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A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE PATERNA DE GRU EM MEU MALVADO FAVORITO Drielli Muller Cassepp Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul Vitória Merten Fernandes Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul A cultura na contemporaneidade assume um papel social, que se faz presente em todos os âmbitos da vida dos sujeitos inseridos nela. Toda instituição ou atividade social requer uma cultura própria, no sentido de que para cada prática há uma significação. Os filmes infantis constituem seu próprio universo, sendo assim, esses filmes tem sua própria cultura, uma série de significações que são feitas por seu público alvo. “Os sistemas ou códigos de significado dão sentido às nossas ações, permitem-nos interpretar significativamente as ações alheias eles constituem nossas culturas” (GUARESCHI et al., p. 41, 2003). Como cultura, os filmes infantis acompanham as mudanças que percorrem nossa sociedade. O filme escolhido para análise está inserido em uma cultura ocidental e contemporânea, que passa por uma mudança de paradigma no que diz respeito ao que é ser pai ou mãe. Sarup (apud. GUARESCHI,et al., p. 187, 2003), afirma que “todas as identidades de classe, gênero, étnicas são construções sociais e entende que é fundamental colocar a questão da identidade no contexto da história, linguagem e poder”. As significações que ocorrem em uma cultura constroem as identidades dos sujeitos inseridos nela, ao mesmo tempo em que essa cultura é feita das significações que esses sujeitos dão às práticas sociais que ocorrem dentro desta. Ou seja, enquanto os filmes infantis constroem modos de paternidade, as mudanças que ocorrem nesse âmbito, na sociedade, também traçam novos modos de representação que vão aparecer nos filmes. Nossa pesquisa tem por objetivo compreender como a paternidade vem sendo representada através da mídia, pois partimos de uma visão em que somos permeados e construídos midiaticamente durante toda nossa vida. Assim, a forma como a paternidade aparece nos filmes, constrói as paternidades que exerceremos, ou que serão exercidas em nossa sociedade. Consideramos importante avaliar de que forma isso se endereça ao público, já que, culturalmente, a mídia cria formas de ser e estar no mundo. As identidades culturais na pós-modernidade estão intrinsicamente ligadas à mídia e suas representações; sendo assim, o

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A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE PATERNA DE GRU EM MEU MALVADO

FAVORITO

Drielli Muller Cassepp – Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade de Santa Cruz

do Sul

Vitória Merten Fernandes – Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade de Santa

Cruz do Sul

A cultura na contemporaneidade assume um papel social, que se faz presente em todos

os âmbitos da vida dos sujeitos inseridos nela. Toda instituição ou atividade social requer uma

cultura própria, no sentido de que para cada prática há uma significação. Os filmes infantis

constituem seu próprio universo, sendo assim, esses filmes tem sua própria cultura, uma série

de significações que são feitas por seu público alvo. “Os sistemas ou códigos de significado

dão sentido às nossas ações, permitem-nos interpretar significativamente as ações alheias –

eles constituem nossas culturas” (GUARESCHI et al., p. 41, 2003).

Como cultura, os filmes infantis acompanham as mudanças que percorrem nossa

sociedade. O filme escolhido para análise está inserido em uma cultura ocidental e

contemporânea, que passa por uma mudança de paradigma no que diz respeito ao que é ser

pai ou mãe. Sarup (apud. GUARESCHI,et al., p. 187, 2003), afirma que “todas as identidades

– de classe, gênero, étnicas – são construções sociais e entende que é fundamental colocar a

questão da identidade no contexto da história, linguagem e poder”. As significações que

ocorrem em uma cultura constroem as identidades dos sujeitos inseridos nela, ao mesmo

tempo em que essa cultura é feita das significações que esses sujeitos dão às práticas sociais

que ocorrem dentro desta. Ou seja, enquanto os filmes infantis constroem modos de

paternidade, as mudanças que ocorrem nesse âmbito, na sociedade, também traçam novos

modos de representação que vão aparecer nos filmes.

Nossa pesquisa tem por objetivo compreender como a paternidade vem sendo

representada através da mídia, pois partimos de uma visão em que somos permeados e

construídos midiaticamente durante toda nossa vida. Assim, a forma como a paternidade

aparece nos filmes, constrói as paternidades que exerceremos, ou que serão exercidas em

nossa sociedade. Consideramos importante avaliar de que forma isso se endereça ao público,

já que, culturalmente, a mídia cria formas de ser e estar no mundo. As identidades culturais na

pós-modernidade estão intrinsicamente ligadas à mídia e suas representações; sendo assim, o

estudo midiático apresenta-se como fundamental para que possamos entender essas

identidades.

A Pesquisa

A metodologia aqui utilizada foi escolhida por abarcar nosso objeto de pesquisa de

forma que nos possibilita a análise dos dados recolhidos no filme Meu Malvado Favorito

(Dreamworks, 2010). Optamos, então, por uma pesquisa qualitativa, que consiste na análise

de dados sem quantificar seus resultados, se preocupando mais com as significações criadas a

partir do objeto de estudo. “A palavra escrita ocupa lugar de destaque nessa abordagem,

desempenhando um papel fundamental tanto no processo de obtenção dos dados quanto na

disseminação dos resultados” (GODOY, 1995).

Para a análise das cenas, utilizaremos os Estudos Culturais, que é um campo de estudo

que permite uma maior flexibilização do conhecimento, examinando os efeitos dos textos da

cultura da mídia, os modos como o público se apropria dela e de como imagens e discursos da

mídia funcionam dentro da cultura em geral. Partiremos do pressuposto de que a paternidade é

uma posição construída social e culturalmente, visão compartilhada pelos Estudos Culturais.

A pesquisa será dividida em tópicos, que abarcarão o processo de construção da

identidade paterna de Gru. Iniciaremos analisando cenas que demonstram Gru ainda como o

supervilão, situações onde ainda não foi desenvolvido o apego com as meninas.

Posteriormente, mostraremos de que forma ele construiu sua identidade paterna ao longo do

filme, chegando, assim, no momento em que Gru já se posiciona enquanto pai. Por último,

faremos uma discussão onde questionaremos a família enquanto um local sagrado, visto que

no momento que Gru torna-se pai ele deixa de ser um supervilão, sendo citado, inclusive,

como um herói.

A Identidade e sua Importância para esta Pesquisa

Nesta pesquisa, o principal conceito trabalhado será o de identidade, pois tentaremos

explicitar como Gru construiu sua identidade paterna e a assumiu durante o filme Meu

Malvado Favorito. Gostaríamos, aqui, de conceituar identidade e explicar de que forma este

conceito torna-se importante no desenrolar da pesquisa.

Segundo Silva (2012, p. 89), a identidade está estreitamente ligada ao sistema de

significação. O mesmo autor ainda cita que “a identidade é um significado – cultural e

socialmente atribuído. A teoria cultural recente expressa essa mesma ideia por meio do

conceito de representação”. Na pesquisa desenvolvida trabalharemos com a representação que

é feita da identidade paterna por meio do personagem Gru.

É importante, então, também conceituar representação. “Na história da filosofia

ocidental, a ideia de representação está ligada à busca de formas apropriadas de tornar o ‘real’

presente – de apreendê-lo o mais fielmente possível por meio de sistemas de significação”

(SILVA, 2012, p. 90). Sendo a cultura um sistema de significações feitas pelos sujeitos

imersos nesta, podemos dizer que a representação que é feita de Gru enquanto pai é uma

forma de aproximar-se da construção de identidade paterna feita culturalmente.

Devemos nos lembrar, também, que Gru é um pai solteiro, sendo relevante para a

pesquisa entender que a representação paterna feita no filme trata-se de uma representação

monoparental em uma sociedade ocidental pós-moderna, na qual vem acontecendo mudanças

em relação à(s) paternidade(s). A identidade construída por Gru é interpelada pela forma

como tratamos socialmente da monoparentalidade, ou seja, dada representação somente é

possível no momento cultural que vivemos atualmente. “A cultura é constantemente

reatualizada justamente por agentes sociais que resignificam seu mundo com cada ato, cada

gesto. Para acentuar esse aspecto dinâmico do processo, fala-se mais em produção cultural”

(FONSECA, 2004).

Mas o que é, afinal, identidade? A identidade poderia ser descrita como uma

multiplicidade de características pertencentes ao sujeito identitário. Pode ter uma

característica fixa ou imutável, como no caso de uma identidade racial (WOODWARD, 2012,

p. 13). Ou seja, diz respeito a como o sujeito se constituí e com o que se identifica. Porém,

para os propósitos dessa pesquisa, nos utilizaremos de identidades culturais, sendo estas

mutáveis e construídas ao longo de nossas vidas – esta é sua principal característica.

É necessário, então, entender o conceito de identidade para que possamos

compreender, ao longo da pesquisa, porque essa representação, em específico, é endereçada

ao público e de que forma isso acontece. A forma de endereçamento é como determinada

mídia se comunica com seu espectador. Ellsworth (apud. Cruz e Guareschi, 2007) afirma que

“os interesses comerciais dos produtores de um filme têm a ver com o desejo de controlar,

como e a partir de onde o espectador ou a espectadora lê o filme”. É a maneira como aquilo

que um filme, por exemplo, quer dizer se endereça para o telespectador, para que este

compreenda a mensagem de determinada forma – a forma como a produção deseja que este

telespectador compreenda.

No caso da paternidade, podemos dizer que um filme a representa de determinada

forma como uma normatização de uma paternidade saudável. Sendo assim, o filme se

endereça ao espectador de forma que este compreenda o que é ser pai a partir da perspectiva

compartilhada pelos produtores daquele filme. Resumindo, as formas de paternidade

presentes na sociedade – como a monoparentalidade – aparecem no filme de acordo com o

paradigma daquele momento. Em contraponto, os filmes tendem a nos trazer essa paternidade

de acordo com uma visão do ideal, representada no filme através dos personagens. Assim,

moldamos e somos moldados midiaticamente, no que Foucault chamaria de “poder

disciplinar”, conceituado como uma regulação da espécie humana, tendo como objetivo

produzir um ser humano que possa ser tratado como um corpo dócil. Esse poder teria sob

controle as vidas, as atividades, o trabalho, as infelicidades e os prazeres do indivíduo

(FOUCAULT apud. HALL, 2011, p. 42).

Gru, o supervilão

Inicialmente, Gru é trazido como um vilão, um personagem que não gosta de crianças.

Em uma das primeiras cenas, Gru caminha pela rua e encontra um menino chorando. Ele está

segurando a casca do sorvete e o sorvete está caído no chão. Gru faz uma expressão que

demonstra pena e dá um balão para o menino. O menino fica feliz e abraça o balão que é,

então, estourado por Gru.

Como um supervilão, Gru tem o plano de roubar a lua. Ele precisa do Raio

Encolhedor, para concretizar seu plano, que se encontra com outro supervilão, na Fortaleza do

Vetor. A Fortaleza é impenetrável, porém, Vetor permite que três meninas de um orfanato

entrem para que ele possa comprar os biscoitos que elas vendem. Assim, Gru enxerga uma

oportunidade de conseguir a arma de que precisa. Ele bola um plano, que envolve as três

órfãs. Sendo assim, Gru resolve adotá-las. Neste momento, as meninas não representam nada

mais que a concretização de seu plano.

Ao adotar as meninas Margô, Edith e Agnes, Gru as leva para sua casa. A casa é

escura, com animais empalhados, armaduras e as meninas parecem assustadas. Agnes pede

para Gru: “Posso segurar sua mão?”, ao que ele responde “Ah, não”.

Quando estão conhecendo a casa, Edith sai correndo e entra em uma tumba cheia de

pregos. A tumba se fecha e escorre um líquido vermelho. A reação de Gru é se preocupar

apenas com o seu objetivo: “É, vou ter só duas para usar no plano”. Gru, depois de abrir a

tumba e descobrir que nada aconteceu com Edith, as leva até a cozinha e diz: “É, como podem

ver, providenciei tudo que uma criança precisa”. Há um pote de água, um pote com doces e

um jornal no chão para elas fazerem suas necessidades.

É possível perceber, neste começo de filme, que Gru não se importa com as meninas,

ele não deseja proximidade – criando, inclusive, regras para não ser incomodado com a

presença delas. O comportamento de Gru difere radicalmente daquele que, socialmente,

dizemos ser o comportamento de um pai. Ele é pai das meninas - apenas no papel, por tê-las

adotado -, mas ainda não assumiu essa posição. Porém, é necessário lembrar que ele não

assumiu uma posição que é dita paterna. Guareschi e Hennig (2002) citam que, para um grupo

de pesquisadores americanos:

[...] há uma diversidade muito grande por conta das variações culturais e

étnicas e que não existe uma definição simples de paternidade de sucesso, que possa

reivindicar aceitação universal. Ao contrário, eles propõem que expectativas

paternas, práticas realizadas e seus efeitos sobre as crianças precisam ser vistos

dentro do contexto da família, comunidade, cultura e história.

Em uma das cenas, Gru arruma as caixas de biscoitos em um carrinho na frente da

casa e chama as meninas para irem entrega-los. Margo comunica que não poderão ir, pois elas

têm aula de balé e estão ensaiando para uma apresentação, não podendo, portanto, faltar. Gru

recusa-se a leva-las para o balé, porém, quando elas resolvem ir sozinhas a pé, ele acaba as

levando, sentando-se com as mães das colegas de balé das meninas e espera por elas durante a

aula.

Pode-se perceber, com essa cena, que Gru começa, mesmo que não perceba, a se

preocupar com as meninas. Inicialmente, ele parece irritado, pois vai demorar mais para

concluir seu plano e devolver as meninas para o orfanato – seu desejo naquele momento.

Porém, mesmo irritado, ele as acompanha ao balé.

A preocupação é o primeiro indício de que Gru está construindo sua identidade

enquanto pai, mesmo que nessa cena ele ainda não tenha se colocado em uma posição dita

paterna, apenas de responsável. O filme retrata a preocupação como sendo uma característica

paterna e isso tem conexão com a forma como construímos a paternidade social e

culturalmente. “[...] Os Estudos Culturais já mostraram - que as posições que cada sujeito

assume, com as quais se identifica, são atravessadas por ‘n’ discursos e possibilidades

presentes em um certo tempo” (GUARESCHI&HENNIG, 2002).

Quando Gru se preocupa e assume essa posição, de responsável, ele está sendo

permeado pela visão de que preocupação é uma forma de exercer a paternidade. Isso é trazido

pelo filme e reflete na forma como pensamos paternidade, ao mesmo tempo em que surge no

filme, pois é uma das formas como construímos a paternidade socialmente. É importante

destacar isso porque apesar de sermos permeados pela cultura em todas as nossas interações

com o mundo, “encara-se as pessoas não como passivamente suspensas, mas, antes, jogando

com ‘teias de significados’ construídas no entrecruzamento de diferentes influências”

(FONSECA, 2004).

Gru, o pai em construção

A próxima cena que analisaremos, consideramos que seja crucial para a construção da

identidade paterna de Gru. A partir desse momento, ele começa a se comportar como o pai –

socialmente construído - de Margo, Edith e Agnes. Gru está voltando para casa com as

meninas depois de entregar biscoitos na Fortaleza do Vetor – e roubar o Raio Encolhedor –

quando Agnes pede para irem ao Parque da Superdiversão. Ele imagina coloca-las na

Montanha Russa e ir embora, livrando-se assim das meninas. Entretanto, para andar na

Montanha Russa, as crianças precisam estar acompanhadas de um adulto. Assim, Gru acaba

ficando e indo, inclusive, em outros brinquedos com as meninas. Em um desses brinquedos,

ele consegue o unicórnio que Agnes tanto queria. Vendo a menina feliz, Gru, que até então

estava mal humorado, sorri. Depois disso, eles voltam para casa, Gru carrega brinquedos, um

algodão doce e tem o rosto pintado como um coelho, rindo com as meninas.

Neste momento, Gru passa a assumir uma posição paterna. Ele constrói sua própria

identidade enquanto pai, ao mesmo tempo em que assume uma posição já existente: a

paternidade que já está construída. Neste sentido, partimos do pressuposto de que, em uma

sociedade pós-moderna, vivenciamos um período de transformação nas identidades, onde não

mais estas são vistas como intrínsecas ao indivíduo. Nossas identidades são construídas de

diversas formas e também modificadas e reconstruídas ao longo da vida.

“As sociedades da modernidade tardia [...] são caracterizadas pela

‘diferença’: elas são atravessadas por diferentes divisões e

antagonismo sociais que produzem uma variedade de diferente

‘posições de sujeito’ – isto é, identidades – para os indivíduos”

(HALL, 2011, p. 17).

Ou seja, não pode-se dizer que temos uma única identidade e que esta é apenas nossa.

Temos uma pluralidade de identidades que nos constituem e que se complementam e, como

sujeitos sociais, podemos compartilhar dessas identidades com outros sujeitos de nossa

cultura. É o caso da identidade paterna: culturalmente construímos o que é ser pai e, quando

os sujeitos se tornam pais, esperamos que assumam suas posições de acordo com essa visão

que está dada. Sabemos que esses sujeitos, além de serem pais, são também homens,

profissionais e que suas formas de ser pai serão também permeadas por suas outras

identidades, ou seja, sua forma de ser. Com isso, queremos dizer que as posições de sujeito

que assumimos durante nossas vidas não são imutáveis e impermeáveis, ao contrário, estão

em constante construção.

O que é tornar-se pai? Durante nossa pesquisa, discutimos diversas vezes que a

posição paterna é algo construído social e culturalmente. Porém, é importante ressaltar que a

identidade paterna não é algo pronto, esperando para ser assumida. Ela é, também, construída

pelo indivíduo que se identifica enquanto pai. Woodward (2012, p. 14) diz que “as

identidades não são unificadas. Pode haver contradições no seu interior que têm que ser

negociadas”, isto é, cada indivíduo vai ter sua própria identidade paterna, de acordo com sua

forma de ser, ainda que esta identidade vá ser permeada – e muito – pelas construções sociais

que o cercam. “Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é

interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou

perdida” (HALL, 2011, p. 22). Por isso, inicialmente, Gru assume uma posição paterna, sem

identificar-se enquanto pai. O processo de identificação de Gru enquanto pai desenvolve-se ao

longo do filme.

As cenas a seguir demonstram um pouco de como Gru foi mudando seu

comportamento, assumindo uma forma de ser que identificamos, socialmente, enquanto

paterna. Na primeira cena, Gru está usando um avental xadrez enquanto leva roupas para a

máquina de lavar, sendo seguido pelas meninas. Em outra cena, Gru está cozinhando

panquecas para o café da manhã. A última cena que citaremos, a seguir, é de extrema

importância para o personagem. É quando ele percebe que está assumindo esse papel.

As meninas estão de pijama correndo pelo quarto quando Gru entra para verificar se

elas já escovaram os dentes. Margo, Edith e Agnes pedem que ele conte uma história para elas

dormirem. A história é um livro de fantoches sobre três gatinhos. Agnes ensina Gru como

contar a história utilizando-os. Ao terminar de ler a história, Gru deixa o quarto abalado com

o final desta - a mãe Gata diz aos gatinhos que ama muito eles - e depara-se com o desenho

que as meninas fizeram se integrando a árvore genealógica da família de Gru que ele mantém

numa parede.

Neste momento, Gru encontra-se em conflito consigo mesmo, pois percebe estar se

apegando as meninas. Ser pai entra em contradição com a imagem que Gru tem de si mesmo

naquele determinado momento, enquanto um supervilão, que não gosta de crianças – como

explicitado na primeira cena do filme, a qual discutimos anteriormente. Gru está começando a

se conscientizar de que está mudando, que está se apegando as meninas – nutrindo

sentimentos antes desconhecidos por ele -, está começando a se identificar enquanto um

possível pai. Para o personagem, a mudança é difícil de ser processada, pois “[...] embora o

sujeito esteja sempre partido ou divido, ele vivencia sua própria identidade como se ela

estivesse reunida e ‘resolvida’, ou unificada” (HALL, 2011, p. 38).

Gru, o pai de Margo, Edith e Agnes

As cenas a seguir foram cenas cruciais para o entendimento de que Gru desenvolveu

apego com Margo, Edith e Agnes, sendo que o contrário também aconteceu. São momentos

onde Gru já aceita a si mesmo enquanto vivenciando uma forma de paternidade e explicitam a

maneira como ele se sente a respeito disso e assume sua posição enquanto pai.

Gru foi até a lua e conseguiu roubá-la. Quando ainda está no espaço cai de seu bolso o

convite para a apresentação de balé das meninas. Até este momento Gru encontrava-se muito

feliz pelo seu feito, porém agora aparenta estar chateado. Ele olha da lua em suas mãos para o

bilhete, como se estivesse decidindo o que é mais importante. Depois, sai a toda velocidade

para a Terra, tentando chegar à apresentação. Mas ele não chega a tempo. Ele encontra, em

uma das cadeiras, um bilhete identificando o lugar como sendo do “Pai da Margo, Edith e

Agnes”. No verso tem um bilhete de Vetor, pedindo que ele levasse a lua. Gru sai correndo

para resgatar as meninas. E apesar de todo o esforço que ele teve para pegar a lua, ele entrega

a lua para Vetor para ter as meninas de volta.

No começo do filme, Gru não conseguia passar pelas proteções da Fortaleza do Vetor.

Porém, quando Vetor está com as meninas Gru consegue ultrapassar todas, sem dificuldade.

Quando ele consegue entrar na Fortaleza, Vetor já está fugindo em sua nave com as meninas.

Gru vai atrás dele em sua própria nave. Para resgatar as meninas, elas precisam pular de uma

nave para a outra. Edith: Pular? Você ficou maluco? Margo: Você nos devolveu! Gru: Eu sei,

eu sei. E foi o pior erro que eu cometi na minha vida. Agnes e Edith pulam, faltando apenas

Margo. Gru: Margo, eu vou pegar você e não vou soltar nunca mais!

Em uma das cenas finais, Gru está levando as meninas para dormir e Edith pede para

ele ler uma história. Dessa vez, Gru lê uma história que ele mesmo escreveu, sobre um

unicórnio e três gatinhas:

“Um grande unicórnio

Livre e forte

Era feliz

Tinha muita sorte

Três gatinhas apareceram então

E transformaram sua vida numa grande confusão

Fizeram ele rir

Fizeram ele chorar

Ele não devia ter deixado elas

E agora ele sabe que não pode mais se separar

Dessas gatinhas que ele escolheu amar”

Antes de sair do quarto, Gru dá um beijinho em cada uma das meninas – algo que ele

se recusava a fazer antes. Quando ele vai beijar Margo, ela pula para abraçá-lo e diz: Eu te

amo. Ao que ele responde: Eu também te amo.

Nas duas cenas finais que apresentamos aqui, é possível verificar o desenvolvimento

do apego de Gru com as meninas. Isso se exemplifica na forma como ele defende e protege

Margo, Edith e Agnes de Vetor.

“O comportamento complementar ao comportamento de apego e que exerce função

complementar, o de proteger o indivíduo apegado, é o comportamento de cuidar. É

geralmente manifestado por um dos pais, ou outro adulto, com relação à criança ou

adolescente” (BOWLBY, 1985, p. 40).

É possível perceber, também, que Gru está apegado às meninas, pois ele chega a

devolvê-las para o orfanato, contra sua vontade. Na cena em que ele resgata Margo, Edith e

Agnes de Vetor, ele diz para Margo que este foi o pior erro de sua vida e que nunca mais vai

soltá-las. Caracteriza-se como apego, pois “o comportamento de apego é interpretado como

qualquer forma de comportamento que resulta na consecução ou conservação, por uma

pessoa, da proximidade de alguma outra diferenciada e preferida” (BOWLBY, 1985, p. 38).

Também é importante salientar que o apego se dá igualmente pela parte das meninas, como

podemos perceber quando Margo confia em Gru e pula em sua direção, na cena do resgate das

meninas:

Apego é um tipo de vínculo no qual o senso de segurança de alguém está

estreitamente ligado à figura de apego. No relacionamento com a figura de apego, a

segurança e o conforto experimentados na sua presença permitem que seja usado

como uma “base segura”, a partir da qual poderá se explorar o resto do mundo.

(BOWLBY apud. RAMIRES$SCHNEIDER, 2010).

É interessante perceber que, para confirmar que Gru agora é realmente um pai, o filme

demonstra o apego que surgiu entre o personagem e as meninas. Isto é, o filme afirma que

para que se estabeleça uma paternidade, é necessário que haja apego entre pais e filhos.

Bowlby (apud. RAMIRES&SCHNEIDER, 2010) diz que “[...] apego é um tipo de vínculo

social baseado no relacionamento complementar entre pais e filhos”. A própria Teoria do

Apego, de John Bowlby, é escrita trazendo o apego como parte da interação entre pais e

filhos, o que nos leva a pensar o quanto a mídia corrobora aquilo que traz ao público com

discursos psicológicos, reforçando as construções sociais acerca da(s) paternidade(s). Assim,

torna-se possível compreender o quanto a mídia é ativa em construir modos de ser e estar no

mundo.

Gru, de supervilão a herói

Após roubar a lua, Gru resgata as meninas que foram sequestradas por Vetor. A lua

expande-se ao seu tamanho original e volta para o seu local. Mais tarde, é noticiado o roubo e

a volta da lua. No jornal o apresentador pergunta: Quem é esse herói?, referindo-se ao fato de

a lua ter sido devolvida.

Em nossa sociedade, visualizamos a família enquanto um local de extrema

importância. Lane (1994, p. 38), diz que a família é “o grupo necessário para garantir a

sobrevivência do indivíduo e por isto mesmo tende a ser vista como ‘natural’ e ‘universal’ na

sua função”. Em psicologia, estamos acostumados com o discurso da importância da família

para o desenvolvimento sadio da criança e a formação de valores. Pratta e Santos (2007),

citando Osório (1996), dizem que:

“A família possui um papel primordial no amadurecimento e desenvolvimento

biopsicossocial dos indivíduos, apresentando algumas funções primordiais, as quais

podem ser agrupadas em três categorias que estão intimamente relacionadas:

funções biológicas (sobrevivência do indivíduo), psicológicas e sociais”.

No momento que Gru assume sua posição enquanto pai, ele muda também a forma

como interage com o mundo a sua volta. O personagem deixa de ser um supervilão e é até

mesmo visto como um herói. Em nossa sociedade – e isso aparece bastante em termos

midiáticos -, temos a visão do pai enquanto uma pessoa boa, que assiste financeiramente e

ensina valores morais para seus filhos (MEDRADO, 1999). Essa é uma visão que vem se

modificando aos poucos, dando espaço para pais que realmente fazem parte da vida de seus

filhos, de forma integral. Gru é representado dessa forma – ele lê para as meninas, leva-as

para o balé, cozinha, entre outras atividades.

O pai geralmente é representado na mídia como a figura de um herói, tanto para seus

filhos, como uma pessoa boa em suas outras interações com o mundo. Quando não é dessa

forma, ele é apresentado como uma pessoa que precisa fazer algo ruim por causa de seus

filhos, fazendo com que isso seja, assim, justificável e ainda possa ser visto como alguém

bom. A família enquanto um local sagrado é uma construção social, que deriva da

importância que nossa sociedade dá para a família em diversos aspectos. “Como as

identidades são construídas culturalmente, a mídia desponta, em nosso tempo, como um lugar

privilegiado de circulação de discursos, tornando-se fonte de referências identitárias”

(GUARESCHI&HENNIGEN, 2002), portanto, a visão do pai herói, de que, quando se

assume uma identidade paterna, se assume, consequentemente, uma bondade, é, também, uma

construção social que permeia a forma como pensamos e fazemos paternidade.

Considerações finais

Esta pesquisa referenciou-se à construção da identidade paterna do personagem Gru,

de Meu Malvado Favorito. Através da análise do filme, destacamos de que forma o

personagem construiu sua maneira de ser pai, levando em consideração o quanto ele foi

interpelado pelas construções sociais que o cercam. É importante salientar que os mecanismos

dos quais o filme se utiliza para que o público entenda que Gru comporta-se como um pai são

todos construções sociais do que é ser pai. Enfatizamos, também, o desenvolvimento do

apego em relação à Margo, Edith e Agnes e delas em relação ao personagem de Gru. É

importante ressaltar este ponto, pois a identidade socialmente construída de um pai considera

o apego como parte fundamental da paternidade.

Consideramos de grande importância discutir o quanto a mudança de Gru reflete

também na forma como aqueles que o cercam o veem – ele deixa de ser um supervilão para

ser um pai e, depois disso, é visto como um herói. A repentina bondade de Gru aparece

enquanto parte dessa construção social não só de uma identidade paterna - para ser pai, deve-

se ser bom. A figura do pai herói é muito presente na mídia.

Concluindo, o filme traz a forma socialmente construída do que é ser pai e isso

permeia as formas como a paternidade aparece em nossa sociedade. Entretanto, o contrário

também acontece – nossa visão de paternidade aparece no filme, ou seja, há uma

complementaridade que é exatamente o que forma a rede de significações que chamamos de

cultura.

REFERÊNCIAS:

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