A criança e o enterro do homem que não morreu...
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Transcript of A criança e o enterro do homem que não morreu...
A CRIANÇA E O ENTERRO DO HOMEM QUE NÃO
MORREU
OU
O MAL-ESTAR DE FREUD
GUSTAVO HENRIQUE DE AGUIAR PINHEIRO
2009
2
A Francisco Pinheiro Alves, o
Capitão Pinheiro.
A Apolônia Soares, Elvira
Aguiar Saldanha e Isabel
Aguiar, Tia Belinha.
A Lucas, Maria Beatriz, Maria
Luiza, Elvirinha e Vladimir,
filhos queridos que sempre
me sorriem nos olhos de
Hannah.
A Maria Generosa Lopes da
Costa e Manoel Alves de
Freitas, o Cafita.
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“O inferno são os outros,
porque eles dizem quem
somos".
Jean Paul Sartre
Era 06 de junho de 1978. Vozes diziam por toda parte que o Capitão
Pinheiro tinha morrido no Hospital Geral de Fortaleza. A esquizofrenia
soluçava em minha sala pequena em Itapipoca a espera de meus
pais, que certamente me trariam a verdade, a esperança de que os
grandes não podem morrer, não assim, sem aviso prévio, de um
derrame no pensamento que viveu a vida no amor dos outros, sem
dizer adeus, sem olhar nos olhos do neto pequeno e confessar os
amores que ele também deveria amar para ser grande, para não
morrer nunca.
Morreu o meu avô. Meu maior ídolo nos quatro extensos anos de
minha vida, meu guia, meu mestre, meu médico de homens, mulheres
e almas. Morto.
Nunca me disseram na minha curta existência como os netos dos
grandes deveriam se comportar nos velórios onde a cidade inteira se
empurrava nas avenidas da solidão e da saudade, em busca de um
último olhar sobre o corpo do velho Prefeito Capitão.
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Nunca preparam a gente direito para a morte, mentem, ocultam a
frieza da verdade de nossa compleição meramente passageira, iludem
com a mentira de que aqui podemos ser donos de alguma coisa, algo
além de nossas existências aflitas perante o milagre da vida e a
necessidade da morte.
Fui mesmo assim... vesti a minha melhor roupa, uma calça cinza, uma
camisa amarela de mangas curtas e um tênis cinza também. Minha
roupa nada tinha de preto, ainda não sabia que existia uma cor
específica para mostrar toda a dor da gente.
Ninguém me percebeu, rasgos da multidão invadiam todos os
cômodos da minha casa, e eu era só um menino pequeno fantasiado
de homem.
Não sei bem de quem foi a idéia bem intencionada, mas meu pai e
minha mãe vieram a meu encontro, tomaram-me nos braços e me
deitaram numa rede para que eu suportasse a verdade das verdades:
eu não veria o corpo do meu avô! As crianças não sabem lidar com a
morte... os adultos também não.
Fiquei sozinho em casa, com a empregada, uma preta velha muito
sabida que tinha sido curada por meu avô em 1969, quando a
medicina ainda engatinhava na cidade, uma mulher que depois me
segredou muitas outras histórias do Capitão da Polícia Militar que
tinha o dom de curar.
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E foi justamente essa mulher que me acalentou no velório do homem
que nunca morreu. Não há crime sem corpo, nem velório também. Ela
me disse assim:
- Freud, não se preocupe, um dia você voltará a encontrar o seu avô.
Até lá vou cantar uma musiquinha que me cantaram quando eu era
pequena e também não pude ver o corpo de minha mãe, que morreu
sem que eu pudesse sair direito de dentro dela.
- Mas como vou encontrar meu avô nessa viagem longa de trem que
parece ser a vida?
- Na estação, querido, na estação!
Senti que alguma coisa ia me dizer
No tempo que restava antes de partir
Mas seu silêncio me dizia muito mais
Que todas as palavras que eu pudesse ouvir
No olhar uma tristeza disfarçava
No peito uma saudade antecipava
Então sua mão meu rosto acariciou
E com ternura meus cabelos afagou
E a sua voz se fez ouvir dizendo adeus
E eu fiquei perdido em pensamentos e recordações
Não sei por quanto tempo ali fiquei
E como pude controlar as emoções também não sei
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Pra não me ver mais triste ainda ela sorriu
Me olhou nos olhos, me beijou, depois saiu
Caminhou com passos calmos e parou
Me acenou mais um adeus, depois seguiu
Lembrei de tudo como era antes
Sem despedida e vidas tão distantes
Parado ainda na estação ela me viu
Me acenou mais uma vez, depois partiu
E a sua mão mais uma vez me acenou
E eu fiquei perdido em pensamentos e recordações
Não sei por quanto tempo ali fiquei
E como pude controlar as emoções também não sei
(A Estação – Roberto Carlos e Erasmo Carlos)
Freud, Freud! Acorde meu filho, você já está ficando homem, precisa
aprender a controlar as emoções: vai estudar na capital e não me
venha de lá ainda menino.
- Vóvó Elvira, Tia Belinha, obrigado por me esperarem na estação.
Como é bom poder virar homem debaixo do amor de vocês duas. Eu
amo vocês, por favor, fiquem sempre comigo, não posso perder mais
ninguém nesse mundo. Virar homem parece-me algo muito capaz de
enlouquecer qualquer um.
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Freud! Freud! A sua tia Belinha está muito doente no Hospital Antônio
Prudente, vá até lá!
Não, de novo não. Mas que raios de vida é essa que se conta pelos
que morrem antes da gente? Quero morrer primeiro, assim não
agüento mais, acho que estou começando a delirar e gente delirando
também não é bom em velório.
Antes de delirar mais profundamente e perder o controle total de
minha lucidez cheia de vida, fui até o leito de morte de minha Tia
Belinha e cantei para ela um detalhe, um detalhe de um grande amor
que não vai morrer assim...
Tia:
Não adianta nem tentar me esquecer
durante muito tempo em sua vida eu vou viver
Detalhes tão pequenos de nós dois
são coisas muito grandes pra esquecer
e a toda hora vão estar presentes
você vai ver
Se um outro cabeludo aparecer na sua rua
e isso lhe trouxer saudades minhas, a culpa é sua
o ronco barulhento do seu carro
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a velha calça desbotada ou coisa assim
imediatamente você vai lembrar de mim
Eu sei que um outro deve estar falando ao seu ouvido
palavras de amor como eu falei, mas, eu duvido
duvido que ele tenha tanto amor
e até os erros do meu português ruim
e nessa hora você vai lembrar de mim
A noite envolvida no silêncio do seu quarto
antes de dormir você procura o meu retrato
mas na moldura não sou eu quem lhe sorri
mas você vê o meu sorriso mesmo assim
e tudo isso vai fazer você lembrar de mim
Se alguém tocar seu corpo como eu, não diga nada
não vá dizer meu nome sem querer à pessoa errada
pensando ter amor nesse momento, desesperada, você tenta até o fim
e até nesse momento você vai lembrar de mim
Eu sei que esses detalhes vão sumir na longa estrada
do tempo que transforma todo amor em quase nada
mas quase também é mais um detalhe
um grande amor não vai morrer assim
por isso, de vez em quando você vai
vai lembrar de mim
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Não adianta nem tentar me esquecer
durante muito e muito tempo em sua vida eu vou viver.
(Detalhes – Roberto Carlos e Erasmo Carlos)
- Freud! Freud! Olhe, sua tia está falando com você! Está dando
adeus!
- O seu estado não permite que vá ao velório. Não é mais menino,
mas não está bem. Não vais, não tem condições de saúde.
Um dia atrás do outro....
- Vóvó? Quem bom ver a senhora! Já estou melhor, minha lucidez já
está em perfeito estado. Vou casar, quero ter muitos filhos. A senhora
abençoa?
- Claro, meu filho. Vó só vive de abençoar... Quero que uma menina
se chame Elvira, como eu, Elvirinha, fica melhor!
- Só se for agora...
Tenho cinco filhos esperando por mim... Lucas, Maria Beatriz, Maria
Luiza, Elvirinha e Vladimir... Onde eles estão? Não sei, não me
deixaram ir ao velório também...
Freud, Freud! A preta velha tá cantando de novo, vai passar...
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Você, que tanto tempo faz,
Você que eu não conheço mais
Você, que um dia eu amei demais
Você, que ontem me sufocou
De amor e de felicidade
Hoje me sufoca de saudade
Você, que já não diz pra mim
As coisas que preciso ouvir
Você, que até hoje eu não esqueci
Você que, eu tento me enganar
Dizendo que tudo passou
Na realidade, aqui em mim
Você ficou
Você que eu não encontro mais
Os beijos que já não lhe dou
Fui tanto pra você e hoje nada sou!
(Você – Roberto Carlos e Erasmo Carlos)
- Freud, Freud? Você está bem?
- Estou, minha avó quando morreu me permitiu ir a seu velório. Ainda
apareceu alguém dizendo que eu não poderia carregar o caixão, mas
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eu disse: agora sou homem! A morte não me engana mais: eu levo
minha avó!
Vóvó sempre cantou para mim, e eu agora já tinha aprendido a morrer
também, por isso estava até alegre relembrando as canções de Dona
Elvira:
Quem espera que a vida
Seja feita de ilusão
Pode até ficar maluco
Ou morrer na solidão
É preciso ter cuidado
Pra mais tarde não sofrer
É preciso saber viver
Toda pedra no caminho
Você deve retirar
Numa flor que tem espinhos
Você pode se arranhar
Se o bem e o mal existem
Você pode escolher
É preciso saber viver
É preciso saber viver
É preciso saber viver
É preciso saber viver
Saber viver
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Toda pedra no caminho
Você deve retirar
Numa flor que tem espinhos
Você pode se arranhar
Se o bem e o mal existem
Você pode escolher
É preciso saber viver
É preciso saber viver
É preciso saber viver
É preciso saber viver
Saber viver
Saber viver
É preciso saber viver
É preciso saber viver
É preciso saber viver
Saber viver
Saber viver
É preciso saber viver
É preciso saber viver
É preciso saber viver
Saber viver
Saber viver
(É Preciso Saber Viver – Roberto Carlos e Erasmo Carlos)
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- Freud, Freud? A mãe do nosso amigo morreu. O Velório é distante e
você não pode ir...
- Ninguém mais diz a mim que não posso ressuscitar aos que amo, os
amigos têm de estar por perto quando os filhos perdem suas mães,
pois é bastante solitária a noite em que o pai perde seus filhos...
Voltei silenciosamente ao túmulo da mãe de meu amigo, no dia
seguinte, a 160Km/h... Não fui visto por ninguém, ninguém na velha
cidade de presidentes e desembargadores iria observar um menino
atrás de si mesmo...
Entrei no campo-santo e nele fiz a minha oração, mesmo nunca tendo
visto aquele santo corpo antes, orei também por meus filhos, por meu
avô, pelo Cafita...da única forma que me ensinaram, cantando
baixinho, à sabedoria dos túmulos que propiciam o encontro de quem
nunca pôde nessa vida se encontrar:
Já está chegando a hora de ir
Venho aqui me despedir e dizer
Em qualquer lugar por onde eu andar
Vou lembrar de você
Só me resta agora dizer adeus
E depois o meu caminho seguir
O meu coração aqui vou deixar
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Não ligue se acaso eu chorar
Mas agora adeus
Só me resta agora dizer adeus
E depois o meu caminho seguir
O meu coração aqui vou deixar
Não ligue se acaso eu chorar
Mas agora adeus
(Despedida – Roberto Carlos e Erasmo Carlos)
- Freud, Freud? Daqui você vai para onde?
- Jerusalém. Lá existe um sujeito que morreu e ninguém mais viu o
corpo...
- Você não tem fé? Não sabe que são os espíritos que se
encontram...?
- Por isso mesmo... Tenho muita fé, e todos os dias ouço Jesus Cristo
cantar para mim:
Eu cheguei em frente ao portão,
meu cachorro me sorriu latindo
Minhas malas coloquei no chão,
eu voltei
Tudo estava igual como era antes,
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quase nada se modificou
Acho que só eu mesmo mudei,
e voltei ...
Eu voltei,
agora pra ficar,
porque aqui,
aqui é o meu lugar
Eu voltei pras coisas que eu deixei,
eu voltei ...
Fui abrindo a porta devagar,
mas deixei a luz entrar primeiro
Todo meu passado iluminei,
e entrei ...
Meu retrato ainda na parede,
meio amarelado pelo tempo
Como a perguntar por onde andei
e eu falei ...
Onde andei não deu para ficar,
porque aqui,
aqui é o meu lugar
Eu voltei pras coisas que eu deixei,
eu voltei ....
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Sem saber depois de tanto tempo
se havia alguém a minha espera
Passos indecisos caminhei
e parei
Quando vi que dois braços abertos,
me abraçaram como antigamente
Tanto quis dizer e não falei
e chorei ....
Eu voltei,
agora pra ficar
porque aqui,
aqui é o meu lugar...
(O Portão – Roberto Carlos e Erasmo Carlos)
Dizem que Freud se encontrou realmente com Jesus Cristo, não em
Jerusalém, mas em Itapipoca mesmo, antes de morrer, e a sua filha
gravou um trecho da conversa dos dois na própria alma, sorrindo e
encantando de vida os destinos daqueles que aprenderam que amar é
a única canção que nos faz matar a saudade de Deus.
Boa sorte!