A Criança Cega

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A CRIANÇA CEGA 1 * Lev Semionovitch Vigotski Eles (os cegos) desenvolvem capacidades que não podemos esperar no vidente, e devemos assumir que no evento da comunicação exclusiva do cego com o cego sem a integração com a visão, uma forma especial de pessoas surgiria. (K. Bürklen,1924,p.3). 1 Se nos colocarmos ao lado de detalhes especiais e não fizermos pouco caso, é possível ilustrar como as visões científicas sobre a psicologia do cegueira tem desenvolvido ao longo de um caminho pertencente à antigüidade até os dias presentes, às vezes desaparecendo em uma névoa de falsas idéias, e então reaparecendo novamente com um novo ganho científico. Assim como uma agulha magnética aponta para o norte, assim também este caminho aponta para a verdade e permite-nos evoluir a cada desilusão histórica pelo grau de seu desvio deste caminho, pelo ângulo de distorção desta linha principal. Tanto quanto o conhecimento sobre a cegueira tem buscado a verdade, pode ser essencialmente resumido por um conhecimento central, envolvendo uma idéia - uma idéia que a espécie humana vem tentando dominar a séculos por que ela representa uma compreensão não somente do dever, mas também da natureza psicológica do homem em geral. Na psicologia cegueira, como em qualquer ramo do conhecimento, ela é possível de iludir-se de vários modos, mas a há somente um caminho para a verdade. Esta verdade pode ser afirmada como segue: a cegueira não é meramente a ausência da visão (o fracasso de um órgão isolado); a cegueira causa uma total reestruturação de todas as potencialidades do organismo e personalidade. 1 O ano em que este manuscrito foi escrito é desconhecido. Está sendo publicado pela primeira vez. * Tradução para fins didáticos realizada por Adjuto de Eudes Fabri, de L. S. VIGOTSKI, "The Blind Child" in "The Collected Works of L. S. Vigotski" - Esta tradução contou com a colaboração de Achilles Delari Jr. e Eugenio Pereira de Paula Jr.. Primeira versão concluída em 10/08/94. Esta tradução passará por revisões posteriores. A cegueira, na criação de uma nova e única forma de personalidade, traz à vida forças novas; ela muda as tendências normais de funcionamento; ela, criativa e organicamente, refaz e trasforma a mente de uma pessoa. Conseqüentemente não é um mero defeito, um menos, uma fraqueza, mas é em algum sentido também a origem de manifestações de habilidades, um mais, uma força (contudo estranha ou paradoxal como pode parecer!). Esta idéia envolveu certos estágios principais, a comparação que ilumina claramente a direção ou a tendência de seu desenvolvimento. A primeira época pode ser designada como um período místico, a segunda como um período ingênuo, biológico e o terceiro, o período moderno, como um estágio científico ou sócio-psicológico. 2 A primeira época abrange a Antigüidade, a Idade Média e uma parte muito significativa da história moderna. Até agora os vestígios deste período têm sido visíveis na cultura popular e na concepção da cegueira, em lendas, histórias populares e provérbios. A cegueira foi vista primeiro e mais destacadamente como uma grande desgraça, a qual as pessoas

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A Criança Cega, de Lev Vygotski

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A CRIANÇA CEGA 1*

Lev Semionovitch Vigotski

Eles (os cegos) desenvolvem capacidades que não podemos esperar no vidente, e devemos assumir que no evento da comunicação exclusiva do cego com o cego sem a integração com a visão, uma forma especial de pessoas surgiria. (K. Bürklen,1924,p.3).

1 Se nos colocarmos ao lado de detalhes especiais e não fizermos pouco caso, é possível ilustrar como as visões científicas sobre a psicologia do cegueira tem desenvolvido ao longo de um caminho pertencente à antigüidade até os dias presentes, às vezes desaparecendo em uma névoa de falsas idéias, e então reaparecendo novamente com um novo ganho científico. Assim como uma agulha magnética aponta para o norte, assim também este caminho aponta para a verdade e permite-nos evoluir a cada desilusão histórica pelo grau de seu desvio deste caminho, pelo ângulo de distorção desta linha principal. Tanto quanto o conhecimento sobre a cegueira tem buscado a verdade, pode ser essencialmente resumido por um

conhecimento central, envolvendo uma idéia - uma idéia que a espécie humana vem tentando dominar a séculos por que ela representa uma compreensão não somente do dever, mas também da natureza psicológica do homem em geral. Na psicologia cegueira, como em qualquer ramo do conhecimento, ela é possível de iludir-se de vários modos, mas a há somente um caminho para a verdade. Esta verdade pode ser afirmada como segue: a cegueira não é meramente a ausência da visão (o fracasso de um órgão isolado); a cegueira causa uma total reestruturação de todas as potencialidades do organismo e personalidade.

1O ano em que este manuscrito foi escrito é desconhecido. Está sendo publicado pela primeira vez. *Tradução para fins didáticos realizada por Adjuto de Eudes Fabri, de L. S. VIGOTSKI, "The Blind Child" in "The Collected Works of L. S. Vigotski" - Esta tradução contou com a colaboração de Achilles Delari Jr. e Eugenio Pereira de Paula Jr.. Primeira versão concluída em 10/08/94. Esta tradução passará por revisões posteriores.

A cegueira, na criação de uma nova e única forma de personalidade, traz à vida forças novas; ela muda as tendências normais de funcionamento; ela, criativa e organicamente, refaz e trasforma a mente de uma pessoa. Conseqüentemente não é um mero defeito, um menos, uma fraqueza, mas é em algum sentido também a origem de manifestações de habilidades, um mais, uma força (contudo estranha ou paradoxal como pode parecer!). Esta idéia envolveu certos estágios principais, a comparação que ilumina claramente a direção ou a tendência de seu desenvolvimento. A primeira época pode ser designada como um período místico, a segunda como um período ingênuo, biológico e o terceiro, o período moderno, como um estágio científico ou sócio-psicológico.

2 A primeira época abrange a Antigüidade, a Idade Média e uma parte muito significativa da história moderna. Até agora os vestígios deste período têm sido visíveis na cultura popular e na concepção da cegueira, em lendas, histórias populares e provérbios. A cegueira foi vista primeiro e mais destacadamente como uma grande desgraça, a qual as pessoas

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reagiam com superstições, medo e respeito. Ao longo e paralelamente ao tratamento do cego como uma criatura desamparada, indefesa e abandonada, que surgem da convicção geral de que o cego possui os mais elevados poderes místicos da alma, que em lugar de sua perda da visão física, eles ganham conhecimento espiritual de certas visões. Até mesmo hoje há ainda muitos que dizem que uma pessoa cega é predisposta em direção à uma luz espiritual. Obviamente encontramos um princípio de verdade em tudo isso, ainda, ele é deturpado pelo medo e pela ignorância da disposição religiosa da pessoa. De acordo com a lenda, o cego freqüentemente era o portador da sabedoria popular, tão bem quanto cantores e profetas do futuro. Homer era cego. Eles dizem a cerca de Democritus que ele cegou a si mesmo a fim de devotar-se completamente à filosofia. Se isto não é realmente verdade, então em qualquer caso isto demonstra que há grande possibilidade da existência de tal lenda, o que não parece absurdo para algumas pessoas, que dão o testemunho desta atitude em direção à cegueira. De acordo com esta atitude, um dom filosófico pode ser forçado pela perda da visão. É curioso que Talmud, que confere o status de morte a todos os deficientes, leprosos e sem infância, usa a seguinte expressão e referência à cegueira: "um homem com abundância de luz". A cultura popular alemã diz e os aforismos da sabedoria tradicional preservam os traços de visão; "Salomão encontrou sabedoria nos cegos, porque eles não davam um passo sem antes terem pisado com firmeza o chão". Na sua pesquisa sobre a cegueira nas narrativas épicas, no conto de fadas e na lenda, O. Wanecek2 mostrou que a 2Wanecek, Otto (?), pedagogo austríaco da cegueira. Sustentou a idéia da necessidade da introdução do Esperanto nas escolas austríacas para cegos. Como resolução foi aceita no 7o Congresso Austríaco de Assistência ao Cego (24 e 25 de setembro de 1920). De acordo com sugestão de Wanecek, a regra necessita do conhecimento de Esperanto, não de Francês ou Inglês como antes, e foi introduzido dentro do programa para testar e certificar professores de cegos.

visão da cultura popular, sobre a pessoa cega, é inerente a pessoa com visão interna despertada, como uma pessoa dotada com uma compreensão espitual desconhecida sobre outras pessoas. O cristianismo, que trouxe consigo uma reavaliação de valores, basicamente modificou somente o aspecto moral desta idéia, mas deixou inalterado muito da sua essência. "Aqueles que são os últimos aqui", que, naturalmente, inclui o cego, tem sido prometido ser o "primeiro lá". Na Idade Média este era o mais importante dogma na filosofia da cegueira ao qual, como com qualquer privação ou sofrimento, foi dado um certo valor espiritual; a entrada da igreja tem concedido o superior como propriedade pessoal para o cego. Isto significou simultaneamente seu empobrecimento na vida terrestre e sua proximidade com Deus. Foi dito daquela vez que em num corpo doente vive um espírito exaltado. Novamente algo místico segundo a natureza descoberta, algum valor espiritual, algum senso positivo. Deve-se chamar o segundo estágio no desenvolvimento da deficiência psicológica de mística não apenas porque ela foi colorida pela religião estabelecida e crenças, não somente porque a cegueira foi associada à Deus de todas as formas possíveis: de acordo com os homens sensatos judaicos, aqueles que viam, mas sem visão, são trazidos para perto d'Ele que vê mas é invisível. No âmago da questão estão as capacidades atribuídas aos cegos, tais como poderes supersensitivos da alma que em sua conexão com a cegueira, aparentemente enigmático, miraculoso e incompreensível. Estas visões não surgiram da experiência em si, não do testemunho do cego sobre si mesmo, não do estudo científico da cegueira e sua função social, mas da doutrina espiritual, o corpo e a crença em um espírito intangível. E ainda, embora a história tenha completamente destruído esta filosofia e a ciência tenha minunciosamente desmascarado sua falta de fundamentos, uma partícula de verdade está oculta em suas origens mais profundas.

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3 Somente a Renascença (séc. XVIII) trouxe em seguida uma nova era de compreensão da cegueira. No lugar do misticismo, de experiências e conhecimentos prejudiciais, a ciência tomou posse. Nesta época de grandes significados históricos para o problema, buscou-se como um resultado direto da nova compreensão da psicologia, a formação de instrutores e educadores para os cegos, trazendo a vida social para dentro de seu alcance e fazendo a cultura disponível a eles. Em um nível teórico, esta nova compreensão foi expressa na doutrina da "vicariança"* (substituição) de órgãos sensórios. De acordo com esta visão, a falha de uma das funções perceptoras, i. e., um defeito orgânico, é compensado por um aumento no funcionamento e desenvolvimento de outros órgãos. Somente como neste caso de ausência ou doença de um dos órgãos formados - por exemplo, o pulmão ou o fígado - o outro órgão saudável desenvolve-se de modo compensatório; o funcionamento final é aumentado e assume o controle da doença, assumindo parte de sua função. De modo similar um prejuízo visual causa um desenvolvimento aguçado no sentido da audição. As lendas tem sido criadas em torno das capacidades visuais superiores no deficiente. Estas lendas falam sobre uma natureza benevolente, que com uma mão tira e com a outra dá tudo o que foi tomado, e que cuida de suas criações. Acreditou-se que graças a este fato, cada cego se torna um músico, i. e., uma pessoa que é presenteada com uma aumento excepcional no sentido da audição. Um sexto sentido, inimaginável no vidente, foi descoberto no cego. As observações atuais e os fatos da vida são a base de todas aquelas lendas, mas elas tem sido interpretadas falsamente e

*Termo latim usado em medicina para a palavra substituição.

por isso distorcidas ao invés de reconhecidas. K. Bürklen tem compilado todas as opiniões de vários autores (H. A. Friche, L. Bachko, Stukey, H. M. Rotermund, I. W. Klein e outros), que têm desenvolvido esta idéia em diferentes formas (K. Bürklen, 1924). Pesquisas e investigações muito rapidamente, contudo, trouxeram à luz a falta de fundamento de tal teoria. Eles chamam a atenção à incontestabilidade estabelecida ao fato de que o cego não desenvolve uma média acima da sensibilidade tátil ou auditiva, que, ao contrário, estas sensações são muito freqüentemente desenvolvidas a um grau inferior ao observado. Finalmente, todas as vezes que nos defrontamos com o aumento da sensibilidade tátil então, em comparação com a função normal, este fenômeno torna-se secundário, dependente, de natureza derivada, um resultado do desenvolvimento mais do que sua causa. Isto indicou que o fenômeno surge não de uma compensação fisiológica direta pela perda da visão (como a expansão de um rim) mas prossegue ao longo de um caminho muito complicado e indireto da compensação sócio-psicológica global, sem substituir ou repor o órgão debilitado. Conseqüentemente não pode haver discussão de qualquer substituição dos órgãos sensórios. Lusardi, corretamente notou que os dedos nunca ensinarão um cego a realmente ver. E. Binder, seguindo os passos de Appia, ilustrou que as funções dos órgãos sensórios não são transferíveis de um órgão para outro e que o termo "vicariança dos sentidos", i. e., a substituição de órgãos sensoriais, não é corretamente usado na fisiologia. As pesquisas e estudos de Fischbach, publicadas no arquivo fisiológico de E. Pflüger jogou um papel decisivo na refutação deste dogma e demonstrou sua falta de substância. A psicologia experimental resolveu esta disputa. Ela tornou claro o caminho para uma compreensão precisa dos fatos básicos e fundamentais desta teoria.

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E. Meumann3 apontou a questão da visão de Fischbach que afirma que todos os sentidos são adversamente afetados na presença de um sentido deficiente. Ele afirmou que de fato a substituição de funções perceptoras ocorrem em seu próprio modo (E. Meumann, 1911). W. Wundt4 chegou a conclusão de que a substituição na área das funções psicológicas é um caso particular do exercício e adaptação. Conseqüentemente a substituição deve ser compreendida não no sentido de outros órgãos tomados sobre as funções psicológicas dos olhos, por exemplo, mas como uma reestruturação complexa de toda a atividade psicológica, causada pela ruptura de uma das funções principais e redirigidas com a ajuda de associações, memória e atenção em direção a criação e formação de um novo tipo de equilíbrio orgânico no lugar de um destruído. Se, contudo, tal concepção biológica ingênua acaba sendo falsa, ela deve ser recolocada por alguma outra teoria, mesmo assim esta teoria tem dado um enorme passo em direção à obtenção de alguma verdade científica a respeito da cegueira. Este dogma foi o primeiro a levantar a bandeira da observação científica e os critérios da experiência (experimentos) e chega a conclusão de que a cegueira não é somente um defeito, um

déficit, mas também ativa novas forças, novas funções e desempenha criativamente, um trabalho único. Esta teoria, contudo, não pode indicar a natureza precisa desta atividade. A enorme significância prática, que como um passo em direção à verdade possuída, pode ser demonstrada pelo fato de que esta época criou na criança um cuidado e educação para o cego. Um ponto do Braille faz mais pelo cego do que milhares de benfeitores; a oportunidade para ler e escrever vem a ser mais importante do que "o sexto sentido" e o refinamento do toque e da audição. Em memória de V. Haüy

3Meumann, Ernest (1862-1915), pedagogo alemão, um dos fundadores da pedagogia experimental. Vigotski introduz os elementos de Meumann que sustentam o fato, apesar da teoria da "vicariança" dos órgãos sensórios, no caso de uma falha em um órgão sensório de outros que são capazes de permanecerem intactos. Meumann também afirma a possibilidade de substituição no mal funcionamento da percepção. Do ponto de vista de Vigotski, este elemento é importante para o sustento da noção básica de que a natureza do processo compensatório é social e psicológica, e não biológica. 4Wundt, Wilhelm (1832-1920), psicólogo alemão, fisiologista e filosófo idealista. O principiante no desenvolvimento de experimentos psicológicos, que ele chamou de psicologia fisiológica. Vigotski traz o ponto de vista de Wundt para o processo de substituição na cegueira, que ele não vê somente como uma deficiência, mas também como uma origem que emerge de forças compensatórias.

5, o fundador da educação do cego, as seguintes palavras foram escritas e endereçadas para uma criança cega: "Você encontrará luz na educação e no trabalho". No conhecimento e no trabalho, Haüy encontrou uma solução para a tragédia do cego e apontou o caminho ao longo do qual nós estamos agora andando. A era de Haüy deu a educação para o cego: nossa era deve dar-lhes o trabalho.

4 A ciência dos tempos modernos tem se aproximado de apoderar-se da verdade sobre a psicologia de uma pessoa cega. A escola do psiquiatra vienense, A. Adler, que encontrou a solução do método psicológico individual, i. e., a psicologia social da personalidade, tem destacado a significância e o papel psicológico representado por um defeito físico no processo de desenvolvimento e formação da personalidade. Se, por causa de uma anormalidade morfológica ou funcional, qualquer 5Haüy, Valentin (1745-1822), especialista francês em educação do cego. Ele primeiro organizou a instrução do cego em instituições especiais na França e na Rússia. Seu livro, Experiência de Ensino ao Cego (1876) foi naquele tempo o único guia para educadores de cegos. Haüy trouxe este proveitoso trabalho social ao alcance do cego. Vigotski qualificou em um nível superior o papel progressivo deste ativista pelo cego no princípio do desenvolvimento da educação para cegos.

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organismo tem uma queda pequena na operação normal, então o sistema nervoso e o aparelho mental assumem a tarefa de compensação para a função prejudicada do órgão. Eles criam uma superestruturação psicológica sobre o órgão em mal funcionamento e esta superestrutura luta para escorar o organismo em seus pontos enfraquecidos e ameaçados. O contato com o ambiente externo provoca um conflito, causado pela disparidade entre o órgão (ou função) deficiente e suas tarefas; isto conduz a um aumento de oportunidades para a doença e para a fatalidade. Este conflito também cria o aumento de possibilidades de estímulo para uma nova compensação. Deste modo o defeito torna-se o estímulo e a principal motivação para forçar de volta o desenvolvimento psicológico da personalidade. Se a luta termina com vitória para o organismo, então ele não faz frente somente com as dificuldades causadas pelo defeito, mas ele (por si mesmo) ergue-se a um nível superior do desenvolvimento, transformando a deficiência em competência, um defeito em habilidade, fraqueza em força, inferioridade em superioridade. Assim, N. Saunderson6, cego de nascença, compilou um livro didático de geometria (A. Adler, 1927). Que enorme uso de energia psicológica e impulso compensatório deve tê-lo levado, não somente a fazer frente às limitações espaciais, mas também apoderar-se do conceito de espaço em suas formas mais elevadas, acessíveis à humanidade somente no pensamento científico, i. e., nas construções geométricas. Até aqui, onde possuímos muito mais níveis deste processo, a lei fundamental permanece a mesma. É curioso que nas escolas de artes , Adler encontrou 70% dos estudantes com alguma anormalidade de visão, assim como muitos estudantes com defeitos na fala em

escolas de dramaturgia (A. Adler em Heilen und Bilder, 1914, p. 21). Uma vocação e talento na pintura envolveu uma visão enfraquecida enquanto uma habilidade motora moveu-se bruscamente e superou defeitos da fala.

6Saunderson, N. (1682-1739), matemático cego. Ele desenvolveu um aparelho para produção de cálculos numéricos com muitos dígitos sem a necessidade da visão. Ele criou um livro didático de geometria para o cego. Vigotski usa estes dados como um exemplo da nova compensação por uma pessoa cega.

Uma conseqüência positiva não é o único, nem mesmo o mais freqüente resultado desta luta para vencer um defeito. Seria ingênuo pensar que cada doença sempre termina favoravelmente, que cada defeito se torna felizmente em uma habilidade. Cada confrontação tem duas conseqüências possíveis. A segunda consequência - o fracasso em compensar, a submissão completa na sensação de fraqueza, o comportamento associal, a criação de uma posição defensiva fora da fraqueza, a transformação da fraqueza em arma, uma meta imaginária para a existência, na essência da loucura, a impossibilidade de uma vida psicológica normal para a personalidade - um meio apressado de retirar-se na doença e neurose. Entre esses dois pólos aparece uma enorme e inesgotável variedade de graus diferentes de sucesso e fracasso, competência e neurose, sucesso mínimo e máximo. A existência de extremos marca os limites deste fenômeno e apresenta uma expressão radical de sua essência e natureza. A cegueira cria dificuldades quando a criança cega começa a integrar-se socialmente. Neste caminho os conflitos explodem repentinamente antes da criança os perceber. Para todos os intentos e propósitos, o defeito é concebido como uma desordem (doença) social. A cegueira coloca seu portador em uma posição de dificuldade social definitiva. Uma inferioridade complexa, uma incerteza e uma fraqueza surge como resultado da avaliação da pessoa cega e de sua própria posição. As tendências para a supercompensação* do desenvolvimento de uma reação psicológica. Estas tendências são orientadas em direção a formação de uma aceitação social da personalidade, em direção a realização da posição no mundo

* Overcompensation, no original.

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social. Estas tendências lutam para vencer o conflito, e posteriormente, não desenvolver os sentidos de toque, som, e assim por diante, mas abrange a personalidade inteira, começando com sua parte fundamental mais interna. Elas lutam não para recolocar a visão, mas para vencer e supercompensar o conflito social, a instabilidade psicológica resultante da existência de um defeito físico. Isto na essência é a nova visão. Antigamente pensava-se que a vida e o desenvolvimento completo de uma criança cega prosseguiria ao longo desta deficiência. Ela, que deseja compreender a deficiência somente baseada na cegueira, irá compreendê-la apenas tão imprecisamente como ela, que vê somente a doença em inoculação. É verdade que a vacinação significa uma injeção de doença, em essência, contudo, a vacinação instala uma saúde superior. Na luz desta lei, todas as observações individuais sobre o cego podem ser explicadas de acordo com este curso principal de desenvolvimento, de acordo com um esquema único de vida, de acordo com um objetivo final, um "quinto ato", como Adler sustentou. Todos os fenômenos e processos psicológicos individuais devem ser compreendidos não em conexão com o passado mas com uma orientação em direção ao futuro. A fim de compreender totalmente todas as habilidades de uma pessoa cega, devemos trazer à luz das tendências enraizadas em seu processo psicológico, os embriões do futuro. Essencialmente estas junções de exigências gerais do pensamento dialético científico, para uma interpretação completa de um dado fenômeno, devem ser analizadas em conexão com seu passado e com seu futuro. Adler introduziu uma perspectiva de futuro-orientado para dentro da psicologia.

5 Ao longo do tempo os psicólogos notaram o fato de que um homem cego de modo algum possui experiências de sua cegueira apesar da opnião comum que diz que um homem cego sente-se submerso na escuridão. De acordo com as excelentes palavras de um homem cego altamente educado, A. V. Birilev, uma pessoa cega falha em ver a luz, não da mesma maneira que uma pessoa de olhos vendados falha em ver. Uma pessoa cega vê através de sua mão, i. e., ela não sente diretamente que é privada da visão. "Eu não poderia sentir diretamente minha própria deficiência", testemunha A. M. Shcherbina (1916, p. 10). A constituição da base psicológica de uma pessoa cega não consiste de uma atração orgânica instintiva para a luz ou um impulso para "libertar-se de uma cortina escura", como V. G. Korolenko afirma em sua conhecida obra de ficção, A Blind Musician*. Para uma pessoa cega a habilidade em ver a luz tem um significado prático e pragmático, não um significado instintivo ou orgânico, i. e., uma pessoa cega apenas indiretamente, de um modo refletido e somente em circunstâncias sociais, sente seu defeito. Seria um erro ingênuo da parte de uma pessoa vidente assumir que nós encontraremos na mente de um homem cego a cegueira ou sua sombra psicológica, sua projeção, ou reflexão. Nesta mente não há nada, mas há o impulso para vencer a cegueira (tendências em direção a supercompensação) e o desejo de conquistar uma posição social. Todos os investigadores científicos concordam, por exemplo, que nós geralmente encontramos um alto desenvolvimento na memória em uma pessoa cega do que em um vidente. A última investigação comparada de E. Kretschmer (1928) ilustrou que, o cego possui uma melhor memória verbal, mecânica e racional. A. Petzeld introduziu o

* Um Músico Cego.

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fato e estabeleceu uma série de estudos investigativos (A. Petzeld, 1925). Bürklen obteve as opiniões de muitos autores, em que todos concordaram com um ponto: eles todos afirmaram que a existência de uma única força no cego, i. e., uma memória altamente desenvolvida que habitualmente supera a memória de um vidente (K. Bürklen, 1924). Adler teria perguntado o seguinte: o que causa um desenvolvimento vigoroso na memória de um cego, i. e., o que determina esta supercompensação, quais as funções do comportamento da personalidade que são preenchidas, quais necessidades a memória reune? Pareceria mais correto dizer que um desenvolvimento superior da memória tende a ocorrer no cego, sem querer saber se este de fato depende de muitas condições complicadas ou de nível superior. Esta tendência, que é inquestionavelmente estabelecida na mente de uma pessoa cega, pode ser completamente explicada em termos de compensação. A fim de conquistar uma posição na sociedade, uma pessoa cega é forçada a desenvolver todas as suas funções compensatórias. A memória de uma pessoa cega desenvolve-se sobre a pressão de impulsos para compensar sua inferioridade, causada por sua cegueira. As pessoas cegas podem ver isto na luz dos fatos que sua memória desenvolve de um modo absolutamente específico, determinado pelo objetivo fundamental deste processo. A atenção em uma pessoa cega exibe uma variedade de qualidades contraditórias básicas. Alguns autores (K. Stumpf7 e outros) estão inclinados a ver um aumento da atividade na área de atenção. Outros (Schroeder, F. Tsekh), principalmente professores de cegos têm observado o comportamento de

alunos cegos em sala de aula e afirmam que sua atenção é menos desenvolvida do que nos videntes. Ainda é errôneo considerar o desenvolvimento comparado das funções mentais no cego e no vidente como um problema quantitativo. As pessoas devem questionar não somente as diferenças funcionais quantitativas mas também as qualitativas da mesma atividade no cego e no vidente. Em qual direção a atenção se desenvolve? Qual é a conclusão a ser obtida? Até mesmo aqui, quando se estabelece habilidades qualitativas, há uma correspondência geral. Assim como a memória no cego tende a desenvolver-se de um modo específico, assim também a atenção no cego prossegue ao longo de uma linha específica do desenvolvimento. Ou colocando mais exatamente, a tendência global para a compensação da cegueira assume o controle do processo mental (memória e atenção), dando a ambas a mesma direção. O caráter único da atenção em uma pessoa cega é um poder especial de concentração sobre as sensações acústica e tátil que entra em seu campo de consciência consecutivamente em contraste com as sensações visuais que entram no campo da visão simultaneamente, causando uma mudança rápida e a dispersão da atenção como um resultado da concorrência de numerosos estímulos sincrônicos. Todas as vezes que desejamos concentrar nossa atenção, nas palavras de k. Stumpf, nós protegemos nossos olhos da luz e artificialmente nos tornamos cegos (1913). Em conexão com isto, notamos o oposto, a tendência de igualar e limitar a atenção de uma pessoa cega. A concentração total sobre um objeto, o esquecimento completo do mundo circundante, e a preocupação total com este objeto (todos os traços característicos que observamos no vidente) não podem ocorrer no cego. Dada as circunstâncias, uma pessoa cega é forçada a manter certo contato com o mundo externo por meio de seu ouvido: portanto, para um certo grau, ela deve sempre dispersar sua atenção auditiva em detrimento de sua concentração (Ibid).

7Stumpf, Karl (1848-1936), psicólogo, filósofo, porta-voz da fenomenologia e idealista alemão, com afinidades com a psicologia da gestalt. Autor de trabalhos experimentais sobre a psicologia do cego, das sensações espaciais e das percepções. Vigotski analisa os dados da pesquisa de Stumpf sobre o processo de atenção no cego.

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Em cada capítulo da psicologia do cego seria possível mostrar a mesma coisa que nós apenas notamos no caso da memória e da atenção. Emoções, sentimentos, fantasia e outros processos psicológicos no cego estão todos subordinados à tendência global para compensar a cegueira. Esta unidade de todas as orientações úteis é que Adler chama de "linha maior da vida", ou linha principal, plano exclusivo de vida, que é inconscientemente realizado em episódios e períodos fragmentários externos; ela permeia-os como uma linha comum que serve como base para a biografia da personalidade. "Tão longe como durante o curso do tempo de todos os processos espirituais fluem em uma direção selecionada e encontram sua própria expressão típica, um número de aparelhos táteis, aspirações e habilidades tomam forma, revestindo e delineando o curso já definido da vida. Isto é o que nós chamamos de caráter" (O. Rüle, 1926, p. 12). Ao contrário da teoria de Kretschmer, de acordo com a qual o desenvolvimento do caráter é somente um desdobramento passivo daquele tipo biológico básico congênito inerente ao homem, os ensinamentos de Adler explicam e originam-se da estrutura de caráter e de personalidade não de um deslocamento passivo do passado sozinho mas também de uma adaptação ativa ao futuro. Isto serve como a base para a lei fundamental da psicologia do cego: o todo é deduzido e compreendido não das partes, um tanto das partes podem ser compreendidas do todo. A psicologia do cego pode ser construída não da soma de habilidades isoladas, sinais individuais desta ou daquela função, um tanto destas habilidades e divergências tornam-se compreendidas somente quando nós prosseguimos de uma unidade, de um plano integral de vida, do curso principal de uma vida da pessoa cega, quando nós determinamos um lugar e significado para cada habilidade e separamos o sinal com respeito ao todo e em conexão com ele, i. e., em conexão com todos os sinais restantes.

Até agora a ciência tem feito poucas tentativas para analisar a personalidade de uma pessoa cega como um todo e para esclarecer seu curso principal de desenvolvimento. Pesquisadores têm abordado a questão na maior parte pela compilação e estudos particulares. Para esta série de chamados, os mais bem-sucedidos experimentos sintéticos pertencem ao trabalho mencionado acima por A. Petzeld. Sua posição básica é a seguinte: os cegos são mais afetados pelas suas limitações do movimento livre, i. e., sua impossibilidade com relação ao espaço, que em contraste à posição social do surdo, que torna a este possível de reconhecer imediatamente uma pessoa cega. Em troca, as forças e habilidades restantes de uma pessoa cega podem funcionar normalmente para uma extensão que nós não encontramos no surdo. O que é mais característico para a personalidade de uma pessoa cega, i. e., a disparidade entre sua impossibilidade com relação ao espaço e seu potencial via fala para encher e completar adequadamente a comunicação e a compreensão recíproca com o vidente (A. Petzeld, 1925), completamente ajustado dentro do esquema psicológico do defeito e compensação. Porém, isto é um exemplo isolado da oposição entre um dado impulso anormal orgânico e psicológico, ele ainda estabelece a lei dialética fundamental da psicologia. No caso do cego a origem da compensação não é o desenvolvimento do toque ou o refinamento da audição, mas a fala - o uso da experiência social, e a comunicação com o vidente. Petzeld zombeteiramente cita a opinião do doutor M. Düfur que assegura que devemos fazer dos cegos os timoneiros de um navio assim que, com a ajuda de um ouvido refinado, eles percebam o som de qualquer perigo no nevoeiro. Para Petzeld (1925) é impossível buscar seriamente a compensação para a cegueira no desenvolvimento da audição ou outras funções individuais. Sobre a base da análise psicológica para as noções espaciais da pessoa cega e a natureza de nossa visão, Petzeld conclui que a motivação básica força a compensação da cegueira - o estímulo para adquirir o acesso à experiência social

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do vidente por meio da fala - não enfrenta nenhuma limitação no desenvolvimento natural dentro da essência da cegueira Há alguma coisa que uma pessoa cega não possa saber devido a sua cegueira?, ele pergunta, e chega à conclusão que tem significância fundamental para toda a psicologia e pedagogia do cego: a habilidade da pessoa cega para adquirir conhecimento é basicamente uma habilidade para compreender tudo (Ibid). Este meio possibilita adquirir um valor social completo que é possível para a pessoa cega. É muito instrutivo comparar a psicologia e o potencial para o desenvolvimento no cego e no surdo. Do ponto de vista puramente orgânico, a surdez é uma deficiência menos séria do que a cegueira. Um animal cego, em todas as probabilidades, é mais indefeso do que um animal surdo. O mundo natural entra em um grau maior através dos olhos do que através dos ouvidos. Nosso mundo é organizado mais como um fenômeno visual do que como um fenômeno acústico. Quase não há funções importantes biologicamente que seriam afetadas negativamente pela surdez, no caso da cegueira, contudo, há uma perda da orientação espacial e de movimentos livres, i. e., a mais importante função para um animal. Assim, de um ponto de vista biológico, uma pessoa cega perde mais do que uma pessoa surda. Contudo, com respeito aos seres humanos, para quem as funções artificiais, sociais e técnicas são as mais vitais, a surdez significa uma maior deficiência em comparação com a cegueira. A surdez causa mudez e perda da fala; isola e exclui um ser humano do contato social sobre o qual a fala depende. Como um organismo e um corpo físico, uma pessoa surda tem maiores possibilidades para o desenvolvimento do que uma pessoa cega, contudo, uma pessoa cega, como uma personalidade e uma individualidade social, encontra-se em uma posição imensurávelmente mais favorável: ela tem fala, e junto com a possibilidade para completar o status social como um membro da sociedade. Deste modo, a linha principal do desenvolvimento psicológico

para uma pessoa cega é apontado na vitória sobre seu defeito por meio da compensação social, pela adaptação dele mesmo para a experiência do mundo vidente com a ajuda da fala. A palavra conquista a cegueira.

6 Agora podemos retornar a questão básica indicada na epígrafe: uma pessoa cega representa uma espécie especial de pessoas aos olhos da ciência. Se não, então quais são os parâmetros, dimensões e valores de seus traços de personalidade? Em que capacidade uma pessoa cega toma parte na vida social e cultural? Em princípio já respondemos a esta questão com tudo que dissemos acima. Em essência a resposta já tem sido dada dentro das condições limitadas da epígrafe por ela mesma: se os processos compensatórios não foram guiados pela comunicação com o vidente e pela necessidade para acomodar-se à vida social, se os cegos tiveram que viver muito tempo entre eles mesmos, então somente nestas circuntâncias um homem cego se desenvolveria em um tipo especial de ser humano. Não há diferença principal entre um vidente e uma criança cega tampouco em relação ao objetivo fundamental em direção ao qual o desenvolvimento de uma pessoa cega está dirigido, ou em relação ao mecanismo que ativa as forças de seu desenvolvimento. Esta é a posição mais importante na psicologia e pedagogia do cego. Cada criança é dotada com uma inferioridade orgânica relativa com respeito à sociedade adulta na qual ela cresce (A. Adler, 1927). Isto permite-nos examinar qualquer infância como uma idade de incerteza e inferioridade, e qualquer desenvolvimento como algo dirigido à vitória desta condição por meio da compensação. Assim, o objetivo fundamental do desenvolvimento - a realização do

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status social - e o processo completo de desenvolvimento são idênticos para uma criança cega e para uma criança vidente. Ambas, psicologia e fisiologia, reconhecem igualmente o caráter dialético dos atos e respostas psicológicas. Este é o caráter global do sistema nervoso superior e da atividade mental. A necessidade de lutar e vencer um obstáculo provoca um aumento de energia e força. Vamos imaginar seres absolutamente ajustados cujas funções vitais confrontam qualquer tipo de obstáculos. Fora de tais necessidades um ser será incapaz de qualquer desenvolvimento, de avançar para um nível superior de funcionamento, ou de qualquer movimento avançado, por isso, o que há para incitá-lo a avançar? Portanto, precisamente neste estado inadaptado da infância coloca-se a origem de enormes possibilidades de desenvolvimento. Estes fenômenos pertecem a um número de fatores comuns, similares e elementares para todas as formas de comportamento do mais baixo ao mais alto, é, portanto, impossível considerá-las como alguma espécie de aspectos excepcionais na constituição psicológica do cego, como sua natureza própria particular. O inverso é verdadeiro: um desenvolvimento elevado destes processos no comportamento de uma pessoa cega é um caso individual de uma lei geral. Já nos instintos, i. e., nas formas mais simples de comportamento, nós encontramos ambas as características que descrevemos acima como os aspectos básicos da psicologia do cego: uma simples disposição de todos os atos psicológicos e suas intensificações na presença de obstáculos. Portanto, a orientação em direção ao futuro não constitui uma propriedade excepcional na psique do cego mas é uma forma universal de comportamento. I. P. Pavlov, quando analisando o mais elementar elo condicional, descobriu por acaso este fato em seu trabalho investigativo e descreveu-o pelo nome de reflexo dirigido a um objetivo. Com esta expressão aparentemente paradoxal ele procurou ilustrar dois pontos: 1) o fato de que estes processos ocorrem como um tipo de ação reflexa; e 2) o fato de que eles

estão dirigidos em direção ao futuro na luz da qual eles podem ser compreendidos. O reflexo dirigido permanece para acrescentar que não somente o objetivo final e todos os caminhos do desenvolvimento conduzem a ele mesmo, são exatamente iguais para uma pessoa cega e para uma pessoa vidente, mas também a origem principal da qual este desenvolvimento extrai seus conteúdos é o mesmo para ambos - a linguagem. Acima nós já introduzimos a opinião de Petzeld de que precisamente a linguagem, i. e., o uso da fala, é o instrumento para vencer as conseqüências da cegueira. Ele estabeleceu portanto que o processo de uso da fala é em princípio idêntica para o cego e para o vidente. Sobre esta base ele explicou a teoria de representações substitutas por F. Gitschmann: "O que é vermelho para uma pessoa cega", ele afirma, "tem a mesma relação de significado como para uma pessoa vidente, embora para o primeiro ele possa somente ser um objeto de significado e não de percepção". O preto e o branco são, em sua compreensão, os mesmos opostos como para o vidente, e a significância na relação com os objetos não é menos significativa. A linguagem do cego, se um objeto produz a fantasia, seria completamente diferente apenas em um mundo da pessoa cega. Dürfur está certo quanto diz que, uma linguagem criada pelo cego é dificilmente similar a nossa. Mas nós não podemos concordar com ele quando diz que, "Eu tenho visto que em essência o cego pensa em uma linguagem e fala em outra" (A. Petzeld, 1925). Assim, a principal fonte da qual a compensação extrai suas forças acaba sendo a mesma para o cego e para o vidente. Ao analisar o processo de educação de uma criança cega do ponto de vista da doutrina de respostas condicionais, nós chegaremos a seguinte conclusão: em um sentido fisiológico não há diferença fundamental entre a educação de uma criança cega e de uma criança vidente. Tal concorrência não deve surpreender-nos desde que devemos esperar um avanço em que

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a base do comportamento fisiológico revela a mesma estrutura como faz a superestrutura psicológica. Assim de dois pontos diferentes chegamos ao mesmo fim. A concorrência de dados fisiológicos e psicológicos deve convencer-nos até mesmo mais da precisão de nossa conclusão básica. Nós podemos formulá-la da seguinte maneira: a cegueira, como uma anormalidade orgânica, dá ímpeto para os processos compensatórios, conduzindo para a formação de uma série de peculiaridades na psicologia do cego e na reorganização de tudo que está separado, as funções individuais do ponto de vista dos objetivos básicos da vida. Cada função individual na constituição psicológica de uma pessoa cega apresenta suas próprias características, as quais são freqüentemente muito significantes em comparação com o vidente. No caso de um mundo exclusivamente do cego, este processo biológico levado por si mesmo, do mesmo modo que ele forma e acumula aspectos que desviam da norma, inevitavelmente conduziria a criação de uma raça especial de pessoas. Sob a pressão de necessidades sociais do mundo vidente, i. e., necessidades para a supercompensação e para o uso da fala (necessidades que são idênticas para o cego e para o vidente), o desenvolvimento completo destes aspectos leva a uma condição de tal modo que a estrutura de personalidade de uma pessoa cega quando tomada como um todo tende a realizar um certo tipo social normal. Até mesmo na presença de desvios individuais nós podemos ainda ter um tipo global normal de personalidade. O crédito por estabelecer este fato pertence a Stern (W. Stern, 1921). Ele aceitou a doutrina da compensação e explicou, como da fraqueza vem a força, das deficiências - méritos. Em uma pessoa cega a habilidade para distinguir pelo toque é refinada em um modo compensatório, não por um aumento atual da estimulação nervosa, mas pela prática repetida na observação, na avaliação e diferentes compreensões. Similarmente, no reino do fracasso psicológico de uma propriedade, ela pode ser parcial ou completamente

reposta pelo desenvolvimento fortalecido de outra. Uma memória fraca, por exemplo, pode ser contrabalançada pelo cultivo da compreensão, que serve para promover a perspicácia da observação e da memória. A falta de vontade ou iniciativa pode ser compensada pela sugestibilidade e pela tendência para imitar, e assim por diante. Uma visão análoga é reforçada no campo da medicina: o único critério para saúde e doença é se o organismo inteiro funciona vantajosamente ou ineficazmente; um desvio parcial é avaliado somente em tanto quanto ele seja ou não seja compensado por outras funções do organismo. Em contraste para uma "análise microscopicamente refinada das anormalidades", Stern antecipa a seguinte posição: as funções individuais podem incorporar um desvio significativo da norma e ainda a personalidade ou o organismo como um todo podem ser absolutamente normais. Uma criança com um defeito não é necessariamente uma criança defeituosa. A severidade de sua anormalidade ou o grau de normalidade depende dos resultados da compensação, i. e., sobre a formação essencial de sua personalidade como um todo. K. Bürklen nota dois tipos básicos de pessoas cegas: uma luta tão duro quanto possível para reduzir e eliminar totalmente a lacuna que separa uma pessoa cega de uma pessoa vidente; a outra, ao contrário, reforça sua diferença e necessita de reconhecimento para esta forma especial de personalidade, que concorda com uma experiência de uma outra pessoa cega. Stern propõe que este contraste também é de natureza psicológica; os dois homens cegos provavelmente representam dois tipos diferentes (K. Bürklen, 1924). Na nossa compreensão, os dois tipos designam dois resultados extremos da compensação: o sucesso e o fracasso deste processo básico. Nós já afirmamos que por si mesmo este processo, sem se importar com os resultados mal sucedidos que não abrangem qualquer coisa excepcional, inerentes apenas na constituição psicológica de uma pessoa cega. Vamos acrescentar apenas que tal operação elementar como prática, a qual é básica para todas

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as formas de atividade e desenvolvimento, é considerada pela psicologia moderna para ser um exemplo individual da compensação. Portanto, é apenas tão incorreto considerar que uma pessoa cega é um "tipo especial de pessoa" sobre a base da presença e dominação do processo em sua psique, quanto é para fechar os olhos a certos aspectos profundamente diferentes que caracterizam este processo geral no cego. W. Steinberg justificadamente ridiculariza o corrente slogam: "Nós não somos cegos, nós somente não podemos ver" (K. Bürklen, 1924, p. 8). Todas as funções e todas as propriedades são reorganizadas sob condições particulares de desenvolvimento da vida de uma pessoa cega: é impossível reduzir todas as diferenças para um fator. Ao mesmo tempo, contudo, uma pessoa cega e uma pessoa com audição podem ter o mesmo tipo de personalidade global. Aqueles que dizem que uma pessoa cega compreende mais sobre o mundo visual do que o vidente sobre o mundo estão corretas. Tal compreensão seria impossível, se o desenvolvimento de uma pessoa cega não se aproximasse daquele de uma pessoa normal. Certas questões levantadas: como é a existência de dois tipos de pessoas cegas a ser explicado? Isto é devido a causas orgânicas ou psicológicas? Isto não refuta as posições avançadas sobre, ou, no mínimo, ela não introduz limitações substanciais e correções, para estas posições? Em algumas pessoas cegas, como Shcherbina tem convenientemente descrito, "o defeito é compensado organicamente: um segundo tipo de natureza parece ter sido criado" (1916, p. 10), e até mesmo com todas as dificuldades associadas com a cegueira, eles encontraram na vida um encanto particular, assim eles não poderiam concordar em desistir por qualquer ganho pessoal. Isto significa que a superestrutura psicológica de uma pessoa cega compensa por sua deficiência de tal modo harmonioso que ela torna-se a base de sua personalidade: negá-la significaria negar a si mesmo. Estes incidentes confirmam completamente a doutrina da

compensação. No caso do fracasso para compensar, o problema psicológico torna-se um problema social: é na verdade realmente correto que crianças em sua grande maioria saudáveis realizam tudo que eles podem ou deveriam de acordo com sua constituição psico-fisiológica.

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Nosso levantamento está completo; estamos agora em terra firme. Não estava dentro de nosso alcance iluminar completamente a psicologia do cego; nós desejávamos somente anotar a questão central do problema, o vínculo, dentro do qual todas as linhas da constituição psicológica da pessoa cega tem sido atadas. Nós encontramos a base disto no conceito não-científico da compensação. O que então distingue uma concepção científica deste problema de uma concepção não-científica? Se o mundo antigo e o cristianismo pressentiram a solução para o problema da cegueira nos poderes místicos da alma, se a teoria biológica ingênua pressentisse-a como uma compensação orgânica automática, então a formulação científica desta idéia seria que a cegueira é um problema social e psicológico. De um relance superficial pode facilmente parecer que a idéia de compensação tem colocado-nos de volta no tempo da visão medieval cristã do papel positivo do sofrimento e da fraqueza da carne. De fato é impossível imaginar mais duas teorias opostas. A nova doutrina coloca o valor positivo não sobre a cegueira de e nela mesma, não sobre o déficit, mas sobre as forças, sobre os recursos da vitória do déficit, e sobre os estímulos para o desenvolvimento, os quais são inerentes dentro dele. Não simplesmente a fraqueza, mas a fraqueza como uma fonte de força que sobressai como pólo positivo. As idéias, como as pessoas, são melhores conhecidas por seus atos. As teorias científicas devem ser julgadas de acordo com os resultados práticos que elas conduzem.

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Qual é, então, o lado prático das teorias mencionadas acima? De acordo com a precisa observação de Petzeld, teoricamente uma reavaliação da deficiência encontrada por Homer, Tirezius, Édipo passa a ser uma prova da vida real da limitação e das intermináveis possibilidades de desenvolvimento de uma pessoa cega. O mundo antigo criou a idéia e produziu um exemplo real de grandes homens cegos. A Idade Média, ao contrário, abrangeu a idéia de compreensão da cegueira, ao invés da prática de desprezar o cego. De acordo com um provérbio alemão, "Verehrt - ernährt" *. A Antigüidade venerou o cego, enquanto a Idade Média pisou-os como forragem. Ambas as idéias são expressão da incapacidade do pensamento pré-científico e de sua inabilidade para elevar-se de um concepção unilateral de educação ao cego: a cegueira foi reconhecida ora como uma força ora como uma fraqueza. O pensamento, contudo, de que a cegueira é ambas, i. e., a fraqueza conduzindo a força, foi inconcebível para aquela época. O começo da aproximação científica ao problema da cegueira foi, na prática, marcada pela tentativa de criar uma educação sistemática para cada pessoa cega. Esta foi uma grande era na história do cego. Petzeld corretamente afirmou, contudo, "O fato em si, que pode aproximar quantitativamente a capacidade de funcionamento dos sentidos de permanência de uma pessoa cega e neste sentido analisá-los experimentalmente indica a mesma afirmação de assuntos (ligações) como aqueles que foram caracterizados na Antigüidade e na Idade Média" (A. Petzeld, 1925, p. 3). Em sua era Düfur recomendou a distinção de timoneiros da cegueira. Esta época tentou levantar-se acima de concepções unilaterais da Antigüidade e da Idade Média e pela primeira vez combinar ambas as idéias sobre a cegueira. Esta era a origem da necessidade fora da fraqueza e da possibilidade fora da força, a nova perspectiva sobre a

educação do cego. Contudo, naquele tempo, ninguém sabia como unir estas duas teorias opostas dialeticamente assim que o relacionamento entre força e fraqueza foi apresentado de um modo puramente mecânico.

* O alemão lê, "Ele que é honrado está alimentado" (Nota do tradutor americano).

Finalmente, nossa época compreende a cegueira como um problema sócio-psicológico e tem em sua disposição três tipos de armas para lutar contra a cegueira e suas conseqüências. É verdadeiro até mesmo em nosso tempo aqueles pensamentos freqüentemente superficiais sobre a possibilidade de uma conquista direta sobre a cegueira. As pessoas simplesmente não querem desfazer-se daquela promessa antiga de que os cegos recuperarão sua visão. Até recentemente ainda estávamos testemunhando e revivido, esperanças ilusórias que de algum modo a ciência devolverá a luz ao cego. Em tais desencadeamentos de esperanças irrealizáveis, os vestígios de assuntos surrados da distante Antigüidade e um desejo intenso por milagres tem essencialmente retornado à superfície. Tais esperanças não são a base de nossa época que, como tem sido dito, tem em sua disposição três tipos de armas: a profilaxia social (inspeção preventiva), a educação social e o trabalho social do cegueira. Nós temos três excelentes práticas sobre as quais a ciência moderna se baseia para uma abordagem científica que domine a cegueira. A ciência deve finalizar todas as três formas de luta, e levar até o fim o progresso feito pelas épocas anteriores nesta direção. A noção de profilaxia (inspeção preventiva) da cegueira deve ser concedida para as vastas massas populares. É necessário liquidar o isolamento, a educação orientada para a invalidez do cego e apagar a demarcação entre a escola especial e a escola normal. A educação de uma criança cega deve ser realmente organizada sobre os mesmos termos como a educação de qualquer criança capaz de um desenvolvimento normal. A educação deve de fato fazer uma criança cega tornar-se uma criança normal, um adulto socialmente aceito e deve eliminar o rótulo e a noção de "defeituoso", fixado ao cego. E,

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finalmente, a ciência moderna deve dar ao cego o que é correto para o trabalho social, não em forma degradante, filantrópica ou orientada para a invalidez (como tem sido a prática padrão até agora) mas em formas que correspondam à essência verdadeira do trabalho. Isto sozinho criará uma posição social indispensável para qualquer indivíduo. Não é realmente claro que todas essas três tarefas apresentadas pela cegueira são, por sua natureza, essencialmente problemas sociais e que somente uma nova sociedade pode resolver estes problemas de uma vez por todas? Uma nova sociedade criará novos tipos de pessoas cegas. Hoje na URSS as primeiras pedras desta nova sociedade estão sendo colocadas e isto significa que os primeiros aspectos deste novo tipo estão sendo formados.

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