A Critica de Judith Butler

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RIO DE JANEIRO, V.17, N.2, P.81-92, 2010 | ETHICA 81 A CRÍTICA DE JUDITH BUTLER ÀS NORMAS QUE GOVERNAM GÊNERO E SEXUALIDADE MARIA DA PENHA FELICIO DOS SANTOS DE CARVALHO * RESUMO O uso da palavra gênero para se referir à construção social e histórica dos sexos – com o objetivo preciso de explicitar o caráter sócio-cultural das distinções baseadas no sexo –, foi introduzido há menos de quarenta anos. ocorrida apenas na década de 1990, a disseminação do conceito deu visibilidade a certos equívocos, imprecisões e limitações que motivaram críticas importantes ao próprio conceito, dentre as quais se destaca a de Judith Butler. o presente artigo pretende mostrar que a original posição crítica desta filósofa norte-americana é o ponto de partida para o desenvolvimento de aspectos fundamentais do seu pensamento, como por exemplo, a contestação à oposição binária sexo-gênero, a desconstrução das noções “essenciais” de homem e de mulher, a rejeição ao caráter heteronormativo dos discursos tradicionais sobre a sexualidade, o empenho em demonstrar o caráter construído das identidades e em enfatizar a dimensão social e política do corpo e da sexualidade. PALAVRAS-CHAVE: Judith Butler, sexo/gênero, conceito de gênero, sexualidade ABSTRACT The use of the word gender, as a reference to the social and historical construction of sexuality – with the precise objective of emphasizing the sociocultural aspect of sex-based distinctions –, was introduced less than forty years ago. Beginning only from the 1990s, the widespread use of this concept gave visibility to certain misunderstandings, misconceptions and limitations that have motivated important criticism of the very concept of gender, among which that of Judith Butler is worth examining. The present essay intends to show that the original critical position of this North-American philosopher is the starting-point to the * Professora Titular do PPGFilosofia da Universidade Gama Filho. Mestre em Filosofia pela Universidade Católica de louvain. Doutora em Filosofia pela UGF-RJ. E-mail: [email protected] .

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a CrítiCa dE Judith butlEràs normas QuE GoVErnam

GênEro E sExualidadE

MARIA DA PENHA FElICIO DOS SANTOS DE CARVAlHO*

resumo

O uso da palavra gênero para se referir à construção social e histórica dos sexos – com o objetivo preciso de explicitar o caráter sócio-cultural das distinções baseadas no sexo –, foi introduzido há menos de quarenta anos. ocorrida apenas na década de 1990, a disseminação do conceito deu visibilidade a certos equívocos, imprecisões e limitações que motivaram críticas importantes ao próprio conceito, dentre as quais se destaca a de Judith Butler. o presente artigo pretende mostrar que a original posição crítica desta filósofa norte-americana é o ponto de partida para o desenvolvimento de aspectos fundamentais do seu pensamento, como por exemplo, a contestação à oposição binária sexo-gênero, a desconstrução das noções “essenciais” de homem e de mulher, a rejeição ao caráter heteronormativo dos discursos tradicionais sobre a sexualidade, o empenho em demonstrar o caráter construído das identidades e em enfatizar a dimensão social e política do corpo e da sexualidade.

PalavraS-chave: Judith Butler, sexo/gênero, conceito de gênero, sexualidade

abstract

The use of the word gender, as a reference to the social and historical construction of sexuality – with the precise objective of emphasizing the sociocultural aspect of sex-based distinctions –, was introduced less than forty years ago. Beginning only from the 1990s, the widespread use of this concept gave visibility to certain misunderstandings, misconceptions and limitations that have motivated important criticism of the very concept of gender, among which that of Judith Butler is worth examining. The present essay intends to show that the original critical position of this North-American philosopher is the starting-point to the

* Professora Titular do PPGFilosofia da Universidade Gama Filho. Mestre em Filosofia pela Universidade Católica de louvain. Doutora em Filosofia pela UGF-RJ. E-mail: [email protected].

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development of some fundamental aspects of her thought, notably, the refutation of the binary sex-gender opposition, the deconstruction of “essential” notions of manhood and womanhood, the rejection of the hetero-normative facet of traditional discourses about sexuality, the endeavor to demonstrate the structured nature of identities, and the emphasis on the sociopolitical dimension of body and sexuality.

KeywordS: Judith Butler, sex/gender, concept of gender, sexuality

Exercendo, atualmente, o cargo de professora de Retórica, literatura Comparada e Estudos da Mulher na Universidade da Califórnia, em Berkeley, Judith Butler, a filósofa de quem nos vamos ocupar no presente estudo é, sem dúvida, uma das mais importantes teóricas feministas da atualidade. Publicou diversos trabalhos entre livros, artigos e textos, muitos dos quais resultantes de conferências apresentadas em Encontros e Congressos em que vem participando, não só no âmbito restrito da Universidade, como também em Encontros de maior abrangência, como por exemplo, o Colóquio sobre os direitos sexuais, que ocorreu em 2002, em oxford, e foi organizado pela anistia Internacional.

Para efeito de uma exposição mais clara, estruturei o presente trabalho em três momentos. Inicio com uma introdução que visa situá-lo como parte de um projeto de pesquisa que venho desenvolvendo, intitulado “Ética e gênero: a categoria do feminino na filosofia”. Esse projeto está vinculado à linha de pesquisa Ética e sociedade do PPGF – UGF. Em um segundo momento, apresento a tese essencialista que, ao longo da história, vem desempenhando o papel de oferecer justificativa teórica para situações concretas de desigualdade dos sexos que se perpetuam, a despeito das inegáveis mudanças ocorridas, sobretudo a partir de meados do último século. Ainda nesse segundo momento, procuro mostrar que combater o argumento essencialista foi o principal fator que motivou a criação do conceito de gênero, entendido como categoria de análise. Finalmente, na última etapa deste artigo, pretendo mostrar que a original crítica de Judith Butler ao conceito de gênero, - além de revelar-se consistente ao expor equívocos e fragilidades dessa noção - está na base de seus questionamentos mais importantes, tais como a suposta oposição radical entre os conceitos de sexo e gênero, a noção de identidade sexual, as normas instituídas que pretendem regular desejo, sexualidade e gênero, entre outros.

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I

Já faz algum tempo, venho estudando, escrevendo, orientando dissertações e teses sobre a questão das desigualdades entre os sexos, sobre o tema da mulher e os chamados estudos de gênero. Evidentemente, tenho tratado dessas questões sempre do ponto de vista da filosofia, o que causa certa estranheza no âmbito da academia, já que no Brasil ainda se acredita que a filosofia deva pairar acima das questões concretas. a partir daí, classifica-se quais são os temas adequados ao estudo conceitual e quais não são.

Curiosamente, entretanto, ao contrário dessa mentalidade difundida entre nossos colegas, não foram poucos os pensadores que, ao longo da história, se ocuparam da temática em questão. E, vale observar, os que manifestaram suas considerações – nada gentis, na maior parte das vezes – sobre diferenças/desigualdades entre os sexos, não foram apenas aqueles considerados filósofos menores, mas também os mais consagrados, os mais respeitados da tradição. Contudo, os estudiosos (as) da filosofia costumam não dar importância às posições preconceituosas que “seus” filósofos manifestaram, alegando ter sido este um tema periférico, não abordado com seriedade pelo próprio autor.

sem dúvida, penso que analisar o pensamento dos filósofos a partir de uma perspectiva de gênero é uma tarefa que exige cuidado redobrado. Não se trata de reunir frases engraçadas, isolando-as do pensamento do filósofo. Tampouco trata-se de adotar posturas raivosas ou vitimistas. Considero que pode ser profícua uma abordagem que, diferentemente destas, procura contextualizar, situar “o que os filósofos dizem das mulheres e das relações dos sexos” em relação ao seu sistema global de pensamento. Assim procedendo, torna-se possível descobrir surpreendentes contradições - posturas androcêntricas, senão misóginas - que podem comprometer a coerência de sistemas de pensamento solidamente estruturados. Só para citar um exemplo, esse tipo de análise pode fazer aparecer sérias brechas na filosofia moral de Kant que se pretende universalista, mas exclui, sem cerimônia, a metade da humanidade do âmbito da racionalidade e da moralidade. Em pelo menos dois de seus escritos1, Kant expressa seu ponto de vista sobre as mulheres: são seres da emoção! Incapazes de agir inspiradas 1 São eles: Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, publicado em 1764,

durante o chamado período pré-crítico do pensamento de Kant e, trinta e quatro anos depois, Antropologia do ponto de vista pragmático, último livro publicado por iniciativa do próprio autor.

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por princípios racionais. São presas ao concreto, comovem-se com problemas que vêem ao seu redor, mas não alcançam o nível dos princípios universais. Enfim, o belo sexo está colado na experiência! ora, basta lembrarmos o lugar que ocupam a experiência e as inclinações na ética pura de Kant para percebermos que as mulheres são por ele vistas como seres irremediavelmente incapazes de alcançar o ponto de vista genuinamente moral.

a releitura crítica dos filósofos e a análise dos principais sistemas éticos a partir de uma perspectiva de gênero constituem, assim, a primeira linha de investigação do meu projeto “Ética e gênero: a categoria do feminino na filosofia”. o presente trabalho, sobre Judith Butler, está incluído em uma segunda linha, que está centrada na análise do tratamento das questões de gênero no contexto da reflexão teórica contemporânea.

Importa ressaltar que a primeira linha de investigação me parece importante, entre outras coisas, porque ilustra o fato de que é possível um uso não tão nobre da filosofia; deixa aparecer o seu “lado B”. Evidencia que a filosofia não é apenas amor à sabedoria, procura desinteressada da verdade; mostra que ela pode servir também a interesses escusos, para legitimar situações concretas de injustiça. No caso da relação dos sexos, por exemplo, é claro que os filósofos não criaram as efetivas condições de desigualdade, mas muitos se empenharam em construir argumentos para legitimar e justificar tais condições.

II

Dentre os argumentos elaborados com o claro propósito de justificar teoricamente situações concretas de desigualdade entre os sexos, o mais importante é aquele que parte de premissas naturalistas ou essencialistas. O primeiro a sistematizar essa posição foi Aristóteles ao defender que as mulheres são intrinsecamente inferiores aos homens - por natureza, por essência - pois, apesar de terem capacidade intelectual equivalente à masculina, não possuem autodomínio, não se governam a si próprias, logo devem ser dominadas e governadas por outros. Esta debilidade própria da razão prática feminina, torna-as incompetentes para a prática das virtudes e inaptas ao exercício da cidadania.

A tese essencialista, sistematizada por Aristóteles, foi assumida e defendida, ao longo da história da filosofia, recebendo novas

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formulações, mas sempre servindo ao mesmo propósito original, qual seja, apelar para “o natural”, “o que não pode ser mudado” para justificar a eterna permanência de situações criadas, que convém a um grupo perpetuar. Hoje, o essencialismo pode estar mascarado, pode estar diluído em outras expressões mais contemporâneas, mas está ainda presente nos discursos sobre sexualidade, diferenças, desigualdades sexuais e de gênero.

Aliás, a própria criação do conceito de gênero, por feministas de língua inglesa, na década de 1970, pode ser interpretada – ainda – como uma tentativa de superar as teses essencialistas que defendem que as diferenças dos sexos não são apenas diferenças, mas sinais da superioridade natural do masculino sobre o feminino. Para além do fato de existirem diferenças reais – anatômicas e biológicas – entre o homem e a mulher, a posição essencialista converte as diferenças em diferenças ontológicas, isto é, apresenta-as como constitutivas e essenciais. Sendo assim, a condição inferior da mulher é julgada natural, inevitável, universal e imutável, e o controle masculino aparece como necessário e justo. Ora, é precisamente a legitimidade dessa passagem do biológico para o ontológico que o conceito crítico de gênero propõe questionar. Foram, portanto, principalmente, dois fatores interligados que motivaram a criação de uma nova categoria de investigação a respeito das questões relacionadas às diferenças entre os sexos. Por um lado, a vontade de combater o reducionismo biológico e, por outro, a necessidade de chamar a atenção sobre a construção social e histórica dos sexos.

Uma tentativa inicial de definição do conceito de gênero pode ter sido formulada por comparação com a noção de sexo. Com efeito, sexo e gênero não são apenas expressões sinônimas. É possível estabelecer distinções importantes entre as duas expressões, por exemplo, a partir da idéia de que o sexo se refere unicamente às características anatômicas e físiológicas, que seriam fixas e naturais, enquanto que o gênero, ao contrário, varia de acordo com o tempo e o espaço, e diz respeito às construções simbólicas e culturais. O conceito de gênero remete a todas aquelas características e papéis sociais mutáveis, que as diferentes sociedades atribuem ao masculino e ao feminino. Em poucas palavras, diferentemente do sexo, visto como um dado natural, a constituição das diferenças de gênero aparece como um processo histórico e social. Assim, a introdução da categoria de gênero tem como principal objetivo destacar o caráter social – portanto dinâmico – das diferenças e discriminações baseadas no sexo. Nesta perspectiva,

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“gênero” funciona como um instrumento de interpretação, um conceito crítico que busca desmontar o tradicional argumento patriarcal – formulado de diversas maneiras ao longo da história – que sustenta que a dominação dos homens sobre as mulheres obedece a uma ordem natural e atemporal, responsável pela hierarquia.

III

Uma vez estabelecida uma nítida distinção conceitual entre sexo e gênero, tratou-se de instituir uma analogia que se tornou clássica: a natureza está para a cultura assim como o sexo está para o gênero. Provavelmente, as principais restrições de Judith Butler ao conceito de gênero decorrem dessa pretensão de tornar nítida, simples, uma distinção que, por si só, é nebulosa e não está isenta de ambiguidades. Segundo Butler, o próprio antagonismo entre sexo e gênero deve ser questionado!

A partir da perspectiva da teórica feminista norte-americana, o sexo e o gênero não se relacionam entre si como o fazem a natureza e a cultura, pois a própria sexualidade é uma diferença construída culturalmente. Butler enfatiza que a diferença sexual não é meramente um fato anatômico, uma vez que a construção e a interpretação da diferença anatômica é, ela própria, um processo histórico e social. Que o macho e a fêmea da espécie humana diferem é fato, mas é um fato também construído socialmente. Trata-se, portanto, de evidenciar que não apenas o gênero, mas o par sexo-gênero é instável, pois se encontra em constante construção. Na esteira de Simone de Beauvoir2, mas para além da filósofa francesa, a teoria de Butler pode ser vista, fundamentalmente, como uma contestação às idéias essencialistas que sustentam que identidades de gênero são imutáveis e estão enraizadas na natureza, no corpo ou em uma heterossexualidade normativa e obrigatória.

Assumindo a especificidade de sua crítica a respeito das limitações do conceito de gênero, Butler declara que uma questão

2 A mais famosa frase de O Segundo Sexo, “On ne naît pas femme, on le devient”, representa uma crítica à noção de eterno feminino que, por sua vez, está apoiada no conceito de essência. Ora, o feminino não é algo dado de uma vez por todas, ninguém nasce mulher! a filósofa ressalta o “tornar-se” apoiada nos conceitos de liberdade, escolha, projeto, transcendência, enfim, em todo o arsenal teórico e conceitual da filosofia existencialista, a partir do qual fundamenta suas análises. Com efeito, a idéia de uma essência feminina eterna, igual a si mesma, imutável ao longo dos tempos é totalmente incompatível com o conhecido lema existencialista “a existência precede a essência”.

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relevante a ser investigada diz respeito ao modo “como as práticas sexuais não-normativas questionam a estabilidade do gênero como categoria de análise. Como certas práticas sexuais exigem a pergunta: o que é uma mulher, o que é um homem?” (BUTlER, 2007, p. 12). Judith Butler rejeita a idéia de sexo natural, assim como coloca em questão a idéia da naturalidade da heterossexualidade. Nesse aspecto, segue de perto a posição da filósofa feminista francesa, Monique Wittig, no momento em que esta assim se expressa:

“do ponto de vista da homossexualidade, pode-se apenas notar que a heterossexualidade não é ‘natural’, assim como não é a única sexualidade, a sexualidade universal. A heterossexualidade é uma construção cultural que justifica o sistema de dominação social.” (WITTIG, 2007, p. 82).

É possível que a posição de Wittig seja mais incisiva do que a de Butler na medida em que, além de ressaltar o caráter político do sistema de heterossexualidade obrigatória, Wittig propõe, como alternativa à oposição binária de gêneros, a categoria de lésbica, entendida não como um “terceiro gênero”, mas como uma possibilidade de ultrapassar a categoria de gênero, como uma posição política que transcende o imaginário masculino, por se situar fora da oposição dicotômica entre homem e mulher imposta pelo patriarcado. Na verdade, as posições das duas filósofas podem ser vistas como igualmente emblemáticas de uma mesma orientação - surgida de recentes questionamentos a posturas feministas mais conservadoras -, pois ambas defendem pontos de vista situados “para além do gênero, como um gesto político subversivo”3.

Butler chama a atenção para o que ela considera o grande equívoco da posição defendida por muitas teorias contemporâneas da sexualidade, equívoco que é comumente assimilado pela sociedade e aceito pela ciência em geral: o sexo (aspecto biológico da sexualidade) é visto como a base que fundamenta o gênero (aspecto comportamental da sexualidade). Existiria, portanto, uma relação de causa e efeito entre sexo e gênero! Nesse sentido, Butler escreve: 3 a nominação dessa posição crítica como “um ponto de vista para além do gênero” é da

teórica italiana, professora radicada na holanda, Rosi Braidotti, que assim se expressa em seu livro de 2004, Feminismo, Diferencia Sexual y Subjetividad Nómade, pp. 143- 4. aliás, um dos capítulos desse livro, intitulado “o feminismo com qualquer outro nome” é a transcrição de uma entrevista de Butler a ela própria (Braidotti).

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“A tarefa de distinguir sexo de gênero torna-se dificílima uma vez que compreendamos que os significados com marca de gênero estruturam a hipótese e o raciocínio das pesquisas biomédicas que buscam estabelecer o “sexo” para nós como se fosse anterior aos significados culturais que adquire. a tarefa torna-se certamente ainda mais complicada quando entendemos que a linguagem da biologia participa de outras linguagens, reproduzindo essa sedimentação cultural nos objetos que se propõe a descobrir e descrever de maneira neutra” (BUTlER, 2003, p. 160)

o que especialmente incomoda Butler é a tese que sustenta que a categoria de sexo deve ser considerada estável, enquanto que a de gênero, ao contrário, recebe novos significados continuamente. Para Butler, as categorias de sexo e gênero são quase sinônimas, no sentido de que ambas são passíveis de desconstrução4. Nesse sentido, nada existe de exclusivamente natural quando se trata de identidade sexual, sexualidade, relações homossexuais ou entre sexos diferentes, vivências do próprio corpo. Tudo nesse terreno é construído socialmente e interpretado a partir da cultura. Aliás, é por meio de processos culturais que definimos o que é – ou não – natural.

Butler defende a idéia de que não existe a menor possibilidade de se ter acesso direto e imediato à própria sexualidade ou a do outro; tampouco nossos próprios desejos ou os desejos do outro, nos são revelados de forma pura e imediata. assim, em conseqüência do fato de considerar a mediação da cultura como absolutamente imprescindível, Butler afirma que a sexualidade não é um dado, não é algo que todos nós, mulheres e homens, possuímos naturalmente; mas, ao contrário, a filósofa sublinha o caráter construído da sexualidade, quer dizer, sua dimensão social e política. A partir dessa perspectiva, Butler argumenta que as diferenças sexuais são indissociáveis de uma demarcação discursiva e que a categoria do sexo é, desde o início, normativa:

“A diferença sexual nunca é simplesmente uma função de diferenças materiais que não sejam,

4 Vale observar que essa posição de Butler está de acordo com o pensamento de Michel Foucault, em dois aspectos, principalmente: (1) a rejeição à categoria de sexo natural e (2) a visão histórica do corpo modelado pela cultura.

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de alguma forma, simultaneamente marcadas e formadas por práticas discursivas. [...] o ‘sexo’ não apenas funciona como uma norma, mas é parte de uma prática regulatória que produz os corpos que governa, isto é, toda força regulatória manifesta-se como uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir - demarcar, fazer, circular, diferenciar - os corpos que ela controla. Assim, o ‘sexo’ é um ideal regulatório cuja materialização é imposta: essa materialização ocorre (ou deixa de ocorrer) através de certas práticas altamente reguladas. Em outras palavras, o sexo é um constructo ideal que é forçosamente materializado através do tempo”. (BUTlER, 2010, pp. 153-154)

Inspirada em Foucault, Butler sublinha que a sexualidade se constitui historicamente, a partir de múltiplos discursos sobre o sexo, discursos que regulam, que normatizam, que instauram saberes, que produzem “verdades”. Desse modo, as identidades de gênero e sexuais - como todas as identidades sociais (de raça, nacionalidade, classe) - são compostas e definidas por relações sociais. Elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade, o que significa que as identidades são políticas.

Guacira louro, no seu artigo “Pedagogias da sexualidade”, expressa essa idéia nos seguintes termos:

“[...] nesses processos de reconhecimento de identidades inscreve-se, ao mesmo tempo, a atribuição de diferenças. Tudo isso implica a instituição de desigualdades, de ordenamentos, de hierarquias, e está, sem dúvida, estreitamente imbricado com as redes de poder que circulam numa sociedade. O reconhecimento do ‘outro’, daquele ou daquela que não partilha dos atributos que possuímos, é feito a partir do lugar social que ocupamos” (loURo, 2010, p. 15).

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A identidade é estabelecida (imposta) a partir de certos mecanismos de obscurecimento e desvalorização das diferenças e da multiplicidade por contraste com a afirmação da naturalização do binário, no campo específico da sexualidade. Passa-se, então, a demarcar espaços, define-se, discrimina-se e são atribuídos rótulos que objetivam fixar as identidades. há grupos que representam a norma, estão de acordo com os padrões culturais. Estes são referência, não precisam mais ser nomeados. Estes deixam de ser percebidos como representações e passam a ser confundidos com a realidade mesma. Mas, e os outros? os outros, os que estão à margem da norma é que precisam se explicar, se definir e serão denominados a partir da referência daqueles que representam a norma. Na nossa sociedade, em que o homem branco, heterossexual marca o padrão universal do humano, a mulher é, naturalmente, definida como o segundo sexo e os homossexuais serão os desviantes, os anormais.

Butler alerta que é preciso tomar cuidado para não cair nas ciladas que a noção de identidade encerra. Na verdade, é preciso pensar em intervenções que signifiquem uma “subversão da identidade”. a identidade encobre, “por naturalização”, conceitos instáveis; funciona como conceito estabilizador, onde só existem mudanças e gera dispositivos normalizadores que anulam diferenças criando ilusões de unidade e pureza.

Concluo citando uma passagem de um livro posterior ao já consagrado Problemas de gênero, na qual Judith Butler reafirma sua convicção de que tanto as reflexões sobre gênero e sexualidade, quanto os contemporâneos movimentos que reivindicam igualdade, reconhecimento e legalidade não podem prescindir de um tratamento político, visto que ambas as atividades são indissociavelmente teóricas e práticas. Escreve a filósofa:

“A tarefa de todos esses movimentos, parece ser distinguir entre as normas e as convenções que permitem às pessoas respirar, desejar, amar e viver, e as normas e as convenções que restringem ou minam as condições da própria vida. Algumas vezes as normas funcionam nos dois sentidos ao mesmo tempo; outras vezes elas funcionam de uma certa maneira para um grupo e em sentido inverso para um outro grupo [...].

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A crítica das normas de gênero deve se situar no contexto das vidas tais como são vividas e deve se orientar pela questão de saber o que permite maximizar as chances de uma vida viável e de minimizar a possibilidade de uma vida insuportável ou mesmo de uma morte social ou literal”. (BUTlER, 2006, pp.20-21)

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