A construção do mito da cor como fonte de estigmatização do negro brasileir

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A CONSTRUÇÃO DO MITO DA COR COMO FONTE DE ESTIGMATIZAÇÃO DO NEGRO BRASILEIRO 1 Gabriel Fiel Lutz Universidade Federal da Grande Dourados Introdução O presente trabalho faz parte da monografia de conclusão do curso de Direito/UFGD, na qual se discute a importância das cotas étnicas para negros, na busca por uma “igualdade material” 2 tendo como foco a construção social do conceito de “raças”, bem como, das formas de dominação e de preconceito às avessas existentes no Brasil. Tanto assim o é, que o antropólogo José Maurício Arruti, em um de seus artigos sobre a emergência da categoria quilombolas, mostrará que segundo Banton o termo raça diferencia-se pela carga negativa que os não negros incutem nos negros em forma de estigma. Portanto, quando os negros utilizam o termo “etnia” o mesmo assume caráter positivo de algo que é visto como estigma. Em seus dizeres: Segundo Banton, na passagem do racial ao étnico, os signos de distinção teriam seus sinais invertidos, deixando de representar estigmas, para assumir um sentido de solidariedade e identificação. Nesse sentido, um grupo racial tornar-se-ia um grupo étnico a partir do momento em que, aceitando a distinção que lhe é imposta pela maioria, passa a utilizar-se politicamente dela na formação de agrupamentos autônomos ou com interesses e reivindicações comuns. Uma resposta útil, mas ainda insuficiente para pensarmos a situação dos remanescentes, como veremos 3 . Por ora, o artigo restringe-se à parte do estudo até o momento elaborado, mais precisamente, sobre a estigmatização do negro na sociedade brasileira. A base está no brilhante estudo realizado por Norbert Elias e John Scotson, intitulado Os Estabelecidos e os Outsiders 4 , no qual se realiza uma pesquisa sobre a comunidade de Winston Parva, buscando os motivos que explicariam a razão pela qual alguns grupos tinham mais poder do que outros. As figurações e regularidades desvendadas no microcosmo da comunidade se revelavam como guias de um levantamento macro sociológico, pois segundo indicadores sociais correntes (como renda, educação ou tipo de ocupação) a comunidade se apresentava como relativamente homogênea, ou seja, mesmo pertencentes à mesma classe social, os habitantes do povoado, não justificavam a desigualdade nas relações de poder em diferenças de classes, ou raciais, mas pela antiguidade. 1 O presente artigo foi orientado pela Profa. Dra. Simone Becker (NEXUM/FADIR/UFGD). 2 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra-Portugal: Almedina; 2003, p.378,379. O autor apresenta a diferencia entre igualdade formal e igualdade material, sendo a primeira associada à constitucionalização, a incorporação de direitos subjetivos do homem em normas formalmente básicas, subtraindo seu reconhecimento e garantia a disponibilidade do legislador ordinário e controle jurisdicional da constitucionalidade. A segunda, a idéia de fundamentalidade material, insinua que o conteúdo dos direitos fundamentais é decisivamente constitutivo das estruturas básicas do Estado e da Sociedade. Sendo a idéia de fundamentalidade material, o suporte para abertura da constituição para outros direitos, também fundamentais, mas não constitucionalizados. 3 BANTON apud ARRUTI, José Maurício. A emergência dos “remanescentes”: notas sobre o diálogo entre indígenas e quilombolas. Revista Mana. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p.25. 4 ELIAS, Norbert e John Scotson. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Editor Jorge Zahar; 2000.

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A CONSTRUÇÃO DO MITO DA COR COMO FONTE DE ESTIGMATIZAÇÃO DO NEGRO BRASILEIRO1

Gabriel Fiel LutzUniversidade Federal da Grande Dourados

Introdução

O presente trabalho faz parte da monografia de conclusão do curso de Direito/UFGD, na qual se discute a importância das cotas étnicas para negros, na busca por uma “igualdade material”2 tendo como foco a construção social do conceito de “raças”, bem como, das formas de dominação e de preconceito às avessas existentes no Brasil. Tanto assim o é, que o antropólogo José Maurício Arruti, em um de seus artigos sobre a emergência da categoria quilombolas, mostrará que segundo Banton o termo raça diferencia-se pela carga negativa que os não negros incutem nos negros em forma de estigma. Portanto, quando os negros utilizam o termo “etnia” o mesmo assume caráter positivo de algo que é visto como estigma. Em seus dizeres:

Segundo Banton, na passagem do racial ao étnico, os signos de distinção teriam seus sinais invertidos, deixando de representar estigmas, para assumir um sentido de solidariedade e identificação. Nesse sentido, um grupo racial tornar-se-ia um grupo étnico a partir do momento em que, aceitando a distinção que lhe é imposta pela maioria, passa a utilizar-se politicamente dela na formação de agrupamentos autônomos ou com interesses e reivindicações comuns. Uma resposta útil, mas ainda insuficiente para pensarmos a situação dos remanescentes, como veremos3.

Por ora, o artigo restringe-se à parte do estudo até o momento elaborado, mais precisamente, sobre a estigmatização do negro na sociedade brasileira.

A base está no brilhante estudo realizado por Norbert Elias e John Scotson, intitulado Os Estabelecidos e os Outsiders4, no qual se realiza uma pesquisa sobre a comunidade de Winston Parva, buscando os motivos que explicariam a razão pela qual alguns grupos tinham mais poder do que outros. As figurações e regularidades desvendadas no microcosmo da comunidade se revelavam como guias de um levantamento macrosociológico, pois segundo indicadores sociais correntes (como renda, educação ou tipo de ocupação) a comunidade se apresentava como relativamente homogênea, ou seja, mesmo pertencentes à mesma classe social, os habitantes do povoado, não justificavam a desigualdade nas relações de poder em diferenças de classes, ou raciais, mas pela antiguidade.

1 O presente artigo foi orientado pela Profa. Dra. Simone Becker (NEXUM/FADIR/UFGD). 2 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra-Portugal: Almedina; 2003, p.378,379. O autor apresenta a diferencia entre igualdade formal e igualdade material, sendo a primeira associada à constitucionalização, a incorporação de direitos subjetivos do homem em normas formalmente básicas, subtraindo seu reconhecimento e garantia a disponibilidade do legislador ordinário e controle jurisdicional da constitucionalidade. A segunda, a idéia de fundamentalidade material, insinua que o conteúdo dos direitos fundamentais é decisivamente constitutivo das estruturas básicas do Estado e da Sociedade. Sendo a idéia de fundamentalidade material, o suporte para abertura da constituição para outros direitos, também fundamentais, mas não constitucionalizados.3 BANTON apud ARRUTI, José Maurício. A emergência dos “remanescentes”: notas sobre o diálogo entre indígenas e quilombolas. Revista Mana. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p.25. 4 ELIAS, Norbert e John Scotson. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Editor Jorge Zahar; 2000.

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A partir do estudo sobre as relações de poder, o artigo parte para um diálogo do caso brasileiro entre a mitologia da brasilidade mestiça, apresentada por Gilberto Freyre, em seu clássico Casa Grande & Senzala5, passando pela fábula das três raças de Roberto DaMatta6, para então discutir a tentativa do branqueamento da sociedade brasileira como processo de construção social. Em seu término, o artigo traz um dos discursos de Fidel Castro para exemplificar com um caso concreto os problemas sociais a serem enfrentados quando o fator “cor” emerge como estigma.

Formas de Dominação

Norbert Elias (& John Scotson) em Os Estabelecidos e os Outsiders7 abordam os fatores que justificam a dominação de um grupo sobre outro, classificando o grupo dominante como “established” e o dominado como “outsiders”.

Os Established se reconhecem como uma “boa sociedade”, mais poderosa e melhor, e fundam seu poder no fato de serem um modelo moral para os outros dominados. Em contrapartida, os Outsiders são os não membros da “boa sociedade”, os que estão fora dela. Ambos os grupos estão ao mesmo tempo, separados e unidos por um laço tenso e desigual de interdependência, o que cria a necessidade de um grupo se sobrepor ao outro, tal como ocorrera em relação à necessidade de mão de obra negra para dar sustento à monocultura de cana e à exploração das minas e da pecuária no Brasil colonial.

O trabalho e a classificação aludida pelos autores de os Estabelecidos tem como foco uma pesquisa realizada na comunidade de Winston Parva (interior da Inglaterra), tentando demonstrar o liame entre os problemas em pequena escala de uma região e os problemas das relações entre grupos sobre uma figuração que se acredita ser universal.

Os grupos mais poderosos vêem-se como pessoas melhores, dotados de uma espécie de carisma grupal, de uma virtude específica que é compartilhada por todos os seus membros e que falta aos outros, fazendo com que os inferiores se sintam, eles mesmos, carentes de virtude, julgando-se humanamente inferiores.

A relação de superioridade surgiria a partir da atribuição de características humanas superiores aos membros dos estabelecidos, assim como a tabela de Gobineau8,apresentada abaixo, sobre as raças humanas, datada do século XIX, em que os Europeus se intitulam donos das virtudes, enquanto as outras raças se apresentam como inferiores ao seu padrão.

Raças Humanas

Negra Amarela BrancaIntelecto Débil Medíocre VigorosoPropensões animais

Muito fortes Moderadas Fortes

Manifestações morais

Parcialmente latentes

Comparativamente desenvolvidas

Altamente cultivas

Os grupos dos estabelecidos manteriam a crença de que são mais poderosos, através do grau de coesão grupal e identificação coletiva com normas comuns capazes de induzir a euforia gratificante de pertencer a um grupo superior. Um grupo com índice de coesão mais

5 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Editora Global; 51ª ed; 2003.6 DA MATTA, Roberto. Relativizando: Uma introdução à Antropologia Social. Petrópolis: Vozes, 1983.7 ELIAS, Norbert e John Scotson. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Editor Jorge Zahar; 2000.8 DA MATTA, Roberto. Relativizando: Uma introdução à Antropologia Social. Petrópolis: Vozes, 1983.

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alto do que o de outro, permite que esse grupo reserve para seus membros as posições sociais com potencial de poder mais elevado.

A exclusão e a estigmatização seriam assim as armas utilizadas para afirmar a superioridade de um grupo sobre o outro, surgindo a imagem de que o grupo estabelecido tende a se modelar, atribuindo aos outsiders as características ruins. Constrói-se assim o conceito de raças superiores e inferiores dentro da sociedade, produzindo ao longo do tempo, através da exclusão e da estigmatização, o sentimento nos próprios grupos excluídos de que realmente são inferiores em relação aos outros.

O estudo de Elias pode ser colocado em diálogo com a tabela de Gobineau, quando a coesão do grupo europeu frente a outros grupos, se traduzia em estudos defensores de um evolucionismo, no qual o branco se encontrava no topo da evolução, agregando consigo as melhores características, frente à inferioridade dos negros e amarelos.

Portanto, em um primeiro momento, o estigma pode ser reduzido e confundido com “preconceito racial” ou em outros termos, a hierarquização pode se reduzir ao fator “cor da pele”. Porém, há que se observar que a construção do carisma social em Winston Parva, por exemplo, articula uma série de relações de poder que passam pela antiguidade de chegada no próprio bairro onde todos residem, sejam eles os estabelecidos ou os outsiders. Nos dizeres de Elias e Scotson:

A referência à cor diferente da pele e a outras características inatas ou biológicas dos grupos que são ou foram tratados como inferiores por grupos estabelecidos tem a mesma função objetificadora, nessa relação, que a referência ao estigma azul imaginário dos burakumin. O sinal físico serve de símbolo tangível da pretensa anomia do outro grupo, e de seu valor humano inferior, de sua maldade intrínseca; assim como a fantasia do estigma azul, a referência a esses sinais “objetivos” tem uma função de defesa da distribuição vigente de oportunidades de poder, bem como uma função exculpatória.9

A peça central dessa figuração criada pelo grupo dominante e o dominado é um equilíbrio instável de poder, sendo este uma precondição decisiva para a estigmatização efetiva de um grupo.

Os recém chegados em Wisnton Parva não possuíam coesão entre si, como os negroschegados de diversas regiões africanas vindos para o Brasil, nem sempre conseguindo resistir à escravidão que lhe era imposta e a condição de raça inferior ora atribuída, frente à coesão e padrões postos do grupo superior, isto é, dos brancos estabelecidos.

No livro Antropologia da Viagem – Escravos Libertos em Minas Gerais no século XIX, Ilka Boaventura Leite analisa os relatos de viajantes europeus ao Brasil, trazendo a seguinte observação:

Os viajantes recorriam a parâmetros próprios da cultura européia para interpretar a sociedade visitada: baseavam-se em critérios de superioridade e inferioridade. Não houve, durante o século XIX, preocupação em questionar categorias de análises. Tais como raça e etnia, mas sim utilizá-las como sustentação ideológica.10

Esta estigmatização se perpetua, bem como o próprio “etnocentrismo” que dela decorre, transformando-se em prática costumeira e naturalizada. Enfim, presente na vida do Branco (estabelecido) e do Negro (outsider), formando no imaginário social convicções de que um grupo é superior a outro. Nesse sentido, tais construções adquiririam força tamanha dentro das relações entre os grupos dominados, pois estariam internalizadas nos padrões

9 ELIAS, Norbert e John Scotson. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Editor Jorge Zahar, 2000, p.35-36.10 LEITE, IIka Boaventura. Escravos Libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996. p. 95.

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sociais, de forma que, políticas universalistas, que visam resolver os problemas sociais, nivelando a base, ou seja, através de políticas que ofereçam oportunidades para toda a sociedade, não conseguiriam desmistificar a base principiológica que estas construções adquirem, uma vez que não teriam por foco combater as relações de poder arraigadas no corpo social. Em suma, não corrigiriam distorções existentes para em um segundo momento buscar a igualdade universal.

Olhando para Winston Parva, pode-se inferir que políticas universalistas, não retirariam o sentimento de superioridade dos estabelecidos, por serem mais antigos no bairro, pois os grupos já pertenciam à mesma classe, não sendo um problema econômico ou racial, mas sim de dominação de um grupo para com outro, que se perpetuava no tempo.

Desta forma, as políticas afirmativas, em especifico, as cotas étnicas para negros em universidades públicas, buscariam combater o sentimento de inferioridade que o próprio negro teria internalizado sobre sua raça, tentando desconstruir o preconceito às avessas, formado ao longo da história. Esta política mais do que uma simples medida social, de compensação com a escravidão e marginalização imposta ao negro brasileiro, se mostra como um enfrentamento por parte do Estado do problema da dualidade racial brasileira, transpassando o enfrentamento em primeiro momento das distorções existentes na sociedade, e criando a noção de grupo étnico como já exposto por Banton11, em que o uso da noção de “raça” refletiria tendências negativas de exclusão, enquanto “etnia” expressaria tendências positivas de inclusão.

Verifica-se assim, a construção de uma barreira social, como na Índia, onde os brâmanes se acostumaram a uma política de exclusão, com base em um sistema de castas sancionado pela religião, através da qual se evita o contato com o intocável (outsider), a fim de evitar a poluição de uma casta pela outra.

O contato com os outsiders é tido como perigoso, desagradável, pondo em risco as defesas arraigadas do grupo estabelecido. Arruti12 descreve a “construção nacional” da identidade do negro em comparação com a do índio, em que o índio corresponderia àpureza, ao exotismo, sendo necessário absorvê-lo e integrá-lo. Ao contrário, o negro corresponderia à contaminação, sendo necessário absorvê-lo e integrá-lo, mas sem se contaminar, não deixando que este altere a nacionalidade branca ocidentalizada. O índio é visto dessa forma como um problema humano, enquanto o negro como população subalterna.

A estigmatização se lança assim como a maior arma de dominação de um grupo sobre outro, pois se arraigado está o sentimento de superioridade e inferioridade nos grupos, esta última cria o efeito paralisante nos outsiders sobre à baixa auto-estima ou até frente àcrença na inferioridade de seu grupo.

Como ocorre na discussão do caso Bakke nos Estados Unidos, abordado por Ronald Dworkin13 sobre a constitucionalidade das cotas para negros em universidades, no qual Allan Bakke, um estudante Branco, alegava ter sido lesado o princípio constitucional da igualdade, quando ficou fora das vagas para o curso de medicina, tendo este alcançado nota relativamente alta, segundo um critério meritocrático, que o colocaria entre as vagas disponibilizadas, se estas não fossem oferecidas sobre um sistema de cotas para estudantes negros. O caso resultou em uma batalha judicial sobre as vertentes do princípio da igualdade, em que um dos argumentos apresentados pelos defensores das cotas étnicas, era a existência de pessoas negras nas universidades, no poder, como forma de levantar a baixa auto-estima do Negro (outsider) estadunidense.

11 BANTON apud ARRUTI, José Maurício. A emergência dos “remanescentes”: notas sobre o diálogo entre indígenas e quilombolas. Revista Mana. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p.25.12 BANTON apud ARRUTI, José Maurício. A emergência dos “remanescentes”: notas sobre o diálogo entre indígenas e quilombolas. Revista Mana. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p.25.13 DWORKIN, Ronald. "O Caso de Bakke: as cotas são injustas?". In: Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes. 2ª Ed., 2005, p. 440.

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A ação afirmativa tenta colocar mais negros nas salas de aula junto com médicos brancos, não porque seja desejável que uma escola de medicina reflita a constituição racial da comunidade como um todo, mas porque a associação profissional entre negros e brancos diminuirá entre os brancos a atitude de considerar os negros como raça e não como indivíduos, e, assim, a atitude dos negros de pensar em si próprios da mesma maneira.14

O sentimento de inferioridade nos grupos ditos inferiores faz com estes não consigam retaliar a dominação que sofrem material, emocional e culturalmente.

A sociodinâmica da relação entre grupos interligados na condição de Brancos (estabelecidos) e Negros (outsiders), partindo da ótica abordada por Elias e Scotson, é determinada pela coerência existente entre grupos, na busca pela justificação de sua superioridade perante o outro. No caso brasileiro, o europeu como grupo estabelecido busca justificar seu poder sobre o negro, sendo a cor uma das justificativas encontradas por este, dentro de teorias evolucionistas, como o quadro de Gobineau apresentado acima. Por conseguinte, justificando sua suposta superioridade e escondendo uma relação de dominação que vai além do simples fator cor.

Parece que os adjetivos como “racial” ou étnico, largamente utilizados nesse contexto, tanto na sociologia quanto na sociedade em geral, são sintomáticos de um ato ideológico de evitação. Ao empregá-los, chama-se à atenção para um aspecto periférico dessas relações (por exemplo, as diferenças na cor da pele), enquanto se desviam os olhos daquilo que é central (por exemplo, os diferenciais de poder e a exclusão do grupo menos poderoso dos cargos com maior potencial de influência).15

O Diálogo sobre a construção da Identidade Brasileira

Saindo da obra de Elias e Scotson e mergulhando no contexto brasileiro, vê-se que a mitologia da brasilidade mestiça desenvolvida por Gilberto Freyre, é apresentada como ponto de equilíbrio das diferenças culturais. A partir dela são descritas as relações entre Brancos (senhores) e Negros (escravos), como um aceite de um para com o outro, justificado no contato do Lusitano com o Mouro, o qual teria predisposto o primeiro à interação aberta e igualitária com os Índios e os Negros. Este aceite findara com a formação do mestiço, da mistura, do brasileiro, enfim, no encontro entre as diferenças, na busca por uma identidade brasileira.

Ilka Boaventura desmistifica esta relação de aceite, ao descrever, com base em relatos de viajantes europeus, as sensações ilusórias de concordância que se criavam entre senhor e escravo, quando o escravo servia a mesa, mas não se sentava a esta, e ao final agradecia conforme a religião de seu senhor, o alimento do qual não desfrutara.

O mito criado por Freyre16 se contrapõe à teoria de DaMatta17 “Digressão: A Fábula das três raças, ou o problema do racismo a brasileira”, no qual o autor apresenta a estigmatização do negro (outisider) como espécie de sistema de castas brasileiro, sendo 14 DWORKIN, Ronald, (...). Op. Cit., 2005, p.440. 15 ELIAS, Norbert e John Scotson. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Editor Jorge Zahar; 2000, p.32.16 Muito embora Gilberto Freyre seja muito criticado por ter passado uma imagem que não corresponde às muitas relações sociais concretas de nossa sociedade, há que se lembrar que Freyre foi um dos alunos de Franz Boas que é o fundador da antropologia cultural. Assim, a insistência na mestiçagem deve ser lida levando-se em consideração que Boas enfrentou na virada do século XX o embate com as teorias evolucionistas sociais na antropologia norte-americana que apregoavam a inferioridade negra pautada no fisiológico e/ou na raça. 17 DA MATTA, Roberto. Relativizando: Uma introdução à Antropologia Social. Petrópolis: Vozes, 1983.

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que para este evoluir, primeiramente teria de passar pela mestiçagem, sendo este contato, não um aceite, mas uma forma de dominação, em que branco, negro e mulato possuem seu lugar na sociedade.

O surgimento das fabuladas três raças teria ocorrido com a transferência da estrutura de poder do Império Português de Lisboa para o Rio de Janeiro, sendo necessário constituir justificativas para sustentar o sistema econômico e social do país, que tinha o negro como sua engrenagem. As teorias evolucionistas surgem como capazes de enaltecer o europeu e estigmatizar o negro, justificando através da inferioridade deste a escravização, e a vinda do Branco como salvação na tentativa do branqueamento da população. O evolucionismo de Darwin apresentou força cogente nas ciências ditas sociais com a produção do “evolucionismo social”, através do qual a cor e a patologização eram forças capazes de colocar cada um no seu lugar. Como exemplo de sua força, Ilka Boaventura descreve relatos de viajantes europeus que acreditavam que a heterogeneidade racial levaria a processos de "degeneração".

Seguindo na linha traçada por Da Matta, a mistura entre branco e negro produz um meio termo, que não é nem branco e nem negro, mas que ao ser “aculturado” pelos padrões certos (estabelecidos), evolui e passa então a fazer parte do grupo estabelecido. Assim também descreve Darcy Ribeiro, acerca da dualidade do mulato:

Posto entre dois mundos conflitantes – o do negro, que ele rechaça, e o do branco, que o rejeita – o mulato se humaniza no drama de ser dois, que é o mesmo de ser ninguém.18

Este ser híbrido passa então a praticar as regras do grupo estabelecido, ou seja, estigmatizando sua própria origem, cultura, hábitos, conforme os estudos de Ilka Boaventura, sobre as festas dos escravos no século XIX no Brasil, buscando uma inserção na ordem social dominante:

Os aspectos simbólicos do ritual revelam sua importância para o grupo negro: oportunidade de afirmação enquanto grupo, sinal de reprodução e representação de sua existência e seu lugar na ordem social dominante, e branca19.

DaMatta discorda de Freyre, pois a relação entre senhor e escravo, ocorre devido a uma hierarquia, fazendo com que o contato entre senhor e escravo aconteça graças à hierarquização, motivo pelo qual o sentimento de repúdio não emerge desta relação por parte dos brancos. Em síntese, não há necessidade de segregação no modelo escravocrata brasileiro, diferente do estadunidense, pois a hierarquia assegura o Branco como dominante.

Esta espécie de “chance” dada ao “moreno” brasileiro reflete a diferença da forma de estigmatização existente no Brasil, pois ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos da América, conforme descreve DaMatta no esquema abaixo20, observa-se que o preconceito divide a sociedade em negros e brancos, não havendo contato entre estes, com base na contaminação da raça. Assim, nos Estados Unidos a segregação é dada a priori enquanto construção social, e no Brasil, o antropólogo mostrará que os negros são inseridos na sociedade para depois serem hierarquizados por meio da fábula ou mito da interação e democracia racial.

Nos Estados Unidos se busca a preservação da pureza pelo não contato, enquanto no Brasil o contato surge como forma de branqueamento da população, sendo o negro em ambos visto como elemento contaminador, impuro, sendo adotadas estratégias diferentes

18 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. 2ª. Ed, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 223.19 LEITE, IIka Boaventura. Escravos Libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: UFMG, 1996. p. 145.20 DaMatta, R. Relativizando: Uma introdução à Antropologia Social. Petrópolis: Vozes, 1983.

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na busca pela perpetuação do domínio branco. Antes de prosseguir, passemos ao quadro esboçado por DaMatta que denota tais diferenças entre as estratégias de dominação do branco nas duas sociedades:

Modelo estadunidense: Modelo Brasileiro:

A partir do quadro, nota-se que a população brasileira se constitui; tem seu contorno

definido frente a esta interação ocorrida entre diversas raças. Essa interação para Darcy Ribeiro se justificaria pela oferta de mulheres indígenas ao europeu, como tradição dos nativos. Gilberto Freyre desenvolve a interação entre a Casa Grande e a Senzala, sendo a dominação do europeu para com o negro, e o relacionamento entre ambas as raças aquele de aceitação.

Independente dos motivos geradores da miscigenação, o fático é a existência de tipos híbridos, mas pertencentes a uma sociedade que tem como padrão, como estabelecidos, a cultura do europeu, do Português, exportada com sua idéia de superioridade na colonização do Brasil. Paralelamente, dá-se a vinda do negro para ser escravo, como mão de obra, trazendo à reboque sua inferioridade em contrapartida à superioridade da raça portuguesa/européia.

Conforme nos assevera a história, negros pertencentes a grupos dominantes do continente africano vendiam os grupos dominados que eram negros também, sendo a dominação quanto ao fator cor exercida pelo “igual”, que exportava os dominados como força negra para o Europeu expandir suas colônias. Assim, a estigmatização do negro tem “origem” não só em sua cor, mas na dominação de grupos estabelecidos detentores de poder, justificada na venda de negros por negros e na busca pela “evolução” da sociedade brasileira por meio do branqueamento.

Esta tentativa de fortalecimento do “moreno” gera a negativa da origem em busca de um lugar na sociedade estabelecida, não sendo excluídos simplesmente pelo fator cor, mas pelos seus hábitos, religião, comportamento, em suma pela sua cultura tida como inferior. E dentro da dualidade do ser mais branco ou menos negro, é que se produz através das relações de poder a invisibilidade do lado sem virtudes que são as características pertencentes aos “outsiders”.

A Desconstrução do Mito da Cor

A experiência brasileira da mestiçagem nos leva além de explicações superficiais de diferenças sociais, baseadas apenas em fatores isolados, pois há que se analisar a maior quantidade possível de fatores, tais como: raça, gênero, classe social, etc. Para tanto, não há que se buscar soluções universais ou mesmo sustentar a produção de um discurso de igualdade existente entre as diversas etnias a partir da isonomia legal existente na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º. Ou pior: na redução da discussão de cotas ou outras questões atinentes à etnia pela igualdade formal, aquela restrita ao plano da lei enquanto letra morta. O manifesto em favor da lei de cotas e do estatuto da igualdade racial confere legitimidade a esta argumentação.

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Acreditamos que a igualdade universal dentro da República não é principio vazio e sim uma meta a ser alcançada. As ações afirmativas, baseadas na discriminação positiva daqueles lesados por processos históricos, são a figura jurídica criada pelas Nações Unidas para alcançar essa meta.21

Portanto, à luz destas breves explicações é possível traçar um paralelo entre a experiência brasileira e a cubana, mais precisamente é possível trazer alguns elementos do discurso de Fidel Castro veiculado no artigo de Marcelo Tratenberg:

Foi há algum tempo atrás que descobrimos que a marginalidade e a discriminação racial relacionada a ela não são algo que agente se desfaz com uma lei ou mesmo dez leis, e não conseguimos eliminá-las completamente, mesmo em 40 anos.22

Em seu discurso, Fidel Castro relata que Cuba enfrentou seus problemas sociais com o combate das diferenças de classes, não conseguindo eliminar as diferenças raciais, e que mesmo nivelando as classes, os preconceitos raciais continuavam impregnados e operantes. Portanto, importante torna-se a pesquisa de Norbert Elias que mostra como entre pessoas de uma mesma classe social (no sentido marxista do termo) há a possibilidade de aparecimento de discriminações e estigmatizações.

Conclusões

Pode-se concluir que a experiência cubana na tentativa de solucionar as desigualdades de sua população encontra íntima ligação com o estudo realizado em Winston Parva, e como é dito em Os Estabelecidos, o estudo de uma comunidade, de um microcosmo, se projeta para o macrocosmo de um país. Desta forma a igualdade no fator classe, encontrada em Winston era sobreposta pelo fator antiguidade no bairro, sendo esta a justificação da dominação/estigmatização exercida por um grupo frente a outro. Ambos, aliás, pertencentes à mesma classe social e à mesma etnia.

Cuba buscou eliminar as diferenças de classes sociais, mas descobriu conforme discurso de Fidel Castro, que apenas enfrentar os problemas sociais a partir de uma de suas matizes não solucionaria as desigualdades, pois apenas leis não conseguem arrancar preconceitos construídos pela sociedade ao longo do tempo. Sendo as classes niveladas, mas a dominação de um grupo pelo outro ainda existente com base na raça ou no gênero, sugere-se que impedimentos surgiriam para que tais grupos não acendessem ao poder, aos cargos mais altos da nação, mesmo possuindo condições econômicas semelhantes.

No caso brasileiro, a especificidade da mistura, da miscigenação, demonstra a necessidade da desconstrução da cor, como fator determinante na estigmatização do negro, pois por trás desta justificação, se escondem motivações econômicas, políticas, históricas e culturais que o marginalizam, como raça, retirando deste uma coesão de grupo étnico. Por conseguinte, produzindo um preconceito contra a própria origem na construção de uma figura menos negra, o moreno, que se aculturado por padrões europeus tem a chance de “evoluir” para o grupo estabelecido e de negar o grupo sem virtudes.

21 Manifesto Racial da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial. Disponível em: http://lpp-uerj.net/olped/documentos/1745.pdf. Acessado em: dezembro de 2008, p.4. 22 TRATENBERG, Marcelo. A luta contra o racismo no Brasil hoje e o movimento docente. Disponível em: www.nuer.ufsc.br/artigos/a%20luta.html. Acessado em: abril de 2008.

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A cor, portanto, seria um dos fatores potencialmente utilizados pelo europeu para justificar sua “superioridade”, mas não o único, que se enfrentado virá a solucionar o preconceito com o negro. Se a inteligência não pode ser medida apenas através do Q.I, e as teorias evolucionistas não são capazes de justificar a superioridade de uma raça sobre a outra, a cor também não será capaz de explicar por si só os motivos ensejadores da estigmatização do branco para o negro, escondendo essa, relações intrínsecas de poder.

Eis, um dos desafios que nossa sociedade apresenta frente à discussão de ingresso nas Universidades Públicas através de cotas étnicas e não apenas cotas sociais, chamando para a linha de argumentação, quanto à eficácia dessa espécie de política afirmativa, não apenas leis e projetos de Estado a curto e longo prazo, mas também os preconceitos arraigados na sociedade como forma de distanciamento da busca por uma igualdade material concreta.