A Construçao Social Da Violencia Contra Idosos

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    Textos sobre EnvelhecimentoISSN 1517-5928 verso impressa

    Textos Envelhecimento v.3 n.6 Rio de Janeiro 2001

    A Construo Social da Violncia Contra os Idosos

    The Social Construction of Violence against Aged People

    Andra Moraes Alves*

    Resumo

    O artigo "A Construo Social da Violncia contra os Idosos" tem como objetivo

    principal analisar o processo de produo dos sentidos da violncia contra os

    velhos. Para isso, o artigo toma como foco de anlise, um programa

    governamental chamado "Ligue Idoso". Esse programa recebe denncias de maus

    tratos contra pessoas idosas, encaminhando-as para os rgos competentes.Atravs do trabalho dos profissionais envolvidos com o programa possvel

    observarmos os conflitos e as interpretaes acerca da violncia contra o velho no

    Rio de Janeiro, qual encaminhamento deve ser dado a ela, quem so esses velhos

    e como so os possveis agressores

    Palavras-chave:idoso; violncia; programas governamentais; maus-tratosao idoso; direito dos idosos.

    Introduo

    "Somos sempre o jovem ou o velho de algum." Com essa expresso,extrada do texto de Pierre Bourdieu, "A Juventude apenas umapalavra", resume-se a dificuldade que encontramos ao tentar demarcar oslimites e sentidos das idades e das geraes. As diferentes fases do cicloda vida so socialmente manipuladas e comportam arbitrariamentecaractersticas, qualidades, deveres e direitos. A imputao de algumasprerrogativas para determinada fase da vida feita sempre em relaocom o que se considera socialmente apropriado para essa fase e nopara outra. Essas prerrogativas mudam ao longo do tempo e tambm no

    so as mesmas em todos os lugares.

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    Com a preocupao de iniciar um estudo sobre o campo de lutas queconstitui as fases da vida e os limites que so atribudos a elas em nossasociedade, esse artigo tem como tema a construo que o estado faz dacategoria idoso1e dos riscos que afetam esse segmento social.Lembramos que, alm de no podermos naturalizar as idades, tambm

    no podemos supor que o estado seja um todo homogneo, sem fissurase cuja apresentao de si seja coesa e unvoca. O que se chama porestado aqui deve ser identificado e, a partir desse ponto de vista, serfeita a apresentao sobre de que forma esse estado constri um sentidopara a palavra idoso.

    Esse estudo toma como contexto a trajetria das polticas sociaisbrasileiras voltadas para a velhice e detm-se em um programa socialespecfico, realizado pelo governo do estado do Rio de Janeiro, a partir doano de 1999, cujo objetivo responder s denncias de maus tratoscontra os idosos do Rio de Janeiro, alm de servir como orientador dapopulao idosa sobre seus direitos. Esse programa - conhecido como"Ligue Idoso" - est baseado em outras experincias governamentais quepossibilitam populao fazer denncias annimas de maus tratos eoutras violncias pelo telefone, como o Disque Denncia, implantado em1994 pela Secretaria de Segurana Pblica.

    O programa "Ligue Idoso" foi escolhido como foco de anlise porquepermite responder a perguntas sobre as formas vigentes de classificaosocial do idoso, incluindo nessa classificao a dimenso de risco, ouseja, quais so os fatores tidos como ameaadores segurana dos

    idosos (as) e dos quais eles (as) devem ser protegidos(as). Minha tese de que as categorias de idade tambm envolvem a crena de quedeterminadas fases da vida so mais propensas a correr certos tipos derisco do que outras, gerando uma distribuio etria das ameaas e comela uma pauta de recomendaes acerca do que os velhos ou os jovensdevem fazer para evitar o risco

    2. A busca pela proteo pode, muitas

    vezes, revelar-se em campanhas agressivas que condenam certos atos,colocando-os no rol de atitudes negativas que depreciam a imagem dequem as executa; por exemplo, as campanhas publicitrias contra o usode drogas, em geral voltadas para os jovens.

    Esse artigo est organizado da seguinte forma: em primeiro lugarapresento uma viso geral das polticas voltadas para o segmento maisvelho da populao em nosso pas; em seguida, uma descrio doprograma "Ligue Idoso", situando-o no conjunto de polticasimplementadas pelo Estado. Participei do cotidiano de trabalho doprograma como pesquisadora e dediquei 8 horas semanais, durante cercade 1 ms e meio, para estar junto s assistentes sociais que fazem oatendimento, observando seu trabalho, a forma como operam com acategoria de "idoso" e como se constri a noo de risco e perigo paraesse grupo. O terceiro momento do texto oferece ao leitor uma anlisedas categorias acionadas por esse programa para tratar dos mais velhos

    e dos riscos que lhes so imputados. Gostaria de esclarecer desde j queno me proponho a fazer uma avaliao do programa e de seus objetivos

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    e alcances, como se faz usualmente nas anlises de polticas pblicas.Meu propsito situar as representaes da velhice que, atravs desseprograma, se constrem e se apresentam em nossa sociedade atual.

    As polticas sociais voltadas para a velhice

    A partir da dcada de 90, multiplica-se, em larga escala, o nmero de leisfederais, estaduais e municipais que contemplam a velhice no Brasil.Esse impulso na legislao acompanhado pela constatao, atravs depesquisas demogrficas, de um crescente e irreversvel processo deaumento do nmero de velhos no Brasil.

    "Segundo projeo a partir dos dados do Censo Demogrfico de 1980, apopulao idosa, composta por pessoas de 60 anos ou mais, alcana amarca dos 12.674 milhes em 1999 e representa 7,7% da populaobrasileira (...) Enquanto a populao com menos de 20 anos cresceu 12%de 1980 a 1999, a populao idosa cresceu, neste mesmo perodo 70%,passando de aproximadamente 7,2 milhes de idosos para 12,6 milhes."(Arajo & Alves, 2000, p.08)

    O estado do Rio de Janeiro se destaca nas estatsticas como o estadobrasileiro que contm a maior proporo de idosos na populao total:so 11,2%.

    As primeiras legislaes sociais federais que se referem diretamente aesse segmento da populao so

    3.a Constituio de 1934 que, em seu

    artigo 121, registra a "instituio de previdncia, mediante atribuio igualda Unio, do empregador e do empregado, a favor da velhice, dainvalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de trabalho ou demorte"; a "aposentadoria-velhice", criada pelo Ministrio do Trabalho epelo INPS, em 1973, para os homens com mais de 65 anos e para asmulheres com mais de 60 anos - em 1991, a "aposentadoria-velhice"passa a chamar-se oficialmente de "aposentadoria por idade", efeito dasmudanas de significado social da palavra "velhice"

    4- o decreto-lei de

    1974 que institui uma penso vitalcia para os maiores de 70 anos(Peixoto,2000) e, em 1977, a "Poltica Social do Idoso", definida peloMinistrio da Previdncia e Assistncia Social, que apresenta como um

    de seus objetivos a implantao de um "programa mdico-social" para oidoso. (Goldman,1999)

    A proliferao de leis em favor do segmento mais velho da populaoinaugura-se com a Constituio Federal de 1988. No captulo daSeguridade Social, seo IV, relativa assistncia social, estabelece oartigo 203 que a assistncia tem por objetivo "proteger a famlia, amaternidade, a infncia, a adolescncia e a velhice" e garante "um salriomnimo de benefcio mensal pessoa portadora de deficincia e ao idosoque comprovem no possuir meios de prover a prpria manuteno ou det-la provida por sua famlia." O Captulo VII da Constituio Federalainda prev que "a famlia, a sociedade e o Estado tm o dever de

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    amparar as pessoas idosas, assegurando sua participao nacomunidade, defendendo sua dignidade e bem estar e garantindo-lhes odireito vida" (art.230)

    A Lei Orgnica da Assistncia Social, datada de 1993, obedecendo

    Constituio, institui o "Benefcio de Prestao Continuada", ou seja, "agarantia de um salrio mnimo mensal pessoa portadora de deficinciae ao idoso com setenta anos ou mais e que comprovem no possuirmeios de prover a prpria manuteno e nem de t-la provida por suafamlia." (art.20)

    5

    Em 1994, a Lei n.8842 dispe sobre a Poltica Nacional do Idoso e cria oConselho Nacional do Idoso

    6, considerando-se como idoso para efeito

    desta Lei a pessoa maior de sessenta anos. "A poltica nacional do idosotem por objetivo assegurar os direitos sociais do idoso, criando condies

    para promover sua autonomia, integrao e participao efetiva nasociedade." (art.1o).

    No mbito estadual7, a Constituio Estadual do Rio de Janeiro, no

    Captulo III, estabelece que " dever da famlia, da sociedade e do Estadoassegurar criana, ao adolescente e ao idoso, com absoluta prioridade,direito vida, sade, alimentao, educao, dignidade, aorespeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm decoloc-los a salvo de toda forma de negligncia, discriminao,explorao, violncia, crueldade e opresso" (art.45). A Constituioainda prev o estabelecimento dos conselhos de defesa dos direitos dosidosos e das crianas e adolescentes (art. 62). O primeiro foi institudo emsetembro de 2000.

    Em 1996, a Assemblia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro aprova aDeclarao Estadual dos Direitos do Velho. No texto da Declarao, l-se:"Todo homem que tenha atingido os 65 anos, ou que seja consideradovelho para o desempenho de funo na vida social, por haver passado decerta idade, gozar dos direitos constantes desta Declarao."

    A Lei Orgnica do Municpio do Rio de Janeiro, em seu artigo 12, repete

    os mesmos princpios da Constituio Estadual: "O municpio buscarassegurar criana, ao adolescente e ao idoso, com absoluta prioridade,o direito vida, moradia, sade, alimentao, educao, dignidade, ao respeito, liberdade, convivncia familiar e comunitria e primazia no recebimento de proteo e socorro, alm de coloc-los asalvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia,crueldade e opresso." A Lei Orgnica ainda prev, em seu art.127, acriao do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa.Atualmente, esse conselho est em fase de estruturao.

    Outras legislaes que atingem a pessoa idosa e que podem ser

    lembradas aqui so aquelas que se referem ao lazer, como: a Lei n.2593de 1996 que "autoriza o poder executivo do Estado do Rio de Janeiro a

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    permitir a cesso, aos sbados e domingos, das reas de recreaoexistentes nos colgios estaduais aos grupos de terceira idade,legalmente formados ou que venham a constituir-se para utilizao comoespao de lazer"; a Lei 2796 de 1997 que "assegura ao idoso (maior de65 anos) o ingresso gratuito em museus e casa de cultura de propriedade

    do Estado do Rio de Janeiro" e a Lei estadual 2454 de 1995 que "obrigaos cinemas localizados no Estado a concederem aos maiores de 65 anosdesconto de 50% na compra de ingressos para a primeira sesso deexibio de filmes, em todos os dias da semana"; as polticas de ateno sade, como: a Lei 2795 de 1997 que "autoriza o poder executivo doEstado do Rio a criar o Programa de Vacinao para a Terceira Idade ea Lei municipal n.2384 de 1995 que "dispe sobre o atendimentogeritrico nos hospitais da rede pblica municipal". Alm dessas medidas,lembramos ainda: a Resoluo Sectran 557 de 1992 que regulamenta ouso gratuito de transportes coletivos para maiores de 65 anos e aslegislaes que obrigam a prioridade no atendimento em caixas desupermercado, agncias bancrias e reparties pblicas para maioresde 65 anos, no estado do Rio de Janeiro. Ainda no mbito do estado,ressalto a criao da Delegacia Especial de Atendimento Pessoas daTerceira Idade (Lei 2200 de 1993) e do Ncleo Especial de Atendimento Pessoa Idosa da Defensoria Pblica (Resoluo DPGE n.80).

    Esse conjunto de leis demonstra a crescente preocupao do Estado emcontemplar o segmento mais velho da populao

    8. Essa preocupao tem

    orientado as aes do atual governo do estado do Rio de Janeiro9,

    gerando algumas propostas de ao voltadas para os idosos - lembro que

    esse o termo usualmente utilizado pelo estado, atravs da legislao edo discurso de seu "pessoal especializado", para referir-se s pessoasacima de 60/65 anos de nossa sociedade. A Subsecretaria de AoSocial e Cidadania tem se responsabilizado pelas polticas de ateno aoidoso no estado

    10. Com o nome de Programa de Atendimento Pessoa

    Idosa, alguns projetos voltados para os idosos tm disputado espao comuma srie de outros programas e projetos. Embora seja uma disputaainda desigual

    11, se somarmos as iniciativas estaduais com as legislaes

    j existentes observaremos um processo de "descoberta do idoso" comoagente poltico importante em nossa sociedade.

    O Programa de Atendimento Pessoa Idosa

    O programa, executado pela Subsecretaria de Ao Social e Cidadaniado Estado do Rio de Janeiro, abrange aes voltadas para os idosos. Amaioria dos projetos, cinco, direcionada para o lazer do idoso, so eles:"A Cidade da Melhor Idade", "Integrando Geraes", "Na Trilha da Vida","Ao Cultural Itinerante", "Visitando o Maracan" e os "Centros deConvivncia" que, alm de atividades de lazer e socializao, pretendeoferecer tambm atendimento mdico. H, tambm, no mbito doPrograma de Atendimento Pessoa Idosa do governo do estado, a

    previso de realizao de um censo dos asilos para idosos e dos asiladosno Estado do Rio, com o objetivo de diagnosticar a situao dessas

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    instituies e de seus internos. O programa "Ligue Idoso/Ouvidoria" - esse seu nome completo - encontra-se em atividade desde julho de 1999e o nico em operao no Programa de Atendimento Pessoa Idosaque no se vincula idia de promoo do lazer para os idosos, mas defesa de direitos civis. O programa tem como objetivo "atender e

    encaminhar as denncias de maus tratos e de desrespeito legislaoconcernente a pessoa idosa, quanto a abuso e leses de seus direitos,servindo para identificar situaes de risco e no combate violnciadomstica fsica e psicolgica, explorao, discriminao e outras aesclassificadas na linha de maus tratos." (Relatrio Anual do LigueIdoso/Ouvidoria, 2000, p.01)

    O Programa de Atendimento Pessoa Idosa funciona em uma pequenasala no prdio anexo ao Palcio Guanabara, sede do governo do estado.Na sala trabalham quatro assistentes sociais, uma estagiria de serviosocial, uma digitadora, um estagirio e a coordenadora do programa deatendimento ao idoso. A maior parte do tempo de trabalho das assistentessociais e da digitadora consumido pelo "Ligue Idoso". As assistentessociais atendem aos telefonemas e relatam todos os atendimentos feitos.A digitadora coloca os dados no computador sob a forma de uma ficha deregistro. Ao fim de cada ms ela, tambm, responsvel pela produode uma estatstica dos atendimentos.

    Em geral, trs assistentes sociais atendem telefonemas e fazem relatos.Existem trs aparelhos telefnicos na sala, mas somente dois emcondio de uso. Mesmo com essa infra-estrutura modesta, a carga de

    trabalho grande; menos por um excesso de telefonemas/dia e mais pelaforma como o servio prestado. As assistentes sociais tentam extrair omximo possvel de informaes sobre o caso para que possam orientaro denunciante/usurio com mais segurana. Com isso, os atendimentoschegam a demorar alguns minutos

    12. Grande parte das ligaes de

    gente que deseja obter alguma informao sobre servios pblicos elegislao ou de denncias de maus tratos. Mesmo os problemas maispontuais, como a demanda por um servio ou um esclarecimento legal,pode demorar porque a prtica do atendimento compreende que odenunciante/usurio precisa ser ouvido e que o atendimento tem que serfeito de forma a deixar aquele que usa o servio confiante e esclarecido.

    Cada atendimento deve ser relatado por escrito, preservando ao mximoas expresses utilizadas pelo prprio denunciante/usurio. Uma vezregistrada, a denncia ganha um nmero de senha que informado aodenunciante/usurio para que, atravs dela, ele (a) possa se informarsobre o andamento de seu caso. O prazo mnimo de retorno que se pedepara o denunciante/usurio de cinco dias teis. A senha garante ainda osigilo sobre a identidade do denunciante que, assim, no precisa seidentificar

    13.

    Alm de atender o telefone e relatar denncias, a assistente social responsvel tambm pelo seu encaminhamento aos rgos competentes.O encaminhamento obedece a uma classificao prvia do contedo dos

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    telefonemas. A classificao foi elaborada pelas prprias assistentessociais junto com a coordenadora do programa e organiza-se da seguinteforma:

    a) "denncias de maus tratos: conflito familiar, conflito devizinhana, conflito entre casal, conflito interpessoal,agresso fsica, ameaa de morte, negligncia asilar,negligncia hospitalar, discriminao, abandono eapropriao de bens." (Relatrio Anual do Ligue Idoso, p.03)Cada um desses tipos de maus tratos definido segundosuas caractersticas:

    conflitos so entendidos como "brigas, xingamentos(sic), discusso, humilhao sem agresso fsica";

    abandono o nome que se d "quando o idoso abandonado em hospitais, instituio asilar, residncia ounas ruas por familiares";

    apropriao de bens, "quando o denunciante ou oprprio idoso declara que algum membro da famlia, vizinho,empregado ou procurador, apropriou-se de seusrendimentos, de seu imvel ou de qualquer outro bem quepossua sem o aval do idoso";

    negligncia asilar, "quando o denunciante relata que oresponsvel tcnico pela instituio no possui ttulo dequalificao profissional na rea de sade, que a instituiono possui instalaes fsicas conforme determina a Portaria810 do Ministrio da Sade, a inexistncia de sistemticaadequada na operacionalizao dos servios de substituiodos utenslios de cama, mesa e banho, a inexistncia dequadro de funcionrios qualificados para atender snecessidades bsicas do idoso, tais como: sade,alimentao, higiene e repouso, que a instituio asilar

    pratica leses fsicas e agresses verbais";

    negligncia hospitalar, "quando o denunciante relataque o idoso no vem recebendo o atendimento adequadopor parte da equipe da unidade de sade, no que se refere ahorrios de medicao e enfermagem";

    discriminao, "quando o idoso relata que lhe foinegado o direito de abrir credirios, seguros de sade,seguro de vida, restringindo assim o exerccio de cidadania."(Relatrio Anual do Ligue Idoso, p.03-04)

    b) "Denncias de desrespeito: descumprimento das leis

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    que amparam o idoso, com referncia a: transportes,atendimento em reparties pblicas, bancos,supermercados, ingressos casa de cultura, internaes eatendimentos hospitalares, pagamento de impostos,utilizao de espaos pblicos." (Relatrio Anual do Ligue

    Idoso, p.04)

    c) "Denncias previdencirias: problemas na reviso declculos de aposentadorias e penses, interrupo depagamento de benefcios, andamento de processos iniciaisde aposentadoria e penso, recadastramento debeneficirios, liberao de pagamento de benefcios,pagamento bloqueado de benefcios" (Relatrio Anual doLigue Idoso, p.05)

    d) "Denncias de desaparecimento"

    e) "Ouvidoria: situaes de atendimento imediato semque haja demanda de encaminhamento formal do LigueIdoso ao rgo competente. Destina-se a orientar eesclarecer o idoso ou o denunciante quanto a seus direitos ereivindicaes junto aos rgos de competncia" (RelatrioAnual do Ligue Idoso, p.05)

    Com o telefonema registrado e classificado, as assistentes sociais,atravs de fax e telefone, contatam as instituies competentes, expem

    a situao e pedem providncias. Dependendo do contedo do caso, asdenncias podem ser enviadas para: Delegacia Especial de Atendimento Pessoa de Terceira Idade, Ncleo Especial para Atendimento daPessoa Idosa/Defensoria Pblica, rgos responsveis pelo servio detransporte urbano, INSS, PROCON, rede hospitalar municipal e estadual,coordenadorias regionais e secretarias municipais de promoo social.Tambm faz parte da atividade checar se as denncias foramefetivamente respondidas pelos rgos acionados. Isso se faz atravs derecebimento de resposta por escrito da instituio acionada para resolvero caso, declarando seu parecer - o que a instituio deve fazer em nomximo quinze dias, o que no ocorre

    14, ou tambm procurando contato

    direto com as vtimas para saber como est sua situao. Algumas vezes,as prprias assistentes sociais verificam denncias In loco ou recebemusurios pessoalmente, o que no oficialmente incentivado.

    Em um ano de programa, registraram-se 863 denncias, o que perfazuma mdia de 3,5 atendimentos/dia. Desse universo, 308 correspondema denncias que se encaixam na classificao de maus tratos, 245 socasos que se apresentam sob a rubrica de ouvidoria e 148 so dennciasacerca do uso dos meios de transporte coletivo nas cidades. As demaisdenncias distribuem-se sob as categorias de desrespeito (72),negligncia (73), populao de rua (06), abandono (03) edesaparecimento (08). No se sabe exatamente a que essas ltimasdenncias se referem e, se levarmos em conta a classificao acima

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    apresentada, a estatstica coloca em separado denncias quesupostamente deveriam estar juntas, como no caso da negligncia - dequem? - que deveria ser classificada como maus tratos. De qualquermaneira, as trs grandes reas de denncia que aparecem no "LigueIdoso" so de casos relacionados a maus tratos, ouvidoria e desrespeito

    aos direitos de uso do transporte pblico urbano pelos idosos.

    Se tomarmos o universo dos chamados "casos resolvidos", observamosque, em sua maioria, referem-se tambm s trs reas apontadas acima:maus tratos, ouvidoria e transportes. Em um ano de programa, foramresolvidas 481 denncias, ou mais de 50% dos casos. Ouvidoria o tipode denncia que sempre registrada como resolvida porque trata-se daprestao de um esclarecimento ao usurio do servio, portanto, ela temuma efetividade praticamente absoluta. J as denncias de maus tratos eaquelas relativas a transportes encontram maior dificuldade, poisdependem diretamente da articulao com outros rgos. Por isso, entreas 308 denncias de maus tratos, 120 foram resolvidas (39%) e das 148denncias sobre meios de transporte, 35 foram solucionadas (23,6%).

    O que se entende por "caso resolvido" a denncia que, sendoencaminhada ao rgo competente, recebeu por parte deste algum tipode ateno, ou seja, uma resposta escrita foi enviada ao "Ligue Idoso",atestando que alguma providncia estava sendo tomada para solucionara situao. O "caso resolvido" no implica necessariamente que aassistente social do "Ligue Idoso" saiba efetivamente a que termo o casochegou. Algumas denncias acabam se tornando processos judiciais que

    vo percorrer um longo caminho at serem realmente solucionadas.Tambm so registradas como resolvidas, denncias que se provaraminfundadas ou casos em que o prprio denunciante desiste da dennciaou nega o seu teor posteriormente. Isso bastante comum nos casos demaus tratos. Nos casos de maus tratos vistos como conflitos, ou seja,sem agresso fsica, a efetividade da soluo tende a ser maior porque ainterveno direta da assistente social, entrando em contato com oacusado e com a vtima, permite um restabelecimento, pelo menos verbal,das relaes entre os envolvidos.

    Entre a classificao padronizada, o registro de cada caso pela assistente

    social e o encaminhamento da denncia h uma distncia. Essa distnciademonstra uma certa flexibilidade que as assistentes sociais adotam emrelao ao catlogo de classificaes. Observei que elas costumamconversar umas com as outras sobre as denncias e qual a melhor formade encaix-las na estatstica ou de encaminh-las. Quando no parecehaver consenso, a voz da coordenadora ou da assistente social que esth mais tempo no trabalho, decide. Um caso por mim observadodemonstra bem o grau de liberdade de interpretao que pode surgir nahora de classificar uma denncia. Uma assistente social atendeu aotelefonema de uma instituio asilar que reclamava de um idoso que foradeixado na instituio, sem dinheiro e sem documentos, pela prpria filha.

    O asilo estava tentando localizar a mulher, mas sem sucesso. Pediamento que a assistente social tentasse localiz-la atravs do nmero que

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    ela havia deixado e do endereo. A assistente social liga para o nmerode telefone que lhe foi passado e tambm no consegue localizar asenhora. Ela comenta comigo e com a outra assistente social o "absurdo"da situao de "abandono" do idoso. Essa outra assistente social achaque a instituio quem deve ser responsabilizada porque eles no

    podiam ter aceito um idoso sem documentao. Diante do impasse, se um caso de negligncia ou de abandono, a coordenadora, chamada aopinar, define a situao como "apropriao indbita" da filha que privou opai de seu dinheiro e de seus documentos. De qualquer forma,permaneceu-se no campo dos maus tratos. O encaminhamento para ocaso o de tentar localizar a filha do idoso para que ela volte a seresponsabilizar pelo pai, "como manda a Lei"

    15.

    Como demonstra esse caso, as denncias passam por um processo de"classificao" e "soluo". Nessa dupla grade de leitura, podemosperceber alguns riscos projetados para a velhice, ou para uma parte dela.Essa projeo , em parte, uma forma de organizao do risco peloestado - forma essa que envolve contnuas disputas de interpretao porparte daqueles que operam o programa - e, por outro lado, tambm ummeio de expresso da/sobre a populao mais velha

    16. O "Ligue Idoso"

    oferece um canal por meio do qual circulam representaes sobre ostipos de ameaas ao segmento mais envelhecido da populao de nossoestado.

    Os casos

    Um estudo mais atento de um conjunto de denncias pode nos fornecerpistas importantes para delinear uma imagem de velhice e de risco para avelhice que esto sendo colocados em nossa sociedade.

    O maior nmero de queixas registradas no "Ligue Idoso", em seu primeiroano de operao, concentra-se nas reas de maus tratos, ouvidoria etransportes, como j mostramos. A partir de uma amostra do universo de"casos resolvidos" de denncias de maus tratos, podemos perceber quaisso as situaes de risco mais reveladas pelo programa, os atores quefazem parte destas situaes, como se relacionam e quais categorias somanejadas para descrev-los.

    A opo pelas denncias de maus tratos meramente operacional. Seriaigualmente interessante cobrir tambm as denncias relacionadas aostransportes urbanos e os casos de ouvidoria como formas derepresentao do risco para a velhice. Mas, por uma questo de tempo eespao, limitar-me-ei ao estudo dos casos de maus tratos.

    O estudo dos chamados "casos resolvidos" justifica-se por dois motivos:1) como pesquisadora, eu no pude ter acesso s fichas de registro doscasos que ainda fossem considerados "em tramitao", ou seja, que ainda

    no haviam recebido nenhum tipo de resposta da instituio acionadapara resolv-lo. A coordenao do programa e as assistentes sociais no

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    julgaram apropriado fornecer-me esse material, sem que ele tivesse sidocontemplado pela instituio responsvel e 2) os "casos resolvidos"contm informaes sobre todo o andamento do caso at a sua supostaconcluso, o que me daria material para compreender osdesenvolvimentos da denncia, o tempo de resposta, a caracterizao

    dos envolvidos pelo rgo competente e sua relao com o "Ligue Idoso".

    Um outro ponto fundamental em relao s denncias que precisamoscompreend-las como verses de um fato e como formas derepresentao do risco na velhice. O quadro que esboamos aqui refere-se ao jogo de imagens que se produz sobre a violncia contra os idosos.Essas produes so elaboradas pelos profissionais que trabalham noprograma, pelas instituies que so acionadas para responderem pelasituao de risco denunciada e pela populao que utiliza o servio.Essas vises sobre o que a violncia contra o idoso, tratada aqui sob acategoria "maus tratos", nos mostram um conjunto de significados queatribuem sentidos ao que ser velho e qual tipo de perigo afeta essevelho em nosso estado.

    Dos 120 casos resolvidos ao longo de um ano de existncia do programa- junho de 1999 a junho de 2000 - recolhi uma amostra aleatria de 50denncias e analisei as seguintes categorias: sexo e idade das vtimas,local das ocorrncias denunciadas, grau de relao entre a vtima e oacusado, sexo do acusado, grau de relao entre o denunciante e avtima, os tipos de maus tratos e os resultados obtidos at que o caso

    fosse considerado "resolvido" pelo programa. Essas categorias foramescolhidas por que so as que constam nas fichas e nos documentosrelativos aos casos resolvidos.

    Em 50 denncias computaram-se 53 vtimas - em 2 casos as vtimas eram casais develhos. Entre essas vtimas, 45 so mulheres e apenas 8 so homens. Esse dadorevela que a imagem de violncia com a qual lidamos atravs do "Ligue Idoso" deum risco maioritariamente feminino

    17. A distribuio etria das vtimas homognea.

    Na faixa de 60 a 70 anos foram calculadas cerca de 18 vtimas; entre 71 anos deidade e 80 anos de idade, somou-se 16 vtimas e entre 81 e 90 contaram-senovamente 16 vtimas.

    As ocorrncias registradas concentram-se em outros municpios doestado do Rio (22 denncias). Na capital, Rio de Janeiro, as dennciasocorrem na zona norte (16 casos), na zona sul (11 casos) e na rea doCentro da cidade (1 caso).

    Os acusados de maltratarem os idosos possuem os seguintes modos derelacionamento com suas vtimas: 43 denncias envolviam familiares davtima como seus agressores. Esses familiares moravam com o(a)idoso(a). So cnjuge, filhos, irmos, netos ou parentes afins. Em 2casos, o acusado era um vizinho, em outros 2, o procurador, que nopossua grau de parentesco com a vtima. Em 1 caso, o agressor teria sido ummdico e em outro houve uma denncia contra a cuidadora. Um ponto curioso na

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    caracterizao do agressor, sempre que este um membro da famlia, que a fichade registro, preenchida pela assistente social, conta com alguma observao sobreidade do acusado - sempre ressaltando-se o fato de ser jovem - sua insero nomercado do trabalho - desempregado ou profissional de prestgio - e referncias aalcoolismo ou doena mental. Esse dado nos apresenta a idia de que os casos de

    agresso so percebidos como acontecendo prioritariamente dentro da casa doidoso(a) e que fatores como: juventude - sempre relativa idade da vtima, pois paraum idoso(a) de 80 anos, um agressor de 50 considerado novo; desemprego ou seuextremo oposto, uma insero em posto de prestgio no mercado; e, comportamentosdesviantes so caractersticas necessrias para se referir ao agressor.

    Em relao varivel sexo dos acusados no observamos a mesmadiferena que podemos identificar nas vtimas, j que os agressores sotanto homens quanto mulheres. Na amostra de 50 denncias, nos casosem que se identificaram o sexo dos denunciados, encontramos 25homens e 24 mulheres.

    O tipo de relacionamento entre o denunciante e a vtima o dado maisdifcil de ser identificado porque o denunciante pode manter suaidentidade sob sigilo. Em metade das denncias, ou seja, 25 casos, noh como saber o grau de relacionamento do denunciante com a vtima.Nos demais casos, observa-se que 7 denunciantes eram vizinhos davtima, 7 pertenciam a sua famlia, 4 eram instituies asilares ouhospitalares, 4 eram as prprias vtimas e 3 diziam-se amigos da vtima.O que mostra que aqueles que denunciam so ligados vtima por laosde parentesco ou de vizinhana, sendo que as prprias vtimas ou pouco

    denunciam ou tm medo de se identificar.Em relao natureza dos maus tratos identificados nas denncias,verifica-se a seguinte distribuio: negligncia (22 ocorrncias), maustratos fsicos (14 ocorrncias), apropriao de bens e penso (13ocorrncias), abandono (10 ocorrncias), maus tratos psicolgicos (8ocorrncias) e crcere privado (7 ocorrncias). A soma ultrapassa 50porque cada denncia envolve tipos diversos de agresso. A negligncia,que o tipo de agresso mais denunciada, definida pela classificaoutilizada pelo programa como a falta de cuidados com a higiene bsica, aalimentao e as condies de sade do idoso, configurando um tipo de

    violncia que afeta exatamente os idosos (as) que encontram-se emestado de dependncia por motivos de sade.

    Quanto ao processo de encaminhamento das denncias at suaclassificao como caso resolvido, procedi a uma diviso do material emduas categorias. Primeiro, quais so as providncias tomadas pelosrgos acionados pelo programa "Ligue Idoso" para solucionar o caso? E,em segundo, como vtimas e acusados procederam durante o processo.

    Em relao primeira pergunta, observa-se que em 18 dennciaschegou-se at a fase de convite para prestar depoimentos na delegacia

    do idoso; em 15 casos houve visita domiciliar pela secretaria municipal depromoo social ou pela coordenadoria regional para checar a denncia;

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    6 denncias redundaram em inqurito policial; outras 6 resultaram nainsero do idoso e de sua famlia em programas sociais; em 7 casos,alcanou-se uma soluo privada para o conflito, feita verbalmente entreos indivduos, por intermdio da assistente social, sem envolver outrasaes de interveno e 2 denncias no receberam qualquer tipo de

    encaminhamento. A soma maior que 50 porque algumas dennciascompreendem mais de um tipo de encaminhamento.

    Quanto ao segundo ponto, podemos afirmar que, em 6 casos, no houveapresentao dos envolvidos na delegacia do idoso para prestaresclarecimentos, seus endereos ou seus nomes no foram localizados.Em 22 casos, os depoentes (vtimas e acusados) negaram as dennciasna delegacia ou na ocasio da visita domiciliar. Desse universo de 22casos, em 14 casos, os depoentes no incluam as vtimas. Elas noforam ouvidas e a alegao para sua ausncia era de que estavam comgraves problemas de sade, que impediam o deslocamento at adelegacia, ou "perda de lucidez", o que invalidava seu depoimento. Em 3casos, desse total de 14, as vtimas no foram ouvidas porque j haviamfalecido antes que a visita domiciliar fosse realizada. Em 16 casos, asvisitas domiciliares ou os depoentes na delegacia confirmaram asdenncias, levando novas investigaes, ainda sem concluso. Em 2casos h desistncia por parte do denunciante de seguir adiante com adenncia, portanto, ela no encaminhada. Em outros 2 casos, no hregistro de encaminhamento da denncia por parte do "Ligue Idoso" e, emmais 2 casos, a vtima confirma a denncia enquanto os acusados negamem depoimento na delegacia, o que estabelece a necessidade de mais

    investigaes, ainda sem concluso.Desse ltimo item de anlise, gostaria de ressaltar alguns fatores queconsidero importantes.As vtimas foram ouvidas em metade dos casos -em 26 denncias, das quais 18 foram confirmadas pelas vtimas - duranteo processo de averiguao; seja na delegacia, seja pelos assistentessociais, acionados pelas secretarias municipais de promoo social.

    As denncias localizadas fora da cidade do Rio de Janeiro costumam sertratadas por essas secretarias, o que marca um tratamento bem diferentedo tratamento policial, acionado para a cidade do Rio. As secretarias

    costumam encaminhar solues via acordo verbal ou insero do idoso(a)e/ou de sua famlia em programas assistenciais18

    , enquanto que otrabalho da polcia implica na realizao de investigaes de naturezalegal e que so mais demoradas. Na cidade do Rio de Janeiro, ascoordenadorias regionais e seus assistentes sociais tambm soacionados, mas elas pouco respondem, como j sublinhamosanteriormente, restando ento a delegacia do idoso como rgointerventor nas situaes denunciadas.

    As razes para o no comparecimento das vtimas s entrevistas deesclarecimento na delegacia ou a sua desqualificao como interlocutores

    na visita domiciliar so as seguintes: no primeiro caso, a alegao maiscomum, proferida pelo prprio acusado - em geral, um parente - e

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    legitimada por um parecer mdico, de que a vtima encontra-segravemente enferma, o que a impede de se deslocar para prestaresclarecimentos na delegacia. Por motivos operacionais, a delegaciaacaba no realizando a entrevista com a vtima. No segundo caso, odepoimento da vtima tende a ser desqualificado por esta apresentar,

    segundo a famlia e o assistente social, "lapsos de memria", "perda delucidez", "alzheimer". Dessa forma, configura-se uma situao em que osdenunciantes, os acusados e as instituies envolvidas na denncia soquem falam pelo idoso(a).

    Os denunciantes, que so a ponta inicial do processo de constituio dadenncia, tm a sua verso refeita pelo relato da assistente social queatende o usurio no "Ligue Idoso". A assistente social tenta preservar aomximo o relato do denunciante, transcrevendo as palavras por eleutilizadas, mas tentando tambm resumir a situao descrita. Esseresumo costuma caracterizar o agressor, o estado fsico da vtima e asituao de agresso. A descrio da denncia encaminhada a um oumais rgos competentes e aguarda parecer e soluo dessa instituio,portanto, ela quem dar a verso final e reencaminhar ao "Ligue Idoso"para fins de arquivamento do caso. Cito um caso exemplar:

    A descrio da denncia diz que: "a idosa vive abandonada num stio,segundo denunciante. Os parentes levaram a idosa para viver no stio,mas no cuidam da mesma, que se encontra em total abandono, semhigiene, sem alimentao, com as unhas grandes, doente e sematendimento mdico". Esse caso ocorreu numa cidade do interior do

    estado. A secretaria de promoo social dessa comunidade mandou ummdico e uma assistente social ao local para "vistoria". A resposta,encaminhada um ms depois de feita a denncia, diz: "a idosa lcida,no sofre maus tratos fsicos, nem est abandonada, h uma pessoa quemora em outra casa do stio. Mas, ser encaminhada ao hospital pblicoda regio para exames mdicos. Sua casa (nos fundos do stio) desorganizada e suja porque a idosa no cuida da casa e no permiteque ningum entre na casa para faz-lo."

    O relato dos profissionais que fizeram a visita casa da idosa toma umsentido bem diferente daquele que est exposto na denncia. A denncia

    tende sempre a acentuar a gravidade do caso e a condio de objeto davtima, ao passo que os pareceres institucionais acabam por ressaltaroutras motivaes e outra organizao do caso sem, no entanto, tirar avtima de sua condio. A idosa est mesmo numa situao de risco queexige soluo, mas a situao produzida pela insistncia da idosa em"no cuidar da casa e no deixar que algum o faa".

    Outro caso ilustrativo desse processo de reinterpretao da denncia temlugar na cidade do Rio de Janeiro e encaminhado delegacia do idoso:

    A denncia feita por uma das filhas da vtima, isso descoberto depois,

    quando os envolvidos se apresentam delegacia: "Idosa tem sofridomaus tratos por parte do filho de 38 anos e de sua nora. A idosa mora em

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    uma casa deixada pelo esposo, j falecido. A idosa reside com duas filhasque no podem reagir em favor da me, pois so agredidas e espancadaspelo irmo. Uma das irms estava grvida e, aps ter sido agredida peloirmo, perdeu o beb.

    Todos os envolvidos prestam esclarecimento na delegacia e o que sedesenrola um drama familiar que tem como pano de fundo a luta dosherdeiros pela posse do terreno deixado pelo pai. A famlia mora nummesmo terreno no subrbio do Rio, em casas separadas. O irmo se diz"perseguido e injustiado" pelas irms que "manipulam a me". Ele chegaa acus-las de terem provocado a morte do pai para ficar com o terreno.Elas, por sua vez, acusam-no de maus tratos e de querer apropriar-se doterreno. A me j havia aberto processo contra o filho por lesescorporais e acaba entrando com um processo de reintegrao de posse,no se sabe se j concludo ou no, para expulsar o filho e a nora de suapropriedade.

    Outro fato que gostaria de destacar e que o trabalho do "Ligue Idoso" nosrevela que os acordos verbais para soluo de conflitos so feitosbaseados na crena da instituio de que ela pode exercer algum tipo deautoridade moral sobre os indivduos. Cito a seguinte denncia ocorridanum municpio da Baixada Fluminense:

    "Os idosos vm sofrendo agresses fsicas por seu filho, 43 anos,desempregado, alcolatra. Quando est alcoolizado, agride fisicamenteos seus pais, precisa os vizinhos interferirem para tentar socorr-los."

    A prefeitura envia um assistente social que relata a seguinte visitadomiciliar: "conversou-se com o casal e o filho, que estava alcoolizado.Este verbalizou que de fato maltrata os pais quando faz uso de bebidaalcolica, mas que, a partir de agora, jamais o far. Orientamos o casalsobre seus direitos e demos uma advertncia verbal ao filho."

    Alm de serem reinventadas, as denncias so tambm confirmadas ounegadas pelos envolvidos, o que configura a participao de agressores evtimas nesse jogo de verses. Como j explicitei, as vtimas foramouvidas em 26 denncias; em 8 casos as vtimas negaram o teor da

    denncia e em 18 casos houve a confirmao da violncia pela prpriavtima, o que no quer dizer que ela reconhea os agressores comoculpados, em 1 caso de negligncia e em outro de apropriao de bensforam ditas as seguintes frases pelas vtimas envolvidas: "foi tudo um malentendido", "est tudo superado agora". Quanto aos acusados, eles soouvidos em 40 denncias e somente em 16 casos h confirmao dadenncia pelo prprio agressor e, em 24, h negao. curiosolembrarmos que das 26 vezes em que as vtimas foram ouvidas, em 5casos, possvel percebermos claramente mecanismos dedesqualificao da verso da vtima. Cito um exemplo particularmentedramtico.

    O relato da denncia diz: "idosa relata que proprietria h 40 anos no

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    prdio onde mora. de origem polonesa, tem familiares, mas no temnenhum contato, vive sozinha, muito lcida e correta com suasobrigaes, anda com dificuldades. A mesma denuncia que todas asvezes que sai para pagar suas contas, seu apartamento roubado.Afirma que so o porteiro e a sndica do prdio."

    Porteiro e sndica apresentam-se delegacia do idoso com umdocumento do corpo de bombeiros, afirmando que o arrombamento doimvel se deu uma vez, "a pedido dos moradores devido ao forte cheiroque exalava do local, foco de sujeira e ratos." A idosa reputada como"algum que vive muito isolada e est sempre reclamando com a sndica".

    Diante dessa resposta, o programa "Ligue Idoso" aciona ento oconsulado da Polnia com vistas a encontrar referncias familiares dessasenhora para reintegr-la aos parentes. Portanto, de denunciante evtima, a idosa passa a ser vista como algum que j sofre os efeitos dasenilidade e necessita da reintegrao familiar, muito embora, a mesmano tenha manifestado nenhum desejo explcito de rever seus parentes.

    A imagem de violncia contra os idosos que se apresenta a partir dosdados do "Ligue Idoso" aponta para uma vtima do sexo feminino, emsituao de dependncia por motivo de sade, agredida por membros desua famlia, em sua casa. Essa vtima no conta com as mesmas chancesdo agressor de ser ouvida pelas instituies que se atribuem a tarefa deinvestigar a denncia. Ao ser ouvida encontra ainda algumas dificuldades,como a de ver seu discurso ser filtrado pelas lentes dos profissionais

    mdicos e assistentes sociais que detm o poder de legitimar sua fala.Essa condio limitadora da palavra da vtima no , creio eu,prerrogativa dos mais velhos. Encontramos mecanismos dedesqualificao do discurso operando em vrios setores marginalizadosda populao. Se quisermos buscar uma imagem de velhice, atravs domaterial do "Ligue Idoso", o que encontramos um tipo de velhicereclusa, doente e desamparada, bem diferente da imagem mais modernaque se tem da "velhice saudvel", alvo principal, como podemos ver noincio desse artigo, das legislaes atualmente voltadas para a "terceiraidade" em nosso estado.

    Notas

    * A autora professora assistente da Escola de Servio Social daUFRJ, mestre em sociologia pelo IUPERJ e doutoranda em antropologiasocial pelo Museu Nacional.

    1 O prprio uso do nome idoso ou idosa, e no o termo velho ouvelha, j uma forma de imprimir uma certa qualidade ao indivduo que classificado dessa maneira em nossa sociedade. O idoso seria uma formamais polida, enquanto o termo velho seria depreciativo. A expressoterceira idade, de uso mais recente, comportaria uma dimenso positiva e

    exalta um tipo atual de experincia da velhice, a "velhice ativa".

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    (Motta,1997)

    2 claro que os clculos de risco esto baseados em dadosestatsticos sobre incidncia de determinados tipos de acidentes, doenase mortes na populao. Dados do Ministrio da Sade e do IBGE

    apontam para uma distribuio etria desses riscos. Mas, o que nosinteressa aqui ver como, junto com essas estimativas numricas,constrem-se tambm um conjunto de atributos, de acusaes e deexpectativas em torno do comportamento de membros de determinadasfaixas etrias.

    3 Podemos considerar que a legislao previdenciria como um todo,ao construir a figura do aposentado, delimita tambm uma imagempossvel de velhice, aquela estritamente relacionada ao fim da vidaprodutiva e relacionada diretamente com o mundo do trabalho. Nesse

    artigo procurei alencar as legislaes que tomam o termo velhice e ovelho como referncia, independente de sua relao com a esfera dotrabalho.

    4 Atravs da Lei n.9.032/95, "concede-se a aposentadoria por idade,aos 55 anos para a rurcola e aos 60 anos para o trabalhador rural e asegurada urbana, e aos 65 anos, para o segurado urbano." ( Martinez,1997, 24)

    5 Entende-se por famlia "a unidade mononuclear, vivendo sob omesmo teto cuja economia mantida pela contribuio de seusintegrantes" e considera-se como famlia incapacitada de prover amanuteno do idoso "aquela cuja renda mensal de seus integrantes,dividida pelo nmero destes, seja inferior a 1/4 do salrio mnimo percapita."

    6 O cap.V da referida Lei, que faz referncia ao Conselho Nacional,teve seus artigos vetados.

    7 Nesse artigo refiro-me exclusivamente s polticas estaduais emunicipais referentes ao Rio, local onde estou realizando meu trabalho de

    campo.

    8 Devemos tomar cuidado ao tratar desse tema. O aumento donmero de leis voltadas para as pessoas mais velhas no correspondenecessariamente a um atendimento das demandas reais dessas pessoas,mas a um crescimento de sua visibilidade enquanto grupo socialespecfico e a criao de uma imagem do que deve ser a velhice e osvelhos.

    9 Meu trabalho comeou a ser realizado em setembro de 2000,

    perodo de governo de Anthony Garotinho no estado do Rio.

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    10 A Subsecretaria de Ao Social e Cidadania no perodo em querealizo o trabalho de responsabilidade de Rosngela Matheus, esposado governador

    11 Dos 20 programas que esto atualmente em operao, somente 2so exclusivamente dedicados aos idosos contra 9 destinados a crianase jovens. O restante possui como pblico-alvo dependentes qumicos,populaes de rua e famlias de baixa renda.

    12 No meu primeiro dia de trabalho de campo, medi o tempo dosatendimentos: o que durou menos tempo, levou cerca de dois minutos e oque levou mais tempo, cerca de 10 minutos. Ambos eram casos de maustratos.

    13 Como no h uma estatstica sobre os denunciantes porque estes

    no so identificados, ficamos sem saber quem so as pessoas que ligampara o servio a fim de denunciar maus tratos e outras formas dedesrespeito aos direitos dos idosos. Algumas vezes, o denunciante podeser a prpria vtima ou algum prximo, como um vizinho ou parente,como tive a oportunidade de observar durante o trabalho de campo. Outrofator importante para se ter em mente ao falarmos dos denunciantes no"Ligue Idoso" o fato de que a ligao para o programa, alm dedepender de um custo financeiro e social - posse de telefone, custo daligao ou acesso fcil a esse meio de comunicao - depende tambmda circulao de informao na sociedade sobre a existncia do servio,um entendimento de seus objetivos e uma valorizao da eficcia dessetipo de ao estatal. Esses requisitos acabam por limitar o alcance doprograma aos setores "mais bem informados" da sociedade e queencontram-se, em maior proporo, entre as pessoas de estratos mdiosda populao. Por isso, as denncias que aqui aparecem j surgem comesse primeiro vis.

    14 As instituies mais acionadas pelo "Ligue Idoso" em casos demaus tratos so a delegacia (especializada para a terceira idade) e assecretarias de promoo social dos municpios. Nas 50 denncias queestudei mais profundamente pude observar que a delegacia foi acionada

    35 vezes e as secretarias 17 vezes. Em todas as vezes alguma respostafoi encaminhada ao "Ligue Idoso". O tempo que decorre entre arealizao da denncia e a considerao de que o caso encontra-seresolvido varia de acordo com a instituio acionada. No caso dadelegacia, entre as denncias que compem a minha amostra, o tempomdio de resposta de 3 meses. No caso das secretarias municipais, otempo mdio de resposta de 2 meses. As coordenadorias regionais, nas50 denncias que coletei, foram acionadas 10 vezes e s responderam adois casos, nesses o tempo de soluo foi de 1 ms.

    15 Na Constituio Federal de 1988 e, mais especificamente,

    na Poltica Nacional do Idoso, estabeleceu-se que a famlia deveser a principal responsvel pelo cuidado do idoso. Para viabilizar

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    esse tratamento, atualmente formula-se uma srie de estratgiasno-asilares para o cuidado do idoso, previstas na PolticaNacional do Idoso. O debate sobre as opes no-asilares aindaest em curso em nossa sociedade pois rompe com a tradioasilar que sempre prevaleceu em nossa poltica de assistncia.

    16 Durante o perodo que freqentei a sala do programa, presencieialguns casos interessantes e ouvi inmeras histrias contadas pelasassistentes sociais sobre o uso que as pessoas faziam do telefone do"Ligue Idoso". Eram constantes os telefonemas para "falar mal dogoverno", "para pedir emprego", "para conversar um pouco" e nofaltavam denncias "curiosas", como a da senhora que ligou para pedirque se tomassem providncias contra os "espritos do alm" que invadiamseu apartamento e roubavam suas coisas. Essas formas de expressojocosa no somente serviam para tornar mais leve o cotidiano dotrabalho, mas tambm como maneiras de revelar os diferentes sentidosque um servio pode ter para o usurio, alm do sentido oficial.Infelizmente, no temos uma observao mais precisa dessestelefonemas que escapam lgica da classificao.

    17 Um fator que pode explicar tambm esse grande nmero demulheres figurando como vtimas o fato de termos mais mulheres idosasdo que homens na populao. A populao residente, com mais de 60anos, projetada pelo IBGE para o estado do Rio de Janeiro estima em842.340 mulheres e 604.277 homens. Mas, de qualquer forma, aproporo de vtimas mulheres bastante elevada e deve merecer uma

    investigao mais aprofundada. Podemos pensar tambm na hiptese deque as pessoas que denunciam os casos podem tender, elas tambm, aperceber mais a violncia gerada contra as mulheres enquanto que aviolncia contra os homens, nessas situaes de velhice, permaneceoculta.

    18 Esse procedimento, comumente adotado pelas secretarias, ilustracomo o que tem incio como uma denncia de maus tratos acaba sendotransformado em uma situao de carncia da famlia na qual estinserido o idoso(a), exigindo uma soluo via poltica de assistncia.

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    Abstract

    This article has as its main purpose to analyse the meaning sociallyproduced of the violence against old people. To achieve this purpose, thearticle describes and analyses a governamental programme called "Ligue

    Idoso". This programme receives complaints of violence against oldpeople and take them to the proper institutions. Through the work of the

    professionals involved with it, one can observe the conflicts and theinterpretations about what violence against old people is, which treatment

    it must have, who the old people are and who the offenders may be.

    Keywords: oldness, violence, public policy and city.

    Recebido para publicao em 14/12/2000

    Aprovado em 26/3/2001

    Correspondncia para: E-mail: [email protected]

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