A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO COMO UMA POLÍTICA RACIAL DE … · 2 A igualdade e a diferença...

12
1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO COMO UMA POLÍTICA RACIAL DE CONTROLE: A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO CONTROLE SOBRE O CORPO DA MULHER NEGRA Inara Flora Cipriano Firmino 1 Resumo: A pesquisa tem como objetivo fazer uma análise histórica da criminalização da prática do infanticídio e do aborto entre as mulheres brasileiras sob uma perspectiva racial. Buscamos analisar a valoração legal estabelecida pelo Estado brasileiro quando dacriminalização de uma das formas de resistência das mulheres negras ao sistema escravagista, bem como abordar alguns dos desdobramentos sócio-jurídicos resultantes desse sistema ao longo do processo histórico brasileiro. A regulamentação desses dois delitos, que aindahojerepresentam delitos característicos de mulheres subalternizadas pela conjuntura econômica e social, demonstra formas de controle da atuação de nossos corpos negros. A análise do tema dialoga com os debates tendentes a afirmar que a imagem do povo negro continua, ainda hoje, a ser criminalizada, negativizada e subalternizada,não apenas socialmente, mas principalmente pela manutenção da lógica da criminologia e do direito penal, por meio de sua dinâmica institucional de construção do suspeito/criminoso. Em termos metodológicos, o trabalho apoia-se em abordagem histórica e crítica do direito penal brasileiro, privilegiando as perspectivas dos estudos Pós-coloniais. Em termos de relevância, esperamos que os resultados possam ampliar as discussões sobre a relação de poder entre o direito e a população negra, bem como sobre a condição de subalternização da mulher negra na sociedade brasileira. Palavras-chave: Criminologia racial. Mulheres negras. Infanticídio. Aborto. 1 Introdução No Brasil, as assimetrias que existem na sociedade são mascaradas através da edificação de uma falsa imagem de democracia racial e social, de um ideal no qual seria inconcebível a existência de qualquer forma de violência ou qualquer forma de autoritarismo estatal exercido por meio de aplicação legal. Em função do passado histórico do país, marcado pelo período escravagista de desumanizaçãodo negro, essa assimetria pende de maneira negativa na construção social da individualidade desse grupo subalternizado, que sempre esteve inserido na sociedade, mas na condição de escravos e não de pessoas; na condição de subalternos e não de cidadãos apresentando, portanto, um status de objeto e não de sujeito. 1 Advogada, graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP). Natural de São Paulo, São Paulo, Brasil.

Transcript of A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO COMO UMA POLÍTICA RACIAL DE … · 2 A igualdade e a diferença...

Page 1: A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO COMO UMA POLÍTICA RACIAL DE … · 2 A igualdade e a diferença entre mulheres negras e mulheres brancas Realizando um exame retrospectivo na história

1

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO COMO UMA POLÍTICA RACIAL DE

CONTROLE: A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO CONTROLE SOBRE O CORPO

DA MULHER NEGRA

Inara Flora Cipriano Firmino1

Resumo: A pesquisa tem como objetivo fazer uma análise histórica da criminalização da

prática do infanticídio e do aborto entre as mulheres brasileiras sob uma perspectiva racial.

Buscamos analisar a valoração legal estabelecida pelo Estado brasileiro quando

dacriminalização de uma das formas de resistência das mulheres negras ao sistema

escravagista, bem como abordar alguns dos desdobramentos sócio-jurídicos resultantes desse

sistema ao longo do processo histórico brasileiro. A regulamentação desses dois delitos, que

aindahojerepresentam delitos característicos de mulheres subalternizadas pela conjuntura

econômica e social, demonstra formas de controle da atuação de nossos corpos negros. A

análise do tema dialoga com os debates tendentes a afirmar que a imagem do povo negro

continua, ainda hoje, a ser criminalizada, negativizada e subalternizada,não apenas

socialmente, mas principalmente pela manutenção da lógica da criminologia e do direito

penal, por meio de sua dinâmica institucional de construção do suspeito/criminoso. Em

termos metodológicos, o trabalho apoia-se em abordagem histórica e crítica do direito penal

brasileiro, privilegiando as perspectivas dos estudos Pós-coloniais. Em termos de relevância,

esperamos que os resultados possam ampliar as discussões sobre a relação de poder entre o

direito e a população negra, bem como sobre a condição de subalternização da mulher negra

na sociedade brasileira.

Palavras-chave: Criminologia racial. Mulheres negras. Infanticídio. Aborto.

1 Introdução

No Brasil, as assimetrias que existem na sociedade são mascaradas através da

edificação de uma falsa imagem de democracia racial e social, de um ideal no qual seria

inconcebível a existência de qualquer forma de violência ou qualquer forma de autoritarismo

estatal exercido por meio de aplicação legal. Em função do passado histórico do país, marcado

pelo período escravagista de desumanizaçãodo negro, essa assimetria pende de maneira

negativa na construção social da individualidade desse grupo subalternizado, que sempre

esteve inserido na sociedade, mas na condição de escravos e não de pessoas; na condição de

subalternos e não de cidadãos apresentando, portanto, um status de objeto e não de sujeito.

1Advogada, graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo

(FDRP/USP). Natural de São Paulo, São Paulo, Brasil.

Page 2: A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO COMO UMA POLÍTICA RACIAL DE … · 2 A igualdade e a diferença entre mulheres negras e mulheres brancas Realizando um exame retrospectivo na história

2

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

O abismo entre a justiça e a sociedade, principalmente das categorias subalternizadas,

criou-se a partir do imaginário dos negros representarem o que foi chamado de classe

perigosa. E aumenta na medida em que o nosso Sistema Jurídico mostra-se conservador,

racista, machista, com informações e recursos escassos para as demandas dessa população.

Assim, o pleno exercício da cidadania é, quando não restrito, negado a essas categorias.

Falar da relação entre racismo e direito significa discutir a forma de judicializar esse

fato social. É a discussão sobre o tratamento jurídico despendido aos problemas que envolvem

a questão racial. E dessa discussão é possível perceber que o processo de democratização das

instituições do Sistema Judiciário Brasileiro não impediu a perpetuação de um pensamento

racializado por entres órgãos do Poder Judiciário por dois motivo: (a) os estereótipos e

estigmas criados em torno da figura do negro na sociedade brasileira ainda são muito fortes e

(b) o racismo institucional, evidenciado na forma como a lei é aplicada pelos magistrados, e

também reproduzido, quando nos atentamos à falta de representatividade negra nesses órgãos.

O Sistemade Justiça criminal corroborou com a perpetuação dos ideias da

Criminologia Positivista trazidos no século XIX e permanece, até os dias de hoje, com o

mesmo objetivo de controle sobre o corpo negro. Opondo-se a esse posicionamento, a teoria

crítica tem com a ciência criminal um embate constante no sentido de reconstruí-la e

transforma-la de acordo com a realidade social. Na perspectiva da teoria crítica racial e da

crítica feminista, tem-se como pressuposto contribuir para a construção da equidade entre

cidadãos contra as todas as formas de opressão por razões de gênero, raça, etnia, religião,

classe ou sexo.

Partindo do pressuposto de que a ciência não é neutra ou livre de ideologias quando

discute questões relativas à raça e a gênero, a proposta do texto encontra-se na

demonstração da instrumentalização do corpo da mulher negra como o corpo da mulher

delinquente, transgressora das normas sociais e dos textos normativos desde o período

escravagista no Brasil.

2 A igualdade e a diferença entre mulheres negras e mulheres brancas

Realizando um exame retrospectivo na história da escravidão e na experiência das

mulheres negras escravizadas, a sua condição de coisa somava-se o sexismo e o racismo como

um nó de opressão nas vidas dessas mulheres negras. Direcionar o olhar a essas mulheres

Page 3: A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO COMO UMA POLÍTICA RACIAL DE … · 2 A igualdade e a diferença entre mulheres negras e mulheres brancas Realizando um exame retrospectivo na história

3

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

requer que especificidades em relação à mulher negra escrava sejam abordadas, pois, neste

período de extrema opressão a população negra, significa penetrar no universo de quem viveu

a experiência de ter sua identidade invisibilizada, a sua sexualidade estigmatizada, constantes

submissões a violências sexuais, e constantes ações de resistência à perversidade do sistema.

Sueli Caneiro inicia o texto “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na

América Latina a partir de uma perspectiva de gênero” esclarecendo como o discurso do mito

da democracia racial e da crença de um povo miscigenado perpetrada por senhores brancos

criaram o ideal de igualdade entre as mulheres. Entretanto, a violência sexual ou os estigmas

erotizados de um corpo de mulher recaem sobre a pele negra.

As relações de gênero são mantidas de acordo com a cor ou raça instituídas no período

escravagista. Nesse sentido, constrói-se o questionamento sobre o ideal de igualdade de

gênero, pois as mulheres negras resultam de experiências históricas diferenciadas “que o

discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim como não tem dado

conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade

feminina das mulheres negras. ” (CARNEIRO, 2011).

Apesar de toda transformação social das condições de vida e papel das mulheres em

todo o mundo, principalmente depois dos movimentos que marcaram o ano de 1968, as

mulheres negras continuam a viver uma situação marcada por uma discriminação que é

interseccional, ou seja, são mulheres vitimizadas por múltiplas opressões, que não se

hierarquizam, mas que marcam seus corpos de maneira a subalternizá-las e diferenciá-las.

Assim, a feminista negra Kimberé Crenshaw apresenta interseccionalidade como o produto

resultante da frequente interação entre o racismo e o sexismo na experiência das mulheres de

cor.

O rebaixamento e a anulação da mulher negra, desde sua chegada em terras brasileiras,

apresentam algumas marcas definidoras de sua submissão, sempre passando pela isotopia do

corpo ligado a sexualidade. Em um primeiro momento, o seu corpo foi visto como um

instrumento de trabalho empregado na produçãoa grícola e nos cuidados das casas senhoriais.

Além disso, elas também eram objetos sexuais dos senhores, sendo que a satisfação sexual do

senhor, através de estupros naturalizados, resultava na “mulher negra como cavalgadura da

sociedade brasileira” (NASCIMENTO, 2008, p. 51).

Page 4: A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO COMO UMA POLÍTICA RACIAL DE … · 2 A igualdade e a diferença entre mulheres negras e mulheres brancas Realizando um exame retrospectivo na história

4

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

O segundo momento é marcado pelo estigma da mulher negra como matriz de cria

para a servidão, pois dessas relações sexuais forçadas – com homens brancos, pretos, pardos

ou mestiços – para além das relações desejadas com seus maridos ou companheiros, as

crianças nascidas eram benefícios para os senhores.

Como escravas, essas mulheres tinham todos os outros eixos de suas vidas ofuscados

pelo trabalho compulsório. Para um sistema que detinha o povo negro como uma propriedade,

as mulheres e os homens eram tidos como uma unidade de trabalho lucrativa. Em

cumprimento desse papel na sociedade escravagista, as mulheres negras apenas

ocasionalmente eram esposas, mães ou donas de casa e, assim, contrariavam, segundo Angela

Davis, a crescente ideologia de feminilidade do século XIX, que “enfatizava o papel das

mulheres como mães protetoras, parceiras e donas de casa amáveis para os seus maridos.

(DAVIS, 2016, p. 20).

É interessante, para nós, constatarmos o impacto sobre a comunidade negra da

desumanização e subalternização que recai sobre a mulher negra sempre representada

negativamente. Os efeitos da oposição do ideal da igualdade de gênero e a real diferenciação

entre mulheres negras e brancas. O propósito da discussão se faz, então, da demonstração de

como essa representação negativa e estigmatizada autoriza a violência e a violação dos

direitos das mulheres negras, facilitando as práticas de racismo institucionalizado no âmbito

do sistema criminal.

3 A criminalização do silêncio: pode o subalterno falar?

A gente tá falando das noções de consciência e de memória. Como consciência a

gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do

esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a

memória, a gente considera como o não-saber que conhece, esse lugar da

emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência

exclui o que memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição,

consciência se expressa como discurso dominante (ou efeitos do discurso numa dada

cultura, ocultando memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma

como verdade. (GONZALES, 1984, p,226)

Angela Davis inicia a obra “Mulher, raça e classe” com uma interessante análise

histórica sobre a condição da mulher negra no período da escravidão nos Estados Unidos.

Essa análise fundamenta-se na indicação de uma das formas de resistência das mulheres

negras ao sistema escravagista e as mazelas resultantes desse sistema ao longo do processo

histórico. Assim como essas mulheres negras norte americanas, as mulheres africanas

Page 5: A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO COMO UMA POLÍTICA RACIAL DE … · 2 A igualdade e a diferença entre mulheres negras e mulheres brancas Realizando um exame retrospectivo na história

5

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

escravizadas no Brasil foram consideradas bens móveis e aptas a praticar todo e qualquer

trabalho realizado pelo homem escravo. Não menos exploradas do que os homens

escravizados, as mulheres negras tinham sua condição de mulher invisibilizada diante do

papel multidimensional desempenhado por elas nas fazendas e nas comunidades escravas.

O paralelo realizado entre o histórico das mulheres negras escravizadas nos EUA com

as escravizadas no Brasil nos permite a observação de uma realidade comum dessas mulheres,

qual seja: de reprodutoras de mão de obra e não de mães. Elas não possuíam qualquer direito

legal sobre as crianças nascidas, que poderiam ser vendidas e separadas das mães em qualquer

idade e a qualquer momento.

Com toda a exigência de desempenho, as mulheres negras, proporcionalmente,

“sempre trabalharam mais fora de casa do que suas irmãs brancas. O enorme espaço que o

trabalho ocupa hoje na vida das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os

primeiros anos de escravidão.” (DAVIS, 2016, p. 17). Como escravas, essas mulheres tinham

todos os aspectos de sua existência silenciados pelo trabalho forçado, pela exploração, maus

tratos e violações sexuais de seus donos, sendo essa a repercussão maior da escravidão sobre

o corpo das mulheres negras.

A opressão estava estampada através de seus corpos. Corpo que se tornou um

importante demonstrativo não só de sofrimento, mas também de resistência. Ao analisar todo

o material de leitura relativo à construção do corpo da mulher negra por meio do

silenciamento de sua condição de mulher, pareceu-me importante considerar como e porque

essas mulheres escravas, às vezes, escolheram o aborto como ato óbvio de resistência atuado

em seus corpos físicos, para questionar as imposições da sociedade branca patriarcal e do

sistema de escravidão, que o povo africano foi forçado a viver. O mesmo incômodo surgiu

sobre os atos de infanticídio que envolveram os corpos dos filhos dessas mulheres, que

também estavam destinados ao castigo da escravidão.

Resistir a essa relação de poder que lhes era imposta era uma forma de alcançar a

sobrevivência ou a liberdade para essas crianças, antes que fossem submetidas ao sistema

escravocrata. Este foi o momento em que seus corpos foram instrumentos de submissão e

obediência camuflados em estratégias de resistência (SILVA, 2010, p. 3).

Page 6: A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO COMO UMA POLÍTICA RACIAL DE … · 2 A igualdade e a diferença entre mulheres negras e mulheres brancas Realizando um exame retrospectivo na história

6

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Minha leitura, então, sugere que a busca da resistência das mulheres à escravidão

significa lidar com silêncios e lacunas ao domínio de um racismo que já se constituía

estrutural e institucional, e com atenção ao gênero na formação da resistência escrava.

Atenção direcionada às mulheres negras que, ainda, sofrem com o nó interseccional de

opressão, que opera para promover sua exclusão e subalternização diante do privilégio branco.

O problema da interseccionalidade não está no fato de não abordar um único tipo de

discriminação de forma completa, mas sim no fato de uma gama de violações de direitos

humanos ficarem obscurecida quando se deixa de considerar a subalternização histórica

desses atores sociais (CRENSHAW, 2002, p.178). “Como todo mito, o da democracia racial

oculta algo para além daquilo que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que

exerce sua violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra” (GONZALES,

1984, p. 228).

Em 1871, com a promulgação da Lei do Ventre Livre, as crianças, mesmo que

nascessem do ventre de escravas, ganhavam a condição de liberdade, mas continuavam a

viver junto a seus familiares nas escravarias. Aos senhores proprietários de suas mães cabia a

oportunidade de escolha entre a prestação de serviços dessas crianças a partir dos oito anos ou

o pagamento de indenização pela criação.

De acordo com o Relatório do Ministro da Agricultura, de 1885, do total de

quatrocentos mil ingênuos – foi com essa denominação que os filhos livres das escravas

passaram a ser conhecidos2 –registrados até aquele momento, apenas cento e dezoito foram

entregues ao Estado em troca da indenização de 600$000, número que não correspondia a

0,5% do total de crianças nascidas livres de mãe escrava em todo opaís (TEIXEIRA, 2007,p.

59).

Outro fator legal que limitava a proteção da escrava da liberdade de seu filho estava na

legislação de 1869 e 1871, que proibia a separação de mães e filhos, pela venda, de crianças

escravizadas menores de quinze anos na primeira data e menores de doze anos na segunda.

Mas essa lei não era uma certeza para essas mulheres, pois, em muitas ocasiões, a lei de

2Otermo“cria”também foiutilizadocomoformadedenominação,nosprimórdiosdoséculoXIX,ascrianças

emgeral.Comotempo,essetermopassou adesignarapenasofilhodaescrava,sendousadocomodistintivo

daquiloquenãonecessariamenteeratidocomohumano.Porisso,otermo“criadacasa”erautilizadoparadesignar

ofilhodaescravaquesetornavaum“protegidoprivilegiadodosenhorqueotememsuacasa.”(MATTOSO,

1991,p.128).

Page 7: A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO COMO UMA POLÍTICA RACIAL DE … · 2 A igualdade e a diferença entre mulheres negras e mulheres brancas Realizando um exame retrospectivo na história

7

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

proteção à família escrava não impedia a comercialização das crianças desacompanhadas de

seus familiares.

Assim, em muitas situações, não havia alternativa às escravas que não fosse o aborto

ou o infanticídio. A narrativa sobre a história de Sethe,trazida na obra de Karina Bidaseca é

muito ilustrativa sobre a condição da mulher negra e o que simboliza a escolha pelo aborto ou

infanticídio de seus filhos como forma de resistência.

Por cierto, la mujeres en India, en Estados Unidos o en cualquier otro lugar, la

subalternad el subalterno. Es objeto de apropiación del hombre; su cuerpo, el

territorio soberano dela conquista. Y ese cuerpo como símbolo trasciende los

tiempos históricos, las guerras o los mensajes mafiosos. Como ayer en India o en

Estados Unidos, hoy, en Ciudad Juárez, elcuerpo feminino estrofeo.

Sethe supo lo que significa para una mujer que alejen a sus hijos cuando sus pechos

están llenos de leche, que la golpeen hasta el hartazgo para quitarle su leche. Fue

violada por su amo y por los otros esclavos de Sweet Home,un eufemismo poco feliz

para el nombre de la plantación que se sostenía bajo un sistema de leyes esclavistas

que colaboraron en ese denigrante destino.

Los disímiles contextos de enunciación – colonialismo y esclavitud – denuncian

diferentes maneras de dar muerte. Como muestran ambos textos,no hay sólo una

forma de morir. La narrativa de Sethe cambia nuestro sentido ético cuando

comprendemos que en la sociedad norte americana de entonces,el infanticidio era

expresión de la resistencia a la esclavitud; cuando las madres sabían que las

niñas,“que aún no habían cambiado los dientes de leche eran vendidas sin darles la

oportunidad siquiera de despedirse de ellas”

Sethe comete infanticido pero no es infanticida. La narrativa criminal de Sethe se

vuelve una narrativa de liberación. Sethe no mata, libera, como las mujeres que

también quisieron liberar a Chandra (BIDASECA, 2010, p.17-18).

Assim, os infanticídios,vistos sob esse prisma, seriam, sobretudo, a única e trágica

forma visualizada pela mãe escrava de livrar seus filhos da escravidão. A mesma ideia pode

ser percebida de um fragmento apresentado por Angela Davis, em que a autora apresenta

a narrativa de uma escrava negra do Sul dos Estados Unidos:

Virgínia, 1812: “ela disse que, para ela, não era cedo demais para que se

revoltassem, já que preferiria estar no inferno a estar onde estava”. Mississipi,

1835: “ela pediu a Deus que tudo estivesse acabado e enterrado, porque estava

cansada de servir a gente branca [...]”.

Pode-se compreender melhor agora uma pessoa como Margaret Garner, escrava

fugitiva que, quando capturada perto de Cincinnati, matou a própria filha e

tentou se matar. Ela se comprazia porque a menina estava morta – “assim ela

nunca saberá o que uma mulher sofre como escrava” – e implorava para ser

Page 8: A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO COMO UMA POLÍTICA RACIAL DE … · 2 A igualdade e a diferença entre mulheres negras e mulheres brancas Realizando um exame retrospectivo na história

8

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

julgada por assassinato. “Irei cantando para a forca em vez de voltar para a

escravidão.” (DAVIS, 2016, p. 34)

Importante se faz a observação da narrativa dessas mulheres e que tal observação seja

feita inserida no contexto social, político e econômico ao qual elas estavam/estejam inseridas.

A modelagem do processo de criminalização de uma manifestação corporal de mulheres

negras subalternizadas se deu, justamente, se a observância da narrativa, subjetividade ou

identidade das mulheres que viam na condição de praticar tais atos. De maneira oposta, a

norma criminalizadora é imposta fundamentada na argumentação da suposta

“monstruosidade” da conduta, mas que, em verdade, representava a função do direito penal

em relação às mulheres negras: a punição por exercerem uma quebra simbólica do poder dos

dominadores.

Essas vozes não foram ouvidas, mas ao contrário, essas vozes foram e ainda são

silenciadas por um discurso jurídico construído e reproduzido sobre diferentes narrativas e

identidades3. Esse discurso jurídico absorveu a subjetividade das mulheres negras ao

criminalizar uma expressão de dor. A criminalização das mulheres é, portanto, um processo

historicamente construído sobre as bases do exercício da dominação econômica de um Estado

fundado em raízes racializadas e patriarcais.

Nessa perspectiva, Patricia Hill Collins demonstra como as condições históricas

específicas trazidas destas narrativas como a escravidão, a segregação racial e o patriarcado

proporcionaram a formação de um discurso diferenciado sobre as mulheres negras, sobre o

significado que elas carregavam da maternidade e sobre a separação da vida social entre

esfera pública e privada. Ao propor o termo motherwork, Collins aponta para a necessidade de

se construir uma análise sobre a maternidade da mulher negra com o objetivo de desconstruir

as narrativas feitas por colonizadores (homens brancos e negros) sobre as colonizadas

(mulheres negras subalternizadas). (COLLINS, 1994, p. 47 ss)

No Código Penal de 1890 já havia a previsão do exame de corpo de delito nos recém-

nascidos, na tentativa de se controlar esta conduta que começava a apresentar caráter delitivo.

Em 05 de maio de 1944, passou a ser de competência da Delegacia de Costumes,Tóxicos e

3Dados do Ministério da Justiça, 2014, dizem que, em relação à raça, cor ou etnia, destaca-se a proporção de

mulheres negras presas (67%) – duas em cada três presas são negras. Na população brasileira em geral a

proporção de negros é de 51%, segundo dados do IBGE. (http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-

da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf)

Page 9: A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO COMO UMA POLÍTICA RACIAL DE … · 2 A igualdade e a diferença entre mulheres negras e mulheres brancas Realizando um exame retrospectivo na história

9

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Mistificações a apuração de crimes relativos às drogas e saúde pública,questões envolvendo

práticas religiosas, infanticídios, abortos, meretrícios, julgados sobre a moralidade pública e o

decoro familiar. Delegacia que foi intencionalmente criada para o controle das manifestações

culturais e identitárias dos corpos negros.

A regulamentação desses dois delitos, que ainda hoje representam delitos

característicos de mulheres subalternizadas pela conjuntura racial, econômica e social,

demonstra uma forma direcionada de controle da atuação dos corpos negros. A repercussão

direta da aplicação de um controle legislativo sobre a subjetividade das mulheres negras está

no crescimento de ações que buscam restringir garantias fundamentais e direitos

constitucionais destinados a essa parcela social subalternizada. São essas mulheres que sofrem

com a criminalização do aborto e um demonstrativo é o estudo realizado pelo Instituto de

Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o qual revela que o “risco de

morte de uma grávida negra cuja gestação terminou em aborto é 2,5 vezes maior do que o de

grávidas brancas. ”É aqui que a interseccionalidade mostra sua relevância, tanto como um

projeto de conhecimento, mas também um instrumento de luta política, de processo de

reconhecimento das mulheres negras sobre o seu corpo e sobre sua identidade.

4 Conclusões

A imagem do povo negro continua a ser criminalizada, negativizada e subalternizada,

não apenas socialmente, mas, principalmente, pela manutençãoda lógica da criminologia

positivista e do direito penal do inimigo, por meio de sua dinâmica institucional de

construção do suspeito/criminoso.

A luta contra o sistema racista nacional pressupõe uma mudança significativa, não

apenas no olhar social sobre a teorização das questões raciais, mas também na atuação do

sistema judiciário no relacionamento com o social. As estratégias jurídicas para interpretação

de determinado jeito ou de outro trazem características estratégicas e isso é utilizado para

excluir proteção jurídica das camadas sociais subalternizadas. A interpretação equivocada, ou

sem qualquer preocupação de análise da norma de acordo como cenário histórico nacional,de

normas de teor antirracista contribui para o esvaziamento das medidas de promoção da

Page 10: A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO COMO UMA POLÍTICA RACIAL DE … · 2 A igualdade e a diferença entre mulheres negras e mulheres brancas Realizando um exame retrospectivo na história

10

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

igualdade racial e para o entendimento de dificuldade de acesso à justiça da população

subalternizada.

O apontamento dos casos de proibicionismo do infanticídio e do aborto permitiu

demonstrar que o direito esconde e reafirma a estruturada lógica dominante de inferiorização

da identidade negra e o consequente afastamento social por meio do aprisionamento ou do

genocídio da população negra. Usar oficialmente o direito para segregar não significa apenas

elaborar normas jurídicas com caráter afirmadamente discriminatório. Significa a perpetuação

da discriminação racial e a manutenção da exclusão econômica e social.

Identidade racial é algo atribuído de fora. É uma construção imposta a determinados

grupos populacionais com determinadas características. Por isso ser negro no Brasil ainda é

uma desvantagem social.

5 Lista de referências

BRASIL. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidênciada

República.Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

BIDASECA, Karina. Perturbando el texto colonial. 2010. Disponível em:

<https://pt.scribd.com/document/336806200/Perturbando-el-texto-colonial-pdf>. Acesso em:

janeiro de 2017.

CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia feminista: teoria feminista e crítica às

criminologias. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2017.

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo:a situação da mulher negra na América Latina a

partir de uma perspectiva de gênero. 2011. Disponível em:

<https://www.geledes.org.br/enegrecer-o-feminismo-situacao-da-mulher-negra-na-america-

latina-partir-de-uma-perspectiva-de-genero/#gs.gIPELaY>. Acesso em: 29/06/2017.

CRENSHAW, Kimberllé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da

discriminação racial relativos ao gênero. University of California, 2002.

CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and

violence against women of color. Stanford Law Review. Disponível em:

<http://socialdifference.columbia.edu/files/socialdiff/projects/Article__Mapping_the_Margins

_by_Kimblere_Crenshaw.pdf>. Acesso em: janeiro de 2017.

Page 11: A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO COMO UMA POLÍTICA RACIAL DE … · 2 A igualdade e a diferença entre mulheres negras e mulheres brancas Realizando um exame retrospectivo na história

11

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

COLLINS, Patricia Hill. Shifting the center: race, class, and feminist theorizing about

motherhood. In: GLENN, E. N.; CHANG, G.; FORCEY, L. R. (ed.). Mothering: Ideology,

Experience, and Agency. New York: Routledge, 1994.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução Heci Regina Candiani. 1ª ed. Editora

Boitempo: São Paulo, 2016.

GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais

Hoje, São Paulo, p.223- 244, 1984.

JENSEN, Loucynda. Searching the Silence: Finding Black Women’s Resistance to Slavery in

Antebellum U.S. History. PSU McNair Scholars Online Journal, v. 2, p. 1-27, 2006.

Disponível em:

<http://pdxscholar.library.pdx.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1093&context=mcnair>.

Acesso em: 15/04/2017.

LIMA, Renato Sérgio.(2004). Atributosraciaisnofuncionamentodosistema de justiça

criminalpaulista.InSão Paulo em Perspectiva, 18(1):60-65. Disponível

em:<http://www.scielo.br/pdf/spp/v18n1/22227.pdf>. Acesso em 01 deoutubrode2012.

MATTOSO, Kátia de Queiroz. O filho da escrava. In: PRIORE, Mary Del (org.). História da

criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento Nacional de Infrmações Penitenciárias

INFOPEN Mulheres. Disponível em: http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-

da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf. Acesso em:

30/06/2017.

OTA, Maria Eduarda. Quando ser mãe é um ato de resistência: o ativismo político de

mulheres negras vítimas da violência institucional. Disponivel em: <http://www.jur.puc-

rio.br/encrespando/index.php/files/article/view/13/13>. Acesso em: 30/06/2017. Acesso em:

fevereiro de 2017.

SILVA, Maria da Penha. Mulheres negras: sua participação histórica na sociedade

escravista. V.1, n. 1. Cadernos Imbricados. João Pessoa, 2010. Disponível em:

Page 12: A CONSTRUÇÃO DO PROIBICIONISMO COMO UMA POLÍTICA RACIAL DE … · 2 A igualdade e a diferença entre mulheres negras e mulheres brancas Realizando um exame retrospectivo na história

12

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

<http://periodicos.ufpb.br/index.php/ci/article/viewFile/13509/7668>. Acesso em: dezembro

de 2016.

TEIXEIRA, Heloísa Maria. Os filhos das escravas: crianças cativas e ingênuas nas

propriedades de Mariana (1850-1888). Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas. São Paulo, 2007. Disponível em:

http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoshistoria/article/viewFile/2027/2413. Acesso

em: dezembro de 2016.

The construction of prohibitionism as a racial politics of control: the historical

construction of control over the body of the black woman

Astract: The research aims to make a historical analysis of the criminalization of the practice

of infanticide and abortion among Brazilian women from a racial perspective. We seek to

analyze the legal valuation established by the Brazilian State when it criminalizes one of the

forms of resistance of black women to the slavery system, as well as to address some of the

socio-juridical developments resulting from this system throughout the Brazilian historical

process. The regulation of these two crimes, which still today represent crimes characteristic

of women subalternized by the economic and social conjuncture, represents forms of control

of the performance of our black bodies. The analysis of the topic dialogues with debates

tending to affirm that the image of the black people continues, still today, to be criminalized,

negativized and subalternized, not only socially, but mainly for the maintenance of the logic

of criminology and criminal law, through Its institutional dynamics of construction of the

suspect / criminal. In methodological terms, the work is based on a historical and critical

approach to Brazilian criminal law, favoring the perspectives of postcolonial studies. In terms

of relevance, we hope that the results can broaden the discussions about the power relation

between the law and the black population, as well as on the condition of subalternization of

black women in Brazilian society.

Keywords: Racial criminology; Black women; Infanticide; Abortion