", e contudo muitos havia que no conheciam aarte, o sentido e a perfeio destas tragdias. Reproduzimos otexto com algum pormenor, uma vez que, conforme especificmos,est ainda por imprimir: &

    26. Um e outro In: Teatro de Manuel de Figueiredo, Vol. Xm, p. 85 e 108.27. fi facto multo conhecido que o teatro de Manuel de Figueiredo nunca

    foi representado e que devemos a nica edio do seu nunca muito lido textoao Irmo (treze volumes, dos quais apenas trs foram publicados pelo prprioautor).

    28. Lies de Cultura e Literatura Portuguesa, Vol. n, p. 324.29. As sete tragdias gregas que Cndido Lusitano traduziu ou para

    fraseou encontram-se todas em cdices inditos da Biblioteca Pblica Municipal de vora: Cod. CXIII (Ifignia entre os Tauroa apenas metade); Cod.CXIII lOd (Media); Cod. CXIII d (dipo); Cod. CXIII d (Hcuba e Feni-ciaa); Cod. CXIII d (Hracles e Ifignia em Aulide).

  • A APRECIAO DOS TRGICOS GREGOS 103

    "Em um tempo, em que a mocidade estudiosa tanto se inclina lio da Poesia Trgica, e em que j alumiada escarnece dosmiserveis dramas, que seus pais nesciamente engrandeceram,e aplaudiram; pareceu-nos conveniente para mais a radicar nobom gosto da Tragdia, dar-lhe a ler na linguagem maternaat onde chegara a perfeio do Teatro Grego. Sim, so jmuitos (antes to poucos eram!) os que sabem, que Sfocles,Eurpides foram os supremos mestres da Arte trgica; e queo dipo do primeiro, e a Media do segundo so as obras maisjudiciosas, mais bem imaginadas, e mais complexas, que saramdas suas mos, e que h tantos sculos admira o mundo literrio. Porm no so inda muitos os que sabem, qual seja aarte, juizo e perfeio, que contm estas tragdias."

    Desculpa-se seguidamente o autor de s ter podido reproduzir "acorreo do debuxo, que tm os ditos quadros originais", e no"a brilhante viveza e os subidosr ealces de colorido" que possuem.

    No julgaremos aqui da qualidade das parfrases (pois deparfrases, e no de tradues nem de criaes prprias se trata).Esse trabalho foi j feito para As Fencias por Manuel dos SantosAlves,30 e nele mostrou esse investigador como a pea est livremente composta, em comparao com o original. Diga-se tambmque Cndido Lusitano para o dipo e a Media emprega a expresso "exposta em lngua portuguesa", e, para as restantes, "tragdias de Eurpides parafraseadas". Constitui excepo a Ifigniaentre os Tauros, que no fornece qualquer dado, provavelmenteporque nunca pde lev-la at o fim.

    Se Cndido Lusitano utilizou para o efeito o original grego,uma traduo latina ou francesa, incerto. No prlogo mencionaas tradues anotadas de Brumoy, Dacier, Gravino e outros. Sabe-se bem como Brumoy foi uma importante fonte de difuso dostrgicos gregos no domnio lingstico romnico.31 A este pontotornaremos adiante.

    30. Manuel dos Santos Alves, As Fenicias de Eurpides. Uma parfrase de Cndido Lusitano. Humanitas 25-26 (1973-1974), 17-41.

    31. Brumoy, Le Thtre dea Grecs, 3 vote., Paris, 1730. A obra tevemuitas lies. O jovem Garrett ainda a utilizou, quando comeou a traduzir

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    No mesmo sculo, em 1765, foi publicado um terceiro tratamento do drama sofocliano.32 Desta vez provinha de um opositorda Arcdia, Francisco de Pina e Melo, que comps a sua obra emversos rimados, sobretudo decasslabos. Como tantos outros, eliminou o Coro, porque "este se tem suprimido em todas as tragdiasmodernas".33 O respectivo papel destina-o ele ao Grande Sacerdotede Jpiter, "porque assim ficava mais fcil no nosso teatro, e talvezmais gostosa a representao da mesma tragdia, sem que por issose lhe tirasse, ou pervertesse cousa alguma do seu nexo, e soluo,nem ainda o mais essencial deste poema dramtico padece nestamudana alguma ofensa". Assim foram eliminadas as odes coraisde dipo, que desempenham to grande papel na inteligibilidadee beleza da obra!

    Se o poeta arcaizante, "o corvo do Mondego", como ironicamente o intitulava Garo,34 pretendia rivalizar com os rcades,demonstrando na prtica que se podia traduzir melhor uma tragdia em versos rimados,35 apenas uma conjectura nossa, que ohbito, ainda existente no Sc. XVIII, de divulgar cpias por imprimir dos manuscritos nos permite.

    Que ele considerava a sua obra como uma grande conquistada sua arte e que procurou atenuar a desiluso pelo insucesso queteve atravs da falta de cultura dos espectadores, demonstram-noos seguintes versos da sua Arte Potica: &

    Ifignia entre os Tauroa e dipo em Colono, conforme revelou Andre CrabbRocha, O teatro indito de Garrett, Coimbra, 1949, p. 11-19. Veja-se tambmDavld Saunal, Textes Indits d'Almeida Garret, Bulletin d'Hiatoire du ThtrePortugais 3 (1953), 45-90.

    32. Traduo do dipo de Sfocles. Agradeo a J. Ribeiro Ferreirater-me chamado a ateno para esta traduo.

    33. Esta afirmao vlida para as obras de Corneille e Racine maisconhecidas em Portugal. Sobre o emprego do coro em certos dramas deRacine, vide supra, p. 100 e nota 18.

    34. Epstola I, Vol. I, p. 200.35. Recordemos aqui a sua Arte Potica (sobre a qual, vide supra,

    nota 17). Inversamente, pode ler-se uma defesa tpica do verso branco emPedegache, Dissertao sobre a Tragdia, p. LXXVI-LXXXI.

    36. Arte Potica, p. 44.

  • A APRECIAO DOS TRGICOS GREGOS 105

    "Sendo o dipo o esplendord o engenho humanomais feliz, que at agora se tem visto, nossa lngua o trouxe, e me pareceque com bastante alento, e propriedade:levou-se ao teatro, sem algum efeitodesta ilustre expresso; que mais defeitoda nossa miservel ignorncia,ou que prova maior teria havidode estar o nosso gosto corrompido?"

    Mas voltemos Arcdia. Outras tragdias foram tambmtraduzidas ou parafraseadas pelos seus scios. Entre elas, o Hra-cles de Eurpides, que foi fundida por Reis Quita e Pedegache juntamente com o Hercules Furens de Sneca num s drama, sob onome de Mgara, como j foi demonstrado por J. Ribeiro Ferreira.37

    Para essa obra escreveu Pedegache uma extensa "Dissertaosobre a Tragdia", j acima referida, na qual se gloria de pela primeira vez ter escrito uma pea "ajustada com as regras que praticaram os Mestres da cena, os Esquilos, os Eurpides, e os Sfocles,e seguindo religiosamente os seus vestgios que nos prescreveuAristteles".38

    Neste prefcio de quase cem pginas, so tocados diversosproblemas, e no final proporciona-nos um interessante quadro doestado do teatro dramtico na sua poca. Porm o que aqui nosinteressa a violenta crtica que ele exerce sobre Eurpides: "aindividual narrao das hercleas faanhas... sofistica e pueril",as acusaes de Anfitrio so "por um modo, que no tem menosde ridculo que de mpio"; a narrativa da exploso de clera deHrcules, embora "vivssima e pattica", era indigna do coturno; tragdia falta unidade de ao. S a cena do regresso do heria casa est excepcionalmente bem construda, e a ignorncia deHrcules "o mais fino e mais belo desta cena".39 Os helenistas

    37. Fontes clssicas na Mgara de Reis Quita e Pedegache, Humanitas25-26 (1973-1974), 115-153.

    38. A citao da p. I.39. Dissertao sobre a Tragdia, p. V-XX, passlm.

  • 106 ENSAIOS DE LITERATURA E FILOLOGIA

    de hoje concordam em parte com esta crtica. Todavia, a peasetecentista est muito abaixo do original grego.

    Reis Quita imitou Eurpides ainda outra vez. F-lo em Her-mone. O mesmo vale para Manuel de Figueiredo, que compsuma Andrmaca. J. Ribeiro Ferreira estabeleceu j um minucioso paralelo das duas peas com as fontes acima mencionadas,paralelo esse do qual resulta que ambos os poetas utilizaram aobra de Brumoy.40 Aqui lembraremos apenas brevemente a polmica de Manuel de Figueiredo com os seus modelos, qual dedicavrias pginas do seu prefcio. Pelo que respeita a Eurpides,censura especialmente a longa cena, em que Peleu e Menelau seinsultam como regateiras; a "invectiva burlesca de Hermione aOrestes contra as mulheres"; a falta de verossimilhana e de unidade. Mas muito pior ainda, continua, a imitao de Recine...Se se tirar Adromaque o que provm de Eurpides, "no ficanada que possam ouvir seno mulheres" conclui.41

    Tais afirmaes valem, em todo o caso, como uma demonstrao de quanto era difundido e admirado o drama de Racine.Do facto do testemunho as tradues de Lima Leito, FilintoElsio e Nolasco da Cunha, referidas por Jorge de Faria.42

    De idntico modo foi a Ifignia em Aulide do mesmo dramaturgo francs traduzida duas vezes: por Lima Leito e por FilintoElsio.43 A Ifignia de Eurpides no estava, contudo, esquecida.44Manuel de Figueiredo tinha tambm composto uma Ifignia em

    40. J. Ribeiro Ferreira, Influncia da Andrmaca de Eurpides no Teatro Portugus do Sculo XVm, Bracara Augusta 28 (1974), 247-278.

    41. Discurso de Andrmaca In: Teatro, Vol. X, p. 353. Observa eleque no pode compreender como os modernos admiram tanto Racine, poisdesconhecia as principais regras da tragdia (Vol. X, p. 354-355). Em contrapartida, louva entuslastlcamente Corneille, cujo CUI traduziu: O Cid de Cor-neille to admirvel como o dipo de Sfocles (Vol. Vm, p. XV). Estamosperante uma pequena parte da discusso em torno dos mritos relativos deCorneille e Racine.

    42. Jorge de Faria, Um sculo de teatro francs em Portugal (1737-1837). Bulletin d'Histoire du Thtre Portugaia 1 (1950), p. 74.

    43. Jorge de Faria, Um sculo de teatro francs em Portugal (1737-1837), p. 75.

    44. Recordemos aqui novamente a escolha final do drama a ser representado, no Teatro Novo de Garo (vide supra, p. 98).

  • A APRECIAO DOS TRGICOS GREGOS 107

    Aulide em 1777. O motivo que deu para a sua escolha era, contudo,a um tempo curioso e honesto: no conhecia a lngua suficientemente bem, precisava de ter sempre o dicionrio mo, para acompreender, de tal modo que s podia traduzir "por alto", e Eurpides sempre era mais fcil de verter, uma vez que o seu estilodeclamatrio favorecia a fraqueza dos tradutores, ao contrrio deSfocles, onde nem uma s palavra se podia perder. Vale a penarecordar o texto nos seus termos exactos, porquanto estabeleceum contraste penetrante entre os dois trgicos: ^

    "... Porque se quisesse dar um bom modelo, busc-lo-ia antesem Sfocles; porm a traduo seria ainda muito pior; pois oestilo declamatrio, e sentencioso de Eurpides muito maisa nosso favor (digo dos maus tradutores) porque se enfraquecemos em uma expresso, l nos melhoramos em outra...Sfocles no as diz de mais, e se um homem no pode dar amesma fora, ou o mesmo pattico palavra, ou frase, notem a que se torne; e as sentenas tm um sublime em si,que necessrio reflexo para que no agradem sempre; eso um cavalo de guerra para quem quer agradar ao pblico".

    Sobre o estilo de Sfocles pronunciou-se tambm Manuel deFigueiredo, ao comparar, numa srie de rebuscadas antteses, otrgico ateniense com Corneille. Deduz-se da que Sfocles se distingue por ser possuidor de uma aparente simplicidade e regularidade, e ainda de uma cuidadosa e geomtrica arte da composio.46 A crtica moderna no pode desmentr tal modo de apreciarSfocles.

    Mas temos ainda de regressar a Ifignia, pois Figueiredo admirava esta obra de Eurpides em especial. No h nenhuma discusso entre prncipes "muito grosseiros", como a de Menelau e Peleu.na Andrmaca, diz ele, mas todas as marcas de uma adte excelsana moderao do dilogo entre Clitemnestra e Agammnon, nafala de Aquiles, e na circunstncia de estes dois nunca se encon-

    45. Discurso de Ifignia em Aulide In: Teatro, Vol. DC, p. 425-426.46. Discurso de O Cid de Corneille In: Teatro, Vol. Vm, p. XV-XVI.

  • 108 ENSAIOS DE LITERATURA E FILOLOGIA

    trarem em cena.47 No "Discurso" anteposto a Ifignia leva maislonge, naturalmente, a anlise da pea. Encontra nela trs grandesqualidades: a imitao da verdade, da natureza (o que era, comose sabe, um dos princpios do Neo-classicismo); a honrosa luta dareligio com a paixo; o herosmo, que paira muito alto, acima doamor das pesosas. Torna-se perceptvel, aqui, a crtica Iphigniede Racine. Por conseqncia, no havia histrias de amor comErphile, com cuja inveno Racine se sentia to orgulhoso,48 poiscom isso evitara o fim sobrenatural e poupara a morte da herona.

    A substituio de Ifignia por uma cora, j outros poetasa tinham sentido como necessria. Assim o pensaram LudovicoDolce e Rotrou. Neste ltimo, a herona desaparece subitamente,sem que se compreenda o que realmente aconteceu. Dai decorre apergunta: "Qui des deux nous Ia cache, ou Ia Terre ou les Cieux?"Tanto a soluo como o verso so mencionados por Brumoy.49 Dofacto se pode escutar um eco perceptvel em Manuel de Figueiredo:

    "A vitima porm desapareceu,sem poder decidir-se inteiramente,se a Terra, se o Cu que no-la enconbre."

    Este passo s por si no poderia servir de prova da utilizaodo livro de Brumoy por Manuel de Figueiredo, se no dispusssemos de outras similitudes. Dois exemplos bastaro para j (emcada caso, indicar-se- primeiro o original grego, a seguir a traduo de Brumoy e em terceiro lugar a de Manuel de Figueiredo):

    303 MevXaE, toXuaT oev', o' ou to?.uv XQf

  • A APRECIAO DOS TRGICOS GREGOS 109

    668 ov (i.r|T(n jifc,evaav' \ uvn noneoouxii;"M'embarquerais-je seule, ou avec Ia Reine?""Me embarcarei eu s, ou co'a Rainha?"

    Tambm h, naturalmente, modificaes, em especial quantoao tratamento do coro. Mas de um modo geral pode afirmar-seque Manuel de Figueiredo seguiu, tanto aqui como noutros pontos,o modelo da verso francesa.50

    No se limitou, porm, imitao dos trgicos gregos. Mastodos os seus dramas eram conformes ao padro clssico. Ele mesmo declara:n

    "Tanto assim, que compus todas as fbulas do meu Teatrosem ter mais que a Potica de Aristteles com os originais vista".

    Consequentemente, todas as quatro tragdias baseadas na histria nacional (Osmia ou A Lusitana, Ins, As Irms, Viriato) somodeladas segundo as mesmas regras. O caracter da Rainha D.Leonor Teles, protagonista de As Irms, e o plano do drama, tirou-oele de Electra, e acreditava ingenuamente que a penltima cenada sua tragdia estava delineada em puro estilo sofocliano.62

    Considermos, at agora, as mais importantes declaraes dospoetas portugueses do Sc. XVUJ sobre Sfocles e Eurpides.53

    50. Observe-se tambm que o emprego do lexema bicha em vez decora um galiclsmo, porquanto bicha designa vermes e cobras; inversamente, cerva ou cora encontram-se j num documento de 1269. Tambm o masculino bicho tinha para o j aqui muitas vezes citado CndidoLusitano (Reflexes solrrc a Lngua Portuguesa, Lisboa, 1824, p. 88) o sentidode verme ou Inseto, e por Isso dlr-se- mal bicho do mato, ou do bosque,por fera (todos os dados so extrados de Jos Pedro Machado, DicionrioEtimolgico da Lngua Portugueaa, Lisboa, 2 1967, s. v. 'bicho'). Que Manuelde Figueiredo usava com freqncia um modelo francs, mostra-o tambm aforma 'Trachlnlennes', que ele emprega no titulo da tragdia sofocliana (Discurso do Cato de Addlson, in: Teatro, Vol. VIII, p. 200 e 205).

    51. Discurso de Cato de Addison, in: Teatro, Vol. VIII, p. 212.52. Discurso de As Irms, in Teatro, Vol. VI, p. 224-225.53. Naturalmente que no tive em conta aquelas que apenas servem

    para apoiar uma determinada teoria sobre o drama. & esse o caso de muitosdos exemplos aduzidos na Arte Potica de Cndido Lusitano, na Dissertaosobre a Tragdia de Pedegache e na Dissertao Primeira e Dissertao

  • 110 ENSAIOS DE LITERATURA E FILOLOGIA

    Conforme vimos, traaram com freqncia um paralelo entre osdois trgicos, que era vantajoso para Sfocles. Quando apenas senomeia um dramaturgo como smbolo da arte, sempre este oescolhido, como sucede na famosa Ode XV de Correia Garo, umadas muitas em que surge o tema da urea mediocritas: M

    "Porm Virglio, Sfocles, Homero,O Venusino Horcio,

    So as ricas alfaias que me adornamA sala majestosa,

    Os soberbos escudos em que pintoA gerao ilustre."

    Porm, que se passa com Esquilo? Evidentemente que tambm se do exemplos tirados dos seus dramas. Uma vez, Garoesboa o contraste entre as Eumnides e Rei dipo, com desvantagem para Esquilo, que suscitou o temor, no a partr do estadopsicolgico das personagens e dos espectadores, mas do aparatocnico. De passagem recorda-se tambm a histria tradicional daVita Aeschylt acerca dos terrores que a entrada das Frias teriacausado nas mulheres e crianas presentes.55 Tudo isto vinha naseqncia da frase de Aristteles: "Aqueles que, atravs do espetculo, provocam no o temor, mas apenas o horror, nada tm aver com a tragdia; pois no qualquer prazer que se deve procurar a partir da tragdia, mas aquele que lhe prprio".66 CorreiaGaro o primeiro a afirmar que hauriu todos estes dados aocomentrio de Dacier.

    Segunda de Garo, que, na sua grande maioria, derivam da obra monumen-tl de Brumoy e tratados similares. Identific-los todos seria, penso, tarefaintil.

    54. Vol. I, p. 119. Cf. ainda Pindaro, Homero, Sfocles, Virglio e maisadiante Anacreonte traduzido / Aristfanes, Sfocles e Safo, / Sem que fiquede fora o bom Homero na Stira n do mesmo poeta (Vol. I, p. 231 4 238).

    55. Dissertao Segunda, Vol. n, p. 124.56. Potica 1453b 8. Sempre se acreditou que este passo era uma crtica

    s Eumnides e ao Prometeu Agrhoado. Os modernos, porm, j no estoto certos disso. Vide D. W. Lucas, ed., Aristotle: Potica, Oxford, 1968,p. 151, que julga que o Filsofo possivelmente pensaria em dramas que nosso inteiramente desconhecidos.

  • A APRECIAO DOS TRGICOS GREGOS 111

    Tambm Cndido Lusitano tentou o paralelo entre os grandestrgicos e a esse tema dedicou um breve captulo da sua ArtePotica.57 No entanto, no revela a, como habitualmente, qualqueroriginalidade. Como juiz do estilo de Esquilo, chama colaoQuintliano: era grave e sublime, por vezes tambm pomposo eafectado. Para a apreciao do trgico "terno, pattico, e cheio deexcelentes mximas para os costumes e direco da vida civil",que era Eurpides, utiliza como fontes Minturno e sobretudo Apa-tista. Nem sequer os Gregos tinham podido decidir-se por um oupor outro, e a discusso a esse respeito prosseguia entre Francesese Italianos. Por isso repetia o que afirmara Apatsta, em cujo livroo leitor podia encontrar mais pormenores. Daqui pode deduzir-seque no s Cndido Lusitano, mas todos os teorizadores por elecitados tinham Esquilo por um autor ao mesmo tempo mais primitivo e mais sublime. Algo de semelhante o que lemos em Pedegache, que observa sem mais:

    "No falemos aqui de Esquilo por achar-se ainda muito informe no seu tempo a Tragdia. Quanto a Sfocles, e Eurpides,no encontramos neles mais do que uma apaixonada aderncia ao verossmil, um grande empenho em surpreender e agradar ao seu auditrio."

    De um modo geral, a opinio dos Atenienses mdios sobreEsquilo no era muito mais favorvel, como se deduz do agon deAs Rs de Aristfanes. No entanto esta comdia indica, a terminar, que Esquilo, e no Eurpides, que deve pr-se em primeiroplano.

    Aquela opinio dos 'AOiivuIot uetGoiAou encontrou muitos seguidores. Com efeito, no decurso do tempo. Esquilo foi posto departe, por vezes at qualificado de louco. S no princpio do Sc.XLX que comeou, como sabido, a ser exaltado acima dos outrosgrandes trgicos. De facto deve ter sido responsvel, em grandeparte, a dificuldade da sua linguagem e a densidade do seu pensamento religioso, que s nos ltimos anos tem sido devidamenteentendida e volorizada.

    57. Livro n, Capitulo XXI: Juizo sobre os Autores Trgicos, Gregosc Romanos, p. 111-114.

  • 112 ENSAIOS DE LITERATURA E FILOLOGIA

    Pode por conseguinte dizer-se que as opinies dos "pastores"da Arcdia sobre os trgicos gregos no se afastavam muito dojuzo prevalecente na sua poca. Na maior parte dos casos, apoiavam-se nos teorizadores e tradutores italianos e franceses, queforam para eles mediadores da Literatura Grega, pois o aprendizado da lngua helnica pela juventude s em 1750 foi reintrodu-zido pelo Estado, com a reforma pombalina dos estudos menores,no mesmo ano, portanto, em que Correia Garo podia escrever:

    "Principimos a familiarizar-nos com Homero, com Sfocles,com Virglio e com Terncio; e estes nomes que entre ns eramestranhos, e unicamente serviam nas dedicatrias, passaram aser dolos de nossos estudos."

    Foram numerosos os mritos dos rcades, no s na renovao dos gneros literrios, mas tambm no apuramento da linguagem. Em referncia ao domnio especial, que aqui nos interessa,o seu maior servio foi terem familiarizado os seus concidadoscom as novas teorias estticas. Que muitos deles, incluindo ostragedigrafos em particular, no foram felizes na sua aplicao, um facto que no se pode negar. Mas foram eles que despertaram a ateno e o interesse dos seus contemporneos pelo tema, efizeram-no, pode dizer-se, de uma maneira decisiva.

  • A (Des)construo do Heri(o problema da mediao no Hracles de Eurpides)*

    JACYNTHO LINS BRANDO

    Ao leitor moderno e certamente tambm ao espectador ateniense do V sculo a.C. acostumado ao estilo de Sfocles e Esquilo, ocorre com freqncia experimentar uma sensao peculiardiante das peas de Eurpides, sensao difcil de definir, mas quepoderia ser expressa, mais ou menos, como a constatao de umcerto grau de hibridismo. Uma obra de arte, enquadrada em determinado gnero, cria naturalmente no pblico acostumado umaexpectativa, decorrente do conjunto de experincias anteriores comoutros autores e obras similares, que lhe permite identificar, implicitamente, os elementos distintivos daquele tipo de produo. Estabelecem-se assim linguagens caractersticas de cada gnero, quecom o tempo passam a ser consideradas como prprias e mesmo,principalmente atravs do trabalho da crtica, como as nicas apropriadas a cada caso. Na prtica, constituem verdadeiros limitesdentro dos quais o autor dever se movimentar e que, mesmo sema ao coercitiva da crtica, so interiorizadas por ele e pelo pblico. Com efeito, a existncia de diversos tipos de linguagem aresponsvel pela abertura inicial dos canais de comunicao entreo autor e seu pblico, na medida em que o primeiro procura atender expectativa do segundo atravs da obra.

    Assim, um ateniense do sculo V, ao freqentar o teatro, levariaconsigo uma expecttva direcionada, que seria satisfeita em maior

    0 Agradeo Prof Filomena Yoshle Hirata Garcia, da Universidade deSo Paulo, o interesse com que leu este trabalho, bem como suas valiosase ponderadas sugestes.

  • 114 ENSAIOS DE LITERATURA E FILOLOGIA

    ou menor grau pelas peas representadas. Esse fato tem especialimportncia no caso do teatro grero, em vista das condies queenvolviam a apresentao dos dramas no um fato isolado, noa satisfao da expectativa em nvel apenas pessoal, mas umconjunto de peas includas numa festa pblica, sobre as quais sedeveria dar, no final, um veredito tambm pblico. O resultado dosconcursos expressa, de modo mais ou menos fiel, como ocorre emqualquer julgamento coletivo, o quanto a pea atendeu ou no expectativa anteriormente existente. E, nesse caso, expectativado conjunto dos assistentes, o que implicaria devido ao grau deabrangncia dos festivais a satisfao da expectativa da cidadecomo um todo.

    Segundo a tradio conservada pelos antigos, Eurpides teriasido poucas vezes premiado apenas em trs ocasies parece terobtido o primeiro lugar embora tenha composto em torno denoventa peas.1 Tal fato no significa que sua obra fosse considerada de m qualidade pelos contemporneos. O testemunho deAristofanes, colocado na boca do prprio Dioniso, nas Rs, nodeixa dvidas quanto a isso. O deus, justificando a necessidadede sua descida ao Hades, afirma claramente que, morto Eurpides(o que de fato ocorrera em 406, um ano antes da representao dacomdia em questo), j no existiam bons poetas trgicos. Apesarde, no desenvolvimento do enredo, ficar patente a inteno decriticar o poeta, fica igualmente claro que, ao lado de Esquiloe de Sfocles, lhe cabe um posto entre os melhores. O que odistinguiria dos dois primeiros seria justamente o feitio polmicode suas produes, que dividiriam a opinio do pblico.2 A pouca

    1. Cf. LESKY, A. A tragdia grega. S. Paulo, Perspectiva, 1976. p. 160.2. MARIA DE FTIMA SOUSA E SILVA. (Critica literria na comdia

    grega: gnero dramtico. Coimbra, Universidade de Coimbra, 1983) anota quepelo menos uma parte do pblico admirava vivamente Eurpides, considerando-oo sophtatos dos tragedlgrafos. Seguindo V. MARTIN (Eurlplde et Mnandreface leur publlc, in Entretiens Hardt VI, Genve, 1958) identifica tal parcelada comunidade como pessoas de vanguarda, jovens, com formao sofistica eatuao poltica: a nova gerao de aristocratas, que se concentra em tornodos mestres dispendiosos da poca, pertencente a uma elite de famlias comprestgio por nascimento e fortuna. a partir destas premissas que MARTIN

  • A (DES) CONSTRUO DO HERI 115

    premiao a ele atribuda se deveria, assim, talvez antes faltade consenso, j que, como observei, o julgamento oficial do concursotem carter pblico, devendo ser de algum modo consensual.

    A que se deveria tal carter polmico? Na tentativa de responder pergunta, muitos pontos poderiam ser lembrados, como os queenvolvem concepes a respeito dos deuses, do herosmo, da virtude,da natureza e preferencialmente explorando tais aspectos decontedo que a crtica moderna salienta o que faz da produode Eurpides objeto de controvrsia. Apresentam-se tambm considerao traos formais, atinentes ao que se costuma tratar de"carpintaria teatral", envolvendo questes de estilo, uso da msica,explorao do espetculo cnico e construo da intriga e das personagens. No pretendo aqui entrar em detalhes com relao a cadaum desses pontos, mas antes tentar compreender, de modo maisamplo, o carter geral da produo de Eurpides.

    Parece-me que um dos aspectos principais a ser consideradodiz respeito justamente ao problema da expectativa e de sua satisfao. Com efeito, embora Eurpides seja sem dvida inovador,tal adjetivo no lhe pode ser aplicado simples e diretamente. Assimse arma um verdadeiro jogo de enganos: quem espera encontrarnele a tradio do gnero se v frustrado em parte de sua expectativa: mas, igualmente, quem busca nele a inovao no se sentemenos frustrado em parte da expectativa.

    Tal fato pode ser observado facilmente com relao ao tratamento da religio em sua obra. Muitas vezes foi Eurpides acusado,pelos contemporneos e pelos psteros, de atesmo o que, semdvida, constitui algo de gravssimo para a tradio do teatro,nascido de cerimnias religiosas e nunca desligado delas totalmente.Tal acusao indica que a expectativa de encontrar em suas peasa representao dos temas da religio tradicional e a veiculaode sua ideologia no se cumpre. Por outro lado, quem espera

    (Op. cit, pp. 252-258) explica a incongruncia que reside no fato de, apesardos numerosos Insucessos de que Eurpides foi vtima numa longa carreira teatral,beneflclar-so da concesso de um coro, sempre que pretendeu apresentar-sea concurso. Nas famlias poderosas, a quem cabia a coregla, talvez Eurpidesencontrasse seus mais fervorosos admiradores, sempre dispostos a financiaremsuas peas, mau grado a reserva popular. (p. 214-215)

  • 116 ENSAIOS DE LITERATURA E FILOLOGIA

    encontrar em Eurpides o referido atesmo se v totalmente desconcertado, pois as afirmaes contrrias f vigente vm contrabalanadas por reafirmaes da mesma.

    Nesse ponto, como em outros em que se observam inovaes,no h ruptura. H antes o confronto quase nunca solucionado dedados antagnicos, convivendo numa composio hbrida. Algo quesendo a tragdia, assumida como um conjunto de processos caractersticos, j no mais a tragdia nesses termos. Da porque aapreciao de Eurpides varia tanto, gerando opinies que vo desdeconsider-lo o mais trgico dos tragedigrafos gregos at o responsabiliz-lo pela "morte" da tragdia.

    Em tudo isso, o que se pode constatar com relativa seguranaso os sintomas de uma enorme crise. No apenas uma crise datragdia e do teatro, mas uma crise mais geral da cultura, testemunhada tambm pela obra de outros autores da mesma poca.Conforme K. Reinhardt,3 afirmaria que a obra de Eurpides expressa,em alto grau, uma verdadeira "crise de sentdo" ("Sinneskrise")no mundo grego, que coloca em xeque todos os valores e instituies.Como bem observa o mesmo autor, no se trata de revoluo, j queno se prope um novo modelo em substituio a um antigo que secombate e com o qual se rompe. A crise se processa no terrenomovedio das contradies criadas a partir do momento em que osentido deixa de cumprir seu papel de suporte das instituies.Dessa forma, inclui, simultaneamente, os processos de separaoe distino, de enfreamento, de prova e disputa, de escolha e eleio,de interpretao e sentena, todas acepes prprias do termo gregokrsis, cuja idia totalizadora me parece especialmente transparenteem seu uso mdico, nos escritos hipocrticos: o "momento decisivode uma doena". Enquanto persiste a indefinio persiste a crise,que pode se resolver de modos variados, como um julgamento(krsis) termina com a sentena (krsis) favorvel ou contra oru, ou a agonia (krsis) termina com a morte ou o restabelecimentodo doente.

    3. La crise du sens chez Eurlplde, in Eaehyle. Euripide. Paris, Minuit,1972. p. 298.

  • A (DES) CONSTRUO DO HERI 117

    O teatro de Eurpides, para ser corretamente compreendido,deve ser enquadrado no mbito da crise e no de sua soluo, comojulgamento e agonia (luta, disputa, agitao, angstia). Sendo oprocesso agonstico um dos traos mais marcantes do gnero trgico,torna-se possvel detectar na tragdia a manifestao maior dakrsis (sinnimo de agn nas acepes de disputa e processo judicial) . Com efeito, mesmo nos demais tragedigrafos, a ao enfocamomentos de crise e desde cedo a tragdia assimilou os temas dedisputa, bem como os procedimentos e linguagem dos tribunais.4A expectativa do pblico estaria j pois direcionada para a apreciao de tais momentos crticos que constituem a essncia dotrgico. A diferena entre Esquilo e Sfocles, de um lado, eEurpides, de outro, estaria em que, nos primeiros, existia umcorpo de instituies que podia ser abalado e discutido (criticado),mas que resistia, merc do substrato que lhe dava sentido: a honrao herosmo, a justia, a moral, os deuses; em Eurpides, o prpriosubstrato o sentido das instituies colocado em jogo.

    A cena oferecia, de fato, um espao em que podiam se enfrentaras foras em crise, o lugar ideal para a representao do agn.Ora, a par do significado de disputa, luta e processo jurdico,gon significa tambm 'lugar para reunio', alm de 'assemblia,reunio', sentidos atestados em Homero e derivados do verbo go,de que se forma o termo. O agn resume assim o conjunto decaractersticas prprias do teatro na Grcia um espao de reuniopblica onde se travam disputas caractersticas capazes de fazerdele um acontecimento maior na vida da cidade.

    Pensar o teatro como esse espao aberto no centro da polis,em que se chocam princpios antagnicos cm crise, minha intenoaqui. Dessa perspectiva, o teatro de Eurpides apresenta-se comoum espao de mediao entre o velho e o novo, a tradio e avanguarda de seu tempo. Por estar colocado no meio e por agircomo mediador das tendncias conflitantes apresenta carter hbrido.Pelos mesmos motivos, satisfaz e frustra expectativas de um pblico

    4. Cf., por exemplo, o interessante estudo de M. FOUCAULT sobre odipo Rei, de Sfocles: A verdade e as formas jurdicas.

  • 118 ENSAIOS DE LITERATURA E FILOLOGIA

    variado. Mais do que o teatro de Esquilo e Sfocles, revela-se comoagn e krsis, uma vez que nasce no s como representao deagnes, mas como processo agnico e crtico sob todos os aspectos.

    Ceio, com base nisso, ser de capital importncia a compreensodo problema da mediao5 na obra de Eurpides. No se encontrarosolues, a partir dessa via, capazes de enquadr-la de um modoou de outro em determinados padres, nem se visa a tal. O que sebusca antes chamar a ateno para a abrangncia do processocrtico, que atinge todos os nveis da obra, dos formais aos decontedo. Pois justamente nisso reside o fato de que, dando aimpresso de ser uma construo hbrida, se efetiva como unidade.Os laos dessa unidade no decorrem contudo da harmonia daspartes que a compem, mas da mediao entre compsitos dsparese antagnicos.

    Tomarei para anlise o Hracls,6 em que o problema damediao se apresenta de modo variado, da estrutura da peaao carter das personagens, da intriga s afirmaes ideolgicas.Apenas esporadicamente, quando houver necessidade, outras peassero citadas, em obedincia brevidade de meu trabalho. De qualquer forma, creio que a pea em questo bem representativa doestilo de Eurpides, constituindo as observaes aqui feitas umacontribuio para a compreenso do conjunto de sua obra.

    1. As dimenses da crise e os espaos de medio

    O estudo detalhado da crise do sculo V, observada em todosos domnios das instituies atenienses e com claros reflexos noteatro, especialmente no de Eurpides, exigiria um espao maiordo que disponho aqui. A anlise do problema vem sendo efetuada

    5. Uso o termo mediao realando duas nuances bsicas: (1) o colocar-seno melo, em sentido temporal e espacial; (2) o estabelecer relao entre aspartes que se medeiam, numa atitude ambgua (ou ambivalente) que rene,em decorrncia da arbitragem, mas ao mesmo tempo torna efetiva a diviso,pelo prprio fato de mediar.

    6. Uso o texto estabelecido por L. PARMENTTER, in EURIPIDE.Hracls, Lea aupplianta, lon. Texte tabll et traduit par L. Parmentler etH. Grgolre. Paris, Belles Lettres, 1965. p. 1-75.

  • A (DES)CONSTRUO DO HERI 119

    em obras como as de Dodds, Reinhardt, Humphreys ou Vernant,que realizam abordagens diferentes, salientando pontos diversos.Valho-me da bibliografia disponvel, especialmente dos estudos contidos no volume intitulado The Family, Women and Death, daautoria de S. Humphreys,7 sem perder de vista o objetivo de aplicaros dados apresentados pea referida, aprofundando alguns dospontos sugeridos pelos estudiosos.

    Apesar da variedade de aspectos em que a crise se manifesta,creio que poderia apontar dois bsicos que, por assim o serem, serevestem de capital importncia para a compreenso da questo:1) o problema das relaes entre o domnio dos interesses pblicose privados na Atenas clssica; 2) o problema da religio e damoral no sculo V. Os dois, na verdade, no se separam, poisa crise da religio no deixa de estar relacionada com o choqueentre a esfera privada e a pblica, j que inclui o confronto entreum sistema educativo domstico e conservador, relacionado com ooikos, e a nova educao sofistica efetuada fora dos limites deste.

    Dois motivos, contudo, levam-me a destacar o problema religioso: a sua visvel importncia para a compreenso da obra deEurpides e o fato de a religio constituir, em ltima anlise,o fundamento mais ntimo das instituies gregas mais arcaicas.De fato, a existncia dos deuses (e a mitologia que os apresentavacomo inauguradores de costumes seculares) que avaliza os valorestradicionais, colocados na base das instituies. Como indagaReinhardt: "en l'absence des dieux, que devient Ia morale?",8 indagao que poderia ser estendida a todos os demais aspectos, levandoa uma formulao como: na ausncia dos deuses, que vm a ser asinstituies? Mais ainda, como faz o mesmo estudioso, a questopoderia ser invertida, conduzindo a propostas como: "en prsencede Ia morale (agora uma nova moral humana, leiga e racio-nalizante) qu'advient-il des dieux?";9 ou, em presena de novas

    7. HUMPHREYS, S. The Family, Women and Death: comparativo atudiea.London, RouUedge & K. Paul, 1983.

    8. Op. cit., p. 300.9. Id., ibid.

  • 120 ENSAIOS DE LITERATURA E FILOLOGIA

    atitudes perante o mundo, marcadas por uma viso profana, polmica, racional, o que acontece com os deuses?10

    De um certo modo, o teatro de Eurpides oferece respostas aessas perguntas, em termos que poderiam ser mais ou menos assimformulados: na ausncia dos deuses se passa com as instituieso que se passa com elas nas peas de Eurpides; na presena danova viso do mundo, que prescinde da existncia ou no existnciados deuses, se passa com estes o que se v nas peas de Eurpides.Forma-se assim uma tenso dialtica entre os dois termos daproposio, em que deuses e instituies so igualmente imprescindveis para que no ocorra a desagregao de todo o sistema.So os primeiros que fundamentam o sentido das instituies, masa prpria validade destas representa a garantia da existnciadaqueles. Desse modo, o problema permanece insolvel, uma vezque a ruptura no completa, sendo o teatro de Eurpides o palcoideal para a representao de uma crise de tais propores. Ora,sendo um produto da polis, poltico em suas finalidades e em seusmodos de realizao, o teatro trabalha com material mitolgicoque, em ltima instncia, constitui um conjunto de sagas familiares,divinas ou hericas, transmitidas atravs dos tempos, at tomarforma literria. Atende pois a duas esferas pblica e domstica e externa o conflito, que tende a se aprofundar e a setornar cada vez mais explicito com o avanar do tempo e o agravamento da crise da cultura.11

    10. O problema dos deuses e da religio tradicional na obra de Eurpidestem sido multo discutido, levando a propostas diversas. Sobre o assunto pode-seconsultar GREBNWOOD, L.H.G. Aapecta of Euripideon Trogedy, Cambridge,University Press, 1953, em que o autor distingue e critica duas correntes deabordagem da questo, por ele tratadas como The Symbollst Theory e TheRatlonalM Theory, ao mesmo tempo em que expe seu prprio ponto devista, atravs da formulao de uma F&ntasy Theory. O Hroclea servede apoio para a discusso da teoria racionallsta, como apresentada por Verrallem Four Playa of Eurpides.

    11. Mesmo em textos que pouco tm a ver com a tenso entre o domniopblico e o privado, como, por exemplo, o Prometeu acorrentado, de fisqullo,no faltam observaes sobre o conflito entre os deveres polticos e os laosde sangue, como ocorre na primeira fala de Hefesto (v. 12-15).

  • A (DES)CONSTRUO DO HERI 121

    A base de transmisso de todo o legado tradicional, incluindoo mito, fundamento ltimo da viso do mundo arcaica, era o oikos.Tal fato, com efeito, que possibilita a coexistncia dos novosvalores com os antigos, pois o oikos continua, em plena crise, oexerccio dessa tarefa secular, em vista da profunda separaoexistente entre os domnios do pblico e do domstico na Atenasdo sculo V: de um lado o mundo aberto, masculino, instvel,polmico e profano da vida pblica; de outro o mundo fechado,feminino, estratifiado, conservador e sagrado da vida domstica.Como sugere S. Humpheys,13 uma srie de oposies podem serestabelecidas entre as duas esferas: o espao fsico aberto da praa,do mercado, dos templos, da palestra, dos tribunais, em contrastecom o espao fechado da casa; o ideal de igualdade e isonomiaentre os cidados, efetivado nas assemblias e tribunais, versuso domnio patriarcal sobre mulheres, crianas e escravos no mbitoda famlia; a religio cvico-politica do Estado contra o cultodomstico mgico-mstico; a inquirio da verdade como norma emtodos os domnios da atividade humana, proclamada pela filosofia,e a transmisso de valores fixados desde eras imemoriais pelafamlia; as razes da guerra, baseadas em interesses pblicos econmicos e imperialistas, e as razes da paz, visando tranqilidadedo trabalho domstico e perpetuao dos cls.

    Como dois mundos parte, com pouqussimos pontos de contato,os contrastes entre vida pblica e privada criam condies para airrupo da crise. No se trata, pelo menos claramente, de substituir os valores domsticos pelos polticos, nem vice-versa, masde uma ambgua experincia quotidiana em dois domnios to diferentes, vivenciada por cada um dos cidados. Por esse motivo acrise no instaurada pela ao de um grupo, nem se d na esferafechada de um crculo intelectual,13 mas o prprio carter dasinstituies atenienses faz com que todos se achem diretamente

    12. Oikos and polis, in Op. cit., p. 1-21.13. La critique tait passion unlverselle, non le prtvilge d'une presse

    qui Ia controlt. Elle bondit sur Ia scne, pas seulement Ia scne comlquequ'elle domine sans cesse, mais aussl Ia scne tragique. Le thtre eurlpidlenmet en scne le mensonge sous des vtements toujours nouveaux, et il n'estpas jusqu'au vieux Sophocle qui n'aborde Ia fln le thme. Le citoyen d'Athnes,

  • 122 ENSAIOS DE LITERATURA E FILOLOGIA

    envolvidos nela. O mesmo cidado que passa a maior parte do diano mundo democrtico dos trbunais e assemblias," passa outraparte no menos importante no universo fechado e hierarquizadoda famlia. Em ambos, cumpre-lhe assumir uma srie de papis:um igual entre iguais na polis; um senhor com direitos de vida e demorte no oikos. Creio que por essa razo a comdia, em especial,pde tratar de tais ambigidades com tanta insistncia, colocandoem cena dados da crise de forma captvel por um pblico heterogneo. Assim, nas Nuvens discutem-se problemas educacionais (aeducao sofistica versus a educao domstica); em Lisstrata,Assemblia de mulheres e Paz, a questo da guerra em relaocom os interesses polticos e domsticos; em Tesmophoriosai, aao do prprio teatro contra e a favor de cada uma dessas esferas.De um lado, os homens, principalmente jovens, mergulhados navida da polis; de outro, velhos e mulheres, defendendo os valoresdo oikos.

    A situao da mulher nesse contexto deixa bem clara a profundidade da separao entre as duas esferas. Ligada ao oikos, reclusanele, ela no participa de modo algum do mundo do homem, emque passa a maior parte do tempo seu marido. S. Humphreys16aponta, nesse fato, a prpria razo social da difuso do amorhomossexual masculino na Atenas clssica. No mundo totalmentemasculino da cidade, as relaes afetivas s se poderiam dar entrehomens. As mulheres que participam desse mundo masculino, como

    aussl ardent aux procs qu'au thtre, sait jouir de tout avec esprit critique.Thtre et procs ont d'ailleurs le mme nom: agn, tournol. (REINHARDT,Op. cit., p. 298-299).

    14. Quando trato o espao da polis como igualitrio e isonmlco, pensonos direitos garantidos pela cidadania, de que participavam apenas os homensadultos. Toda a enorme massa de estrangeiros e escravos, alm das mulherese crianas, no participava dessa aristocracia civil. No se pode esquecer,ainda, que mesmo entre os cidados haveria diferenas determinadas pornveis de riqueza e de influncia poltica. No havia, contudo, um sistemafechado, estratiflcado e hierarquizado, como ocorria na famlia, reconhecidocomo de direito e de fato. Por outro lado, Interessa mais a Idia que osprprios atenienses Unham a respeito de sua organizao poltica que o julgamento moderno a esse respeito.

    15. Women in antlquty, in Op. cit., p. 33-57.

  • A (DES) CONSTRUO DO HERI 123

    hetairas e prostitutas, no tm, em conseqncia disso ligaes como oikos. Justamente por isso tm condies espordicas de seimpor, livres dos entraves da hierarquia domstica, assumindo, naverdade, papis ento tidos como masculinos. essa mulher queage como homem que tambm apresentada tomando a frente dosassuntos domsticos e polticos em comdias como Lissstrata ouAssemblia de mulheres, ou em vrias tragdias.16

    Tenho insistido de passagem que o teatro, nesse contexto, ganhapapel especialssimo. Ao lado dos trbunais, aos quais ocorria seremlevadas disputas familiares, e de certas festividades religiosas, oteatro representa um ponto de contato entre polis e oikos. Em relaoaos trbunais e s festas religiosas, apresenta-se como mais dignode nota em vista da grande insistncia com que coloca em cenafatos da vida familiar. Com efeito, apenas esporadicamente asdesavenas domsticas chegavam aos trbunais pblicos, pois haviauma srie de instncias de julgamento em nvel familiar a serempercorridas, antes que as pendncias fossem levadas para fora dooikos. J as cerimnias religiosas, apesar de unir polis e oikos numnico acontecimento, no proporcionavam a possibilidade do confronto e do debate. No teatro, de fato, o mundo silencioso do oikosinvade o espao da polis, dominado pela palavra e pelo debate, poisnele que lhe dada a oportunidade nica de falar.

    De fato, um exemplo como o da Antigona, de Sfocles, deixaclaro a fora como as razes do oikos podem se apresentar sobrea cena tica e a extenso que pode assumir o embate entre as duasesferas de interesse. O papel de porta-voz do mundo domstico atribudo geralmente a personagens femininas, pela prpria razode que o homem, mesmo quando fortemente ligado ao oikos, nodeve se furtar aos interesses da polis. o que acontece com dipo,na pea de Sfocles, que acaba por destruir sua casa em benefcio dacidade ouvindo da boca de Jocasta o pedido para que cesse suasinvestigaes, ele continua, movido, em ltima instncia, pelo compromisso assumido perante a cidade de descobrir e punir o assassinode Laio, para pr fim peste. Nesse sentido considerando as

    16. HUMPHREYS (Op. cit.) lembra o exemplo de Clitemnestra. A elacom efeito, se refere Esquilo (Agamenon, v. 10-11) nestes termos: ...fcrateigynaika andrboulon elpieon kar.

  • 124 ENSAIOS DE LITERATURA E FILOLOGIA

    personagens femininas mais adequadas para representarem os interesses do oikos S. Humphreys chama a ateno para a insistnciacom que estas comparecem nas peas, tendo papel destacado.17No se deve perder de vista a situao da mulher na Atenas dosculo V, totalmente alijada da vida pblica, a fim de poder aquilatara extenso do impacto que causaria no pblico a ao e, sobretudo,as falas de personagens como Alceste, Electra, Clitemnestra, Ant-gona ou Media.

    Enquanto em Sfocles e Esquilo o confronto se d preferen-temente na ao, com Eurpides qua passa a haver, realmente,uma formulao ideolgica mais clara do problema. Assim, pelaboca de Clitemnestra, Media ou Hermone,1* entre outras, se fazcalorosa defesa dos interesses da esposa e, por conseqncia,do oikos contra a prepotncia do marido e seu direito reconhecidoe aceito de liberdade de ao e de deciso sobre os familiares.Diferentemente do que acontecia nas peas dos dois primeiros, emEurpides o conflito no se restringe ao representada, masganha geralmente forma de reflexo geral sobre o problema, assimilando o linguajar e os procedimentos retricos do debate jurdico-poltico. Ora, em nenhum outro espao pblico existia a possibilidade de se efetivar um debate dessa natureza, a no ser, comodisse, em certa medida, nos tribunais. Mas, neste caso, aindaquando se defendiam os interesses de pessoas confinadas ao oikos(mulheres, crianas e escravos), tal se fazia pela boca de representantes includos no mbito da polis e, portanto, com direito devoz na esfera pblica. S no teatro a palavra era franqueadadiretamente aos representantes do oifcos.19

    17. A autora anota que, das peas que conhecemos, apenas no Filoctetes,de Sfocles, no aparecem personagens femininas.

    18. Respectivamente em Electra, Media e Andrmaca, todas de autoriade Eurpides.

    19. No pretendo dizer que no teatro, escrito, montado e representadopor homons no uso de seus direitos polticos, se pudesse ter a defesa fiel dosinteresses daqueles que no tinham voz. Penso entretanto no Impacto da representao, de amplo alcance social. Nesse contexto, no espao criado pela ficodo poeta e atores, com a qual o pblico compactua, de fato Clitemnestra ouMedia quem fala. Justamente essa possibilidade que faz do teatro gregoum espao de mediao.

  • A (DES)CONSTRUO DO HERI 125

    Se o teatro encontra ambiente para explorar com freqncia essestemas, isso significa que o pblico deveria estar capacitado para suacompreenso, que j haveria algum tipo de expectativa nesse sentido.O conflito latente entre oikos e polis, abafado em outras circunstncias, demonstra sua extenso e profundidade justamente nas obrasde comedigrafos e tragedigrafos. Por isso o teatro pode bemindicar a extenso da crise global da cultura ateniense do sculo V,advinda, em certa medida, da convivncia de estruturas e formasde pensamento altamente inovadoras no domnio pblico com estruturas e formas de pensamento arcaicas no domnio privado.

    No Hracls, objeto do presente estudo, o problema do oifcosem relao com outras esferas aparece de modo especialmenterelevante. De fato, a pea gira em torno disso, representando afora desagregadora de vrias esferas sobre o mundo domstico,que dividiria nos seguintes aspectos, a serem detalhados no correrdo trabalho: 1) o conflito entre o oikos e os interesses pblicos;2) o conflito entre o oifcos e o herico; 3) o conflito entre o oifcos e odivino. Todas essas esferas extra-familiares so colocadas, na pea,como perigos reais para a preservao do oifcos que, por sua vez,no tem como isolar-se (isto : preservar-se).

    Meu interesse relevar tais aspectos, visando a perceber emque medida expressam sinais de uma crise cujas bases se assentamna ruptura do oifcos como instituio, atingindo todos os demaissetores. Nesse caso, do mesmo modo que o teatro constitui umespao intermedirio entre as diversas esferas em conflito na sociedade, no interior da pea em questo a personagem de Hracls que chamada a assumir o papel de mediador, que lhe caberiaperfeitamente a partir do prprio carter a ele atribudo pelosmitos. Momento histrico, ambiente social, personagem, mito,entrecho e tcnica de construo da pea, tudo contribui para fazerdo Hracls um exemplo em profundidade da (im) possibilidade demediao num universo cultural despedaado pela crise. Comoobserva com exatido Kott, "the two-rided myth of Heracles becamefor Sophocles and Eurpides a tragedy of a world with no hope formediation".20

    20. KOTT, J. But where now ls famous Heracles?, in The Eating of theGods. An Interpretation of Greek Tragedy. London, Eyre Methuen, 1974. p. 124.

  • 126 ENSAIOS DE LITERATURA E FILOLOGIA

    2. Oikos X Polis: a crise do poder

    O Hracls principia delineando o quadro da crise instauradaa partir da tomada do poder poltico por um novo tirano. Tebas,local onde se passa a ao, tem como novo senhor (kains rkhon v. 38) Licos, que subiu ao poder aproveitando-se da existncia dediscrdias civis na cidade (v. 34), depois de assassinar o antigo reiCreonte. Precavendo-se contra futuras vinganas, pretende entomatar tambm os descendentes daquele: Mgara, mulher de Hracls,e seus filhos. Na ausncia do heri, o incio do drama se desenrolarna iminncia da execuo da sentena de morte j decretada.

    A justificativa da ao tem assim dois suportes: de um lado,o assassino do pai deseja escapar vingana dos familiares daquele;de outro, o assassino do rei e usurpador do trono deseja manter opoder.21 O interesse poltico (manter o trono de Tebas) se entrelaae se choca com interesses familiares: no basta matar o rei paratomar o poder, preciso destruir tambm sua casa, j que, aoassassin-lo, se deu morte no s ao rei mas igualmente ao pai.O papel do oifcos como suporte do poder poltico fica claro desdea fala inicial de Anfitrio, em que se cruzam os dados da histrade Tebas com os dados da histra das famlias de Creonte, Licose Hracls.

    2.1 Os fios do tecido

    Sendo o primeiro contato do pblico com o assunto da pea,o prlogo, colocado na boca de Anfitrio, merece ser estudado emdetalhe. Nele podem ser distinguidas seis partes, que se sucedemde modo coerente, apesar de tratar de assuntos diversos, tecendo amalha do entrecho, a saber: 1) a identificao de Anfitrio (v. 1-3);2) a narrativa das origens de Tebas e da famlia de Creonte, bemcomo o esclarecimento da relao de Hracls com ambas (v. 4-12);3) a explicao dos motivos da ausncia de Hracls (v. 13-25); 4) a

    21. Exsi tohv ox vaEiav, Y^oov,Xk, Etpgiav" ota y.Q xaxaxTavrvKoovra itaton. xt\oz xal Gqvou; ix

  • A (DES)CONSTRUO DO HERI 127

    narrativa das origens da famlia de Licos e da tomada do poderpor ele (v. 26-34); 5) a descrio do perigo em que se encontraa famlia de Hracls (v. 35-43); 6) a descrio da situao apresentada na cena (v. 44-59).

    As partes 1) e 2) podem ser consideradas um nico corpo,em que se d o entrelaamento da histria da famlia deHracles/Anfitrio com a de Megara/Creonte, e destas com ahistria da cidade de Tebas. Constituindo um texto bem arquitetado, as passagens de um nvel a outro se do de formanatural, sem quebra do discurso ou do pensamento, comoprocurarei demonstrar a seguir. Reproduzo o trecho em questo,para facilitar a anlise, destacando os momentos de transio:

    ". T tv Ai avKktv.xQov oiv. otoev (?qot>v,. 'Aqyeov 'AuqHTQwv, ov 'Atatcu jtoxe. tixO' 6 nEQo, irccTEQa tov' 'Hnaxtou;

    Ej"| Toe 0T|(5a to%tv, [ hQ'~\ 6 VT|vev). SjrapTtov at^D ffftaorev, &v yvou "Aqt]. eooo' piGuv ?Yov, oi Kouou jtXiv. texvooi rcacov jtaiav, |sv8ev| 22 q>u. Kwv Mevoixoa rral, Sva| TfjaSe x^vo. Kwv o MtyQa xf\abs YYVTai narriQ,. |^y| jtvte vuEvaoiai KauEioi jtote. Xara) ouvr|XXaav, f|vy.' e iuov. uov xteiv 'HeaxXfj viv yeto." (v. 1-12)

    A chave da relao (ou da mediao) entre os vrios nveis dotexto est no nome de Hracls. Assim, os trs versos iniciaisterminam com ele, o que abre espao para as consideraesseguintes at chegar, nos trs ltimos, de novo ao nome doheri. A passagem da esfera de Anfitrio/Hracles/Argos paraa de Creonte/Megara/Tebas e vice-versa realizada por pronomes relativos (8 v. 4; e ?iv v. 10), que atam firmemente o conjunto.

    22. Prefiro entender a orao Iniciada por este pronome como parte dafrase anterior e no como novo perodo Isolado. Por esse motivo, substituo oponto final por uma vrgula.

  • 128 ENSAIOS DE LITERATURA E FILOLOGIA

    A parte intermediria, por sua vez, divide-se em duas: a querelata as origens mticas da cidade (v. 4-7) e a que descreveas origens igualmente mticas da famlia de Creonte (v. 7-9).A transio se efetua, tambm nesse caso, pelo uso de relatvos(vOa v. 4; e HvOev v. 7), colocados curiosamente namesma posio mtrica no interior dos versos em que aparecem. Desse modo, o trecho transmite uma efetiva impressode unidade, como tecido nico cujos fios que se entrelaampoderiam ser assim representados:

    o argivo Anfitrio, este pai de Hracls

    ^ ="o qual23 habitaesta Tebas

    ionde germinoua semente

    dos espartosi

    de onde saiuCreonte./'

    iCreonte paidesta Mgara

    a qual celebraram quandopara a casa de Anfitrioa conduziu Hracls

    O entrelaamento maior de diversos nveis, efetuado na peacomo conjunto, est j pois estabelecido: entre a famlia do argivoAnfitrio e a do tebado Creonte, cujo n Hracls. No interiorda equao entre as duas famlias inclui-se a cidade de Tebas,cujas orgens se confundem com as da famlia de Creonte, assimiladapor Hrcules.

    23. O relativo pode referir-se a Anfitrio ou Hracls, sendo ambas leituras corretas.

  • A (DES)CONSTRUO DO HERI 129

    Ao mesmo tempo, cria-se um jogo de presena/ausncia, emtorno do qual girar a situao inicial, realado pelo. uso de demonstrativos: de um lado, Anfitrio est presente e seu filho no; deoutro, Mgara sim, seu pai no; do mesmo modo, Tebas sim, Argosno. Na verdade, pois, se atam trs realidades presentes sobrea cena Anfitrio, Mgara e Tebas pela fora de ausentesapenas nomeados Hracls, Creonte e os espartos na seguinterelao: Hracls como elo entre Mgara e Anfitrio; Creonte comoelo entre Mgara e Tebas, atravs dos espartos.

    Creonte, realmente, constitui o verdadeiro n entre as famliase a cidade em cena, pois sendo o ava| (v. 8) tambm ^orno(v. 9). Deve-se destacar os versos 8 e 9, que principiam como nome do rei. Em termos sintticos, nesse ponto (v. 8) que ocorreria, de fato, uma interrupo da extensa proposioiniciada no verso 1. Ora, o verso 8 trata Creonte de "ava; t^oexOvo", como a fechar tudo anteriormente dito a narrativaprecedente teria, desse ngulo, o objetivo de apresent-lo comorei de direito. O verso 9 introduz seu outro papel, chamando-o"MtyQa tt}oe. .. ji", e preparando a nova ocorrncia donome de Hracls. sintomtico que, no caso de Creonte,Eurpides tenha optado pela repetio enftica de seu nome eno pelo uso de um pronome, como nos demais pontos detransio.

    Embora seja o grande ausente em todo o corpo da pea, aCreonte cabe o estabelecimento dos laos entre a esfera familiare a pblica, numa linha de sucesso que poderia assim ser representada, fazendo com que a ligao com a cidade envolva Mgara,Hracls e o prprio Anfitrio:

    Tebas (Creonte) Mgara Hracls Anfitrio.21Sugestivamente, a primeira parte do prlogo termina coma conduo de Mgara (e, em certa medida, tambm deCreonte/Tebas) para a casa de Anfitrio: "eI uo> uou"(v. 11-12).

    24. Ponho entre parnteses os nomes dos ausentes nesse primeiro momento,que constituem os elos entre os presentes, cuja presena constantemente

  • 130 ENSAIOS DE LITERATURA E FILOLOGIA

    Em vista de tais envolvimentos de uma esfera por outra,torna-se impossvel separar o destino das duas casas: a casa deCreonte foi conduzida por Hracls para a casa de Anfitrio; e acasa de Anfitrio foi conduzida, tambm pela ao de Hracls,para Tebas (cf. v. 4, com relao a Hracls; e v. 13, com respeitoa Anfitrio). Pela ao de Hracls, Anfitrio tem Tebas e tidopor ela. H completo envolvimento entre os interesses da cidadee da casa de Anfitrio, marcado desde o incio, o que justifica quetoda a primeira parte da pea26 se desenvolva em torno do problematipicamente poltico da tirania, sem deixar de ser um drama familiar.

    A terceira e quarta parte do prlogo cumprem o papel primordial de justificar, respectivamente, a ausncia de Hracls e deCreonte, ambos no Hades.

    Com referncia ausncia de Hracls, esclarece-se que amesma se deve realizao dos trabalhos, com objetivos familiares (relacionados com o crime de Anfitrio), polticos (areconquista da cidadania em Argos) e civilizatrios (purgara terra de monstros). Deixando a discusso deste ltimoaspecto para o momento decisivo, gostaria apenas de ressaltarque o trecho trata quase que totalmente de realidades ausentesda cena, depois de breve referncia aos presentes, que sofremcom a ausncia do heri; Tebas, Anfitrio e Mgara.25A quarta parte introduz a narrativa da tomada do poder porLicos, esclarecendo suas origens familiares em relao comfatos da histria da cidade (v. 26-30), e justificando a razoda ausncia de Creonte, morto pelo novo tirano (v. 33).Tal morte se relaciona com questes polticas, pois Tebas seencontrava "doente em levantes" (v. 34).

    enfatizada pelo uso de demonstrativos (cf. v. 3, para Anfitrio; v. 4 e 8, paraTebas; e v. 9, para Mgara).

    25. Considero que a primeira parte da pea se estende at o v. 814, imediatamente antes do aparecimento das deusas ris e Llssa. Discute-se mais detalhadamente o problema adiante.

    26. Auiffiv e nfla, oft xonpxIaOiiv ly>Mtyoav x|v8e... (13-14).

  • A (DES)CONSTRUO DO HERI 131

    J a quinta parte desenvolve o motivo das relaes entre a cidadee as famlias em cena, lembrando como ser parente de Creonte setornou causa de grande mal (v. 35-36). De novo Creonte apresentado com o elo entre a esfera poltica e a domstica, o que fazcom que os males da cidade, antes descritos, sejam ao mesmotempo os males da famlia de Hracls/Anfitrio.

    O que fora prenunciado na primeira e segunda parte do prlogose confirma agora, sobretudo no ltimo trecho da fala de Anfitrio,que descreve a situao do grupo familiar, orientando a viso doespectador para a cena: Anfitrio e Mgara, com os filhos, privadosda casa, exilados junto do altar de Zeus Salvador. O estar fora dacasa e fora da cidade a um s tempo faz com que o objetivoda derrota do tirano represente a reconquista de ambos os espaos.O altar passa a constituir um espao intermedirio entre os doisplanos, ambos perdidos por obra de Licos.27 Nele permaneceroas personagens durante quase todo tempo de durao da primeiraparte da pea, a dramatizao da retomada da casa e da cidadepor Hracls.

    2.2 Os ritos de (des)esperana

    A ao desenvolvida a partir do v. 60, quando Mgara toma apalavra, trabalhar mais a fundo as relaes e os choques apontadosno prlogo. A fala de Mgara refora a mudana da situao,geradora da crise presente, ao lembrar como, sendo outrora filhade um pai famoso, que tinha o poder ("xoav Tpawa" v. 65) etinha filhos ("Ixwv te Txva" v. 67), agora se v desvalida.Na verdade, pois, todo o entrecho se construir com base na esperana de salvao acalentada por algumas personagens (sobretudoAnfitrio), oposta desesperana de outras (como a prpriaMgara). A ruptura entre o poder e os filhos inaugurada coma morte do antigo rei, que determina a necessidade da morte de

    27. S. HUMPHREYS chama a ateno para o papel mediador que areligio e os locais de culto exercem entre a esfera pblica e a domstica, naAtenas clssica. (Op. cit.)

  • 132 ENSAIOS DE LITERATURA E FILOLOGIA

    seus descendentes (v. 69). Onde havia unidade, h agora ciso:o novo governante X a famlia do velho governante; os jovens X osvelhos; a polis X oifcos.

    O conflito apenas narrado e comentado at o verso 137, ganhaplasticidade teatral com a entrada em cena de Licos. Os dois versosdo coro que marcam a transio so especialmente significativos,pois descrevem o novo comandante que avana para o palcio:

    " &IV eooq) yt Tfjooe xoiQavov x^voAXOV JtEQCVTa twve ficdutcov xXa " (v. 138-139).

    O confronto entendido basicamente como o do "chefe destaterra" no contra as pessoas que visa matar, mas contra "estepalcio" a que tais pessoas se ligam. Tanto assim que seu ataqueverbal dirigido contra o novo chefe da casa Hracls, que,nessa qualidade, se torna tambm a nica esperana de salvaopara a famlia. Com isso, Licos tenta vencer o heri destruindosua fama, pelo menosprezo de suas faanhas e de sua coragem.A defesa dos trabalhos e da bravura de Hracls, feita por Anfitrio,deixa claro que o elemento herico se alia ento ao oikos.

    Aps a breve disputa verbal, esgotadas as esperanas ("8 x(Wy ooe ut) xqewv 6t)oei jtot " v. 310). Mgara passa a admitiro sacrifcio, pedindo ao tirano que lhe seja dado penetrar, umaltima vez, no espao at aqui fechado da casa. O descerramentodas portas do oikos se efetua assim no contexto da preparao paraa morte, a fim de que se possam cumprir os ritos:

    " xouov nE uoi naioi JtQooOevai vexqwv,Suou vo-a vv v xxV.W|uE9a d) XX taOta y* ajiotxma' oxwv nat " (v. 329-331) .

    Tal ao ambivalente em vrios sentidos: a volta casa, para apreparao de seus membros para o sacrifcio, significa o reconhecimento de que a mesma se encontra irremediavelmente perdida;ao mesmo tempo, indica uma efetiva reconquista do espao antesfechado, fazendo com que a famlia de Creonte deixe de estarexpulsa do seu oifcos e da sua polis, ao abandonar o exlio juntodo altar de Zeus. Voltar casa para morrer, ligar a casa morte,

  • A (DES)CONSTRUO DO HERI 133

    recusar-se a morrer exilado dela implica perpetuar, enfim, a possesobre a mesma, garantida pela palavra (pelo mito, pelo nome):

    " d> texv', uapTEit' uO?.(o unrp nobjratppov uiaSov, oi tr^ ooauMoi xpatovai, t 'ovou' oO' f|ujv eti " (v. 336-338).

    Essa ambigidade latente na atitude de capitulao de Megera que permitir, a seguir, com a volta de Hracls, que o rito demorte e destruio do oifcos seja transmudado, mantendo-se emidntico contexto, em rito de posse e restabelecimento do mesmo,para, logo em seguida, se efetivar a destruio definitiva pelasmos do prprio salvador.

    De fato, a preparao para o rito fnebre no se d em vo,apesar da volta do heri. Algum deve morrer, se bem que,havida a reviravolta da ao (a peripcia ou, como afirmao coro: "ntzafiol xaxwv" v. 735), agora Licos quem seratingido. Mas elementos que preparam nova metabol podemser percebidos na atitude nada tranqila de Mgara e dos filhosque, conduzidos por Hracls para o interior do palcio, emvez de celebrarem tal fato e de se alegrarem com ele, chorame se agarram ao peplos do pai, como pressentindo a continuaodo perigo (v. 622-625). O engano est pois unicamente em sejulgar que o assassnio seria perpetrado por Licos, que estefosse o inimigo do oifcos destinado a destru-lo.

    2.3 As falhas da mediao

    Ora, todo entrecho estudado deixa patente o embate entre onovo poder, representado pelo tirano, e a casa do antigo rei, ouseja, entre poder poltico e oifcos. Tal situao de conflito se instaurana ausncia de mediao entre as duas esferas. As personagensligadas ao oifcos que poderiam assumir tal papel, movimentando-senos dois planos e impondo-se neles, na qualidade de ndres (homensadultos), declaram-se desde logo impotentes, em vista da idade.Anfitro e o coro de velhos participam assim da impossibilidadede ao efetiva no domnio da polis, como Mgara e as crianas.

  • 134 ENSAIOS DE LITERATURA E FILOLOGIA

    Anfitrio, j no verso 41, exclui-se da categoria dos voqe, aoafirmar que lhe caber, com os filhos e esposa de Hrcules,a morte,

    " e ti br\ xqt| x(i' v dvSQmv HytivyovT' xqeov" (v. 41-42).

    J o coro de velhos entra em cena chamando a ateno paraseu estado de completa fraqueza e desamparo (v. 108-109;119-129), declarando-se "palavras s" ("Eiteotuvov" v. 111)e "a aparncia noturna de noturnos sonhos" ("&6xr|ua vuxTEoaMtvwxov veqcdv" v. 111-112). Tais personagens no soestranhas no contexto dos velhos criados por Eurpides, sempremergulhados em profunda debilidade (cf., por exemplo, Electra,v. 553).

    Nem Anfitro nem o coro, contudo, deixam de tentar cumprir opapel de mediadores atravs do discurso, realizando a defesa dooifcos. O primeiro enfrenta Licos no debate sobre as virtudesdo filho, declarando que

    " t ' e Eu', 'HqxKei, uoi U&ElXyoioi tt)v to' (i.: Axou) duaBav ji oOevE-ai* xax y o' ox atov xXveiv " (v. 170-173).

    Tambm o coro, nos versos 222-272, coloca-se em palavras contrao tirano.

    Considerando o esquema sucessivo de relaes entre casa ecidade, observaria que h uma passagem tambm com referncia ao papel de mediador: Creonte era o mediador; na suafalta, caberia tal papel a Mgara que, como mulher, no podeassumi-lo; assim, o lugar de Creonte deveria ser ocupado porHracls, mas este se encontra ausente; Anfitro ento quedeve exerc-lo, mas lhe faltam foras, bem como ao coro.Teramos assim um novo esquema: Licos/Tebas X (Creonte)-Mgara- (Hrcules) -Anfitrio/Coro.Mgara no empresta nenhum valor ao discurso como forma

    de persuaso e defesa (isto : de mediao), confiando apenas na

  • A (DES) CONSTRUO DO HERI 135

    ao e entregando-se to somente, em suas falas, a recordaes elamentos ("X Xyoioi tve (i.: Axov) uaOcuuEv 5v;" v. 298). O mesmo ponto de vista comungado por Licos.

    As observaes sobre a ineficcia da palavra diante de Licostrazem em seu interior uma crtica tirania. Ao contrrio dosistema democrtico, esta elimina o espao mediador do discursocomo instrumento de soluo dos conflitos. O agn prenunciadoentre Licos e Anfitrio, a partir do verso 140, subitamente interrompido pelo primeiro, em termos que desvalorizam o poder dolgos em face da ao:

    " av jiv iy' iu ol mxvQYiaau tyoiyri) paoci) o' dvri tjv lywv xax " (v. 238-239).

    Atravs da observao do coro, logo aps a fala de Anfitrio,pode-se notar que a vantagem no debate pendia para este, pois,ainda que lento ("Pquov;") no falar, os melhores dos mortais("dyaOoi Ovnrcv") sabem ser eloqentes (v. 236-237). No seragaths quem fala que repousa assim a fora do discurso.O fato de o tirano ser apresentado como kaks faz com quetenha de compensar a debilidade de seu discurso com a aocruel.

    O novo tirano considerado, pelo coro, no s inimigo do oifcosde Creonte, como de Tebas, a polis de Creonte. Ele afrontara ahonra da cidade e escravizara seu povo, o que s foi possvel emvista da conturbao poltica reinante (v. 270-274). A ameaade sedio (oroi) para a ordem democrtica, por natureza instvel,era sentida como especialmente grave, segundo se pode depreenderem outros autores da poca, como Tucidides e Plato. O novo tirano,aproveitando-se da "doena" da cidade (diz-se que ela se encontrava"otoei voaovoa" v. 34; 273), se introduz nela como um fator deperturbao e ruptura. Trata-se de um estrangeiro ("tr|Xv" v. 257), que no da raa de Cadmo ("o KauEo v" v. 256) edivide a cidade, aqui confundida com a prpria descendncia doheri lendrio. Assim, ele "fioxEl v vov" (v. 256), tendo-se aliadoa "noUov jiVnTa" (v. 588), que so os responsveis pela perda dacidade, por terem promovido a sedio ("61 otoiv Opcav xai uXEoav

  • 136 ENSAIOS DE LITERATURA E FILOLOGIA

    jiXiv" v. 590), a fim de poder se apoderar dos bens alheios(v. 591-592). O contexto parece opor, dessa forma, Licos famliade Creonte, apontando contudo ainda para outras esferas de conflitocomo jovens X velhos, pobres X ricos, estrangeiros X tebanos. O novopoder pintado como cruel e feroz, do ponto de vista dos que seligavam ao antigo.

    J em outras ocasies a tragdia abordara o problema de umnovo poder que se instala e se deixa levar pela crueldade.Hefesto, no Prometeu acorrentado, de Esquilo, observa, referindo-se a Zeus, que todo novo governante duro ("rta Tpaxv 8

  • A (DES) CONSTRUO DO HERI 137

    A prpria forma como Licos tratado superficialmente,como um tirano tpico, orgulhoso e cruel ^ mostra como Eurpidestranspe o fantasma da tirania, da sedio e das conturbaes polticas, experimentado historicamente, para o entrecho mtico. Paraa democracia e para a realeza o tirano simboliza a irrupo deviolenta