A crítica de Nietzsche a cultura de massa

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  Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 13 • dezembro 2000 • semestral   Avaliando a contribuição nietzscheana ao desenrolar do de-  bate sobre a cultura de massa, o artigo sublinha seus vários aspectos do p onto de vista hist órico-valorativ o, situando as idéias do autor no movimento de avanço da modernidade a partir de uma perspectiva dialética.   Reasoning about Nietzsche’s contribution to the mass culture debate, this article aims to underscore his internal contraditons from both an historical and from a cultural point of view, in order to situate the philosopher’s ideas about that subject vis-a-vis the advances of cultural modernity. The author adopts both a critical and a dialectical perspective in his reading of Nietzsche.  - Nietzsche - Modernidade  (Modernity) - Cultura de massas (Mass culture) Douglas Kellner 1  JUNTAMENTE COM KARL MARX, Friedrich Niet- zsche pode ser lido como sendo o grande teórico e crítico da modernidade, que faz, para usar os termos do primeiro, uma “análise implacável de tudo que existe”. 2 As poderosas polêmicas levantadas por Ni- etzsche contra a religião, a moralidade e a filosofia misturam a análise mais crua, ins- pirada no Iluminismo, com uma vitalidade romântica, para atacar os aspectos da cultu- ra moderna que contrariam a vida. Além disso, Nietzsche critica muitas das institui- ções e valores das sociedades modernas como sendo opressoras reais do corpo e de sua criatividade, uma vez que inibem o surgimento de indivíduos mais fortes e uma organização sociocultural mais vigo- rosa. Em suas avaliações da idade moder- na, Nietzsche desenvolveu uma das pri- meiras críticas bem sustentadas da cultura de massa e da sociedade, do Estado e das arregimentações e organizações burocráti- cas, produzindo perspectivas que influen- ciaram profundamente tratados e estudos posteriores sobre a modernidade. Ao mesmo tempo em que Nietzsche é o maior crítico da modernidade ele tam-  bém ilustra seu espírito e seu ethos. Apesar de argumentar contra a democracia, o libe- ralismo e vários dos movimentos sociais progressistas, os ataques de Nietzsche são feitos, ao menos parcialmente, segundo um estilo inspirado na cultura e no Iluminismo modernos, negando as idéias existentes em nome de um futuro melhor. Apesar de seu fino gosto pelas culturas antigas, como a da Antigüidade Clássica, e da defesa de al- guns valores pré-modernos, Nietzsche é muito moderno e orientado pelo presente, atacando tradições e clamando por uma nova sociedade e uma igualmente renovada cultura. Um ímpeto pela inovação, envol- vendo a negação do antigo e a criação do novo, é a base do complexo e, por vezes,

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CENTENÁRIO NIETZSCHE

 A crítica deNietzsche àcultura de massaRESUMOAvaliando a contribuição nietzscheana ao desenrolar do de-

bate sobre a cultura de massa, o artigo sublinha seus vários

aspectos do ponto de vista histórico-valorativo, situand o as

idéias do autor no movimento de avanço da modernidade a

partir de uma perspectiva dialética.

 ABSTRACTReasoning about Nietzsche’s contribution to the mass culture

debate, this article aims to underscore his internal contraditonsfrom both an historical and from a cultural point of view, in

order to situate the philosopher’s ideas about that subject

vis-a-vis the advances of cultural modernity. The author

adopts both a critical and a dialectical perspective in his

reading of Nietzsche.

PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) - Nietzsche

- Modernidade (Modernity)

- Cultura de massas (Mass culture)

Douglas Kellner1

JUNTAMENTE COM KARL MARX, Friedrich Niet-

zsche pode ser lido como sendo o grandeteórico e crítico da modernidade, que faz,para usar os termos do primeiro, uma“análise implacável de tudo que existe”.2

As poderosas polêmicas levantadas por Ni-etzsche contra a religião, a moralidade e afilosofia misturam a análise mais crua, ins-pirada no Ilum inismo, com u ma vitalidad eromântica, para atacar os aspectos da cultu-ra moderna que contrariam a vida. Além

disso, Nietzsche critica muitas das institui-ções e valores das sociedades modernascomo sendo opressoras reais do corpo e desua criatividade, uma vez que inibem osurgimento de indivíduos mais fortes euma organização sociocultural mais vigo-rosa. Em suas avaliações da idade moder-na, Nietzsche desenvolveu uma das pri-meiras críticas bem sustentadas da culturade massa e da sociedade, do Estado e dasarregimentações e organizações burocráti-cas, produzindo perspectivas que influen-ciaram profundamente tratados e estudosposteriores sobre a mod ernidade.

Ao mesmo tempo em qu e Nietzsche éo maior crítico da modernidade ele tam-bém ilustra seu espírito e seu ethos. Apesarde argumentar contra a democracia, o libe-ralismo e vários dos movimentos sociaisprogressistas, os ataques de Nietzsche sãofeitos, ao menos parcialmente, segund o um

estilo inspirado na cultura e no Iluminismomodernos, negando as idéias existentes emnome d e um futu ro melhor. Apesar de seufino gosto p elas cultu ras antigas, como a daAntigüidade Clássica, e da defesa de al-guns valores pré-modernos, Nietzsche émuito moderno e orientado pelo presente,atacando tradições e clamando por umanova sociedad e e um a igualmente renovadacultura. Um ímpeto pela inovação, envol-

vendo a negação do antigo e a criação donovo, é a base do complexo e, por vezes,

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enigmático trabalho teórico de Nietzsche,que, no espírito da modernidade, afirma odesenvolvimento e a transcendência dosvalores antigos como sendo crucial para asociedad e e a individu alidad e contemp orâ-neas.

Nietzsche queria transcender a mo-dernidad e para um a forma sup erior de cul-tura e sociedade, que possibilitaria a exis-tência de indivíduos mais fortes e comple-tos. Ele acreditava que novos potenciaispara a criatividade individual e para umaforma superior de cultura, possibilitadapelo surgimento da era moderna, estavamsendo atrofiados e suprimidos pelas atuaisorganizações sociopolíticas, fazendo neces-

sárias mudanças socioculturais radicais.Isso, também, era, de algum modo, umapostura bastante moderna. Assim, apesardos ataques à modernidade, Nietzscheexemplifica as características modernas dacrítica, e do início ao fim de sua carreiraatacou os ídolos espirituais perenes e con-temporâneos, que ele via como sendo obs-táculos para o livre pensar e viver.

Neste estud o, eu d iscutirei sobre a crí-tica da cultura de massas feita por Nietzs-che no contexto de sua análise da moderni-dade e de suas perspectivas filosóficasmais gerais. Digo que Nietzsche desenvol-veu uma das primeiras grandes críticas fi-losóficas da cultura de massas, que depoisinspirou pensadores tanto da direita, comoHeidegger e Junger, como de esquerda,como os membros da Escola de Frankfurt eFoucau lt. Nietzsche foi um dos p rimeiros aver a cultura de massas como sendo uma

instituição central para os processos de re-produção da sociedade moderna e, especi-almente, como o que ele classificava comosendo a característica distintiva das socie-dades modernas: a massificação e a erradi-cação da individualidade, ambas criadorasde sociedades uniformes – semelhantes arebanhos – e mediocrizadas. Ele se tornou,dessa forma, a maior fonte das posteriorescríticas da sociedade e da cultura de mas-

sas, que ele via como sendo a causa da de-cadência e do niilismo, pois minava a vita-

lidade cultural e p revenia a criação e d isse-minação de culturas genuínas e de indiví-duos fortes.

O debate sobre a cultura de massas

Críticas da cultura de massas e da impren-sa começaram a surgir no final do século18. Estas críticas eram baseadas em refle-xões sobre a vida e o lazer modernos, quecomeçaram a aparecer no século XVI, du-rante o colapso do sistema feudal. O surgi-mento das revoluções industrial e demo-crática foi acomp anh ado pelo aparecimentoda literatura popular, do jornalismo e da

imprensa moderna, que alimentaram gran-des debates sobre seus impactos e conse-qüências. Pensadores como Montaigne ePascal apontaram a necessidade de diver-sões ainda durante o século XVI, e escrito-res como Goethe começaram a criticar osentretenimentos banais oferecidos pela im-prensa e pela cultura de massas, notandoque eles serviam como grandes formas deescape da realidad e social.

“Nós temos jornais para todas ashoras d o dia. Uma mente inteligente eágil ainda pode acrescentar mais al-guns. Desta forma, tudo o que todosfazem, querem, escrevem e até m esmoplanejam é exposto publicamente. Al-guém pode gozar ou sofrer, mas sem-pre para o entretenimento dos outros,ecom grande rapidez isso é comu nicadode casa a casa, de cidade a cidade, de

império a império e, finalmente, decontinente a continente.”3

Goethe argumentou que a imprensaconstituía um desperdício de tempo, noqual os leitores “gastavam os dias e as vi-das sem fazer previsões para o futuro, semcriar nada”. Ainda antecipando Nietzsche,ele criticou as formas pelas quais o entrete-nimento moderno e a imprensa prom oviam

a passividade e o conformismo, anotandoem um pequeno verso como a imprensa é

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impulsiva ao encher os leitores de informa-ções, e relapsa no que tange a idéias discor-dantes:

“Deixemos qu e tud o seja imp ressoe que com tud o nos ocup emos.

Mas que ninguém incomodequem não pensa como todo o mundo .”4

Outros, porém, t inham avaliaçõesmais otimistas quanto ao impacto dos mei-os de comunicação de massa, especialmen-te a imprensa. Karl Marx, por exemplo, ti-nha a imprensa em alta conta, principal-mente pela promoção da democracia e daliberdade civis. Em 1842 ele escreveu :

“A imprensa livre é o olhar onipoten-te do povo, a confiança personalizadado povo nele mesmo, o vínculo arti-culado qu e un e o indivídu o ao Estadoe ao mundo, a cultura incorporadaque transforma lutas materiais em lu-tas intelectuais, e idealiza suas formasbru tas. É a franca confissão d o p ovo asi mesmo, e sabemos que o poder daconfissão é o de redimir. A imprensalivre é o espelho intelectual no qual opovo se vê, e a visão de si mesmo é aprimeira condição da sabedoria. É amente do Estado que pode ser vendi-da em cada rancho, mais barata quegás natural. É universal, onipresente,onisciente. É o mundo ideal que fluiconstantemente do real e transbordadele cad a vez mais rico e animad o.”5

Assim, em mead os de 1840, a impren-sa era um campo de batalha para discus-sões, com fervorosos defensores e críticos.Alguns viam-na como sendo um instru-mento de progresso e esclarecimento, en-quanto outros a tinham como um veículopara a distração e a banalidade. Além dis-so, diferentes grupos políticos passaram adesenvolver suas próprias publicações,com o objetivo de moldar a opinião públi-

ca de diferentes formas. As críticas maismordazes ao papel da imprensa partiram

de pensadores como Kierkegaard, que avia como um cão raivoso, que persegue aspessoas de uma forma vil, dissemina um“fantasma” e adultera a opinião pú blica.

A contribuição nietzscheana consistiuem estender a crítica à imprensa, feita por

escritores anteriores, para uma crítica dacultura d e massas e da sociedad e como u mtodo. Através de seus trabalhos, Nietzschevia a cultura como o elemento central davida humana e acreditava que culturasmais sadias e fortes poderiam criar indiví-duos distintos, criativos e mais poderosos,ao passo que culturas fracas e fragmenta-das criariam seres medíocres e inferiores.Sua crítica começa com seus primeiros tex-

tos, que contrastam a cultura grega – forte esaudável – com a sua cultura alemã, cadavez m ais banal, e se estende a té seus textosposteriores, nos quais ele contrasta suaspróprias concepções de cultura e individu-alidade como os conceitos dominantes naEuropa moderna.

 A crítica da cultura de massas do jo- vem Nietzsche

Quando jovem, Nietzsche via a Gréciacomo modelo de cultura forte, saudável eorgânica, capaz de gerar indivíduos igual-mente fortes e criativos. Em seu primeirolivro publicado, O Nascimento da Tragédia,Nietzsche contrasta a vibrante cultura dio-nisíaca, evidente na Grécia pré-socrática enos primórdios da tragédia grega, com osversos apolíneos mais racionais, evidencia-

dos na argumentação socrática e na tragé-dia grega mais madura. A cultura dionisía-ca era eminentemente afirmadora da vida,expressava energias e paixões corporais eunia as pessoas através do compartilha-mento d o êxtase das experiências culturais,das intoxicações e das festas – fatores essesque, segundo acreditava Nietzsche, cria-vam os indivídu os fortes e saudáveis assimcomo uma cultura vigorosa.

Na visão de Nietzsche, a cultura so-crática era uma resposta à quebra e à frag-

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mentação da cultura trágica grega, a qualela tentou substituir por um conjunto co-mum de valores éticos homogêneos, nor-mas teóricas e procedimentos metodológi-cos, todos baseados na lógica e raciocíniosocráticos. Para ele, a razão de ser desses

valores era a substituição dos belicososdeuses da Grécia por uma cultura racionalmais unificada. De certa forma, a culturasocrática promoveu, assim, uma cura parauma emergência cultural com o racionalis-mo extremo. Apareceram para refrear a for-ça e os impulsos que tinham sido libera-dos, e que Sócrates e Platão acreditavamfora de controle. O resultad o foi uma equa-ção de razão, conhecimento e virtude que

fez da razão o instrumento de condução àverdad e e à moralidad e.7

Assim, a cultura socrática revisouaquilo que Nietzsche via como sendo a vi-são pré-socrática d o sofrimento, profund a etrágica, e propôs a red enção através da cul-tura pelo otimismo, que defendia a razãocomo sendo a descobridora da verdade e acriadora do bem viver. Para Nietzsche, otriunfo d o hom em teórico socrático criou asorigens do racionalismo moderno e do oti-mismo iluminista, possibilitando o avançorumo ao Esclarecimento. A tal triunfo secontrapôs o pessimismo trágico. Scho-penhau er e Wagner, seus p rimeiros mento-res, entendiam, de fato, que a grande filo-sofia e a arte seriam as mestras e redentorasda humanidade, os instrumentos de cultu-ras fortes e sadias.8

Através de sua obra, Nietzsche viu acultura socrática como send o a força forma-

dora do período moderno, incluindo seusresultados negadores da vida (ver exem-plo, Crepúsculo dos Ídolos, “Sócrates”). Sócra-tes, para Nietzsche, foi um símbolo de de-cadência, de atrofia d os instintos elementa-res da vida, que veio a dominar o corpo eas paixões humanas, constituindo um pro-cesso que se intensificou com o passar dosséculos e que Nietzsche viu como sendoformad or da Era Moderna.

Em O Nascimento da Tragédia, Nietzs-che defendeu a música de Richard Wagner

como um revitalizante cultural em potenci-al, que – ele esperava – poderia promoverum renascimento da cultura alemã. ComWagner ele teve uma profunda, emboraconflituosa, amizade. De fato, Nietzschetornou-se um freqüentador assíduo d a casa

de Wagner, em Tribschen, e um propagan-dista para a música dramática do maestro,que – ele esperava – poderia promover asbases para a nova cultura germânica. Pertodo final de seu livro, Nietzsche descreve adegrad ação d a arte contemporânea e comoum a crítica cultu ral de baixo nível, “prepa-rada pela educação e pelos jornais”, aca-bou p or levar a um a inabilidad e na ap reci-ação da arte genuína:

“A tendência a empregar o teatrocomo um a instituição para a formaçãomoral do povo, que no tempo deSchiller foi tomada a sério, já é conta-da entre as incríveis antigüidades deum a cultura superad a. Enqu anto a crí-tica chegava ao d omínio no teatro e noconcerto, o jornalista na escola, a im-prensa na sociedade, a arte degenera-va a ponto de se tornar um objeto deentretenimento da mais baixa espécie,e a crítica estética era utilizada comomeio de aglutinação de uma sociabili-dade vaidosa, dissipadora, egoísta e ,ademais, miseravelmente despida deoriginalidade.”9

Nietzsche via assim a cultura de massas,perpetuad a pela educação tanto quanto pe-los jornais, como sendo, além d e um corro-

sivo para a arte autêntica, criadora de umacultura medíocre. Nietzsche esperava queele mesmo criasse os fundamentos filosófi-cos para uma nova cultura, que revitaliza-ria a Alemanha, e realizou estudos sobrefilosofia grega, que ele acreditava que po-deria fornecer os elementos essenciais paraa criação de uma cultura afirmadora davida, possibilitando o surgimento do indi-víduo superior.

Em 1873, contudo, Nietzsche deixoude lado suas meditações sobre a filosofia

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grega e partiu para a emp reitada d e desen-volver suas próprias perspectivas filosófi-cas, passando a escrever um a série de críti-cas sobre a era mod erna. Estud iosos de suaobra, geralmente, vêem esta mudança paraa contemporaneidade como sendo uma

tentativa para agradar Wagner, que eradesdenhoso em relação a trabalhos pura-mente filológicos ou filosóficos, e comouma intervenção ativa na guerra culturalalemã daquele tempo.10 Embora subservi-ente ao projeto wagneriano de remodela-ção da cultura alemã contemporânea, so-mad a ao d esejo d e Wagner de ver u ma crí-tica publicada a seu inimigo Strauss, que ohavia criticado anteriormente, possam ter

influenciado as intenções imediatas de Ni-etzsche, a mudança para as “consideraçõesintempestivas” foi um movimento decisivode engajamento com a questão da culturacontemporânea, que estava se tornando, as-sim, um elemento central do emergenteprojeto filosófico d e N ietzsche.

Nietzsche começou a escrever sobreum fenômeno central da atualidade numasérie de Considerações Intempestivas qu e criti-cavam, no espírito do Iluminismo, figurascentrais e características da Alemanha e d aera moderna, enquanto propunham idéiaspara a renovação cultural. O alvo da pri-meira  Intempestiva foi o escritor alemão Da-vid Friedrich Strauss, autor de uma influ-ente  A Vida de Jesus e que, através de umadetalhada comparação dos relatos de Jesusnos Evangelhos, argumentava qu e o cristia-nismo era um mito que serviu às necessi-dades do povo da época. Nietzsche leu o

desmitificante trabalho d e Strauss aos vinteanos e ficou profundamente impressionadocom sua crítica filológica.11 Após prestarhomenagens aos trabalhos anteriores deStrauss, Nietzsche, porém, de pronto criti-cou seus escritos mais recentes, que ele viacomo um exemplo do filistinismo que do-minava a vida alemã desde sua unificação,após a vitória sobre a França, e que imp edi-ra o renascimento da genuína cultura que

ele almejava (Considerações Intempestivas, #2). Sobre o júbilo que se abateu na Alema-

nha depois da Guerra Franco-Prussiana,Nietzsche escreveu:

“Não se sente satisfação apenas, sen-te-se felicidad e, embriaguez. Essa feli-cidade e embriaguez sentem-se na in-

crível suficiência dos jornalistas ale-mães, dos romancistas, dos autores detragéd ias, de p oesia e d e história, por-que formam um grupo coerente e pa-rece terem jurado apoderar-se das ho-ras que o homem moderno consagraao divertimento e à digestão, à suacultura. É nesses momentos que seprocura abafá-lo com montanhas depapel impresso.

Para esse tipo de pessoas, de-pois da guerra tudo é felicidade, dig-nidade e satisfação profunda. Depoisde tão importantes sucessos da cultu-ra alemã sentem-se não ap enas confir-mados e reconhecidos mas quase con-sagrados, tomam um tom solene, mul-tiplicam os ap elos à nação alemã, edi-tam as suas obras completas, como sefaz para os clássicos, e proclamam nos

 jornais que eles são os novos clássicosalemães e escritores paradigmáticos.”(Considerações Intempestivas I, op. cit., p.9)

Para Nietzsche, isso é um “abuso dosucesso” e ele tem esperança que, ao me-nos alguns alemães tomem a iniciativa decriticar “o p obre espetáculo encenad o d ian-te de seus olhos”. Nietzsche contesta o pa-pel da “casta da educação” pela omissão à

“cultura popular alemã” e por não exami-nar a falta de uma cultura vibrante e unifi-cadora para a Alemanha. Strauss era paraNietzsche um exemplo do “filisteísmo cul-tural” que acreditava estar corroend o a cul-tura e a sociedade alemãs contemporâneas.Nietzsche estava especialmente inclinado aatestar que Strauss havia se investido dafunção de professor da natureza alemã, oescultor da próxima geração, o tutor da ju-

ventude. Para Nietzsche, isso era horrívelde se contemplar: que tão banal filisteísmo

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pu desse modelar o futu ro alemão (Conside-rações Intempestivas I, 7).

Nietzsche viu a p revalência da culturade massas como a fonte da degradação dopensamento e da cultura na Europa con-temporânea. As idéias de Strauss “são to-

das uniformemente literárias, de fato, jor-nalísticas”.12 A degradação da cultura re-sulta de uma cultura de massas que influ-encia na linguagem, no estilo, nas idéiasem voga e julgamentos dominantes. Nopon to de vista de Nietzsche:

“Em tudo o que o alemão lê quotidia-namente há, sem dúvida, predomíniodos jornais e revistas que se asseme-

lham. O alemão utilizado nessas pu-blicações impõe-se ao ouvido do lei-tor como um cair incessante de cotas,que são outros tantos expressões e vo-cábulos sempre iguais. Como dedicaa tal leitura, a maior parte das vezes,as horas em que o seu espírito fatiga-do não consegue reagir, vai-se acostu-mando pouco a pouco a esta lingua-gem, ao alemão de todos os dias, e écom dificuldade e só por necessidadeque prescinde dele. Mas os fazedoresde jornais estão, pelas suas ocupa-ções, mais habituados do que qual-quer outro ao caldo claro deste alemão

 jornalístico; o seu gosto obliterou-se e asua língua só encontra prazer em for-mas completamente corruptas e arbitrá-rias. Assim se explica o tutti unisonocom que se adota imediatamente, ape-sar do debilitamento e relaxamento

geral, todas as recentes enormidades delinguagem. Estas insolentes corrupçõesda língua são outras tantas vingançaspelo incrível aborrecimento que essalinguagem acaba por provocar nosseus emp reiteiros.”[...]

“Se se aceita como regra o estilochato, usad o, fraco, vulgar e, como ex-ceção sedutora, o estilo nitidamentecorrompido e mau, então o vigor, a

raridad e e a beleza caem em descrédi-to. Na Alemanha dos nossos dias re-

pete-se constantemente a história doturista bem proporcionado que, aochegar ao país dos gord os, é imediata-mente censurado pela sua pretensadeformidade e pela sua falta de gor-du ra, até que, por fim, um pad re deci-

de protegê-lo e dirige-se ao povo nes-tes termos: ‘Lamentai este infeliz es-trangeiro e oferecei aos deuses umacerimônia de ação de graças pela so-berba massa de carne com que ador-nou o vosso tronco’.” (Considerações

 Intempestivas 11, op. cit., p. 80-82)

Através de suas Considerações, Nietzs-che alegou ser a cultu ra mod erna “bárbara”

(um amálgama sem forma d e estilos, idéiase obras competidores e fragmentados) eatacou o racionalismo excessivo, o indivi-dualismo egoísta, o otimismo raso, a ho-mogeneização e a fragmentação que ele viacomo sendo características da cultura mo-derna. Em  Da utilidade e dos inconvenientes dahistória para a vida, Nietzsche argumentaque, com a proliferação dos estudos histó-ricos, o homem moderno estava sendo pa-ralisado e esmagado pelo conhecimentohistórico (Considerações Intempestivas 2, ¨Pre-fácio¨). Defende que: “Nós, modernos,...não possuímos nada de próprio”, assimi-lando uma esmagadora quantidade de co-nhecimento, que não desencadeia um pa-pel efetivamente transformador na vida so-cial. Desta forma, a cultura moderna é es-sencialmente interior: no exterior, o enca-dernador inscreve qualquer coisa como

 Manual da cultura interior para os homens exte-

riormente bárbaros” (Considerações Intempesti-vas 2, op. cit., p . 136).

Acreditando que os indivíduos mo-dernos sofriam de personalidades fracas,Nietzsche queria que o estudo da históriafosse posto a serviço da criação de grandespersonalidades e, assim, ajudasse a tornarpossível o renascimento de uma culturaafirmadora da vida. Durante a década de1870, Nietzsche estava ficando pois extre-

mamente desapontado com o filisteísmodo Reich alemão e progressivamente, du-

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rante a década seguinte, intensificou suacrítica à cultura burgu esa alemã, a Wagner,a Bismarck, ao militarismo alemão e aoReich. Ele se distanciou da sua busca poruma nova cultura alemã baseada nos dra-mas musicais de Wagner e publicou uma

série de textos aforísticos que p romoviam oesclarecimento intelectual da sociedade e acrítica social, começando com  Humano, De-masiado Humano.

 A crítica nietzscheana da atualidade

Para Nietzsche, a cultura d e massa abrangea imprensa e outras formas culturais, das

revistas às publicações eruditas, mais a reli-gião, a política, a cerveja e o nacionalismo,13

Nietzsche viu a importância das tecnologi-as e modos de comunicação emergentes nodesenvolvimento da modernidade: “A im-prensa, a máquina, as linhas de trem, o te-légrafo são premissas, cuja conclusão, emmilhares de anos ninguém teve aind a a ou-sadia de desenhar”.14 Em seus escritos mé-d ios e tardios, a cultura d e massa como u mtodo é o que produz a cultura e os indiví-duos medíocres. A religião, por exemplo,era uma forma de cultura de massa paraele. Embora Nietzsche algumas vezes sejaacusado de ser um irracionalista, seu ata-que ao cristianismo se deve exatamente aoirracionalismo deste último, que vitima ocorpo e o mundo. Jesus Cristo, ele clamou,promoveu a estupidez do homem, colo-cou-se ao lado dos pobres de espírito eatrasou a produção do supremo intelecto

(Humano, demasiado humano II: ¨O viajante esua sombra¨, parágrafo 81, p. 112). Nietzs-che também dissecou a transvaloração devalores do cristianismo, que tornou maus opoder e sabedoria, enquanto afirmava quea inferioridade, a humilhação e a submis-são eram algo bom. Ele acreditava que apromoção dessa moral de escravos valoriza-va excessivamente o espírito em relação aocorpo, promovendo uma repressão generali-

zada d a sociedad e (Genealogia da Moral).Também a política moderna é para

Nietzsche u ma forma d e cultura d e massa.Nietzsche era “an tipolítico” p ois acred itavaque a política de massa contemporânea le-vava ao conformismo do rebanho, à perdada individualidade e à manipulação e ho-mogeneização das massas. Em  Assim Falou

 Zaratustra, ele fez uma das primeiras críti-cas do Estado moderno, chamando-o de O

 N ovo Ídolo. Ele apresenta-o como “ ummonstro frio”, que é a “ morte das pesso-as”! O contraste, então, é entre as “pesso-as”, com suas tradições, “costumes e direi-tos”, e o Estado moderno, com suas menti-ras e pretensões, que se difundem atravésda imprensa e da cultura de m assa. No  Za-ratustra, a crítica de Nietzsche ao Estado

parte de uma posição individualista radi-cal. Ele defende o retiro e isolamento pe-rante a participação e o envolvimento coma sociedade de massas: “Mau cheiro exala oseu ídolo, o monstro frio.... Quebrai os v idrosdas janelas e pulai para o ar livre!” 15

A critica nietzscheana ao Estado estáintimamen te associada a sua critica à cultu -ra e à sociedade de massas, que ele vêcomo homogeneizadoras e nocivas às ener-gias vitais, à criatividad e e à ind ividualida-de superior.

Nietzsche pensava que a democraciamoderna, o liberalismo e os movimentossociais iluministas contribuíram para a re-gressão do “homem m oderno” para u m es-tágio aquém daquele alcançado pelos indi-víduos poderosos e possuidores de maiorvitalidade do Renascimento. Defendendode maneira consistente a Grécia Antiga e aRenascença Italiana como paradigmas de

culturas vigorosas, a estratégia do filósofofoi escolher ideais do passado que poderi-am servir de modelos ou normas para umfuturo “grandioso“. As culturas grega e re-nascentista afirmavam o corpo, foram secu-lares, desenvolveram a ciência e a tecnolo-gia, foram altamente estéticas e produzi-ram em indivíduos fortes – todos os ideaisde Nietzsche. Estes protótipos, ele acredita-va, concentravam-se em indivíduos fortes,

como Julio Cesar, Cesar Borgia e os gran-des homens da Renascença. Os contrastes

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normativos de sua obra baseiam-se na dis-tinção entre doença e saúde, entre descen-dência e ascendência da vida. Seus textoscelebram a afirmação das energias vitais ecriticam tu do o que inibe e sup rime a plenaexpressão dos instintos primários. Seu ata-

que à religião, moralidade, cultura de mas-sa e banalidade das sociedades modernasé, assim, desencadeado a partir do pontode vista ideal de um fluxo de energias vi-tais livre e desinibido, do ponto d e vista daexpressão desenfreada dos poderes instin-tivos.

De forma semelhante, ele argumentaque os movimentos democrático, liberal,feminista, anarquista e socialista são ex-

pressões do declínio da vida, da doença edo ressentimento. Todos eles são manifes-tações da cultura socrática, que privilegia arazão em detrimento da paixão, as idéiassobre a vida; todos são também manifesta-ções das modernas tendências à homoge-neização e, portan to, contra a vida, ajud an-do a produzir indivíduos e culturas enfra-quecidos. Em oposição à tolerância da cultu-ra liberal, Nietzsche advogou em favor deuma guerra cultural, que ele acreditava po-der gerar diversidade cultural, além de cul-turas e indivídu os mais fortes e criativos.

Embora o ataqu e de Nietzsche ao libe-ralismo e outros movimentos sociais pro-gressistas contenha atitud es elitistas e anti-democráticas, também podemos encontraridéias positivas em seus escritos, comoocorre quando ele apresenta a democratiza-ção da Europ a como algo irresistível e “umelo na corrente dessas tremendas medidas

profiláticas que formam a concepção damodernidade e através das quais nós nosseparamos da Idade Média” ( Humano, de-masiado humano 2, op. cit., pár. 275, p. 376).Além disso, sustentou, as “instituições de-mocráticas servem de campo de quarente-na para combater uma antiga pestilência, odesejo pela tirania: como tais elas são mui-to úteis e muito tediosas” (Idem, ibidem,par. 289, p. 383). Passagens como essas in-

dicam a dualidade de Nietzsche para coma democracia de modo bastante claro: por

um lado ela é útil como contraforça à tira-nia, mas em compensação é aborrecedora epromove a mediocridade. Em seus escritosdo final dos anos 1880, Nietzsche, todavia,pôs de lado os aspectos positivos da demo-cracia e [a partir de então] sua p ostura será

pred ominantemente negativa.Nietzsche atacou, p ois, tanto o Estado

moderno quanto a sociedade de massa de-vido às suas tendências à normalização ehomogeneização, associando-se nisso à Es-cola de Frankfurt e a teóricos francesescomo Foucault. Para Nietzsche, o Estado ecultura d e massa eram inimigos da cultura.Ele viu o Estado moderno e a sociedade demassa produzindo mediocridade e retro-

cesso cultural, tanto quanto gerando histe-ria em m assa, como ocorre no nacionalismoe no anti-semitismo. O Estado moderno, asociedade de massas, as hierarquias de va-lor e os níveis de status cultural reduziramo gosto e os ideais modernos ao m ais baixodenominador comum, produzindo indiví-du os med íocres.

Conclusão das observações críticas

Nietzsche foi geralmente pessimista sobreo impacto dos processos sociais modernos.Na maior parte, ele sentiu que a sociedadee cultura mod erna se tornaram m uito caóti-cas, fragmentad as, “arbitrárias” e sem “ for-ça criativa“, a ponto delas perderam os re-cursos para criar uma cultura vital e, porisso, favoreceram o declínio da espécie hu-man a. Ele pensava especialmente que a im-

prensa e a cultu ra de massa eram forças de-generativas e medíocres, ao focar sua ate-ção no trivial, no supérfluo e no sensacio-nal, e ao criar a homogeneização e confor-midade. Entretanto, ele não desenvolveucríticas sistemáticas sobre a imprensa ouformas específicas de cultura de massa, seexcetuarmos, talvez, sua crítica a Strauss eo filisteísmo cultu ral, ou a Wagner e o w ag-nerismo, no qual ele chegou a ver uma exi-

bição de cultura de massa degradada e demau gosto. Conseqüentemente, ele não de-

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senvolveu uma crítica institucional da mí-d ia ou das ind ústrias de cultura, como fize-ram Ad orno e Horkheimer,16 ou críticas d e-talhad as dos fenômenos de cultura de m as-sa, como o fazem hoje as análises perten-centes ao camp o dos estudos culturais críti-

cos.Além disso, Nietzsche foi radical e to-

talizador em suas críticas de cultura demassa: ele não viu momentos progressivos,exceto talvez na ópera ligeira, que expres-sava a joi de vivre e a alegria qu e ele aprova-va. Para Nietzsche, a cultura consistia, fun-damenta lmente , em uma “h ie ra rqu ia“(Rankordnung), capaz de estabelecer valo-res altos e baixos. Destarte, ele clamou por

uma reavaliação dos valores, uma virada(Umwertung) nos mais altos valores e no es-tabelecimento de valores superiores capa-zes de promover indivíduos mais fortes eum a cultura m ais vital. Seu “Uberm ensch”,portanto, é um indivíduo superior que ul-trapassa os valores decadentes da culturade massa e que se habilita a criar valoresafirmativos da vida e um a cultura mais for-te e afirmadora d a vida.

Desenvolver um a individualidad e su-perior requer, porém, a superação das for-mas dominantes de cultura e conformismo,contrapor o indivíduo à cultura e à socie-dade de massa. Nietzsche acreditava quealguns indivíduos poderiam exercer suavontade d e pod er no sentido d a criação deeus mais refinados e superiores e, em últi-ma instância, defendeu um a forma de ind i-vidualismo e esteticismo aristocrático. Fa-zendo uma distinção implícita entre arte

baixa e elevada, Nietzsche argüiu que aarte autêntica permite “pairar livrementeacima das coisas” e das exigências da mo-ral e d e outras instituições repressivas:

“Necessitamos de toda a arte petulan-te, flutuante, dançante, trocista, infan-til e contente para não perder essa li-berdade que n os coloca acima d as coi-sas e que o nosso ideal exige de

nós.[...] é preciso que possamos nossobrepor à moral e não somente que a

inquieta rigidez daquele que receia acada instante dar um passo em falso ecair, mas com a vontade de alguémque pode planar e brincar sobre ela.Como [pois] poderíamos nesse campodispensar a arte e o louco?”17

A arte autêntica foi privilegiada porNietzsche precisamente porque ela cultiva-va os sentidos, a imaginação e outros as-pectos da mente e do corpo, permitindoaos indivíduos entrarem em um domínioque transcendia a moralidade convencionale as normas sociais. Nietzsche defendeu aarte como a mais poderosa inimiga do ide-al ascético e como a última fonte da vitali-

dade cultural. A crise na cultura modernaestá parcialmente enraizada no fato de queas sensibilidades estéticas têm sido violen-tadas pelas forças repressivas da racionali-dade instrumental, racionalização social eda sociedade e cultura de massa. Conse-qüentemente, a arte tem sido confinada nasmargens da sociedade. Para Nietzsche, aocontrário, estas forças racionalizadoras de-vem ser contidas por valores estéticos fun-damentados. Espíritos livres seriam neces-sários àqueles que quiserem fazer experi-mentos com a ar te, as idéias e a vida, assimcomo para aqueles que quiserem criar no-vos valores e uma cultura superior capazde produzir seres humanos mais evoluí-dos.

Em última instância, Nietzsche deseja-va uma cultura afirmadora da vida, capazde criar indivíduos superiores. Ele é umrevolucionário cultural, que procura por

uma cultura saudável e vibrante e acreditaque a cultura é o modo mais poderoso detransformação individual e social. Sua críti-ca da cultura de m assa é movida, em p arte,pela convicção de que ela representa a de-generação da cultura, de qu e ela é um a for-ma degradada do modo de existência quesupostamente pode produzir seres huma-nos melhores, mais saudáveis e mais evo-luídos. Assim, Nietzsche afirma resoluta-

mente uma distinção normativa entre cul-turas alta e baixa, send o um elitista cultural

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descarado.Como meus comentários paralelos

têm sugerido, Nietzsche provavelmente fi-caria espantado com o estado de degrada-ção da cultura contemporânea, mas, aomesmo tempo, como seus impulsos pesso-

ais contribuíram para o surgimento de es-tudos radicais que, hoje em dia, realizamum assalto sistemático à cultura contempo-rânea como um todo – [ainda que] freqüen-temente mediados com motivos marxistas,feministas ou pós-estruturalistas.

A crítica negativa de Nietzsche atra-vessa e colide com a virada populista dosestudos culturais, na qual se afirma e secelebraria a cultura popular. No todo, sua

crítica cultural é dialética, afirmando o queele considera fortalecedor da vida e criti-cando o que ele acredita ser a negação e oenfraquecimento da vida. Em Crepúsculodos Ídolos, Nietzsche escreveu: “Fórmu la deminha felicidade: um sim, um não, uma li-nha reta, um objetivo alcançado”.18 Por issoLyotard entende mal quando clama queNietzsche é fundamentalmente um pensa-dor afirmativo, ataca a concepção de filoso-fia proto-nietzscheana d e Adorn o como ne-gação e ele mesmo defend e um a “econo-mia libidinal”19 puramente positiva e afir-mativa. Para dizer a verdade, Nietzschenão é apenas um negador: ele sempre fazseu não! ser acompanhado de um Sim! Por-tanto, não se trata de contrapor um Nietzs-che negativo contra um Nietzsche afirmati-vo, mas an tes de observar a relação d ialéti-ca de ambos, vendo como os “sim” e os“não” sempre e necessariamente suple-

mentam-se no p ensamento de Nietzsche.No m eu m odo d e ver e para concluir,

a critica negativa e radical de Nietzsche àcultura d e massa é valiosa e certamente en-contraria um grand e nú mero d e alvos hojeem dia. Mas eu defenderia contra Nietzs-che um a ótica mais dialética, que vê no queeu chamo de cultura da mídia um terrenodisputado, um local de lutas sociais, quecontém aspectos reacionários e progressis-

tas, afirmadores tanto quanto opressivosem relação à vida. Destarte, uma teoria crí-

tica da cultura da mídia seria tão implaca-velmente negativa quanto a de Nietzsche,mas também saberia afirmar seus momen-tos democráticos, subversivos e de críticasocial. Sua política cultural não seria ape-nas p ara os indivídu os superiores mas ten-

taria desenvolver uma pedagogia culturalcapaz de atacar todas as formas de opres-são e dominação, com o objetivo de produ-zir uma sociedade e uma cultura mais de-mocráticas, justas e pedagógicas .

Notas

1 Professor de Ciência Social e Filosofia da Educação da

Escola de Educação e Ciências da Informação daUniversity of California (EUA). Entre seus livros mais

recentes na área dos estudos culturais críticos contam-se

Television and the crisis of democracy (Boulder: Westview

Press, 1990), The Persian Tv Gulf War  (Boulder: Westview

press, 1992)  Media Culture (Londres: Routledge, 1995) e

The Postmodern Turn (Nova York: Guilford Press, 1997).

Tradução de Tiago Aguiar e Matias Sperb. Coordenação

e revisão d e Francisco Rüdiger.

2 O presente estudo baseia-se em trabalho de colaboração

com Robert Antonio, co-autor de um texto inédito sobre

teorias da modernidade, e com Steven Best, co-autor de

trabalhos sobre a teoria pós-moderna: estou em débito

com estas colaborações em minha leitura de Nietzsche.

Neste artigo, além disso, estou interpretando Nietzsche

predominantemente como um teórico moderno, voltando-

me para pontos cruciais da modernidade. Sobre a discus-

são de como Nietzsche antecipa a virada pós-moderna,

veja Steven Best e Douglas Kellner, The  Postmodern Turn

(New York: Guilford Press, 1997).

3 Goethe, apud Leo Lowenthal: Literatura, Popular Culture and 

Society (Engleood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1961, p.20).

4 Ibid .

5 Karl Mar: Liberdade de Imprensa. Porto Alegre: L&PM, 1999.

6 Sobre sua crít ica da imprensa e opinião pública, veja

Soren Kierkegaard , Two Ages: The Age of Revolution and The

Present Age (Princeton: Princeton University Press, 1978) eThe Corsair Affair  (Princeton: Princeton University Press,

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1982). Para comentários, veja Steven Best e Douglas

Kellner “Modernnity, Mass Society, and the Media:

Reflections on The Corsair Affair ”, em  In ternational

Kierkegaard Commentary: The Corsair Affair , editado por Robert

Perkins (Macon, Georgia: Mercer University Press, 1990) e

Steve Best e Dou glas Kellner: The Postmodern Turn, op.cit.

7 Friedrich Nietzsche: O nascimento da tragédia (São Paulo:

Cia. das Letras, 1992) e Crepúsculo dos ídolos (São Paulo:

Hemus, 1976). O Sócrates histórico, é claro, foi muito

mais intuitivo, apaixonado, estético e erótico do que no

modelo de Nietzsche, portanto sua concepção da cultura

socrática deveria ser lida como um tipo-ideal, que crista-

liza um tipo de racionalismo grego na figura de Sócrates,

um racionalismo que Nietzsche acredita continuar a ca-

racterizar a cultura moderna.

8 Veja as observações de Nietzsche sobre Schopenhauer e

Wagner em Considerações Intempestivas (Trad. port. de Le-

mos de Azevedo: Lisboa, Presença, 1976). Sobre Nietzsche e

Schopenhauer , veja Georg Simmel: Schopenhauer e Nietzsche

(Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1991

[1907]). Foi sob a influência de Schopenhauer que

Nietzsche pôde proclamar em O nascimento da tragédia qu e

arte é a “atividade metafísica essencial ” e que “só como

 fenômeno estético podem a existência e o mundo  justificar-se

eternamente” (Trad. bras. de Jacó Guinsburg: São Paulo,

Companhia das Letras, 1992, p. 47).

9 Friedrich Nietzsche: O nascimento da tragédia, op. cit., pp.

135-136

10 Veja Herbert Golder, “Introduction” a David S trauss: Crente

e escritor , em Unmodern Observations, (New Haven: Yale

University Press, 1990, pp 3ff.).

11 Ronald Hayman:  N ietzsche: A Critical Life ( New York:

Penguin Books, 1980, p.63). Quando publicado em 1865,o texto de Strauss influenciou enormemente os jovens

hegelianos e intensificou a moderna crítica filológica e

filosófica à religião, começada no Iluminismo e que cul-

minou no próprio Nietzsche. Na verdade, os jovens

hegelianos anteciparam a crítica de Nietzsche sobre a

religião quando Bruno Bauer declarou que “Deus está

morto”; Marx descreveu a religião como “o ópio do

povo” e Feuerbach interpretou a religião como sendo a

projeção deificante das qualidades humanas.

12 Nietzsche pretendia escrever uma crítica à religião, esco-

la, imprensa, Estado, sociedade, ao Homem como Eu,

Natureza, e sobre o caminho para a libertação como par-

te da série de “considerações inatuais”, depois das qua-

tro que ele publicou. Apesar de ele nunca haver comple-

tado este projeto, reflexões sobre estes tópicos são encon-

tradas ao longo de seus trabalhos aforísticos posteriores,

como Humano, demasiado humano.

13 Veja, por exemplo, Crepúsculo dos ídolos, onde Nietzsche

lamenta que a imprensa, a cerveja, a religião, a educação

e o nacionalismo tenham estupidificado o povo alemão.

Ele faz uma crítica similar em suas considerações sobre

David Strauss (trad. port., op. cit., pp. 27-34).

14 Veja Humano, demasiado humano - O viajante e sua sombra, parágrafo

278 (Trad. inglesa: Cambridge [UK]: Cambridge University

Press, 1986, p. 378).

15 Friedrich Nietzsche: Assim falou Zaratustra (Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1981, p. 66, trad. de Mário da Sil-

va).

16 Veja Max Horkheimer, e Theodor Adorno: Dialética do Es-

clarecimento (Rio d e Janeiro: Jorge Zah ar, 1985).

17 Friedrich Nietzsche:  A Gaia Ciência § 108. (São Paulo:

Hemus, 1981 p.120, trad. De M. Pugliesi, E. Bini e N.Paula Lima).

18 Friedrich Nietzsche: Crepúsculo dos ídolos (São Paulo:

Hemus, 1976, p. 15, trad. de E. Bini e M. Pugliese).

19 Jean-François Lyotard: Economie libidinale (Paris: Minuit,

1974).