A Construção de Identidades Africanas Na Bahia - Musicalidades Em Diáspora

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A construção de identidades africanas na Bahia: musicalidades em diáspora Marcus Bernardes 1 Resumo: O presente trabalho visa estabelecer conexões entre a construção de identidades e a aplicação de referenciais (simbólicos e estruturais) da África Central na musicalidade do Recôncavo Baiano. Serão analisados os traços referentes à tradição banto de uma manifestação musical denominada Samba de Roda. Embora em conjunto com os bantos, os iorubas façam parte dos dois modelos básicos de influência estética e simbólica na música afro-brasileira, a preponderância dos primeiros é extremamente relevante em se tratando desta musicalidade. A percepção de uma influência estrutural (em termos musicais) de um determinado grupo identificado por referenciais culturais comuns não expressa a ideia de uma continuidade entre um traço cultural africano e sua influência no Novo Mundo, no sentido de “transportar” uma cultura para as colônias. Porém, justamente o oposto. A criação de identidades no Novo Mundo já é uma prática de mudança cultural. Palavras-chaves: Diáspora; Identidades Africanas; Antropologia; Etnomusicologia. 1 Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Mestrando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Goiál. [email protected]

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O presente trabalho visa estabelecer conexões entre a construção de identidades e a aplicação de referenciais (simbólicos e estruturais) da África Central na musicalidade do Recôncavo Baiano. Serão analisados os traços referentes à tradição banto de uma manifestação musical denominada Samba de Roda. Embora em conjunto com os bantos, os iorubas façam parte dos dois modelos básicos de influência estética e simbólica na música afro-brasileira, a preponderância dos primeiros é extremamente relevante em se tratando desta musicalidade. A percepção de uma influência estrutural (em termos musicais) de um determinado grupo identificado por referenciais culturais comuns não expressa a ideia de uma continuidade entre um traço cultural africano e sua influência no Novo Mundo, no sentido de “transportar” uma cultura para as colônias. Porém, justamente o oposto. A criação de identidades no Novo Mundo já é uma prática de mudança cultural.

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A construo de identidades africanas na Bahia: musicalidades em dispora

Marcus Bernardes[footnoteRef:1] [1: Bacharel em Cincias Sociais pela Universidade Federal do Recncavo da Bahia. Mestrando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Goil. [email protected]]

Resumo: O presente trabalho visa estabelecer conexes entre a construo de identidades e a aplicao de referenciais (simblicos e estruturais) da frica Central na musicalidade do Recncavo Baiano. Sero analisados os traos referentes tradio banto de uma manifestao musical denominada Samba de Roda. Embora em conjunto com os bantos, os iorubas faam parte dos dois modelos bsicos de influncia esttica e simblica na msica afro-brasileira, a preponderncia dos primeiros extremamente relevante em se tratando desta musicalidade. A percepo de uma influncia estrutural (em termos musicais) de um determinado grupo identificado por referenciais culturais comuns no expressa a ideia de uma continuidade entre um trao cultural africano e sua influncia no Novo Mundo, no sentido de transportar uma cultura para as colnias. Porm, justamente o oposto. A criao de identidades no Novo Mundo j uma prtica de mudana cultural.Palavras-chaves: Dispora; Identidades Africanas; Antropologia; Etnomusicologia.

IntroduoA fala possui uma funo fundamental nas sociedades africanas em geral. A oralidade nesse sentido encarada com respeito e sua transmisso de saberes uma preservao da sabedoria dos ancestrais. As palavras devem ser ditas em um ritmo especfico, a msica possui um papel fundamental na ordem social e mtica dessas sociedades. O Samba de Roda, neste sentido, possuidor dessa herana africana. Em se tratando de influncias estticas e simblicas da msica afro-brasileira, destacam-se dois modelos: as tradies banto e ioruba. No que concerne ao Samba de Roda, a base estruturante basicamente provenientes dos bantos como comprovado em estudos etnomusicolgicos de Kazadi wa Mukuna (2006), Gerard Bhague (1976), Jos Jorge de Carvalho (2000) e outros. Este artigo procura demonstrar como os fatores culturais que moldam as vises de mundo dos indivduos, em uma situao de dispora, engendrou uma identidade africana no Brasil que por sua vez teve reflexos imperativos na msica. A transmisso destes saberes (musicais), sobretudo transmitidos pela fala, foi preservada na memria dos descendentes dos africanos. Para povos que tiveram sua ancestralidade e cosmovises em uma situao diasprica, a busca e valorizao do passado uma constante necessidade. A msica afro-brasileira, sobretudo a influenciada pelos bantos como o caso do Samba de Roda, a efetivao das relaes estabelecidas entre cosmoviso e identidades sociais. A tradicionalidade do samba est ligada s relaes entre os seus agentes, o universo simblico no qual eles esto inseridos e as ambincias sociais em que estes atos se desenvolvem.Entender as construes musicais dos povos implica em perceber alm dos aspectos estruturantes da Msica (ritmo, harmonia, melodia), a conjuntura histrica do processo, as dinmicas culturais e, principalmente as manifestaes simblicas universais da sociedade. A msica podendo ser caracterizada como a exteriorizao de uma unidade (bem como de uma diversidade coletivamente aceita) simblica de determinado grupo atravs de sons, percebida como um produto das relaes sociais em um dinmico permanente de ressignificaes. Segundo Carvalho (1994), o processo de criao musical envolve dois nveis, numa tenso permanente e universal. O primeiro nvel se refere aos processos semiticos de produo musical em si. Tais elementos semiticos esto no domnio do universo simblico dos agentes sociais; a religio vista como parte integrante da viso de mundo dos indivduos uma pea fundamental para entender este nvel de construo. No segundo nvel esto os idiomas da msica, seriam os discursos sobre a msica que se resumem em: o discurso dos nativos e os analticos (etnomusicolgicos). A produo musical envolve processos complexos entre cantores e instrumentistas, contexto e o prprio texto musical e musicalidades e vises de mundo (PINTO; 2001). substancialmente sobre o ltimo processo que este trabalho versa.As fontes significantes da msica encontram-se no arcabouo da cultura[footnoteRef:2]. As crenas religiosas trazem toda uma filosofia de vida que influencia diretamente os sujeitos nas formas de perceber o mundo. A religio, nesse sentido, desempenha mais do que outros elementos, um papel fundante para captar os sentidos de uma pea musical. Adotando uma perspectiva weberiana, a religio teria um alcance muito maior nas relaes estabelecidas pelo grupo social sob sua influncia do que outros aspectos da cultura, justamente pela sua capacidade de moldar a viso de mundo dos indivduos. Este excerto tem uma implicao prtica na conduta dos agentes sociais. A anlise da mesma, que desemboca nas estruturas simblicas (a cosmoviso), fundamental em dois aspectos: primeiro em funo de uma interferncia direta na msica[footnoteRef:3] e, segundo nas suas ligaes com a criao e desenvolvimento de identidades. [2: Adotando o conceito de cultura como simblico (GEERTZ; 2008), as atividades antrpicas transmitem significados. A msica como uma manifestao coletiva, como um documento de atuao, pblica na medida em que seu significado o . Neste sentido, segundo Carvalho (1994; 06) cada pea musical mobiliza um horizonte simblico e formal prprio e singular, em que contextos culturais vrios se entrecruzam. ] [3: Em relao msica afro-brasileira podem-se destacar dois modelos bsicos de influncia esttica e simblica. As tradies religiosas iorubas: a evocao de orixs nas letras das msicas; padro de compasso aditivo em 12 seja 7 + 5, ou 5+7; estilo antifonal de canto; polirritmia. E as tradies bantos: razes estticas angolanas; variaes de samba, ritmos binrios (CARVALHO; 2000). ]

Em seus estudos sobre os Deuses Orixs na frica e Novo Mundo, Verger (1997) descreve vrias cerimnias onde a funo musical sine qua non para os processos religiosos. No que tange ao Novo Mundo, os atabaques so responsveis tanto em chamar os orixs quanto em transmitir suas mensagens. No incio das cerimnias de Candombl os atabaques so tocados sem o acompanhamento da dana ou do fator meldico. A pureza do ritmo associa-se a cada orix. O elemento meldico destaca-se em cerimnias particulares (sacrifcios, oferendas, louvores). So cnticos (em linguagem ioruba), executados sem os tambores, marcados por singelas palmas. Esses aspectos so importantes para perceber a linguagem musical atrelada aos fenmenos religiosos.Para entender historicamente este complexo cultural que o Samba de Roda, fundamental perceber as relaes Portugal-frica-Brasil. Antes mesmo da insero do Brasil no mercado colonial, Portugal j mantinha relaes escravistas com a frica, no qual os negros escravizados ocupavam diversas funes urbanas e rurais. No Brasil, o crescimento das comunidades, a rentabilidade do trfico de escravos e a indstria da cana imps o trabalho compulsrio. Os negros eram provenientes principalmente das regies da Guin e Angola. A populao de escravos foi aumentando exponencialmente medida que no sculo XVII iniciava-se certa vida urbana em Salvador, Recife e Rio de Janeiro.

Os negros africanos e seus primeiros descendentes crioulos e mestios estavam prontos para fazer sua entrada na vida cultural do Brasil, ao som ruidoso e potente dos seus batuques, calundus e autos de embaixadas e coroaes de reis do Congo. (TINHORO; 2008; 27)

Jos Ramos Tinhoro, em Os Sons dos Negros no Brasil, traz conceituaes interessantes sobre os termos empregados na poca colonial que se referia musicalidade dos africanos e descendentes. Batuque seria um termo genrico portugus para os sons dos africanos considerados ruidosos, segundo as concepes musicais europeias vigentes na poca. No entanto, por trs deste termo, se esconde uma diversidade de prticas religiosas, danas rituais e formas de lazer. O Calundu seria uma dana religiosa de escravos, tambm utilizada como sinnimo de Lundu, embora este designasse uma dana de roda profana base de umbigas, marcada por palmas e entoada por violas. O termo samba parece substituir o termo genrico batuque quando a umbigada passa a prevalecer enquanto coreografia. Tinhoro, neste sentido, estabelece relaes entre o Lundu e o Samba de Roda:

O pormenor de bailarem os pares quase sem moverem as pernas, com toda a ondulao licenciosa dos corpos uma clara referncia ao miudinho que passaria mais tarde aos sambas de roda, onde os danarinos (homens e mulheres) aproximavam-se de frente uma para o outro, tremelicando o corpo apenas da cintura para baixo, para culminar no tal contato imodesto, ante os aplausos e gritos de estmulo dos presentes. (TINHORO; 2008; 66-67).

Outro elemento fundamental deste contexto so os cantos de trabalho. A viso dos cronistas da poca colonial, segundo Tinhoro (2008), que os cantos de trabalho eram importantes para o escravo naquela situao imposta e forada, gerando atravs da msica laos de solidariedade e fora para continuar na labuta diria. Entretanto, possvel que tenham utilizado versos de seus cantos para conversarem enquanto trabalhavam, descobrindo formas de comunicao que o senhor no percebia, atravs de figuras de linguagem que mascaravam o real sentido das mensagens. A palavra cantada envolve relaes entre a mensagem que a msica pode passar e as interaes entre poetas e msicos. No campo emprico h uma confluncia do sagrado e do profano. No sculo XIX na Bahia, era provvel que existissem distines dos ritmos do candombl e dos batuques. Estes (os batuques) foram expresses musicais que seriam a gnese do samba baiano e por consequncia, do carioca (MUKUNA; 2006). Segundo o mesmo autor o termo batuque seria uma denominao portuguesa para samba de umbigada ou dana de roda existente nesse perodo, que por sua vez teria se originado (dentre outras influncias) do Semba (umbigada) da regio Congo-Angola. Os batuques ldicos diferenciavam quanto ao grupo tnico executor, podendo ser distinguidos como originrios do Congo-Angola ou crioulo, que possua uma maior aceitao pelo seu status de mais civilizado. Tanto em Angola como no Congo, a presena do crculo na dana fundamental. Este fato pode ser evidenciado num trecho do livro Contribuio Portuguesa para o Conhecimento da Alma Negra, embora seja uma viso etnocntrica ocidental:

Nada tm [...] de extraordinrio, estes batuques de Angola. Os danarinos, s homens, s mulheres, ou uns e outros misturados, formam uma roda e vo andando de lado, a passos curtos, o corpo inclinado para a frente, mexendo os quadris e batendo palmas, ritmicamente, acompanhados pelo rudo incessante dos tambores ou pelo som da marimbas. Em certos casos, uma ou duas mulheres bailam isoladas no meio da roda, mas so sempre simples os passos dessa dana elementar. O que impressiona o ardor que os pretos pem na dana, como se ela fosse qualquer coisa de essencial. O que inspira muito mais um sentimento religioso que a sensualidade, ao contrrio do que supem os que confundem com esta o impudor natural. Uma coisa me convence, no s da importncia que os pretos do ao batuque, mas da existncia, entre eles, dum sentimento de dignidade e orgulho: a absoluta indiferena pelos espectadores brancos. (OLIVEIRA; 1952; 11)

Assim, batuques de sentido ldico e batuques de sentido religioso influenciavam-se reciprocamente[footnoteRef:4]. Pensar o Samba de Roda em uma relao dicotmica que separa a instncia do sagrado e do profano uma tentativa de reduzir, at em termos analticos, a compreenso do fenmeno cultural. O escopo adotado na pesquisa seria dialtico, no sentido de compreender justamente a interseco dos processos, a ambivalncia. [4: fundamental perceber que no Recncavo Baiano, a festa de Nossa Senhora da Boa Morte (segundo Verger, a Irmandade da Boa Morte foi fundada por mulheres do grupo tnico Nag, cuja maioria pertencia nao Kto), um exemplo notvel de elementos catlicos e dos divertimentos profanos no espao pblico, no qual os batuques contavam como parte integrante no programa do evento catlico (VERGER, 1997; SANSONE; SANTOS, 1997). A ideia de Nao segundo Vivaldo da Costa Lima refere-se a um padro ideolgico e ritual dos terreiros de candombl da Bahia fundados por africanos angolas, congos, gges, nags (LIMA; 1974; 77). A nao Kto, desde os mais antigos terreiros da Bahia (Engenho Velho e Terreiro de Alaketu), passou a ser associado a um ideal de pureza nag; ocorrendo no Recncavo Baiano um processo valorativo da cultura ioruba. Estas Irmandades Negras expressavam o pacto colonial entre negros e brancos, preservando as tradies africanas, com uma esttica prpria e padres de danas referentes sua musicalidade. Para Carvalho (2000), a maioria dos gneros musicais afro-brasileiros est ligada a essas irmandades. A Irmandade da Boa Morte em Cachoeira um exemplo da ligao entre religiosidade e gneros seculares tradicionais (samba de roda).]

Elaborao de um Modelo Abstrato

O mundo social emprico complexo e polissmico, cabe ao pesquisador estabelecer meios para torn-lo mais inteligvel. Destarte o universal s pode ser contemplado pelo estudo das particularidades. fato que diferentes fatores influenciaram a construo do samba na Bahia; a historiografia da colonizao retrata claramente a vinda de diversos povos africanos inseridos em um universo comum, subjugados a uma cultura dominante europeia. Esta questo no plano emprico torna-se impossvel de ser analisada observando o todo. necessria inicialmente a segmentao destas influncias para uma melhor compreenso do processo. Outro aspecto importante, que entendo as manifestaes musicais no sculo XIX na Bahia (sambas e batuques) como uma manifestao de classe social, no relacionado apenas a um grupo tnico especfico. Embora a base (material e imaterial) destes sambas esteja ligada a referenciais africanos, ocorreu em seu desenvolvimento uma apropriao desta msica pelas camadas pobres e marginalizadas da sociedade baiana (sujeitos sociais mltiplos: escravos, crioulos, alforriados, brancos pobres, mestios, prostitutas etc.). Assim os batuques do sculo XIX representavam uma afronta moral e tambm musical aos padres estticos das elites baianas, fato que se comprova nas proibies oficiais desta manifestao artstica j muito popular (SANSONE; SANTOS, 1997).Entretanto o objetivo deste ensaio remete a algumas influncias bantos na construo musical na Bahia. A delimitao da regio do Congo-Angola foi feita a partir da constatao de que esta a origem de parte significativa do contingente africano trazido Bahia (FIGUEIREDO; 2010). Perceber traos da cosmologia destes agentes sociais, analisando suas sociedades, sua conjuntura histrica especfica poder elucidar vrias reconstrues e reinvenes destes povos na cultura baiana, no caso aqui latente os sambas e batuques do sculo XIX na Bahia. Tais manifestaes musicais sero determinantes para o ulterior desenvolvimento dos Sambas de Roda no Recncavo, que foram adquirindo caractersticas especficas em funo dos lugares sociais em que se estabeleceram, porm mantiveram aspectos universais que as legitimam a denominao de sambas de roda. Esta viso de universalidade percebida enquanto categoria de anlise, ou seja, um modelo abstrato para explicar o fenmeno cultural; j que existe uma pluralidade de tradies do Samba de Roda dentro e fora do territrio do Recncavo baiano. Contudo, mesmo percebendo tal diversidade, os sambadores[footnoteRef:5] reconhecem uma musicalidade chamada Samba de Roda que possui subtipos, gneros; mas que de forma geral, possuem semelhanas estruturais. [5: Categoria mica que expressa as pessoas envolvidas no Samba de Roda.]

Em funo desta busca por perceber ligaes entre fatores subjetivos de um grupo social e os reflexos imperativos na musicalidade do mesmo, tenho a hiptese de que se existe uma cosmoviso genrica (designado por Mukuna como denominadores culturais comuns) comum aos povos congo-angolanos que no trfico transatlntico estabeleceram-se na Bahia; talvez tais caractersticas tenham influenciado determinadas formas musicais (a importante funo da roda no samba, ideias de circularidade, sentidos religiosos na msica, determinadas performances) do Samba de Roda em sua construo social. Esta cosmoviso vista em sua forma unitria coerente como um modelo explicativo. Robert Slenes (1992) aponta trs autores (Craemer, Vansina e Fox) que apresentam aspectos comuns da religiosidade da frica Central. O ncleo seria a percepo do complexo cultural ventura-desventura, no qual se busca a harmonia, a sade, o equilbrio, sendo os seus opostos frutos da interferncia de espritos e pessoas atravs da feitiaria. Assim a manuteno destes valores remete a estados de pureza ritual.

As cerimnias e os tabus observados pela comunidade ou pelo indivduo para atingir esse estado de pureza associado especialmente dana, msica e ao transe geralmente so feitos em torno de um fetiche (charm), que um objeto feito sob inspirao, incorporando os smbolos mais poderosos do movimento (religioso). (SLENES; 1992; 58).

No Brasil, parte-se desta mesma noo de ventura-desventura, entretanto reinterpretando novos smbolos adquiridos, pois a cultura dinmica. A cosmoviso congo-angolense (de povos falantes de kikongo, kimbundu e umbundu, principalmente) apresentaria uma dupla importncia: uma influncia mtica na msica e principal referencial de criao para uma identidade banta, no movimento de dispora frica-Brasil.Identidade e Mudana Cultural

Embora a maioria dos antroplogos tenha insistido, durante o sculo XIX e boa parte do atual, que a unidade da frica Central e Austral era apenas lingustica, h razes para pensar que representantes desses povos, quando misturados e transportados ao Brasil, no demoraram muito em perceber a existncia entre si de elos culturais mais profundos. (SLENES; 1992; 49)

Tais razes apontadas por Slenes, que extrapolam as similitudes lingusticas, seriam a base para compreender a construo de identidades. Para o autor este um processo complexo ligado a acontecimentos que precedem a viagem atlntica. A identidade banta s foi possvel em funo de vises de mundo compartilhadas, em certo sentido, numa busca de semelhanas culturais. A memria coletiva possui um papel de conservao e transmisso dos valores das instituies em sociedades orais, como o caso da frica Central. Nessas sociedades estes valores eram transmitidos pelas tradies; representaes coletivas inconscientes (VANSINA; 2010) que influenciam as formas de expresso e constituem as vises de mundo. A semelhana estrutural da linguagem (entre alguns povos, pois entre outros no existia essa unidade banto preconizada por tantos linguistas europeus) pode ter sido o veculo inicial para as primeiras interaes. O termo malungo possuindo analogias significantes em trs grandes lnguas (kikongo, kimbundu e umbundu) da frica Central, alm do sentido literal para muitos autores: companheiro de barco, de sofrimento, irmo apresentaria significados cosmolgicos comuns aos povos falantes dessas lnguas. A significao remete a outro termo: Kalunga (mar, rio). Este termo possui uma representao mental que extrapola a sua funo literal e que era apreendida por estes povos como uma passagem para o mundo dos mortos. Na regio Congo-Angola a cor branca simboliza a morte; enquanto os homens eram pretos (vida), os espritos eram brancos. Assim a viagem transatlntica simbolizava uma passagem para o mundo dos mortos: o Novo Mundo. No processo do trfico de escravos diferentes povos em suas pluralidades culturais e historicidades prprias, eram aprisionados e amontoados em um ambiente comum, numa mesma situao de desespero e medo em frente ao desconhecido, sendo brutalizados pela escravido. Estes momentos comuns lhe conferiam uma identidade que era construda em funo de semelhanas como forma simblica de resistncia. A terminologia banto foi uma referncia lingustica cunhada na Europa no sculo XIX (SILVA, 2006), no entanto ulteriormente passou a ser designada pelos prprios africanos e descendentes como afirmao de uma identidade africana na Bahia. Assim, Slenes afirma:

Se num primeiro momento, na travessia da frica e do Atlntico, os falantes de lnguas bantu comearam a perceber que podiam trocar ideias com outras pessoas (...), no Brasil eles se deram conta de que sua liminaridade provavelmente iria durar para sempre. (SLENES; 1992; 56)O estudo da problemtica banto e de aspectos cosmolgicos comuns aos povos da regio Congo-Angola foi elaborado a partir da constatao de influncias decisivas, tanto em aspectos estruturais da msica quanto em significao simblica[footnoteRef:6], na musicalidade no Recncavo baiano. Em diversas letras[footnoteRef:7] dos gneros tradicionais afro-brasileiros so notveis as evocaes estritamente referentes frica Central (Angola, Congo). Este desejo de retorno frica (Central), mais do que uma referncia histrica, ou uma fantasia para fugir do sofrimento imposto pela escravido, Angola e Congo podem ser pensados tambm como uma regio mental (CARVALHO; 2000). Para Sodr (1998), a organizao formal do samba ou batuque africano foi trazida para o Brasil por escravos originrios de Angola e do Congo, principalmente. Os mais importantes grupos populacionais desta regio, segundo Figueiredo (2010), so: Kongo (ou bakongo, falantes de kikongo) localizado na margem sul do baixo curso do Rio Congo; Mbundu (Ambundo ou Bundu) estabelecidos ao redor da Bacia do Rio Kwanza; e Umbundu (ou Ovimbundu) no planalto Angolano. Estes dados geogrficos so relativos regio do Congo-Angola pr-colonial. Ainda segundo o mesmo autor, nos trs primeiros sculos de trfico de escravos para o Brasil, os principais grupos eram da referida regio. VERGER (1997) afirma que at aproximadamente o final do sculo XVII, em relao Bahia, esses contatos foram particularmente intensos com Angola e o Congo. A respeito da importncia desses povos para a construo musical no Recncavo, no seu artigo Divertimentos Estrondosos: Batuques e Sambas no Sculo XIX, Joclio dos Santos numa relao comparativa entre frica Central e Bahia afirma o batuque, que aparecia no Congo e em Angola sob a mesma denominao, era tido como uma dana de pretos provenientes das naes conguesa e bunda (SANTOS; 1997; 18). [6: Atravs dela [sincopa], o escravo no podendo manter integralmente a msica africana infiltrou a sua concepo temporal-csmico-rtmica nas formas musicais brancas. Era uma ttica de falsa submisso: o negro acatava o sistema tonal europeu, mas ao mesmo tempo o desestabilizava, ritmicamente, atravs da sincopa uma soluo de compromisso (SODR; 1998; 25). Embora Sodr no enfatize, necessrio perceber o processo de socializao aos quais os escravos e seus descendentes estavam inseridos. Um exemplo, no que tange s prticas do Candombl, os negros eram socializados em um respeito mtuo ao Catolicismo e s suas religies autctones. A respeito da estrutura musical, Lima (1996) destaca a influncia banto de forma geral na msica popular brasileira, citando o exemplo da clula rtmica de dezesseis pulsaes:Verso a: (16) [x.x.x.xx.x.x.xx.] (nove batidas)Verso b: (16) [x.x.x.x..x.x.x..] (sete batidas)] [7: Ver Carvalho (2000).]

Constatado o fato da importncia desses povos congo-angolanos no processo musical e histrico (alm de outros aspectos diversos que extrapolam a proposta deste captulo), a construo de uma identidade africana na Bahia engendrada a partir de referenciais simblicos compartilhados funcionou como uma espcie de sntese para uma quantidade enorme de significados e significantes culturais existentes em frica, mas que na Bahia adquiriram outras feies. Como exemplo, Pierre Verger encontrou diferenas nas relaes estabelecidas entre indivduos e Orixs na frica e no Novo Mundo. Em frica, o Orix um bem de famlia, coletivo e que abarca toda uma comunidade. Nos terreiros de Candombl, os Orixs so pessoais, isto , cada adepto possui o seu e todos esto reunidos em torno do orix do terreiro, smbolo do reagrupamento, do que foi disperso pelo trfico (VERGER; 1997; 33). Este excerto, embora trate mais especificamente na regio da frica Ocidental, ilustrativo para perceber que os referencias foram e sempre sero ressignificados. Embora as matrizes africanas sejam importantssimas para compreender o processo de construo social da msica no Recncavo, as ambincias em que se desenrolaram esses processos, os aspectos sociais diversos tm um papel definitivo para a cor de determinada musicalidade. O estudo da identidade dos bantos e suas implicaes na msica, nesse nterim, justamente a preocupao de perceber a aplicao desses referenciais centro-africanos efetivamente no Samba de Roda do Recncavo da Bahia.A identidade um contedo comunicativo que orienta o desenvolvimento das relaes, contendo duas dimenses: uma pessoal (individual) sujeita a interaes; e uma social (coletiva), onde seria o plano em que a identidade se erige. Assim, a identidade social surge como a atualizao do processo de identificao e envolve a noo de grupo social (OLIVEIRA; 2003). A viso da construo de identidades africanas no Novo Mundo s possui sentido, tendo em vista os processos de ressignificao das prticas culturais. A criao de comunidades, desta noo de grupo social, a partir da juno de diversos grupos tnicos (mesmo com algum grau de reconhecimento) em um mesmo local e situao (diasprica e escravista), s foi possvel em funo de processos de mudana cultural.

A tarefa organizacional dos africanos escravizados no Novo Mundo foi a de criar instituies instituies que se mostrassem receptivas s necessidades da vida cotidiana, dentro das condies limitantes que a escravido lhes impunha. (MINTZ; PRICE; 2003; 38).

A noo de instituio que os antroplogos norte-americanos se referem, remete a ideia de uma interao social regular de carter normativo. Uma musicalidade, construda socialmente, sobretudo um espao de interaes sociais. A percepo de uma influncia estrutural (em termos musicais) de um determinado grupo identificado por referenciais culturais comuns no expressa a ideia de uma continuidade entre um trao cultural africano e sua influncia no Novo Mundo, no sentido de transportar uma cultura para as colnias. Porm, justamente o oposto. A criao de identidades no Novo Mundo j uma prtica de mudana cultural. Pensar em grupos banto s tem sentido no contexto colonial, nas Amricas, no em frica. Para que estas prticas sejam ressignificadas por determinados agentes, pressupem-se, em primeira instncia, um certo grau de reconhecimento mtuo (dado pela construo de identidades).

Referncias

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