A Criança Objetalizada

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R e v i s t a E l e t r ô n i c a d o I P S M – M G www.institutopsicanalise-mg.com.br/almanaqueonline.htm 1 A criança objetalizada Cristina Drummond Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise A posição de objeto da criança Para ler as evidências, em nosso mundo contemporâneo, de que os sujeitos estão cada vez menos organizados pelo Édipo e pelo fálico, tomamos os textos de Lacan dos anos 70 que nos ajudam a pensar na criança objetalizada, para além da formulação dos anos anteriores, na qual vemos a criança articulada à castração e ao falo imaginário da mãe. Entre eles, interessam-nos as duas posições da criança que Lacan aponta em sua Nota sobre a criança: como sintoma do par parental e como realização do objeto no fantasma da mãe. Colocar a relação da criança objetalizada como realizando o fantasma da mãe seria, no entanto, suficiente para pensarmos a criança objetalizada em nosso mundo contemporâneo? Houve uma jornada do Cereda, a 24ª, em 2001, que se chamou As mil e uma ficções da criança. Já percebemos, nesse título, uma preocupação em enfocar o trabalho da criança para se virar com o que ela recebe do campo do Outro. Éric Laurent, em sua conferência de encerramento dessas jornadas, apresenta o problema que a criança tem que enfrentar em nosso mundo (LAURENT, 2001, p.95-100). Ele diz que a criança é uma ficção para os pais. Por isso, ela é ideal e dá lugar a todos os sintomas que surgem do “desejo de filho”, que muitas vezes é um imperativo superegóico. A criança, continua Laurent, é um objeto pulsional e, por isso, não escapa à pulsão de morte que incide sobre ela. Além disso, ela tem que suportar a carga que incide sobre os objetos de consumo de luxo e as conseqüências do fato de que, em nosso mundo, se busca uma criança como mercadoria exigida, com todos os recursos de que a ciência oferece à biologia. Esse objeto também se encontra aparelhado pelo Outro de nossa época, por meio das políticas de natalidade organizadas, dos reajustes da ficção da criança enquanto objeto dos direitos humanos e reajustes da ficção da criança enquanto produto do casamento. O que se retém da criança, diz ainda Laurent, é menos a poesia do que o saber. Enquanto objeto, ela não é escutada, muito menos tomada como um ser falante.

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A posição de objeto da criança.

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    A criana objetalizada

    Cristina Drummond

    Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanlise

    A posio de objeto da criana

    Para ler as evidncias, em nosso mundo contemporneo, de que os sujeitos

    esto cada vez menos organizados pelo dipo e pelo flico, tomamos os textos de Lacan

    dos anos 70 que nos ajudam a pensar na criana objetalizada, para alm da formulao

    dos anos anteriores, na qual vemos a criana articulada castrao e ao falo imaginrio

    da me. Entre eles, interessam-nos as duas posies da criana que Lacan aponta em

    sua Nota sobre a criana: como sintoma do par parental e como realizao do objeto

    no fantasma da me. Colocar a relao da criana objetalizada como realizando o

    fantasma da me seria, no entanto, suficiente para pensarmos a criana objetalizada em

    nosso mundo contemporneo?

    Houve uma jornada do Cereda, a 24, em 2001, que se chamou As mil e

    uma fices da criana. J percebemos, nesse ttulo, uma preocupao em enfocar o

    trabalho da criana para se virar com o que ela recebe do campo do Outro. ric Laurent,

    em sua conferncia de encerramento dessas jornadas, apresenta o problema que a

    criana tem que enfrentar em nosso mundo (LAURENT, 2001, p.95-100). Ele diz que a

    criana uma fico para os pais. Por isso, ela ideal e d lugar a todos os sintomas que

    surgem do desejo de filho, que muitas vezes um imperativo superegico. A criana,

    continua Laurent, um objeto pulsional e, por isso, no escapa pulso de morte que

    incide sobre ela. Alm disso, ela tem que suportar a carga que incide sobre os objetos de

    consumo de luxo e as conseqncias do fato de que, em nosso mundo, se busca uma

    criana como mercadoria exigida, com todos os recursos de que a cincia oferece

    biologia. Esse objeto tambm se encontra aparelhado pelo Outro de nossa poca, por

    meio das polticas de natalidade organizadas, dos reajustes da fico da criana enquanto

    objeto dos direitos humanos e reajustes da fico da criana enquanto produto do

    casamento. O que se retm da criana, diz ainda Laurent, menos a poesia do que o

    saber. Enquanto objeto, ela no escutada, muito menos tomada como um ser falante.

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    A criana se tornou um objeto do saber: como educ-la? Como educar as inmeras

    crianas hiperativas e portadoras de dficit de ateno, cujo corpo se recusa a ser

    mortificado pelo saber?

    A criana e sua famlia contempornea

    Em novembro de 2005, Miller prope, como ttulo das prximas Jornadas da

    ECF, O lao familiar na experincia psicanaltica. Sua proposta de trabalho, para

    tratar da questo do sinthoma, retomar o texto: Nota sobre a criana. Em sua

    interveno, ele diz que o termo sujeito, em Lacan, sempre est articulado ao

    significante, e que ele s encontra o gozo sob a forma do pequeno a no fantasma, e

    isso que d ao fantasma uma funo de exceo no primeiro ensino de Lacan (MILLER,

    2006, p.3-7). Quando ele introduz o conceito de falasser, o que est em questo que o

    falasser, diferentemente do sujeito, tem um corpo, condio para que ele goze.

    levando isso em considerao que Miller prope retomar a questo da

    famlia em nosso mundo. Ele diz que divertido constatar que a famlia conjugal

    permanece dominante em nosso mundo, apesar de a sociologia diagnosticar sua crise,

    sua desapario ou seu possvel rearranjo. Lacan j dizia, nesse texto de 69, que a

    famlia conjugal tem uma funo de resduo na evoluo das sociedades, e porque ela

    est no estado de resduo, de objeto a, que a famlia vai-se manter. Lacan atribui a

    resistncia da famlia ao irredutvel de uma transmisso que uma transmisso no da

    ordem do saber ou das necessidades, mas uma transmisso de um desejo no annimo

    e que constituinte para o sujeito. Essa transmisso estaria no registro lgico da

    necessidade. A funo da famlia de velar o gozo, refre-lo. A me, ao portar um

    interesse particularizado pela criana, faz fracassar a me do puro cuidado, e o pai, diz

    Lacan, o vetor da lei no desejo do Outro.

    Miller lembra que, na Nota sobre a criana, Lacan fala do sintoma somtico

    da criana, e os recursos que ele oferece testemunham, em muitas famlias

    contemporneas, a culpabilidade, o servir de fetiche ou encarnar uma recusa primordial.

    Parece, diz ele, que essas trs verses refletem a neurose, a perverso e a psicose.

    Contudo, quando Miller prope tomar o sintoma somtico como ponto de

    partida para ler a clnica da criana na famlia na contemporaneidade, isso pareceu trazer

    um novo aspecto da questo que examinamos. O ponto de partida dessa clnica o

    fenmeno no corpo, ponto que o seminrio O Sinthoma coloca em primeiro plano. No

    se trata tanto de abordar a relao da criana com a me ou com o casal parental

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    organizado em torno da falta e do desejo, mas da relao da criana com seu corpo. Essa

    orientao tambm pode ser encontrada em Laurent, quando diz que, na Nota sobre a

    criana, no momento em que Lacan fala que a criana realiza a presena do objeto a no

    fantasma, ele coloca o acento na criana sendo tomada no enquanto um Ideal, mas no

    gozo seu e de seus pais. Com sua presena, a criana satura a falta da me e h

    realizao, precisa Laurent, no do objeto que responde angstia de castrao, ao

    simblico e sua possibilidade de representao, mas do objeto que responde angstia

    ligada privao, objeto, como enfatiza Lacan na Nota, que aparece no real. O objeto

    que a criana revela, dessa maneira, sua estrutura que a de designar o ser do sujeito

    no ponto em que ele ausncia de representao.

    A criana, diz ainda Laurent, o objeto a e a partir disso que a famlia se

    estrutura, e no mais em torno das estruturas edpicas da metfora paterna (LAURENT,

    2006, p.94). Ela o objeto a liberado, prope Laurent, retomando a expresso de

    Lacan, no Seminrio XVI, De um Outro ao outro (LACAN, 2006, p.293). Lacan brinca

    com o neologismo hommelle para o perverso e, em contraposio, prope famil para o

    neurtico, duas maneiras de responder falta estrutural no Outro. A primeira a de

    acrescentar o gozo que falta, produzindo um Outro completo, a resposta perversa que

    Lacan nomeia de homem-ela. Por outro lado, a via do neurtico que ele nomeia famil,

    que a de querer se completar com a famlia, de se inscrever como Um no Outro.

    A criana, portanto, no indiferente s pessoas que encarnam para ela as

    funes de pai e de me, e a famlia um recurso de que o sujeito dispe para

    interpretar seu sintoma. Serge Cottet observou, na jornada do Cereda dedicada

    questo da famlia, que os casos das crianas em tratamento pela psicanlise mostravam

    que existe para elas uma tenso entre os pais de substituio, sogros, avs,

    companheiros, amantes, por um lado, e a fico de um pai cujo gozo faz questo, por

    outro lado (COTTET, 2007, p.39-44). As crianas apresentam novos sintomas que no

    deixam de ter a ver com as novas configuraes familiares, que no esto associados

    neurose do pai, que falam da confuso das identidades sexuais, da indiferena dos

    papis, da opacidade do gozo dos pais. Ele diz ainda que as crianas adotadas e ainda

    mais as crianas filhas de um doador annimo, nos casos de esterilidade do pai, esto

    longe de ser indiferentes imagem suposta do doador. Elas ilustram, s vezes, a

    tendncia suicida das crianas no desejadas.

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    A criana e seu sintoma

    Nesses sintomas, faz-se presente a dificuldade da criana em nosso mundo

    para se separar do lugar de resto de um discurso do mestre ou de um gozo que a

    produziu. Encontramos a criana fazendo Um com o gozo, o Outro e o saber, relaes

    que Lacan aponta como aquelas que verdadeiramente importam na constituio de um

    sujeito (LACAN, 2006, p.332). Ele diz tambm que o que interessa como o pai e a me

    ofereceram criana o saber, o gozo e o objeto a. Na Alocuo sobre as psicoses da

    criana, Lacan diz que o importante que a criana sirva ou no de objeto transicional

    para a me (LACAN, 2003, p.366).

    Tomar o corpo da criana como campo do sintoma suspender o mito da

    relao me-criana e, indica Lacan, ainda na Alocuo, opor a que seja o corpo da

    criana que corresponda ao objeto a. Essa parece ser a indicao do trabalho do analista

    diante da questo de como desalojar a criana desse lugar de objeto includo no Outro e

    do qual ela condensa o gozo e fazer surgir de maneira mnima um sujeito.

    O discurso da psicanlise busca fazer emergir o desejo que produziu uma

    criana. Interrogar o desejo do Outro pe em questo a angstia que denuncia um real

    em jogo no nascimento da criana, isto , o desejo ou o gozo da qual ela o produto.

    Tomar, como indica Miller, os sintomas somticos como orientadores de nosso trabalho

    tomar o sintoma como o efeito da incidncia da palavra sobre o ser vivo. A criana

    recebe e sofre a lngua da famlia que ela tem. O que buscamos tomar os ditos e os

    no-ditos que determinaram o sujeito, os momentos em que ele teve um encontro com o

    real do gozo hetero e o que ele foi como objeto de desejo para o outro. O modo como os

    pais desejaram uma criana passa pela aprendizagem que essa faz da lngua, e o

    sintoma pode revelar como, para cada um, se amarraram lngua e corpo.

    Para ilustrar essa operao, Pierre Malengreau (MALENGREAU, 2006, p.30)

    recupera uma passagem do Seminrio XXIV (LACAN, 1977), na qual Lacan conta uma

    histria de seu neto, Luc, que dizia que as palavras que ele no compreendia, sendo

    infans, ele se esforava para diz-las, e foi isso que encheu sua cabea. Malengreau diz

    que essa uma maneira pertinente de definir o inconsciente e evidencia que a linguagem

    um parasita. A alngua recolhe e inclui a parte elaborvel de gozo dos pais e Lacan

    acrescenta que por isso podemos considerar que a estrutura elementar da linguagem se

    resume quela do parentesco.

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    O exemplo de Luc mostra como a criana se inscreve na estrutura de sua

    famlia, inventando a sua prpria maneira de fazer. Em primeiro lugar, temos as

    palavras que o menino no compreende. Em segundo lugar, a criana repete essas

    palavras nas quais ela est imersa. Em terceiro lugar, essas palavras tm um efeito real

    sobre seu corpo. Tudo isso constitui uma pequena teoria e um pequeno sintoma que lhe

    permitem tratar a alngua da qual ele sofre. O que importa que no se trata apenas das

    palavras ditas ou no ditas, trata-se tambm daquilo que toca o corpo.

    Marcos, um menino de quatro anos conta algo semelhante: sonha que uma

    aranha o assusta e, quando acorda e pensa nisso, seu corpo at esquenta. Traz sesso

    um gafanhoto de plstico, mas o que importa para ele um outro da classe dos insetos:

    o zango, que ele no sabe muito bem o que faz com a enorme abelha rainha.

    Mais adiante, ele diz que o zango no lhe interessa mais porque ele descobriu

    que ele no tem ferro. melhor ser marimbondo. Ele faz uma srie de nomes de

    insetos na qual ele pode inserir a diviso dos sexos, a reproduo, as rivalidades, o que

    vai aos poucos cernindo aquilo que esquenta o corpo.

    Referncias bibliogrficas:

    COTTET, S. Le roman familial des parents, La Cause Freudienne, COTTET, S. , "Le

    roman familial des parents, in : La Cause Freudienne, Paris, n. 65, : Navarin Ed.,

    maro de 2007, p. 39-44.

    LACAN, J. A locuo sobre as psicoses da criana", In: Outros escritos, Rio de

    Janeiro: JZE, 2003.

    LACAN, J. O Seminrio. Livro16: D'un Autre l'autre. Paris: Seuil, 2006.

    LAURENT, . Les nouvelles inscriptions de la souffrance de l'enfant, La Petite

    Girafe, Nantes: Editions Agalma, n.24, out. 2006, p.94.

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    LAURENT, . "Responder al nio de maana", Carretel, Revista de la Diagonal

    Hispanohablante Nueva Red Cereda, n. 4, 2001, p.95-100.

    MALENGREAU, P. La verit du couple parental, Quarto, Bruxelas: editora, n.88-89,

    dez. 2006, p.30.

    MILLER, J.-A. Vers les prochaines Journes de l'cole, Lettre Mensuelle, Paris,

    n.247, abr. 2006, p.3-7.