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AS FACES DE ADÃO: A Construção da Masculinidade Contemporânea em Portugal Paulo Guinote O tema da masculinidade contemporânea, dos seus valores, das suas rotinas e dos seus atributos, tem vindo a estar afastado da investigação histórica e sociológica, permanecendo um quase exclusivo do domínio da Antropologia. Focando basicamente as comunidades humanas ditas "primitivas" e os seus rituais de iniciação e passagem à idade adulta, a antropologia anglo-saxónica produziu um amplo espectro de leituras que não teve, de forma alguma, equivalente comparável no campo da produção historiográfica. As razões para esta atitude radicaram na crença largamente espalhada, e longamente interiorizada como correcta, de que as definições e manifestações históricas da masculinidade constituem um dado adquirido, que tornaria redundante qualquer tipo de abordagem. A elaboração da História ao longo dos séculos seria uma longa descrição da construção/experiência da História no masculino que se pretendia passar como a história da Humanidade. A "voz dos homens" contra o "silêncio das mulheres" na História tem vindo a ser a teoria das enérgicas análises feministas que surgiriam em defesa da Mulher, enquanto sujeito invisível de um passado reconstituído de forma parcial e quase exclusivamente masculina. Assim, ao defender-se o direito à diferença para a vivência feminina da História, o Homem passou a ser definido pela negativa, como contraponto, esboçando-se a traço grosso os atributos dessa masculinidade repressora. Os anos 70, em especial nos países anglo-saxónicos, experimentaram o nascimento e proliferação dos chamados Feminist Studies que, com a sua crescente aceitação académica procuraram

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AS FACES DE ADÃO:A Construção da Masculinidade Contemporânea em Portugal

Paulo Guinote

O tema da masculinidade contemporânea, dos seus valores, das suas rotinas e dos seus

atributos, tem vindo a estar afastado da investigação histórica e sociológica, permanecendo um

quase exclusivo do domínio da Antropologia. Focando basicamente as comunidades humanas ditas

"primitivas" e os seus rituais de iniciação e passagem à idade adulta, a antropologia anglo-saxónica

produziu um amplo espectro de leituras que não teve, de forma alguma, equivalente comparável no

campo da produção historiográfica. As razões para esta atitude radicaram na crença largamente

espalhada, e longamente interiorizada como correcta, de que as definições e manifestações

históricas da masculinidade constituem um dado adquirido, que tornaria redundante qualquer tipo

de abordagem. A elaboração da História ao longo dos séculos seria uma longa descrição da

construção/experiência da História no masculino que se pretendia passar como a história da

Humanidade. A "voz dos homens" contra o "silêncio das mulheres" na História tem vindo a ser a

teoria das enérgicas análises feministas que surgiriam em defesa da Mulher, enquanto sujeito

invisível de um passado reconstituído de forma parcial e quase exclusivamente masculina. Assim,

ao defender-se o direito à diferença para a vivência feminina da História, o Homem passou a ser

definido pela negativa, como contraponto, esboçando-se a traço grosso os atributos dessa

masculinidade repressora.

Os anos 70, em especial nos países anglo-saxónicos, experimentaram o nascimento e

proliferação dos chamados Feminist Studies que, com a sua crescente aceitação académica

procuraram apresentar-se de forma menos activista, se transmutaram gradualmente em Women's

Studies ou Gender Studies, e se foram divulgando pelas principais historiografias europeias. As

últimas décadas permitiram a consolidação deste campo de investigação nas ciências sociais e

humanas, a nível europeu e mundial, recuperando para a existência histórica e para a "visibilidade",

aquela grande minoria que é a população feminina. Desta forma, se procurou combater a injustiça

que durante décadas ou mesmo séculos sacrificou o papel da Mulher na Sociedade e na História,

apresentada como sujeito menor, discriminado na vivência quotidiana e no tratamento que sobre ele

os investigadores sociais e historiadores dedicaram, reduzindo-a a estereótipos.

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O avanço da investigação sobre a experiência histórica feminina (e já não tanto feminista),

justificou, há já uma década, os primeiros esforços de história global (Anderson e Zinsser 1990 e

Duby e Perrot 1992), e tem vindo a ocupar um número crescente de trabalhos e investigadores, em

acelerado esforço de reabilitação de uma injustiça secular. Verificamos, contudo, que até há bem

pouco, isso acarretou uma consequência negativa simétrica da anteriormente criticada. Ou seja, o

sujeito dominador, opressor e responsável pela discriminação - o Homem -, passou ele próprio a ser

objecto do tratamento que antes dispensava ao universo feminino: agora é ele que, em muitos

estudos sobre a Mulher, surge definido pelo esboço, pela redução caricatural e arquetípica.

Recuperaram-se parcialmente, com diversos graus de aprofundamento e sistematização, as

experiências femininas do acesso à educação, dos rituais envolvendo a sua juventude, de entrada no

mercado de trabalho, da vida familiar e conjugal, da maternidade, do ciclo de vida biológico

feminino, etc, etc; foi dado especial destaque à sua intervenção cívica e política e à sua participação

em movimentos de carácter sindical e de contestação social, enquanto menor relevância mereciam

outros temas como as expectativas sociais perante o nascimento de elementos do sexo feminino, o

envelhecimento ou mesmo a preparação para a morte (áreas mais circunscritas ao domínio da

Antropologia Social). Em falta ficaram os estudos simétricos para o caso masculino. Os exemplos

em contrário constituem aquelas excepções que, pelo seu isolamento, acentuam ainda mais o seu

desenquadramento das tendências dominantes do momento. É o caso de trabalhos percursores como

algumas tentativas de história da paternidade em França (Delumeau e Roche 1990) e nos E.U.A

(Griswold 1993), resposta a esforço com uma década de avanço para a maternidade (Knibiehler e

Fouquet 1980).

No entanto, a partir de meados dos anos 80, com um claro reforço na última década do

século XX, começou a surgir uma vaga, com epicentro essencialmente nos E.U.A., de estudos sobre

os fundamentos da masculinidade tradicional que, finalmente, pareceu começar a ser posta em

causa, quer na sequência das críticas exteriores como de uma reformulação interna dos valores

masculinos (vejam-se, entre outros, Cornell 1995, Horrocks 1994, McInnes 1998, Messner 1997 ou

Segal 1990). Resultado de mutações visíveis em diversos campos da cultura, mais ou menos

popular, como o cinema, as séries televisiva, a publicidade, em que a representação do Homem

começa a adquirir contornos e atributos diversos dos tradicionalmente associados à masculinidade,

de onde ressalta uma fragilização da sua imagem e, em simultâneo, uma sua abertura a valores e

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rotinas a que anteriormente se mostrava avesso e empurrava para o domínio exclusivo da Mulher.

Ao ponto de alguém perguntar o que quererão os homens, na abertura de um pequeno estudo-guia

em torno das leituras possíveis sobre a "crise de identidade masculina" nos nossos dias (Shweder

1994).

As questões que se pretendem levantar nestas páginas são, em suma, as que se relacionam

com o significado, no concreto, do "ser-se homem" (macho dominador, insensível, defensor

acérrimo dos seus privilégios e ser intrinsecamente não igualitário, na visão mais radical do

feminismo contemporâneo) no século XIX, na sociedade ocidental. Que atributos definiam a

masculinidade ? As meras, embora estruturais, questões de ordem biológica, ou algo mais ? Que

sinais exteriores definiam o modelo masculino dominante e como evoluíram até ao início do século

XX ? Que espaços se podiam considerar característica e exclusivamente masculinos ? Quais os

seus rituais específicos, como se entrava para o universo masculino adulto ? Quais as suas

diversões, os seus hábitos de leitura ? Como se deveria processar o seu relacionamento com o sexo

oposto ? Quais os valores que conscientemente assumiam em oposição, contraposição ou

sobreposição aos do universo feminino ? Que ameaças sentiram à sua identidade ?

Curiosamente, apesar das aparências, tudo isto continua por responder.

1. O Contexto Histórico e a Evolução dos Valores Masculinos

Ao longo de todo o século XIX afirma-se um novo modelo de masculinidade, burguês, que

substitui gradualmente, de forma mais pacífica ou mais conflitual, os anteriores modelos de origem

aristocrática. Na sua área de actividade profissional, no vestuário, nos atributos físicos, nas

relações familiares, ao nível das diversões, a masculinidade ganha novos contornos que se vão

articulando ao longo de algumas décadas até se cristalizarem na segunda metade de Oitocentos.

Após décadas de atitude voluntariosa, de afirmação dos valores assumidos, o homem burguês

constitui um modelo de si próprio que apresenta com um (recente) manto de respeitável tradição,

que então procura reproduzir de geração em geração e defender de todos os ataques de que se sente

objecto.

A sociedade ocidental experimentaria, ao longo das últimas décadas do século XVIII e

primícias da centúria seguinte, um conjunto de transformações decisivas em diversos planos, que se

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articulam e interligam de uma forma que rapidamente se verificou ser revolucionária. Ao nível

económico verifica-se o desenvolvimento de toda uma nova forma de organização do trabalho e da

produção de bens, com a introdução da energia a vapor e da mecanização do processo produtivo.

Nasce a Revolução Industrial que, a partir da Inglaterra, vai ganhar grande parte do continente

europeu e se estende ao americano. Abandona-se definitivamente em muitas regiões o velho

modelo feudal, vocacionado para a auto-subsistência, com uma acumulação não-produtiva da

riqueza, que se delapida através da ostentação supérflua, sem uma preocupação racional no seu

aproveitamento produtivo. Agora, o velho senhor feudal é substituído pelo empresário

empreendedor, que gere com rigor os seus capitais e os reinveste racionalmente na actividade

produtiva, no sentido de criar nova riqueza. É o triunfo da ideologia burguesa de constante busca de

reprodução da riqueza material, contra o velho modelo da ostentação aristocrática. "Ainda que

tenhas muita riqueza, sê poupado e cuidadoso em teus vestidos; não por affectação, mas por habito;

andarás sempre aceiado com menos despeza" recomenda-se em manual de civilidade de meados do

século e reeditado em décadas seguintes (Roquete 1845, 448).

No plano político-social, as lutas travam-se em torno do acesso ao poder por parte daqueles

que agora se tornaram a trave-mestra da actividade económica dos Estados mais desenvolvidos,

sem que tal situação lhes seja reconhecido no plano político, onde continuam a ver-lhes negado um

estatuto de igualdade na velha sociedade de ordens, herdada da tradição medieval. O absolutismo,

mesmo quando busca nas camadas enriquecidas do Terceiro Estado um suporte para o seu ataque a

alguns privilégios do clero e da nobreza, continua a assentar a sua legitimidade numa tradição de

contornos fluídos, em que as regras não se encontram claramente estabelecidas. Com o mesmo

rigor e racionalidade com que controlam os seus negócios e anotam os seus lucros e investimentos,

os burgueses pretendem um modelo de organização política da sociedade que explicite as suas

regras e lhes dê o lugar de igualdade, que julgam ser justo. Pretende-se uma Constituição que

defina as regras da vida política e social e um Parlamento eleito que garanta a todos a possibilidade

de se sentir representado e de participar na arquitectura dos poderes. É a Revolução Liberal que se

anuncia na Independência Americana de 1776 e é catalizada pela Revolução Francesa de 1789, que

rapidamente se ameaça estender a toda a Europa. E a sua força motriz encontra-se no mundo

burguês, cuja vitalidade económica inspira e alimenta o sucesso das pretensões políticas e sociais.

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É certo que o novo modelo não é verdadeiramente igualitário e que o seu critério de

igualdade se baseia na riqueza e no sucesso económico. As suas soluções políticas postulam uma

igualdade formal no plano da cidadania, mas reservam-se a prudência de uma participação activa

selectiva na vida política, cuja base é censitária. A burguesia pretende o alargamento, ou a

substituição, da elite dominante, não o seu desaparecimento e diluição numa sociedade sem

distinções de condição, onde o seu próprio estatuto não se destaque da imensa mole humana em

crescimento, em especial nos grandes centros urbanos tradicionais. O que ela verdadeiramente

deseja é o fim da sociedade feudal de privilégios não conquistados e usufruídos sem para que tal se

demonstre qualquer mérito particular. A recusa burguesa deste sistema de valores e

comportamentos tem uma componente tão ideológica como económica. São reprovadas as

manifestações exteriores de ostentação supérflua, sumptuária, sem lógica ou racionalidade

económica, fundamentalmente não rentáveis e em que a delapidação dos recursos não tem

compensação visível, para além da ostentação simbólica por si mesma. Os novos valores burgueses

masculinos sublinham a sobriedade, o rigor, a lógica economicista dos comportamentos e não a

dissipação. Em simultâneo, ao associar ao universo feminino muitas das atitudes correntes na

sociedade que tinham derrubado, caracterizam-na como fraca, pouco viril e destacam a força das

novas soluções políticas liberais. No plano das mentalidades, as transformações das estruturas

políticas e económicas têm reflexos subtis na definição do papel masculino na sociedade, da sua

esfera de acção, do seu comportamento e dos seus caracteres físicos e psicológicos.

São diversos os sinais que apontam o ideal do self-made-man como o mais admirado na

sociedade burguesa ocidental nas primeiras décadas do século XIX (Rotundo 1993, 18-19); o mais

valoroso é o homem que demonstrou a capacidade de se afirmar na sua actividade profissional, de

ter sucesso nos seus negócios, enriquecer e obter o reconhecimento público em virtude das suas

qualidades práticas e não como fruto do seu nascimento e de um estatuto social que previamente

define o seu posicionamento socio-económico e para o qual o próprio beneficiário não dispende

qualquer esforço ou demonstra particular mérito que o justifique. O burguês de sucesso, que surge a

fundar uma nova ordem social e política teoricamente igualitária é o homem que constrói o seu

próprio sucesso e o legitima pelo mérito demonstrado; ele conquista-o e não o recebe como um

dado adquirido à nascença.

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É verdade que largas camadas da burguesia se deixam seduzir por alguns dos "vícios"

apontados à anterior elite dominante: os títulos nobiliárquicos honoríficos não são mal recebidos,

assim como a apetência por uma situação de grande proprietário rural não desagrada a todos. Mas

esse é um estatuto conquistado com o fruto do próprio trabalho e isso distingue, desde logo, a

natureza dos novos senhores da dos antigos, simples depositários de um património transmitido

secularmente, de geração em geração. De qualquer forma, também não são desprezadas as

estratégias matrimoniais como veículo de ascensão social: as uniões desiguais, entre a velha

aristocracia falida e a nova burguesia endinheirada são motivo de caricaturas frequentes, "pois

d'antes havia lá d'estas chamadas allianças desiguaes, de uma filha de condes ou marquezes casar

com um homem que representa senão dinheiro, - dinheiro e homem que ninguem sabe d'onde vêem

? (Machado 1874, 53). Não é por acaso que, simbolicamente, seja a figura feminina a encarnar o

papel da aristocracia nestas uniões e o homem o da burguesia: aquela prostitui-se, em virtude da sua

miséria, satisfazendo os desejos e apetites do seu rico corruptor, sem lhe olhar às origens.

O ideal masculino burguês também se define em oposição às massas populares de cujo seio

se ergueu a pulso e à vivência quotidiana, quer do velho campesinato como do nascente

proletariado urbano. Se ao longo do século XIX, existe camada que tome uma complexa, e

ambivalente, consciência das suas especificidades e dos seus interesses na sociedade onde se afirma

com um papel dinâmico e intermédio é a burguesia. Ela aspira a ascender ao poder, pelo que

combate, invejando, os ideais aristocráticos, ao mesmo tempo que se procura demarcar firmemente

das massas populares, as famigeradas "classes perigosas" oitocentistas, cujo quotidiano se cruza

amiúde com a marginalidade, o crime e a imoralidade. O mesmo acontece com a definição dos

valores e comportamentos masculinos burgueses. Se em relação à aristocracia se contrapõe o mérito

do trabalho e o sucesso dos negócios à aquisição de privilégios meramente pelo nascimento,

relativamente à arraia-miúda exalta-se a racionalidade dos actos, a sobriedade dos comportamentos

e uma moral familiar puritana em, oposição ao desregramento e promiscuidade moral das atitudes e

das paixões populares, incapazes de se elevar acima da cloaca da vulgaridade, omnipresente nos

caóticos bairros populares onde a escuridão, a sujidade, o ruído, a confusão de corpos, em suma a

desordem, impedem a esperança e condicionam os destinos.

O burguês anseia para o seu mundo, antes de qualquer outro valor, a "Ordem": a ordem que

evita os excessos e desvarios irracionais da ostentação aristocrática absolutista, mas que também

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reprova e reprime a amálgama de comportamentos e a contestação das camadas populares. O

mundo burguês ocidental do século XIX é uma construção ideal que ultrapassa as divisões

religiosas no seio do mundo cristão: embora numa formulação mais depurada nos ambientes anglo-

saxónicos puritanos ou anglicanos, no centro e norte europeu luterano e no sul católico está

igualmente presente, com variações que derivam mais do estado de desenvolvimento económico

das sociedades do que das oposições que um par de séculos antes justificavam guerras sem

misericórdia.

Embora com adaptações em aspectos pontuais, o ideal masculino do burguês enriquecido à

custa do seu trabalho, cujo espírito de iniciativa legitima a partilha ou o domínio do poder político,

que consolidou uma vida familiar regrada, que delimitou claramente o seu espaço de manobra nos

domínios público e privado da sua vida, que procura limitar os contactos com as massas populares

em permanente convulsão, que gere com parcimónia os negócios como as paixões, que por vezes

aposta na educação como estratégia de valorização social, afirma-se com o século e, em Portugal,

com a ascensão e queda da Monarquia Constitucional, sabendo renovar-se com a adesão ao

republicanismo. Desde a sgunda metade do século XIX, o mundo em que vive, a ordem política,

social e familiar em que se desenrola o seu quotidiano, não foi ele que a moldou mas é ele que a

preserva e a enriquece, definindo com maior clareza os contornos do "bem" e do "mal" e de uma

moral de que ele é a primeira, e última, garantia.

2. A Educação Masculina

Ao longo de todo o século XIX, a educação e instrução são assuntos quase exclusivamente

masculinos e preocupações predominantes nos ambientes burgueses, liberais, mais esclarecidos. Na

segunda metade de Oitocentos irão timidamente surgir alguns protestos contra a situação de

ignorância feminina e em defesa dos direitos da Mulher a uma educação paralela à masculina, mas

a discussão e organização das questões educativas continuam fundamentalmente centralizadas nas

necessidades da população masculina. Para todos os efeitos, a formação das crianças era concebida

em moldes masculinos e de acordo com os fortes condicionalismos socio-económicos que

espartilhavam a sociedade. A educação, de todas as faculdades pessoais em termos gerais, deveria

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ser sempre uma obrigação concreta das famílias, mesmo quando isso não implicava qualquer

aspecto formal e decorria naturalmente da vivência em comum dos seus membros.

A instrução intelectual propriamente dita, variava então com os meios e crenças dessa

mesma família. Frequência de uma escola particular ou contratação de um preceptor eram

privilégios que apenas poucos podiam facultar à sua descendência, mas em que alguns grupos

socio-profissionais de origem burguesa começavam a apostar crescentemente desde o século XVIII,

como estratégia de valorização socio-cultural, de aproximação ao poder político e de afirmação

perante uma aristocracia mais imobilista nas suas práticas educativas. Longe deste curto leque de

opções ficavam a generalidade das famílias do país; ao povo comum, rural ou urbano, a rudimentar

educação familiar nas artes dos ascendentes eram recurso considerado suficiente, e algo mais do

que isso um luxo supérfluo e incomportável. Uma rede de escolas públicas destinadas a uma

instrução popular alargada seria projecto ambicioso, que só muito lentamente se desenvolveria com

o avançar das décadas, sendo inclusivamente pasto fértil para a propaganda republicana no fim do

século, que usaria como seu, e como poderosa arma política, o lema da democratização da educação

contra o obscurantismo monárquico. De qualquer maneira, alguns valores seriam constantes no

conteúdo e na forma da educação masculina: culto severo da disciplina e inculcação firme da noção

de obediência às, apresentadas como naturais e necessariamente universais. hierarquias sociais e

familiares dominantes. Na escola, em casa, na rua, no futuro local de trabalho, muito do essencial

passava pelo rápido (re)conhecimento das condições específicas dos indivíduos e das suas

obrigações, direitos ou deveres, recíprocos e de uma adequada conduta em sua função. E porque

não, antes de quaisquer outros conhecimentos técnicos, começar todo o processo de formação

individual por uma aprendizagem dos mais sagrados alicerces em que assentava a sociedade ? Peça

central deste processo era ainda o sistema de incentivos e castigos ao desempenho dos alunos; a

gestão feita era muito mais imediatista nas punições do que nos prémios. A recompensa prometida

passava pela futura demonstração da validade dos conhecimentos adquiridos e correctamente

assimilados, enquanto a contrapartida ao erro era sentida muito mais rapidamente na carne.

Para aperfeiçoamento tanto de professores como de alunos, o século XIX produz com

abundância pequenas obras de aparente sucesso, pela proliferação de títulos e frequência de

reimpressões, os conhecidos e explorados, em diversos contextos (cf. Santos: 1983 e Pais: 1986),

Manuais de Civilidade. Os exemplos possíveis são múltiplos, apesar da uniformidade quase

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monolítica do seu conteúdo: os Elementos da Civilidade e Decência, para instrucção da mocidade

de ambos os sexos publicados em 1801 em Lisboa pela Typografia Rollandiana, são reeditados

várias vezes até meados do século; J. I. Roquete põe em letra impressa o seu Codigo de Bom Tom

ou Regras de Civilidade e de Bem Viver no XIXº século em 1845 e novamente em 1867, enquanto

António Maria Baptista e António Figueirinhas publicam títulos similares. Em 1825 é editado um

opúsculo sobre Civilidade Cristã e muitos outros conhecem a luz do dia (cf. exemplos citados por

Santos 1983, 21-22). Em todos eles a mensagem é clara: auto-controle das emoções, disciplina,

sobriedade, respeito pelos mais velhos ou de condição mais elevada, racionalidade dos actos, na

vida profissional e familiar; e sobre os afectos, pouco ou nada mais do que os bem intencionados

clichés em torno os amores que são tidos como intrínsecos à natureza humana; pelos pais, filhos e

irmãos. Freud só nasceria em 1856 e os seus trabalhos mais polémicos para as consciências

burguesas só seriam divulgados com a passagem do século. Por enquanto, a educação masculina

estava longe de tais temas.

Depois de ultrapassadas as primeiras etapas do processo educativo, as vias a seguir eram

ainda as mesmas que nos séculos anteriores e durante os períodos seguintes, em certa medida até

quase à nossa actualidade: enveredar pela vida prática logo à chegada da vida adulta, normalmente

seguindo as pisadas do pai, continuar os estudos e entrar para a Universidade, em Portugal na

maioria dos casos, ou no estrangeiro, para aqueles que dispusessem de bolsa mais recheada,

mentalidade mais aberta ou seduzida às influências externas e família mais compreensiva para uma

longa ausência no exterior. Em termos concretos, estas não são opções novas, nem irão caducar em

1910. As diferenças estiveram, ao longo dos séculos, mais no grau com que foram adoptadas, do

que nas características das alternativas. Os espíritos mais tradicionais sempre optaram por uma

rápida entrada dos filhos no mundo profissional, como estratégia conjunta de auxílio aos negócios

familiares e útil formação prática do indivíduo, enquanto as mentalidades mais liberais e receptivas

às novidades apostaram num enriquecimento complementar ao nível do Ensino Superior, aquém ou

além-fronteiras. A novidade ao longo de Oitocentos talvez fosse, afinal, que em virtude da

promoção pombalina de alguma, limitada, burguesia nacional e das igualmente limitadas

transformações sociais saídas da afirmação do liberalismo, parte de uma renovada aristocracia

também estivesse disponível para considerar um modelo de educação originariamente burguês.

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Mas se esta educação superior e estrangeirada era um sinal exterior de riqueza e ascensão

social e motivo legítimo de "orgulho d'um pae", quantos embaraços não poderia trazer ou causar,

pois "ha sempre um mas !" (Machado 1874, 51-52). E esse "mas..." poderia ser o gritante contraste

entre a educação visível em gerações distintas da mesma família, motivo de chacota para muitos

observadores e de vergonha para a generalidade dos visados. Se a educação era valorização,

também era via de entrada de algumas novas ideias que podiam pôr em causa algumas das

realidades do quotidiano do limitado high-life nacional. Com raízes anteriores e seculares, divulgar-

se-ia na segunda metade do século XIX, em particular entre algumas elites culturais e literárias

fortemente influenciadas por uma formação "estrangeirada" e por modelos londrinos ou parisienses,

uma atitude de mais ou menos ostensivo tédio e menosprezo pelo mesquinho quotidiano burguês

nacional, responsável pelo definhar da própria Nação. Uma vertente crescentemente decadentista

desta visão da perda de vitalidade da sociedade burguesa lusitana passaria pelo chamado grupo dos

"Vencidos da Vida", enquanto outra, com maior energia vital, passaria pelos ideais regeneradores

republicanos que conduziriam à convulsão política, e marginalmente social, de 1910, antecessora

quase imediata do conflito de 1914-18 que transformaria a face do mundo ocidental.

Os Atributos Físicos

Uma ideia razoavelmente errada assenta na associação imediata, directa e quase exclusiva,

que na sociedade contemporânea se faz entre os mundos, e caprichos a eles associados, da Beleza e

da Moda e a Mulher. Relativamente às proto-manifestações do fenómeno da Moda, com as

especificidades que o caracterizaram antes do século XX, e em particular no Antigo Regime, deve

sempre registar-se o papel decisivo que ao Homem cabia na definição das modas associadas ao

vestuário e a todos os adereços que então já o envolviam, desde os penteados à própria cosmética.

O que a sociedade e a cultura burguesa em ascensão vai associar a comportamentos e atributos

femininos, eram nos séculos XVII e XVIII (para não remontar mais longe), pelo menos tão

característicos da feminilidade como da masculinidade. Eram elementos essenciais dos mecanismos

de diferenciação e afirmação social da riqueza, de prestígio e, em importante complemento, de

sedução amorosa. A moda cedo se constituiu em "princípio de leitura do mundo", sendo o

"microcosmo vestimentário" (Roche 1991, 57) uma chave importante para a compreensão da

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relação entre o Homem e tudo o que o rodeia e, muito em particular, entre os homens. Assim, como

a cultura das aparências tem uma forte componente política e é reveladora de um sentido de ordem

social, que dificilmente se pode abstrair do universo masculino.

Os modelos masculinos de origem aristocrática do Antigo Regime são iluminados e

inspirados pelo próprio exemplo régio, a quem deveria estar reservado o privilégio de definição e

divulgação, pela apresentação pública em estreia absoluta, do que seriam os novos modelos a

seguir, mantendo as respeitáveis distâncias que o protocolo decretava. A sua monumentalidade e o

seu carácter artificial são recusados pela masculinidade burguesa, por questões ideológicas

relacionadas com o seu modelo de vida mais sóbrio. Em simultâneo, essa recusa é feita através de

uma "feminização" da moda setecentista e das atitudes exageradamente atentas à aparência e ao

vestuário; ou seja, aproveita-se para desvalorizar como pouco viris os hábitos anteriores, quando se

procede à sua substituição por um novo conjunto de valores. Como consequência, é feita uma muito

forte demarcação, em termos exteriores, das figuras masculina e feminina.

A definição física da masculinidade no século XIX assume uma importância fundamental,

que ultrapassa, sublinhando, as particularidades biológicas do género. Para além de tudo o mais que

oculto pudesse ficar, de acordo com as regras do pudor individual e da boa convivência social, a

masculinidade devia ser anunciada claramente ao mundo pela sua aparência exterior. A

caracterização física devia permitir a fácil demarcação entre Homem e Mulher. Os atributos

masculinos exteriores passavam por dois planos: pelos atributos físicos naturais do corpo e pelos

adereços que sobre ele eram impostos pelas conveniências do clima e da civilidade. Mas, para além

disso, a importância do conjunto não tinha uma relevância apenas estética; não era raro que a

apresentação física exterior assumisse um significado ideológico subliminar, motivo frequente de

caricaturas ou mesmo objecto de perseguições. É o que se passa com Pina Manique que recomenda,

em finais de Setecentos, que se mande prender como pedreiros-livres todos aqueles que usassem

"sapatinho bicudo e mui brunido, atilhos nos calções, com gravata por cima da barba, colarinho até

meia orelha, cabelo rente no toutiço e tufado sob a moleirinha com suiças até aos cantos da boca"

(citado em Santos 1990, 385).

Comecemos então, em primeiro lugar, pela definição do que deveria ser um corpo másculo,

socialmente considerado como tal e, por reflexo, teórico trunfo no jogo da sedução amorosa ou,

pelo menos, do comércio conjugal. Silenciosas, ou silenciadas, as vozes femininas sobre este tema,

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resta-nos naturalmente o problemático olhar masculino sobre si mesmo e sobre a eventual

excelência do que deveria ser a concretização corpórea dos seus méritos.

Em primeiro lugar, esse corpo deveria ser avaliado de acordo com diferentes parâmetros de

acordo com a idade do seu possuidor. Curiosamente, a diversidade da análise não se baseava em

critérios ligados à natural evolução fisiológica humana, mas antes em apreciações fortemente

eivadas de conotações socio-culturais. Até um determinado momento pode-se ser considerado

rapaz, com tudo o que então se associava a uma idade de certa inconsciência, de imperfeita

maturação das características masculinas, físicas, intelectuais e sociais. O rapaz poderia ser magro,

esquálido, de tez branca, imberbe mesmo, que isso seria entendido ao longo de quase todo o século

XIX como consequência natural da sua incompleta masculinidade. Esta imagem era, aliás,

satirizada frequentemente como o modelo dos jovens poetas românticos, galãs de sociedade capazes

de seduzir o espírito feminino com os seus arrebatamentos líricos. Paulo Osório descreve esses a

que chama "estoiradinhos" como "um typo franzino, flebil, calamistrado, albicolle, lambido e

peganhento como visco ou como um rebuçado de avenca. Não bebe agua sem assucar, nem póde

apanhar correntes d'ar. Recita em salas particulares e toca violão. Baba-se por toiros. Distribue às

senhoras madeixas de cabello" (Osório 1908, 48). Apesar do sucesso junto de grande parte do sexo

feminino, este era, porém, um tipo masculino tido como inconsequente e incompleto, como que

ainda púbere. A paixão que procura despertar, o romance que promete, os flirts que protagoniza,

são inconsequências e devaneios de adolescente.

O verdadeiro modelo do homem burguês de sucesso, reconhecido e admirado como tal era

outro, porventura menos de acordo com as formas de um Apolo mas certamente com um corpo que

irradiava à distância uma imagem de rotunda plenitude, sinal exterior reconhecível de prosperidade

e abastança. Em algumas épocas e locais para ser considerado "belo, era preciso ser gordo e para

ser gordo era preciso ser rico" (Perrot 1984, 9) e o século XIX burguês é um desses casos. O

burguês médio sem cedências a modas fúteis e passageiras, casado com esposa mais jovem, com

situação profissional estabilizada e substancial pecúlio acumulado, tem orgulho num corpo repleto

que encanta não pela beleza mas pela maturidade. O encanto ou sedução que possa eventualmente

suscitar não se encontra no plano estético, mas a outro nível, não promete uma rápida paixão

avassaladora mas uma garantia de conforto material. Em 1877, referindo-se veladamente a

Rodrigues Sampaio, o jornal Gajo faz a descrição de "um delles", um desses burgueses que então

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dominavam o mundo da política e dos negócios: "Que pança a sua, e como elle cada dia a exibe

mais ! Se tem a cabeça sumida no toucinho dos hombros e do cachaço, quem não sabe que a razão

disso é tel-a ajoujada de relatorios, de projectos, de portarias, de decretos e outras trapalhadas d'este

genero, para embatutar ou embatucar a humanidade. Se tem a dextra na lapella do collete, quem

não sabe que elle, de vez em quando bota elegancia?" (Gajo, 11 de Fevereiro de 1877, 1)

A insensibilidade, ou inabilidade, destas personalidades para lidarem com noções de beleza

física ou com as questões da moda, que consideram preocupações "efeminadas", leva-os a criarem

uma figura que é motivo fácil de caricatura na pena dos observadores mais ou menos críticos que,

como Sousa Bastos, recriam as suas rotinas de meados de Oitocentos: "os homens iam para os

empregos, ou mesmo para as reuniões, com as clássicas sobrecasacas compridas, de gola alta e

grande roda, manga estreita e forro de lã ou paninho. As fazendas eram nacionais e usado, ainda, o

briche. Quem podia tinha nas gavetas, para ocasiões solenes, embrulhada em papel de seda, e

coberta de cânfora ou de castanhas da Índia, por causa da traça, uma arcaica casaca, que servia no

dia do casamento, e de quando em quando, tomava ar para o casamento do filho, para sessão solene

na maçonaria, ou para, em dia de gala, ir ao paço beijar a mão a Sua Majestade." (Bastos 1947,

185-186). Ao longo do tempo, a situação sofreria algumas alterações, embora a imagem do chefe-

de-família burguês como um "gordo e amavel pae" (Machado 1874, 185), pouco atento às últimas

novidades mundanas, permanecesse até aos alvores da República.

Um elemento que com o avançar do século XIX vai ressurgir e permanecer na definição

física da masculinidade e na evidente demarcação entre o Homem e a Mulher, apenas com

flutuações de estilo, prende-se com os apêndices capilares no rosto: o bigode, as suiças, a clássica

barba completa ou as mais dependentes das modas "pêra" e "mosca". Se fortuitos pêlos em face

feminina são motivo de troça para os outros e vergonha para a infeliz portadora, em semblante

masculino a sua profusão e imponência parecem, durante muito tempo, simbolizar o sinal mais

visível de plena virilidade, particularmente nos países do sul europeu como Portugal. É Leite de

Vasconcelos que, em 1925, traduz as crenças e preconceitos de uma época, ao afirmar "os

antropologos julgam a barba caracter sexual secundario e progressivo; é por isso que certas raças

não a adquiriram ainda, nem o sexo feminino a possue como propria" (Vasconcelos 1925, 2), sendo

portanto natural que a barba fosse considerada como sinal de civilização, como sinal de distinção

rewlativamente aos individuos ainda não completos, em termos de desenvolvimento racial, de

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natureza sexual (as mulheres) ou mesmo ao nível etário. A barba, "que na mulher é desgôsto, serve

de orgulho ao homem como simbolo de virilidade e de honra (...). Os rapazes quando estão

proximos da puberdade, começam logo a tactear a cara, e a puxar pela penugem, na esperança e no

desejo de encontrarem barba que os faça homens" (Idem, 95).

A pilosidade facial, suplantada pelos artifícios dos penteados masculinos durante o século

XVIII absolutista e sóbria nas primeiras décadas do século XIX, retoma os seus direitos à medida

que a centúria de Oitocentos avança e permanece até aos inícios do século XX: é assumido como

símbolo de respeitabilidade pois é uma das transformações fisiológicas mais marcantes da

passagem à idade adulta. Cara imberbe é apanágio de criança, rapazola ainda em formação, homem

incompleto; cara escanhoada praticamente um exclusivo de clérigos ou, com o tempo, dos actores,

cujas necessidades de adaptação e plasticidade do rosto não aconselham a existência de traços

capilares permanentes. Entre os militares, a evolução é pouco linear, podendo depender do exemplo

dado pelo próprio chefe, como durante as guerras entre D. Pedro IV e D. Miguel, em que ambos os

líderes serviam de modelo para os seus subordinados. Só tardiamente (1896) se procura introduzir o

hábito militar contemporâneo do cabelo curto, mas mesmo assim de forma efémera, pois logo no

início do século XX se concede liberdade aos soldados para usarem o cabelo e a barba como

preferirem, desde que isso não dificulte a identificação dos emblemas e números existentes na gola

do uniforme (Idem, 86-88).

A evolução entre o início dos séculos XIX e XX deste aspecto da fisionomia masculina, em

Portugal, pode ser acompanhada através dos retratos das figuras públicas nacionais, da política e da

cultura. As primeiras décadas do século XIX são caracterizadas por rostos pouco marcados pela

barba: o exemplo régio de D. João VI é marcante a nível nacional, como Napoleão no plano

exterior. A influência do modelo napoleónico é visível em muitas figuras da vida política liberal

(Gomes Freire de Andrade, Manuel Fernandes Tomás, Manuel Borges Carneiro, entre outros de

que nos resta iconografia). Em seguida, são D. Pedro e D. Miguel que marcam as modas durante os

anos das guerras entre liberais e absolutistas: o primeiro com a sua barba completa e o segundo de

cara rapada, embora mais tarde, durante o exílio, viesse a deixar crescer profusamente a sua barba.

Independentemente dos parâmetros ditados pelas oscilações da vida política, Leite de

Vasconcelos apresenta uma periodização sumária da barba oitocentista que distingue três períodos

principais: cara escanhoada apenas com patilhas no primeiro quartel do século XIX, evolução para

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a moda da barba cerrada cerca de 1840, que se aligeira na década de 1870, com a predominância do

bigode, acompanhado em combinações variadas de peras e moscas de formato diverso. Situando-se

em 1875, a descrição de Carlos da Maia por Eça de Queiroz apresenta-o como "um formoso e

magnífico moço, alto, bem feito, de ombros largos, com uma testa de mármore sob os anéis dos

cabelos pretos", trazendo "a barba toda, muito fina, castanho-escura, rente na face, aguçada no

queixo - o que lhe dava, com o bonito bigode arqueado nos cantos da boca, uma fisionomia de belo

cavaleiro da Renascença" (Queiroz s.d.a, 96). Barba cerrada comprida ou suiças muito crescidas

(os "matacões") tornam-se símbolo de idade avançada ou de ruralidade (Vasconcelos 1925, 93).

Na abertura do século XX, podem observar-se para acompanhamento dos costumes

masculinos, entre outros exemplos, os casos dos deputados eleitos em 1906 e 1911 e de que uma

importante revista da época publica os retratos em número de, respectivamente, 130 e 180

(Illustração Portugueza, 1 e 15 de Outubro e 5 de Novembro de 1906, no primeiro caso e 3, 10, 17,

24 e 31 de Julho e 14 de Agosto de 1911, no segundo). Em 1906, 124 deputados usam bigode

(95%) mas apenas 20 barba cerrada (15%). As únicas excepções que apresentam cara escanhoada

são seis parlamentares, três dos quais clérigos e um visivelmente jovem; em termos partidários três

deles são regeneradores-liberais, um progressista, um nacionalista e um independente. Em 1911,

numa amostra de 180 rostos, 178 têm bigode (99%), sendo as excepções Narciso Alves da Cunha,

de Ponte de Lima, e Casimiro Rodrigues de Sá, de Viana de Castelo; barba completa é exibida por

mais de quatro dezenas de parlamentares (cerca de 24%), enquanto uma dúzia mostra a chamada

“mosca” ou uma “pêra” mais ou menos desenvolvida. Cara "limpa" continua a ser excepção.

Um hábito que avança é o da mudança do formato da barba e bigode ao longo das diferentes

fases da vida de uma pessoa; esse é um sinal de que "mais do que nunca, a moda se desenfreia",

permitindo e propondo "infinitas variedades de barbas" aos indivíduos que assim mudam "de

sistema, conforme a epoca da vida" (Vasconcelos 1925, 77).

O acto de fazer a barba ganharia, em alguns períodos, um carácter íntimo, ao ponto de J.

Roquete, no seu Código de Bom-Tom ou Regras de Civilidade e de Bem Viver no XIXº Seculo

aconselhar os jovens sobre "uma necessidade que só pertence aos homens: o fazer a barba"

(Roquete 1845, 453). É apresentado como aconselhável que os pais providenciem a aquisição de

um estojo de barba para os seus filhos de forma que, ao atingindo a idade adulta, não se vejam na

necessidade de entregar tal missão "a mãos estranhas, mas que hoje a bôa educação pede que só

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fiemos nas nossas". Esta precaução evitaria os tormentos e embaraços que os mais antigos

passavam sempre que, em viagem, "se vião obrigados a entregar nas desastradas mãos d'um

desconhecido suas encanecidas barbas" (Idem).

Ao cair do século, Eça de Queiróz, em carta familiar, ao descrever Luis que então o

acompanhava na sua estadia em Santa Cruz do Douro, afirma estar "muito bonito (de barba

crescida à Renascença)" (Queiroz s.d.b, 9), parecendo apontar para uma permanência dos

parâmetros de beleza masculina desde os anos 70. No entanto, com a entrada do século XX, os

modelos começariam a ser outros. Na segunda década de Novecentos, e crescentemente no pós-

guerra sob evidente influência dos modelos cinematográficos de sucesso entre o público feminino,

difundir-se-ia o hábito do "bigode americano", "microscópico", "cerceado", "mísero", que "em

comparação dos que imponentemente adornavam os retratos de um Saldanha ou de um Bismarck,

até parece que rebaixa a dignidade humana", mais valendo "não usar nada" (Vasconcelos 1925, 94).

O novo século parecia trazer consigo costumes pouco viris aos rostos masculinos, pelo menos aos

olhos dos herdeiros das tradições oitocentistas.

Mas, aparentemente, todos os esforços eram infrutíferos para tentar alterar uma silhueta que

alguns apresentavam com traços bem pouco favoráveis, os de um "aleijão", resultado de maus

hábitos seculares, mesmo na capital onde as modas eram acompanhadas com maior atenção:

"physicamente, o homem de Lisboa é o atrophiado producto d'uma especie de raça que, mal

nutrida, mal arejada e mal lavada em successivas gerações" (Osório 1908, 46); no Porto, a situação

era pouco melhor, o seu "janota" não passava de alguém que "hypertrophia até ao escandalo" tudo o

que pensa ser novidade, de maneira que "quando a moda impõe as rabonas compridas, o janota do

Porto usa-as pelo artelho [e] quando lhe dizem que se deve trazer calçado largo, faz da biqueira da

bota um square" (Idem, 47).

Alguns "tipos" masculinos

O século XIX foi pródigo na criação de "tipos" sociais e na sua, bem-humorada, crítica

satírica. Em especial na grande cidade, que em Portugal era sinónimo de Lisboa, algumas figuras

masculinas ganhariam o contorno de instituições e de peças insubstituíveis na paisagem e no

quotidiano urbano. Muitos foram os autores que os abordaram e escalpelizaram, a diversos níveis;

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Fialho de Almeida, Júlio César Machado, Carlos de Moura Cabral, Francisco Câncio, Sousa Bastos,

Gomes de Brito, Rocha Martins, são apenas alguns entre muitos exemplos possíveis na literatura e

no ensaio, enquanto Bordallo Pinheiro o foi enquanto caricaturista.

Aqui ir-se-á, contudo, optar por uma outra fonte diversa, o periódico Gajo, de vida efémera

e que se adivinha atribulada. Nas suas páginas passam, de forma verrinosa, alguns dos tipos

masculinos da pequena e média burguesia urbana com aspirações a subir na vida e a tornar-se "um

delles", um dos que ditavam as leis e os negócios da sociedade de então. Estas figuras não são ainda

as dos burgueses de sucesso, são apenas aspirantes a tal estatuto, são modelos de uma

masculinidade que, apesar de estereotipada e facilmente reconhecível, ainda está incompleta em

todos os seus atributos. Os primeiros a surgir são os "fidalguinhos do balcão", empregados de casa

de modas que procuram seduzir as suas clientes com o requinte dos seus conhecimentos e a lisonja

das suas apreciações, em busca de casamento favorável, anseio que não era exclusivo do sexo

feminino. "Durante a semana toda, esperam pelo domingo com a anciedade do sedento a quem

fazem negaças de longe com o copo d'agua; e logo que rompe a manhã, os felizes que não teem

patrões tão barbaros que o prendam até ao meio dia, attiram-se para rua, como gato a boffe, e ei-los

ahi vão de bodine que é um primor de bom bosto, de afiambradas botas de polimento, nas quais se

não vê um só átomo de poeira, enfarpelados à última moda, passando revista pelas egrejas onde

esperam encontrar alguma das suas ellas." (Gajo, 18 de Fevereiro de 1877, 1) Em seguida, temos o

Marialva, instituição da vida boémia e amorosa da capital, criação genuína e ímpar que nem todos

que desejam "macaquear-lhe a maneira de vestir, o gesto e as posições", conseguem copiar (Idem,

25 de Fevereiro de 1877, 1). Ele "namora, endoudece a cabeça ás raparidas e não casa (...) Gosta de

vestir como um principe, de montar como quem é , de comer como duque, e de beber ao ponto de

estar ás vezes com o seu golinho. Ninguem tem nada com isso (...)." (Idem).

Segue-se-lhe o Encostador, mas esse é um tipo com um tipo de vida muito menos

requintado, os seus meios e aspirações são muito mais limitados, limitando-se à sobrevivência do

dia-a-dia, à custa da simpatia ou distracção alheia, mesmo quando se dá ares de importante. O

Curioso Dramatico, por sua vez, já vê a sua vida como "um braçado de glória, a surrir-lhe

constantemente na phantasia", vangloriando-se dos seus duvidosos desempenhos em represen-

tações teatrais amadoras, que quase só o próprio considera prodigiosas, e onde todos os demais nem

se chegavam próximo da "sua bossa para a scena" (Idem; 25 de Março de 1877, 1). Finalmente, e

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para que o Porto não merecesse alguma atenção, quando O Pavão já substuituira o Gajo, surge-nos

o tipo janota tripeiro, o Litterato, sempre a duvidoso par das últimas modas e que "não é homem de

meias medidas, e em negocios d'amor... cautella com elle, que anda prevenido de missivas tão

ternas, tão enthusiasticas, apaixonadas, que onde deita o olho, ou assesta a luneta (...) a victoria é

certa." (Idem, 15 de Abril de 1877, 1).

Contudo, apesar das modas e dos encantos para alguns destes modos de vida alternativos, a

sociedade burguesa considerava que a verdadeira masculinidade só se realizava na sua plenitude no

ambiente familiar, unidade fundamental para a harmonia e estabilidade social.

A Família

É no século XIX que verdadeiramente se constrói a tradição contemporânea da família

enquanto refúgio e espaço privado dos indivíduos, com uma funcionalização mais clara das tarefas,

uma hierarquia mais severa das autoridades e uma geografia interna dos próprios espaços do

agregado familiar. A família passa a ser "crescentemente descrita como um 'santuário', um 'oásis',

uma 'torre de marfim' " e a vida doméstica torna-se o "escape temporário da competição, um

'santuário de amor doméstico', 'um calmo refúgio das tempestades da vida' " (Coontz 1988, 210,

213). E esta construção é responsabilidade da burguesia, que cria um modelo familiar que se torna

um ideal "e lugar de ordem, portador de um modelo normativo poderoso" (Segalen 1986, 390),

garantia da harmonia social, que não deriva directamente da tradição linhagística da aristocracia,

antes com ela entrando em relativa colisão de valores. As velhas linhagens da nobreza são

primordialmente exaltações dos ascendentes, de valores de um passado secular e do sangue

enquanto veículo de transmissão da legitimidade. O presente é um prolongamento estável do

passado que se procura venerar de forma não conflitual. Na sua vivência, contudo, as famílias

nobres são espaços abertos e quase públicos, de reduzida privacidade e diversas ramificações semi-

oficiais, sendo a bastardia uma instituição reconhecida por todos. A família é uma encenação e a

sua principal função é a defesa, gestão e transmissão de um património que se pretende o menos

alterado que seja possível.

Mas, as novas famílias burguesas, são criações recentes que raramente se podem orgulhar

dos seus antecedentes, que dificilmente remontam muito longe no tempo. A sua preocupação está

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no futuro e na reprodução de um património recentemente constituído. Em termos quotidianos

encerram-se sobre si mesmas, definindo com rigor o seu espaço privado da esfera pública. A

família burguesa torna-se símbolo de privacidade e recato, ao invés do espectáculo público

aristocrático ou da incómoda promiscuidade popular. Para este novo modelo de organização

da família contribuem poderosamente alguns factores, ideológicos e materiais, que a ela se

encontram associados: é o caso da diminuição do número médio de filhos e a redução da

mortalidade infantil ao longo do século XIX que permitem um estreitamento dos laços afectivos do

parentesco, assim como a vida em habitações de menor aparato onde, apesar da clara demarcação

dos espaços específicos, a família se reúne com maior frequência e onde, em simultâneo, é

estabelecido um parcimonioso horário/calendário de contactos com o mundo exterior, através de

um sistema de visitas e recepções ditado pelo rigor das conveniências de uma nova etiqueta e não

pelo permanente desejo de espectáculo.

A família burguesa tem um novo modelo de comportamento, patriarcal como antes, mas

mais sóbrio e severo do ponto de vista moral, com uma visão rígida dos papéis atribuídos a cada

sexo, sempre muito preocupada com as aparências e com rotinas que se vão cristali-zando em

estereótipos que tornam inevitável a rápida caricatura - "É tudo uma familia. Não ha vel-a sem

pasmar, e sem alegria ! O gordo e amavel pae, a mãe esguia e de bigode, a filha nedia, a filha

engoiada, o primo armado em ja[n]ota namorado de uma d'ellas, os meninos á frente preparados e

dispostos com vários instrumentos... Uma mascarada..." (Machado 1874, 185).

Nas últimas décadas do absolutismo em Portugal, um género literário de grande sucesso, a

chamada literatura de cordel, baseou a sua fórmula na exploração dos antagonismos entre os sexos

e na caricaturização do quotidiano familiar, através de uma frequente inversão dos papéis

tradicionalmente associados aos homens e às mulheres (cf. Santos 1987). Os Entretenimentos,

Dramas, Entremezes, Despiques, Passatempos e títulos afins que com profusão eram produzidos e

com sucesso circulavam nas principais cidades do país, com destaque para Lisboa, apresentavam

quadros familiares em que as esposas, e filhas, se mostram caprichosas, irreverentes e faziam a vida

dos maridos e pais um tormento repetido. Apesar das mensagens moralistas com que finaliza a

maior parte destes textos, o quotidiano que procura se recriar e/ou retratar é a de um colorido

ambiente familiar, onde a autoridade masculina e paterna é constantemente contestada. Em 1785,

no Despique da mulher casada que teve com seu marido, pela não querer levar a ver as

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Luminarias, um marido cansado com as exigências da esposa protesta com veemência: "Pois quem

he, que governa nesta casa ? /A Senhora tambem quer fazer vasa ? / Ai que me vai na burra ! E

num continente / Se prepare, não seja impertinente. / Faça, faça o que ordeno, não retruque, / Se

não quer que os focinhos lhe machuque." Um outro chefe de família queixa-se ao compadre, no

Novo e gracioso entremez intitulado a grande bulha que teve a mulher com o marido, de 1793:

"Amigo, a minha caza por eu ter sido um paz d'almas hia perdida, a filha modas e mais modas, e a

Mãi que devia ser o exemplar dos bons costumes he o exemplo dos máos, eu sou quem paga tudo".

A resposta poderia vir das mais variadas origens, na letra impressa de tantas peças. No

Passatempo dramatico em que se mostra o valor de um bom concelho, desabafa uma esposa infeliz:

"Vezinha, certamente já cançada / Estou de viver tão apoquentada / Soffrendo hum coração

empedernido / E a bruta pertinacia d'um Marido, / Que me tem esgotado a paciencia". Mas por

vezes a atitude feminina era bem mais activa em muitas situações; em duas peças publicadas já bem

dentro da centúria de Oitocentos, as mulheres tomavam voz activa contra os seus marido. Em 1825,

em novo entremez, uma zurzia o seu marido por ter perdido o dinheiro jogado na lotaria: "Eu não

disse a você, homem do demo, eu te arrenego ! Foste alguma coiza má que me appareceste, quantas

vezes te gritei que não queria que botasses o dinheiro nas sortes, agora conheces a tua loucura, e

que ha de dizer a nossa vezinhança". Anos antes, em 1812, na Çapateirada ou bulha entre mulher e

marido..., este sofre na pela a ira feminina de forma bem dolorosa: "Pega Brazia n'um buxo bem

roliço / Contra o marido forte se emdireita: / Casca-lhe huma tapona no toutiço, / Dá-lhe a segunda,

e logo à terra o deita, / Elle vendo o carolo tão massiço, / Basta, lhe diz (minha Brazia) de

desfeita, / Pois se outro cóque prégas mais na bola / Dará o çapateiro o buxo á sola."

A visão tradicional do relacionamento entre os sexos, reproduzida no próprio discurso

historiográfico, não está aqui retratada na sua clássica dicotomia autoridade masculina/submissão

feminina, mesmo quando as peças terminam com conselhos moralistas. O papel da mulher é aqui

bem mais activo do que os estereótipos que herdámos do século XIX. As personagens descritas não

são sempre, nem perto disso, tipos populares da chamada "arraia-miúda" ou do futuro "zé-

povinho"; são, pelo menos, pequenos ou médios comerciantes com criadagem de dimensão

variável. E o mesmo se passaria com o público deste género literário, que dificilmente se poderia

circunscrever às camadas populares, tanto por questões materiais como culturais - afinal quem,

então, lê ou pode ler ? O público e os personagens desta literatura satírica, estão nas franjas,

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porventura inferiores, daquela burguesia que vai dar substância social ao movimento liberal e que,

ao longo do século, vai aderir à ideologia familiar.

O gradual desaparecimento deste tipo de literatura, que não é caso exclusivo da sociedade

portuguesa (cf. Coontz 1988, 222), não deixa de testemunhar a evolução vivida ao longo do século

XIX. Os protestos, em alta voz, de esposas e filhas para ir ver "os arrelequins" ou "as luminarias"

são silenciados na generalidade da literatura, e certamente nas representações ideais da sociedade. A

harmonia entre os sexos, real ou aparente, torna-se a norma desejada e desenvolve-se a teorização

das "esferas separadas" das vivências masculina e feminina; as funções dos esposos especializam-se

e delimitam-se para além de quaisquer equívocos e de acordo dos méritos tidos como naturais a

cada sexo (Cott 1978, 197). O facto de se apresentarem como complementares, não inibe a

existência de uma hierarquia que todos devem assimilar e saber (fazer) respeitar.

Esta especialização dos méritos e competências dos membros do futuro casal teria naturais

implicações no plano das estratégias matrimoniais, quer do ponto de vista da noiva como do noivo.

Se para o futuro marido, a esposa escolhida deveria obedecer a alguns, simples mas severos,

padrões de conveniência social e material, a si próprio também eram exigidos parâmetros de

"qualidade" e respeitabilidade para aspirar ao estatuto de consorte desejado por uma potencial noiva

e respectiva família. Infelizmente, contudo, com o avançar do século e a chegada ao século XX, os

padrões de exigência feminina iriam descendo, em virtude de uma aparente escassez de bons

candidatos, na quantidade desejável e necessária para uma escolha criteriosa. O que não deixava de

ser um sinal inequívoco de alguma decadência masculina... Um autor popular durante o final do

século XIX e primeiras décadas do século XX, muito (re)editado, aconselhava que mais valia

"ficar solteira tôda a vida do que casar mal" (Mantegazza 1935, 157), apontando como defeitos a

evitar num futuro marido o ser tirano, pusilânime, ciumento, rabugento, avarento, libertino, imbecil

ou ocioso (Idem, 61-108). Mas, aparentemente, a realidade não permitia tamanha exigência: "Os

maridos não abundam e a lisboeta, no pavôr de ficar solteira, já não escolhe" (Osório 1908, 45).

Mas, à distância de um século ou mais, este período exibe-nos um aparente paradoxo. O

casamento enquanto contrato matrimonial ditada por interesses comerciais é essencial na sociedade

burguesa, mas convive com as manifestações mais exacerbadas do amor-paixão, característico da

sociedade contemporânea (Rougemont 1989). Vejam-se os casos de crimes passionais que inundam

as páginas dos jornais nas décadas que enquadram a transição do século. Os casamentos preparados

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começam a sofrer entraves perante os delírios românticos que exigem às uniões algo mais do que

meras afinidades materiais.

Mas entre a masculinidade burguesa estas pretensões ainda são pouco visíveis, em virtude

das possibilidades extra-matrimoniais que o seu ambíguo sistema de valores lhe permite. Aos

homens continua a ser aconselhada mais atenção às conveniências do que a qualquer outro aspecto,

no processo de selecção de noiva: "Deita as tuas vistas em noiva que possúa herdades e thesouros.

Se linda ella não fôr, que lhe has de tu fazer ? Isto de belleza acaba, como tudo, no fim de certo

tempo. Se a noiva fôr bonita, é mais decorativo [mas] comtudo é mais perigoso" (Cabral 1912,

169).

Um outro aspecto fundamental dos valores e da vivência conjugal masculina prendia-se com

as questões da honra, particularmente nos países do sul da Europa (cf. introdução de José Cutileiro

in Peristiany 1988). A honra pessoal masculina, se estava ligada ao correcto e honesto desempenho

profissional, tinha uma particular exacerbamento no âmbito privado da moral e comportamento

sexual das mulheres a quem cada homem se encontrava familiarmente ligado: a mãe, a esposa, as

filhas... (cf. Amaral 1992). Em especial a figura da esposa tornar-se-ia a representação burguesa, e

sinónimo, das virtudes da família oitocentista, fiel depositária da honra familiar e necessária

guardiã das mais excelsas virtudes morais, que deveria transmitir à geração seguinte. O que não

impediria o adultério de se tornar uma instituição do século, incessantemente renovada no discurso

literário e observada na vida concreta de acordo com um duplo padrão que se prolongaria até ao

século XX. Os "voluptuosos estremecimentos da carne" (Adler 1990, 149) não podiam ser gozados

indiferentemente por homens e mulheres. A traição feminina era merecedora dos maiores anátemas,

ultraje supremo aos valores familiares, enquanto as relações extra-matrimoniais masculinas se

desenvolviam de forma aparentemente pacífica, funcionando como sinal ostensivo de

masculinidade, socialmente reconhecido e admirado, sendo "certo que nesta terra o homem que não

tenha amantes, que não se exiba com elas em público, está pronto, desacreditado" (Miguéis 1984, I,

152).

A autoridade masculina sobre a sua família traduzia-se das mais diversas formas,

inclusivamente ao nível dos castigos físicos infligidos aos seus dependentes, quando em

transgressão às regras da boa convivência e do respeito. Não falando de situações de ruptura, em

que reacções masculinas violentas eram tidas como naturais e esperadas - caso do adultério

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feminino, cuja punição pelo marido era tratada pela justiça com compreensão (cf. Guinote e Paulo

1991) -, outros eram os momentos em que, com justificação, o homem podia fazer valer livremente

os seus privilégios. Em meados do século XIX, era publicada obra em que se debatia se Deve ou

não o homem casado bater em sua mulher ?, com resposta menos linear do que os espíritos mais

esclarecidos e compreensivos poderiam esperar. Em animada conversa de salão, respondendo à

indignação da "madama d'H", "Conde de J..." conta a experiência de um amigo cuja mulher, após

ver no teatro a peça Othello, se vê possuída pela crença de que o marido a não ama

verdadeiramente, pois se recusa a conceber matá-la ou espancá-la, em caso de teórica traição.

Assim, para evitar o desdém, embora de início contrariado, a solução seria aceder aos devaneios

femininos, começando gradualmente as tareias, "para experimentar, no princípio apalpando com

moderação, como homem que esperimenta um remedio... Ah ! meu amigo ! Tinha acertado ! Não

duvidaram mais do meu amor, do meu ciume (...). Para encurtarmos razões, meu caro, minha

mulher, desde então, considera-se a mais feliz de todas, ensoberbece-se com o sentimento insensato

de que é objecto (...). E com que transportes, com que delírio terminam estas scenas inconcebíveis !

Isto é quasi tão delicioso para mim como para ella." (Deve ou não deve o homem casado bater em

sua mulher ? Paradoxo conjugal, s.d., 15-16).

Embora este seja um caso dificilmente generalizável, a conclusão retirada é a de que a

legitimidade de um marido bater na mulher pode ser uma questão dependente das conveniên-cias e

circunstâncias particulares. Porque não ? Afinal, uma tareia poderia ser mesmo uma, quiçá cínica,

quiçá perversa, deturpada, forma de amar, apreciada até pela própria vítima do aparente mal. Sinal

ou não de comportamento patológico, a merecer tratamento clínico, ou estratégia oculta de

estimulação erótica, esta era uma situação que tinha muito a ver com a puritana gestão que a

sociedade burguesa masculina fazia da sua vivência das paixões e dos afectos.

Os Afectos

O domínio racional do homem sobre as suas paixões, em contraposição à maior

passionalidade feminina, foi tema que ocupou importante espaço ao longo dos séculos na discussão

da natureza humana e das diferenças entre os sexos. A resposta se pendeu normalmente para a

denúncia da maior carnalidade e "fraqueza" da natureza feminina, não deixou, contudo, de

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apresentar alguns cambiantes durante o século XIX, quando é visível a hesitação entre o modelo

tradicional que via na mulher a fonte da perdição masculina, e a tendência que se vai reforçar com

o século de apresentar a esposa como o garante da virtude, da moral e da estabilidade familiar.

Grande parte das dúvidas e equívocos da sociedade burguesa no plano da sexualidade,

resulta dos próprios preconceitos masculinos na abordagem das questões. Em análise pioneira que

já mereceu diversas críticas e contributos, mas que mantém a sua pertinência, Lawrence Stone

propõe uma periodização para as atitudes das classes sociais dominantes em relação à sexualidade,

que atravessa um momento de maior intolerância entre o final do século XVIII e a década de 1870

(Stone 1988, 339) o que corresponde, em traços gerais à ascensão e apogeu da sociedade liberal

burguesa nos dois lados do Atlântico, que teria a sua formulação mais acabada na sociedade

vitoriana britânica, copiada em muitas paragens.

A segurança do Homem é aparente, o princípio activo e a atitude masculina de domínio no

campo das relações entre os sexos é algo ilusória. A sociedade burguesa, de forma misógina,

procura inibir uma acção feminina autónoma neste campo, mas o receio e temor masculino da

Mulher é frequente e com raízes seculares (Delumeau 1985, 398). Por isso, se procura remetê-la

para objecto das estratégias e mecanismos de sedução; pressente-se que se a feminilidade reclamar

os seus direitos a esse nível, os homens poderão ser presa fácil. A desvalorização moral da sedução

feminina e a política de ignorância que se desenvolve para as mulheres burguesas no plano da

própria sexualidade é uma estratégia de defesa masculina que, fundadamente ou não, roça uma luta

pela sobrevivência e revela uma crispação, ocultada pela arrogância.

No entanto, muitos dos equívocos passam pelos tabus que se mantêm sobre o

relacionamento sexual, tanto no plano íntimo mais restrito, como no mais geral da mera

convivência social. Podem ler-se todas as Regras de Civilidade para os Meninos, subtítulo da obra

O Preceptor de Infancia de Carlos Silva que em 1896 ia na 9ª edição, sem que uma linha aponte no

sentido de qual o correcto comportamento a ter pelos jovens na presença de elementos do sexo

oposto. A política de ignorância também se vira contra os próprios homens: a sua formação nestes

campos é secretista, oral, conspirativa. Alfredo Gallis, não deixa de afirmar que uma das razões

capitais que levam à ruína de muitas famílias "é que a maioria dos homens reveste-se de um pleno

desconhecimento da feição psychologica e phisiologica da mulher, imaginando que a simples

copula animal lhe póde preender todas as aspirações da alma e todas as phantasias da carne" (Gallis

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s.d., 175). A iniciação sexual masculina tradicional passa, de forma quase institucional, pela

prostituta, símbolo que se torna ambíguo, de devassidão e decadência moral mas, em simultâneo, de

fonte de prazer e de porta de acesso a uma idade adulta completa. Em tempos de casamentos ainda

ditados, em largo número, por afinidades e conveniências mais materiais que espirituais e por

prazeres mais financeiros do que carnais, torna-se naturalmente problemático cortar o fascínio e

atracção que a meretriz exerce sobre os homens, carentes afectiva e sexualmente ao nível conjugal

em virtude da rigidez dos seus próprios valores. A sua intransigente defesa de pureza moral das

mulheres da sua condição, torna-os prisioneiros e dependentes das relações adulterinas onde colhem

o prazer que se proíbem a si mesmos em leito legítimo próprio. O amor natural, por seu lado, era

fase essencial da formação masculina, porque "enfim, todos os rapazes têm as suas amantes... Os

costumes são assim, a vida é assim, e seria absurdo querer reprimir tais coisas." (Queiroz s.d.a, 27).

Quanto às estratégias de sedução amorosa e de galantaria, os rituais variavam, curiosamente

ou talvez não, com maior riqueza entre as classes populares, onde os interesses da paixão não

sofriam tanto os entraves das conveniências sociais e económicas. Entre a pequena e média

burguesia, em alguns casos mesmo entre as famílias de mais elevada condição, os flirts de salão

eram os mais tradicionais, comuns e aceites durante todo o período, enquanto as perseguições de

olhares, e não só, nas ruas se tornaram um quotidiano em afirmação na segunda metade e finais do

século XIX, quando as mulheres começaram a ganhar o acesso à rua. Os galãs lisboetas, de fatiota

aprumada, cofiando o bigode, à porta de um dos cafés mais elegantes da Baixa ou do Chiado,

esperavam com antecipado prazer, a presença feminina: "A 1ª coluna do belo sexo, que se apresenta

é geralmente composta de mamãs, de matronas pesadas, habituadas aos antigos xaropes de peros e

ameixas e a quem a piuga de lã nunca abandonou (...). A esta 1ª invasão, o janota fuma um cigarro

mais ou menos bregeiro, e espera. Seguem-se as sílfides, em uma palavra, as mulheres, porque

assim como nem tudo o que luz é oiro, nem tudo o que veste sais é mulher ! É então que o janota

estica a canela, e aguça as ponta do bigode." (Diário Ilustrado de 5 de Outubro de 1872 citado por

Câncio 1941, 80).

O que se seguia era mais ou menos ditados pelas regras "secretas" da sedução masculina,

colhidas aqui e ali nos romances da moda: diálogos de olhares mais ou menos sorrateiros, meneios

de leques, respostas com o chapéu, envios de flores e breves notas apaixonadas, originais à medida

das possibilidades dos muito difundidos Secretários dos Amantes. O namoro, neste estado, mais não

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era do que uma instituição que todos sabiam reconhecer, habilmente recheada de barreiras

interpostas a um contacto directo entre os sexos e que, na essência, não transgredia as normas e os

interditos da decência socialmente recomendada. O verdadeiro amor era feito de provações e só a

tenaz resistência à infelicidade amorosa tinha a aparência de paixão real. "Sentimental, romântico, o

amor lisboeta era, na generalidade, decalcado dos romances da época. Eles e Elas sofriam amando.

Qualquer pequeno grão de areia erguido entre ambos tornava-se em imaginação uma montanha de

sofrimentos, de lágrimas e de suspiros." (Câncio 1939, ccvii).

Em meados do século XIX, o Passeio Público era o espaço privilegiado para as famílias

lisboetas passearem as filhas e, assim, disfarçadamente, as mostrarem. Os passeios e jardins da

cidade eram, com as suas frequências específicas numa geografia atenta às distinções sociais, um

dos poisos mais vantajosos para os sedutores mais empedernidos ou para os apaixonados mais

ansiosos pela visão da depositária dos seus desejos. Mas a doce ilusão dos amores deveria ter em

atenção as conveniências. "Se no passeio da Estrella a moralidade é coisa attendida, no passeio de

S. Pedro de Alcântara então não se pensa n'outra coisa; logo à entrada no fim da escada de pedra,

está um municipal escrupuloso, incumbido de não deixar ninguém erguer os olhos n'aquella

direcção... por causa das saias que descem ! Ó virtude ! Ó morigeração !" (Machado 1874, 152)

Mas se os olhares masculinos ostensivos e prolongados eram reprovados "por causa do pasmo"

(Bastos 1947, 224), a verdade é que a vigilância paternal sempre abria as suas brechas,

inadvertidamente ou talvez não, permitindo sopros apressados, afogueados, de galanteios

sussurados nem sempre com os mais platónicos intuitos: "Trocam-se meias phrases, a titulo de para

um instante por cançasso. - E, diga-me vossa senhoria - pondera a donzellona em tom assucarado e

pudico - isto é para casamento, ou outra ideia ? - Outra ideia - responde o fumista de cigarros e

corações, com a maior sinceridade." (Machado 1874, 145).

Os Espaços

Uma das mais óbvias consequências do desenvolvimento da teorização das esferas separadas

da vivência dos sexos na sociedade burguesa, encontrava-se com naturalidade nos espaços

frequentados. Para além da oposição lar/rua, que deveria servir de princípio fundamental à

circulação de homens e mulheres, existiam outras normas de conduta a respeitar. No trabalho ou no

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lazer, os homens tinham espaços próprios, cujo acesso procurariam manter o mais possível como

privilégio exclusivo.

O local de trabalho foi um desses espaços que a masculinidade burguesa procurou defender

ao máximo de qualquer presença feminina. Com efeito, a imagem da mulher como "anjo do lar" e o

culto da vida doméstica feminina, longe do bulício de uma vida profissional, são algumas das mais

requintadas criações da burguesia, pouco compatível com a realidade de grande parte da sociedade

envolvente. A oposição de esferas próprias de intervenção na sociedade, a dicotomia espaço

público/espaço privado, lar/rua, é um modelo que à aristocracia não interessa e às camadas

populares não serve, quer por questões culturais como, em especial, materiais.

No caso da aristocracia, a riqueza adquirida e transmitida ao longo das gerações e dos

séculos, apesar das perturbações políticas e de alguma decadência material, facultava um modo de

vida que a tradição determinava como sinal exterior de um estatuto de excepção; ou seja, o ócio era

um sinal inequívoco de status. Contrariamente à burguesia de origem vilã, uma ocupação

profissional, mesmo que de sucesso, não é mérito invejável e o trabalho é uma contingência coberta

de conotações pejorativas, símbolo de ruína (que, mesmo quando real, se deve esconder) e razão de

vergonha, apanágio de plebeus destituídos de estirpe. E este sistema de valores é aplicado sem

qualquer diferenciação sexual; a subsistência, e muito mais do que isso, é fruto de rendas e não do

trabalho. Quanto às camadas populares, que se fale do velho campesinato rural como do

proletariado urbano em expansão, a necessidade de uma ocupação remunerada, atempo total ou

parcial, impõe-se muitas vezes a ambos os membros do casal e frequentemente às próprias crianças,

pela força das circunstâncias que envolvem a sua existência. Em muitos agregados o trabalho

feminino é um recurso de que se não pode prescindir quando o salário masculino não consegue

suportar todos os encargos dos seus dependentes.

Por tudo isto, a ideologia do local de trabalho como espaço reservado ao domínio masculino

é uma formulação tipicamente burguesa. A família não necessita dos rendimentos gerados pelo

trabalho feminino, mas não pode passar sem o rigoroso desempenho profissional masculino. Esta é

uma situação que tem evidente tradução estatística, inclusivamente em Portugal, quando se observa

a participação feminina na população activa nos diversos sectores da economia. as ocupações onde

a Mulher mais tarda em surgir e afirmar-se são as que mais facilmente se associam aos estratos

intermédios da sociedade, símbolos do liberalismo burguês: a banca e os seguros, as profissões

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liberais, o funcionalismo público. Nas organizações financeiras, nas repartições públicas, nos

escritórios de grandes empresas, nos gabinetes de engenharia, arquitectura ou advocacia é nula a

presença feminina, ou então se surge é em situações de clara subalternidade (escriturárias,

empregadas de limpeza). Estes são espaços religiosamente vedados à influência feminina e

específicos do Homem. Vejam-se as listagens de funcionários ou profissionais deste tipo no

Annuario Commercial: durante o século é literalmente invisível o rosto de uma mulher na função

pública, em grandes empresas ou nas profissões liberais (cf. Guinote 1997, 248ss). A primeira

excepção vai ser a medicina, onde se concedem alguns direitos à natureza e aptidão feminina para

tratar dos doentes, em particular crianças e outras mulheres.

O exclusivo masculino na função pública mantém-se até aos alvores republicanos: em 1911

seriam admitidas as primeiras mulheres numa repartição da administração pública, mais

exactamente para a Junta de Crédito Público (Illustração Portugeza, 1 de Maio de 1911, 550-552),

onde o ambiente, quase monástico, é de extrema circunspecção o que é tido como pouco natural à

feminilidade.. Mas, anos depois, ainda existem protestos sobre a escassa presença de funcionárias

na administração pública; acusam-se os homens que "com uma abnegação digna de elogio, ocupam

todos os lugares, absolutam,ente todos, da vastissima teia do funcionarismo e Deus livre á mulher

de levantar os olhos cubiçosos para o mais infimo lugarsito á mêsa do orçamento" (A Semeadora,

15 de Agosto de 1915, 4).

Ao nível das profissões liberais a situação é similar; implicando formação superior, estas

são ocupações a que praticamente só o homem pode aspirar o acesso. As primeiras mulheres a

frequentar o ensino superior, em finais de Oitocentos, enveredam normalmente pela medicina, que

algumas depois exercem profissionalmente. Em 1900 existiam sete médicas no país, a acreditar nos

registos do Annuario Commercial, num universo de várias centenas de profissionais. Os gabinetes

de engenharia ou arquitectura eram couto masculino, o que se passaria com a profissão de

advogado até 1913, quando se forma a primeira mulher em Direito.

A excepção mais notória a esta situação de domínio masculino nos locais de trabalho

associados à burguesia seria o caso das escolas, oficiais ou particulares. Embora o professorado

fosse ocupação mais própria da pequena ou média burguesia, seria a única ocupação a que as

mulheres se poderiam dedicar sem que isso implicasse embaraço maior, do ponto de vista do

prestígio social, e sem que fosse grande a resistência feminina. Isso era assim porque o declínio

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material da remuneração dos professores afastava muitos homens, abrindo caminho à presença

feminina. De qualquer forma, mesmo o professorado oficial se tornou gradualmente uma ocupação

mais atractiva para as raparigas do povo do que para as jovens e senhoras burguesas que, a este

nível, obteriam maior reconhecimento e admiração como professoras de música, canto, pintura ou

inclusivamente de línguas estrangeiras.

Outros espaços que os homens procurariam delimitar como seus e onde a entrada de

elementos do sexo oposto era encarada como pouco natural, relacionava-se com o lazer masculino.

O lazer e a ocupação dos momentos de ócio no masculino podiam desdobrar-se num duplo plano:

no seio familiar e no espaço público. Não estando aqui propriamente em causa os momentos de

diversão e boémia em que os gostos das diferentes camadas sociais se misturavam e confundiam

(noitadas de vinho, jogo e mulheres eram populares para a generalidade dos gostos masculinos),

apesar das diferentes possibilidades e o requinte acessível a cada indivíduo dependia dos seus meios

materiais, o que aqui nos interessa são manifestações de convívio como as sociedades e tertúlias

masculinas, políticas, literárias ou científicas, e, a outro nível, o mundo dos cafés elegantes.

No caso das sociedades e tertúlias predominantemente masculinas, Maria de Lourdes Lima

dos Santos destaca o caso das lojas maçónicas, das sociedades de recreio e instrução, das academias

científico-literárias e das tertúlias político-literárias em que a participação e convívio eram

privilégio dos homens, apesar de alguns casos de saraus e reuniões de cariz literário e artístico da

responsabilidade de algumas damas da sociedade (Santos 1990, 366-371). Nestes espaços de

sociabilidade masculina a discussão desenrolava-se, de modo mais diletante ou empenhado, em

torno das tendências literárias mais em voga, dos mais recentes progressos científicos ou das

questões da política interna e externa. Outras formas de ocupar os momentos de lazer e de

sociabilidade (Cascão 1993) como a música, o teatro, as touradas, os bailes ou mesmo as romarias e

procissões já tinham uma presença feminina muito marcante, não apresentando uma particular

especificidade masculina.

Um outro mundo tipicamente masculino era o dos cafés e botequins. Em Lisboa, o século

XIX assiste à popularização deste tipo de estabelecimentos, que constituem um circuito próprio nas

diversas zonas da sociedade, com a sua hierarquia de méritos e de frequentadores. Na Baixa e no

Chiado concentravam-se os de maior notoriedade e prestígio, embora por vezes paredes-meias com

outros de fama mais duvidosa. Neles, muitos são os homens que perrmanecem "desde a manhã até

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às duas horas da madrugada", pois cafés e botequins são "ponto de encontro de amigos em

cavaqueira" (Silveira 1987, 43-44), centro de discussão política e literária, de observação dos

"tipos" que frequentam o quotidiano citadino e base de apoio para quem se delicia na admiração da

presença feminina nas ruas, que vai crescendo nas últimas décadas do século, nas horas do circuito

pelas lojas de modas.

O botequim, inicialmente casa onde se vendiam as mais diversas bebidas, e o "café", que se

especializa nesta bebida, são locais caracteristicamente masculinos; só mais tarde, já na transição

para o século XX, os salões de chá e as confeitarias, as patisseries, facultam espaços equivalentes

para as mulheres. Sousa Bastos é um dos autores que reconstitui o circuito dos cafés e botequins

lisboetas de Oitocentos. No Rossio o Nicola era uma instituição que se manteve, enquanto o velho e

tradicional Parras desapareceria em 1850 e o José Pedro das Luminárias veria o seu dono morrer

em 1862. Mas o centro destas casas era o Chiado, onde vários se deviam a italianos e galegos, o

Toscano, o Luizinho, o Lourenço, o José das Pernas Grandes, o Baptista, etc. Em ascensão

estavam os Martinho da Neve e da Arcada e os Marrare, em especial estes últimos onde o asseio e

comodidade eram ponto de honra. O caso mais notável era o do Marrare do Polimento, parente dos

seus congéneres das Sete Portas (no Arco da Bandeira) ou do S. Carlos (junto à Praça da Figueira),

que assim era conhecido "por ter toda a rmação de madeira polida, e que foi frequentado pela

primeira roda de Lisboa e tão aristocratizado que até era proibido fumar !" (Bastos 1947, 152).

Aspecto curioso é esta proibição de fumar, que surge em concordância com algumas indicações dos

manuais de civilidade de meados do século que não associam o acto de fumar a qualquer sinal de

distinção, antes o relacionando com hábitos, pouco aconselháveis de imitar, de camadas sociais

inferiores.

No ambiente familiar, a habitação burguesa também reservava espaços específicos a cada

sexo para os seus momentos de recolhimento e tratamento dos seus assuntos próprios. No caso do

homem, como o boudoir feminino, existia o gabinete ou escritório onde podiam ser tratados

assuntos profissionais pendentes e merecedores de maior atenção ou, em momentos de maior

descontracção, para a leitura, escrita ou qualquer outra actividade que não devesse ser perturbada

pelo bulício da vida doméstica, pelo trabalho rotineiro da criadagem ou pelas brincadeiras das

crianças. Este era um espaço quase sagrado que deveria ser respeitado por todas as outras pessoas

da casa, que nele só deveriam penetrar quando devidamente autorizadas.

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Uma Masculinidade em crise na entrada do novo século ?

Em finais de Oitocentos, no momento em que se anuncia esse prometedor século XX,

quando a Belle Époque se encontra no seu auge, em que a Humanidade parece não conhecer limites

para as suas possibilidades de dominar a Natureza e em que o homem ocidental estendem o seu

poder político-económico a quase todo o planeta, a masculinidade, paradoxalmente, parece entrar

em questionamento sobre si mesma. Através de indício dispersos, vários foram os que entraram

esses sinais de uma "crise da identidade masculina" (Maugue 1987 e Badinter 1993, 29-39 ) na

transição do século, elemento, porventura, de um certo decadentismo finissecular que envolve a

época de 1900 na Europa. Mesmo nos Estados Unidos, onde os hábitos e rotinas quotidianas tinham

contornos algo diversos, se sentem essas alterações no comportamento masculino: nas cidades do

Leste atlântico cresce uma certa "ansiedade" perante os perigos de um "excesso de civilização" e

das suas consequências pouco masculinas, o ócio, a apatia, o luxo (Rotundo 1993, 251-252); a

ideologia das "esferas separadas" entre os sexos decai e surgem novos hábitos domésticos entre os

homens, motivo de bem-humoradas caricaturas (Marsh 1990, 120). As ameaças à masculinidade

tradicional parecem, desta forma, partir tanto do seu exterior, surgindo a Mulher como uma Eva

renovada e agressiva, mais autónoma e consciente de algumas das suas aspirações, quer do interior

da própria masculinidade, que aparenta sentir uma relativa perda de vigor e vitalidade.

Os homens interrogam-se sobre o sentido da evolução do seu mundo e sobre o estado a que

chegou a sociedade por si idealizada e construída: a vitalidade burguesa do início do século parece

ter-se dissipado devido aos efeitos do seu próprio sucesso. O lazer parece ter-se apossado do

princípio activo masculino, enquanto a feminilidade avança à conquista de novos territórios. Esta

evolução cruza-se com as preocupações relacionadas com a degenerescência da raça que abundam

em várias nações ocidentais: a observação do declínio da natalidade questiona a capacidade

reprodutora masculina. Prisioneiro da sua própria ideologia, que remete a Mulher para um papel

passivo no próprio acto reprodutor, o Homem só se pode culpar a si mesmo pelo que se passa no

seu foro mais íntimo. E procura, ansiosamente, encontrar as razões e, principalmente, as soluções,

para o dilema em que se sente. O tema da impotência, ou da "não-consumação" do acto sexual,

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como que esquecido durante a maior parte do século XIX, retorna no século XX (Darmon 1986,

241-242). Teme-se o esgotamento da energia vital masculina, o enfraquecimento da "semente".

Na primeira década do século XX, em Portugal, tornam-se frequentes nas páginas das

revistas de maior divulgação os anúncios de "vigorizadores" para os homens que se sentem

enfraquecidos. Num dos periódicos de maior circulação e prestígio reclama-se "Homens não vos

deixeis vêncer" e propõe-se o "vigorizador electrico do Dr. Mclaughlin" para ultrapassar as

debilidades menos convenientes (Século, 1 de Janeiro de 1905, 14). Poucos anos depois, em outro

espaço, pergunta-se "Porque continuar a ser baixinhos e acanhados quando podereis aprender

gratuitamente o segredo de como crescer altos ?" e anuncia-se "O Modo de Crescer mais Alto e de

Alargar os Ombros" (Illustração Portugueza, 10 de Maio de 1909, entre muitos outros exemplos);

sintomaticamente, a figura que acompanha o anúncio é a de um par a dançar, em que um minúsculo

homem se debate perante uma imponente figura feminina. A Mulher vai ganhar uma feição

relativamente ameaçadora, em especial no plano do relacionamento sexual, embora essa seja uma

tendência que só se reforça após os anos da guerra e nos anos 20, com o contributo dos modelos

cinematográficos e as ousadias do mundo da moda. Entre nós, na obra de um dos poucos

modernistas em sintonia com o seu tempo, as representações masculinas enfraquecem perante o

poder de sedução e manipulação feminina: veja-se o caso de António Ferro e da sua criação

Leviana no texto do mesmo nome.

Mas outras ameaças partiam do seio do próprio mundo masculino, pondo em causa os

valores viris tradicionais: no século XIX, como consequência directa da proliferação de olhares,

discursos e recalcamentos em torno da sexualidade humana, como que se (re)descobre a

ambiguidade de muitos homens neste aspecto íntimo, e fulcral, para a definição das atitudes e

comportamentos, tidos como naturais, do seu sexo. Embora objecto de interditos sociais muito

fortes, a homossexualidade masculina começa a ser objecto de análise, particularmente do ponto de

vista clínico. As análises de tal tema, a partir das últimas décadas do século XIX são menos raras do

que se poderia supor atendendo ao puritanismo de valores que se associa normalmente à sociedade

burguesa deste período. No caso particular de Portugal, a divulgação de alguns estudos de autores

internacionais que abordam a questão, coincide com o momento em que se avolumam as

interrogações sobre os valores masculinos. Em 1902, é publicado O Instincto Sexual e as suas

Aberrações do Dr. Krafft-Ebing que reserva um capítulo inteiro à prostituição masculina, que

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também é tratada cerca de uma década depois por Bugalho Gomes na sua História Completa da

Prostituição. Ao nível da ficção, com contornos de retrato naturalista da sociedade, saem O Barão

de Lavos de Abel Botelho e O Sr. Ganymedes de Alfredo Gallis. Apesar de tudo, o conhecimento

deste fenómeno permanece circunscrito pela sua natureza tida como aberrante e patológica,

naturalmente prejudicial do ponto de vista moral; os comentários codificados sobre situações

concretas dão-se em ambientes limitados de conhecedores e o debate sobre a questão desenvolve-se

quase em exclusivo nos círculos médicos, onde se produzem os dois principais estudos sobre a

inversão sexual masculina, já na década de 20 (Aguiar s.d. e 1926; Monteiro 1922). Ao mesmo

tempo, em outros espaços, a cultura urbana homossexual afirma-se e cria uma identidade própria,

forçando a heterossexua-lidade masculina, a definir-se com maior rigor (Chauncey 1994, 99)

Será talvez ousado afirmar que a Grande Guerra é, em parte, o resultado desta crise da

identidade masculina europeia, profundamente necessitada de demonstrar publicamente as suas

virtudes guerreiras tradicionais. Se a aparente inevitabilidade do conflito, do ponto de vista

geoestratégico da expansão das principais potências coloniais/imperiais industrializadas da Europa

choca com a irracionalidade dos seus mecanismos de arranque e alastramento mortífero e

devastador, inegável parece ser a alegria inicial da partida dos soldados para a guerra. Como se

fossem provar o valor, vigor a vitalidade das suas capacidades, que se deseja ardentemente se

venham a demonstrar intocadas pelo século de quase completa inacção bélica. Talvez isso explique

a rapidez com que as nações europeias vão suportar milhões de mortos na frente de batalha, sem

ganhos substanciais visíveis, e manter o bloqueamento diplomático apesar do impasse militar e da

devastação material.

Esta explicação, todavia, não deixaria de ser paradoxal, como o foi, aliás, o desfecho do

embate para a Europa. Destinada a comprovar e legitimar o poderio másculo, a guerra foi a porta

aberta para a ascensão das mulheres em diversas áreas do mercado de trabalho e da sociedade. Tal

como para a Europa, a luta pela supremacia entre as suas potências, foi a causa imediata para uma

rápida passagem de testemunho aos Estados Unidos como principal potência económica mundial.

Nos anos 20, a Mulher, uma Eva renovada e masculinizada, parece ameaçar como nunca uma

masculinidade confusa.

No início do século XX, os burgueses sentem que a presença feminina começa a penetrar

em todos os espaços que antes tinham como exclusivo seu: a rua começou a ser tomada, os locais

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de trabalho estão a ser assediados, as escolas são crescentemente ocupadas, a vida política sofre a

investida feminista. As vias de afirmação que restam à masculinidade para provar o valor das

qualidades viris, para além da guerra - privilégio mortífero - vão ser o desporto e as manifestações

de heroísmo e e raras oportunidades de audácia individual. E, mesmo aí, a concorrência vai ser

rápida. Afinal, "a crise da masculinidade que se fez sentir agudamente no princípio do século [só

seria], momentaneamente, resolvida pela guerra." (Badinter 1993, 39)

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Entremez da disgraçada peraltice intitulado mulher, que não tem conselho, perde o seu mais o alheio (1785), Lisboa: Off. Lino da Silva Godinho.

Entretenimento ordinario das cozinheiras declarado na conversa que duas tiverão huma noite destas nas janellas de hum xagoão (1786), Lisboa: Academia Real das Sciencias.

Mulher (A) reformada e o marido satisfeito. Obra alegre, moral, e recreativa (1785), Lisboa: Off. Antonio Rodrigues Galhardo.

Novo e graciozo drama intitulado os suspiros da dama porque nam foi ver os touros (1785), Lisboa: Of. Domingos Gonsalves.

Novo e graciozo entremez intitulado a grande bulha que teve a mulher com o marido pela não deixar ir ver os arlequins (1793), Lisboa: Offic. de Antonio Gomes.

Novo entremez intitulado a grande bulha que teve huma mulher com seu marido por deitar o dinheiro nas sortes e lhe sahir em branco (1825), Lisboa: Typographia de M. P. de Lacerda.

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Novo entremez intitulado o poeta desvanecido e as damas loucas por versos (1782), Lisboa: Officina Luisiana.

Passatempo dramatico em que se mostra o valor de hum bom concelho, para a emenda de huma vida desordenada (1775), Lisboa: Off. de Caetano Ferreira da Costa.

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