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A cor Consideramos aquilo que nos é familiar como «conhecido». E, no entanto, como dizia Nietzsche, o que é familiar e habitual é o mais difícil de «conhecer». Porque adquirir conhecimento sobre uma coisa é geralmente converter algo que nos é estranho em algo de familiar. A cor, por exemplo, é algo que nos é tão familiar que se torna para nós difícil compreender que existe o problema de sabermos exactamente o que ela é. Para isso, temos primeiro que perceber que essa coisa que nos é tão familiar é, de facto, algo de muito estranho! Contrariamente ao que transparece no modo como usamos a palavra cor, a cor é mais do que apenas uma propriedade dos objectos. Quando dizemos «este objecto é vermelho» esquecemos que a cor que vemos só existe no cérebro. Resulta de uma série de processos neuronais no cérebro que interpretam a resposta fisiológica da retina à luz. processo aditivo de formação de cores Se projectarmos numa mesma superfície branca a luz de 3 focos luminosos de intensidade variável, cada um com 1 das 3 cores principais, conseguimos ver quase todas as cores. Mas há certas cores que não se consegue criar a partir da projecção dos 3 focos luminosos. É o caso do castanho e das cores metálicas, como cor de prata e ouro. Mas já podemos ver essas cores facilmente num slide com uma imagem mais complicada, em que as 3 cores primárias aparecem em arranjos complexos e representam objectos. O que se passa é que a cor não depende só dos comprimentos de onda e intensidades de radiação mas também de processos de mais alto nível que identificam objectos. E o castanho é uma espécie de amarelo super-saturado que exige contraste e que surge preferivelmente numa imagem que seja interpretada como sendo de um objecto. Um objecto é mais facilmente visto como castanho quando há uma outra cor mais clara visível ao mesmo tempo. Um objecto que parece castanho quando o fundo é claro poderá parecer laranja se o fundo for escuro. E note-se ainda que a partir de duas imagens (com objectos), uma branca e outra com uma só cor, podemos criar uma imagem com uma grande variedade de cores. Se tirarmos duas fotos a preto e branco iguais, uma usando um filtro vermelho e outra um filtro verde, e as projectarmos sobrepostas, usando um foco de luz vermelha e outro de luz branca, respectivamente, vemos aparecerem as outras cores. Não vemos só tons de rosa porque a luz forma arranjos complexos que representam objectos. (Aliás os primeiros filmes a cores usavam apenas 2 cores. Mas a maioria das pessoas nunca se apercebeu de como eles eram bons.) A percepção da cor branca também tem que se lhe diga. Podemos, por exemplo, ver como branca a luz dos faróis de um carro no escuro e depois eles parecem amarelados na cidade, porque há outras luzes mais brancas presentes. O branco parece estar associado fundamentalmente à iluminação geral, ou seja, à luz que vemos com um espectro mais largo e mais constante. (A zona da imagem que é associada à cor branca parece ser escolhida por um compromisso entre duas regras: 1ª - É a zona com maior

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A cor

Consideramos aquilo que nos é familiar como «conhecido». E, no entanto, como dizia Nietzsche, o que é familiar e habitual é o mais difícil de «conhecer». Porque adquirir conhecimento sobre uma coisa é geralmente converter algo que nos é estranho em algo de familiar. A cor, por exemplo, é algo que nos é tão familiar que se torna para nós difícil compreender que existe o problema de sabermos exactamente o que ela é. Para isso, temos primeiro que perceber que essa coisa que nos é tão familiar é, de facto, algo de muito estranho!

Contrariamente ao que transparece no modo como usamos a palavra cor, a cor é mais do que apenas uma propriedade dos objectos. Quando dizemos «este objecto é vermelho» esquecemos que a cor que vemos só existe no cérebro. Resulta de uma série de processos neuronais no cérebro que interpretam a resposta fisiológica da retina à luz.

processo aditivo de formação de cores

Se projectarmos numa mesma superfície branca a luz de 3 focos luminosos de intensidade variável, cada um com 1 das 3 cores principais, conseguimos ver quase todas as cores. Mas há certas cores que não se consegue criar a partir da projecção dos 3 focos luminosos. É o caso do castanho e das cores metálicas, como cor de prata e ouro. Mas já podemos ver essas cores facilmente num slide com uma imagem mais complicada, em que as 3 cores primárias aparecem em arranjos complexos e representam objectos. O que se passa é que a cor não depende só dos comprimentos de onda e intensidades de radiação mas também de processos de mais alto nível que identificam objectos. E o castanho é uma espécie de amarelo super-saturado que exige contraste e que surge preferivelmente numa imagem que seja interpretada como sendo de um objecto. Um objecto é mais facilmente visto como castanho quando há uma outra cor mais clara visível ao mesmo tempo. Um objecto que parece castanho quando o fundo é claro poderá parecer laranja se o fundo for escuro.

E note-se ainda que a partir de duas imagens (com objectos), uma branca e outra com uma só cor, podemos criar uma imagem com uma grande variedade de cores. Se tirarmos duas fotos a preto e branco iguais, uma usando um filtro vermelho e outra um filtro verde, e as projectarmos sobrepostas, usando um foco de luz vermelha e outro de luz branca, respectivamente, vemos aparecerem as outras cores. Não vemos só tons de rosa porque a luz forma arranjos complexos que representam objectos. (Aliás os primeiros filmes a cores usavam apenas 2 cores. Mas a maioria das pessoas nunca se apercebeu de como eles eram bons.)

A percepção da cor branca também tem que se lhe diga. Podemos, por exemplo, ver como branca a luz dos faróis de um carro no escuro e depois eles parecem amarelados na cidade, porque há outras luzes mais brancas presentes. O branco parece estar associado fundamentalmente à iluminação geral, ou seja, à luz que vemos com um espectro mais largo e mais constante. (A zona da imagem que é associada à cor branca parece ser escolhida por um compromisso entre duas regras: 1ª - É a zona com maior

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luminância; 2ª - É a zona com maior área.) E a percepção das outras cores é ajustada em função daquilo que vemos de mais parecido com o branco.

Note ainda que, embora tenha apenas 3 cores diferentes, a figura que se segue parece ter 4 cores: branco, verde, rosa e vermelho. É que um rectângulo cor de rosa rodeado de rectângulos verdes parece-nos mais avermelhado.

a constância da cor

Se tirarmos uma fotografia num ambiente iluminado por uma lâmpada normal (com filamento de tungsténio), e se usarmos um filme fotográfico para luz diurna, a fotografia ficará toda em tons de vermelho. Porque esse tipo luz «tem mais vermelhos» do que a luz solar.

Se a detecção de cor feita pelo nosso sistema visual dependesse directamente do fluxo de energia radiante que chega aos nossos olhos, nós, nessas condições, veríamos também os objectos todos em tons avermelhados. E se fosse assim estaríamos constantemente a confundir as cores umas com as outras. Mas não é isso que acontece. Não notamos nenhuma diferença fundamental na cor dos objectos familiares quando se dá esse tipo de mudança na iluminação. Para o nosso sistema visual, as cores da pele e das caras das pessoas e as cores dos frutos permanecem fundamentalmente invariáveis, embora seja tão difícil conseguir que esse tipo de objectos fique com a cor certa num monitor de televisão. A cor não tem só que ver com os olhos mas também com a informação presente no cérebro. Enquanto, com uma iluminação pobre, um determinado objecto cor de laranja pode ser visto como sendo amarelado ou avermelhado, vemos normalmente mais facilmente com a sua cor certa uma laranja, porque é um objecto de que conhecemos perfeitamente a cor.

A chamada constância da cor é este fenómeno que faz com que a maioria das cores das superfícies pareçam manter aproximadamente a sua aparência mesmo quando vistas sob iluminação muito diferente. O sistema nervoso, a partir da radiação detectada pela retina, extrai aquilo que é invariante sob mudanças de iluminação. Embora a radiação

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mude, a nossa mente reconhece certos padrões invariantes nos estímulos perceptivos, agrupando e classificando fenómenos diferentes como se fossem iguais. O que vemos não é exactamente «o que está lá fora». Mas corresponde a um modelo simplificado da realidade que é de certeza muito mais útil para a nossa sobrevivência! Que interessa que as laranjas «não sejam sempre mesmo cor de laranja»? Vemo-las assim e assim é mais fácil reconhecê-las e depois comê-las!

No entanto, esta constância da cor é apenas aproximada e não acontece para alguns tipos de superfícies quando se usam certas lâmpadas fluorescentes, com características de cor muito diferentes. Na figura que se segue compara-se as distribuições relativas de potência de uma lâmpada normal, com filamento de tungsténio (a vermelho), e de uma lâmpada fluorescente (a azul).

a teoria tricromática deYoung-Helmholtz

Podemos ver mais de uma centena de cores em cada ponto do nosso campo visual. E, em 1802, o inglês Thomas Young suspeitou que a retina não teria centenas de sensores diferentes em cada ponto e teorizou que existiam só 3 tipos de sensores e que eram as diferentes combinações de actividade em cada um deles que comunicavam a sensação de cor: é chamada teoria do tricromatismo. Só um século e meio depois, se descobriu que ele parecia ter razão: reconheceram-se 3 tipos de fotoreceptores - os chamados «cones» - com picos de sensibilidade em 3 zonas diferentes do espectro visível: a zona do vermelho, do verde e do azul. (E, como previu depois Hermann von Helmholtz, em 1860, cada cor pode ser definida pela razão entre as respostas de cada tipo de cone.)

No entanto, a resposta de um cone não depende do comprimento de onda do fotão absorvido. Cada cone é sensível a luz dentro de uma banda larga de comprimentos de onda e as zonas de sensibilidade dos 3 tipos de cone estão sobrepostas. Na figura seguinte, estão representadas as curvas de sensibilidade para cada um dos tipos de cone. Essas curvas traduzem a probabilidade que cada tipo de pigmento visual absorva um fotão com um determinado comprimento de onda.

Se virmos um foco de luz, com uma banda de frequências luminosas muito curta, centrada em 565 nm, temos a sensação de vermelho; e isso corresponde a haver uma

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razão de 3 para 1 na actividade dos cones vermelhos e verdes, com os azuis quase inactivos. Mas a resposta de um cone é idêntica para qualquer estímulo que resulte numa absorção idêntica. Dois estímulos de composição espectral diferente parecerão idênticos se ambos resultarem no mesmo número de absorções fotónicas, por cada tipo de cone. Ou seja, qualquer estímulo que dê origem a uma razão de 3 para 1 na actividade dos cones vermelhos e verdes, com os azuis quase inactivos, dará origem à sensação de vermelho. O que faz com que certos objectos possam ter a mesma cor com um dado tipo de iluminante e cor diferente com outro - e que permite que a cor de um objecto visualizado num monitor de tv, composta a partir de apenas 3 cores primárias (vermelho, verde e azul), tenha a mesma aparência da sua cor real, resultante de um espectro de radiação mais complexo.

Na figura da esquerda, representam-se as distribuições relativas de potência da luz solar que cai sobre um objecto (a preto) e da luz que chega a um olho vinda do objecto (a vermelho). Esta última é função da reflectância do objecto, representada à direita. Cada um dos três tipos de cones vai então absorver fotões em proporções diferentes, de acordo com as suas curvas de sensibilidade. Na figura em baixo, os valores a azul, verde e vermelho (0.001, 0.66, 1.0) simbolizam a resposta correspondente a cada tipo de cone para um ponto no campo visual. Colectivamente, os sinais dos cones contêm toda a informação disponível para o sistema visual sobre as cores dos objectos no seu campo de visão.

o padrão invariante nos estímulos perceptivos: a luminosidade

A energia radiada por cada objecto varia com o espectro de energia da fonte luminosa. Mas a eficiência com que a sua superfície reflecte radiação nas bandas de frequências a que os fotoreceptores da retina são sensíveis é invariante. E a sensação de cor está exactamente relacionada com a sensação de luminosidade em cada comprimento de onda, que é determinada por essa propriedade invariante: a reflectância espectral de superfície. A cor corresponde a um determinado tipo de reflectância e não a uma reflectância específica.

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Se tirarmos 3 fotografias a preto e branco de uma cena usando um filtro diferente em cada uma delas, um verde, um azul e outro vermelho, verificamos que os tons de cinzento correspondentes a cada objecto são diferentes em cada uma delas.

Um objecto vermelho, por exemplo, será cinzento escuro na foto tirada usando um filtro vermelho, mais escuro na foto tirada usando um filtro verde e quase negro na foto tirada usando um filtro azul. Um objecto cor de laranja, será quase branco na foto tirada usando um filtro vermelho, cinzento claro na foto tirada usando um filtro verde e quase negro na foto tirada usando um filtro azul.

Como há vários tipos de fotoreceptores na retina, cada um com o seu tipo de resposta em frequência, a luminosidade detectada a partir de cada fotoreceptor é diferente. No entanto, a luminosidade detectada por cada um deles é essencialmente independente da iluminação. Porque está relacionada com a reflectância espectral de superfície - a proporção de luz incidente que um objecto reflecte em cada comprimento de onda do espectro visível.

Uma experiência reveladora da natureza da luminosidade (relatada por Edwin H. Land) pode ser realizada usando uns óculos especiais que diminuem 30000 vezes a luz incidente. Desse modo, como a iluminação é extremamente fraca, vemos uma imagem sem cor. Ao fim de uma meia hora de habituação, vemos um mundo em tons de cinzento, aproximadamente como se fosse numa foto tirada usando um filtro verde (porque a curva de resposta em condições escotópicas é parecida com a dos cones «verdes», com um pico nos 500 nm). O que se observa é que vemos os objectos com luminosidades diferentes, em tons de cinzento, do branco ao preto, dependendo do tipo de cor com que os vemos em condições normais. E o que é mais revelador é que podemos iluminar muito mais os objectos que nos parecem mais escuros e eles não ficarão mais claros. Embora os pigmentos na retina sejam fundamentalmente proporcionais ao fluxo de energia radiante que chega aos olhos, a percepção de

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luminosidade pelo sistema visual não o é!

NOTA: É costume dizer-se que vemos uma imagem sem cor porque em condições escotópicas (ou seja, para iluminações baixas) vemos apenas com os bastonetes - um outro tipo de fotoreceptores que não detectam a cor. No entanto, hoje em dia a existência desse tipo de fotoreceptores está posta em causa (os fotoreceptores com forma de bastonetes parecem ser apenas um tipo especial de «cones» ) e pensa-se que o que acontece é que a cor não é detectada porque os cones de mais longo comprimento de onda (os «vermelhos») não são funcionais para níveis de iluminações baixa. (De facto, a visão a cores não desaparece quando a iluminação ambiente é baixa. Se fosse esse o caso de noite não conseguiríamos ver a cor, mesmo a grandes distâncias, as luzes que piscam em cima das ambulâncias.)

Tudo indica que o sistema nervoso determina a cor dos objectos a partir da diferença entre as luminosidades detectadas pelos vários tipos de fotoreceptores na retina. Como a luminosidade tem uma relação logarítmica com a reflectância, isso corresponde à razão entre as energias radiadas por dois objectos diferentes, ou seja, a razão entre as suas reflectâncias. E, como a luminosidade relativa entre os objectos não é afectada quando a iluminação muda, a cor dos objectos permanece essencialmente invariante.

O metamerismo

Nas televisões comerciais, usa-se um processo aditivo para produzir a cor. Cada cor do espectro visual pode ser reproduzida com base numa "combinação linear" de 3 cores básicas, vermelho (Red), verde (Green) e azul (Blue), ou RGB. Mas embora um tom de vermelho, num monitor de televisão, possa ser obtido a partir de uma combinação de radiação que corresponde a uma razão de 3 para 1 na intensidade da cor vermelha e verde, com uma cor azul muito fraca, em termos das cores dos objectos no nosso ambiente habitual, a mesma sensação não corresponde a um dado tipo de radiação mas sim a uma determinada combinação das luminosidades detectadas pelo sistema nervoso a partir dos três tipos de fotoreceptores. E uma razão de 3 para 1 na actividade dos fotoreceptores mais sensíveis aos vermelhos e verdes, com os azuis quase inactivos, pode corresponder à percepção de muitas cores diferentes, conforme o espectro de radiação da iluminação presente.

Se usarmos 3 focos luminosos de intensidade variável, cada um emitindo um espectro de banda estreita centrado numa das frequências correspondentes aos picos de cada tipo de receptor, podemos ajustá-los de modo a que recebamos exactamente a mesma radiação reflectida de objectos de várias cores diferentes. Mas eles continuarão a ser vistos com a mesma cor que antes. Ou seja, podemos estar a receber de cada objecto fluxos de radiação exactamente iguais em cada uma das bandas de frequência e no entanto vê-los-emos com cores totalmente diferentes (amarelo, branco, azul, vermelho ou negro, por exemplo). Isto acontece porque,em termos das cores dos objectos no nosso ambiente habitual, a cor é determinada a partir da luminosidade relativa entre os objectos de uma cena. Ou seja, a partir da razão entre as energias radiadas por dois objectos diferentes e não das energias radiadas por cada um deles.

O que torna possível a geração da cor num monitor de televisão usando apenas 3 cores primárias é o fenómeno a que se chama «metamerismo». O Metamerismo é uma consequência do facto de que toda a informação disponível para a percepção da cor vem de 3 tipos de fotoreceptores com sensividade espectral larga. O que implica que a cor correspondente a qualquer estímulo que resulte na mesma combinação de respostas desses fotoreceptores será idêntica. Isso faz com que um estímulo cujo espectro corresponda a uma combinação linear das 3 cores básicas possa ser equivalente, em termos de cor, com um estímulo de espectro muito diferente que resulte no mesmo tipo de resposta a nível dos fotoreceptores. O metamerismo faz com que não seja necessário reproduzir o espectro de um estímulo, bastando produzir um estímulo que seja um

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equivalente visual do original.

Se a luz que chega ao olho produz a mesma resposta dos 3 receptores então aparecerá com a mesma cor mesmo que os objectos tenham reflectâncias diferentes. E objectos com reflectâncias bastante diferentes podem ter uma cor indêntica com um determinado tipo de iluminação; são perceptivamente equivalentes sob um determinado tipo de iluminação. São pares metaméricos.

Quatro objectos com a mesma cor quando iluminados com um dado iluminante

a cor é uma propriedade emergente

O nosso sistema sensorial faz emergir todo um contínuo muito vasto de cores com muitas diferenças de tonalidades que nós aprendemos a categorizar, associando determinados nomes a certas bandas de tonalidade (com uma definição extremamente vaga). É este hábito humano de categorizar que nos faz imaginar que o nosso sistema nervoso faz uma detecção «objectiva» de uma determinada cor que existe no mundo exterior.

Mas a cor é uma propriedade que emerge de um padrão de activação de uma rede de fotoreceptores e neurónios. É um padrão emergente que é apreendido globalmente como um todo e que aprendemos a classificar usando nomes. É uma experiência que consiste numa gestalten, ou seja, numa estrutura integrada que é apreendida como um todo e não em termos das suas partes. Resulta de um agrupamento de várias características extraídas por vários tipos de sensores. Um agrupamento essencialmente semelhante àquele que unifica várias características detectadas numa imagem de modo a que tenhamos a percepção de um determinado objecto.

E, como já dizia Aristóteles, o todo é mais do que a soma das suas partes. O sal, por exemplo, é composto por moléculas de um gás venenoso (o cloro) e de um metal corrosivo (o sódio). Uma propriedade emergente é uma propriedade que emerge do conjunto das suas partes e que não pode ser reduzida a elas sem perder o seu significado essencial. Ou seja, não é possível encontrar uma descrição simples do fenómeno por aplicação do método reducionista. A sensação de cor resulta de um processamento paralelo e de funções distribuídas e corresponde a um padrão de activação neuronal que podemos encarar como sendo já o código sensorial na sua forma final. Se misturarmos luz vermelha com luz verde vemos o amarelo. No entanto, a cor

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amarela não parece ser uma mistura de duas cores, embora o seja de facto. (O que não acontece quando ouvimos, por exemplo, a mistura de dois sons. Um acorde não soa como uma nota só. Distinguimos a presença de dois sons de diferentes frequências quando eles soam conjuntamente como um acorde.)

Há certos padrões de activação de certas células do sistema visual que nós, por educação social, aprendemos a associar à palavra «vermelho». Mas diferentes pessoas poderão ter definições ligeiramente diferentes do que é vermelho. E certas pessoas poderão conseguir uma maior resolução de cores. (Todos chamamos vermelho aproximadamente à mesma coisa física. Mas será que a «sensação interior despertada pelo vermelho» é mesmo igual para toda a gente? Será que há pessoas que quando vêm o vermelho têm a sensação que eu tenho quando vejo, por exemplo, o amarelo? Será que é por isso que os gostos pelas cores variam tanto? Costuma-se dizer «O que seria do amarelo se não fossem os gostos?»)

a cor não corresponde às propriedades físicas em si mas sim à sua representação interna

Se os estímulos fornecem informação simbólica sobre a cor, é apenas porque a qualidade sensorial a que chamamos cor emerge nos mecanismos sensoriais pelo processo de aprendizagem e é por estes projectada sobre os estímulos. O mundo visual dos animais baseia-se nesse tipo de projecção. A cor corresponde a um tipo de informação que não diz respeito às propriedades físicas em si mas sim à sua representação interna. Os animais só vêm os estímulos através dos «óculos escuros» das qualidades sensoriais, ou seja, vêm o ambiente sob uma forma que eles próprios criam. Porque nem a cor, nem a luz, nem as outras qualidades sensoriais existem no ambiente. Os objectos não têm cor; é o nosso sistema visual que projecta a cor sobre eles.

As abelhas, por exemplo, têm um comportamento que é função da cor das flores. Mas que é idêntico para combinações de estímulos muito diferentes, porque a avaliação da cor é feita com base numa combinação complexa de muitos estímulos físicos diferentes. Através da auto-organização associada ao processo de aprendizagem, há certos estados atractores que emergem espontaneamente nas redes neuronais sensoriais. E cada estado atractor corresponde a uma representação interna dos estímulos. Ou seja, a rede neuronal forma internamente invariantes que categorizam os padrões dos estímulos de acordo com certas categorias, que correspondem a certos estados atractores. Funciona como um filtro que reconhece certo tipo de padrões nos estímulos.

Basicamente, o processamento sensorial tem por função acoplar, de um modo fiável, uma sensação com uma acção. E envolve sempre muitos elementos sensores e muitos neurónios e a actuação de vários músculos segundo um determinado padrão espaço-temporal. O sistema sensorial deverá por isso produzir um padrão como elemento de disparo. E combinações de estímulos muito diferentes podem ter implicações semelhantes para o organismo, dando origem a estados internos fundamentalmente idênticos, resultando em acções motoras idênticas e a uma definição idêntica da sua cor.

No caso do reconhecimento da cor vermelha pelos humanos, forma-se igualmente um padrão de disparos que corresponde à necessária actuação dos vários músculos de modo a que pudesse ser pronunciada a palavra «vermelho». Ainda que a palavra possa apenas ser pensada, e não ser de facto pronunciada, parece de qualquer modo ocorrer o planeamento das acções respectivas. Como não podemos usar uma infinidade de

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palavras para designar a infinidade de tonalidades de cor, usamos uma categorização simplificativa (sempre necessariamente muito vaga). E isso faz-nos supor que existiria algo dentro do cérebro que detecta a cor; mas a única coisa que existe é uma associação de palavras a certas combinações de estímulos visuais. Uma associação muito vaga, «com defeitos», que varia de contexto para contexto, conforme o estado global da rede neuronal.

os padrões emergentes são acontecimentos

A cor emerge espontaneamente como um todo bastante complexo a partir de uma série de mecanismos simples. Note que também na natureza o crescimento e desenvolvimento são determinados por padrões e não pelas quantidades absolutas de alguma coisa. A forma curva de uma planta resulta da diferença das taxas de crescimento das células de cada um dos lados do caule. Não há nenhum gene da planta que contenha a imagem de uma espiral; há genes com códigos de enzimas que promovem taxas diferentes de crescimento. A forma do nosso corpo também resulta da combinação e interacção de regras simples envolvendo diferenças e razões entre taxas de crescimento. A forma emerge espontaneamente como um todo bastante complexo a partir de mecanismos simples.

E tudo isto tem algo a ver com aquilo que Einstein dizia quando chamava a atenção para o facto de que «a ciência não nos diz nada sobre a verdadeira «natureza» das coisas; o seu sucesso consiste em conseguir definir as relações entre elas e descrever os acontecimentos em que elas estão envolvidas. Quando se fala, por exemplo, do encontro entre dois electrões, é o acontecimento em si - o encontro - que é real. A ciência não define verdadeiramente quem são os protagonistas deste acontecimento. O encontro entre dois electrões pode ser descrito cientificamente de várias maneiras diferentes, usando modelos diferentes: pode ser entendido como uma colisão entre dois grãos elementares de matéria ou de duas unidades elementares de energia eléctrica, um encontro de duas partículas ou encontro de duas ondas de probabilidade ou a mistura de dois redemoinhos num contínuo do espaço-tempo a 4 dimensões. Mas os electrões não são «reais». É o seu encontro que é real. O acontecimento é a unidade das coisas reais. É como se o mundo objectivo ficasse para sempre meio escondido. A ciência, para além das relações e acontecimentos, fica a fitar o vazio.»

os padrões emergentes e o reducionismo

O nosso hábito de simplificar e categorizar faz-nos crer que há uma explicação simples e «determinística» para tudo. Mas, de facto, só um modelo «infinitamente detalhado» poderia descrever o mundo. O mundo é essencialmente computacionalmente irredutível. Aquilo a que chamamos «compreender» é essencialmente entender um todo em termos das suas partes. O que, relativamente à cor, corresponde nomeadamente a entender, entre outras coisas, que a sensação de cor resulta da razão entre as respostas de uma série enorme de sensores, todos com características diferentes. Mesmo quando falamos em 3 tipos de sensores, estamos a simplificar, porque cada um dos milhões de fotoreceptores tem uma resposta diferente. É o seu funcionamento global, processado por redes de muitos neurónios, que pode ser descrito aproximadamente dessa maneira simples.

Mas a redução da sensação de cor ao mecanismo que lhe dá origem não satisfaz totalmente o nosso desejo de compreender. Gostávamos era de encontrar um mecanismo preciso, que não existe. Podemos talvez definir o mecanismo preciso que determina o disparo de cada neurónio. Mas ele é ligeiramente diferente de neurónio para neurónio. E, como eles funcionam em rede, o que é realmente relevante é o comportamento global da rede que resulta do enormíssimo conjunto de comportamentos

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individuais de cada neurónio. O que é relevante é o comportamento global «estatístico» que emerge de uma multidão de neurónios. O que acontece ao nível microscópico dos detalhes é relativamente irrelevante para a compreensão do funcionamento macroscópico. Por isso, o método reducionista não nos pode satisfazer. A sensação de cor é mesmo algo que só conseguimos descrever de um modo muito vago. É um acontecimento, um padrão de activação neuronal que se estabelece numa rede com um número enormíssimo de neurónios. A informação parece estar armazenada em todo o lado, de uma forma distribuída, implícita na estrutura de ligações das redes neuronais. E é evocada mais do que encontrada. É algo que acontece. A informação parece estar armazenada sob a forma de uma dinâmica aprendida pelas redes neuronais. Está armazenada sob a forma de um padrões de activação neuronal, ou seja, de acontecimentos, coisas que acontecem no cérebro.

Uma cor não é detectada por um determinado neurónio mas pela ocorrência de um determinado padrão espaço-temporal de disparos em muitos neurónios de uma série de redes de muitos neurónios. E, assim como não é necessário haver uma só célula especializada na detecção da cor vermelha, não é igualmente necessário que haja um «centro executivo» dentro do nosso cérebro. Cada uma das nossas acções é o resultado de múltiplas interacções entre neurónios do córtex pré-frontal, que origina o movimento, e muitos outros existentes noutros componentes cerebrais, corticais e subcorticais. Não há um executivo. Não há um comando de muitos por um. Há apenas um sistema complexo com realimentação, composto por milhões de neurónios que interagem entre si; algo semelhante ao que existe nos sistemas osciladores eléctricos com feedback, que implicam uma regressão infinita que não é uma regressão infinita, sempre em busca de executivos mais elevados numa hierarquia. É perfeitamente implausível que exista um «executivo» ou uma espécie de centro de comando no córtex pré-frontal.

o método reducionista

A ciência tem-se baseado sobretudo no método reducionista, que tenta explicar o todo a partir das suas partes. Mas, se é verdade que o único modo de entender alguma coisa na sua totalidade é investigar as suas partes, isso não basta. Mais importante do que a obtenção de novos factos, é a tentativa de «juntar as coisas umas com as outras». Newton, Mendeleyeff, Einstein e Darwin foram grandes sintetizadores. É preciso descobrir novas maneiras de pensar sobre os factos que se vão obtendo de modo a descobrir como é que novas propriedades emergem das combinações das várias partes.

É impossível prever o efeito de uma sinfonia a partir dos aspectos técnicos de cada instrumento ou de um número de ballet a partir de cada nervo e músculo dos bailarinos. Do mesmo modo, o funcionamento do Homem como ser social ou mesmo os processos mentais que emergem do funcionamento do cérebro são difíceis ou impossíveis de prever a partir da anatomia e fisiologia do córtex. A objectividade reducionista (que põe nomes às coisas e as separa) faz-nos ignorar os fenómenos emergentes que não conseguimos entender bem. Tentamos tornar as coisas mais claras, isto é, compreeensíveis. E acabamos por não ver (ou eliminar) o que existe de mais «incompreensível» para nós, que é talvez aquilo que é mais essencial. A ciência tem dificuldade em abordar essas coisas mas, no entanto, elas existem.

A realidade é fundamentalmente o conjunto de coisas que acontecem, cuja verdadeira essência não entendemos.Temos tendência para ver a realidade com base nas entidades a que puzemos um nome. Mas de facto esses protagonistas das nossas narrativas sobre a realidade nunca são verdadeiramente definidos de um modo muito concreto. Na procura de um melhor entendimento da realidade, criamos modelos para entender as suas partes. Mas são sempre modelos aproximados e imperfeitos, instrumentos de análise e não coisas reais. Esses modelos que usamos são modelos compreensíveis (matemáticos, científicos, técnicos). No entanto, como a realidade

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«essencial» parece ser incompreensível para nós, talvez só possa ser por nós entendida com base em modelos também «incompreensíveis». Aliás, um electrão ou uma onda de probabilidade, embora nos pareçam coisas «compreensíveis», não o são na realidade. Como dizia Einstein, os electrões não são «reais»; o que é real é o que acontece e que nós descrevemos, usando-os como modelo hipotético. Mas talvez na base do nosso conhecimento devessem estar mais explícitas as suas próprias limitações. Em vez de estarem «escondidas» por detrás de modelos aparentemente mais compreensíveis. Os nossos modelos básicos deviam ser talvez os processos associados à vida, coisas que emergem, orgânicas, acontecimentos, coisas que verificamos que acontecem. Modelos mais assumidamente incompreensíveis e misteriosos.

Parece ser sobretudo o método reducionista que causa uma certa ansiedade aos leigos, relativamente à ciência, porque parece uma preocupação obsessiva com as partes que pode descurar o todo e, por isso, descontruí-lo. E, de certo modo, se reduzirmos o ser humano a um conjunto de partes constituintes, a sua humanidade também parece ficar reduzida.

Temos tendência para ver a nossa realidade subjectiva com base nas entidades mentais a que puzemos um nome; que são acontecimentos definidos de um modo muito vago. Definimo-nos em termos das nossas «partes constituintes» sem assumirmos explicitamente a nossa incompreensão sobre o que somos. Mas basicamente somos algo que surgiu e que temos muita dificuldade em compreender como pôde surgir. E devemos inserir mais explicitamente nos modelos que usamos para nos definir os fenómenos emergentes que nos fazem ser uma parte de um todo social. Devemos assumir que estamos extremamente interligados uns com os outros e com a natureza.