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1 A DEMOCRATIZAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL COMO FORMA DE VIABILIZAR DIREITOS FUNDAMENTAIS E SOCIAIS. Angélica Luciá Carlini. Graduada em Direito. Mestre em História Contemporânea. Mestres em Direito Civil. Doutora em Educação. Doutoranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Docente da UNIP – Campinas e da FACAMP. Líder do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas para a Proteção do Consumidor – UNIP. RESUMO – O trabalho analisa a proposta de formação de uma sociedade livre de intérpretes da constituição federal, conforme a proposta teórica de Peter Häberle, que defende essa perspectiva como essencial para a formação de uma cultura constitucional plural. Na perspectiva da realidade brasileira o trabalho estuda a liberalização de rádios comunitárias para que possam, a partir de uma programação concebida por seus próprios atores sociais, se inserir no debate constitucional nacional, expressando suas crenças e valores e concretizando um novo viés da democracia participativa. PALAVRAS-CHAVE – Democracia participativa – Peter Häberle – Rádios Comunitárias. ABSTRACT - The paper analyzes the proposed formation of a free society of interpreters of the federal constitution, as the theoretical proposal of Peter Häberli, which supports this view as essential to the formation of a constitutional culture plural. In view of Brazilian reality the work examines the liberalization of community radios so they can, from a program designed by their own social actors, comes in national constitutional debate, expressing their beliefs and values and giving a new slant of participatory democracy. KEYWORDS - Participatory democracy - Peter Häberli - Community Radio. SUMÁRIO – 1. Introdução. 2. A Constituição Brasileira e a Democracia Participativa. 3. A Interpretação Aberta da Constituição e a Teoria de Peter Häberle. 4. O Acesso à Radiodifusão como Meio de Democratização da Interpretação Constitucional. 5. Conclusão.

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A DEMOCRATIZAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL COMO FORMA DE VIABILIZAR DIREITOS FUNDAMENTAIS E SOCIAIS.

Angélica Luciá Carlini. Graduada em Direito. Mestre em História Contemporânea. Mestres em Direito Civil. Doutora em Educação.

Doutoranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Docente da UNIP – Campinas e da FACAMP.

Líder do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas para a Proteção do Consumidor – UNIP.

RESUMO – O trabalho analisa a proposta de formação de uma sociedade livre de intérpretes da constituição federal, conforme a proposta teórica de Peter Häberle, que defende essa perspectiva como essencial para a formação de uma cultura constitucional plural. Na perspectiva da realidade brasileira o trabalho estuda a liberalização de rádios comunitárias para que possam, a partir de uma programação concebida por seus próprios atores sociais, se inserir no debate constitucional nacional, expressando suas crenças e valores e concretizando um novo viés da democracia participativa. PALAVRAS-CHAVE – Democracia participativa – Peter Häberle – Rádios Comunitárias. ABSTRACT - The paper analyzes the proposed formation of a free society of interpreters of the federal constitution, as the theoretical proposal of Peter Häberli, which supports this view as essential to the formation of a constitutional culture plural. In view of Brazilian reality the work examines the liberalization of community radios so they can, from a program designed by their own social actors, comes in national constitutional debate, expressing their beliefs and values and giving a new slant of participatory democracy. KEYWORDS - Participatory democracy - Peter Häberli - Community Radio. SUMÁRIO – 1. Introdução. 2. A Constituição Brasileira e a Democracia Participativa. 3. A Interpretação Aberta da Constituição e a Teoria de Peter Häberle. 4. O Acesso à Radiodifusão como Meio de Democratização da Interpretação Constitucional. 5. Conclusão.

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1. Introdução

A participação política popular no Brasil é frágil, esporádica, pouco consistente. Não há, em regra, uma participação expressiva da população em partidos políticos ou em conselhos municipais de saúde, educação ou tutelar para crianças e adolescentes, entre outros espaços políticos.

A Constituição Federal de 1988 que desenhou a reconstrução do Estado Democrático de Direito após mais de vinte anos de ditadura militar, previu espaços de participação popular principalmente na área de direitos sociais fundamentais, com saúde e educação. No entanto, vinte e um anos após da entrada em vigor da Constituição Federal e ainda temos pouca participação popular em espaços estratégicos da democracia.

Muitos estudos têm discutido essa aparente inércia da população, essa ausência de motivação para a participação, principalmente porque o Brasil vive na atualidade, um processo de fragilidade de suas instituições parlamentares assoladas por sérias e fundadas denúncias de corrupção e uso indevido do dinheiro público. Há uma crescente insatisfação com o papel desempenhado pelos legisladores, sobretudo porque poucos resultados têm apresentado para a sociedade no exercício de sua função legislativa. Projetos de lei importantes para o país demoram muitos anos para serem votados no congresso nacional, se acumulam as medidas provisórias de iniciativa do poder executivo e, muitas decisões que interferem diretamente na vida dos cidadãos são tomadas no âmbito do judiciário federal.

Era de se esperar que as denúncias publicadas diariamente na imprensa fossem acompanhadas de clamor popular, de movimentos exigindo maior transparência e respeito com o dinheiro público, ou mesmo cobrando punição efetiva para deputados e senadores comprovadamente corruptos.

Mas o que se percebe na sociedade civil é o aumento do descrédito em relação à classe política e, ao mesmo tempo, um distanciamento dos espaços de participação política. A participação popular no Brasil praticamente se encontra resumida ao comparecimento às urnas e, isso pode ser apenas uma conseqüência do fato de que no país o voto é obrigatório.

Existem organizações não-governamentais, associações civis, sindicatos, entidades de classe, grupos religiosos, entidades estudantis e outras formas de organização da sociedade civil que trabalham continuamente construindo espaços de intervenção, de participação e mobilização, apontando alternativas, se contrapondo a práticas condenáveis dos três poderes, agindo como forma de democracia participativa.

Mas são grupos sociais que ainda congregam poucas pessoas, se considerarmos a dimensão da população brasileira e, que nem sempre conseguem difundir amplamente seus propósitos.

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Nesse quadro este trabalho pretende refletir sobre a necessidade de ampliar o acesso democrático aos meios de comunicação no Brasil, permitindo que a sociedade civil participe mais efetivamente do debate político, em especial no âmbito da concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.

Para isso, o trabalho tem como referencial teórico-metodológico a reflexão de Peter Häberle sobre a sociedade aberta dos intérpretes da constituição, e como proposta a liberdade de acesso aos serviços de radiodifusão no Brasil para que se organizem inúmeras rádios comunitárias, espaços nos quais os cidadãos possam debater aspectos políticos de seu cotidiano e sinalizar como querem ver interpretada a Constituição Federal brasileira, sobretudo no que diz respeito aos direitos fundamentais sociais.

2. A Constituição Brasileira e a Democracia Participativa.

Em 1964 um golpe militar deflagrado por generais e

marechais supostamente em favor da democracia e contra as forças comunistas que ameaçavam o país, implantou um período de ditadura no Brasil, que só teve fim em meados da década de 80 com a eleição indireta de Tancredo Neves para ocupar a presidência da república.

A ditadura militar teve fases distintas, em especial a partir de 1968 quando a violência se intensificou com o Ato Institucional nº. 05, de 13 de dezembro, instrumento de força e arbítrio que permitiu o chamado “golpe dentro do golpe” e o aumento das práticas de tortura, morte e desaparecimento de presos políticos,.militantes de esquerda, simpatizantes ou simplesmente acusados e suspeitos.

Foi um momento sombrio em que toda a América do Sul ficou mergulhada em regimes de exceção, marcados por práticas de arbítrio e violência contra a população civil, em especial contra os grupos organizados de trabalhadores urbanos e rurais, estudantes, intelectuais, políticos e artistas.

Esse quadro que se prolongou até meados da década de 80, contribuiu fortemente para que a população brasileira se mantivesse afastada da atividade política, quase sempre distante da participação em organizações de caráter sindical, estudantil, partidárias ou de grupos de interesse social, inclusive por temor das conseqüências que essa participação poderia gerar.

Lucia Avelar analisa que No Brasil, a emergência da participação deu-se muito mais tarde, em meados do século XX, quando os níveis de urbanização tornaram-se altos, quando as organizações sindicais dos trabalhadores da nova industrialização brasileira alcançaram densidade política, quando ganhou

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força a organização política da sociedade em conseqüência da mobilização das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica progressista, inconformada com os níveis de analfabetismo, miséria, pobreza rural e urbana; quando os movimentos de mulheres, entre outros, tornaram-se visíveis e agregaram força corporativa para a política de não-elite. (...) No Brasil, os movimentos sociais emergiram em meados do século XX, e refluíram com a ditadura militar do período de 1964 a 1985. Revitalizaram-se na década de 1970, quando a censura do regime autoritário impedia a plena vida política. Eclodiram os movimentos sociais ligados à Igreja Católica, as associações de bairro, as associações de donas de casa, os movimentos dos sem-terra, os movimentos ecológicos, os movimentos de mulheres, os movimentos negros, os sindicais, os dos profissionais liberais, os movimentos de moradia, os fóruns para alfabetização e educação, uma rede de organizações não-governamentais. A partir de então, os movimentos sociais foram essenciais para a expansão da consciência política do brasileiro que passou a reivindicar mudanças substantivas, no campo da justiça redistributiva.(2004, 225-227)

Ao final do período da ditadura militar no Brasil, o país

construiu um dos mais legítimos e organizados movimentos populares de sua história, o movimento Diretas-Já, que mobilizou vários segmentos sociais em todo o país.

Durante o ano de 1984 a população brasileira em diversos estados da federação participou ativamente de passeatas e comícios suprapartidários pela campanha das Diretas-Já, com vistas à votação de uma emenda constitucional apresentada pelo deputado federal Dante de Oliveira, que propunha eleições diretas para presidente da república.

Comícios que reuniram perto de dois milhões de pessoas aconteceram no Rio, em São Paulo, no Pernambuco e em outros estados da federação, sempre organizados por uma frente suprapartidária de políticos e por líderes sindicais, artistas, estudantes, intelectuais, membros da Igreja Católica, entre outros segmentos. Participando ativamente estava a população brasileira oriunda de várias categorias sócio-econômicas, que acompanhava as lideranças com palavras de ordem e cantando o hino nacional brasileiro.

Nesse quadro de mais intensa vivência política a população brasileira contribui para o fim da ditadura militar, cujo marco se deu com eleições indiretas (a emenda Dante de Oliveira foi rejeitada apesar do grande clamor popular) de Tancredo Neves e José Sarney. Tancredo Neves não tomou posse, morrendo meses mais tarde sem exercer a presidência. José Sarney, seu vice, assumiu a presidência.

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Depois do episódio das Diretas-Já o Brasil só conheceu novo clamor popular tomando as ruas dos grandes centros urbanos em 1992, quando principalmente os estudantes secundaristas e mais tarde os artistas, profissionais liberais, intelectuais, grupos de mulheres, sindicatos e outros grupos organizados se uniram para reivindicar o afastamento do presidente Fernando Collor de Mello, acusado de prática de corrupção em seu governo.

O presidente Fernando Collor foi afastado pelo Congresso Nacional e depois renunciou, assumindo seu vice-presidente, Itamar Franco.

O processo democrático implantado a partir da Constituição Federal de 1988 se mostrou sedimentado no Brasil, suportando até o afastamento de um presidente sem qualquer sinal de abalo. No entanto, a participação popular não se consolidou como opção válida e vigorosa da democracia, e refluiu de forma marcante nos últimos anos.

Além do movimento popular pelas Diretas-Já, as décadas de 70 e 80 foram momentos históricos marcados por movimentos sociais, em especial organizado nos bairros de periferia nos grandes centros urbanos do país, que arregimentaram homens e mulheres para a luta por melhores condições de vida e trabalho. Com o passar do tempo esses movimentos foram se desarticulando, sendo substituídos pela participação em campanhas eleitorais de apoio a candidatos a cargos eletivos, principalmente na esfera municipal que é a mais próxima do cidadão.

No presente, a participação popular episódica e esporádica acontece nos sindicatos que organizam greves e passeatas pela melhoria da qualidade de trabalho de um determinado segmento profissional, ou em alguns movimentos liderados por organizações não-governamentais em especial em São Paulo e Rio de Janeiro, em torno das questões referentes a segurança pública e, normalmente, após a ocorrência de fatos trágicos como assassinatos de crianças, chacinas ou semelhantes. Nem o Movimento dos Sem-Terra, MST, maior movimento social e político organizado no país na atualidade, consegue apoio de parte expressiva da população para sua causa. Criticado sistematicamente na mídia, apontado como um movimento capaz de desestabilizar a ordem e a paz social, o Movimento do Sem-Terra não conta com a simpatia e o apoio de grande parte da população brasileira, sobretudo a população residente nos grandes centros urbanos.

A Constituição Federal brasileira entrou em vigor em 05 de outubro de 1988, após ser construída por uma assembléia nacional constituinte eleita em 1986, que foi criticada por não ter sido convocada especialmente para essa finalidade, porque encerrada a Constituinte os deputados continuaram no exercício de seus mandatos..

As eleições e o trabalho da constituinte foram satisfatoriamente discutidos pela população brasileira, principalmente

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por meio de encontros acadêmicos e populares para debate de aspectos essenciais que deveriam constar da nova constituição federal.

Iniciativas populares para propostas à constituinte tomaram as ruas do país, com abaixo-assinados circulando entre os que apoiavam os projetos. Foi um momento único na história constitucional brasileira, que ainda não havia conhecido tanta discussão e interesse em torno da construção de uma lei constitucional.

O texto da constituição brasileira consagrou a participação da sociedade como princípio de direito constitucional e de direito administrativo. Para isso contém um conjunto de normas que determinam a adoção de práticas de participação popular na vida política e administrativa do país.

No dizer de Ana Maria D´Avila Lopes: A concepção brasileira de cidadania, como participação política ativa e direta do indivíduo na vida da sua sociedade – e não apenas como o exercício do direito político de eleger e ser eleito-, está ainda mais contundentemente declarada no inciso II do artigo 1 da Constituição Federal de 1988, onde a cidadania é prevista como um dos fundamentos do Estado Democrático do Direito brasileiro. Sendo assim, o cidadão deixou de ser um simples espectador para tornar-se o protagonista da construção da sua própria história. Nas palavras de José Afonso da Silva: ‘a atual Constituição amplia a cidadania, qualificando e valorizando os participantes da vida do Estado, e reconhecendo a pessoa humana como ser integrado na sociedade em que vive. (2006, p. 87)

Alguns exemplos são significativos para comprovar a previsão de participação popular na Constituição brasileira:

a) o artigo 10 da Constituição Federal assegura a participação dos trabalhadores e empregados nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação;

b) o artigo 29 da Constituição Federal ao tratar do município e suas normas básicas de organização, prevê expressa cooperação das associações representativas no planejamento municipal;

c) o artigo 187 da CF quando estabelece a atividade administrativa de planejamento da política agrícola, determina que esta será executada na forma da lei, com participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, assim como setores de comercialização, de armazenamento e transportes.

d) o artigo 194 da Constituição Federal prevê em seu caput que: “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinados a

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assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência social e à assistência social.” No inciso VII o artigo 194 assegura o caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados;

e) no inciso III do artigo 198 do texto constitucional está previsto que as políticas, ações e serviços públicos de saúde deverão ser organizados tendo como diretriz a participação da comunidade.

f) no inciso II do artigo 204 está previsto que os serviços públicos de assistência social devem ser organizados e executados com a participação popular, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis;

g) o artigo 205 estatui que a educação é atividade que será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade e no 206, inciso VI, completa com a determinação de que o serviço público contará com gestão democrática na forma da lei.

Em vários outros artigos é possível encontrar expressa previsão de participação da sociedade brasileira.

Existe essa mesma previsão em emendas constitucionais e legislação especial, como acontece na lei de proteção ao idoso, por exemplo. O que se percebe no cotidiano da vida civil brasileira é, no entanto, uma acentuada apatia da maior parte da população em relação a participação direta nas instâncias legalmente previstas. Vivemos praticamente uma democracia formal, cuja participação popular se esgota no voto.

A cidadania ativa no estado democrático de direito implica em participação constante, em acompanhamento dos fatos e das atividades políticas de modo a poder intervir em diferentes momentos, seja para sugerir ou para fiscalizar.

A população, de forma geral, se ressente de falta de motivação para participar mais ativamente desses espaços, seja porque lhe falta tradição de construção de democracia participativa, seja porque faltam espaços em que essa participação direta realmente aconteça, seja ainda porque falte à população civil brasileira, em sua maioria, formação cultural mais adequada para compreender e participar dos debates sobre política.

Esse é um aspecto concreto da organização social brasileira contemporânea que tem merecido estudos e debates, todos como este trabalho buscando caminhos que permitam o incremento da participação popular no processo de escolha e fiscalização da ação política do Estado, e também na compreensão e construção da interpretação dos direitos fundamentais sociais, no sentido de conseguir a concretização de sua efetividade para a maioria da população.

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3. A Interpretação Aberta da Constituição e a Teoria de Peter

Häberle.

Peter Häberle, jurista alemão contemporâneo, propõe uma reflexão sobre interpretação constitucional que possui aspectos relevantes para a construção da efetivação da democracia participativa.

Häberle propõe a sociedade aberta dos intérpretes da constituição, partindo do pressuposto que não há norma senão norma interpretada e que isso decorre do fato de que a constituição federal é um processo contínuo de atualização do seu texto, atualização que pretende acompanhar a linha do tempo, o processo histórico de uma dada sociedade.

Essa atualização permanente não é, no entender de Häberle, uma tarefa que deve ser cumprida apenas pelos tribunais constitucionais, devendo todos os segmentos sociais participarem da interpretação como maneira de garantir a democracia pela via das manifestações plurais.

A interpretação plural da constituição federal realizada com a participação da opinião pública garante, no pensamento de Peter Häberle, a efetividade da democracia e a convicção de que a constituição estará sempre adequada ao tempo histórico e ao meio social no qual é aplicada.

Peter Häberle nasceu na Alemanha em 1934. Estudou em universidades alemãs (Tübingen, Bonn e Freiburg) e também na França (Montpellier). No início da década de 60 doutorou-se na Universidade de Freiburg com tese que discutiu aspectos da constituição alemã.

Em 1969 tornou-se catedrático na Universidade de Freiburg e também em Direito Público na Universidade de Marburgo. Ao longo de sua carreira, ocupou cátedras em outras universidades européias.

Na obra Hermenêutica Constitucional – A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição, traduzida por Gilmar Ferreira Mendes e publicada no Brasil por Sergio Antonio Fabris Editor, em 1997, Peter Häberle traça os contornos fundamentais de sua teoria acerca da possibilidade de uma nova forma de interpretação constitucional. O texto foi publicado originalmente na Alemanha, em 1975, e provocou intenso debate entre os juristas.

A construção teórica de Häberle sobre a sociedade aberta dos intérpretes da constituição ocorre na Alemanha pós II Guerra Mundial e, encontra ambiente propício para ser debatida.

De fato, como explica Ricardo Caiado Amaral, A Lei Fundamental da Alemanha nasceu quatro anos após a Segunda Guerra Mundial como lei constitucional provisória

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da parte da Alemanha então ocupada pelos aliados ocidentais. Tornou-se definitiva como a Constituição Federal da Alemanha, por efeito da criação dos dois Estados alemães, uma parte ocidental e outro na parte oriental. Com a derrubada do Muro de Berlim, em 1989-90, e a conseqüente unificação alemã, a Lei Fundamental de Bonn de 1949, voltou a ser a Lei Maior de toda a Alemanha. (...) Dessa forma, a Grundgesetz, simboliza um verdadeiro pacto social. A fonte dos desejos, anseios e esperanças da nação alemã. Seria, a partir dela, então, que o povo alemão se embasaria para construir o seu Estado e a sua sociedade. Um Estado que teria como tarefa principal a realização e a preservação dos direitos fundamentais consagrados na Lei Fundamental, o que não ocorria no regime nazista. Elegendo, para tanto, como fundamento principal o respeito à dignidade da pessoa humana, definida por Häberle como premissa antropológico-cultural do Estado Constitucional. (2004, p. 152-154)

A sociedade alemã do pós-guerra e do pós- Muro de Berlim encontra na sua lei fundamental as bases de um contrato social que incumbe manter, preservar e proteger como medida de paz social e passível de impedir o surgimento de tendências desagregadoras.

Para que isso ocorra a constituição da Alemanha se assenta em bases capazes de solidificar o sentimento constitucional, como por exemplo, uma educação para a constituição que começa em casa e se estende para a escola; e, um tribunal constitucional vigoroso, que é reconhecido como instrumento de concretização da democracia devendo mesmo prevalecer sobre os outros dois poderes quando houver dúvida. (Amaral, 2004)

Häberle propõe em seu trabalho Hermenêutica Constitucional – A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e Procedimental da Constituição, que um novo aspecto seja incorporado ao debate sobre a interpretação: os participantes da interpretação.

Ele entende que para além das preocupações usuais que o tema da interpretação constitucional propõe: tarefas e objetivos da interpretação e métodos e regras, é preciso inserir um novo debate sobre os participantes do processo interpretativo, e a possibilidade de alargar essa participação para incluir os agentes conformadores da realidade constitucional.

Peter Häberle Propõe-se, pois, a seguinte tese: no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição.

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Interpretação constitucional tem sido, até agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada.Dela tomam parte apenas os intérpretes jurídicos “vinculados às corporações”(zünftmässige interpreten) e aqueles participantes formais do processo constitucional. A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade (...weil Verfassungsinterpretaion diese offene Gesellschaft immer von neuem mitkonstituiert und von ihr konstituiert wird). Os critérios de interpretação constitucional hão de ser mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade. (2002,p.13)

Em outras palavras, Häberle entende que quem vive a norma acaba por interpretá-la, ou pelo menos tem direito de fazê-lo. Os cidadãos que vivem a constituição podem produzir uma interpretação em sentido lato, ou seja, atuam como pré-intérpretes, ficando a cargo da atividade jurisdicional a última palavra, embora já impregnada da interpretação prévia realizada pelas forças sociais.

Exemplo significativo mencionado pelo autor é o papel dos intérpretes informais no dimensionamento dos direitos fundamentais, de sua compreensão e efetividade.

Häberle propõe um catálogo que ele mesmo qualifica de provisório, dos participantes da interpretação. Nele estão incluídos além dos detentores de funções estatais, também os participantes do processo, os pareceristas ou experts, os peritos e representantes de interesses nas audiências públicas do parlamento, os grupos de pressão organizados, os requerentes ou partes nos procedimentos administrativos de caráter participativo, a opinião pública e os doutrinadores.

Como se percebe o catálogo é amplo e contempla um gradiente de participantes dos mais variados matizes. Como o próprio Häberle afirma a interpretação constitucional é atividade que potencialmente diz respeito a todos (2002, p.24)

Dessa afirmação nasce aquela que talvez seja a principal crítica formulada à teoria de Peter Häberle: a possibilidade de a interpretação realizada em uma sociedade aberta de intérpretes impedir a formação de uma unidade política constitucional, permitindo a dissolução da compreensão em múltiplos e variados entendimentos, por vezes incompatíveis entre si, e tendentes a afastar e não a agregar os diferentes atores sociais envolvidos no processo de interpretação.

É em realidade uma preocupação justificada porque uma das funções essenciais da Constituição em um estado democrático de direito é cumprir o papel sistematizador do debate político,

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sinalizando as prioridades que devem ser alcançadas por uma dada sociedade em um dado momento histórico.

A esse pensamento crítico responde Häberle Diante da objeção de que a unidade da Constituição se perderia com a adoção desse entendimento, deve-se observar que as regras básicas da interpretação remetem ao “concerto” que resulta da conjugação desses diferentes intérpretes da Constituição no exercício de suas funções específicas. A própria abertura da Constituição demonstra que não apenas o constitucionalista participa desse processo de interpretação! A unidade da Constituição surge da conjugação do processo e das funções de diferentes intérpretes. (...) Limitar a hermenêutica constitucional aos intérpretes “corporativos” ou autorizados jurídica ou funcionalmente pelo Estado significaria um empobrecimento ou um autoengodo. De resto, um entendimento experimental da ciência do Direito Constitucional como ciência de normas e da realidade não pode renunciar à fantasia e à força criativa dos intérpretes “não corporativos”. (“nicht-zunftinge”Interprete) (2002, p. 32-35)

A proposta de Peter Häberle subverte a lógica de que a

unidade constitucional deriva de posições assemelhadas. Ao contrário, em Häberle o caminho da unidade se constrói a partir da manifestação dos diferentes intérpretes, cujas opiniões conjugadas fornecerão elementos para a realização de uma interpretação conforme a realidade, que torne a constituição viva e por conseqüência, efetiva.

Nesse sentido, a legitimidade do povo para ser intérprete da constituição vem do sentido próprio de cidadania, que não se esgota na escolha de representantes, mas também se viabiliza na competência objetiva que tem para interpretar a constituição, para discutir sobre ela e propor uma visão multifacetada sobre seus desígnios.

Por fim, Peter Häberle destaca que a principal conseqüência da sociedade aberta de intérpretes da constituição federal é fazer com que a interpretação do juiz constitucional não seja única, mas permeada permanentemente por todas as forças plurais públicas que potencialmente podem interpretar a constituição.

Nesse sentido ele destaca a importância das informações que podem ser levadas aos juizes constitucionais e que contribuiriam para ampliar e aperfeiçoar as decisões. Ressalta Häberle, ainda, que deve ser ampliada a participação dos vários segmentos sociais no processo judicial, principalmente pela via das audiências e das intervenções, visando sempre tornar a interpretação dos juízes mais

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elástica e mais ampliativa de modo a contemplar interesses diversos de uma sociedade plural.

Peter Häberle, em 1982, iniciou uma reflexão propondo a teoria da constituição como uma teoria cultural, idéia que em nosso entender aprofunda o pensamento da sociedade aberta de intérpretes da constituição.

Nesse sentido, ele afirma “(...) as normas constitucionais não podem interpretar-se de maneira, por assim dizer, autônoma, só em si e de per si, mas que devem situar-se desde o princípio, em seu contexto cultural.”(2009, p. 42)

Com uma história constitucional tão diferente da alemã e com uma sociedade plural, porém ainda marcada por profunda desigualdade social, cumpre refletir sobre por quais meios seria possível para a sociedade brasileira contemporânea participar mais ativamente do processo de interpretação da constituição federal, viabilizando assim uma nova dimensão para a democracia participativa.

4. O Acesso à Radiodifusão como Meio de Democratização da Interpretação Constitucional.

A Constituição Federal brasileira determina que todos são

iguais perante a lei, sem discriminação de qualquer natureza; determina, ainda, que é livre a expressão da atividade intelectual, artística e científica e de comunicação, independente de censura ou licença.

No tocante aos serviços de radiodifusão sonora, de sons e imagens e demais serviços de telecomunicação, a Constituição brasileira determina que eles serão explorados diretamente pela União ou mediante autorização, concessão ou permissão.

Em 1998 foi criada uma legislação federal especial para rádios comunitárias, que foram definidas nesse texto legal como a radiodifusão sonora em freqüência modulada, operada em baixa potência e cobertura restrita, outorgada a fundações e associações comunitárias, sem fins lucrativos, com sede na localidade de prestação de serviços.

Segundo o mesmo texto de lei, a finalidade das rádios comunitárias é o atendimento à comunidade beneficiada, com vistas à criação de oportunidades de idéias, difusão cultural, promover a formação e integração de determinada comunidade, assim como estimular o lazer e o convívio social. Também deve prestar serviços de utilidade pública e integração de serviços de defesa civil nos casos de necessidade.

Determina a lei, ainda, que as rádios comunitárias devem observar em sua programação as finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, bem como promover atividades artísticas e

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jornalísticas na comunidade, cultivar o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Portanto, a concessão de rádios comunitárias depende do governo federal e não do município ou do estado da federação onde elas se achem instaladas, o que dificulta enormemente que as pequenas comunidades, os bairros isolados e os lugares mais longínquos consigam obter autorização formal para o funcionamento.

Além disso, a estipulação em lei federal dos limites de potência e raio de alcance dessas rádios é impróprio, porque esses são aspectos que dizem respeito apenas e tão somente à comunidade, ou ao município onde a rádio comunitária está instalada. De fato, que mal pode haver que uma emissora de rádio comunitária tenha um alcance maior do que aquele determinado por lei se o lugar for ermo, afastado, com dificuldade de acesso, como acontece com a população ribeirinha no Amazonas, ou em estados menos densamente povoados como o Piauí, por exemplo?

Esses aspectos técnicos praticamente inviabilizam a regularização das rádios comunitárias. Em outras palavras, a legislação criada permite a instalação de rádios comunitárias, mas impõe exigências muito difíceis de serem atendidas pelos grupos sociais que têm interesse na concessão.

Historicamente a concessão de serviços de rádio e televisão, no Brasil, está associada a interesses políticos e econômicos dos diferentes governos e o resultado é que grande parte das emissoras de rádio e televisão estão em poder de grandes grupos econômicos e políticos, em um evidente descumprimento da proposta constitucional que sinaliza pela democratização do acesso.

A revista semanal Veja publicou em 29 de abril de 2009 que o senador José Sarney e sua família, lideranças políticas no estado do Maranhão, possuem 17 emissoras de rádio e 04 emissoras de televisão. Isso em um estado em que 64% da população é classificada como miserável, segundo dados da mesma publicação.

Embora seja vedado pela Constituição Federal estima-se que mais de duzentos políticos federais brasileiros sejam donos de rádios e televisões, e um número incalculável de políticos municipais e estaduais também o sejam. Muitos desses políticos municipais e estaduais são donos de rádios definidas como comunitárias que em tese, deveriam atender aos interesses da população das comunidades, vilas, bairros e povoamentos. Esses dados são obtidos nos sites Aprendiz (www.aprendiz.org.br) Direito de Comunicação (www.direitocomunicacao.org.br) ou Observatório da Imprensa (www.observatoriodaimprensa.com.br)

O rádio é um veículo de comunicação de grande penetração popular, capaz de atingir todos os pontos de um país como o Brasil que tem dimensões continentais. O rádio é, além disso, um sistema barato de comunicação, o que permite o acesso mesmo das camadas mais pobres da população.

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Os enormes interesses políticos e econômicos que envolvem o rádio e a televisão têm sido determinantes para que uma perversa realidade se instaure no país. Rádios e televisões em mãos de detentores de poder político e econômico e as rádios montadas pelas comunidades carentes, em especial na periferia dos grandes centros urbanos para difundir a cultura e o lazer a partir de opções da própria comunidade, são fechadas pela polícia federal por serem ilegais na concepção dos intérpretes da lei.

As rádios livres ou comunitárias como são chamadas no Brasil, têm o importante papel de motivar a participação da população nos temas que diretamente lhe dizem respeito. A programação livre dessas rádios pode incentivar a participação e o debate da população, contribuindo para maior efetividade da democracia participativa.

Armando Coelho Neto afirma As rádios comunitárias correspondem hoje a um fenômeno mundial e não têm marcado presença unicamente nos conflitos legais. Pelo contrário, elas têm permitido implementação de atividades sociais e educativas, decorrentes do exercício da garantia de liberdade de expressão consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Dirigida a um público de baixa renda, identificada com sua cultura, esta seção radiofônica torna realizável para uma determinada fatia da população aquilo que poucos conseguem nas grandes emissoras, seja o anunciante da padaria, do açougue que jamais veria seu anúncio e suas ofertas popularizadas, assim como a adolescente que dificilmente teria condições de passar sua mensagem de aniversário par ao irmão ou namorado. Em outras palavras, serviços, vantagens, campanhas e mensagens tornam-se acessíveis, abrindo espaço para que a radiodifusão cumpra sua função social, entre elas a de aproximar, fazer a conexão entre pessoas, idéias, integrando a comunidade. (2002, p. 67-68)

Além de fazer a conexão entre idéias e pessoas, integrando a comunidade como afirma Armando Coelho Neto, as rádios comunitárias são o espaço privilegiado de discussão dos temas e problemas que são específicos de uma dada comunidade, permitindo que a livre discussão desses temas amplie o espaço de percepção das pessoas, a permanente inter-relação que alguns temas do cotidiano guardam com os temas mais complexos e amplos. De fato, é na discussão dos problemas da escola pública rural, ou da escola pública do bairro da periferia que o cidadão começa a refletir sobre a falta de políticas públicas mais adequadas para a educação pública de qualidade em todos o país, a questionar as razões históricas e sociais da falta dessas políticas públicas e a compreender as possibilidades

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de atuação da população para a correção dessas opções materialmente dadas.

Os movimentos sociais urbanos que aconteceram na cidade de São Paulo na década de 70, por exemplo, iniciaram suas lutas para tentar obter junto ao poder público municipal maior quantidade de creches e escolas públicas. Utilizaram jornais e panfletos confeccionados pela própria comunidade como instrumento de divulgação de seus propósitos e, principalmente, de suas reuniões, encontros e atos públicos. Em pouco tempo, se expandiram dos bairros para toda a região, criando uma envergadura que os levou a serem conhecidos praticamente em todo o país.

A luta iniciada no bairro a partir de discussões pontuais sobre o acesso a equipamentos sociais que lhes eram negados, permitiu a uma parcela da população a compreensão de outros aspectos da organização sócio-política e econômica. Muitas mulheres que iniciaram sua participação democrática em movimentos de lutas por creche, inseriram posteriormente as discussões de gênero em sua agenda participando também ativamente do movimento de mulheres, em especial na luta por políticas públicas de proteção à saúde da mulher.

Esses exemplos concretos e não tão distantes no tempo histórico sinalizam que, utilizando rádios comunitárias livres para discutir idéias e necessidades da realidade cotidiana, o debate possa ser lenta e efetivamente ampliado, incorporando aspectos da política nacional, construindo um efetivo diálogo entre o local e o nacional, um permanente ir e vir entre a questão pontual e as condições histórico, sociais e econômicas em que elas acontecem.

Em outras palavras, a programação livremente organizada por rádios comunitárias pode se constituir em importante elemento de construção de participação popular na democracia, ampliando o espaço de debate público, inserindo paulatinamente a partir do debate local a interpretação da efetividade dos direitos sociais.

Daniel Augusto Vila-Nova Gomes ao se referir ao aparato do Estado brasileiro na regulação das possibilidades de acesso a radiodifusão livre afirma

Esta forma de compreensão paradigmática do público e do privado apresentam limitadas possibilidades e elevados perigos para a democracia. Ao dar vazão a esse tipo de juízo e consideradas as peculiaridades históricas do contexto da sociedade brasileira, abres-se espaço para que as inúmeras cidadanias sejam indevida e autoritariamente tuteladas por estatismos, nacionalismos e patrimonialismos consideravelmente nocivos ao pleno reconhecimento da autonomia (pública e privada) dos cidadãos, dos movimentos sociais e, em última instância, da própria concepção do povo brasileiro que constituímos. Atentando-nos aos problemas políticos e sociais enfrentados pelo país, enxergamos que, para além dos empresários,

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clientes, empregados e empregadores, há brasileiros que vivem abaixo da linha de miserabilidade. Desse amontoado de cidadãos que não detém condições mínimas de sobrevivência, surgem legítimas pretensões de movimentos sociais e expectativas normativas de inclusão generalizada das cidadanias desprovidas de trabalho, terra, educação, saúde e dignidade. Como início da experiência do rádio nos sugere, o empoderamento político de atores sociais por meio da educação é uma das opções disponíveis em nossa história constitucional. O potencial do rádio é muito grande para ser reduzido a lucros e dividendos a serem suportados pelos atores do Mercado. Trata-se de conquista válida, mas insuficiente para atender à complexidade de demandas culturais e políticas requeridas pelas vidas públicas e privadas dos demais atores da cidadania e da democracia em nossa comunidade jurídico-política de princípios constitucionais. (2009, p.182)

A democratização do acesso a formas comunitárias de radiodifusão que com liberdade responsável, abriguem a multiplicidade de olhares e pensamentos sobre novas formas de exercício da política, pode construir um caminho para novas dimensões de democracia participativa.

Nesse sentido, Carmelo Angulo Cuando la confianza em las mediaciones políticas flaquea y se agudizan la crisis institucional y la fragmentación social, es decir, cuando la calidad de las instituciones democráticas es baja, los espacios de diálogo y concertación constituyen una oportunidad para convertir las demandas de la sociedad en políticas de Estado, más allá de los intereses particulares y los problemas de representación. La crisis, de ese modo, estimula la participación y promueve articulaciones que permiten que la ciudadanía misma incida directamente en lo público. Pero para que esto tgenga lugar es preciso contar con una sociedad civil dinámica, capaz de articular sus demandas de cara a los poderes públicos, formales y fácticos, y dispuesta a iniciar procesos de corresponsabilidad y coadministración de las políticas públicas. (2005, p.253)

Trazer o debate sobre a liberação de autorização federal

para construção e funcionamento das rádios comunitárias é, no Brasil contemporâneo uma tarefa necessária. O monopólio da radiodifusão em mãos de grandes grupos econômicos e políticos, que manipulam a programação e as informações tendo por objetivo apenas o atendimento de seus interesses é um atraso para a construção da democracia participativa e para a efetividade dos direitos fundamentais.

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O acesso amplificado da população a construção de rádios comunitárias nas quais a programação possa ser feita livremente pela própria comunidade, pode representar um meio eficiente para a discussão dos temas prioritários e para a inserção dessa população no debate nacional, principalmente na escolha, administração e fiscalização de políticas públicas que efetivem os direito sociais previstos na Constituição Federal.

5. CONCLUSÃO. A Constituição Federal brasileira, fruto de um processo

histórico de superação de um longo período de ditadura militar, reconstruiu a democracia com base em princípios de respeito a dignidade da pessoa humana, sobretudo pela via de acesso a direitos sociais fundamentais como saúde, educação, moradia, assistência social, entre outros.

De igual maneira, a Constituição Federal brasileira determinou que a democracia seria concretizada de duas formas: pela via da representação e pela via da participação direta da sociedade civil. Se o primeiro caminho tem sido constantemente utilizado, o segundo ainda se mostra carente de maior efetividade e dinamismo.

Encontrar caminhos eficazes de consolidar a participação popular na democracia tem sido objeto de estudo e reflexão de cientistas políticos em toda a América Latina. No Brasil esse debate se faz também com os cientistas do direito, ou pelo menos com a parte deles que se preocupa com a efetividade dos direitos constitucionais, com a perspectiva de concretizar os ideais constitucionais e não permitir que esse texto de lei se transforme apenas em um ideal não cumprido, um mito mais do que uma realidade.

Nesse contexto histórico e social os estudos de Peter Häberle sobre a sociedade aberta de intérpretes da constituição federal nos reporta, de imediato, a possibilidade de fortalecimento da democracia no Brasil com a participação mais direta da população no debate sobre a interpretação da constituição e, principalmente, sobre os temas mais importantes para garantir o acesso a direitos fundamentais consagrados na constituição.

A participação da população no debate sobre a interpretação do texto constitucional e, consequentemente sobre a efetividade dos direitos sociais fundamentais, cumpre o papel de fornecer aos poderes constituídos a opinião da sociedade civil e, em conseqüência, de diminuir a distância entre os que têm o poder de decidir e aqueles a quem competirá obedecer as decisões. No Brasil essa distância é enorme, o que propicia que as decisões jurídicas muitas vezes sejam técnicas, mas nem sempre sejam justas.

Mas em quais espaços públicos a população teria condições de exprimir suas reflexões sobre a interpretação e aplicação da

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Constituição Federal? No modo atual de organização dos meios de comunicação a sociedade fica solenemente alijada de participar do debate, porque rádio e televisão se encontram concentrados nas mãos de grupos de poder político e econômico, ao mesmo tempo que o acesso a autorização de rádios comunitárias é de caráter federal e difícil de ser obtido por grupos sociais de menor expressão política e econômica.

O rádio atua historicamente no Brasil como um importante difusor de idéias e informações alcançando localidades de difícil acesso e permitindo a alfabetizados e não-alfabetizados que ouçam a programação, muitas vezes até enquanto trabalham no campo ou na cidade. O rádio, no Brasil, é um democrático instrumento de acesso a informações inclusive porque tem custo reduzido e pode ser comercializado em todos as camadas da população. Além disso, é tradição do rádio brasileiro a interatividade, com programas que solicitam a participação dos ouvintes, principalmente por carta e por telefone.

Flexibilizar o acesso das comunidades a rádios que possam ser a expressão de sua cultura, de seus saberes e valores e, ao mesmo tempo, de suas opiniões e idéias sobre a aplicação da Constituição Federal, é uma proposta que cumpre, a exemplo de outras já colocadas em prática como o orçamento participativo, por exemplo, o dignificante papel de concretizar a democracia participativa.

Estimular as rádios comunitárias a produzirem programação que contemple a reflexão sobre a efetividade dos direitos sociais fundamentais, pode realizar em boa parte a sociedade aberta dos intérpretes da constituição permitindo a construção de uma opinião pública que seja realmente plural.

Para isso é necessário que as rádios comunitárias possam ser organizadas livremente pela população dos pequenos agrupamentos urbanos e rurais, sem as restrições legais atualmente existentes e que na prática, têm praticamente inviabilizado a constituição dessas rádios.

O livre acesso a organização de rádios comunitárias sem as restrições técnicas e políticas existentes na atualidade, contempla mais um pressuposto constitucional fundamental que é a liberdade de expressão, e amplia as possibilidades da democracia participativa no Brasil, país marcado por grande diversidade cultural e, ao mesmo tempo, pelas dificuldades decorrentes de sua extensão geográfica.

A construção de uma interpretação constitucional que se faça debaixo para cima, por meio de debates propiciados por rádios comunitárias de programação livremente construída pelas próprias comunidades, pode se constituir em mais um passo na busca da efetividade da democracia participativa.

Peter Häberle nos ensina que as normas constitucionais em razão da importância que têm para a consolidação do estado democrático, não podem ser interpretadas apenas e tão somente por

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aqueles que organizam o poder político institucional. Antes disso, a interpretação deve ser molhada pela diversidade cultural da nação, por diferentes olhares e experiências, amplificada pelo som do debate dos que vivem o direito no cotidiano e na rua, consolidando o verdadeiro significado do direito de ter direitos expresso pelo texto constitucional, em especial no Brasil.

Ao afastar a diversidade na interpretação, ao relegar aos poderes constituídos o monopólio da interpretação constitucional, o risco que se corre é de tornar o Estado ainda mais surdo ao cidadão e de consolidar o judiciário, em conseqüência, como um poder que se mostra propenso a contemplar interesses apenas dos detentores de poder político e econômico.

Amplificar o debate constitucional implica encontrar formas concretas de inserir as camadas menos favorecidas intelectual e economicamente nesse diálogo, e a experiência demonstra que livrar as rádios comunitárias dos mecanismos legais e burocráticos que impedem sua constituição e funcionamento pode contribuir para construir no Brasil uma sociedade livre de intérpretes da constituição federal.

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