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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Danielle Girotti Callas A constituição da profissionalidade e os saberes docentes na educação profissional de nível técnico das áreas de Saúde e Bem-estar MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO SÃO PAULO 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Danielle Girotti Callas

A constituição da profissionalidade e os saberes docentes na

educação profissional de nível técnico das áreas de Saúde e

Bem-estar

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

SÃO PAULO

2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Danielle Girotti Callas

A constituição da profissionalidade e os saberes docentes na

educação profissional de nível técnico das áreas de Saúde e

Bem-estar

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação: Psicologia da Educação, sob orientação da Profª. Drª. Vera Maria Nigro de Souza Placco.

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO

SÃO PAULO

2015

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Banca Examinadora

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Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a

reprodução total ou parcial desta dissertação por processos de

fotocopiadoras ou eletrônicos.

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AGRADECIMENTOS

Meus sinceros agradecimentos a todos que me apoiaram e que contribuíram

diretamente para a realização desta pesquisa:

Aos meus pais, Jorge Callas e Nilde Girotti Callas, e à minha madrinha, Márcia

Girotti, pelo apoio incondicional.

À querida e admirada mestra, Profª. Drª. Vera Maria Nigro de Souza Placco, sem a

qual não seria possível a realização deste trabalho.

À amiga e revisora Luciana Andréa Afonso Sigalla, pelos inúmeros ensinamentos,

pelo carinho e pela amizade, constantes nesta trajetória.

À CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pelo

apoio financeiro, sem o qual minha continuidade de estudos não seria possível.

À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, pelo acolhimento há 20

anos.

Ao SENAC São Paulo, que me acolhe desde abril 2011 e que estimula a produção

acadêmica e o desenvolvimento permanente de seus funcionários com a Bolsa

Estímulo Educacional.

À Superintendente do SENAC São Paulo, Lucila Mara Sbrana Sciotti, pelas ricas

contribuições e pelos ensinamentos sobre a instituição.

À gerente do SENAC Jundiaí, Claudia Lieko Itano Hiratsuka, pelo estímulo constante

e pela compreensão nos momentos intensos de estudo.

Aos demais gerentes que também me apoiaram, Rita de Cassia da Silva Coimbra,

Darlan Oliveira Rocha, Heloisa Gomes Ribeiro Vendramini e Karina Marcon Dalprat

Pinto, meu agradecimento.

À querida equipe de docentes das áreas de Saúde e Bem-estar do SENAC Jundiaí,

que, além de participarem voluntariamente como sujeitos de pesquisa deste estudo,

sempre apoiaram minha escolha, acompanharam de perto cada passo e me deram

tranquilidade e segurança para poder dedicar essas horas de estudo ao mestrado.

À querida e admirada Profª. Drª. Nadir Cervellini-Haguiara, por seus ensinamentos

psicodramáticos e de vida.

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À sempre amiga Patricia Harumi Shiroma, funcionária da PUC-SP, que acompanha

minha trajetória na instituição há 20 anos.

Ao sempre amigo Fernando Celso Mariani, pelo apoio constante e pelas atenciosas

traduções de diversos trabalhos.

À sempre amiga Profª. Drª. Danielle Menosi Gualandro, por me apresentar o “saber

cuidar” médico.

À sempre amiga Tânia Sabatini Negrão, que me acolhe na cidade de Jundiaí.

Aos amigos e mestres do grupo de orientação coletiva, Rafael Conde, Rodnei

Pereira, Gabriel Catellani, Gabriela Argolo, Katia Franco, Luciane Miranda, Carla

Geovana Castro e Camila Miranda, pelas inúmeras contribuições e pelo constante

apoio nos momentos desafiadores.

Ao Edson Aguiar, secretário do Programa de Pós-Graduação em Educação:

Psicologia da Educação, pelo suporte sempre atencioso e gentil.

Ao Fernando Cesar de Souza, da gerência de operações do SENAC São Paulo,

pelo compartilhamento de tantas ricas produções.

À Janis Leonicia Kunrath, supervisora educacional do SENAC Jundiaí, por todo

incentivo.

A meus pares, técnicos de desenvolvimento profissional, do SENAC Jundiaí,

Marlene André, Jonatas Pedroni e Robert dos Anjos, pela disponibilidade em ajudar.

À Ana Maria Galvão de Carvalho Pianucci, responsável pela área de Enfermagem,

na gerência de desenvolvimento do SENAC São Paulo, que logo que soube do meu

projeto de mestrado presenteou-me com seu livro.

À Marisa Durante, da supervisão educacional do SENAC São Paulo, pelo ombro

amigo.

À Alice Cristina Goes de Castro Sanches, da gerência de pessoal do SENAC São

Paulo, por todo suporte dado.

Aos funcionários do guarda-volumes da Biblioteca da PUC/SP: Sr. Adeildo Livino,

conhecido como Cacique, e Ana Almeida Santos, que me acompanharam

diariamente e cujo acolhimento e palavras de apoio foram muito importantes em

meus momentos de estudos.

A todas as funcionárias da Biblioteca do SENAC Jundiaí, pela presteza e atenção.

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A todos os professores que acompanharam minha trajetória educacional, pelos

inúmeros ensinamentos.

À Irmã Celina, do Colégio Regina Mundi, que me ensinou que a Educação tem que

passar primeiro por nossos corações.

A todos os alunos do SENAC Jundiaí, pela oportunidade de aprendizagem

compartilhada.

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A constituição da profissionalidade e os saberes docentes na educação

profissional de nível técnico das áreas de Saúde e Bem-estar

Danielle Girotti Callas

RESUMO

Considerando a lacuna na bibliografia existente sobre a educação profissional como campo de estudo, esta pesquisa pretende investigar a constituição da profissionalidade e os saberes docentes no eixo tecnológico Ambiente, Saúde e Segurança – áreas de Saúde e Bem-estar. Foi realizada uma pesquisa qualitativa com dez docentes, atuantes nos cursos: Técnico em Enfermagem, Técnico em Estética, Técnico em Massoterapia, Técnico em Podologia e Técnico em Segurança do Trabalho, da unidade Jundiaí do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – SENAC (São Paulo), em duas etapas distintas: primeiramente, por meio de entrevistas individuais e, posteriormente, por meio de dois encontros coletivos psicodramáticos, com a presença de seis dos dez participantes, em cada um dos encontros. O quadro teórico está fundamentado nas produções de: Placco e Souza (2006), Imbernón (2011), Tardif (2002), Freire (1983, 2002), Barato (2003, 2004), Shulman (1987) e Moreno (1975, 2008). Os dados nos possibilitam analisar os processos de socialização primária e profissional dos docentes, identificando a constituição da profissionalidade docente como o desenvolvimento do exercício docente, in loco e na relação aluno-docente, de modo processual, gradual e infindável, baseada nas experiências pessoais, escolares e profissionais dos docentes. Outro resultado significativo, na pesquisa, é a relevância da interdependência dos saberes docentes, especialmente os profissionais-experienciais, os pedagógicos, os pessoais e os do profetizar, que se imbricam no desenvolvimento da profissionalidade. Embora não se reconhecendo como profissionais docentes, as falas dos pesquisados nos permitem afirmar que há um desenvolvimento dessa profissionalidade e dos saberes docentes pedagógicos, com o compromisso e a intencionalidade explícitos com a aprendizagem dos alunos e da docência, com o exercício profissional e com o aperfeiçoamento de suas práticas pedagógicas. A percepção de possibilidade de transformação social, por meio da docência, também reforça e aprofunda a visão educacional dos pesquisados.

Palavras-chave: Educação Profissional; Ensino Técnico; Saberes Docentes;

Profissionalidade; Enfermagem; Estética; Massoterapia; Podologia; Segurança do

Trabalho.

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The construction of professionality and teaching knowledge in vocational

technical education in the fields of Health and Wellness

Danielle Girotti Callas

ABSTRACT

Considering the gap in the literature on vocational education as a field of study, this research aims to investigate the construction of professionality and teaching knowledge in the technical domain of Environment, Health and Safety - fields of Health and Wellness. A qualitative survey was conducted with 10 teachers of the following courses: Nursing Technician, Esthetics Technician, Massage Therapy Technician, Podiatry Technician, and Occupational Safety Technician from the Jundiaí unit of Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac São Paulo), in two distinct stages – first, through individual interviews and later, through two group psychodramatic encounters, with six participants per encounter. The theoretical framework is based on the works of: Placco e Souza (2006), Imbernón (2011), Tardif (2002), Freire (1983, 2002), Barato (2003, 2004), Shulman (1987), and Moreno (1975, 2008). The data allowed us to analyze the teachers’ primary and professional socialization processes and identify the construction of teaching professionality as the development of the teaching practice, both on site and in the student-teacher relation, in a gradual, never-ending process, based on the teachers’ personal, school, and professional experiences. Another significant result of the research is the relevance of the interdependence of teaching knowledge - especially professional/experiential, educational, personal, and prophetic skills, which interweave in the development of professionality. Although the respondents do not identify themselves as teaching professionals, their reports allow us to state that the educational professionality and teaching knowledge are developed with an explicit commitment and intentionality to the students’ learning and education, with professional practice and with the enhancement of their educational skills. The perception of the possibility of social change, through education, also strengthens and deepens the respondents’ educational vision.

Keywords: Vocational Education; Technical Training; Teaching Knowledge; Professionality; Nursing; Esthetics; Massage Therapy; Podiatry; Occupational Safety.

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LISTA DE TABELAS E QUADROS

TABELA 1 – Pesquisa bibliográfica pelo descritor “profissionalidade” / CAPES 57

TABELA 2 – Pesquisa bibliográfica por áreas dos cursos / CAPES 57

TABELA 3 – Pesquisa bibliográfica por títulos dos cursos / CAPES 58

TABELA 4 – Temáticas das pesquisas históricas / CAPES 59

TABELA 5 – Temáticas da pesquisa bibliográfica pelo descritor

“ensino técnico” / CAPES 60

TABELA 6 – Pesquisa bibliográfica pelo descritor

“educação profissional” / PUC/SP 61

TABELA 7 – Artigos disponíveis na BVS – Áreas 65

TABELA 8 – Sujeitos pesquisados por “tempo na docência” 69

QUADRO 1 – Caracterização dos sujeitos pesquisados 70

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LISTA DE SIGLAS

ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária

BVS Biblioteca Virtual de Saúde

CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CEU Centro Educacional Unificado

CLT Consolidação das Leis Trabalhistas

COREN Conselho Regional de Enfermagem

ESPM/SP Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo

PDE Programa de Desenvolvimento Educacional

PRONATEC Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego

PUC/SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

SciELO Scientific Eletronic Library On Line

SENAC Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial

SOPSP Sociedade de Psicodrama de São Paulo

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a

Cultura

UNESP Universidade Estadual Paulista

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13

A vida repleta de escolhas 13

O olhar para o aluno e para o docente 17

Por que estudar a educação profissional das áreas de Saúde e Bem-estar 19

Objetivo geral e objetivos específicos 29

1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 32

1.1 A constituição da profissionalidade docente in loco e o “ser-em-relação” 33

1.1.1 Sobre profissionalidade 35

1.1.2 Docente: um “ser-em-relação” 37

1.2 Saber-fazer, saber-ensinar e saber-ser 39

1.2.1 Sobre saberes docentes 39

1.2.2 Saberes docentes: o “ir além” 42

1.2.2.1 Saberes profissionais-experienciais 45

1.2.2.1.1 O saber profissional-experiencial do cuidar 46

1.2.2.2 Saberes pedagógicos 48

1.2.2.3 Saberes pessoais 50

1.2.2.4 Saber profetizar 53

1.2.2.5 Os saberes docentes e os saberes dos alunos:

caminhos que se entrelaçam 54

2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA 56

2.1 Banco de Teses da CAPES 56

2.2 Biblioteca Virtual da PUC/SP 61

2.3 Pesquisa de artigos – SciELO 63

2.4 Pesquisa de artigos – Biblioteca Virtual de Saúde 64

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 67

3.1 Sobre a instituição campo de pesquisa 67

3.2 Sobre os sujeitos participantes 68

3.3 Sobre as etapas da coleta de dados e a organização da análise 71

3.3.1 Primeira etapa: entrevistas com roteiro dirigido 71

3.3.2 Segunda etapa: momentos grupais com encontros psicodramáticos 72

3.3.3 Terceira etapa: organização dos dados coletados 73

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4 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS DA PESQUISA 75

4.1 Eixo das influências 76

4.1.1 Socialização primária: influência familiar 77

4.1.2 Socialização escolar e professores internos 81

4.1.3 Trajetória dos sujeitos pesquisados na educação profissional 87

4.1.4 Histórias de docentes e de alunos que se cruzam 90

4.1.5 Educação continuada 91

4.2 Eixo da profissionalidade 93

4.2.1 A profissionalidade em constituição: aluno ontem, docente hoje 94

4.2.2 Memórias afetivas do tempo de escola 98

4.2.3 O início da carreira docente 100

4.2.4 O processo da constituição da profissionalidade 103

4.2.5 O docente aprende com o aluno 106

4.2.6 O docente aprende na sala de aula 110

4.2.7 Profissão declarada 112

4.2.8 A responsabilidade de ser docente na educação profissional 115

4.2.9 A intencionalidade de permanência na docência 117

4.3 Eixo dos saberes docentes: o “ir além” 119

4.3.1 Saberes profissionais-experienciais 120

4.3.1.1 Saber profissional-experiencial do cuidar 124

4.3.2 Saberes pedagógicos 126

4.3.3 Saberes pessoais 130

4.4 Saber profetizar 134

4.5 Eixo das ações formativas e compartilhamento entre pares 138

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 144

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 152

APÊNDICE 157

ANEXOS 177

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INTRODUÇÃO

A vida repleta de escolhas

Venho de uma família que possui quatro educadores e destaco os 38 anos de

trabalho árduo e dedicado de minha mãe como professora de Matemática no ensino

fundamental II e no ensino médio. Ora eu me encontrava na escola, ora estava em

casa ouvindo falar sobre a escola.

Aos 18 anos, meu primeiro emprego remunerado foi como técnica no ensino

da língua inglesa, atividade extra que exerço paralelamente até hoje, de forma

menos intensa que anteriormente. Essa foi uma grata oportunidade de experiência

profissional e foi quando tive meu primeiro contato com um grupo de alunos.

Mesmo assim, minhas escolhas sucessivas não foram na área da Educação.

Tanto minha formação acadêmica como minha trajetória profissional podem ser

consideradas de um ecletismo de difícil previsibilidade, do qual me orgulho. Faria,

hoje, as mesmas escolhas feitas no passado.

Sou graduada em Relações Internacionais e é com grande orgulho e

saudosismo que digo que fui integrante da primeira turma desse curso, na Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, graduada em dezembro de 1998.

Minha trajetória profissional – primeiramente, na área dos negócios

internacionais e, posteriormente, na área educacional-cultural – me estimulou a

buscar formações complementares. Entre 2005 e 2006, concluí o curso de pós-

graduação lato sensu em “Primeira Gerência de Negócios com Ênfase em

Marketing”, na Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo –

ESPM/SP. Isso foi possível graças ao incentivo que recebi da Aliança Francesa de

São Paulo, instituição para a qual trabalhei no período de 2000 a 2006.

Ao mesmo tempo que minha carreira, na vida corporativa, me conduziu a

novos desafios mais competitivos, minha vida pessoal me conduziu a novas

experiências no contexto social. Em um determinado momento, senti que tinha duas

vidas diferentes. Em uma vida, vivia as metas, a mais-valia, a competição, a

ganância insaciável e a ilusão do “ter”; em outra, vivia o compartilhar, o criar, o

ajudar o outro, o bem e o real prazer do “ser”.

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Minha primeira experiência nesse contexto social, que considero como uma

atividade profissional não remunerada financeiramente, foi com o Grupo do Sopão

da Praça Roosevelt, em São Paulo, do qual participo desde 2004.

Foi dessa forma, vivendo simultaneamente vidas tão diferentes, em meio a

uma situação pessoal de lutos, que descobri um desejo latente em retornar a uma

atividade profissional relacionada ao “cuidar do outro”, que havia vivenciado de

forma mais próxima na Aliança Francesa, nas aulas particulares com os alunos e

com o trabalho social. Foi assim que o Psicodrama surgiu em minha vida, quando,

entre 2009 e 2013, realizei minha segunda pós-graduação lato sensu, agora nessa

área, por meio do convênio firmado entre a PUC/SP e a Sociedade de Psicodrama

de São Paulo – SOPSP/SP, nos níveis 1 e 2, demandados para se tornar possível

formadora multiplicadora.

Ao término da formação, recebi o convite para atuar, por quatro semestres

consecutivos, como assistente (nomeada “ego-auxiliar”) de duas diferentes docentes

do mesmo curso.

Minha trajetória acadêmica e profissional não foi linear, pois sempre busquei

conectar as áreas de conhecimentos pelas quais transitei, tanto que, desde 2006 até

os dias atuais, tenho a oportunidade de desenvolver trabalhos que unem, de forma

surpreendente, minhas três principais áreas de formação: Relações Internacionais,

Marketing e Psicodrama.

Um exemplo disso são os serviços que presto como consultora, a convite da

Delegação Geral da Aliança Francesa de Paris e de Delegados Regionais, em cinco

países – Peru, Portugal, Equador, Bolívia e Argentina –, organizando diferentes

programas formativos para equipes de diretores e coordenadores pedagógicos,

professores, responsáveis de Recursos Humanos, coordenadores administrativos,

financeiros e gestores de projetos socioculturais. Diante desse desafio, tanto minha

formação de base multidisciplinar em Relações Internacionais como o Psicodrama

enriqueceram minha bagagem com metodologias, recursos e ferramentas que me

acompanharam ao longo de todas as viagens.

Hoje, sinto felicidade em afirmar que consegui unir minhas duas vidas,

encontrando um trabalho profissional com foco no desenvolvimento humano.

Desde 2011, ano de transformação e conquista profissional, atuo como

coordenadora dos cursos técnicos profissionalizantes do Serviço Nacional de

Aprendizagem Comercial de São Paulo – SENAC/SP, na unidade Jundiaí, que

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propõe cursos técnicos, no programa de aprendizagem, na educação corporativa, na

graduação e na pós-graduação lato sensu.

Nessa função, tenho como principal atribuição acompanhar toda a gestão dos

cursos de habilitação técnica de nível médio, especializações técnicas e cursos

livres das áreas de Saúde e Bem-estar, o que envolve aspectos operacionais,

burocráticos, políticos, institucionais e, principalmente, educacionais, com o

acompanhamento contínuo e a formação de todo o corpo docente, além de toda a

relação e a interface com o aluno. Diretamente, respondo por uma equipe de

docentes que totaliza aproximadamente 40 profissionais, de diferentes formações e

atuações profissionais, e por aproximadamente 600 alunos em formação nas

categorias acima mencionadas.

Mesmo não tendo o cargo de “coordenadora pedagógica”, nem a formação

para isso, sinto-me provocada pela definição de Placco e Souza (2006, p. 76), que

nos trazem a reflexão sobre a figura do coordenador pedagógico:

O coordenador pedagógico pode ser, para o professor, um facilitador, um verdadeiro formador em serviço, alguém com quem ele possa trocar experiências, que o ajude no exame de diferentes caminhos, que o escute, de forma a permitir que ele se veja e se reveja.

Essa definição da missão do coordenador pedagógico descreve o que

entendo como minha função na coordenação técnica. A postura de toda a equipe da

instituição pode estimular ou não o desenvolvimento dos saberes docentes e essa

atitude, acima descrita, deveria ser assumida por todos os atores da vida escolar.

É exatamente nesse contexto que me encontro novamente nos corredores da

PUC/SP, agora como mestranda do Programa de Estudos Pós-Graduados em

Educação: Psicologia da Educação, novamente, graças ao incentivo e ao apoio que

recebo da instituição para a qual trabalho, campo de estudo desta pesquisa.

É preciso esclarecer que as características mínimas requisitadas para o cargo

que ocupo não é necessariamente a formação na área da Educação ou equivalente,

e sim a formação em nível superior, em área relacionada a Gestão de Negócios

(curso de pós-graduação lato sensu constitui critério desejável).

Os últimos quatro anos e meio de intensa experiência têm me mostrado que o

olhar pedagógico, que pode certamente ser beneficiado por uma formação na área

de Educação, é fundamental para o desempenho de minha função. Entendo como

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uma estratégia para meu trabalho minha entrada em sala de aula, colocando-me

como par do docente, no contexto do possível. Trata-se de um momento único para

conhecimento do grupo e de suas expectativas, além de ser suporte para todo o

acompanhamento educacional. Entendo que é assim que podemos alinhar as

estratégias com a equipe de trabalho: alunos, docentes e coordenação, todos no

mesmo “palco”. Para mim, não é possível coordenar um grupo permanecendo

apenas dentro da sala da coordenação.

A própria instituição já viveu, no passado (e algumas unidades ainda vivem), a

angustiante dialética: “Somos uma escola ou uma empresa? Devemos tratar o

indivíduo como um cliente ou como um aluno?”.

Desde já, esclareço ao leitor que, diante de mim, sempre haverá um aluno na

escola para a qual trabalho hoje. Assim como, diante de mim, sempre existirá um

docente, um professor, independentemente da nomenclatura institucional de cargos

e da formação acadêmica primeira desse indivíduo. Em Cardoso (2012, p. 28),

encontrei a reflexão da pesquisadora, com a qual me identifiquei: “[...] esses

profissionais, ao contrário daqueles que se prepararam em cursos de licenciatura, se

iniciam na condição de professores experimentando e vivenciando situações de

trabalho, a partir das quais constroem sua carreira”.

Mas também posso fundamentar minha convicção com base na própria

Proposta Pedagógica da instituição campo de pesquisa (2003, p. 26-27), que, ao

descrever o entendimento sobre o processo ensino-aprendizagem1, elenca os

seguintes desafios:

[...] O primeiro desafio no desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem é a constituição do grupo de alunos [...]. A constituição do grupo de docentes é atividade simultânea à formação do grupo de aprendizagem. A garantia da qualidade se fará por um lado, na constituição adequada do grupo de alunos, na seleção e desenvolvimento do corpo docente, no planejamento preciso das atividades e na disponibilidade e adequação dos ambientes, dos equipamentos e dos recursos didáticos. (grifos nossos)

1 Uso intencional do hífen, pois entendo que não há ensino se não houver aprendizagem, assim como não há

aprendizagem se não houver ensino.

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O olhar para o aluno e para o docente

Sabemos que, na contemporaneidade, a Educação, muitas vezes, passou a

adotar o conceito de cliente para reorientar seu foco no relacionamento com o

aluno. No entanto, acredito que as relações devam ser humanizadas e o processo

de ensino-aprendizagem (assim como consta na Proposta Pedagógica da instituição

campo de pesquisa) não pode ser visto como uma relação comercial capitalizada.

O processo de ensino-aprendizagem ultrapassa os muros da escola. Não é

tangível em sua totalidade e não envolve barganha ou simples escambo. A “compra”

de um curso na instituição para a qual trabalho não tem garantia de sucesso na

“entrega do serviço”, uma vez que o aluno pode ou não atingir seu objetivo final de

formação com êxito. Não é possível uma simples troca de mercadoria, e os serviços

são extremamente heterogêneos, no que tange à “entrega” em sala de aula. Além

do mais, o resultado final não depende apenas da competência da “empresa”, pois

esse ele é uma construção coletiva.

Novamente, podemos ilustrar tal contexto com a Proposta Pedagógica da

instituição campo de pesquisa (2003, p. 7):

[...] Entre as principais transformações em curso, está o deslocamento da ênfase no ensino para a ênfase na aprendizagem. A educação passa a ser compreendida como um processo em que o aluno está envolvido ativamente e, no qual, as diferenças devem ser consideradas e respeitadas.

A instituição amplia sua compreensão sobre Educação ao afirmar, na

Proposta Pedagógica (2003, p. 7), que:

[...] Educar é uma ação intencional e política. Possibilita ao indivíduo o desenvolvimento de competências, fundamentado em conhecimentos científicos e tecnológicos, aprendendo a conhecer, viver, conviver, agir e transformar sua vida e sua prática social, e a participar de sua comunidade. Uma educação participativa e de qualidade deverá ser capaz de gerar ferramentas para que as pessoas possam: ampliar a visão crítica de mundo, participar da vida pública, defender seus direitos e ampliá-los, inserir-se e permanecer no mundo do trabalho, com desempenho de qualidade e com empreendedorismo e assumir responsabilidade social, com desempenho ético, de preservação do meio ambiente e de atenção à saúde individual e coletiva. (grifo nosso)

Com tal entendimento, podemos refletir sobre a harmonização entre o “olhar

para o aluno” e o “olhar para o cliente”. Temos, em algumas circunstâncias, um

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cliente diante de nós, quando consideramos o indivíduo no contexto da contratação

de um serviço educacional. No entanto, por detrás desse cliente, está o aluno, com

seu projeto de vida profissional, em busca de uma transformação social. Aluno e

cliente são elementos de uma mesma circunstância. Temos, assim, uma ampliação

do olhar sobre esse indivíduo, quando afirmamos a vocação política da Educação.

Entre o final da década de 1980 e o início da década de 1990, percebemos as

influências do neoliberalismo econômico sobre a esfera da Educação, que podem ter

influenciado a dicotomia “alunos-clientes”. Em 1996, contudo, o relatório da

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura –

UNESCO, que ficou comumente conhecido como “Relatório Jacques Delors”, faz

recomendações claras e assertivas sobre a necessidade de se ultrapassarem os

conhecimentos técnico-científicos e se alcançar o desenvolvimento do indivíduo

como cidadão autônomo.

A instituição campo de pesquisa segue a orientação dos quatro pilares

fundamentais da Educação propostos nesse relatório (DELORS, 2010):

a) Aprender a conhecer (ou aprender a aprender): para o indivíduo se

desenvolver com as oportunidades oferecidas pela Educação ao longo de sua

vida, desde sua cultura de base. É necessário o estímulo constante, advindo

de muitas influências, para que ele descubra que pode viver aprendendo;

b) Aprender a fazer: abrangendo tanto o desenvolvimento de competências e

habilidades específicas para determinado trabalho, como também o

desenvolvimento de atitudes;

c) Aprender a conviver: por essência, a Educação deve ser vista como um

projeto pluralista, que parte do “nós” e vai para os “outros no mundo”, afinal,

também é no coletivo que vivemos;

d) Aprender a ser: é a constituição do indivíduo como ser pensante, cidadão e

responsável por suas ações. O aprender a ser, no âmbito da educação

profissional, ganha destaque à medida que percebemos o avançar da

trajetória do aluno, que está em uma condição para ser um profissional

qualificado.

É nesse mesmo contexto que a missão do docente é ampliada. Sem negar o

vínculo administrativo empregatício e as consequentes atribuições, o docente é mais

do que um prestador de serviço: é aquele que ensina a aprender, a fazer, a conviver

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e a ser. Ele é exemplo no aprender por essência. É figura mediadora modular e

modulante. Modular, porque é uma referência ao assumir seu posto condutor na sala

de aula, e modulante, porque levantamos a hipótese de que a constituição de sua

profissionalidade, que tratamos nesta pesquisa, se dá, em grande parte, na relação

com o aluno e com seu fazer no ambiente de aprendizagem, dentro e fora dos

muros da instituição.

É importante considerar, neste momento, que a instituição campo de pesquisa

entende que a educação profissional técnica de nível médio tem por bases

essenciais os princípios de:

a) Inclusão social e respeito à diversidade, desde o processo educacional até a

organização dos espaços físicos de acolhimento, contrapondo-se a uma

exclusão social em que vivemos, a partir da qual poucos cidadãos têm acesso

à Educação e à qualificação profissional;

b) Conhecimento aplicado e autonomia profissional necessária diante do

dinamismo do mundo do trabalho e das condições econômicas mundiais;

c) Desenvolvimento sustentável do País;

d) Aprimoramento constante das pessoas e de suas condições de trabalho.

Por que estudar a educação profissional das áreas da Saúde e Bem-estar

Poderia propor um resgate histórico-social completo sobre a trajetória da

educação profissional no Brasil e no mundo, no entanto, como estudos anteriores já

cumpriram essa tarefa histórica com competência (CORDÃO, 2005; BARATO, 2003,

2004), neste momento, pretendo enfatizar apenas, e brevemente, pontos

importantes dessa trajetória que justificam o contexto desta pesquisa.

A história da educação profissional entrelaça-se à história das relações

econômicas produtivas e da consequente luta de classes sociais. Dessa forma,

socialmente, os primeiros cursos profissionalizantes eram vistos como formações de

conteúdo insípido, de ordem mecanicista, destinados, portanto, às camadas

populares, que não teriam condições de chegar às portas das universidades, até

então destinadas declaradamente às elites. Encontrei explicitado em Horta e

Carvalho (1992 apud ATCHOARENA, 2001, p. 33) que: “A formação profissional

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pertence à esfera de interesse dos assalariados”. Segundo Cordão (2005), essa

visão prevaleceu na sociedade brasileira até meados da década de 1980, de forma

preconceituosa, como herança do Brasil Colônia e dos três séculos de um Brasil

escravagista.

Preconceito ou não, desigualdade social ou não, questão semelhante nos foi

apontada por Rose (2007) que, ao resgatar o histórico da educação profissional nos

Estados Unidos, traz a preocupação de um grupo de pesquisadores do National

Center for Research in Vocational Education sobre a ausência de desenvolvimento

intelectual dos alunos da educação profissional, em uma sociedade que recebeu

todo um movimento político em prol desse segmento de formação, já com uma

legislação específica em 1917. Pergunto-me: efetivamente, será que havia ausência

de produção intelectual nas atividades desempenhadas por esses estudantes

americanos, ou não seria isso uma nova epistemologia do saber, como veremos

adiante em Barato (2003)?

A situação de desvalorização da educação profissional apenas foi alterada no

início do século XX, quando o ensino profissional deixou de estar focado nas casas

de assistência social e de proteção aos órfãos e menores abandonados e passou a

ser gerido pelo Ministério de Agricultura, Indústria e Comércio (CORDÃO, 2005). A

partir daí, a política educacional passou a olhar para os chamados setores

produtivos e, nesse momento, foram incentivadas as criações das escolas agrícolas,

industriais e comerciais. Somente em 1930, a educação profissional passou para o

âmbito de decisão dos Ministérios da Educação e da Saúde Pública.

Passamos por várias transformações sociais e econômicas em nosso país,

que culminaram em consequentes mudanças nos sistemas de ensino. Fato é que

uma preocupação no âmbito internacional sempre foi quanto à integração entre a

escola e o mundo do trabalho. Ou seja, foi necessário pensar em um ensino

fundamental II que fosse realmente inclusivo, o que culminou em uma reforma

inevitável, que aconteceu no Brasil em 1990.

Mesmo com essas transformações, um aspecto que ainda merece reflexão e

estudos na educação profissional é o pensamento hegemônico de que a teoria deve

preparar indivíduo para a prática. Barato (2003, p. 6), defende que “[...] a técnica é

um saber com status epistemológico próprio” e, ainda na atualidade, algumas “[...]

profissões que exigem muito uso das mãos e são exercidas em ambientes com

certas restrições físicas são vistas como fazeres desprovidos de inteligência”.

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Freire (2002, p. 24) também faz referência a esse pensamento hegemônico,

ao afirmar que: “A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação

Teoria/Prática2, sem a qual a teoria pode ir virando blábláblá e a prática, ativismo”. E

complementa com exemplos também de profissões que demandam destreza, ao

mesmo tempo que demandam saberes, como é o caso do cozinheiro, que, além da

destreza, precisa saber como se maneja um fogão.

Balzar (2002 apud ROSE, 2007, p. 280), jornalista americano do Los Angeles

Times, incita ainda mais nossa reflexão ao questionar: “Não deveríamos abrir

espaços em nossas escolas para expandir a experiência dos estudantes [...], para

reconciliar suas mãos com suas mentes?”.

Gardner (1983 apud ROSE, 2007, p. 319) destaca “[...] uma ligação íntima

entre o uso do corpo e o emprego de outros poderes cognitivos”, e Wilson (1998

apud ROSE, 2007, p. 319) nos ajuda a concluir que: “O cérebro não vive dentro da

cabeça, embora seja seu habitat formal. Ele procura o corpo e, com o corpo, procura

o mundo. [...] O cérebro está na mão e a mão está no cérebro”.

Barato (2003, p. 17) propõe que:

[...] o par teoria & prática é uma fórmula insuficiente e inadequada para explicar a dinâmica do saber [...]. 1. Teoria e prática são categorias inadequadas para explicar a natureza do saber humano. 2. Para melhor entender a aprendizagem humana, é preciso contar com uma taxonomia do conhecimento que não reduza os conteúdos do saber àquilo que normalmente é chamado de “teoria”. 3. Saber fazer ou, melhor ainda, fazer-saber, é uma dimensão epistêmica com status próprio e não se funda numa suposta teoria. 4. As dinâmicas do fazer-saber mostram um estruturar de conhecimentos cuja natureza requer, em termos de aprendizagem, enfoques ou estratégias específicas.

Com isso, encontramos mais razões para estudar a educação profissional,

afinal: que “fazer-saber” é esse que encontramos nos chamados cursos técnicos? O

que encontramos na educação profissional que pode unir, finalmente, mão e

cérebro? De qual epistemologia tratamos?

2 Maiúsculas do autor.

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Podemos fazer um paralelo com um dado real experiencial. Percebo um

movimento, de certa forma inverso, em que os universitários graduados recorrem à

formação profissional complementar como forma de conquistar o almejado emprego,

ainda não conquistado com seu diploma de nível superior. Com Barato (2003),

levantamos a hipótese de que esse graduado está em busca do “fazer-saber”

proporcionado na formação técnica, que é ausente no teoricismo acadêmico do

ensino superior. O que o técnico em Enfermagem aprende no fazer que o graduado

em Enfermagem não aprende na faculdade?

Indubitavelmente, trata-se de aspectos que inspiram a reflexão acadêmica

sobre a educação profissional e nos trazem a relevância social que existe no pensar

sobre o fazer diferente na Educação.

Avançando sobre a especificidade desta pesquisa, são aspectos relevantes

das profissões e ocupações das áreas de Saúde e Bem-estar no Brasil:

a) Princípio da autonomia profissional, de maneira destacável, com possibilidade

de absorção imediata em mercados em ascensão (como no caso da Estética,

da Podologia e da Massoterapia), ou em mercados deficitários (como no caso

da Enfermagem e da Segurança do Trabalho);

b) Caráter prático, mas reflexivo, que se aproxima do “fazer-saber” apresentado

por Barato (2003);

c) Aspecto do cuidar, que ganha fortalecimento de seu signo com as mãos que

trabalham;

d) Possibilidade mercadológica de EMPREENDER.

Como complemento, podemos citar os seguintes dados mercadológicos

extraídos do site da instituição pesquisada3:

3 Itens “a” e “b” – Informações disponíveis em:

http://www.sp.senac.br/jsp/default.jsp?newsID=DYNAMIC,oracle.br.dataservers.CourseDataServer,selectCourse&course=295&template=380.dwt&unit=NONE&testeira=1015&type=T&sub. Acesso em: 07 mai. 2015.

Item “c” – Informações disponíveis em:

http://www.sp.senac.br/jsp/default.jsp?newsID=DYNAMIC,oracle.br.dataservers.CourseDataServer,selectCourse&course=288&template=380.dwt&unit=NONE&testeira=983&type=T&sub. Acesso em: 07 mai. 2015.

Item “d” – Informações disponíveis em:

http://www.sp.senac.br/jsp/default.jsp?newsID=DYNAMIC,oracle.br.dataservers.CourseDataServer,selectCourse&course=311&template=380.dwt&unit=NONE&testeira=1015&type=T&sub=2. Acesso em: 07 mai. 2015.

Itens “e” e “f” – Informações disponíveis em:

http://www.sp.senac.br/jsp/default.jsp?newsID=DYNAMIC,oracle.br.dataservers.CourseDataServer,selectCourse&course=310&template=380.dwt&unit=NONE&testeira=1015&type=T&sub=2. Acesso em: 07 mai. 2015.

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a) Expectativa de “expansão do sistema de saúde por meio de construção e

ampliação dos hospitais, aumento no número de leitos, investimento em

profissionais da saúde e em tecnologias aplicadas à saúde e à enfermagem”,

no Estado de São Paulo. Tratamos de uma necessidade social;

b) “A tendência global de crescimento na área da saúde impulsiona movimentos

de acreditações dos estabelecimentos de saúde, fenômenos de

desospitalização, políticas públicas de atenção à saúde nos diversos níveis e

de iniciativas como da ANVISA e da Organização Pan-Americana da Saúde

para melhoria da segurança do paciente nos serviços de saúde”;

c) “Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal,

Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC), a indústria brasileira apresentou um

crescimento médio de 10,5% nos últimos 14 anos. Fatores como a ascensão

da mulher no mercado de trabalho e lançamentos de novos produtos têm

contribuído para o excelente desempenho do setor. A partir desses fatores,

observa-se que há um mercado de trabalho em ascensão, e uma crescente

demanda por profissionais qualificados e bem preparados neste segmento”;

d) Há carência de profissionais qualificados especializados nos cuidados com os

pés e com a pele, que buscam seu espaço no contexto da Saúde;

e) Evolução do pensar sobre o bem-estar integral do ser humano, de uma forma

holística e com práticas integrativas complementares;

f) Abertura do mercado profissional para a formação de equipes

multidisciplinares para melhorar a atenção dada à saúde de forma integral. “A

saúde é entendida como um bem comum na perspectiva da qualidade de

vida. As ações desta área, antes restritas aos médicos, dentistas e

enfermeiros que atuavam em sua maioria quase que exclusivamente sobre o

organismo de seus pacientes, passam a incorporar profissionais com

formação diversificada, numa perspectiva multidisciplinar”.

A revisão bibliográfica que realizei no site do Banco de Teses da CAPES e na

Biblioteca Virtual da PUC/SP mostra como a educação profissional ainda não foi

exaustivamente estudada e me ajuda a reforçar a pertinência em abordar todas as

subáreas de Saúde e Bem-estar, uma vez que a pouca produção existente trata, na

maioria das vezes, da área de Enfermagem.

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É comprovada a relevância social da área de Enfermagem, contudo entendo

que áreas com alta empregabilidade e com possibilidade de atuação com autonomia

profissional, como a Estética, a Massoterapia, a Podologia e a Segurança do

Trabalho, também merecem estudos dedicados à formação docente.

Embora a pesquisa que realizei será explicada no capítulo 2, antecipo, aqui,

alguns dados relevantes. No Banco de Teses da CAPES, foram encontradas:

31 (trinta e uma) produções com o descritor “ensino técnico” em seus títulos;

1 (uma) produção na área da Saúde com os descritores “profissionalidade +

ensino técnico”;

1 (uma) produção sobre formação docente de Técnico em Estética, quando

realizada a busca com os descritores “enfermagem”, “estética”,

“massoterapia”, “podologia” e “segurança do trabalho”;

2.510 (duas mil, quinhentas e dez) produções na área da Enfermagem, nos

contextos do ensino superior e da pós-graduação lato sensu.

A quantidade de produções localizadas na área da Enfermagem (2.510) é,

sem dúvida, um dado sobremaneira destacável. Podemos levantar a hipótese de

que isso se dá por tratar-se de uma área que recebe estímulo por parte de seu

Conselho Profissional (COREN), que estabelece, por exemplo, ao professor, o pré-

requisito de ter especialização na área da Saúde, principalmente em docência, ou

mestrado, para poder ser um supervisor de estágio.

Podemos considerar que a educação profissional, no eixo tecnológico

Ambiente, Saúde e Segurança, no qual estão inseridas as áreas de Saúde e Bem-

estar, é um tema não esgotado na Academia e suponho que, por seu caráter

dinâmico, em constante transformação, exista sempre uma lacuna a ser preenchida.

Tenho a ambição de ser apenas uma disparadora desse processo investigativo e

reflexivo.

Ao me deparar com esses primeiros dados, tive certeza da escolha de um

problema de pesquisa focado nas formações técnicas das áreas de Saúde e Bem-

estar.

A partir da oportunidade de trabalho na coordenação técnica dos cursos das

áreas de Saúde e Bem-estar, pude perceber a especificidade nas características dos

alunos que buscam essas formações técnicas profissionalizantes, nos componentes

curriculares dos planos de curso e na própria dinâmica dos grupos em sala de aula.

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Consequentemente, tenho interesse em levantar a necessidade de ações formativas

diferenciadas que podem ser oferecidas aos docentes, nas reuniões pedagógicas de

área ou nas formações transversais, que podem ocorrer nas diferentes formações

do eixo Ambiente, Saúde e Segurança.

Na minha compreensão, informações como essas serão relevantes para um

número significativo de escolas técnicas, institutos federais e formadores de

professores da educação profissional. A instituição da qual os sujeitos pesquisados

fazem parte já possuía, em 2013, cerca de 9.000 funcionários, apenas no Estado de

São Paulo, segundo dados do próprio site. Além disso, estima-se que a

empregabilidade nas áreas da Saúde e Bem-estar atinge cerca de 90% dos

egressos dos cursos técnicos (2011/2012), na unidade envolvida (Jundiaí). Esses

egressos exercem atividade profissional remunerada, como funcionários ou como

profissionais autônomos.

Cabe também aqui mencionar o significativo aumento de bolsas de estudo

concedidas por diferentes políticas, internas e externas.

Primeiramente, existe a Política Interna de Concessão de Bolsas de Estudo

da própria instituição campo de pesquisa, que teve 122.000 beneficiados com bolsas

de estudo em 2014, em todo o Estado de São Paulo, de acordo com informação do

relatório anual publicado no site da instituição. A unidade campo de estudo (Jundiaí)

prevê 30% dos alunos de cada turma do curso técnico das áreas de Saúde e Bem-

estar como bolsistas (bolsa em 100%), sendo que, para o curso de Técnico em

Enfermagem, esse percentual sobe para 70%, uma vez que a instituição entende a

subárea como uma questão de responsabilidade social. Em outras palavras, há uma

grande demanda por profissionais técnicos em Enfermagem e, por ser essa a

formação técnica de custo mais elevado4, a instituição oferece maior número de

vagas para bolsistas.

A partir de 2013, a instituição também pactuou com o Governo Federal bolsas

de estudo do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego –

PRONATEC. No eixo tecnológico Ambiente, Saúde e Segurança, o curso de Técnico

em Segurança do Trabalho recebeu, entre 2013 e 2014, cerca de 60 bolsistas.

4 Em 2015, o curso Técnico em Enfermagem (de 1.800 horas) está estimado em R$ 10.000,00, na instituição

campo de pesquisa.

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Esses últimos elementos – empregabilidade e políticas de incentivo –

agregam justificativas para a relevância social desta pesquisa.

É importante esclarecer que o eixo tecnológico Ambiente, Saúde e

Segurança5, como entendido e organizado pela instituição campo de pesquisa,

envolve, nesta unidade do interior (Jundiaí), as seguintes subáreas: Enfermagem,

Estética, Massoterapia, Podologia e Segurança do Trabalho. Todas oferecem o

curso para habilitação técnica de nível médio (carga-horária de 1.200 horas; no caso

do Técnico em Enfermagem, 1.800 horas) e diversos cursos livres, como

complemento do itinerário formativo (cargas horárias variadas entre 15 e 160 horas).

Pelo princípio fundante e pela grade curricular, todas as formações acima

focam a saúde do indivíduo na sociedade e privilegiam o olhar sobre esse indivíduo

de forma integral. Por exemplo: há o desafiante objetivo de fazer com que os alunos

do curso de Técnico em Podologia não se limitem a olhar para os pés de seu cliente,

e sim que sejam capazes de ter uma visão ampla, que busquem entender a

condição de vida do indivíduo em sua integralidade. Esse futuro profissional da

Podologia também findará por cuidar de seus pés e de seu ser integral e também

será capaz de se questionar sobre sua responsabilidade no mundo.

Tratamos, como em Fazenda e Souza6 (no prelo, p. 2), da “[...] arte do

cuidado em três atos: cuidar de si, do outro e cuidar do mundo”. Esse cuidar é a

ação que caracteriza a natureza de todas as áreas do eixo tecnológico Ambiente,

Saúde e Segurança.

Um pré-requisito importante para ser docente na educação profissional, além

da formação mínima de nível médio técnico (considerando a exceção para a área da

Enfermagem, pois o conselho de classe, o COREN, exige graduação em

Enfermagem, com pós-graduação para docência na área da Saúde ou mestrado

acadêmico), é sua atuação profissional com experiência comprovada, ou seja, o pré-

requisito não é a formação pedagógica, mas sua experiência profissional.

5 Nomenclatura oficial de acordo com a forma de organização da educação profissional por eixos tecnológicos,

determinada pelo Ministério da Educação (MEC), em cumprimento à Lei 11.741, de 16 de julho de 2008. 6 Artigo intitulado “Transdisciplinaridade em saúde e educação: a arte do cuidado”, que será publicado em

outubro 2015 pela Editora Manole, durante um congresso sobre TransD e Oftalmologia. Referência cedida pelo autor Fernando César de Souza.

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Uma premissa fundamental da instituição campo de pesquisa, para o contexto

deste estudo, é a compreensão de que os docentes se formam na prática do dia a

dia em sala de aula, a partir das experiências por eles vivenciadas em suas

atuações profissionais como enfermeiros, engenheiros de Segurança do Trabalho,

esteticistas, fisioterapeutas e massoterapeutas, entre outros.

Tal prática não pode ser interrompida, pois o distanciamento da atuação

profissional limita os saberes profissionais-experienciais dos docentes, conforme

veremos adiante, na fundamentação teórica desta pesquisa.

Como classificaria Barato (2003), tratamos aqui do “fazer-saber”. Todo esse

contexto é coerente com o conceito contemporâneo da profissionalidade, que

também será explorado na sequência.

Tamanha é a pertinência da experiência prática do profissional de Saúde e

Bem-estar que se tornará um docente, que chegamos a notar diferenças no

desempenho de profissionais com formação técnica de nível médio (ou seja, que

passaram por uma formação com ênfase na prática) e de profissionais que

buscaram diretamente a graduação. Em outras palavras, um profissional com a

habilitação técnica de nível médio em Estética, em Podologia, em Massoterapia, em

Enfermagem ou em Segurança do Trabalho consegue atender melhor às

expectativas da instituição quanto aos objetivos formativos, se comparado ao

profissional graduado em Enfermagem, em Cosmetologia e Estética, em Fisioterapia

(área correlata à Massoterapia), ou ainda ao profissional Tecnólogo em Podologia

ou o Engenheiro pós-graduado em Segurança do Trabalho.

A importância disso é comprovada quando se observa que muitos

profissionais que atuam hoje na instituição possuem a formação dupla ou tripla. Para

citar: auxiliar em Enfermagem, técnica em Enfermagem e, posteriormente, graduada

em Enfermagem. Ou técnico em Estética e tecnólogo em Estética. Ou, ainda,

técnico em Segurança do Trabalho, engenheiro civil e pós-graduado em Engenharia

de Segurança do Trabalho.

Notamos também, nos processos seletivos realizados, principalmente ao

longo de 2014, um número maior de candidatos que, sem experiência profissional,

se candidataram às vagas de docentes e ainda demonstram dar irrisório valor à

formação técnica. É inviável contratar uma enfermeira recém-graduada, sem

nenhuma atuação hospitalar em seu currículo, para ser docente, assim como uma

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podóloga, que se não atua profissionalmente, não tem condições de ser docente em

um curso técnico.

Encontrar um profissional atuante competente é sinal de um futuro docente

com potencial, mas sabemos que isso não é suficiente. É preciso investigar como se

dará a constituição do profissional como docente e quais saberes são incontornáveis

em seu desenvolvimento.

A prática profissional é pré-requisito para adentrar a carreira docente e, na

sequência, uma formação pedagógica prévia mínima se faz necessária para

prioritário alinhamento da proposta pedagógica e do plano de curso a ser

desenvolvido. Falamos do “aprender fazendo”, sempre com o apoio e suporte da

instituição para a devida formação pedagógica.

Assim, os docentes passam pelo PDE (Programa de Desenvolvimento

Educacional), na instituição campo de pesquisa. Em 2004, o PDE possuía 76 horas,

divididas em cinco módulos (sendo 64 horas presenciais), segundo Mercadante

(2004). Atualmente, a carga-horária presencial mínima é de 12 horas, com

possibilidade de extensão para outros módulos de aprofundamento (com 8 horas

cada), uma reorganização de carga-horária proposta pela instituição campo de

pesquisa.

Quando tratamos das áreas de Saúde e Bem-estar – Enfermagem, Estética,

Massoterapia, Podologia e Segurança do Trabalho –, constatamos uma dificuldade

maior nas contratações, se as compararmos, por exemplo, com a área de

Administração/Negócios. Assim, para uma vaga de docente no curso de Técnico em

Administração (20 horas semanais), tivemos, em 2014, uma média de 60 candidatos

triados (ou seja, com pré-requisitos suficientes) para uma única vaga, enquanto que,

para uma vaga de docente no curso de Técnico em Podologia (20 horas semanais),

tivemos uma média de 2 candidatos triados na unidade em questão.

O melhor dos índices das áreas de Saúde e Bem-estar é o da Enfermagem,

atingindo a média de 10 candidatos triados por vaga. Em outras palavras, a mão de

obra docente, para esse eixo tecnológico, não é de fácil disponibilidade na região

(interior de São Paulo). Para a contratação de um docente no Curso Técnico em

Podologia (30 horas), foi necessária uma captação intensa no mercado durante

aproximadamente um ano.

Uma vez aceito o desafio de se tornar docente, outros desafios se multiplicam

em série para o profissional que entra em sala de aula pela primeira vez para

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desenvolver novos saberes. Assim, constato que uma pesquisa nesse campo

abordará necessariamente a constituição da profissionalidade e dos saberes

docentes.

O profissional da saúde que se torna um docente lida com grupos

heterogêneos na formação profissional. Levanto a hipótese de que esse docente, ao

entrar em sala, depara-se com um grupo de alunos que possui motivações distintas,

dentre os quais destacam-se: alta empregabilidade na área; salários iniciais

interessantes em termos mercadológicos; possibilidade de autonomia profissional;

necessidade de conquista de uma profissão; e resgate da autoestima.

Além disso, nos cursos técnicos, temos grupos heterogêneos em relação às

faixas etárias. Existem alunos com dezessete anos, recém-formados no ensino

médio (com exceção para Enfermagem, que exige como pré-requisito a idade

mínima de dezoito anos), e alunos aposentados, com mais de sessenta anos, que

buscam uma nova profissão.

O “cuidar do outro”, já referenciado nesta introdução, está totalmente inserido

no saber docente do “ensinar alguém a cuidar do outro”. Essa atitude do cuidar

parece ser uma característica essencial das áreas de Saúde e Bem-estar. Diante

desse pressuposto, pergunto: quais são os demais saberes docentes essenciais no

processo formativo de futuros profissionais das áreas de Saúde e Bem-estar? O que

caracteriza a profissionalidade dos docentes?

Objetivo geral e objetivos específicos

Como objetivo geral desta pesquisa, busco compreender como se dá a

constituição da profissionalidade docente e quais saberes docentes se fazem

necessários no contexto da educação profissional técnica nas áreas da Saúde e

Bem-estar.

Para tanto, tenho como objetivos específicos:

Buscar elementos na trajetória profissional e pessoal de profissionais das

áreas da Saúde e Bem-estar que possam ter influenciado suas escolhas pela

docência na educação profissional;

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Compreender como se dá o processo de constituição da profissionalidade

docente nas áreas de Saúde e Bem-estar, em que se observa a carência de

profissionais formados para a docência;

Diferenciar os saberes docentes envolvidos nas áreas da Saúde e Bem-estar,

que vão além do saber pedagógico;

Reconhecer a importância da atuação prática, como docente e como

profissional das áreas de Saúde e Bem-estar, para o desempenho na sala de

aula;

Apontar a relevância das formações específicas para o exercício docente nas

áreas de Saúde e Bem-estar.

Como escolha de procedimentos metodológicos, os dados desta pesquisa

qualitativa foram coletados por meio de entrevistas com 10 (dez) docentes

exclusivamente das áreas citadas, nas quais foram investigadas suas trajetórias,

suas percepções sobre a constituição da profissionalidade docente e os saberes

docentes. Como etapa complementar, realizei dois encontros psicodramáticos7

reunindo seis dos dez pesquisados, pois acredito nesse recurso para resgate do

essencial, a partir da espontaneidade e das relações entre os participantes do grupo.

Esta pesquisa está organizada em cinco capítulos.

O primeiro capítulo trata da profissionalidade docente, entendendo seu

desenvolvimento in loco, articulado ao conceito do “ser-em-relação”, e buscando

compreender o processo constitutivo do docente da educação profissional, que se

inicia na socialização primária. Para essa fundamentação teórica, a pesquisa conta

como principais referências: Placco e Souza (2006), Imbernón (2011), Moreno

(1975, 2008) e Lüdke e Boing (2010).

Considerando as contribuições teóricas complementares de Freire (1983,

2002), Tardif (2002), Barato (2003, 2004) e Shulman (1987), a reflexão avança sobre

conhecimentos e saberes docentes, com a proposta de uma reorganização de

categorias que pudesse nos auxiliar na busca de uma melhor compreensão sobre os

saberes docentes nas áreas de Saúde e Bem-estar. Tratamos dos saberes

experienciais-profissionais (incluindo o saber profissional-experiencial do cuidar),

7 Optei por utilizar recursos psicodramáticos nesta pesquisa porque essa ferramenta é bem aceita pelos

docentes, que se tornaram meus pares (unidades funcionais, na linguagem psicodramática) em sala de aula, em diferentes momentos.

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dos saberes pedagógicos (incluindo o saber viver em seu tempo), dos saberes

pessoais e do saber profetizar.

No segundo capítulo, são apresentados os resultados da pesquisa de revisão

bibliográfica, que apontam para uma lacuna ainda existente para a exploração da

educação profissional nas áreas de Saúde e Bem-estar, como campo de estudo. As

fontes às quais recorri para isso foram: Banco de Teses da CAPES, Biblioteca

Virtual da PUC/SP, artigos do SciELO e artigos da Biblioteca Virtual de Saúde.

No terceiro capítulo, são apresentadas, de maneira sucinta, a instituição

campo de pesquisa, os sujeitos pesquisados e as duas etapas de coleta de dados

escolhidas nos procedimentos metodológicos – entrevistas com roteiro dirigido e

encontros psicodramáticos.

O quarto capítulo apresenta toda a análise e a interpretação dos dados, a

partir do que foi possível organizar os resultados desta pesquisa em quatro eixos

centrais, a saber: eixo das influências; eixo da profissionalidade; eixo dos saberes

docentes; e eixo das formações docentes.

No quinto capítulo, são apresentadas as considerações finais, que

respondem aos problemas de pesquisa propostos e deixam reflexões para futuras

pesquisas no âmbito da educação profissional.

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1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

É importante considerar que vivemos hoje, no século XXI, um contexto de

constantes transformações de cunho social, político e econômico que afetam a

concepção da escola e as expectativas que se tem com relação ao professor, desde

a educação infantil até as diferentes categorias de pós-graduação. Isso também

decorre de uma mudança no entendimento da função social da escola e do status de

“ser professor”, nos últimos dois séculos. Se, no início do século XX, o professor era

visto como alguém com um cargo e um papel social de prestígio, atualmente, ele,

com frequência, ouve a seguinte pergunta: “Você trabalha? Ou só dá aula?”.

Com esta introdução, pretendemos esclarecer que não é pretensão desta

pesquisa estudar a mutação da concepção da profissão docente. Partimos do

princípio de que as mudanças no mundo provocaram, consequentemente,

transformações na escola. O que devemos reter como essencial é a própria mutação

que ocorreu no modo operante da escola e em sua concepção filosófica. A transição

do modelo tecnicista e conteudista já ocorreu para o modelo crítico reflexivo e esse é

um trajeto incontornável. Vamos considerar o “[...] ensinar realmente na vida e para

a vida”, proposto por Imbernón (2011, p. 8), ou ainda, como nos ensina Freire (2002,

p. 15), o formar como sendo “[...] muito mais do que puramente treinar o educando

no desempenho de destrezas”.

O problema de pesquisa deste estudo envolve a constituição da

profissionalidade docente e os saberes docentes que se fazem necessários no

contexto da educação profissional técnica nas áreas da Saúde e Bem-estar.

Nosso foco estará voltado para o entendimento de como profissionais de

diversas áreas da Saúde e Bem-estar se tornam docentes, tendo em vista o

contexto interno da instituição campo de pesquisa. É evidente que a pesquisa

poderá apontar determinantes sociais externas, contudo o enfoque será dado ao

processo aprendido na sala de aula e na vida profissional, com as experiências

vividas por si mesmos ou, ainda, pelas experiências compartilhadas por seus pares

docentes, como afirmam para Placco e Souza (2006, p. 68): “[...] a experiência é

uma mediação entre o conhecimento e a vida humana [...]”.

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1.1 A constituição da profissionalidade in loco e o “ser-em-relação”

Como bem nos relata Imbernón (2011 p. 25), vemos, na atualidade científica,

o emprego de diferentes terminologias: profissionalismo, profissionalização e

profissionalidade.

Na revisão bibliográfica, que será apresentada no capítulo 2, notamos o

emprego dos termos “exercício docente” e “constituição docente”, em diferentes

produções acadêmicas. Apenas 36 produções encontradas no Banco de Teses da

CAPES tratam diretamente da “profissionalidade”, um conceito muito atual, que data

de meados da década de 1990, cuja origem é italiana, mas sua “aclimatação” é

francesa (LÜDKE e BOING, 2010).

Tomaremos como definição norteadora desta pesquisa as palavras de

Courtois (1996 apud LÜDKE e BOING, 2010, p. 1):

Profissionalidade designa primordialmente o que foi adquirido pela pessoa como experiência e saber, e sua capacidade de utilizá-lo em uma situação dada, seu modo de cumprir as tarefas. Instável, sempre em processo de construção, surgindo do próprio ato do trabalho, ela se adapta a um contexto em movimento. [...] Ela requer uma aprendizagem permanente e coletiva de saberes novos e em movimento e se situa em um contexto de reprofissionalização constante. Ligada às interações no seio do mundo profissional, a profissionalidade leva mais em conta a história pessoal, social, técnica e cultural do indivíduo. Contrariamente à qualificação, ela evoca explicitamente a motivação, o sistema de valores e introduz no domínio profissional o que se origina no domínio privado. (grifo nosso)

O poema de Antonio Machado (1979, p. 33) também pode nos ajudar na reflexão

sobre a concepção de profissionalidade:

Caminante, son tus huellas el camino, y nada más; caminante, no hay camino, se hace camino al andar. Al andar se hace camino, Y al volver la vista atrás Se ve la senda que nunca Se há de volver a pisar. Caminante, no hay camino, Sino estelas en la mar.

8

8 Trad. Nadir Haguiara-Cervellini: “Caminhante, são tuas pegadas o caminho, e nada mais; caminhante, não há

caminho, se faz caminho ao andar. Ao andar se faz caminho, e ao voltar a vista para trás se vê a trilha que nunca se há de voltar a pisar. Caminhante, não há caminho, senão rastros no mar”.

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A constituição da profissionalidade docente passa pelo fazer de forma

processual, gradual e constante. O verso do poema “se hace camino al andar” nos

estimula a pensar sobre isso.

Tardif (2002, p. 11) também nos orienta com a seguinte reflexão:

[...] o saber dos professores é o saber deles e está relacionado com a pessoa e a identidade deles, com a sua experiência de vida e com a sua história profissional, com as suas relações com os alunos em sala de aula e com os outros atores escolares [...]. (itálico do autor e grifos nossos)

Para Imbernón (2000, p. 14):

A ação docente não é mais transmissão de um conhecimento acadêmico ou a transformação do conhecimento comum do aluno em conhecimento acadêmico. A profissão exerce outras funções: motivação, luta contra a exclusão social, participação, animação de grupos, relações com estruturas sociais, com a comunidade [...].

Retomando a Proposta Pedagógica da instituição campo de pesquisa (2003,

p. 3), encontramos reforço a essa concepção de homem no mundo:

[...] O homem é um ser que se relaciona com o mundo de modo consciente, intencional, reflexivo e potencialmente responsável. É capaz de fazer juízos de valor sobre sua própria forma de ser e agir e a dos demais seres humanos. Pelo pensamento, pela linguagem e pelo trabalho o homem dá sentido, conhece e modifica o mundo, entendido como ambiente ou circunstância no qual o homem vive, convive e transforma pela sua ação.

Freire (1983, p. 16) vincula o ato do comprometimento ao ser capaz de agir e

refletir, ao afirmar que: “É preciso que [o homem] seja capaz de, estando no mundo,

saber-se nele”. Entendo ser esse um saber muito amplo, que significa reconhecer-se

como parte Presente9. Sem reflexão, sem o pensar, não há ação e não há Presença,

mas também “[...] não há mundo sem homem” (FREIRE, 1983, p. 17).

Vemos em Freire (1983) o olhar do humano para uma ação responsável,

humanizada e humanizadora, sendo que esse comprometimento somente é possível

a partir dos interesses desses indivíduos e dos interesses dos grupos aos quais

pertencem.

9 Mantivemos a letra maiúscula “P” do autor.

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Trazendo essa reflexão para a sala de aula, podemos considerar que o

comprometimento do grupo de aprendizagem, entendendo que devam existir

interesses comuns entre docentes e alunos, somente é possível a partir do agir e do

refletir.

O docente não pode se sentir um habitante em um mundo desconhecido. Ao

contrário, deve se sentir mais parte desse mundo à medida que amplia seus

conhecimentos e se relaciona com seu habitat e com os seres com os quais se

compromete, nesse caso, com os alunos.

É em todo esse contexto que podemos empregar o termo “constituição” –

constituição da profissionalidade, com expansão para os saberes docentes.

1.1.1 Sobre profissionalidade

No Brasil, a constituição da profissionalidade docente começa, de fato, para

os que futuramente se tornarão professores, aos quatro anos de idade (ou até

mesmo antes), quando um indivíduo inicia seu ciclo de formação escolar.

Entendemos que essa constituição talvez envolva um processo infinito e contínuo,

que permeará toda a vida do indivíduo.

Os saberes que dão corpo a essa profissionalidade recebem influência de

inúmeras fontes, por exemplo: da família, das escolas nas quais estudou e dos

locais de trabalho por onde passou. Tardif (2002, p. 34) completa que “[...] o valor

social, cultural e epistemológico dos saberes reside em sua capacidade de

renovação constante”.

Como apontam Assis, Callas e Sigalla (2014): quem não se lembra de seu

primeiro dia na escola? Quem não se recorda do nome de um professor que foi

marcante em sua trajetória? E daquele caderno de caligrafia? Locais, cores, aromas,

sensações, objetos e fatos marcam nossa memória afetiva e podem nos ajudar a

compreender muito do que somos hoje, seja como aluno, seja como professor.

A memória passa por um processo tanto individual como coletivo, como

afirmam Placco e Souza (2006, p. 26). Sem ela, simplesmente não se aprende.

Entretanto, a memória não é apenas um local de armazenagem de informações,

pois ela é ressignificação e reconstrução, operando como uma receptora de

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estímulos. É a memória que nos permite a multiplicação do conhecimento no

processo de ensino-aprendizagem, a partir de seus mecanismos de construção.

Tanto alunos como professores, em seu encontro, constroem seus percursos

a partir de suas histórias, resgatadas emocional e racionalmente por recursos

mnemônicos.

Daí a justificativa para a etapa de investigação da trajetória profissional dos

docentes. Tardif (2002, p. 68) cita a existência de uma abundante literatura que

aponta que “[...] uma boa parte do que os professore sabem sobre o ensino, sobre

os papéis do professor e sobre como ensinar provém de sua própria história de vida,

principalmente de sua socialização enquanto alunos”. É o tornar-se e o manter-se

docente todos os dias.

Nos estudos relatados na obra de Tardif (2002), ficou evidenciada a

pertinência da investigação de duas etapas que podem integrar a constituição da

profissionalidade docente:

1) Socialização primária: refere-se às fontes pré-profissionais do saber-ensinar,

que englobam suas trajetórias familiares e como alunos, sendo aqui relevante

citar que, segundo Tardif (2002, p. 71), os saberes “[...] não são inatos, mas

produzidos pela socialização”;

2) Socialização profissional: diz respeito à análise do desenvolvimento da

carreira docente, adotando, como aponta Tardif (2002, p.79), o ponto de vista

da Escola de Chicago:

[...] carreira como trajetória dos indivíduos através da realidade social e organizacional das ocupações, pouco importa seu grau de estabilidade e sua identidade. A carreira consiste numa sequência de fases de integração numa ocupação e de socialização na subcultura que a caracteriza.

No que tange às fontes pré-profissionais, os estudos realizados, segundo

Tardif (2002), datam apenas da década de 1990 e, em sua maioria, conseguiram

comprovar mais continuidade do que ruptura na trajetória da carreira dos docentes.

Trata-se do “professor interno” que vive em cada um, que tanto pode aportar

contribuições positivas como negativas para a formação desse futuro docente.

Essas fontes podem ser consideradas de suma importância para a constituição do

saber ensinar, que tem origem também nos saberes pessoais. Não podemos deixar

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de reforçar que essas fontes não são suficientes para a constituição da

profissionalidade docente.

Quanto à análise das carreiras docentes, podemos traçar um paralelo com a

teoria dos papéis, de Moreno (1975). É no desempenho de um novo papel que o

indivíduo se forma e é na etapa da socialização profissional que se pode perceber o

processo de construção do “saber ser professor”. Nessa etapa, também, o docente

passa a ter de lidar com o outro: o aluno. Trata-se do momento de desmistificação

do conceito de “professor ideal” (TARDIF, 2002, p. 87) e de aprofundamento de seu

autoconhecimento enquanto docente.

1.1.2 Docente: um “ser-em-relação”

Tomamos a expressão moreniana do “ser-em-relação”, análogo ao “ser-no-

mundo”, da teoria existencialista de Heidegger (1995), em que o indivíduo se

desenvolve ao mesmo momento em que o mundo se constitui como mundo para ele,

para assim falar da saúde das relações, pois tal expressão, a nosso ver, é a que

melhor traduz a afetividade de Rogers e a teoria psicogenética de Wallon para a sala

de aula.

Este estudo certamente não dará conta de aprofundar essas abordagens,

mas não poderíamos deixar de trazer a importância do “outro” no processo de

ensino-aprendizagem.

Como vimos anteriormente, as etapas de constituição da profissionalidade

docente envolvem diferentes momentos de socialização. É no relacionar-se com o

outro que nos conhecemos e que colocamos à prova nosso potencial. É o “ser-em-

relação”, que nos foi apresentado por Moreno (1975), considerado o pai do

Psicodrama.

Gonçalves, Wolff e Castelo (1988, p. 41) trazem a definição do homem

moreniano: “[...] é um indivíduo social, porque nasce em sociedade e necessita dos

outros para sobreviver, sendo apto para a convivência com os demais [...]”.

Como reforço, em Freire (2002, p. 20-21) encontramos que:

[...] mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um “não-eu” se reconhece como “si própria”. Presença

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que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe. E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. [...] Se sou puro produto da determinação genética ou cultural ou de classe, sou irresponsável pelo que faço no mover-me no mundo e se careço de responsabilidade não posso falar em ética. [...] Significa reconhecer que somos seres condicionados, mas não determinados.

O autor (FREIRE, 2002) refere-se à ética e à responsabilidade do docente e

traz à tona a reflexão sobre a possibilidade humana de intervir no mundo – reflexão

essa que também se encontra presente na Proposta Pedagógica (2003) da

instituição campo de pesquisa – e, ainda, nos ajuda a entender a dualidade de

aprendizagens que existe na relação aluno-professor e que está inerente ao

conceito de profissionalidade. Para Freire (2002, p. 25):

[...] É preciso que, pelo contrário, desde os começos do processo, vá ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. [...] Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. [...] Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender.

As citações de Freire (2002) nos remetem à reflexão com que iniciamos a

Introdução desta pesquisa, propondo a visão do docente como figura modular e

modulante, ou seja, como aquele que forma e é formado.

Segundo Guertin (1987, p. 167): “[...] O sentimento de pertencimento é um

processo interativo pelo qual os indivíduos estão interligados e se definem uns em

relação aos outros em função do campo de interesses e de afinidades”. A sala de

aula é um frutífero ambiente para o desenvolvimento do indivíduo como um ser

social em relação. O simples fato de “sentir-se parte de um grupo” – como bem nos

fala Guertin (1987, p. 167), ao tratar do sentimento de pertencimento – é uma

justificativa para manter um aluno em uma sala de aula.

Diversas vezes nos deparamos com alunos em situação crítica de

vulnerabilidade social, incluindo processos de drogadição. E é justamente no grupo,

na sua turma, que esses alunos encontram o maior estímulo para simplesmente

“permanecerem e pertencerem a um grupo”. Conhecemos alunos que passaram oito

módulos de aprendizagem com reprovações, mas sua maior conquista foi

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permanecer em “outro meio” (escola) diferente do seu “meio prejudicado” (história de

vida).

Se o docente sabe “profetizar” (PATTO, 1986), como veremos adiante, antes

ele deve ser capaz de criar vínculos saudáveis e produtivos. Além disso, deve

promover situações no grupo para tal.

O docente pode ser responsável por transformar um inicial “agrupamento” de

pessoas em um verdadeiro grupo e por integrar todos os projetos individuais em um

projeto coletivo.

Referindo-se ao conceito de grupo interno proposto por Pichon-Rivière,

Madalena Freire (1997, p. 17) diz:

[...] pode-se falar em grupo, quando um conjunto de pessoas movidas por necessidades semelhantes se reúnem em torno de uma tarefa específica. No cumprimento de desenvolvimento das tarefas, deixam de ser um amontoado de indivíduos, para cada um assumir-se enquanto participante de um grupo com um objetivo mútuo. Isso significa também que cada participante exercitou sua fala, sua opinião, seu silêncio, defendendo seus pontos de vista [...].

É no grupo que se dá a constituição da profissionalidade docente, ao mesmo

tempo que, na educação profissional, o aluno também trilha sua constituição como

profissional das áreas de Saúde e Bem-estar.

São essas relações desenvolvidas nos diferentes grupos internos que fazem

do homem um ser “geneticamente social”, conforme a teoria walloniana (FREIRE,

1997, p. 18).

Tendo falado do ser social, vamos agora partir para os saberes sociais.

1.2 Saber-fazer, saber-ensinar e saber-ser

1.2.1 Sobre saberes docentes

Freire (2002) utilizou o termo “saberes” no título de sua obra10 para tratar não

apenas desse aspecto na Pedagogia, na prática do docente, mas também para

referenciar o convívio amoroso e a postura curiosa e aberta ao conhecimento.

10

“Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa” (FREIRE, 2002).

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Para Tardif (2002, p. 60), o termo “saber” assume “[...] um sentido amplo que

engloba os conhecimentos, as competências, as habilidades (ou aptidões) e as

atitudes dos docentes, ou seja, aquilo que foi muitas vezes chamado de saber, de

saber-fazer e saber-ser”.

O autor nos questiona: “Como a formação dos professores, seja na

universidade ou noutras instituições, pode levar em consideração e até integrar os

saberes dos professores de profissão na formação de seus futuros pares?” (TARDIF,

2002, p. 9).

Ele reforça que se trata de um tema recorrente na pesquisa internacional,

desde 1980, e defende sua perspectiva teórica, que objetiva tratar de forma

integrada o que se entende por “saber” (cita: conhecimento, pedagogia, didática,

habilidade, competência, entre outros) e as outras “[...] realidades sociais,

organizacionais e humanas nas quais os professores se encontram mergulhados”

(TARDIF, 2002, p. 11).

O autor também reforça sua posição contrária ao mentalismo e ao

sociologismo, para dar valor ao saber social dos docentes. Segundo ele (TARDIF,

2002), o mentalismo, que parece ter sido a concepção de conhecimento

predominante na Educação, é uma concepção reducionista de conhecimento porque

o limita basicamente aos processos mentais. O sociologismo, por sua vez, é outra

concepção extremista da qual é prudente nos afastarmos, pois os saberes docentes

não podem estar subordinados a mecanismos e forças sociais, como as ideologias

pedagógicas e a imposição da cultura dominante.

Para Tardif (2002, p. 12), o “saber é social”– explicitando esse “social” como o

relacional entre o eu e o outro –, pois:

1) É um saber compartilhado entre o grupo de professores, ou seja, é uma

construção coletiva;

2) Esse saber está diretamente relacionado às práticas sociais. Ensinar é agir

com outros seres humanos, sobretudo no contexto da Saúde, no qual o

docente ensinará seres humanos a trabalharem e cuidarem de outros seres

humanos;

3) O saber-ensinar (Pedagogia, Didática, entre outros) está embasado em

outras construções de caráter social que sofrem mutações constantes que

acompanham toda a história da sociedade. “O saber dos professores [...] está

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assentado naquilo que Bourdieu chama de arbitrário cultural: ele não se

baseia em nenhuma ciência, em nenhuma lógica, em nenhuma evidência

natural” (TARDIF, 2002, p. 14);

4) O saber docente é social, pois é processual e está em desenvolvimento

constante ao longo de toda a carreira docente.

Em síntese, o indivíduo é um “ser-em-relação” no mundo, e os saberes se

desenvolvem na relação com o outro. Dessa forma, na educação profissional, o

saber também é social, pois resulta da construção coletiva, ao envolver distintas

instituições e instâncias (a própria instituição, sindicatos, conselhos profissionais,

associações de classe, Ministério e Secretarias da Educação, entre outros),

dependendo, portanto, de reconhecimento social.

Tardif (2002, p. 15) ainda conclui que:

[...] o saber dos professores não é o “foro íntimo” povoado de representações mentais, mas um saber sempre ligado a uma situação de trabalho com outros (alunos, colegas, pais etc.), um saber ancorado numa tarefa complexa (ensinar), situado num espaço de trabalho (a sala de aula, a escola), enraizado numa instituição e numa sociedade.

O docente, na educação profissional, pode ser visto, portanto, como um

verdadeiro mediador do indivíduo e de sua realidade social. Aqui, voltamos a

reforçar o conceito do docente visto como o “ser-em-relação”. Formar é um processo

social e formar alguém para o trabalho amplia esse compromisso.

Tardif (2002) trata também da importância do saber do trabalho e não apenas

sobre o trabalho, referindo-se ao trabalho docente. Contudo, com o olhar voltado

totalmente para a educação profissional, o saber do trabalho está duplamente

reforçado. É um saber não apenas utilizado como segundo trabalho, mas também

um saber produzido no e pelo trabalho, para formar um futuro par de trabalho. Daí, a

suma relevância da prática profissional dos docentes das áreas da Saúde e Bem-

estar. Podemos exemplificar com uma situação da área da Saúde: um docente não

saberia ensinar um aluno a puncionar uma veia se tivesse realizado esse

procedimento somente em seu estágio na graduação.

Quando Tardif (2002) trata do sincretismo dos saberes, ele pretende trazer à

luz reflexões sobre:

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1) A importância de uma unidade teórica com concepções coerentes de ordem

prática;

2) A não racionalidade no processo formativo, uma vez que os saberes não

antecedem a prática;

3) As diferentes maneiras pelas quais as experiências vividas pelos docentes

impactam seu desenvolvimento profissional. Isso quer dizer que:

[...] os saberes do professor são, a um só tempo, construídos e utilizados em função de diferentes tipos de raciocínio (indução, dedução, abdução, analogia etc.) que expressam a flexibilidade da atividade docente diante de fenômenos (normas, regras, afetos, comportamentos, objetivos, papéis sociais) irredutíveis a uma racionalidade única, como por exemplo a da ciência empírica ou a da lógica binária clássica. (TARDIF, 2002, p. 66)

4) A não ocorrência de mera superposição de camadas de saberes

independentes. Assim como a memória, os saberes não são saberes que se

acumulam de forma sistemática. Ao contrário, eles se formam de maneira

articulada, como veremos detalhadamente adiante. Por exemplo, o saber

pedagógico não se desenvolve de maneira independente do saber pessoal.

1.2.2 Saberes docentes: o “ir além”

Placco e Silva (2009, p. 27) falam da “[...] docência em toda a sua

imponderabilidade, surpresa, criação e dialética com o novo” e, quando tratam do

desafio da formação docente, nos introduzem a um conceito dos saberes docentes

que envolvem os seguintes conhecimentos:

O conhecimento que o docente possui sobre seus alunos (incluindo origem

social, expectativas e conhecimentos prévios);

O conhecimento sobre procedimentos didáticos mais eficazes para sua

realidade;

O conhecimento sobre aspectos afetivo-emocionais;

O conhecimento sobre os objetivos educacionais a serem atingidos e seu

consequente compromisso como cidadão e profissional inserido no contexto

da Educação.

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Todas essas esferas de conhecimento abordadas pelas autoras são

pertinentes, ao investigarmos o contexto da educação profissional.

Shulman (1987) aprofunda a reflexão sobre os distintos conhecimentos e traz

uma contribuição fundamental para esta pesquisa, ao valorizar o conhecimento

pedagógico do conteúdo, que pode ser entendido como a junção do conteúdo

específico de determinada área e da Pedagogia, contribuindo, por exemplo, com a

seguinte análise: não é suficiente ser um podólogo, um enfermeiro, um esteticista,

um massoterapeuta ou um engenheiro de Segurança do Trabalho competente para

ser professor. O desafio está em saber desenvolver o conteúdo em sala de aula. O

“ir além do conteúdo” se faz necessário, sobretudo com os saberes pedagógicos e

pessoais.

Ao mesmo tempo, Shulman (1987) agrega a ideia da sabedoria da prática,

para referenciar a constituição da profissionalidade em sala de aula e na troca entre

pares.

O pensar de forma crítica sobre Educação e conhecimento também surge na

produção de Freire (2002, p. 25), para quem “[...] ensinar não é transferir

conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção ou a sua construção”. E

explicita, ainda, que não é suficiente ensinar apenas os conteúdos; é necessário

ensinar também “a pensar certo”, ou seja, de maneira crítica, capaz até de ter

incertezas sobre as certezas em demasia. Somente assim esse aluno poderá ser um

ser Presente e Interveniente. Esse é o ser Presente no mundo, para Freire.

Conforme Tardif (2002), os saberes docentes são sociais e podem ser

categorizados como:

Profissionais: quando transmitidos nas formações da área da Educação;

Pedagógicos: quando alimentados pelas reflexões das práticas em sala de

aula;

Disciplinares: quando relacionados ao conteúdo específico que leciona;

Curriculares: quando voltados ao currículo da área na qual leciona;

Experienciais: quando desenvolvidos em plena função docente.

A contribuição de Tardif (2002) é fundamental para o entendimento da

constituição da profissionalidade docente.

Considerando as contribuições de Placco e Souza (2006) e Tardif (2002),

propomos uma nova organização de categorias de saberes que faz sentido para

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esta pesquisa, no contexto da educação profissional técnica das áreas de Saúde e

Bem-estar:

1) Os saberes profissionais-experienciais, que, certamente, são pragmáticos e

incontornáveis no caminhar da educação profissional. São saberes

relacionados às experiências adquiridas tanto no trabalho docente como no

trabalho enquanto profissional das áreas de Saúde e Bem-estar. É

fundamental considerar, no contexto estudado, que os saberes denominados

profissionais, diferentemente do proposto por Tardif (2002), não são

transmitidos em uma formação, em um curso da área de

Educação/Pedagogia. É importante considerar que a maioria dos docentes

participantes desta pesquisa desenvolveram os saberes relacionados ao

trabalho docente em sala de aula e na troca com seus pares. Trata-se do

saber ser professor sendo um profissional das áreas de Saúde e Bem-

estar, envolvendo a importância do cuidar;

2) Os saberes pedagógicos, que, para Tardif (2002), são relacionados ao

saber-ensinar na sala de aula, propomos denominá-los saber ensinar no seu

tempo;

3) Os saberes pessoais que o docente traz consigo em sua história de vida,

desenvolvidos em seus processos de socialização, principalmente a partir de

seus “professores internos”, que permeiam toda sua relação com os alunos;

4) O saber profetizar, como responsabilidade consciente ou inconsciente do

docente, que precisa desenvolver a tomada de consciência a respeito da

influência que pode ter sobre a vida e as ações dos alunos. As profecias

podem, por vezes, se basear em preconceitos e em prejulgamentos que

podem causar danos irreparáveis na trajetória educacional dos alunos.

Pretendemos utilizar esses arranjos de categorias de saberes docentes na etapa

de análise dos dados, com destaque para o saber profetizar e o saber viver em

seu tempo.

Dessa forma, partimos para o detalhamento da organização de categorias dos

saberes.

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45

1.2.2.1 Saberes profissionais-experienciais

No caso do ensino-aprendizagem nos cursos técnicos, nas áreas da Saúde e

Bem-estar, consideramos que os docentes trazem consigo, inicialmente, dois

universos do conhecimento, se pudermos assim classificá-los: o conhecimento

relativo ao trabalho docente – vivenciado nas formações específicas e nas

experiências acumuladas em sala de aula ou, ainda, compartilhado entre pares – e o

conhecimento relativo ao trabalho enquanto profissional das áreas de Saúde e Bem-

estar – como o “fazer-saber” proposto por Barato (2003), com uma compreensão

epistemológica própria, que não precisa distanciar teoria e prática.

Esses saberes profissionais-experienciais garantem a coerência da formação

profissional com a demanda de mercado.

Quando abordamos a questão mercadológica, referimo-nos à

empregabilidade derivada da incessante necessidade de ampliação e melhorias dos

serviços de Saúde e Bem-estar. Novamente, reforçamos que isso não defende uma

posição de tratamento de uma clientela no âmbito escolar. O aluno é, antes de tudo,

um aluno, e não um cliente que está apenas contratando um serviço. Pelo contrário,

as características do aluno, como a aptidão para o cuidar e o tratamento

humanizado, nas áreas de Saúde e Bem-estar, formam a condição sine qua non

para o êxito de sua formação e a consequente conquista de emprego. Não se trata

apenas de uma demanda mercadológica a ser suprida a qualquer custo.

O docente vive diariamente o desafio de levar a prática profissional específica

para a sala de aula, de forma reflexiva. Assim, propomos a combinação da

experiência do profissional das áreas de Saúde e Bem-estar com a do profissional

docente em sala de aula.

Os saberes profissionais-experienciais também retroalimentam os demais

saberes, pois são disparadores do processo de autoavaliação dos docentes

(TARDIF, 2002). Esses saberes – os profissionais-experienciais – vão além do

ensinar determinadas técnicas; eles entram no âmbito reflexivo de avaliar qual é a

melhor técnica ou procedimento a ser realizado, diante de um quadro completo e

múltiplo de possibilidades.

Lidamos com a proposta de formar o profissional de nível médio técnico

reflexivo, e não meramente operante. Isso, por si, já é uma quebra de paradigma.

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46

Em outras palavras, valoriza-se amplamente a questão dos saberes profissionais-

experienciais como condição preliminar.

Ambos os conhecimentos – do docente e do profissional das áreas de Saúde

e Bem-estar – são confrontados e conformados em sala de aula, pois cada realidade

é única de cada grupo, demandando um esforço já dos saberes pedagógicos.

1.2.2.1.1 O saber profissional-experiencial do cuidar

Propomos, aqui, uma atenção ao cuidar, considerando:

o saber cuidar do aluno e de seu projeto de vida;

o saber ensinar o aluno a cuidar do outro enquanto futuros técnicos em

Enfermagem, Estética, Massoterapia, Podologia e Segurança do Trabalho,

tendo como referência a experiência profissional do docente.

O saber cuidar foi denominado por Tardif (2002) como o saber humano a

respeito de seres humanos. E, aqui, falamos tanto do saber existencial – ou seja, do

ser humano que existe por trás da figura do docente – como do saber relacionar-se,

fazendo referência à dimensão afetiva e emocional do trabalho docente e do

trabalho do profissional das áreas de Saúde e Bem-estar.

Para Boff (2013, p. 38):

O cuidado é ainda algo mais que um ato e uma atitude entre outras. [...] o cuidado se encontra na raiz primeira do ser humano, antes que ele faça qualquer coisa. [...] significa reconhecer o cuidado como um modo-de-ser essencial. [...] é uma dimensão frontal, originária, ontológica, impossível de ser totalmente desvirtuada. (grifo nosso)

Heidegger (apud BOFF 2013, p. 68) inspirou essa reflexão de Boff, quando

trouxe que: “[..] o cuidado se acha a priori, antes de toda atitude e situação do ser

humano, o que sempre significa dizer que ele se acha em toda atitude e situação de

fato”.

Dessa forma, entendemos que o cuidado está na essência da própria

natureza humana. O modo de cuidar e ser cuidado podem ser diferentes em cada

ser humano.

Boff (2013, p. 104) completa:

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Com razão, o grande poeta latino Horácio (65-68 a.C.) podia finalmente observar que o cuidado é o permanente companheiro do ser humano. Quer dizer: o cuidado sempre acompanha o ser humano porque este nunca deixará de amar e de desvelar por alguém (primeiro sentido), nem deixará de se preocupar e de se inquietar pela pessoa amada (segundo sentido). Se assim não fora, não se sentiria envolvido com ela e mostraria negligência e incúria por sua vida e destino. No limite, revelaria indiferença, que é a morte do amor e do cuidado. (grifo nosso)

Proponho que o desenvolvimento do sentimento de empatia, o colocar-se no

lugar do outro, o aprimoramento do olhar, da escuta e o cuidar do aluno que precisa

aprender a cuidar de outro ser humano sejam considerados partes integrantes do

saber profissional-experiencial.

Os saberes humanos são coerentes com a reflexão proposta por Imbernón

(2011, p. 28): o que resta de mais significativo de todo debate é o serviço do docente

colocado a “[...] serviço da mudança e da dignificação da pessoa”.

Quando se trata das áreas de Saúde e Bem-estar, o cuidar ganha uma

dimensão ampliada. O saber profissional-experiencial do docente relacionado ao

cuidado deve perpassar todas as aulas dos cursos dessas áreas.

O cuidar está no preparo para o toque físico, na humanização do atendimento

e na visão integral do ser humano. Está no cuidado com o preparo do ambiente de

trabalho e na forma como o profissional acolherá seu paciente ou cliente.

Fazenda e Souza (2014, p. 1) fazem um paralelo entre a experiência

profissional de sujeitos em escolas e em clínicas de saúde e apontam que o fato de

estarem em ambos os espaços possibilita “[...] um constante movimento de ação-

reflexão para a vivência de um ‘aprender com’ e de um ‘estar-entre’”, sem perdermos

de vista as três dimensões do cuidar: cuidar de si, do outro e do mundo.

Nessa produção, os autores (FAZENDA e SOUZA, 2014, p. 17) apresentam

uma compreensão de “professor cuidador” e contribuem para a reflexão sobre uma

nova concepção de escola, ao afirmarem que:

[...] Os espaços da escola são essencialmente terapêuticos na promoção de um ensino para o cuidado quando providenciamos os ciclos de confianças mútuas, onde o aluno deixa de ser um indivíduo sem luz (em grego= a-lux) e a pessoa que busca os cuidados da clínica deixa de ser o “paciente”, e ambos se tornam sujeitos autônomos e sociopoliticamente constituídos.

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1.2.2.2 Saberes pedagógicos

A sala de aula é a realidade mais próxima e concreta que faz com que o

docente confronte seus saberes profissionais-experienciais com a prática de

lecionar. É nela que se dá a aprendizagem.

Placco e Souza (2006, p. 86) trazem a aprendizagem “[...] como um processo

de apropriação de conhecimentos, como fatos, eventos, relações, valores, gestos,

atitudes, modos de ser e de agir, que promovem no sujeito novas possibilidades de

pensar e de se inserir em seu meio”.

Toda essa situação faz com que o docente esteja em constante processo de

aprendizagem e adaptação, colocando à prova sua resiliência11 in loco. Trata-se

também do saber planejar e organizar o tempo, tanto em sala de aula como fora

dela – para participar das reuniões pedagógicas e do planejamento de aulas, por

exemplo.

O conhecimento pedagógico implícito na profissão docente envolve um

“aprender fazendo”. É o ser professor como uma “profissão aprendida”. Pode-se

desenvolver uma massoterapeuta para ser uma boa educadora, entretanto,

certamente, uma boa educadora não conseguirá conduzir uma aula sem os

conhecimentos profissionais-experienciais de Massoterapia.

Propomos o entendimento desse conhecimento pedagógico ampliado como

uma ação que não se limita a uma mera transmissão de conteúdos. A reflexão sobre

a própria prática docente e o compartilhamento entre os pares são importantes

aliados do processo constitutivo da profissionalidade docente, conforme

encontramos fundamentado em Imbernón (2011, p. 33): “A competência profissional,

necessária em todo processo educativo, será formada em última instância na

interação que se estabelece entre os próprios professores, interagindo na prática de

sua profissão”.

A relação que se estabelece entre pares é uma oportunidade de

desenvolvimento profissional rumo à constituição da profissionalidade docente.

11

Resiliência: 1. [Física] Propriedade de um corpo de recuperar a sua forma original após sofrer choque ou deformação. 2. [Figurado] Capacidade de superar, de recuperar de adversidades. "Resiliência", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/resili%C3%AAncia [Acesso em: 07 jan. 2015].

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Freire (2002, p. 43) salienta que:

O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea, “desarmada”, indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito.

Assim, reforçamos a importância da reflexão sobre a própria prática e

propomos uma ampliação do conceito de saber pedagógico, envolvendo o saber

viver em seu tempo.

O saber viver em seu tempo passa pelo saber tecnológico – necessário para

a exploração de recursos e linguagens da contemporaneidade –, o qual abrange

desde o uso de um aparato novo, como o uso da lousa digital em substituição à

lousa branca ou verde, até o uso de softwares educacionais, ou de outros produtos

que são alvo de constante pesquisa industrial. Por exemplo, existem softwares

elaborados por equipes de professores universitários que apresentam aulas sobre

anatomofisiologia, com perspectivas em 3D. Na área da Saúde, produtos

cosméticos, por exemplo, são desenvolvidos constantemente para facilitar os

tratamentos estéticos, massoterapêuticos e podológicos. Nesse contexto, não é

possível que o docente se acomode em seu saber fazer e ignore os novos avanços

tecnológicos.

Em 2014, após a visita a uma feira de negócios especializada na área de

Estética, uma docente participante desta pesquisa nos relatou o surgimento de

novos aparelhos para os mais diversos tratamentos. Ela se mostrou preocupada

com o ritmo comercial acelerado do desenvolvimento de recursos e sua capacidade

de acompanhar todo esse movimento.

Sarmento (2009, p. 67) nos auxilia a compreender que:

Precisamos começar a desmistificar, entre os educadores, a visão mecanicista e reducionista de que tecnologia é máquina, é ferramenta. Tecnologia não pode ser confundida com aparato tecnológico, com máquina. Tecnologia é conhecimento aplicado, é saber humano embutido em um processo, seja esse processo automático ou não, implique artefato ou não. Nova tecnologia é, antes, uma mudança no fazer que frequentemente embute uma correspondente mudança de concepção.

O saber viver em seu tempo ultrapassa esse saber tecnológico, uma vez que

o docente está em um ambiente no qual se depara com diferentes formas de ver a

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vida, com diversas condições existenciais e com uma heterogeneidade de escolhas.

O aluno é o elemento imprevisível, inesperado e surpreendente do processo.

Sem o saber viver em seu tempo, o docente não consegue desenvolver seu

saber pedagógico. Ao mesmo tempo, esse saber está entrelaçado aos saberes

pessoais.

Franco (2009, p. 34) fala de um “choque com a realidade” e traz à reflexão

questões bem atuais vivenciadas em sala de aula pelos docentes, como a

(in)disciplina, a organização da sala e as dificuldades de pensar e agir sobre o

processo de ensino-aprendizagem levando-se em consideração as etapas de

desenvolvimento do grupo.

Enfim, o docente não pode deixar de viver em seu tempo, que pode, de

maneira resumida, ser considerado como o tempo de seus alunos, sejam eles

crianças, adolescentes ou adultos.

1.2.2.3 Saberes pessoais

Os saberes pessoais são todos os recursos que subsidiarão o docente em

sua ação, fazendo com que ele próprio tenha uma visão crítica e construtiva sobre

sua maneira de agir. Placco e Souza (2006, p. 70) apontam que: “[...] O professor

interpreta a realidade com que se depara, o que lhe dá elementos para planejar

ações, experimentar soluções, revê-las e recriá-las”.

É um ir além dos saberes profissionais-experienciais e pedagógicos, como

resposta a uma demanda social e a um contexto grupal. É um “mover-se”, um

“mobilizar-se”, que se traduzem nas palavras de Freire (2002, p. 106): “[...] me movo

como educador porque, primeiro, me movo como gente”.

Quando nos referimos a um contexto grupal, fazemos referência à reflexão

que Freire (2002, p. 46) nos instiga a fazer sobre a tarefa que o docente tem,

também, de propiciar condições saudáveis e produtivas para que os alunos se

relacionem entre si e com os docentes: “[...] ensaiam a experiência profunda de

assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante,

comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva

porque é capaz de amar”.

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Falamos do mesmo “ser-em-relação”, do ser no mundo e do ser Presente

nesse mundo, que tratamos anteriormente, mas aqui reforçamos a ideia de que,

além de ser lócus constituinte da profissionalidade, esse ser docente precisa de

seus saberes pessoais para coexistir nesse ambiente de aprendizagem.

O saber “ser docente” tem diversas fontes constitutivas, como: as

experiências de familiares professores, de outros professores, da escola em que

estudou, e não necessariamente de uma formação na área da Educação.

A formação técnica, para atingir um nível de excelência, considerando as

necessidades atuais da sociedade do século XXI, precisa ir além do conhecimento

técnico. Exemplificando: praticamente todas as formações técnicas da instituição

campo de pesquisa possuem como eixo temático introdutório, em seu plano de

curso, a competência que trata da postura e da ética profissional.

Não é possível falar sobre postura e ética e agir de maneira inversa na sala

de aula. É necessário que o docente corporifique suas palavras pelo exemplo, como

afirma Freire (2002, p. 106): “Ensinar e, enquanto ensino, testemunhar aos alunos o

quanto me é fundamental respeitá-los e respeitar-me são tarefas que jamais

dicotomizei”.

Conteúdos e comportamento ético caminham juntos no processo ensino-

aprendizagem. Freire (2002, p. 106) propõe o entendimento disso como um outro

saber indispensável à prática docente:

[...] o saber da impossibilidade de desunir o ensino dos conteúdos da formação ética dos educandos. De separar prática de teoria, autoridade de liberdade, ignorância de saber, respeito ao professor de respeito aos alunos, ensinar de aprender.

Imbernón (2011, p. 8) reforça a ideia da escola como espaço ampliado para o

desenvolvimento do ser humano integral:

A instituição que educa deve deixar de ser “um lugar” exclusivo em que se aprende apenas o básico (as quatro operações matemáticas, a socialização, uma profissão) e se reproduz o conhecimento dominante para assumir que precisa ser também uma manifestação de vida em toda sua complexidade. (grifos nossos)

Essa etapa da constituição da profissionalidade in loco, de forma resiliente,

envolve também a abertura, a vontade e a disposição do docente para ouvir,

escutar, observar, olhar e dialogar com o grupo de alunos.

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O docente, ao mesmo tempo que tem autonomia para ser “dono do seu

trabalho”, não pode ignorar o “mundo dos alunos”, pois isso é o legítimo saber viver

em seu tempo.

É fundamental que o docente respeite os saberes dos educandos,

independentemente de sua proveniência social (FREIRE, 2002). É explorando os

conhecimentos prévios do grupo que o docente poderá criar vínculo produtivo com

seus alunos. Não é possível mais imaginar que alguém chegue à escola sem saber

nada.

Na situação ideal, pretendemos, na educação profissional, tratar de um

verdadeiro novo projeto de vida, entendendo que os pilares – pessoal e profissional –

devem caminhar juntos. Cada aluno não chega solitário à sala de aula. Ele traz

consigo seu projeto profissional, sua família e tudo mais que couber em sua

bagagem pessoal. São os saberes pessoais do grupo que contribuirão para a

construção do projeto coletivo.

São condições indispensáveis para o processo de ensino-aprendizagem o

saber dialogar e o saber escutar, afinal, como nos pontua Freire (2002, p. 127), “[...]

é escutando que aprendemos a falar com eles”. Consideremos também que quem

escuta, tem que “falar com”. O saber silenciar-se para ouvir melhor também faz parte

da interação saudável.

Não podemos deixar de mencionar que, nesses saberes pessoais, também se

encontram os gestos. “Mal se imagina o que pode passar a representar na vida de

um aluno um simples gesto do professor” (FREIRE, 2002, p. 47). Os recursos

mnemônicos são poderosos e os gestos podem marcar toda uma trajetória. Ainda

não com a clareza de uma profecia autorrealizadora, mas com o impacto de ser

multiplicado de maneira consciente ou inconsciente. Além da repetição mecânica, o

gesto é a tradução de uma emoção. Reconhecer o valor das emoções faz parte do

saber pessoal do docente.

Gesto e fala integram a relação dialógica entre professor e aluno. Mas gesto e

fala perdem seu valor se não forem expressões sinceras de afeto. “Ensinar exige

querer bem aos educandos” (FREIRE, 2002, p. 159). Já é ultrapassada a dicotomia

entre seriedade e afetividade.

O cuidar dentro da escola, proposto por Fazenda e Souza (2014, p. 14), em

uma visão de escola como centro terapêutico, carece de gestos e de falas em que

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“viver as possibilidades de cuidados dentro da escola é acreditar no time de alunos,

professores e demais funcionários, e apostar no sucesso deste conjunto”.

1.2.2.4 Saber profetizar

Propomos dedicar esta pesquisa a mais um saber, o saber profetizar,

inspirado no termo “profecia autorrealizadora”, cunhado por Patto (1986) e resgatado

por Guimarães e Vilela (2009, p. 38) neste trecho:

[...] as ideias preconcebidas da escola sobre as dificuldades presentes e futuras de um aluno, como produto direto de sua situação familiar e social, costumam prejudicar muito mais o aluno e seu futuro do que a própria situação familiar e social alegada. E isso porque, para o presente, a escola desloca suas responsabilidades e possibilidades de ação para a família, isentando-se de sua opção educativa, tornando-se apática e indiferente, ainda que piedosa, em relação ao jovem que deveria educar. Agindo assim, a equipe pedagógica abdica até de constituir um espaço diferenciado no qual aspectos novos ou pouco desenvolvidos de sua personalidade possam tomar forma. Em relação ao futuro, sua previsão atua como profecia autorrealizadora: o aluno tende a se transformar no que esperam dele, exatamente por esperarem isso dele. Tais previsões, que chegam a surpreender alguns, parecem “atos de bruxaria”, mas são tradução do seguinte processo: a sentença sobre o outro (aluno) é simultaneamente o desejo (da escola, personificada na figura do professor) que busca (no aluno) sua realização e o aluno responde, à sua maneira, a esse desejo.

No ambiente da instituição campo de pesquisa, trata-se de um tema muito

discutido, pois vivenciamos, nos últimos quatro anos principalmente, situações que

potencializam a ideia da ação de prever ou profetizar dos docentes. Temos casos de

alunos com muitas dificuldades de aprendizagem – herdadas, principalmente, de

falhas no ensino fundamental – que se destacaram ao longo do curso técnico,

graças aos incentivos que receberam dos docentes, que desde sempre acreditaram

em seu potencial e que os ajudaram a superar as dificuldades reais existentes, como

os problemas quanto à expressão oral e escrita. Na contramão desse exemplo,

vimos alunos que pensavam em desistir do curso porque ouviram de um docente

uma frase desestimulante sobre suas dificuldades de aprendizagem e sua

consequente falta de “perfil” para a área.

Patto (1986) traz o conceito de profecia autorrealizadora, que há muito tempo

tem sido estudada em contextos diferentes do da Educação como, por exemplo, no

mundo do trabalho. Como esta pesquisa acontece no contexto da educação

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profissional, torna-se ainda mais pertinente tratar das profecias autorrealizadoras

dos professores e até mesmo de outros funcionários da instituição.

A intencionalidade, aqui, não será a de comprovar a eficácia de profecias

autorrealizadoras, mas sim investigar a percepção que os docentes têm a respeito

da possibilidade (ou do risco) de profetizar, entendendo isso como um saber que

constitui a profissionalidade docente. Uma vez percebida a possibilidade de

realização da profecia autorrealizadora, será uma ação nova tratá-la no contexto

formativo.

Faz parte do saber profetizar conseguir verdadeiramente acreditar na

possibilidade de mudança, por mais que o aluno esteja no ápice de sua descrença

em si. Se o docente não acreditar na possibilidade da “ação político-pedagógica”,

como denomina Freire (2002), quem acreditará nesse aluno?

Muitas vezes, é no contexto da sala de aula que o aluno encontra um olhar

crédulo e uma mão de apoio. Podemos ampliar essa dimensão do impacto da

relação aluno-professor até para a esfera de um trabalho de autoestima. Que

presente pode significar para um docente ouvir o agradecimento: “Professor,

obrigado por não deixar de acreditar!”?

1.2.2.5 Os saberes docentes e os saberes dos alunos: caminhos que se

entrelaçam

Na constituição de sua profissionalidade e no desenvolvimento constante de

seus saberes, podemos vislumbrar o docente como um profissional com autonomia

suficiente para trilhar sua trajetória, para efetivamente “trilhar seu caminho ao

andar”, podendo reinventar, criar, redirecionar rotas possíveis e aprender.

Nesse sentido, Guimarães Rosa (1994, p. 437) já nos provocou com essa

reflexão, ao dizer que “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente

aprende”, assim como Freire (2002), para quem alunos e docentes devem, juntos,

aprender, ensinar, inquietar-se, produzir, ter esperança e se alegrar.

Na formação técnica, também temos como objetivo formar profissionais que

tenham autonomia e atitude empreendedora. Imbernón (2011, p. 19) fala de uma

“[...] autonomia profissional compartilhada, já que a profissão docente precisa

partilhar o conhecimento com o contexto”.

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Existem características do processo de constituição da profissionalidade

docente que coincidem com as características do processo formativo dos próprios

alunos da educação profissional das áreas de Saúde e Bem-estar, como: a

autonomia, a atitude empreendedora, o estabelecimento de vínculos e o cuidar. Isso

reforça a justificativa desta pesquisa.

O docente deve ter como um dos objetivos principais formar seu aluno para

também trabalhar com autonomia, para enfrentar os desafios do meio em que atua e

para desenvolver a mesma atenção para o cuidar, tão fundamental nas áreas da

Saúde e Bem-estar.

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2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Para realização da revisão bibliográfica, inicialmente, concentramos esforços

na pesquisa de exploração do site do Banco de Teses da CAPES12 e da Biblioteca

Virtual da PUC/SP13.

Em um segundo momento, foi realizada a pesquisa de artigos em dois bancos

de dados que são referências: SciELO – Scientific Eletronic Library Online14,

considerado um modelo de publicação eletrônica de periódicos para países em

desenvolvimento, e a Biblioteca Virtual em Saúde – BVS15, uma iniciativa do

Ministério da Saúde e do Centro Latino Americano e do Caribe de Informação em

Ciências da Saúde BIREME/OPS/OMS16, em parceria com instituições nacionais.

2.1 Banco de Teses da Capes

A pesquisa considerou dissertações de mestrado (acadêmico e profissional) e

teses de doutorado, com defesas que aconteceram no período de 2010 a 2014.

Na busca básica pelo descritor “profissionalidade”, foi possível encontrar 36

registros, que puderam ser mapeados pelos diferentes contextos, conforme mostra a

tabela 1:

12

http://capesdw.capes.gov.br/, consultado no período entre 30/10/2014 e 07/01/2015. 13

http://biblio.pucsp.br/, consultado no período entre 30/10/2014 e 12/01/2015. 14

http://www.scielo.br/, consultado no período entre 01/05/2014 e 11/06/2015 – Coleção atual de 344 periódicos. 15

http://pesquisa.bvs.br/brasil/resource/pt/psi-45234, consultado no período entre 01/05/2014 e 11/06/2015. 16

http://bireme.br/bvs. A BIREME é um centro pertencente à Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), que, por sua vez, é o escritório da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o continente americano. Foi criada em 1967, com o nome de Biblioteca Regional de Medicina, mediante um convênio entre a OPAS e o Governo do Brasil, representado pelos Ministérios da Saúde e da Educação, a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo e a Escola Paulista de Medicina, hoje Universidade Federal de São Paulo. O nome foi mudado posteriormente para Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde, que melhor reflete seus objetivos e funções, mas a sigla BIREME permanece em uso.

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Tabela 1. Pesquisa bibliográfica pelo

descritor “profissionalidade” /

CAPES.CONTEXTO

QUANTIDADE

DE REGISTROS

Professores do Ensino Fundamental 11

Professores do Ensino Superior 10

Professores da Educação Infantil 8

Professores Pós-graduação lato sensu 2

Supervisor e Coordenador Pedagógico 2

Assistente Social 1

Jornalista 1

Professores do Ensino Técnico Profissional 1

Total 36

Vale destacar que:

a) A tese realizada no contexto do ensino técnico profissional foi defendida em

setembro/2012, no Doutorado em Educação da Universidade Federal de São

Carlos e realizada, portanto, em uma instituição pública;

b) No contexto da Saúde, encontramos um estudo sobre profissionalidade

docente na pós-graduação lato sensu em Docência para Enfermagem e dois

estudos sobre profissionalidade dos docentes dos cursos universitários,

sendo um da área de Enfermagem e outro da área de Medicina.

Refazendo a “busca básica” a partir dos nomes das áreas, encontramos os

seguintes resultados:

Tabela 2. Pesquisa bibliográfica pelas áreas dos cursos / CAPES.

TEMA GERAL QUANTIDADE DE

REGISTROS

Enfermagem 2.51017

Massoterapia 8

Podologia 2

Total 2.520

17

Na Introdução desta pesquisa, já chamamos a atenção para a alta quantidade de produções localizadas na área da Enfermagem (2.510), em relação às demais áreas pesquisadas, e levantamos a hipótese de que isso se dá por tratar-se de uma área que recebe estímulo por parte de seu Conselho Profissional (COREN), que estabelece, por exemplo, ao professor, o pré-requisito de ter especialização na área da Saúde, principalmente em docência, ou mestrado, para poder ser um supervisor de estágio.

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58

Em sua maioria imperativa, são dissertações e teses que trazem à luz

estudos de caso e aplicabilidade das áreas. Não foi possível considerar o resultado

da pesquisa para “Estética” e para “Segurança do Trabalho”, pois o resultado da

pesquisa englobava de forma massiva o uso dos termos “estética”, “segurança” e

“trabalho” e não foi possível refinamento que elucidasse a busca.

Sendo assim, nossa opção foi realizar a “busca avançada” por títulos e

descritores, cujos resultados foram:

Tabela 3. Pesquisa bibliográfica por títulos dos cursos / CAPES.

TÍTULO QUANTIDADE DE

REGISTROS

Técnico em Enfermagem 5

Técnico em Segurança do Trabalho 2

Técnico em Estética 1

Total 8

Devemos considerar que:

a) Para Técnico em Segurança do Trabalho, os estudos abordam a estrutura do

curso e a atuação profissional do técnico;

b) Para Técnico em Estética, surpreendentemente, temos um estudo sobre a

formação docente;

c) Para Técnico em Enfermagem, foram encontrados estudos sobre o sentido do

cuidado humano, sobre a importância das relações interpessoais e estudos

de caso;

d) Para Técnico em Massoterapia e Técnico em Podologia, nenhum registro foi

encontrado.

Para a busca avançada para “educação profissional” no título, foram

localizadas 117 dissertações de Mestrado Acadêmico e 37 teses de Doutorado. A

partir da análise dos resumos, foi possível constatar que a maioria das produções

pode ser considerada como estudos de caso. Exemplos de dissertações que

consideramos como estudos de caso:

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TENORIO, F. P. S. Educação profissional em saúde: as percepções dos

agentes comunitários de saúde no município de Itabaiana-SE. Dissertação

(Mestrado Acadêmico em Educação) – Fundação Universidade Federal de

Sergipe, 2011.

PIVA, M. E. Educação profissional brasileira e assistência estudantil nos

cursos técnicos: um estudo de caso no IFRS Campus Sertão. Dissertação

(Mestrado Acadêmico em Educação Agrícola) – Universidade Federal Rural

do Rio de Janeiro, 2011.

Em segundo lugar, encontramos diversas pesquisas que podem ser

consideradas como pesquisas históricas, as quais, em sua maioria, abordam a

história das políticas educacionais para a educação profissional, como por exemplo:

SANTOS, O. G. Americanismo e educação profissional: a implantação do

sistema de ensino técnico industrial na década de 1940. Dissertação

(Mestrado Acadêmico em Educação Tecnológica) – Centro Federal de

Educação Tecnológica de Minas Gerais, 2012.

De forma geral, foi possível localizar os seguintes registros por temática

estudada:

Tabela 4. Temáticas das pesquisas históricas / CAPES.

TEMÁTICAS

QUANTIDADE

DE

REGISTROS

Estudos de caso 68

Pesquisas históricas 26

Ensino-aprendizagem 15

Constituição docente / Saberes / Formação/Representações sociais docentes

12

Sistema de avaliação / Modelo por competências 10

Estudos de caso relacionados à área da Saúde (apenas 1 sobre Enfermagem)

6

Currículo 6

Inclusão de alunos com deficiência física 5

Egressos e mercado de trabalho 4

Evasão 2

Total 154

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60

Já para a busca avançada para “ensino técnico” no título, encontramos 31

registros, sendo 24 deles dissertações de Mestrado Acadêmico e 7 teses de

Doutorado. Novamente, a partir da análise dos resumos, foi possível observar as

temáticas:

Tabela 5. Temáticas da pesquisa bibliográfica pelo descritor “ensino técnico” / CAPES.

TEMÁTICAS

QUANTIDADE

DE

REGISTROS

Ensino técnico na Agropecuária (ensino-aprendizagem e recursos tecnológicos)

7

Formação de docentes – incluindo estudo para a área de Estética

5

Pesquisas históricas sobre o ensino médio (estudos comparados e o histórico no Brasil)

5

Alunos no geral 4

Enfermagem – estudos de caso (por exemplo, perfil da melhor idade)

2

Outros estudos de caso (violência e empreendedorismo) 2

Área Têxtil e Industrial 2

Área de Informática e o ensino de Inglês 1

Área de Radiotransmissão 1

Área de Química 1

Área de Música 1

Total 31

Realizando uma busca avançada de estudos que contivessem o nome da

instituição campo de pesquisa no título, foram localizadas 12 produções, todas com

temáticas diferentes e apenas uma do Estado de São Paulo. Já com o nome da

instituição campo de pesquisa no resumo, foram localizadas 31 produções.

Não foi possível localizar nenhuma dissertação com problema de pesquisa

relacionado à profissionalidade ou à formação docente, a partir da busca pelo

descritor “profissionalidade”.

Para os descritores “saberes + docentes”, localizamos 47 produções, que

abordavam, em sua maioria, a temática central da formação profissional ou o

resgate histórico dos saberes em distintas áreas do conhecimento.

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61

2.2 Biblioteca Virtual da PUC/SP

Foram pesquisadas dissertações de mestrado (acadêmico e profissional) e

teses de doutorado, datadas de 2010 a 2014.

Primeiramente, realizamos a busca simples refinada pela combinação

“educação AND profissional”. Foi possível constatar que o sistema buscou

dissertações e teses nos quais o campo “assunto” da ficha técnica referenciaram

“formação profissional”. O resultado para “dissertações” foi:

Tabela 6. Pesquisa bibliográfica pelo descritor “educação profissional” / PUC/SP.

CAMPOS OU TEMAS ESTUDADOS QUANTIDADE

DE REGISTROS

Matemática: ensino e formação de professores 20

Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem: ensino e formação de professores

8

Tecnologias de Informação e Comunicação TIC 7

Pedagogia: curso graduação 4

Educação permanente 4

Ensino a distância 2

Enfermagem: graduação 2

Audiovisual 1

Movimentos identitários e constituição docente 1

Ética - agentes comunitários de saúde 1

Medicina: formação de professores 1

Assistência Social 1

Administração: formação de professores 1

Educação física: formação de professores 1

Estatuto da Criança e do Adolescente ECA 1

Artes: ensino e formação docente 1

Total 56

Conforme observamos na tabela 6, é possível notar que:

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62

Existe um número considerável de dissertações relacionadas ao ensino e à

formação de professores na área da Matemática, com destaque para uma

produção que utiliza o conceito de “saberes”;

Apenas 4 (quatro) dissertações são do campo da Saúde.

O mesmo filtro foi escolhido para a categoria “teses” e apenas uma produção

foi encontrada, realizada:

BARREIRA, R. C. A. O projeto de vida profissional desenvolvido na

trajetória educacional e ocupacional da clientela do ensino técnico. Tese

(Doutorado em Educação: Psicologia da Educação) – Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, 2013.

Foi realizada também a busca por “profissionalidade docente”, com palavras

adjacentes, em que foram encontradas 3 (três) teses, sendo: uma realizada no

contexto da Matemática / ensino fundamental; outra, no contexto das escolas

públicas de ensino fundamental e médio (região metropolitana de São Paulo); e a

terceira utilizando a abordagem sociológica, com histórias de vida de três

professoras da educação básica.

Optamos por ampliar o período da busca para 2004 a 2014 e encontramos 3

(três) produções: uma dissertação focada na profissionalidade dos cursos técnicos,

realizada na mesma instituição campo desta pesquisa, datada de 2004, e duas teses

sobre profissionalidade docente no campo da Matemática, datadas de 2007 e 2009.

A dissertação encontrada sobre ensino técnico foi utilizada como minha

referência bibliográfica:

MERCADANTE, Márcia S. Profissionalidade docente na educação

profissional técnica de nível médio. 2004. Dissertação (Mestrado em

Educação: Currículo) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

2004.

Pela busca refinada das palavras adjacentes “saberes docentes”, voltando

para o período inicialmente proposto entre 2010 e 2014, foi possível encontrar um

trabalho de pós-doutorado, 10 (dez) teses e uma dissertação, em contextos

diversos, conforme segue:

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Um trabalho de pós-doutorado e duas teses no campo de pesquisa da

formação de professores do Programa de Educação: Psicologia da Educação

da PUC/SP;

Uma tese no contexto da graduação da mesma instituição campo de nossa

pesquisa, do Programa de Educação: Currículo da PUC/SP;

Uma tese da área de História, envolvendo a função do coordenador

pedagógico;

Quatro teses da área da docência da Matemática;

Uma tese para a formação em Pedagogia, também do Programa de

Educação: Currículo da PUC/SP;

Uma tese para educação de surdos;

Uma dissertação na área da História.

Ao realizarmos a busca pelos descritores das áreas de Enfermagem, Estética,

Massoterapia, Podologia e Segurança do Trabalho, para dissertações e teses, sem

período determinado, pudemos encontrar:

1 (uma) dissertação orientada por Bernadete Gatti sobre Massoterapia, no

curso de graduação em Fisioterapia, datada de 1989;

11 (onze) dissertações mais recentes sobre a área de Enfermagem, com

conteúdo específico da área.

2.3 Pesquisa de artigos – SciELO

Iniciamos a busca, considerando artigos publicados no Brasil, a partir do ano

2000.

A busca pelo descritor “ensino médio” não chegou a um resultado

significativo, apontando apenas 17 artigos produzidos. Da mesma forma, a busca

pelas áreas Podologia, Massoterapia, Estética e Segurança do Trabalho não nos

apontou produções. Apenas a busca pela área de Enfermagem apontou resultado

relevante: 270 artigos.

A busca pelo descritor “profissionalidade” foi bem sucedida, com o resultado

de 21 artigos, dentre os quais 11 são relacionados à profissionalidade docente.

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Para a busca por “educação profissional”, encontramos 74 artigos, sendo que

20 deles relacionam-se ao contexto da área da saúde, incluindo um sobre saúde do

trabalhador, que está diretamente relacionado à área de Segurança do Trabalho. Em

sua maioria, são artigos dos periódicos “Trabalho, Educação e Saúde”, “Saúde e

Sociedade”, “Revista de Saúde Pública”, “Educação em Revista”, “Revista Brasileira

da Educação” e “Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação”.

São exemplos desses artigos citados:

BARROSO, Maria Auxiliadora B. Os tutores do Proformar e a educação

profissional dos agentes de saúde pública: trabalho, meio ambiente,

educação e saúde. Trab. educ. saúde, mar/2005, v.3, n.1, p.51-74.

MOREIRA, Marilda. Repensando a avaliação: perspectivas criativas para a

educação profissional na área da saúde do trabalhador. Trab. educ. saúde,

set/2006, v.4, n.2, p.441-456.

PEREIRA, Isabel B. Tendências curriculares nas escolas de formação técnica

para o SUS. Trab. educ. saúde [online]. 2004, v.2, n.1, pp. 121-134.

SILVA, Ana Lúcia A. da. Educação profissional e gestão em saúde:

pressupostos teórico-conceituais na formação de profissionais de nível médio.

Trab. educ. saúde, Set 2005, v.3, n.2, p.351-370.

Dentre os 74 artigos encontrados, um foi realizado na instituição campo desta

pesquisa. Para citar:

GIUSTI, Sonia R.; LOPES, Jairo de A. Marcos interpretativos da história da

avaliação e sua expressão no SENAC/SP. Avaliação (Campinas) [online].

2007, v.12, n.4, pp. 739-750.

2.4 Pesquisa de artigos – Biblioteca Virtual de Saúde

Na busca pelo descritor “ensino técnico” no título, assunto ou resumo, desde

1977, foram localizados 12.117 artigos, sendo que:

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a busca foi feita no âmbito internacional. Desse resultado, apenas 95 são

produções de artigos brasileiros. Consideramos importante manter o número

internacional para demonstrar a produção restrita sobre o tema no Brasil;

a BVS congregou para essa pesquisa principalmente as bases MEDLINE -

U.S. National Library of Medicine e LILACS, considerado o mais importante e

abrangente índice da literatura científica e técnica da América Latina e Caribe;

não necessariamente abordam diretamente o tema “ensino técnico”, mas

tratam de prognósticos em formato de estudo de caso, em sua grande

maioria. Quando abordado o tema do ensino técnico, o maior número de

artigos está na área da Enfermagem.

Para o descritor “educação profissional”, não foi encontrado nenhum resultado

de pesquisa. Para o descritor “profissionalidade”, foram localizados 10 (dez) artigos

focados na profissionalidade docente.

Por se tratar de uma biblioteca especializada, foi relevante e pertinente

realizar a busca pelas áreas de formação envolvidas nesta pesquisa e comparar a

quantidade total de artigos no âmbito internacional com a quantidade de artigos

produzidos no Brasil, conforme mostra a tabela 7.

Tabela 7. Artigos disponíveis na BVS – áreas.

ÁREAS COM

DESCRITORES

TOTAL DE

ARTIGOS

INTERNACIONAIS

TOTAL DE

ARTIGOS

BRASILEIROS

% DE ARTIGOS

BRASILEIROS EM

RELAÇÃO AOS

ESTRANGEIROS

Podologia 1.694 1 0,1%

Massoterapia 14.942 124 0,8%

Estética 663 17 2,5%

Enfermagem 489.229 6.937 1,4%

Total 506.528 7.079 0,01%

Não foi possível o levantamento do descritor “segurança do trabalho”, pois o

sistema de busca mesclava um volume de produções relacionadas à segurança do

paciente na área de Enfermagem e da Medicina.

Esse quadro referente à produção de artigos retrata a falta de produções

acadêmicas, principalmente nas áreas de Podologia, Massoterapia e Estética.

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66

Os resultados gerais da pesquisa de revisão bibliográfica apontam a lacuna

existente no estudo da educação profissional, principalmente no contexto do eixo

tecnológico Ambiente, Saúde e Segurança.

Os artigos encontrados nos bancos de dados de referência apontam para

uma hipótese da valorização da educação profissional nas áreas de Saúde e Bem-

estar. Notamos que 27% dos artigos com o descritor “educação profissional”, no

SciELO, tratam do tema no contexto dessas áreas.

O conceito de “profissionalidade” é contemporâneo e ainda não se encontra

esgotado nas pesquisas. Mesmo tendo encontrado trabalhos sobre a formação

docente, fica claro que podemos e devemos estudar a formação dos docentes da

educação profissional. Nossa intencionalidade é realizar esta pesquisa privilegiando-

se a fundamentação com os saberes e com a constituição da profissionalidade.

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67

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Tendo feito a escolha pelo campo de estudo “educação profissional” e

considerando a disponibilidade e o interesse da instituição campo de pesquisa,

passamos a estruturar o planejamento da coleta de dados, considerando a

abordagem inicial aos sujeitos escolhidos.

Este capítulo apresentará um breve histórico sobre o SENAC São Paulo,

instituição campo de pesquisa, descreverá os sujeitos participantes desta pesquisa e

esboçará a organização da análise dos dados.

3.1 Sobre a instituição campo de pesquisa

Trata-se de uma instituição pioneira no desenvolvimento de cursos para a

educação profissional, que integrou o campo da Saúde logo no ano seguinte de sua

criação, nos idos de 1947 e 1948. O campo da Saúde surgiu em resposta a uma

demanda, minuciosamente avaliada institucionalmente, do Sindicato dos

Enfermeiros e Empregados em Hospitais e Casas de Saúde do Estado de São

Paulo, que buscava um parceiro para ofertar o curso preparatório do denominado

Exame de Classificação de Prático de Enfermagem.

Na década de 1960, a instituição passou a oferecer o extinto curso de

atendente de Enfermagem, que fora o embrião para as futuras formações como

Auxiliar e Técnico em Enfermagem. Essa iniciativa foi uma resposta à constante e

extremada carência de profissionais capacitados na área de Enfermagem. Os planos

de curso dessas formações sempre estiveram de acordo com o rígido Sistema de

Fiscalização do Exercício Profissional da Enfermagem.

Segundo Cordão18 (2011 apud ARONE e SANNA, 2011, p. 11), a instituição

se caracterizou entre as décadas de 1980 e 1990 como um:

18 Consultor educacional, com mais de 30 anos de experiência em Educação Profissional. Aposentado, mas sempre atuante na instituição pesquisada. Conselheiro do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, durante 18 anos; Vice-Presidente e Presidente da Câmara de Ensino de 2º Grau; Vice-Presidente e Presidente da Comissão de Planejamento; Vice-Presidente e Presidente do Colegiado; Presidente da Câmara de Ensino Médio, onde cumpriu mandato até 2000, na Câmara de Ensino Médio e na Comissão de Legislação e Normas. Conselheiro do Conselho Municipal de Educação de São Paulo: Conselheiro Titular, com mandato de 4 anos (94 a 98). Conselheiro do Conselho Nacional de Educação, Conselheiro Titular da Câmara de Educação Básica, com mandato inicial de 4 anos (1998/2002), tendo sido Vice-presidente da Câmara de Educação Básica no período 98/2000, e Presidente da Câmara de Educação Básica no período de 2000/2002, sendo reconduzido para um novo mandato de 4 anos (período de 2002 a 2006). Fonte: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/cur_cor.pdf. Acesso em: 07 jan. 2015.

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[...] centro de captação, geração e disseminação do conhecimento em Saúde, preparando-se condignamente para contribuir decisivamente na implantação da nova LDB – Lei Federal no. 9.394/1996, participando ativamente, também, do esforço de definição dos Parâmetros Nacionais para a Educação Profissional na área da Saúde.

Em 1994, a instituição possuía 13 títulos de habilitação técnica; em 2004, já

eram 65 títulos, conforme levantamento feito por Mercadante (2004). Segundo

dados da instituição, até 2014, quando ela completou 68 anos em atividade, eram

aproximadamente 50 títulos (apenas de habilitação técnica de nível médio), dentro

desses, 12 no eixo tecnológico Saúde e Bem-estar.

É necessário mencionar que o campo desta pesquisa é, também, o local de

trabalho da pesquisadora que, como tal, tem clareza dos cuidados que precisam ser

tomados para manter-se com esse olhar, suspendendo suas análises enquanto

funcionária da instituição.

3.2 Sobre os sujeitos participantes

Os sujeitos foram escolhidos a partir de suas áreas de atuação no SENAC

São Paulo – Unidade Jundiaí e de seu tempo na docência.

Tardif (2002) cita que autores como Huberman (1989), Vonk (1988) e Griffin

(1985), entre outros, consideram que o período crítico de constituição do que

entendemos atualmente por profissionalidade docente é o período entre os cinco e

os sete primeiros anos de carreira, “[...] um período realmente importante da história

profissional do professor, determinando inclusive seu futuro e sua relação com o

trabalho” (TARDIF, 2002, p. 84).

Segundo Tardif (2002, p. 84), “[...] autores interessados pela socialização

profissional dos professores [...] (Lortie, 1975; Gold, 1996; Zeichner & Gore, 1990)”

apontam duas fases relacionadas aos primeiros anos da carreira docente:

1) Fase de exploração (de um a três anos na profissão), considerada também

como a fase do “choque com a realidade”;

2) Fase de estabilização e de consolidação (a partir de três anos até sete anos

na profissão), considerada também a fase de foco no aluno e do aprendizado

com os pares.

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69

Priorizamos as entrevistas com sujeitos que já estejam na fase de

estabilização (período considerado crítico), ou que a tenham superado (ou seja, que

tenham superado o período crítico e permanecido na profissão). Os sujeitos

escolhidos a partir desse critério (período na docência) demonstraram interesse e

disponibilidade em participar voluntariamente da pesquisa.

Assim sendo, a tabela 8 nos possibilita ter uma visão geral dos sujeitos

escolhidos:

Tabela 8. Sujeitos pesquisados por tempo de docência.

TEMPO NA DOCÊNCIA QUANTIDADE DE

SUJEITOS

Menos de 1 ano 1

Mais de 1 ano até 3 anos 2

Mais de 3 anos até 7 anos 5

Mais de 7 anos 2

Total 10

Mantivemos um sujeito participante com experiência na docência inferior a

três anos, pois trata-se de um ex-aluno bolsista da instituição, que trilhou sua

trajetória profissional a partir de sua formação em Técnico em Segurança do

Trabalho e que optou pela trajetória docente na própria instituição, a partir dos

diferentes estímulos que recebeu por parte de seus docentes.

Todos os sujeitos escolhidos para participar da pesquisa são docentes pelo

regime de contratração CLT, por prazo indeterminado. Nenhum dos sujeitos atua

exclusivamente na docência. Em sua maioria, são profissionais liberais atuantes nas

áreas de Saúde e Bem-estar.

Os participantes foram esclarecidos sobre os objetivos da pesquisa e

assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (ver Anexo A), confirmando,

assim, suas participações voluntárias.

Com o objetivo de preservar a identidade dos participantes, seus nomes,

citados no quadro a seguir, são fictícios.

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Profissional Idade Formação

técnica Formação acadêmica

Pós-graduação Outra atividade desempenhada

Carga-horária semanal na

docência

Tempo na docência

Áreas nas quais leciona

GABRIELA 30 anos Não Fisioterapeuta

Gestão Integrada em Segurança do Trabalho, Qualidade, Meio Ambiente e Responsabilidade Social. Mestranda em Educação: Psicologia da

Educação

Fisioterapeuta domiciliar / Consultora

empresarial para Ergonomia

20 horas 7 anos

Segurança do Trabalho, Podologia,

Massoterapia e Estética

FRANCISCO 36 anos Sim Químico /

Engenharia (em andamento)

Docência para nível técnico / Mestrado interrompido

Consultor empresarial 30 horas 10 anos Segurança do

Trabalho

ANA 33 anos Sim Fisioterapeuta Osteopatias e Terapias manuais Fisioterapeuta

domiciliar / Massoterapeuta

20 horas 4 anos Podologia,

Massoterapia e Estética

CLARICE 45 anos Sim / SENAC Tecnólogo em

Podologia Microbiologia Podóloga 20 horas 3 anos Podologia

MARIA 55 anos Sim / SENAC Administrador de

empresas Estética Esteticista 15 horas 14 anos Estética

LUANDA 40 anos

Não. Mas Auxiliar

Enfermagem / SENAC

Enfermeira Não Enfermeira 20 horas 4 anos Enfermagem e

Podologia

NETO 29 anos Sim Engenheiro agrícola

e ambiental Engenharia de Segurança do Trabalho e

mestrando em Saneamento Engenheiro ambiental e

agrícola 15 horas 3 anos

Segurança do Trabalho

LORENA 41 anos Sim Bióloga Ecologia e Educação ambiental / Tratamento de

resíduos / Engenharia ambiental Consultora na área de

Segurança do Trabalho 30 horas 4 anos

Segurança do Trabalho

ÉRICA 38 anos Não Farmacêutica Cosmetologia / Gestão Hospitalar / Mestranda

em Saúde Pública

Esteticista e consultora na área médica-

hospitalar 20 horas 3 anos Estética

JÚNIOR 23 anos Sim / SENAC Administração de

empresas (incompleto)

Não Como técnico em

segurança do trabalho 18 horas 6 meses

Segurança do Trabalho

Quadro 1. Caracterização dos sujeitos pesquisados.

.

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3.3 Sobre as etapas da coleta de dados e a organização da análise

Uma vez feita a escolha dos sujeitos, na realização do plano da coleta de

dados fez-se necessário organizar a ordem adequada das ações programadas.

As entrevistas individuais foram priorizadas e serviram como etapa

preparatória para os momentos grupais previstos.

3.3.1 Primeira etapa: entrevistas com roteiro dirigido

Na primeira etapa, foram realizadas entrevistas com roteiro dirigido aos dez

docentes participantes, atuantes nas distintas áreas envolvidas na pesquisa:

Estética, Enfermagem, Massoterapia, Podologia e Segurança do Trabalho. As

entrevistas individuais foram priorizadas e serviram como etapa preparatória para os

momentos grupais previstos.

A opção pela realização de entrevistas se deu pela intencionalidade de

explorar melhor as informações, a partir do vínculo entre pesquisadora e

pesquisados, e por acreditarmos na importância do acompanhamento das reações e

das emoções dos pesquisados. Como apontam Moroz e Gianfaldoni (2006, p. 79),

“[...] a entrevista tem a vantagem de envolver uma relação pessoal entre

pesquisador/sujeito, o que facilita um maior esclarecimento de pontos nebulosos”.

Iniciamos o planejamento da entrevista com um roteiro dirigido, porém

semiestruturado, para possibilitar a exploração adequada das informações de cada

um dos participantes.

Nessa etapa, com base na referência dos estudos de Tardif (2002), já

apontados na fundamentação teórica desta pesquisa, buscamos investigar as

seguintes etapas da vida dos docentes:

Socialização primária: as fontes pré-profissionais dos saberes docentes;

Socialização profissional: as fontes do saber-ser docente.

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3.3.2 Segunda etapa: momentos grupais com encontros psicodramáticos

Na segunda etapa, os participantes foram reunidos em dois momentos

grupais, escolha metodológica que possui duas justificativas essenciais. A primeira é

trazer os sujeitos de pesquisa para um momento mais descontraído, em que possam

ser coletados dados para a pesquisa de forma mais espontânea e com suspensão

de juízo de valores, podendo-se chegar a uma construção coletiva mais criativa e

significativa. Conforme apontam Gonçalves, Wolff e Castelo (1988, p. 45), inspirados

na teoria moreniana, “[...] os recursos inatos do homem são a espontaneidade, a

criatividade e a sensibilidade [...]”.

A segunda razão deriva-se da vontade de investir no compartilhamento entre

pares, no processo de formação docente. Em Placco e Souza (2006, p. 69-70),

vemos que: “[...] Frequentemente, necessitamos do outro para tomar consciência de

nossas dificuldades e possibilidades. [...] Poder conversar e expor sentimentos é

saudável e necessário no processo de aprendizagem da docência”.

Pretendia-se, com isso, que esse momento coletivo fosse disparador de um

fortalecimento grupal, o que é facilitado pelo Psicodrama (ver Apêndice).

Placco e Souza (2006, p. 84) afirmam que:

A escuta e a valorização das contribuições de cada um facilitam a disseminação de ideias, o fortalecimento de vínculos e a apropriação das memórias e dos saberes individuais, que vão tecendo a história e a identidade grupal, num revezamento de lideranças e responsabilidades. A sistematização do vivido pelo grupo, a cada encontro, permite que o grupo se reconheça, se narre e se mantenha.

Para Nery (2010, p. 185):

[...] antes de termos um “eu”, desempenhamos papéis socioculturais. Somos “obrigados” a viver uma vida intermediada por símbolos construídos historicamente pelos indivíduos e grupos de nossa sociedade. A identidade é a inclusão total da mente humana na mente coletiva, ou a mente coletiva inserida na mente humana. Assim, por exemplo, antes de um indivíduo se definir como “judeu”, “negro” ou “médico”, ele vive em seu corpo (de maneira assemântica e pré-psíquica) a experiência sociodinâmica de ser judeu, negro ou médico e se torna “um” em cada um desses grupos sociais. Eis aqui o princípio da existência: a coexistência, o pertencer.

A escolha foi pelo método psicodramático conhecido como sociodrama, que

Nery (2010, p. 192) define como sendo:

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[...] uma ferramenta para a construção do diálogo empático e para a aprendizagem interpessoal e intergrupal. [...] E, assim, integramos o “eu” e o “social” [...]. Nossa maior oportunidade de exercer trabalhos e intervenções grupais está no sociodrama, pois ele trata de relações intergrupais, de ideologias coletivas, centrando-se nos denominadores coletivos e na Saúde coletiva.

Assim, desenvolvemos o segundo momento de coleta de dados com esse

recurso psicodramático. O objetivo, aqui, foi instigar a reflexão coletiva sobre o

ambiente da sala de aula, entendido como o desenvolvimento do “ser-em-relação” e,

consequentemente, os saberes docentes envolvidos em sua profissionalidade.

Foram realizados dois encontros psicodramáticos, com seis participantes dos

dez pesquisados, dentro da disponibilidade de agendas. Os encontros aconteceram

após a realização das dez entrevistas.

Dessa forma, baseando-nos no estudo de caso de Cervellini, Giro e Villela

(2008) e sendo a pesquisadora psicodramatista, propusemos a realização da

atividade da “CASA” no primeiro encontro, tendo como objetivo estimular a reflexão

sobre o lugar da docência nas vidas dos participantes. No segundo encontro,

focamos a reflexão na sala de aula e os sentimentos, expectativas e avaliações

desse lugar.

3.3.3 Terceira etapa: organização dos dados coletados

Como bem apresentam Moroz e Gianfaldoni (2006, p. 86):

É de fundamental importância que o pesquisador, após ter coletado os dados que poderão responder ao problema colocado, torne-os inteligíveis. [...] um conjunto de informações sem organização é de pouca serventia, daí ser importante o momento da análise dos dados, quando se tem a visão real dos resultados obtidos. [...] um processo de análise, termo que apresenta vários significados, dentre eles, decompor um todo em suas partes, esquadrinhar, examinar criticamente. [itálico das autoras]

Notamos que a entrevista favorece efetivamente a relação pesquisador/sujeito

de pesquisa, não apenas esclarecendo dúvidas, como também propiciando a

exploração de aspectos não previstos no planejamento que podem contribuir de

maneira muito rica para a pesquisa.

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Nessa etapa pré-profissional, encontramos informações relevantes sobre a

constituição da profissionalidade docente dos participantes desta pesquisa,

principalmente no que se refere às questões axiológicas familiares.

Entendemos que a amostragem de dez entrevistas, entre um universo de 40

docentes, aproximadamente, que atuam nos diferentes cursos das áreas de Saúde e

Bem-estar em uma das unidades da instituição campo de pesquisa, foi satisfatória

para esta pesquisa. Vale destacar que todos os docentes participantes aceitaram

participar do estudo pronta e voluntariamente. Todos se mostraram muito

disponíveis e interessados, o que pode reforçar a hipótese da lacuna existente de

pesquisas no âmbito da educação profissional.

A maioria das entrevistas foi realizada fora do local de trabalho. Notamos

diferenças nas entrevistas realizadas no local de trabalho e em locais externos

(residência dos pesquisados). No segundo caso, as entrevistas facilitaram a

disponibilidade e o aprofundamento das questões.

Todas as entrevistas foram realizadas e transcritas pela pesquisadora, o que

se revelou fundamental para a pré-análise e para a organização dos dados.

As informações das entrevistas foram um suporte para o encaminhamento

dos dois momentos grupais psicodramáticos. Detalhes dos encontros estão nos

processamentos psicodramáticos anexados à pesquisa (ver Apêndice).

A análise dos dados foi estruturada a partir do objetivo geral e dos objetivos

específicos desta pesquisa, com os eixos temáticos previstos no planejamento.

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4 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS DA PESQUISA

Os dados coletados nas entrevistas e nos encontros psicodramáticos foram

organizados, analisados e interpretados nos seguintes eixos temáticos:

Eixo das influências: dados sobre as trajetórias pessoais dos sujeitos

participantes, principalmente coletados na etapa da entrevista denominada

“pré-profissional”. Analisamos as influências marcadas nas fases de

socializações primária e escolar, dando destaque aos “professores internos”,

que foram citados de forma espontânea e intensa por todos os sujeitos. Além

disso, foi possível explorar a trajetória dos docentes na educação profissional

e na educação continuada, como alunos, e apontar semelhanças de suas

histórias de vida com as histórias de vida de seus alunos;

Eixo da profissionalidade: dados que possibilitam a análise de aspectos

constitutivos da profissionalidade docente, a partir das experiências vividas

pelos sujeitos pesquisados como alunos e de suas memórias afetivas. Após a

investigação sobre o início de suas carreiras na docência, foi possível

explorar o processo de constituição da profissionalidade, a relação aluno-

docente, o convívio em sala de aula e a responsabilidade em ser docente na

educação profissional. Um importante destaque foi dado à análise da

profissão declarada pelos entrevistados e a sua intencionalidade de

permanência na docência;

Eixo dos saberes docentes: dados sobre os referidos saberes, de acordo com

a reorganização de categorias proposta nesta pesquisa: saberes

profissionais-experienciais, pedagógicos, pessoais e do profetizar;

Eixo das ações formativas: dados que nos permitiram avaliar a percepção dos

docentes quanto às ações formativas propostas pela instituição campo de

pesquisa. Refletimos também sobre os momentos de compartilhamento entre

pares.

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4.1 Eixo das influências

Partirmos de Tardif (2002, p. 67) para justificarmos a investigação feita nesta

pesquisa sobre as fontes influenciadoras e disparadoras do processo de constituição

da profissionalidade docente e do desenvolvimento dos saberes:

Essa inscrição no tempo19

é particularmente importante para compreender a genealogia dos saberes docentes. De fato, as experiências formadoras vividas na família e na escola se dão antes mesmo que a pessoa tenha desenvolvido um aparelho cognitivo aprimorado para nomear e indicar o que ela retém de experiências. [...] Os vestígios da socialização primária e da socialização escolar do professor são, portanto, fortemente marcados por referenciais de ordem temporal.

Tardif (2002, p. 71) também nos ajuda a compreender o conceito de

socialização:

A socialização é um processo de formação do indivíduo que se estende por toda a história de vida e comporta rupturas e continuidades. [...] trata-se de representar os desempenhos e as capacidades sociais e culturais dos indivíduos, que são ricas, variadas e variegadas, graças a um conjunto mais restrito de saberes subjacentes que permitem compreender como esses desempenhos são gerados. A ideia de base é que esses “saberes” (esquemas, regras, hábitos, procedimentos, tipos, categorias etc.) não são inatos, mas produzidos pela socialização, isto é, através do processo de imersão dos indivíduos nos diversos mundos socializados (famílias, grupos, amigos, escolas etc.), nos quais eles constroem, em interação com os outros, sua identidade pessoal e social. (grifo nosso)

Sendo assim, primeiramente, organizamos os dados sobre as trajetórias

pessoais dos docentes participantes desta pesquisa, no que se refere à socialização

primária e escolar, a partir dos quais foi possível identificar:

Socialização primária (influência familiar);

Socialização escolar e professores internos;

Trajetória dos pesquisados na educação profissional;

História de docentes e de alunos que se cruzam;

Educação continuada.

19

Segundo o próprio autor, trata-se do tempo tal como é vivido, e não do tempo cronológico expresso em termos de datas precisas. A reconstituição do desenvolvimento dos saberes docentes não pode ser confundida com a composição de crônicas ou com o estabelecimento de uma cronologia de experiências.

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4.1.1 Socialização primária: influência familiar

A pesquisa de Raymond, Butt e Yamagishi (1993 apud TARDIF, 2002, p. 73)

esclarece que:

[...] a vida familiar e as pessoas significativas na família aparecem como uma fonte de influência muito importante que modela a postura da pessoa toda em relação ao ensino. [...] Acrescentam-se também a isso experiências marcantes com outros adultos, no âmbito de atividades extraescolares ou outras (atividades coletivas: esportes, teatro etc.). (grifo nosso)

A influência familiar de parentes considerados próximos pelos próprios

pesquisados é marcante, em suas trajetórias pessoais. A frase “O estudar sempre

esteve dentro de casa”, dita por Gabriela, uma das docentes pesquisadas, descreve

com assertividade o contexto familiar da maioria dos sujeitos pesquisados. As

influências familiares estão relacionadas tanto àquelas recebidas de parentes que

atuam profissionalmente na Educação, como às que tenham recebido a partir da

experiência educacional ou profissional de um familiar.

Entre os dez pesquisados:

7 (sete) têm familiares próximos (pais, irmãos, tios) que atuam na área da

Educação;

1 (um) tem primos mais distantes que atuam na Educação;

2 (dois) não têm familiares com atuação na Educação.

Neto, logo no início de sua entrevista, já mencionou:

Minha mãe é professora há 30 anos. Eu sempre tive a intenção de fazer o mestrado para dar aula. Eu gosto de trabalhar com grupos, com rodas de discussões, com palestras. A proximidade com a escola, pela minha mãe e pelos professores, acabou me inspirando. (Neto) (grifos nossos)

Chamou nossa atenção a influência que Gabriela recebeu da figura de seu tio

professor. Podemos, ainda, apontar muitos elementos que mostram a familiaridade

dela com o ambiente escolar:

Minha mãe em casa dava aulas particulares de Matemática, então eu acompanhei muito o lecionar da minha mãe, mesmo ela não sendo o professor padrão de sala de aula. Mas meu tio, irmão da minha mãe, que viveu [...] na verdade, eu vivi com ele na casa da minha vó, é professor. Eu

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acompanhei muito a vida deste professor que é meu tio. Quando eu já era adolescente, eu fui ter aulas com o meu tio. O estudar sempre esteve dentro de casa. O que é interessante também [...] Eu acho válido contar [...] é que meu pai fez faculdade enquanto eu era criança. Então eu ia para a escolinha e meu pai ia para a faculdade. (Gabriela) (grifos nossos)

Emoção e comoção marcaram a fala dos pesquisados logo na etapa inicial da

entrevista. No caso de Gabriela, ela se comoveu ao se lembrar de seu pai, falecido

precocemente aos 52 anos:

E eu via o quanto isto [referindo-se ao fato de o pai cursar a faculdade] envolvia nossa dedicação familiar. Tudo precisava dar certo para meu pai conseguir ir para a aula à noite. De uma forma indireta, ele também foi meu professor. Ele acompanhou a minha vida de escola. (Gabriela) (grifos nossos)

Tanto Gabriela como Ana, ambas com pais falecidos e que,

coincidentemente, são da mesma área de formação – a Fisioterapia –,

emocionaram-se e resgataram a figura do pai como educadores, mesmo sem

atuação profissional deles na Educação. Ana relatou o seguinte:

Meu pai não era da Educação, mas ele era muito autodidata e lia muito. Eu cresci ouvindo histórias e ele sempre me incentivava dando livros [de presente]. Naquele jeito italiano de ser, ele achava, por exemplo, um absurdo você não saber referências geográficas. Minha referência foi bem em casa. (Ana) (grifos nossos)

Após o término da entrevista, Ana, já fora da sala, e em pleno corredor lotado

de alunos que esperavam pelo início das aulas, demonstrou muita emoção e disse:

Como a gente se emociona ao contar nossa história! Eu queria muito que meu pai me visse aqui, hoje. (Ana)

Outro testemunho destacável está na história da família de Luanda. A

valorização da Educação e da escola sempre esteve dentro de sua casa:

A minha família sempre foi muito rígida. [...] Eu estudei toda minha vida em escola pública. Meu pai fazia um concurso com a gente “Quem tirava mais dez”. O filho que tirasse mais notas dez ganhava um presente no final do ano. Então a gente sempre foi muito competitivo na escola. Apesar de ser uma família pobre [...] minha mãe era manicure e meu pai, estivador [...]. Não é comum isso em uma família assim. [...] Hoje eu olho pra trás e percebo que não é comum a vida que a gente teve. Nós tínhamos a hora de ir pra escola, hora de estudo, hora do almoço. Nós tínhamos hora pra tudo. Ah! E tinha também uma aula de reforço. Não era uma aula a mais, paga.

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Era uma aula pra comunidade mesmo. E minha mãe dizia: “Não, vocês vão pra essa aula de reforço aí!”. Então eu sempre fui direcionada pra estudar. Tinha que estudar! Educação! Minha irmã mais velha foi tanto “secretária” dos professores, que o sonho dela era ser professora. Tanto que hoje ela é pedagoga. Então, eu terminei a quarta série dentro de casa e depois eu fui para uma escolinha no bairro da frente. Imagine, na minha casa: “Eu quero ser médica”, “Eu quero ser cirurgiã”, “Eu quero ser professora”, “Eu quero ser aviador” e “Eu quero ser lixeiro”. Eu acho que nós não nascemos assim. Eu acho que a Educação e o ambiente onde você é criado influenciam muito. Nós fomos muito competitivos, mas não competitivos assim, que machuca e que fere. Era uma competitividade saudável. Era assim: “quem aprende mais” e “quem ensina melhor”. Tinha uma coisa na nossa família que eu não vejo nos irmãos, hoje, observando, por exemplo, na minha casa com meus dois filhos. Minha irmã mais velha falava e era lei. Eu falava: “Estou com dificuldade em História”. Minha irmã [a pedagoga] já falava: “Eu vou dar aula de História pra você!” Minha irmã ainda falava mil vezes mais coisas do que era dito na sala de aula. (Luanda) (grifos nossos)

Encontramos, na fala de Luanda, a influência de sua irmã pedagoga, além de

um interessante aspecto cultural da região de Belém, cidade onde ela morava com

sua família:

São gritos de guerra das escolas. Eu sempre fiz parte da Educação no Pará. Eu participava de concurso de redação. Eu era “xaréu”, campeã em redação. Minha irmã era “piramutaba”, campeã em alguma coisa. [...] São nomes de peixes. E até em casa a gente se tratava assim: “Sua piramutaba! Sua educação nem chega perto da minha. Eu sou xaréu!” [...]. Bem... é coisa de indígena também. Eu, em casa [...] nem preciso falar, pois acho que você já percebeu isso em mim, [...] eu visto a camisa de onde eu estou. Então eu era “xaréu”, e não tinha outra escola melhor no Pará! Era a minha escola. A escola não era da Prefeitura. A gente cresceu ouvindo que pra ser alguém na vida a gente tinha que fazer Paes de Carvalho [a escola pública municipal]. São onde estão os melhores professores. Eu sempre valorizei muito aquilo que é meu. Não tem melhor lugar do que o meu! Eu aprendi a valorizar. (Luanda) (grifos nossos)

Luanda demonstrou, em sua fala, admiração por sua irmã pedagoga:

Com certeza sempre me serviu de espelho. De postura também. Eu gosto da postura com que ela dá aula. Ela já dava aula pra gente quando a gente era pequenininha. Eu ficava encantava. E digo pra você [...] digo também bastante pros alunos: “Se você prestar bem atenção na aula, nem precisa tanto estudar!” (Luanda)

O compartilhamento do resgate da Educação, na história de Luanda,

enriqueceu nossos dados. A questão cultural, que nos remete a um passado da

época do Brasil Colônia, prolongou a investigação sobre o valor da Educação na

família de Luanda:

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Era indígena mesmo [referindo-se à avó materna]. [Os avós paternos] Portugueses. [...] Da parte da minha mãe, eu só conheço meus avós. Porque índios não têm parentes. Eles não são como a gente e tem avó, avô, tios. Eles vivem todos em uma comunidade. Acho que minha mãe tinha três irmãos que eram assim, indiozinhos como ela. Ela deixou a tribo quando tinha quatro anos. Pelo que relata a minha mãe, acho que foi cólera o que deu na tribo. Ela conta que os índios defecavam e dois, três dias depois, morriam. A tribo teve que ser evacuada. [...] Na parte onde ficavam os índios, na Ilha de Marajó. Eles [a família de sua mãe] foram pra uma casa no centro de Belém. Só que, quando as índias chegaram lá, elas se maravilharam. Índia já é meio assanhada, né? Minha avó foi uma. O que ela fez? Ela chegou na cidade e deu minha mãe para uma família desconhecida. Deu o outro irmão dela pra outra família e sumiu. Eu acho que a parte da educação que minha mãe teve foi por isso. Nós não sabemos de verdade qual é o nome de nossa família, porque todas as índias mulheres viraram “Marias” e os índios viraram “Raimundo”, “João” e outros nomes bíblicos. A minha avó era Maria Madalena. Minha mãe é Maria das Graças. Tinham muitas “Marias” e muitos “Josés”. E o sobrenome “Monteiro” foi inventado. Não existe uma árvore genealógica da família Monteiro. A família que criou a minha mãe era uma família muito rica e todos eles estudavam. Acho que daí veio a admiração de minha mãe por essas pessoas e ela pensava que, quando tivesse a família dela, seria assim também. Todo mundo estudando. Porque ela via o que o estudo poderia proporcionar pras pessoas. Foi daí que ela disse: “Todos os meus filhos vão estudar pra ser alguma coisa!” [...] Depois dos treze anos [idade que tinha quando os pais se separaram], eu tinha [o estudo] como um escape, pela falta que sentia do meu pai, pela destruição na família, daquela estrutura familiar que conhecia. O estudo era então uma coisa presente. Não tinha para onde correr. Eu dependia de mim. Eu mergulhei no estudo como uma terapia. Acho que foi a melhor coisa que eu fiz. As pessoas tomam um monte de coisa. Eu preferi ler, estudar e mergulhar naquele conhecimento. (Luanda) (grifos nossos)

O relato de Luanda nos remeteu novamente ao estudo de Raymond, Butt e

Yamagishi (1993 apud TARDIF, 2002, p. 73):

Diversos trabalhos biográficos [...] permitem identificar experiências familiares, escolares ou sociais [...] como fontes de suas convicções, crenças ou representações e apresentadas frequentemente como certezas, relacionadas com diversos aspectos do ofício de professor. (grifos nossos)

Para finalizar este subitem, que trata da influência familiar, citamos apenas

mais uma fala, agora do docente pesquisado Júnior:

Meu irmão é professor. Ele trabalha com projetos sociais e no CEU

20,

dando aula de Educação Física. Tenho também alguns tios e primos, mais distantes. Tenho bastantes familiares que trabalham na Educação. (Júnior) (grifo nosso)

20

“O Centro Educacional Unificado (CEU) é um complexo educacional, esportivo e cultural caracterizado como espaço público múltiplo. Todas as unidades são equipadas com quadra poliesportiva, teatro, playground, piscinas, biblioteca, Telecentro e espaços para oficinas, ateliês e reuniões. [...] Os espaços são abertos à comunidade, inclusive aos finais de semana. Com programação variada para todas as idades, os CEUs garantem aos moradores dos bairros mais afastados acesso a equipamentos públicos de lazer, cultura, tecnologia e práticas esportivas, contribuindo com o desenvolvimento das comunidades locais.” Disponível em: http://portalsme.prefeitura.sp.gov.br/Anonimo/CEU/apresentacao.aspx?MenuID=159&MenuIDAberto=135. Acesso em: 18 jul. 2015.

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4.1.2 Socialização escolar e professores internos

Tardif (2002, p. 68-69) reafirma constantemente a importância de:

[...] uma bagagem de conhecimentos anteriores, de crenças, de representações e de certezas sobre a prática docente. Ora, o que se sabe hoje é que esse legado da socialização escolar permanece forte e estável através do tempo. [...] tudo leva a crer que os saberes adquiridos durante a trajetória pré-profissional [...], sobretudo quando da socialização escolar, têm um peso importante na compreensão da natureza dos saberes, do saber-fazer e do saber-ser.

Indubitavelmente, as lembranças mais marcantes do tempo de escola dos

sujeitos pesquisados estão relacionadas aos seus professores. É importante

destacar que a primeira pergunta da entrevista não foi direcionada à investigação

quanto a eles, no entanto, mesmo sem esse direcionamento, os professores foram

citados espontaneamente nas primeiras respostas de todos os pesquisados. Em

duas entrevistas, referências aos professores surgiram antes mesmo de a pergunta

ser feita, enquanto os pesquisados narravam sua trajetória escolar.

Uma das primeiras frases de Ana, por exemplo, foi:

Quero fazer a diferença pros alunos, porque eu tive um professor que fez a diferença para mim. (Ana)

Maria também trouxe a lembrança de uma professora:

Tem uma outra professora que dava Artes e falou muito sobre História da Arte. Com a minha veia por Arquitetura, eu me deliciava quando ela falava sobre a Grécia

21. (Maria)

Neto trouxe uma reflexão sobre seus professores, que nos remete ao

contexto da profissionalidade docente e ao saber pessoal dos docentes:

Tem professores que marcam mais pelo modo de lidar com o aluno. Isso faz muita diferença. Isso a gente vai percebendo com o tempo. É lógico que eles tinham conhecimento também. Mas a proximidade entre professores e alunos fez muito bem pra turma. (Neto) (grifo nosso)

21

A história da Grécia está muito relacionada à história da Estética.

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Muitos dos professores são, ainda, figuras presentes para os pesquisados,

como percebemos nas falas de Érica, de Maria e de Ana:

Tem uma professora de Biologia. [...] Inclusive, no meu aniversário, ela me ligou, pois conseguiu meu contato pelo Facebook

22. Eu até chorei.

Da minha vida escolar, eu me lembro mais dos professores de 5ª. a 8ª. série. É deles que eu tenho mais saudades. Da professora de Química, de Biologia. (Érica) (grifo nosso) Tem uma professora que, de vez em quando, eu ainda me encontro com ela aqui na região. [...] Ela era minha professora de História. Outro dia mesmo, encontrei com ela e eu estava com minha filha. Tive o maior prazer em contar que minha filha é historiadora. Essa professora também me marcou muito. (Maria) (grifos nossos) Eu inclusive encontrei esses dias uma professora minha que tinha me dado aula lá na 6ª. ou 7ª. série, na linguagem que se usava antes. Ela foi minha professora de Ciências. Eu me considerada uma ótima aluna na área das Biológicas. (Ana) (grifo nosso)

A influência dos professores, os quais, aqui, propomos denominar

“professores internos”, foi percebida na fala de todos os pesquisados. Por meio de

seus exemplos e de suas ações, esses professores contribuíram não apenas com a

formação de seus alunos (sujeitos desta pesquisa), em um momento do passado,

como também com a constituição da profissionalidade destes, que se tornaram

docentes hoje.

Tardif (2002, p. 68) reforça que:

[...] uma boa parte do que os professores sabem sobre o ensino, sobre os papéis do professor e sobre como ensinar provém de sua própria história de vida, principalmente de sua socialização enquanto alunos.

Outro dado de destaque é o fato de a maioria das lembranças do tempo de

escola estar concentrada na fase do ensino médio e/ou do curso técnico.

Dentre os sujeitos pesquisados23:

2 (duas) docentes resgataram lembranças marcantes da fase do berçário e

da pré-escola, sendo que uma delas foi para escola com um ano de idade e a

outra, aos quatro anos;

9 (nove) resgataram lembranças do ensino médio e/ou do curso técnico;

22

Rede virtual de relacionamento. 23

Há sujeitos pesquisados que se recordaram de mais de uma fase marcante em sua trajetória escolar, razão pela qual a somatória de sujeitos, aqui, ultrapassa a quantidade de dez.

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3 (três) resgataram lembranças marcantes do seu tempo de faculdade;

Nenhum resgatou lembranças marcantes da pós-graduação.

Falas que exemplificam o resgate de lembranças do contexto do ensino

médio e/ou do urso técnico são:

No colegial, eu me lembro de algumas aulas de Biologia. Eu me lembro de uma aula de Geografia e eu me lembro de algumas aulas de História. Se você me perguntar sobre o assunto que foi dado, como foi dado e as palavras do professor, eu sei te responder! (Gabriela) O aprender [...] os colegas de escola [...] as brincadeiras [...] as escolas mesmo [...] eu passei por seis escolas diferentes. Tinha uns professores bem legais. As professoras invocavam com o jeito que eu escrevia [...] O suplício com a Matemática veio desde a primeira série. (Francisco) A referência maior pra mim foi no curso técnico, sem dúvida. O César foi meu primeiro mestre. Eu o tenho como mestre até hoje. Uma referência maravilhosa para mim. (Ana) Eu gostava da área de Biologia. Meu professor me convidou para ajudá-lo no laboratório da escola. Daí eu descobri a Biologia. Mas eu sempre quis fazer a faculdade de Biologia para trabalhar nas indústrias. (Lorena)

Vale destacar um fato percebido: as docentes pesquisadas que fizeram um

curso técnico referem-se a seus docentes chamando-os de “mestres”. Assim como

Ana, Maria também é um exemplo desse fato:

Eu, felizmente, tive um professor que é minha referência até hoje. Meu mestre! [...] Eu tinha pavor de agulha. Ele me ensinou a usar a agulha pra drenar pústula, pra fazer eletrolifting. [...] Bom, perdi o medo de agulha. Podia chegar aquele caso pior de acne que eu cuidava! (Maria) (grifo nosso)

Arroyo (2000, p. 18) nos ajuda a resgatar o sentido do termo “mestre”:

[...] Ofício de Mestre porque nos remete a nossa memória. [...] A educação que acontece nas escolas tem, ainda, muito de artesanal. Seus Mestres têm que ser artesãos, artífices, artistas para dar conta do magistério. O saber-fazer, as artes dos Mestres da educação do passado deixaram suas marcas na prática dos educadores e das educadoras de nossos dias.

A fala de Júnior nos mostrou a lembrança da relação que tinha com os

docentes. Os professores foram significativos apoiadores em sua trajetória

educacional, no curso técnico:

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Eu lembro muito do curso técnico mesmo. Porque ali, além de ir buscar o que era a Segurança [do Trabalho], eu tive professores que me apoiaram bastante em momentos difíceis. Em momentos difíceis, sabe? Sabe quando a gente pensa em desistir, em parar? Eu tive professores que me ajudaram: “Peraí! Por que é que você quer desistir?” (Júnior) (grifo nosso)

Ao ser questionado sobre outras lembranças do tempo da escola, Júnior

resgatou mais lembranças de professores:

Tem muitos professores que me ajudaram no lado pessoal mesmo, desde a época da escola. Tem outros professores que me marcaram pelo jeito de ensinar na escola. Pela metodologia. Às vezes uma dinâmica diferente... Isso acabou me marcando bastante. (Júnior)

Pudemos perceber, nesse trecho da entrevista de Júnior, o quanto o ensinar

exige o querer bem aos educandos e a disponibilidade para o diálogo (FREIRE,

2002), conforme desenvolveremos mais adiante, no eixo dos saberes docentes.

Na sequência, expandimos a reflexão sobre os professores que marcaram

suas trajetórias na socialização escolar. Para percebermos a dimensão desses

dados, temos a resposta de Gabriela, em formato de pergunta:

Tem que ser um só [professor que marcou sua trajetória]? (Gabriela)

Arroyo (2000, p. 17) também nos ajuda a entender o conceito que propomos

de “professores internos”. O autor diz: “Guardamos em nós o Mestre que tantos

foram. Podemos modernizá-los, mas nunca deixamos de sê-lo. Para reencontrá-lo,

lembrar é preciso” (grifo nosso). Nesse sentido, podemos observar os tantos

“mestres” de Arroyo que estão implícitos na fala de Gabriela.

Foi possível apontar, neste momento da análise de dados, a identificação dos

docentes pesquisados com seus professores internos.

Em falas citadas anteriormente, notamos o destaque dado aos professores

das áreas de Ciências e de Biologia. Consideramos essa informação coerente com o

fato de que estamos investigando docentes das áreas de Saúde e Bem-estar.

Temos outros dados de reforço nas falas de Clarice e de Ana:

E ela [referindo-se à professora de Ciências] nos levou até a Faculdade de Medicina para ver os fetos e algumas partes anatômicas. E o despertar foi lá. Tenho certeza. Eu gostei muito disso. Inclusive, quando eu me encontrei com ela por acaso [...] - foi em um evento, eu olhei e disse: “Com certeza, você jogou a semente e eu lhe agradeço por isso.” Ela ficou super

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contente em me ver, se emocionou e disse que nunca imaginava isso. E foi lá [na Faculdade de Medicina]! Eu me lembro disso. Das aulas de Exatas, eu não tenho boas lembranças [...]. O que eu mais me recordo, falando de matérias e aulas, foi desse momento [na Faculdade de Medicina]. E, claro, momentos com alunos, com professor! (Ana) (grifos nossos)

Mas o que me marcou muito foram minhas aulas de Ciências. Era um professor que eu gostava muito. Eu me identificava muito [com o professor]. Ninguém gostava dele. (Clarice) (grifos nossos)

Contudo, faz-se necessário expandir aqui a reflexão sobre esses “professores

internos”. Se, como em Placco e Souza (2006, p. 75), “[...] o adulto aprende por meio

de suas experiências de vida”, podemos entender que a essência do que vamos

tratar sobre a constituição da profissionalidade docente está nos modelos e

exemplos de professores que os sujeitos pesquisados trazem consigo. Suas marcas

de aprendizagem são tão fortes, que esses professores ainda vivem internamente

dentro de cada um dos sujeitos, e isso se manifesta em suas práticas atuais em sala

de aula.

A força dos “professores internos” foi percebida nas entrevistas e isso nos

incita a refletir sobre a consciência de cada docente acerca de sua prática, partindo

da consideração sobre o quanto de seus professores internos cada docente

pesquisado, que está na sala de aula de hoje, percebe existir em si.

Como primeiro exemplo, temos a influência do mestre César na constituição

da profissionalidade docente de Ana:

O César era um cara assim [...] oriental. Oriental gosta de tudo cheio de regras. Ele olhava aquele aluno que ele via que não tinha potencial, mas queria ajudar. Ele falava: “Tenho que ajudar esse cara!” Ele gostava de mexer com essas potências. Ele gostava de despertar as pessoas que achavam que não tinham dom. Tanto eu não me esqueço disso que, na primeira aula de Shiatsu que eu dou para uma turma [...] - Shiatsu é o monstro em um primeiro momento para os alunos [do Técnico em Massoterapia], pois é meio difícil mesmo [...] -, eu uso a frase dele: “Eu vou fazer vocês amarem isso. A minha missão é fazer com que vocês se apaixonem.” Ele tinha paixão por aquilo e fazia as pessoas gostarem. As pessoas eram contagiadas. Ele era assim. Ele olhava o aluno no olho e falava assim: “Vamos!”. Ele era muito cartesiano e muito certinho. Eu tenho ele fortemente como referência. (Ana)

Outro exemplo é o relato de Maria:

Eu ia mal em Português. Eu tinha uma professora muito rigorosa. E você percebeu, né? Eu tenho uma preferência por professoras bem enérgicas. Eu tive até que buscar aula particulares de Português, porque eu não sabia nada de redação. Minhas redações eram muito pobres e ela falava na frente

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de todo mundo, sabe? Ela tinha até um jogo de tômbola com o qual ela sorteava o que a gente ia responder da tarefa. Então não adiantava contar em qual ia cair porque ela sorteava. E eu estava mal. Eu tinha duas notas vermelhas e se eu tivesse uma terceira, eu ia reprovar. Naquela época, reprovava-se em tudo. (Maria)

Maria tem consciência do quanto sua observação atenta como aluna lhe foi

válida na constituição da profissionalidade docente e no fortalecimento do saber

pedagógico de uma aula prática:

Eu fui aprendendo na prática. A gente aprende com acertos e erros. E observando. [...] Eu sempre observei muito os meus professores. Em todos os cursos que eu ia [...], eu ia assim meio que pegando o que cada um tinha de bom, de positivo. Eu observava pontos de identificação. (Maria)

Outro caso claramente percebido como identificação é o de Lorena:

Eu vejo hoje a minha professora de Botânica. Eu olho a Sílvia e vejo uma pessoa jovem e moderna nos estudos mesmo. Eu me vejo um pouco nela. (Lorena)

Luanda resgatou uma aprendizagem marcante com uma professora sua:

Toda vez que eu penso em um professor, eu penso nela. Foi a primeira vez que um professor entrou na sala de aula dizendo quem ele era e acho que isso não mais aconteceu na minha vida escolar. Eu gostaria de ter a paciência que ela tinha. Eu aprendi a formalidade com ela. (Luanda)

Gabriela também assumiu usar frases que não de sua própria autoria:

Eu me pego usando umas frases que não são minhas. [...] Outro dia, na última aula da Podologia, elas estavam em dúvida sobre as células. [...] Eu me lembrei daquelas músicas que os professores usavam nas aulas do cursinho, lá trás. A música está tão clara na minha cabeça. Elas [as alunas de Podologia] acharam linda. Eu disse que a autoria não era minha e me lembrei na hora do meu professor de Biologia do cursinho. Tem muita coisa que a gente traz. Eu tenho muito da minha orientadora quando digo: “Vamos, gente. Se vira. Vai”. (Gabriela) (grifos nossos)

Clarice compartilhou:

Teve na faculdade um professor que era bem “carrancudo”, mas que dominava sua aula perfeitamente. Era a disciplina de Processos Biológicos. [...] Eu gostava dele pela rigidez e pelo jeito que ele dava aula. As suas explicações eram de fácil entendimento, embora as pessoas não gostassem da disciplina, porque era pesada. [...] Eu não tinha dificuldade. Eu gostava do jeito dele. Isso me marcou. Ele entrava na aula, dava o recado dele e ia

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embora. Ele não estava lá para brincar Era um professor que eu gostava bastante. Eu não perdia um minuto da aula dele. [...] Eu tenho uma lembrança, quando eu fiz uma redação. A professora leu, falou que estava horrível, amassou e jogou no lixo na minha frente. Isso me marcou muito negativamente. E assim [...] eu comecei a me cobrar muito para melhorar a escrita. Eu fazia a lápis. Depois eu revisava o texto. Eu procurava palavras no dicionário para ver se estava tudo certo. Eu olhava para ver se a pontuação estava certa. E nem sempre tudo estava mesmo certo. Eu me cobrava, porque eu não queria decepcionar a minha professora. (Clarice) (grifo nosso)

Por fim, encontramos na fala de Francisco o desejo explícito de ser como seu

professor:

Peguei com ele quatro exames. Professor de Cálculo, da faculdade. Era um professor muito bacana e competente. Eu nunca questionei o fato de ficar de exames. Mesmo não sendo químico, ele foi eleito paraninfo da turma. Eu disse para ele: “Se eu for um décimo do professor que o senhor foi com a gente, eu já estarei contente!”. (Francisco)

Francisco é hoje um docente que tem um elevado grau de exigência quanto

às aulas de Cálculo, na Segurança do Trabalho, e citou seu exemplo como aluno em

sala de aula, colocando-se na posição de seus alunos.

Todos os casos trazidos pelos sujeitos pesquisados são exemplos reais da

falsa dicotomia entre seriedade docente e afetividade, como já destacava Freire

(2002, p. 159):

Não é certo, sobretudo do ponto de vista democrático, que serei tão melhor professor quanto mais severo, mais frio, mais distante e “cinzento” me ponha nas minhas relações com os alunos, no trato dos objetos cognoscíveis que devo ensinar. A afetividade não se acha excluída da cognoscibilidade.

4.1.3 Trajetória dos sujeitos pesquisados na educação profissional

A passagem pela educação profissional, na trajetória dos docentes, enquanto

alunos, não é um pré-requisito obrigatório para sua contratação, nem foi considerada

um critério para a escolha dos sujeitos desta pesquisa. Mesmo assim, alguns

números se destacam, pois entre os dez docentes pesquisados:

4 (quatro) foram alunos de um curso técnico da própria instituição campo de

pesquisa;

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1 (uma) docente fez a formação em Auxiliar de Enfermagem na instituição

campo de pesquisa;

2 (dois) foram alunos de curso técnico em outras instituições;

3 (três) não fizeram um curso técnico, dentre os quais 2 (dois) declararam

arrependimento por não terem feito a escolha por tal.

Maria, praticamente vivenciando uma profecia autorrealizadora, recordou:

Eu até me lembro do nome dessa professora do curso de depilação... Ela disse assim para minha irmã: “A tua irmã precisa fazer um curso técnico. Com um curso técnico, ela vai longe”. (Maria) (grifo nosso)

Entre os pesquisados que não realizaram um curso técnico, está Gabriela

que, mesmo sem essa formação, declarou ter pensado sobre essa possibilidade e

ainda trouxe novamente uma marca de influência familiar em sua fala:

Eu tive uma tendência muito forte para fazer um curso técnico. Eu tinha a vontade, mas me faltava coragem. Eu tinha um pouco de medo de [...] de [...] enfrentar o mercado de trabalho. Eu achava que eu ainda não tinha o tino e a maturidade. (Gabriela)

Ao ser perguntada se vinculava os cursos técnicos com o mercado de

trabalho, Gabriela respondeu:

Imediatamente. A concepção até familiar era essa. (Gabriela)

Neto também expressou arrependimento em sua fala, por não ter realizado

um curso técnico:

Eu não tenho formação técnica. Esse contato com o curso técnico é muito mais prático do que a graduação. Eu sinto falta de ter feito um curso técnico. Eu aconselho todos hoje a fazer. (Neto) (grifo nosso)

Outro exemplo relacionado à valorização do curso técnico é o de Júnior, que

foi influenciado por seu pai, no momento da escolha pela área de Segurança do

Trabalho. Mesmo tendo iniciado a graduação em Administração, Júnior abandonou a

graduação logo após seu primeiro ano de estudo, para fazer um curso de Técnico

em Segurança do Trabalho no SENAC:

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Meu pai é formado na área. Além de o meu pai ser policial militar aposentado, ele é formado em Segurança do Trabalho. Então a influência que ele teve foi grande. Ele me ajudou a decidir. Quando eu fui fazer Administração, ele falava “Faz o curso de Técnico em Segurança [do Trabalho]! Faz primeiro um curso técnico!” [...]. Ganhei uma bolsa de estudos no SENAC e comecei a estudar da uma às cinco da tarde. [...] Eu pensei: “Não vou ficar parado diante desta oportunidade!”. Em questão de um mês, eu consegui um estágio e fui atuar em Engenharia, em um canteiro de obras. [...] Teve um técnico lá que me deu um apoio muito grande para eu poder seguir [com os estudos]. Ele me carregava para os treinamentos, me mostrava o porquê a Segurança do Trabalho era importante. A empresa tinha uma visão que privilegiava a Prevenção. Aí eu me apaixonei pela área ainda mais. (Júnior) (grifos nossos)

O elevado índice de empregabilidade imediata para os alunos do curso

técnico foi evidenciado em outras falas, como nos casos de Luanda e de Francisco,

que também foi influenciado por seu pai:

Me chamaram no dia seguinte pra dizer que eu estava empregada. Eu perguntei: “Mas como eu faço? Eu me formei ontem!”. Ela me falou pra vir no SENAC e falar que tinha conseguido um emprego. [...] Eu terminei o curso e já fui empregada! Depois é que eu fui fazer a faculdade. (Luanda)

Eu queria ser veterinário até a minha oitava série. [...] Meu pai me sugeriu o curso técnico em Química [que era a própria formação de seu pai]. Eu sempre gostei da área de Ciências. [...] Minha família não tinha muitas condições e eu precisava trabalhar. [...] O primeiro estágio que fiz foi com 17 anos. Sem o estágio do curso técnico, eu não teria tido condições de pagar a minha faculdade. [...] O curso técnico me deu amadurecimento. (Francisco) (grifos nossos)

Outra docente que apontou a valorização do curso técnico em sua trajetória

educacional foi Ana:

Meus professores [do curso Técnico em Massoterapia] eram fisioterapeutas e eu comecei a trabalhar com um deles. Eu queria algo relacionado à Massoterapia, algo manual, que trabalhasse com o ser humano diretamente. E aí fui fazer Fisioterapia e me encontrei novamente. Eu disse: “Bom. Acho que estou no caminho certo”. [...] minha grande referência foi o curso técnico. (Ana) (grifo nosso)

Lorena contribuiu, em sua entrevista, ampliando a discussão sobre o quanto

um curso técnico pode remeter o estudante à sua realidade e sobre o quanto uma

chefia direta pode estimular os estudos de seus funcionários, além de nos mostrar

novamente o aspecto prático da formação de um curso técnico:

Eu fiz primeiro o Auxiliar de Enfermagem. Eu fui fazer um estágio em um hospital na região. Mas quando eu fui pra prática, eu não me identifiquei

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com a profissão. [...] Fui registrada como Técnica em Meio Ambiente. Eu acabei ficando lá [na primeira empresa empregadora] por 14 anos. E teve uma mudança, pois a área de Meio Ambiente foi integrada à Segurança do Trabalho. Eu tive um chefe que enxergava longe e me sugeriu fazer o curso Técnico em Segurança do Trabalho. [...] Eu aprendi com ele essa história do embasamento legal. Ele foi me lapidando, durante um período. (Lorena)

E assim, resgatamos, em todas as entrevistas, a trajetória pelo curso técnico

dos docentes pesquisados, ou, no caso de alguns deles, o que foi pensar sobre a

possibilidade de tê-lo cursado.

4.1.4 Histórias de docentes e de alunos que se cruzam

A autonomia é um conceito-chave no contexto da formação profissional na

instituição campo desta pesquisa, conforme já tratamos anteriormente.

Notamos, pelas entrevistas, que alguns docentes vivenciaram a experiência

da autonomia em suas formações, o que nos remete, diretamente, ao nosso

referencial teórico freireano.

Ficou evidente o momento no qual Gabriela assumiu o papel de protagonista.

Foi a aluna entrando no papel de protagonista na faculdade. O aprender a aprender

foi despertado nesse momento. A autonomia, tão apreciada e discutida em seu

ambiente profissional atual, foi percebida, pela primeira vez, durante a sua

graduação:

Acho que foi na faculdade que o aprender a aprender ficou mais claro para mim. Tinha situações em que o professor chegava e falava: “Ah! Vocês não sabem resolver esse caso? Se virem e resolvam. É um ótimo momento para vocês pesquisarem sobre o sistema renal aqui, na casa de vocês, ou na biblioteca. Se virem. Eu quero isso aqui resolvido”. Era um pouco assim: vivam, resolvam, aprendam. Aprendam a aprender e me tragam o que vocês conseguirem. E é uma situação que, sozinho, você não dá conta. Você precisa muito do coletivo. [...] Quem mais me marcou foi minha orientadora na faculdade. [...] Porque ela tinha um jeito de me mostrar o quanto eu tinha que ser autônoma. Ela me marca exatamente porque ela me dá, não só a liberdade, mas a responsabilidade. Ela me mostrava por onde eu tinha que ir, mas não o que eu tinha que fazer. Eu tive momentos de crises com ela. (Gabriela) (grifo nosso)

Visivelmente, Gabriela, por esse motivo, declarou:

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Acho que as coisas que mais me marcaram de toda essa trajetória foram na faculdade. Eu acho. Foi uma quebra de paradigmas muito grande. Foi um marco. (Gabriela)

Nessa direção, Maria também declarou:

O docente tem muita autonomia e o aluno também. (Maria)

Os caminhos entre docentes e alunos se entrelaçam também quando

encontramos a docente que vê sua história se multiplicar nas histórias de vida de

suas alunas:

Eu fiquei muitos anos sem estudar, pois eu estava casada, tive um filho, depois o segundo e o terceiro. E só depois da separação eu voltei a estudar. [...] A grande maioria são mulheres que ficaram muitos anos sem estudar. Elas estão voltando agora a estudar. São casadas, têm filhos e estão buscando melhorar suas vidas. Tem uma identificação aí. [...] Elas encontram na Podologia a possibilidade de crescer e há uma identificação entre o docente e as alunas. (Clarice)

É importante destacar a maneira como Clarice narrava a história de sua aluna

de 42 anos. Sem demonstrar intencionalidade no fato, ela falava sobre as

expectativas dessa aluna, que busca uma profissão, além de ser mãe e esposa,

como se fora uma frase de sua autoria. Tal fala se assemelha muito à história de

vida de Clarice. É nítida a semelhança entre a história de Clarice, mãe e esposa,

que ficou praticamente 17 anos afastada dos estudos, com a história de sua aluna

de 42 anos, que busca, na formação, sua autonomia.

No mesmo sentido, temos a fala de Érica:

Eu fui buscar a Estética para ter autonomia e diminuir o meu ritmo de trabalho. [...] Hoje eu atendo todas as minhas vizinhas no condomínio. (Érica)

4.1.5 Educação continuada

Mesmo sem ter feito parte das lembranças mais marcantes do tempo da

escola, a escolha pela pós-graduação está diretamente vinculada à atuação

profissional dos sujeitos pesquisados – não necessariamente priorizando-se a

carreira docente –, e foi valorizada pela maioria deles.

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Entre os dez pesquisados24:

8 (oito) já concluíram pelo menos uma pós-graduação lato sensu;

3 (três) estão com a pós-graduação stricto sensu em andamento;

1 (um) está com a segunda graduação em andamento;

2 (dois) pensam ainda em fazer uma segunda graduação;

2 (dois) pensam ainda em fazer uma pós-graduação stricto sensu.

Gabriela nos mostrou como se deu seu processo de escolha pela pós-

graduação:

Eu sentia, enquanto profissional, que eu precisava me capacitar e entender mais sobre o todo do curso no qual eu estava lecionando. [...] Quando eu comecei a perceber que minhas aulas em Segurança do Trabalho, só em Ergonomia, não seriam suficientes para atender à demanda da instituição, eu comecei a querer entender muito mais sobre o que fazia o Técnico em Segurança do Trabalho. Daí, eu fui fazer a pós [em Gestão Integrada em Segurança do Trabalho, Qualidade, Meio Ambiente e Responsabilidade Social]. (Gabriela)

Gabriela iniciará o Mestrado no Programa de Educação: Psicologia da

Educação da PUC/SP, no segundo semestre de 2015, como um investimento em

sua carreira docente, como aconteceu com Clarice:

[...] Eu fui para a Microbiologia estudar bactérias, fungos e vírus. Isso acaba ajudando nas aulas de contaminação e biossegurança. Eu acabei gostando muito. (Clarice)

A constituição da profissionalidade docente pode ser considerada como um

estímulo constante à continuidade de estudos. Clarice demonstrou sua preocupação

em buscar formações (graduação em Fisioterapia e pós-graduação em Microbiologia

e em Docência no Ensino Superior na Saúde) que contribuíssem para seu

desenvolvimento como docente na Podologia.

De forma semelhante, a escolha pela pós-graduação se deu nos casos de

Maria e Francisco:

24

Há sujeitos pesquisados que possuem mais de um curso questionado, razão pela qual a somatória de sujeitos, aqui, ultrapassa a quantidade de dez.

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E a pós-graduação veio por causa da docência. De novo, eu sentia falta de um embasamento porque eu dava aula, mas eu precisava ainda de algo mais profundo do que eu sabia sobre dar aula. Mesmo fazendo um curso, não focado na docência. Fiz uma pós-graduação lato sensu em Estética. Tinha a parte de Didática no Ensino Superior voltada para docência. (Maria) As aulas no TST [Técnico em Segurança do Trabalho] me estimularam demais a procurar a formação em Engenharia. (Francisco)

Valorizamos esse dado da pesquisa pela constatação de um movimento de

influência inversa, pois a experiência como docentes na educação profissional

incitam os sujeitos pesquisados a estudar e a buscar aperfeiçoamento constante.

Afinal, como afirmam Placco e Souza (2006, p. 23), “[...] o ato de conhecer é

permanente e dialético”.

4.2 Eixo da profissionalidade

Partimos do entendimento de que a constituição da profissionalidade docente

passa pelo fazer de forma processual, gradual e constante. Tal processo se dá in

loco, ou seja, essencialmente na sala de aula, e com o grupo, considerando o “ser-

em-relação” moreniano ou o “ser Presente no mundo” freireano.

Como vimos também em Courtois (1996, p. 172 apud LÜDKE e BOING, 2010,

p. 1): “ [...] a profissionalidade leva mais em conta a história pessoal, social, técnica

e cultural do indivíduo.” Daí, a coerência de uso desse conceito, ao propormos esta

pesquisa com sujeitos que se tornaram docentes, sem terem passado por uma

formação prévia na Educação.

O futuro docente inicia seu processo de constituição da profissionalidade

desde suas primeiras experiências escolares, na infância. A evolução dessa

constituição se dá a partir de seu processo de integração ao ambiente escolar e dos

vínculos significativos construídos com familiares, colegas de classe e professores.

Esses fundamentos teóricos preliminares foram o alicerce para a elaboração

de questões investigativas que efetivamente contribuíssem para as respostas aos

objetivos desta pesquisa. Na mesma perspectiva, os encontros psicodramáticos com

os sujeitos participantes foram planejados levando-se em consideração os mesmos

fundamentos e com o intuito de aprofundar a reflexão sobre esse docente como

“ser-em-relação” na sala de aula, contextualizado em seu universo particular, que

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abrange sua família, sua vida pessoal, suas redes de relacionamento e,

principalmente, sua profissão, digamos, “de formação” ou “de origem”.

Dessa forma, obtivemos dados que nos auxiliam na reflexão sobre:

a profissionalidade em constituição: aluno ontem, docente hoje;

as memórias afetivas do tempo de escola;

o início da carreira docente;

o processo de constituição da profissionalidade;

o docente aprende com o aluno;

o docente aprende na sala de aula;

a profissão “declarada”;

a responsabilidade de ser docente na educação profissional;

a intencionalidade de permanência na docência.

4.2.1 A profissionalidade em constituição: aluno ontem, docente hoje

Como Tardif (2002, p. 68) nos sinalizou: “Uma boa parte do que os

professores sabem sobre o ensino, sobre os papéis do professor e sobre como

ensinar, provém de sua própria história de vida, principalmente de sua socialização

enquanto alunos” (grifo nosso).

A maioria dos pesquisados demonstrou, desde cedo, interesse e gosto pelos

estudos. Quando alunos, eram bem avaliados e determinados. Encontramos sinais

significativos de autodisciplina e de um elevado nível de autoexigência como alunos.

Entre os dez pesquisados que participaram desta pesquisa:

4 (quatro) declararam-se alunos com desempenho acima da média, por sua

dedicação;

5 (cinco) declararam-se bons alunos;

1 (uma) declarou ter se tornado uma boa aluna.

De maneira representativa, demonstraram gosto pelos estudos e pela leitura,

como apontam Ana e Luanda, em suas falas:

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Meus irmãos mais velhos liam muito. Quando eu era mais nova, eu não gostava de ler. Me despertou o interesse pela leitura quando eu encontrei um tema que eu gostava. [...] Quando eu comecei a estudar no colégio. Eu comecei a me interessar no colégio. Mas, me interessei mesmo quando eu comecei a lidar com o ser humano na transição do técnico, com certeza. Comecei a engolir os livros. Antes eu lia, mas não com o mesmo gosto, com certeza. Tinha um professor no curso técnico [em Massoterapia] que estimulava muito a gente a buscar respostas na literatura da área. Isso me ajudou bastante. (Ana) Eu gosto muito de livros. Eu adoro! (Luanda)

Encontramos outras falas importantes, quando os docentes de hoje

relembram os alunos que foram no passado:

Eu falo para esta menina parar de estudar! (Gabriela, interpretando a fala de sua mãe) Aluno é aluno. Tem aqueles momentos de descontração. Como aluno, eu sempre fui aquele cara muito extrovertido. Eu sempre fui aquele de falar bastante na sala de aula e de perguntar bastante. Alguns professores ficavam até bravos. Outros professores até gostavam porque deixa a aula até mais dinâmica. Eu fui esforçado. Fui estudioso. Nunca fui um aluno de tirar notas baixas. Tirava nota da média pra cima. Eu sempre procurei me esforçar bastante para tirar as melhores notas. (Júnior) [...] na minha vida escolar, eu nunca tive problema. Eu sempre fui uma aluna que aprendia com muita facilidade. Tive minhas preferências, depois que eu comecei a estudar Ciências e Biologia. Eram disciplinas com as quais eu em identificava mais. [...] Nunca reprovei. Sempre fui uma aluna com menção boa. (Clarice) Na minha essência, eu sempre estudei. Eu nunca fiquei sem estudar [...].Eu podia ainda ser melhor. Talvez por conta de outras complicações. Eu já tinha os dois meninos [dois filhos]. Começou a complicar um pouco e eu achava que eu podia ser melhor do que eu fui [referindo-se à sua Graduação]. Aproveitar mais a faculdade. Até o Paes de Carvalho [sua escola no ensino médio], com meus dezessete anos, eu fui uma aluna exemplar. Eu ainda não encontrei em sala de aula uma aluna como eu era, porque, por exemplo: o SENAC dá o livro para o aluno. Se caísse o “Saber”

25 nas minhas mãos, eu teria lido logo no meu primeiro mês de

SENAC e estaria dizendo para o professor: “Professor, tem outro livro?”. (Luanda) Nunca tive muita dificuldade. Eu sempre gostava da aula de Matemática, Física, Química. Sempre passei sem recuperação. (Neto)

Maria citou seu desempenho escolar logo quando falávamos das lembranças

marcantes do tempo de escola:

25

Aqui, Luanda refere-se a: PIANUCCI, Ana. Saber cuidar: procedimentos básicos de Enfermagem. São Paulo:

SENAC, 2002. Trata-se de um livro que compõe a bibliografia básica do curso Técnico em Enfermagem.

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Eu sempre estudei muito. Eu sempre gostei muito de estudar e ficava muito preocupada quando eu não aprendia. Eu ia atrás de aula particular. Eu sempre me interessei e eu sempre quis tirar nota boa. Pra mim mesma, sabe? Eu não me conformava em ficar na média para passar e também não me interessava me sobressair, mas eu tinha que dar o melhor de mim. (Maria)

Por fim, Érica, a única a não se mostrar como uma boa aluna na escola,

disse:

Como aluna, cheguei a ser reprovada por comportamento. Aprendia rápido demais e desconcentrava as colegas. [...] Depois da reprova, eu comecei a pegar gosto pelos estudos. (Érica)

Para os pesquisados, a constituição de sua profissionalidade docente esteve

presente em sua fase pré-profissional, quando ajudavam seus amigos e/ou

familiares com os estudos, quando participavam ativamente de grupos de estudos,

ou, ainda, quando desenvolviam atividades como monitores de seus professores.

Dentre os pesquisados26:

6 (seis) ajudavam seus amigos e/ou familiares a estudar;

9 (nove) participavam de grupos de estudos em sua formação na graduação

e/ou na formação tecnológica;

2 (dois) foram monitores de seus professores.

Percebemos em Gabriela a vontade de ajudar e a consciência sobre o quanto

se aprende ao ensinar:

Mas, os meus amigos, eu ajudava. [...] Porque eu acho que foi o que minha mãe me ensinou: “Trace a linha [do tempo], que você não se esquece!”. Eu tracei a linha para muitos amigos e eu nem era tão boa em História. Eu queria ajudar os demais. Eu aprendia mais quando eu estudava com eles. Eu gostava dessa proposta de tentar ensinar. Eu não sabia tudo. (Gabriela)

Gabriela também nos relatou sua experiência como monitora:

Aula, aula, enquanto docente contratada, não. Mas, eu fui monitora da Fisiologia. Então, eu não tinha que ficar com o pincel lá na frente da mão, mas eu era monitora. Isso fazia com que eu tivesse que me preparar. [...] quando eu via, todo mundo já estava sentado em roda comigo. Isso hoje faz sentido como aula para mim, mas eu não podia considerar naquela época

26

Há sujeitos pesquisados que possuem mais de um curso questionado, razão pela qual a somatória de sujeitos, aqui, ultrapassa a quantidade de dez.

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que eu estava dando aula. Até porque nem na minha cabeça era aula. Não era aula. (Gabriela)

Ficou evidenciado, na fala de Maria, o vínculo afetivo criado em um grupo de

estudos:

No ensino fundamental e médio, eu tinha um grupo maravilhoso. A gente estudava junto e se divertia. Essa lembrança é muito gostosa. A gente frequentava uma escola super rigorosa, mas nunca tivemos problemas. [...] Com as colegas na faculdade, eu fazia grupos de estudo. No final de semana, em época de provas, uma ajudava a outra. (Maria)

Clarice, Francisco e Ana também falaram sobre suas experiências com

grupos de estudos:

Sempre que a gente podia, a gente fazia grupos de estudo, principalmente na faculdade. Inclusive, foi meu professor, que é o coordenador do curso de Podologia, que identificou esta possibilidade de dar aula. Porque ele me via liderando os grupos de estudo. (Clarice)

Grupo de estudos na faculdade. A gente se reunia aos sábados à noite para estudar. Os quatro [amigos do grupo] se formaram juntos. (Francisco) Sempre [ajudava os colegas]. Na verdade eu... a princípio, não gostava, pois parecia que sempre sobrava para mim, mas depois eu percebi que, quando ajudava, eu percebia que eu aprendia umas coisas. (Ana)

E finalizamos com o depoimento de Luanda, que demonstrou o valor que

dava à Educação, desde sua adolescência:

A primeira vez que prestei vestibular foi quando eu tinha dezessete anos. Depois dei aula nessa época sem saber. Talvez por ver minha irmã crescer querendo ser professora, já tentando o Magistério. [...] Era pros meus colegas, como ajuda. Como minha mãe e meu pai tinham poucos recursos, para eu conseguir ter livros, eu dava aula e ajudava meus amigos a fazerem trabalhos. Um chegava e falava: “Eu estou com dificuldade em Matemática”. Aí eu dizia: “Tudo bem. Eu te ajudo, mas você me dá um livro seu?”. Eu acho que eu era bem mercenária nesse sentido. Eu acho, quando eu olho pra trás. Todo mundo achava que eu ia ser negociante. Eu sempre trocava o estudo por alguma coisa. Tudo bem, eu te ensino, mas estou precisando daquele livro de Português. Você pode me emprestar para eu xerocar? Mas daí todo mundo acabava me dando o livro. Eu sempre tive muitos livros dados por colegas que eu ajudava. Quando eu prestei vestibular, eu dei aula para dez alunos. Eles não me pagavam em dinheiro. Eles me davam livros, enfim, qualquer coisa. Mas eu ganhei muito livro, ajudando o pessoal a estudar para o vestibular. Tem um menino que me disse um dia que nem tinha mais livro em casa para me dar e me perguntou: “Serve livro de poesia?”. (Luanda) (grifos nossos)

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98

Todas essas experiências como alunos marcaram a trajetória educacional dos

sujeitos desta pesquisa e são constituintes de sua profissionalidade docente, além

de influenciarem o desenvolvimento dos saberes.

4.2.2 Memórias afetivas do tempo de escola

Todos os pesquisados recordaram-se com muita facilidade de seu tempo de

escola, ou seja, de seu tempo como alunos. Encontramos emoção e afetividade

pela escola, de maneira bem espontânea, nas respostas a uma das perguntas

iniciais do roteiro.

Ao serem questionados sobre sua vida na escola, obtivemos respostas

marcantes, como a de Gabriela, que fez questão de enfatizar que nunca saiu da

escola, depois de seu primeiro dia de aula:

O primeiro dia foi bem marcante [...] e, desde então, eu estou na escola. [..] Sinto que eu não saí da escola. (Gabriela) (grifo nosso)

Ao ser perguntada sobre suas memórias afetivas sobre essa época, Gabriela

respondeu:

São muito fortes. [...] Eu reafirmo que eu não saí da escola. Eu não me vejo fora da escola. [...] Eu me senti muito perdida fora da escola. E eu falo muitas vezes isso na sala de aula. Eu falo: “A gente não está aqui para ter aula maçante. A gente está aqui para construir. Quando a gente constrói, a gente aprende. E se a gente dá risada, se emociona, se a gente consegue fazer associações, isso marca para o resto da vida. Se for algo para a gente passar, só por passar, é só mais um dia nas 1.200 horas que a gente vai passar aqui dentro”. (Gabriela) (grifos nossos)

Nesse importante trecho da entrevista, percebemos o quanto Gabriela vive a

vida na escola desde sua infância e o quanto isso é constituinte de sua

profissionalidade. Gabriela transpôs instantaneamente sua emoção para a sala de

aula e demonstrou-se preocupada e interessada em envolver seus alunos da

mesma forma como foi envolvida. Ao mesmo tempo, coloca alunos e docentes no

mesmo movimento do “aprender”, como veremos adiante.

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Ainda na perspectiva das lembranças dos tempos da escola, encontramos

traços significativos da memória afetiva e das marcas da escola, que alguns

docentes levam consigo e que definem sua profissionalidade.

Gabriela nos falou abertamente sobre suas memórias afetivas e, ao se

recordar de objetos, lugares, sentimentos e pessoas, se emocionou de tal forma que

sua fala passou a se assemelhar à fala de uma criança. Aparentemente, ela reviveu

fortemente sua infância escolar por meio das recordações provocadas pela

entrevista:

Eu lembro que tinha que colocar o uniforme. Eu me lembro perfeitamente dele. Era um shortinho baloné, com uma blusinha quadriculadinha vermelha. Isso era muito marcante. O uniforme era marcante e a entrada da escola era marcante. Eu passo hoje em frente dessa escola e acho que ela não é tão grande quanto parecia antes. Para mim, ela era gigante. Quando eu entrava, tinha uma rampa supercomprida. A gente subia aquela rampa. Então era um ritual que era gostoso de viver. [...] Eu tenho boas recordações. Eu acho que tinha nessa escola uma coisa muito importante: um lúdico muito forte por trás de tudo que a gente fazia. Então eu me lembro bastante como a gente aprendia com o lúdico. Eu lembro do tanque de areia, do parquinho. E do quanto aquilo ali não era só um espaço para se divertir. Era um espaço para se divertir e um espaço para entender. A gente dividia espaço, coisas, comida, lanche. Era bem assim. (Gabriela) (grifos nossos)

Maria também resgatou elementos de sua memória afetiva, ao se recordar do

momento em que a Estética surgiu em sua vida. São resgates mnemônicos de sua

adolescência que a remetem hoje para sua profissão:

Na verdade, ela [a Estética] já existia e eu não sabia, porque, desde menina, eu comprava Revista Claudia e Revista Nova. Colecionava recortes. Estava sempre por dentro dos produtos, sabe? Sempre gostei de me cuidar e então ela já estava aí. (Maria)

Ana, logo no início da entrevista, resgatou um momento que vivenciou,

quando criança, que está relacionado às suas atividades profissionais de hoje, tanto

como fisioterapeuta, quanto como massoterapeuta e docente:

Eu me lembro até hoje da cena de minha mãe me levando para a escola. Eu lembro disso até hoje, acredita? [...] Eu tinha de seis para sete anos e estava no primeiro “aninho” da escola... eu me lembro de uma professora chamada Angélica que fazia com a gente momentos de relaxamento e respiração. Nossa! Nunca mais me esqueci disso! [...] Eu nunca mais esqueci disso. Muita coisa passa batido, mas disso eu me lembro perfeitamente! Vem a cena dela sentada, na minha cabeça. (Ana)

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Por último, trazemos a fala de Érica, que ingressou cedo na escola, com um

ano de idade:

Fui pra escola com um ano de idade. Eu lembro de algumas passagens quando eu era pequena, no pré. Eu me lembro que eu gostava muito da cor verde-água. Eu pintava todas as princesas da cor verde-água. Continuo gostando da cor até hoje. [...] A escolinha chamava Babylandia. Me lembro da minha professora. Tenho as fotos. E me lembro do meu amigo Pablito. Tenho ele como amigo até hoje. (Érica)

Érica é farmacêutica, com pós-graduação em Cosmetologia, e realiza

atendimentos estéticos como atividade profissional, além da docência. Podemos

relacionar o glamour da Estética ao glamour das “princesas” de sua infância.

A memória, segundo Placco e Souza (2006, p. 27), “[...] é ponto de partida e

de chegada; ela nos enche de sentido. [...] a memória mistura tudo: sensações,

emoções e lembranças”. É condição para a constituição da profissionalidade

docente, uma vez que “[...] é matéria-prima para a possibilidade de transformação.

Abre-se o projeto, alteram-se pontos de vista, incluem-se outros olhares, realizam-se

novas escolhas, abandonam-se ou confirma-se certezas anteriores” (PLACCO e

SOUZA, 2006, p. 35).

Os recursos mnemônicos que abrem projetos, alteram pontos de vista,

incluem olhares e realizam escolhas estão exemplificados nas “princesas de Érica”,

“nas revistas Claudia da adolescente Maria” e no “tanque de areia de Gabriela”.

Notamos que, se o objetivo desta pesquisa fosse o estudo sobre a memória

na constituição identitária dos docentes, os dados das entrevistas nos dariam grande

suporte para essa análise.

4.2.3 O início da carreira docente

Outro dado que nos chama a atenção, nesta análise, é o fato de que a

minoria dos pesquisados já tinha o desejo ou a intenção de se tornarem docentes.

Dentre os dez participantes:

7 (sete) nunca pensaram que seriam docentes um dia;

3 (três) já pensavam em atuar na escola como docentes, desde sua época

como alunos.

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Ao responder sobre quando e como a carreira como docente teve início,

Gabriela afirmou que ela sempre esteve presente em seus projetos profissionais:

Eu acho que sempre ficou claro que eu queria dar aula, independente do lugar que eu estivesse. (Gabriela)

Já para Francisco, o despertar para a docência surgiu em função de uma

demanda mercadológica:

O mercado de trabalho estava em baixa em 2004. Eu não tinha pretensão de começar a carreira docente logo no início. Mas aqui em Jundiaí tinha um déficit absurdo de professor de Química. Eu ouvi que faltavam 60.000 professores de Química no Brasil. Daí, eu me cadastrei na Secretaria Municipal de Educação. (Francisco)

Nos casos de Érica e Ana, a docência surgiu a partir de oportunidades que

lhes foram apresentadas por amigos:

Eu trabalhava no Hospital Universitário. Eu tinha uma amiga que dava aula no curso técnico. Ela precisou faltar e eu fui substituir. (Érica) Como docente... Eu tinha já saído do curso técnico e eu estava no meu segundo ano de faculdade, quando um amigo meu me pediu para dar alguns cursos de Quick

27. Aí eu falei: “Será que dá certo?”. Eu já atuava

como Massoterapeuta. Eles [os amigos] tinham uma clínica e precisavam de alguém para dar esse curso. Daí eu abracei a causa. Desde então, até na faculdade, eu comecei a reunir um grupinho para dar umas aulas, porque na graduação a gente não aprende nada disso. O gancho começou lá atrás, nesse período. Em instituição assim, eu sempre fui convidada. Convidada para dar curso de Massagem Relaxante. Na faculdade, dei monitoria. Em instituição mesmo, fiquei no SENAC. (Ana)

Na fala de Ana, além de percebermos a valorização da atuação profissional

prática para a docência, surgiu a questão institucional como disparadora da

profissionalidade docente:

Minha primeira experiência foi em... 2011. Foi aí que eu me senti mesmo uma docente. Uma docente mais profissional, por ser uma instituição que vende e trabalha com cursos técnicos. [...] Foi em um curso de Massagem com Óleos. Eu nunca tinha dado essa aula antes. Era uma turma grande, com 24 pessoas. Eu pensei: “Bem, eu vou tentar demonstrar a minha vivência profissional”. Tudo isso em 2011. Foi apaixonante para mim. Foi mais ainda porque eu não esperava que fosse fluir tão bem assim! (Ana) (grifo nosso)

27

Ana refere-se a Quick Massage, cuja tradução pode ser “Massagem Sentado(a) na Cadeira”. Trata-se de uma técnica básica, de um curso de curta duração.

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No caso de Luanda, o pensar sobre a docência surgiu em seu ambiente

educacional e profissional:

Foi a época que eu fui fazer a Docência [referindo-se à pós-graduação em Docência]. Eu não pensava em dar aula. Eu não conhecia a realidade dos enfermeiros. No lugar onde eu era Auxiliar [de Enfermagem], nenhum enfermeiro era professor. [...] em uma das experiências que eu tive, uma professora falou assim pra mim: “Um enfermeiro também é um educador!”. E eu disse: “Mas eu não sei nada de Educação!”. E ela reforçou: “Um enfermeiro é, sim, um educador! É importante que você faça a Docência, porque no ambiente hospitalar você vai ter que ensinar as técnicas.” (Luanda) (grifo nosso)

Ao ser questionada sobre seu foco, que não era ser docente em uma escola,

e sim capacitar as pessoas da sua equipe, Luanda prontamente concordou, dizendo:

“Sim. Sim”.

Entre os depoimentos, as histórias de Clarice e de Maria se destacaram, pelo

fato de elas terem iniciado a carreira docente após recomendação direta de seus

professores, sendo que ambas foram alunas da instituição campo de pesquisa:

Na verdade, eu não fui buscar a docência. Foi identificado pelo meu professor meu perfil para ser docente e ele me falou sobre a possibilidade do processo seletivo no SENAC. (Clarice) (grifo nosso) Eu estava em um evento no SENAC. Desde quando o SENAC veio para Jundiaí [há 21 anos], eu sou uma frequentadora assídua. Até mesmo depois do curso técnico. Foi no final do ano 2000. Eu tinha terminado o curso em 1999. Eu estava em um evento e encontrei o meu professor. Ele veio falar comigo assim: “Você, não saia daqui em janeiro, porque eu vou tirar férias e você vai me substituir!”. Respondi: “Como assim? Eu não sou professora e eu não sei dar aula.” Ele respondeu: “‘Sabe, sim. Você não sabe que sabe, mas eu, sim, sei”. (Maria) (grifo nosso)

Ao ser indagada se, algum dia, tinha pensado em ser docente, até aquele

encontro com seu professor, Maria prontamente respondeu que:

Sinceramente, não. [...] Eu aceitei o desafio por consideração a esse professor. [...] Eu percebi que eu podia contribuir para com a formação de profissionais sérios porque a Estética é muito séria. (Maria)

No contexto das áreas de Saúde e Bem-estar, devido à dificuldade de se

encontrarem profissionais atuantes que busquem a docência, a instituição campo de

pesquisa busca ativamente esses profissionais no mercado, os quais, por vezes, são

ex-alunos da própria instituição.

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Clarice e Maria podem ser consideradas como talentos encontrados no

mercado, com características pessoais e profissionais que conduziam à docência. A

constituição de sua profissionalidade se deu primeiramente a partir de seu

desempenho como alunas e, num segundo momento, a partir de seu aceite para

iniciar o trabalho docente no SENAC:

Eu vi como possibilidade de uma nova profissão. Eu curti a ideia, mas fiquei bem apreensiva porque não tinha experiência nenhuma. (Clarice) Como assim? Eu não sou professora e eu não sei dar aula. Ele [seu mestre] disse: “Sabe sim. Você não sabe que sabe, mas eu sim sei”. Depois eu entendi que essa apresentação foi como um teste de aula. Ele queria ver

como eu me saía. [...] Não sai mais do SENAC. (Maria)

Um dado final complementar que julgamos válido mencionar é o fato de que

seis, entre os dez pesquisados, tiveram sua primeira experiência como docentes na

instituição campo de pesquisa.

Influência familiar, oportunidades profissionais, recomendações de amigos e

professores foram disparadores da carreira docente, entendendo a carreira também

como processual, como aponta Tardif (2002, p. 79):

[...] carreira como trajetória dos indivíduos através da realidade social e organizacional das ocupações, pouco importa seu grau de estabilidade e sua identidade. A carreira consiste numa sequência de fases de integração numa ocupação e de socialização na subcultura que a caracteriza.

4.2.4 O processo de constituição da profissionalidade

Entre os pesquisados, foi unânime a percepção de que eles não estão

totalmente “prontos” como docentes. Todos têm consciência sobre o processo

contínuo e permanente que envolve a profissionalidade docente e concordam com a

afirmação de que “ser professor é uma profissão aprendida”.

O conceito proposto por Courtois (1996, p. 172 apud LÜDKE e BOING, 2010,

p. 1) nos ajuda a definir sobre qual profissionalidade estamos tratando:

Profissionalidade designa primordialmente o que foi adquirido pela pessoa como experiência e saber, e sua capacidade de utilizá-lo em uma situação dada, seu modo de cumprir as tarefas. Instável, sempre em processo de

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construção, surgindo do próprio ato do trabalho, ela se adapta a um contexto em movimento. (grifo nosso)

Inúmeras são as frases de destaque que surgiram nas entrevistas e também

nos encontros psicodramáticos. Destacamos, aqui, as falas de Gabriela, Júnior,

Francisco e Clarice, que ilustram essa condição de contínua formação, de

“inacabamento” (FREIRE, 2002):

A aula somente está pronta quando termina. [...] Eu sinto que eu aprendo a ser professora todo dia, mas eu não me acho pronta. (Gabriela) Pronto, não. Cada dia nós temos que aprender um pouco mais. Cada dia é uma experiência nova. Sempre vai ter algo novo pra aprender. Pronto, pronto, não; mas apto, sim. (Júnior) Jamais. Mesmo que a aula seja idêntica, a turma é diferente. Tem muita coisa nesse caminho. (Francisco) Eu não me sinto pronta ainda. Eu ainda tenho que aprender muita coisa. Até por isso, eu não quero parar de estudar. Até por isso, eu quero fazer outra faculdade. Eu quero entrar em uma sala de aula e ser para os alunos o que o professor foi para mim [...] porque eu ainda estou aprendendo a ser docente. [...] Aprender a ser docente é para sempre. (Clarice)

Ao serem diretamente questionados sobre a crença de que a “profissão

professor” é uma profissão aprendida ao longo da vida, as respostas novamente nos

conduzem a pensar sobre um processo constitutivo da profissionalidade que se

desenvolve ao longo da atividade docente:

Tenho certeza que sim, porque eu estou aqui. Eu nunca imaginei que eu fosse. [...] Na verdade eu sempre ajudei meus amigos, porque eu tinha facilidade [em aprender], mas eu nunca imaginei que eu fosse dar aula mesmo. Porque eu não me via estudando algo para isso. Não me via fazendo uma Licenciatura, por exemplo. Mas eu tenho certeza disso. [...] A gente aprende. Não sei como. Não sei se é inato ou se é algo que se desenvolve em você. Eu tenho certeza que a gente aprende! (Ana) Aprendemos no dia a dia. Turma por turma. Aluno por aluno. (Érica) Com o tempo você sempre melhora, é claro! [...] Ao longo de aulas, sem dúvida. Outro dia, eu dei uma aula que eu dei há três anos atrás melhorada. Nossa! Que gostoso! Com relação ao que eu tinha feito antes, melhorei muito. A troca com um e com outro [referindo-se aos docentes]. [...] Isso soma. Mas eu acho que é ao longo das aulas mesmo que você vai pegando o jeito. (Ana)

Luanda nos trouxe claramente, em seu depoimento, seu conceito de

profissionalidade e mencionou diretamente o “aprender a ser professor”:

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Eu estou tentando ser professora. [...] As diferentes vivências de cada indivíduo podem torná-lo um profissional melhor. Independente de ser professor, economista, policial ou enfermeiro. Eu vejo isso nas pessoas. As pessoas podem se desenvolver e aprender uma profissão ao longo da vida. [...] Aprender a aprender, eu me identifico muito com isso. Aprender a fazer, sim. Aprender a ser é o mais difícil para mim. O aprender ser professor. Por conta do modelo perfeito que tenho de minha irmã. Eu tenho consciência disso. Ela tem uma habilidade nata. [...] A gente tem que ensinar o aluno a ser. O professor tem que fazer a pessoa se descobrir. “Quem você é?”. E depois: “Você quer ser Técnico em Enfermagem?”. Talvez tivesse que ter um primeiro módulo de descobrimento – Quem é você. As pessoas chegam aqui pelo salário e pela empregabilidade de nossa área [Enfermagem]. A grande verdade é essa. Daí, sem vocação, se tornam bons executores da profissão, mas não vivem a essência. Executam a técnica com qualidade, mas não são em sua essência Técnicos em Enfermagem. (Luanda) (grifos nossos)

Além de tratar sobre a profissionalidade, Luanda ainda nos ajudou a refletir

sobre a função da docência, o que é corroborado em Imbernón (2011, p. 14):

A ação docente não é mais transmissão de um conhecimento acadêmico ou a transformação do conhecimento comum do aluno em conhecimento acadêmico. A profissão exerce outras funções: motivação, luta contra a exclusão social, participação, animação de grupos, relações com estruturas sociais, com a comunidade [...]. (grifo nosso)

A transformação provocada pela ação docente e mencionada por Luanda,

como o “ensinar o aluno a ser”, vem ao encontro da Proposta Pedagógica da

instituição campo de pesquisa (2003, p. 3), que entende que: “Pelo pensamento,

pela linguagem e pelo trabalho, o homem dá sentido, conhece e modifica o mundo,

entendido como ambiente ou circunstância no qual o homem vive, convive e

transforma pela sua ação”.

Notamos que a transformação, no contexto do processo constitutivo da

profissionalidade, também aconteceu na vida desses docentes:

[...] Eu sempre lidei com a doença, hoje eu lido com a saúde. Eu conhecia só o mundo do estar doente. Não tem ponto final na Educação. A gente recomeça todo tempo. (Luanda) Eu evoluí bastante quanto às relações interpessoais, do dia que entrei aqui até hoje. Dar aula é também uma oportunidade de evolução técnica. (Neto)

Outra questão importante, trazida por Érica, diz respeito ao docente colocar-

se como aquele que também aprende, seja com seus alunos, seja com seus pares:

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Cada aluna traz sua experiência. Eu aprendo muito com elas. Aprendo muito com as outras docentes. Eu aprendo muito a prática estética e aprendo sobre o ser humano. (Érica)

Com a fala de Érica, não há como não nos lembrarmos novamente de

Guimarães Rosa (1994, p. 437), que diz: “Mestre não é quem sempre ensina, mas

quem de repente aprende”.

4.2.5 O docente aprende com o aluno

Gabriela e Júnior nos fazem pensar sobre a importância do papel do aluno na

constituição da profissionalidade docente e no desenvolvimento dos saberes:

Eu acho que o professor aprende muito mais com o aluno. [...] Então eu consigo hoje entender que a gente aprende enquanto está dando aula. Enquanto você não entrar na sala de aula e estiver ali de fato, você não está pronto mesmo. Você fica pronto na medida em que a aula vai acontecendo. Acho que a aula só está pronta quando ela termina. (Gabriela) (grifos nossos) Eu sinto que mais aprendo do que ensino. (Júnior) (grifo nosso)

Suas falas nos remetem a Freire (2002, p. 25), quando o autor nos diz que:

“[...] Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”. De fato,

as histórias dos alunos e dos docentes se entrelaçam.

Nessa direção, Tardif (2002, p. 11), ao tratar dos saberes docentes, afirma

que: “[...] o saber dos professores é o saber deles e está relacionado com a pessoa

e a identidade deles, com a sua experiência de vida e com a sua história

profissional, com as suas relações com os alunos em sala de aula” (itálico do

autor e grifo nosso).

Na coleta de dados, foi evidenciada a dualidade de aprendizagens existente

na relação aluno-professor28 que encontramos em Freire (2002, p. 25):

[...] É preciso que, pelo contrário, desde os começos do processo, vá ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado [...] Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem

28

Uso proposital do hífen para explicitar o fortalecimento do vínculo entre aluno e professor no processo ensino-aprendizagem.

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à condição de objeto, um do outro. [...] Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. (grifo nosso)

Podemos exemplificar essa dualidade de aprendizagens com a fala de Maria:

E também se aprende com o aluno. [...] A gente pode dar aula há 200 anos, mas a gente sempre aprende com o aluno. A cada turma, aprendo com o observar e com o adequar. [...] Hoje eu dei aula de um jeito. Se não deu muito certo, eu vou procurar identificar o que eu poderia fazer para melhorar. [...] através da dúvida do aluno, a gente é obrigada a pensar. E isso eu digo para o aluno. Nem todos os conceitos estão prontos. Nem todas as respostas estão prontas. [...] Isso prova como dar aula me traz mais conhecimento [...] E uma outra coisa que se aprende é o lado humano, a convivência e as relações interpessoais. Para cada turma que se forma, eu falo isso: “Eu aprendo muito com vocês!” Hoje eu me considero uma pessoa melhor depois que eu comecei a dar aula. Melhor no sentido de entender mais o ser humano. (Maria) (grifos nossos)

Quando questionados sobre a existência de momentos marcantes na carreira

docente, na instituição campo da pesquisa, a maioria dos pesquisados relatou

espontaneamente experiências que tiveram envolvendo alunos. É o caso, por

exemplo, de Gabriela:

Eu acho que o aprendizado é tão contínuo. Há momentos que a gente consegue aprender de fato. Por exemplo, o dia em que a aluna Wanda apresentou seu projeto. A Wanda é uma aluna com problemas de saúde e uma dor física visível. Você vê que aquela menina está sofrendo e dizendo com todas as letras: “Eu vou apresentar”. Foi um tapão na cara de muita gente. É um dos momentos que me marcam bastante. Se a gente tivesse tempo, eu poderia passar a tarde falando sobre momentos marcantes. Os encerramentos de curso e as apresentações finais de projeto também me marcam muito. Quando você [a pesquisadora] faz as intervenções de início de turma, também me marca. A condução da atividade, a forma e o Psicodrama. (Gabriela) (grifo nosso)

O relato de Gabriela, sobre sua experiência com dois alunos, é preciso em

detalhes:

Acho que um [momento] bem marcante foi quando uma aluna com muita dificuldade conseguiu fazer uma análise ergonômica completa. A Mariana. Quando ela conseguiu por ela, sozinha, mostrar para mim sua planilha com o que tinha de errado e o que ela sugeria. Foi surpreendente! [...] A Mariana era uma aluna da Segurança do Trabalho que tinha dificuldade de base de aprendizagem. Ela tinha uma alfabetização, digamos, precária. Ela tinha muitos problemas. Não se escolarizou. Foi se alfabetizar já em idade adulta, em uma escola de educação de jovens e adultos. A compreensão dela era muito limitada. As informações técnicas sempre a remetiam a uma vivência pessoal. Era o que ela conseguia correlacionar naquele momento. Quando eu comecei a trabalhar tensão, flexão, movimentos articulares, ela

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começou a entender [Ergonomia]. Mas ela entendeu porque ela não escreveu. Ela fez. Ela fez a flexão. Ela se movimentou para entender. Aquilo fez com que ela tivesse outro tipo de aprendizado. Foi incrível como ela foi uma das primeiras da turma a internalizar tudo aquilo. No momento em que eu pedi para que fizessem a análise de um funcionário de sua empresa-projeto, ela não teve dificuldade em me explicar. Na verdade, ela teve mais dificuldade em escrever a palavra “flexão” corretamente do que de me explicar a Ergonomia observada. (Gabriela)

Ao ser perguntada sobre o que aprendeu com essa situação da aluna,

Gabriela respondeu:

Eu aprendi que o aprendizado não é só o letramento, o aprendizado que consta no papel. Ela sabia Ergonomia. Usar outros recursos com essa aluna foi importante. Não deixei mais de “fazer o movimento de flexão” em nenhuma outra turma. (Gabriela)

E relatou outro caso de aluno:

Outro caso que me marcou bastante foi o aluno da Massoterapia que era cego. Ele era cego em uma sala de videntes e a proposta era de passar o conteúdo de Anatomofisiologia. Houve uma diferença muito grande, pois foi uma sala onde eu tive que transformar o sistema nervoso num elemento figurado. Todos os alunos tiveram que fazer parte da mesma aula. Eu inverti [a aula]. Ao invés de começar falando sobre as estruturas, eu comecei pelos sentidos. “Então, como que a gente sente?” E fui provocando uma sala onde um aluno não tinha um dos sentidos. Terminar essa competência naquela turma foi muito bom. O momento de feedback foi muito bom, porque foi rico. Foi rico. O desafio do aluno cego me trouxe a oportunidade de desenvolver a aula e de aprender com isso de uma maneira que eu não imaginava. E tudo foi muito bem recebido pela sala. (Gabriela) (grifo nosso)

Foram marcantes também os relatos de Clarice e de Maria:

A história da Kelly. [...] A gente não acreditava que ela iria concluir o curso, porque parecia que ela não entendia o que era falado. Eu achava que ela não ia pra frente e foi uma grande surpresa no último módulo. Eu me emociono muito quando eu falo dela, porque a dedicação dela foi tanta... Ela se superou e foi a melhor aluna. Isso me dá alegria porque eu sei que contribuí para isso. (Clarice)

Tem uma aluna que eu não me esqueço dela. Ela foi um exemplo de superação. Eu até a cito nas turmas. Ela morava em uma cidade vizinha. Ela trabalhava em um açougue. Ela tinha todas as mãos cheias de cicatrizes, por ter que cortar as carnes. Ela tinha um português muito ruim. Era uma pessoa muito simples. Eu me lembro de que ela fez supletivo. Mas ela tinha muita vontade de vencer. Ela não faltava nunca à aula. Vinha firme e forte. Mesmo cansada, ela não faltava. E pra tudo ela pediu ajuda, interessada em saber como podia melhorar. Essa aluna surpreendeu. Ela se formou. Eu indiquei leituras para ela aperfeiçoar o português. Quando ela

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ficava de modelo29

, ela ficava lendo os livros. Ela levava seu livrinho para ler enquanto a colega fazia massagem. Ela se formou e uns anos depois uma aluna de sua turma me disse que ela estava atuando como esteticista. Ela tinha tido uma filha ou um filho, como mãe solteira e que, trabalhando como esteticista, ela conseguia criar essa criança. Me falaram que ela está trabalhando muito, muito bem. (Maria)

Ao ser perguntado a Maria há quanto tempo a aluna havia feito o curso e se

ela, como professora, acreditava no sucesso de sua aluna, Maria respondeu:

Ah... ela é de uns dez anos atrás [2005]. [...] Acreditei! Pela força de vontade dela. Porque ela queria mudar... Na verdade, ter uma profissão. Ela não encarava ser açougueira como uma profissão! Era uma questão de subsistência. Ela queria ter uma profissão e ela conseguiu! (Maria)

Esses momentos resgatados estão marcados pela conquista, pela superação

e pelo sonho realizado.

Alguns pesquisados foram questionados diretamente sobre o aspecto e a

compreensão da constituição da profissionalidade docente na relação aluno-

professor. Nesse sentido, as respostas de Ana e de Gabriela foram significativas:

Eu acho que por estar aqui [na instituição]. Por eu estar aqui. Por um curso que eu não conhecia e fui querendo conhecer. Eu me desenvolvi para entender as pessoas, os objetivos do curso, as expectativas de quem estava ali [os alunos]. Tudo é muito diferente. Por exemplo, a competência de Anatomofisiologia, que é a mesma para Podologia, Massoterapia e Estética, é, na verdade, diferente em cada curso e em cada turma. [...] Porque... Eu acho que hoje consigo entender os objetivos. Por exemplo: “Qual é o foco que eu tenho que dar sobre sistema cardíaco na Massoterapia?”. Ou seja, o que precisamos saber especificamente na Massoterapia? Então, é fazer com que os alunos pensem. O perguntar para os alunos acaba sendo algo importante para o meu aprender a ensinar. (Ana) (grifos nossos)

Eu fui me constituindo [como docente] em função da demanda que existia [na instituição] e dos desafios que foram colocados. E também por toda minha história. Têm que fazer sentido [as aulas]. Foi aí que eu fui me desenvolvendo. (Gabriela)

Ao ser questionada sobre o que fez a diferença em seu processo, a resposta

de Gabriela foi rápida: “O aluno”.

Foi possível perceber que a aprendizagem, no âmbito da educação

profissional, envolve as trocas entre as diferentes experiências profissionais, não

apenas dos docentes, como também dos alunos.

29

Nas aulas práticas do curso Técnico em Estética, as alunas são modelos umas das outras.

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Encontramos falas nas entrevistas que apontaram a troca e a interação

existentes na relação aluno-docente. Um exemplo é o de Clarice:

[...] A interação que existe com o aluno. Você está sempre trocando. Em geral, quem está ali em uma sala de aula de Podologia, já teve experiência profissional como manicure, manuseando alicates ou outros instrumentos que não são os mesmos da Podologia. As alunas trazem experiências que às vezes o docente não tem e você faz essa troca. O que eu sei como podóloga e vou te ensinar, e o que você sabe como manicure e terá que mudar para aprender como podóloga. A manicure é da área da Beleza, mas agora você está procurando a Podologia, que é da área da Saúde. Essa transição da Beleza para a Saúde, além de ser um desafio para o docente, tem essa questão de você trocar muita informação, pois, quando um paciente ou um cliente procura uma podóloga, ele não está procurando só a Saúde, ele também está procurando a Beleza. (Clarice) (grifos nossos)

Freire (1983, p. 17) nos fala que: “Não há mundo sem homem”. Vemos, ainda,

nesse autor, o olhar do humano para uma ação responsável, humanizada e

humanizadora. Não há Educação sem homens – alunos e docentes. A partir do

interesse comum no aprender, docentes e alunos constroem vínculos produtivos,

favorecendo o processo de ensino-aprendizagem.

Para finalizar, temos o relato de Lorena, uma conclusão propícia para esse

item e introdução inspiradora para o próximo:

A arte de ensinar vai se lapidando ao longo do tempo. Você não nasce sabendo ensinar. Você tem que saber observar os sinais dos seus alunos. A gente não nasce professor. A educação e o respeito vêm do berço. A arte de ensinar vem das percepções do seu dia a dia do trabalho. É uma construção. (Lorena) (grifo nosso)

4.2.6 O docente aprende na sala de aula

A constituição da profissionalidade docente se dá de maneira intensa no

espaço que conhecemos por sala de aula. Não que a sala de aula seja o espaço

único para esse processo constitutivo. Pelo contrário, inúmeros são os espaços da

escola propícios para o desenvolvimento do docente. É o caso, por exemplo, da sala

dos docentes, um espaço privilegiado para a troca entre pares.

Contudo, nas entrevistas e nos encontros psicodramáticos, a sala de aula

ganhou relevância por parte dos docentes. Ela é percebida como um espaço de

pertencimento do grupo de aprendizagem, conforme apontou Francisco:

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Os alunos acolhem a gente bem. Hoje eu não consigo ver um jeito de trabalhar fora da sala de aula. (Francisco)

Sentimentos e sensações marcam os docentes na sala de aula e passamos a

olhar esse espaço como o lócus constituinte da profissionalidade docente, como

podemos exemplificar com os relatos destes cinco pesquisados:

Quando eu estou na sala de aula, eu tenho voz. [...] Eu me sinto fazendo o que eu sei. Isso é muito importante. Eu me sinto segura. Eu sei onde estou pisando. Eu tenho voz. Eu acho que é por conta do que aconteceu com meu desenvolvimento da profissionalidade. É um resultado. (Gabriela) (grifo nosso) Quando eu já entro na sala de aula, parece que eu esqueci de tudo que está lá fora. É uma sensação que eu não consigo te explicar. O sentir. Eu sinto uma liberdade, um bate-papo. Eu me sinto muito à vontade com os alunos. (Júnior) (grifo nosso) [Na sala de aula, aprendo] Muito! Muito! De relações humanas foi o que eu mais aprendi. (Luanda) Eu me sinto muito bem em sala de aula hoje. Eu sei que ainda preciso aprender a lidar melhor com o tempo, ser mais linear. [...] a relação professor-aluno também é uma coisa que eu preciso melhorar. (Érica) Tem sala que minha adrenalina fica alta. Tem sala que olho para os alunos e percebo que tenho que mudar completamente a minha estratégia para que eles prestem atenção na aula. Mas eu sempre sinto um friozinho na barriga. (Lorena)

Para o profissional das áreas de Saúde e Bem-estar, a sala de aula se torna

um ambiente novo e desafiador. É importante considerarmos que a sala de aula são

também as oportunidades de aprendizagem que se desenvolvem no “extramuros” da

escola:

O início foi bem difícil, porque eu só estava acostumada a entrar no consultório e atender o paciente em uma consulta bem individualizada, onde era eu e o paciente. De repente, eu entrei em uma sala com vinte alunas completamente diferentes. Somente mulheres, com histórias de vida diferentes. [...] O contato com o curso Técnico em Podologia, que é bem diferente do curso de Manicure, de curta duração, também foi diferente. Mas, depois, também teve a recompensa do trabalho nas unidades básicas de saúde. Elas não queriam ir atender lá e depois foi uma grande surpresa ver a evolução delas e ver o quanto elas gostaram. Aí mudou o olhar para a nova docente que chegou. Esse primeiro momento foi bem difícil para mim. (Clarice) (grifos nossos)

Após descrever inúmeras dificuldades no início de sua carreira docente, e ao

ser questionada sobre o que a ajudou, a podóloga Clarice respondeu:

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Foi o fato de estar em sala de aula e dar minha cara para bater mesmo. Eu estou aqui porque fui contratada como docente. Eu tenho que aprender a dar aula e me esforcei para isso. Estou dando meu melhor. Sei que a cada dia vou aprimorar. Então é no dia a dia mesmo... Não tem como ser diferente. (Clarice)

Uma frase de Clarice que também marcou a questão da constituição da

profissionalidade no fazer dentro da própria instituição campo de pesquisa foi a

seguinte:

Tem um colega de trabalho que uma vez me disse assim: “Por que você vai fazer a pós em docência, se o SENAC já é uma escola para isso?”. Isso me fez pensar sobre o quanto eu aprendo a ser docente aqui dentro. (Clarice) (grifo nosso)

Outro diferencial no trabalho docente, na instituição campo de pesquisa, é a

questão do desenvolvimento da multidisciplinaridade no contexto dos cursos

técnicos nas áreas de Saúde e Bem-estar. Esse aspecto é, indubitavelmente, outra

oportunidade de aprendizagem. O relato de Luanda nos ajudou a compreender isso:

Eu posso falar agora que tenho duas experiências diferentes. Quando eu entro na sala de Enfermagem, eu me sinto em casa, como se tivesse entrando em um hospital. Quando eu entrei na Podologia, eu tive que mudar a minha aula. Minha aula era baseada no ambiente hospitalar. [...] Foi um desafio! Eu já escutei de alunas da Podologia: “Nossa! Deve ser legal fazer Enfermagem!”. Acho que é porque eu demonstro gostar muito. (Luanda) (grifo nosso)

4.2.7 Profissão declarada

Pudemos constatar que os profissionais das áreas de Saúde e Bem-estar

pesquisados não assumem a docência como profissão principal. Devemos

considerar que suas cargas horárias semanais de trabalho são compartilhadas entre

a docência (50%) e sua prática profissional (50%).

Entre os dez pesquisados:

9 (nove) não declararam a docência como sua profissão ou ocupação

principal, dentre os quais 4 (quatro) apontaram a docência como segunda

atividade imediata;

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1 (uma) pesquisada respondeu que passou a se declarar professora quando

deixou de atuar como técnica em Meio Ambiente na indústria.

Ao serem questionados sobre o que respondem quando alguém lhes

pergunta qual sua profissão, ou quando precisam informá-la em fichas cadastrais,

por exemplo, as respostas imediatas foram:

Na ficha, eu ainda coloco fisioterapeuta. [...] Primeiro, fisioterapeuta, sempre. [...] Enfim, eu digo: “Sou fisioterapeuta, trabalho com isso e também dou aula”. (Gabriela) Sou Técnico em Segurança do Trabalho. (Júnior) Então... Aí, geralmente, eu ponho esteticista, porque eu sou primeiro esteticista, para depois ser docente. Quando eu sou docente, eu também sou esteticista. (Maria)

Entre as falas que apontaram a docência como segunda profissão imediata

estão:

Engenheiro. Eu tenho dois trabalhos: engenheiro durante o dia e docente à noite. (Neto) Eu sou químico/professor

30. (Francisco)

Podóloga e docente do SENAC. (Clarice)

Por vezes, foi perceptível a necessidade de se justificar a resposta. Foi o caso

de Clarice, por exemplo:

Podóloga, porque é minha formação de base. (Clarice)

Em alguns momentos, a profissionalidade docente chega a ser negada, pela

ausência de formação formal para o desempenho da função docente. Notamos isso

também na fala Clarice:

Porque a docência não é a minha profissão... assim, de formação. Eu não me preparei para ser docente. (Clarice) (grifo nosso)

Ana, que diz “dar aulas”, em vez de dizer que “é professora”, apresentou uma

explicação sobre essa forma de responder:

30

A barra é pontuada pelo pesquisado.

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Porque eu nunca estudei para isso. Sinceramente. Diferente de alguém que fez Letras ou se graduou em Pedagogia. Não. Eu sou físio [fisioterapeuta] e também dou aula, porque tem uma justificativa. Eu trabalho com masso [Massoterapia] há bastante tempo e hoje eu posso ensinar um pouquinho o que eu aprendi. Eu nunca falo que sou diretamente professora. Acho que é por isso. Por uma questão pedagógica mesmo. (Ana) (grifo nosso)

Nas falas de Clarice e de Ana, notamos a ideia concebida de que, para se

assumir docente, é necessário ter estudado para isso.

Nos encontros psicodramáticos (ver Apêndice), exploramos a questão da

profissão “declarada” ou “assumida” e a questão do significado da sala de aula na

vida desses docentes. Pudemos constatar que:

a sala de aula é uma extensão natural dos espaços de atuação profissional

dos pesquisados (cabine de esteticista, de podóloga, de massoterapeuta e de

fisioterapeuta);

a sala de aula e o espaço de atuação profissional são também indissociáveis;

o sentimento de pertencimento ao grupo de aprendizagem é significativo;

os alunos surgiram espontaneamente nas cenas dos pesquisados;

a sensação de conforto e bem-estar na sala de aula é percebida;

o caso de Francisco, que possui horas dedicadas à docência que superam as

horas dedicadas às consultorias esporádicas que presta, se diferencia, pois

foi o único participante da atividade que identificou como único espaço de

trabalho a sala de aula. Não podemos deixar de considerar também sua

experiência de mais de dez anos na docência;

surpreendentemente, a enfermeira Luanda não conseguiu separar sua vida

pessoal da profissional. O hospital e a escola invadem sua vida pessoal,

conforme vemos em sua fala:

Eu ainda tenho dificuldade em me assumir professora. Até porque, dentro da minha família, professora é alguém que detém muito conhecimento, que eu ainda não tenho. Minha irmã é professora e sabe muito. [...] Eu sinto que, quando você fala que é professora, a pessoa quer dar a impressão de ser mais do que ela é. Eu estou tentando ser professora. [...] Mas sala de aula e hospital estão juntos. [...] A Educação é uma profissão ainda nova para mim. (Luanda)

Podemos concluir que a sala de aula é considerada um espaço de

pertencimento, mas que a docência, por sua vez, não é assumida pelos pesquisados

como profissão.

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4.2.8 A responsabilidade de ser docente na educação profissional

Freire (2002, p. 20-21) refere-se à ética e à responsabilidade do docente e

traz à tona a reflexão sobre a possibilidade humana de intervir no mundo:

[...] mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença (com P em maiúsculo) no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um “não-eu” se reconhece como “si própria”. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe. E é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. (grifos nossos)

Tanto nas entrevistas como nos momentos psicodramáticos, foi possível

perceber a consciência que os pesquisados têm a respeito de sua função social

como docentes da educação profissional:

Acho que existe uma responsabilidade muito grande em mostrar algumas questões que vão além da competência. São questões plurais, éticas, morais. (Gabriela) Eu sinto que tenho que dar a aula com a melhor qualidade possível para formar os profissionais de amanhã. (Francisco) A responsabilidade é muito grande, pois você está preparando pessoas para o mercado de trabalho. Você tem que ensinar da forma correta. (Júnior)

Conseguimos constatar, nas falas de alguns docentes, a percepção da

responsabilidade que sentem ao lidarem com o sonho de mudança de vida do outro,

o que é corroborado por Freire (2002, p. 88), quando o autor diz que:

É a partir deste saber fundamental: mudar é difícil, mas é possível, que vamos programar nossa ação político-pedagógica, não importa se o projeto com o qual nos comprometemos é de alfabetização de adultos ou de crianças, se de ação sanitária, se de evangelização, se de formação de mão-de-obra técnica. (itálico do autor)

Quando se trata de falar sobre as diferentes expectativas dos alunos, Clarice

comentou que:

É um perfil de aluno que está buscando mudar de vida. [...] O que me preocupa muito na docência do ensino técnico é que eu estou mexendo com o sonho das pessoas. Então, eu tomo muito cuidado para

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não ferir e não decepcionar esse sonho. Isso é um aprendizado a cada dia, porque cada aluna é uma. Por exemplo, a minha aluna que tem 18 anos. A expectativa dela com relação à Podologia é muito diferente da expectativa da minha aluna que tem 42 [anos], que já é casada, que já tem filho adolescente e que está buscando uma melhoria na vida. A [aluna] de 18 anos está aqui para buscar uma primeira profissão; acabou de sair do ensino médio. Se der certo, tudo bem, se não der certo, tudo bem também. A gente percebe que ela não leva tão a sério como a de 42. O sonho da de 18 não é tão forte quanto o sonho daquela de 42, que está aqui buscando seu grito de liberdade e pensa: “É minha última esperança. Depois disso aqui, não tenho outra opção”. A de 18 tem outras opções. É uma responsabilidade. (Clarice) (grifo nosso)

Luanda também falou sobre a mudança de vida de suas alunas:

O caso de mudança de vida de algumas alunas só reforça o que eu ouvi na minha infância inteira, quando meus pais diziam que só estudando a gente consegue uma vida melhor. Fazer parte de um pedacinho da história de vida de cada aluno é muito legal. Isso me dá uma recompensa. Eu me sinto, nessas horas, como eu me sentia quando um paciente para [parada cardiorrespiratória]. Não sei se você vai conseguir entender. Quando você começa a ressuscitação e o paciente volta a falar, é uma grande emoção. O mundo poderia parar aí e eu ia saber que dei o meu melhor. Sou hospitalar. Mas quando vi o quanto a Educação pode mudar a vida das pessoas... Por isso que eu falo que desenvolver pessoas é uma coisa fantástica. Eu gosto. Eu me realizo muito mais. [...] Eu gosto desse negócio de desenvolver pessoas. Eu gosto de pegar um grupo e ver ele ser vencedor. Eu nem preciso estar no grupo. O importante é que ele vença. Eu me satisfaço em saber que eu fiz parte do processo. Talvez isso tenha me chamado para a Educação. [...] Desenvolver uma pessoa é melhor que desenvolver você mesmo. Ver uma pessoa crescer. E quando as pessoas elogiarem, você vai dizer: “Foi trabalho meu!” [...] Na Educação, hoje, eu vou encontrando um significado tão importante quanto à vida. Quando a pessoa para [sofre uma parada cardiorrespiratória], é uma questão de saúde. Quando você muda a vida de um aluno, você muda a vida de muitas pessoas. (Luanda)

Nessa direção, Freire (2002, p. 76) nos estimula a refletir sobre a necessidade

de transformação social:

Ensinar exige apreensão da realidade. [...] Preciso conhecer as diferentes dimensões que caracterizam a essência da prática, o que me pode tornar mais seguro no meu próprio desempenho. [...] A capacidade de aprender, não apenas para nos adaptar, mas sobretudo para transformar a realidade, para nela intervir, recriando-a, fala de nossa educabilidade a um nível distinto do nível do adestramento dos outros animais ou do cultivo de plantas. (grifo nosso)

Assim como Freire (2002), os docentes, na educação profissional,

demonstraram apreensão da realidade e entendem que o processo formativo pode

transformar o mundo fora da sala de aula:

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Quando eu estou desenvolvendo meu aluno, eu estou desenvolvendo um funcionário que vai melhorar a realidade da Enfermagem. É um cuidado baseado em conhecimento científico. É uma responsabilidade conscientizar o docente e o aluno sobre esse conhecimento científico. Não dá pra ser um cuidar mecânico. (Luanda) É uma responsabilidade muito grande, sim... de dar aula, de fazer com que o aluno não saia cru e inseguro para enfrentar o dia a dia. (Maria) [...] Responsabilidade, porque hoje se busca muito o curso técnico pela remuneração que é até três vezes maior do que a remuneração de alguém que tem graduação. Se você for avaliar, o mercado está buscando técnicos. Eu preciso preparar essas pessoas para o mercado. Isso é uma responsabilidade muito grande. (Ana)

O aspecto prático da educação profissional faz com que os docentes se

sintam em uma docência diferenciada, como apontaram Neto e Lorena:

Essa docência do ensino técnico é uma docência diferenciada. Eu acho. É um curso muito dinâmico, muito rápido e muito prático. Tudo o que a gente vê no curso, a gente vê na prática também. Se eu tenho um docente que vivencia a prática diariamente, ele está em constante contato com essa atualização de material técnico e de como o aluno vai encontrar o mercado de trabalho. O docente do curso técnico tem muito o foco de tentar ser mais prático e de mostrar a realidade do mercado de trabalho para o aluno. Em uma graduação, não há esse foco. Não é tão específico. (Neto) Eu vivi minha vida toda no ensino técnico. Eu fui preparada para lidar com o ensino técnico. Eu teria dificuldade para dar aula até de Biologia. (Lorena)

Tratamos aqui da especificidade da responsabilidade docente na educação

profissional, considerando que também se trata de um processo constitutivo da

profissionalidade do aluno como profissional das áreas de Saúde e Bem-estar.

4.2.9 A intencionalidade de permanência na docência

Por fim, buscamos também entender se há intencionalidade de permanência

na docência, uma vez que a maioria dos pesquisados não optou por essa carreira

como primeira escolha profissional.

Entre os dez pesquisados:

3 (três) já pensaram em abandonar a carreira docente;

6 (seis) não pensam em abandonar a carreira e vislumbram a atividade

docente até depois da aposentadoria;

1 (uma) demonstrou indecisão na resposta.

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Clarice e Gabriela, ao serem questionadas sobre se pensavam – ou se já

haviam pensado – em abandonar a carreira docente, responderam, com

justificativas:

No começo, era o que eu mais pensava. Eu pensava: “Eu não vou dar conta disso! Eu não vou dar conta disso!“ Para cada aula, eu vinha com aquela apreensão no coração, achando que eu não ia dar conta daquelas meninas. (Clarice) Sim. Já. Porque existe uma questão que ainda me balança. O aluno pergunta se você trabalha ou só dá aula. É cultural. E tem a questão da remuneração. Existe uma dúvida latente. Será que eu continuo na carreira e penso em viver a Educação enquanto carreira? Ou será que eu vou voltar para a clínica e vou viver outra profissão para fazer o meu “pezinho de meia”, e daí, mais pra frente, eu volto para a Educação? Eu acho que é um senso comum. Eu me culpo por causa disso. Parece que as pessoas só vão dar aula quando estão perto de se aposentar [...]. É uma questão de valorização mesmo da Educação no Brasil. (Gabriela)

Diante da pergunta “O que te faria permanecer?”, feita a Gabriela, a

pesquisada respondeu:

Acho que é a possibilidade de uma carreira aqui dentro [referindo-se à instituição campo de pesquisa]. (Gabriela)

Em sua fala, Júnior também enfatizou que a questão institucional interfere

diretamente na constituição da profissionalidade docente:

Eu quero me aposentar como docente. Aposentar e ainda continuar trabalhando. Eu me identifiquei muito com a docência. Essa coisa de poder ensinar aquilo que eu vivo como Técnico em Segurança do Trabalho. Eu me apaixonei por isso mesmo. Poder estar no SENAC, dando aula, é um privilégio muito grande. Por isso que eu tento sempre pensar no que eu posso melhorar. (Júnior)

Entre as falas dos docentes que desejam permanecer na carreira,

destacaram-se as de Ana, Luanda e Francisco:

Não quero abandonar [a carreira docente]. Acho que é pra vida inteira. (Ana) Talvez eu tenha ficado na docência pelo desafio mesmo do aprender. Lá [no hospital], eu executo tarefas e resolvo questões, sem entender a dimensão das coisas. Aqui, eu aprendo muito mais e comecei a entender a dimensão do trabalho da Enfermagem. (Luanda) Eu gosto de trabalhar como professor aqui. Eu acredito no que a gente faz. Eu gosto da nossa equipe. A gente prova que é possível fazer a coisa certa. Dá trabalho, mas é motivador. A Educação tem que ser feita de maneira certa. (Francisco)

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Findado o eixo da profissionalidade docente, passamos para a análise do eixo

dos saberes.

4.3 Eixo dos saberes docentes: o “ir além”

Encontramos em um prefácio escrito por Pimenta (2010 apud RIOS, 2010, p.

12) dizeres que nos auxiliaram a resgatar a fundamentação teórica baseada em

Tardif (2002), Placco e Souza (2006) e Freire (2002), que trata dos saberes

docentes:

Entendendo que a democratização do ensino passa pelos professores, por sua formação, sua valorização profissional, suas condições de trabalho, as pesquisas têm apontado para a importância do investimento no seu desenvolvimento profissional. O que envolve formação inicial e contínua articulada a um processo de valorização identitária e profissional dos professores. Identidade que é epistemológica, ou seja, que reconhece a docência como um campo de conhecimentos específicos configurados em quatro grandes conjuntos [...] conteúdos das diversas áreas do saber e do ensino; conteúdos didáticos pedagógicos (diretamente relacionados ao campo da prática profissional); conteúdos relacionados a saberes pedagógicos mais amplos (do campo teórico da prática educacional); conteúdos ligados à explicitação do sentido da existência humana (individual, sensibilidade pessoal e social). E identidade que é profissional. Ou seja, a docência constitui um campo específico de intervenção profissional na prática social.

Esse trecho do prefácio nos reaquece a pensar sobre o “ir além” do conteúdo

técnico e sobre a função social da docência no contexto da formação profissional,

que não apenas está sendo investigada aqui, como também faz parte da própria

concepção de Educação da instituição campo de estudo.

Na coleta de dados, pudemos aprofundar esse conjunto de saberes que se

fazem necessários no contexto da educação profissional técnica das áreas de

Saúde e Bem-estar.

Novamente, usamos as palavras de Pimenta (apud RIOS, 2010, p. 12) para

antecipar o resultado desta etapa da análise de dados: “Por isso, não é qualquer um

que pode ser professor. Por isso também não é qualquer professor que consegue

fazer frente a esses desafios”. Desafios esses que, em meu entender, podem ser

traduzidos pelos diferentes saberes investigados nesta pesquisa: profissionais-

experienciais, pedagógicos, pessoais e do profetizar.

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4.3.1 Saberes profissionais-experienciais

Assim como tratamos anteriormente, os saberes profissionais-experienciais

são condição sine qua non para a docência, no âmbito da educação profissional,

considerando aqui que agrupamos nos saberes profissionais-experienciais não

apenas a experiência na docência, mas priorizamos o “fazer-saber”, proposto por

Barato (2003), em que a teoria, sem a prática, torna-se insuficiente e vice-versa.

Um primeiro exemplo disso é o caso de Gabriela. Fisioterapeuta, ela

reconhece que tem mais condições de lecionar Ergonomia para os futuros técnicos

em Segurança do Trabalho do que um profissional que seja técnico em Segurança

do Trabalho, por sua formação e atuação profissional:

[...] Eu dava aulas sobre assuntos que os professores que eram técnicos em Segurança do Trabalho não dominavam. Por exemplo, as aulas de Ergonomia. (Gabriela)

O “fazer-saber” está tão impregnado nos sujeitos pesquisados, que podemos

notar que a sala de aula se torna uma extensão natural de seu trabalho:

Eu levo muitos exemplos da minha prática para que o aluno acredite na responsabilidade. Quando acontece alguma intercorrência, ou enfrento algum desafio novo de como lidar com o cliente... Com certeza, a prática me ajuda muito! Eu levo mesmo exemplos do dia a dia para a sala de aula. (Maria) (grifos nossos) A prática da sala de aula é a rotina do profissional em Segurança do Trabalho. Em sala de aula, a gente já consegue saber que profissional esse aluno vai ser. (Neto) (grifos nossos) Porque o que eu aprendo a cada dia no trabalho, eu consigo trazer para eles aqui. Eu consigo mostrar a realidade para eles [...] até mostrando uma bronca do chefe para algo que eu tenha feito errado no serviço. Eu mostro meu próprio erro já no mercado de trabalho para poder falar sobre o que é certo. (Júnior) (grifo nosso)

Júnior, sob outra perspectiva e considerando que os caminhos de docentes e

alunos se entrelaçam, demonstrou a satisfação que sente quando nota a

aplicabilidade imediata das aulas na vida profissional do aluno:

“Sabe, professor, aquele negócio que o senhor falou na aula? Eu consegui colocar em prática lá na empresa.” (Júnior, reproduzindo a fala do aluno)

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Nos encontros psicodramáticos, os seis participantes não conseguiram

diferenciar o espaço de suas vidas dedicado à atuação profissional e o espaço

dedicado à docência. Docência e atuação profissional como enfermeiros,

fisioterapeutas, massoterapeutas, consultores, esteticistas e podólogos ocupam o

mesmo espaço emocional em suas vidas. A docência, por vezes, é percebida como

extensão da atuação profissional, como apontou a fala de Luanda:

A Enfermagem é única no hospital e na sala de aula. (Luanda)

Nesta etapa da coleta de dados, em um primeiro momento, nos

surpreendemos com essa inseparabilidade entre a docência e a atuação

profissional. Posteriormente, passamos a analisar esse dado, coletado a partir da

atividade psicodramática, como uma mostra efetiva da extensão profissional para a

docência. Esse dado fortalece a condição indispensável da atuação profissional para

o desempenho produtivo do docente em sala de aula.

E, assim, atingimos um dos objetivos específicos desta pesquisa, que é o

reconhecimento da importância da atuação prática para a docência.

Se, por um lado, o exercício desses profissionais das áreas de Saúde e Bem-

estar é essencial para a constituição da profissionalidade docente, por outro, os

pesquisados, em suas falas, nos mostraram um sentido reverso, em que a docência

também retroalimenta suas respectivas áreas do conhecimento:

A docência, na Podologia, é um compromisso de melhorar a própria Podologia, para formar profissionais que entrem no mercado de trabalho e que sejam dignos de serem chamados de podólogos. Então a docência para mim é um compromisso com a Podologia. [...] A docência vem também para você continuar na profissão, nos bastidores, ensinando outras pessoas a executarem essa profissão. Hoje eu estou com 45 anos e daqui 10 anos estarei com 55 anos [...] as minhas mãos vão estar doloridas. (Clarice)

Isso reforça a compreensão da função social do educador e amplia a missão

desse docente em sala de aula.

Foi possível notar, em outras falas, que esse saber profissional-experiencial é

evidenciado nas aulas consideradas como práticas. Dizemos “consideradas como

práticas”, pois acreditamos na falsa dicotomia entre prática e teoria, assim como

afirma Barato (2003, p. 2): “[...] o par teoria & prática é uma fórmula insuficiente e

inadequada para explicar a dinâmica do saber. [...] Teoria e prática são categorias

inadequadas para explicar a natureza do saber humano”.

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Nessa direção, Freire (2002, p. 24) também aponta que: “A reflexão crítica

sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática [maiúsculas do

autor], sem a qual a teoria pode ir virando blábláblá e a prática, ativismo”.

Nesse contexto, as falas de Clarice, docente da área de Podologia, e de

Maria, docente da área de Estética, se destacaram:

Eu me sinto mais à vontade na prática, até porque tem o contato com o paciente, que é o que eu gosto muito. [...] Eu me sinto mais confortável na aula prática. [...] Na aula prática, você consegue ver se o que foi dado na teoria valeu. Se você soube passar o conteúdo ou não. A prática também te revela sobre o que a teoria... será que o que você deu em teoria foi suficiente? (Clarice) Eu até acho que um docente esteticista dando prática [durante as aulas práticas] é mais fácil do que um docente Fisioterapeuta dando Anatomia e Fisiologia para a Estética. [...] Eu percebi desde cedo que era muito sério [a atuação na área de Estética]. Não dava para somente aprender a fazer. Tem que saber fisiologicamente o que estava acontecendo, sabe? Então foi por isso mesmo. Eu fui buscar um conhecimento mais profundo para eu ter mais segurança. (Maria) (grifo nosso)

Na entrevista com Lorena, bióloga, técnica em Meio Ambiente e técnica em

Segurança do Trabalho, notamos novamente a dissociação entre teoria e prática.

Primeiramente, Lorena fez a diferenciação, mas, posteriormente, mostrou a

inseparabilidade entre teoria e prática, possível graças à sua experiência

profissional:

Eu tinha uma experiência na indústria e eu podia agregar a prática à teoria. [...] A interpretação das questões técnicas com o dia a dia do trabalho é o que eu procuro fazer na sala de aula. Eu procuro trazer sempre a interpretação da norma [Normas Regulamentadoras da Segurança no Trabalho] na prática. Isso não seria possível sem experiência profissional. (Lorena)

Na entrevista de Ana, fisioterapeuta, massoterapeuta e docente

multidisciplinar, hoje, das áreas de Saúde e Bem-estar, também pudemos perceber

que a experiência profissional pode ser um suporte, no momento inicial de

insegurança na carreira docente:

Eu nunca tinha dado essa aula antes. Era uma turma grande, com 24 pessoas. Eu pensei: “Bem, eu vou tentar demonstrar a minha vivência profissional”. Tudo isso em 2011. Foi apaixonante para mim. [...] porque eu não esperava que fosse fluir tão bem assim! (Ana) (grifo nosso)

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Na fala de Luanda, identificamos sua experiência profissional como

enfermeira dando suporte aos primeiros anos da docência:

O que me ajudou é que eu já dava cursos nos hospitais, desde quando eu me formei. Eu já tinha muita vivência dentro dos hospitais. (Luanda)

A experiência profissional pode ser, ainda, um suporte constante na

constituição da profissionalidade docente, como notamos na fala de Francisco,

químico e docente da área de Segurança do Trabalho já há 10 anos:

As situações específicas do que acontece na área Química. Meus 14 anos de experiência trabalhando como químico nas indústrias me ajudam muito nas aulas de Segurança [referindo-se ao curso de Técnico em Segurança do Trabalho]. (Francisco)

Simultaneamente e, novamente, em um sentido de retroalimentação,

Francisco assumiu:

Eu quero mesclar mais as atividades da docência e da indústria. Não pretendo ficar apenas na docência. (Francisco)

É esse saber profissional-experiencial que possibilita a atuação

multidisciplinar de parte do núcleo das docentes das áreas de Saúde e Bem-estar,

como é o caso de Érica:

Toda minha bagagem profissional me fez estar aqui dando aula. Com a bagagem de Saúde Pública, com a bagagem da Farmácia, da Cosmetologia [...]. Eu sinto que consigo agregar valor na vida dos alunos. Isso eu não consigo só atendendo como esteticista. (Érica)

Por fim, a fala do engenheiro e docente Neto reforçou a especificidade dos

saberes profissionais-experienciais no contexto da educação profissional:

Essa docência do ensino técnico é uma docência diferenciada. Eu acho. É um curso muito dinâmico, muito rápido e muito prático. Tudo o que a gente vê no curso, a gente vê na prática também. Se eu tenho um docente que vivencia a prática diariamente, ele está em constante contato com essa atualização de material técnico e de como o aluno vai encontrar o mercado de trabalho. O docente do curso técnico tem muito o foco de tentar ser mais prático e de mostrar a realidade do mercado de trabalho para o aluno. Em uma graduação, não há esse foco. Não é tão específico. (Neto)

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4.3.1.1 Saber profissional-experiencial do cuidar

Tratamos nesta pesquisa do cuidar, visto por Tardif (2002, p. 22) como “o

saber humano a respeito de seres humanos”.

Em um primeiro momento, pudemos identificar falas focadas no cuidado

humanizado, que amplia a função social do docente de Enfermagem:

Eu pensei em fazer Medicina, mas hoje eu vejo que a Medicina era a única coisa que me ligava ao cuidado. Eu gosto do cuidado. E nisso a Medicina está distante. Não que a profissão do médico seja desmerecedora, [...] mas o médico tem outro foco. O foco da Enfermagem é o cuidado. O que eu gostava era do cuidado. Quando eu descobri a Enfermagem, eu descobri que toda minha vida, eu quis, na verdade, ser enfermeira, só que acho que talvez pelo pouco conhecimento dos meus pais, eles não me deram toda instrução. Para eles, trabalhar com Saúde era ser médica. Enfermagem era uma coisa secundária e não se dava importância. Acho que hoje a Enfermagem está alcançando um grau de importância na Saúde. Mas, antes, a enfermeira era só a ajudante do médico. A Enfermagem só ajudava ou complementava o trabalho do médico. Hoje, a população e o profissional mesmo têm conhecimento do valor que ele [profissional da Enfermagem] tem. O enfermeiro faz muito mais do que o médico. Eu prefiro até me consultar antes com um enfermeiro do que com o médico. Uma consulta com um amigo primeiro, sabe? “Você já teve esse tipo de problema ou viu um paciente assim?” Eu prefiro muitas vezes isso do que procurar o médico. (Luanda) (grifo nosso)

Como era previsível, a docente da área de Enfermagem descreveu com

assertividade esse contexto do cuidado, sem sequer ser diretamente questionada a

respeito:

Responsabilidade do cuidado, da assistência adequada [de Enfermagem]. É um cuidado baseado em conhecimento científico. É uma responsabilidade conscientizar o docente e o aluno sobre esse conhecimento científico. Não dá pra ser um cuidar mecânico. (Luanda)

E considerando o que nos propõem Fazenda e Souza (2014, p. 17) quanto à

visão do espaço da escola como um espaço também para o desenvolvimento do

cuidado, nas três dimensões do cuidar de si, do outro e do mundo, Luanda nos

ajudou a esclarecer:

Cada pequena coisa que dá certo é como o tratamento que a gente faz com os pacientes hipertensos e diabéticos. Você vê [...] é difícil não vincular o que eu falo com a minha prática. Cada pequeno avanço no tratamento, é um grande avanço para nós. Eu vejo exatamente isso na Educação. Pode demorar para ver resultado. (Luanda) (grifo nosso)

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Na área de Segurança do Trabalho, existe clareza na fala dos docentes

pesquisados de que estamos na esfera do cuidar do aluno e de saber ensiná-lo a

cuidar do outro:

Em todo momento, eu me vejo falando: “Para quem eu estou falando?”. Por exemplo, para o futuro técnico em Segurança do Trabalho. Eu tento lembrá-los sempre o que significa falar sobre Ergonomia e orientar os funcionários de uma empresa. Qual é sua missão como técnico em Segurança do Trabalho? Que problemas sérios você pode evitar na vida de outras pessoas? Acho que eu trago esta questão da responsabilidade na vida do outro. (Gabriela) (grifo nosso)

Logo que eu entrei [no curso Técnico em Segurança do Trabalho], eu me apaixonei, pois percebi que era pra cuidar de vidas. Lidar com as vidas das pessoas. Isso eu gosto muito. [...] É o trabalhar com vidas, principalmente na nossa área [Segurança do Trabalho]. Esse trabalhar com vidas é primordial. É um saber lidar com vidas, tanto em um curso de Enfermagem, de Massoterapia, ou no Técnico em Segurança do Trabalho. Você tem que saber trabalhar com vidas. Em uma área de TST [Segurança do Trabalho], você tem que saber identificar os riscos, saber implantar o controle, saber analisar o ambiente. [...] Você tem que deixar um ambiente saudável para o trabalhador. [...] É um desafio diário ensinar tudo isso pra eles [os alunos]. (Júnior) (grifos nossos)

O saber profissional-experiencial do cuidar também esteve presente na fala

de Maria, da área de Estética:

Minha preocupação como docente é que o aluno tenha consciência do quanto ele deve ser responsável, o quanto este trabalho exige que você seja um bom profissional. Você lida com seres humanos. Você tem que olhar o lado emocional, o lado físico, porque o que você faz pode provocar reações, o lado comportamental, porque você não consegue agradar todo mundo e tem que saber lidar com isso. A gente tenta transmitir tudo isso para o aluno, para que ele chegue preparado no mercado. (Maria)

Já Ana, docente multidisciplinar das áreas de Saúde e Bem-estar, soube

definir bem em sua fala o que consideramos como saber profissional-experiencial do

cuidar, sob a perspectiva da sala de aula:

Mas, falo primeiro em olhar o outro – o outro, aluno, pensando na questão que eu preciso preparar essas pessoas para que elas tratem de outras. (Ana)

No mesmo contexto, Ana resgata o cuidado que recebeu de uma de suas

professoras. Conseguimos, em sua entrevista, explorar melhor o tema do cuidar do

aluno como condição preliminar de qualquer aprendizagem:

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[...] Mas tem também a Adriana. Adrianinha, uma físio [fisioterapeuta] que também me ajudou muito porque eu tinha muita dor. [...] Ela fez a diferença pra mim! Muito! [Ela ajudou a] cuidar de mim. Como isso foi muito forte para mim, eu procuro sempre trabalhar nessa linha. Sempre você deve cuidar de si para você poder cuidar do outro. Isso é muito forte na Masso [Massoterapia]. [...] Eu acho que em todos os setores da vida. Se eu for dar aula lá na Economia, eu vou falar disso. Você tem que estar bem antes de tudo. Principalmente na Masso [Massoterapia], é óbvio. Para você cuidar de alguém, você precisa primeiro estar bem. (Ana) (grifo nosso)

Com esse trecho da entrevista de Ana, conseguimos constatar a existências

das três dimensões do saber cuidar no processo de ensino-aprendizagem: saber

cuidar de si, do outro e do mundo.

4.3.2 Saberes pedagógicos

Foi evidenciado, nas entrevistas, que o desafio não passa pela questão do

conteúdo técnico. O desafio está no saber pedagógico, carente de desenvolvimento

nos docentes das áreas de Saúde e Bem-estar, que assumem não terem passado

por formações pedagógicas e didáticas específicas em suas trajetórias educacionais

pessoais.

Luanda assumiu a lacuna da formação pedagógica em sua trajetória quando

apontou:

[...] [Falta-me] conhecimento da área educacional. Eu tenho conhecimento técnico da área da Saúde, mas não tenho conhecimento técnico da área educacional [...] A Educação é uma profissão ainda nova para mim. (Luanda)

O saber pedagógico foi traduzido por Júnior como a forma de ensinar:

Você também tem que estar constantemente se atualizando na forma do ensinar. (Júnior)

Retomando Freire (2002, p. 102): “O professor que não leve a sério sua

formação, que não estude, que não se esforce para estar à altura de sua tarefa, não

tem força moral para coordenar as atividades de sua classe”.

E assim percebemos na entrevista de Maria, quando ela apontou o que está

além do conteúdo:

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A forma de conduzir a aula [está além do conteúdo]. Aí eu estou aprendendo a ser professora. Com uma turma é de um jeito e com outra é de outro. A gente vai tendo que pensar [...] que pensar [...] como vou me portar nesta sala? (Maria) (grifos nossos)

E na entrevista com Ana e com Júnior, eles falaram diretamente sobre a

importância do estudar para o docente:

Primeiro, porque quando eu estou em sala, eu tenho que estudar sempre mais para que eu esteja preparada. Isso [entrar em sala de aula] é o combustível para eu sempre estudar. [...] Entrar em sala e ter contato com o aluno é... uma delícia. (Ana) O docente é aquele que sempre estuda. Você tem que estudar. Eu sei que isso é a essência. Estudar. Todos os dias, eu leio um pedacinho da norma [Normas Regulamentadoras da Segurança do Trabalho]. Essa semana mesmo mudou um item de uma norma. (Júnior)

Para o docente das áreas de Saúde e Bem-estar, o desafio do saber ensinar

é constante:

Eu tinha uma questão de querer entender para quem eu ia falar. Isso me afligiu um pouco. A problemática nunca foi falta de conteúdo. Mesmo que eu não soubesse, eu ia aprender, ao me preparar para a aula. O meu desafio era: “Quem são estas pessoas?”, “Para quem eu vou dar esta aula?” (Gabriela) (grifos nossos)

Júnior, que é docente há apenas seis meses, respondeu, ao ser questionado

sobre o que lhe faltava na docência:

É entender um pouco mais a parte pedagoga [sic!], como funciona a docência em si. Eu consigo pegar um assunto e elaborar [a aula]. Mas eu ainda estou buscando a minha formação como professor, por isso que eu recorro aos colegas [...], para dar esse suporte. (Júnior)

É necessário, para o docente da educação profissional, aprender a ensinar:

Eu aprendi que existem outras formas da gente aprender e existem outras formas da gente ensinar. (Gabriela)

O aprender a ensinar passa pela inovação e pela ousadia, no processo de

constituição da profissionalidade docente na educação profissional:

A gente consegue se reinventar. Isso foi bom. Isso foi muito bom. Não sei se eu conseguiria dar uma aula fora desses padrões hoje. Eu acho até que

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não consigo mais dar uma aula sobre sistema nervoso com giz e lousa. Você pode me conseguir barbante, massa de modelagem e um pouco de algodão? É isso que eu vou precisar para esta aula. Eu não consigo mais entender aquela aula quadrada. Esta aula vai ter que ser assim para todo mundo agora. (Gabriela)

Nesta pesquisa, também buscamos refletir sobre um saber pedagógico

entendido como o “saber viver em seu tempo”. Encontramos isso em algumas falas,

como, por exemplo, na fala de Gabriela, que nos remete à visão de Sarmento (2009)

sobre os avanços tecnológicos:

Em um momento, eu tive que aprender a cuidar de diários e a usar uma planilha em Excel. [...] Isso também faz parte do que aprendi para estar aqui. (Gabriela)

A fala de Neto é outro exemplo disso e nos remete à visão de Franco (2006)

sobre o choque de realidade enfrentado pelo docente ao entrar em sala de aula:

A gente nunca tá pronto. Na Segurança do Trabalho, a gente tem que estar sempre se atualizando. Cada dia é uma experiência diferente em sala também. A gente tem que aprender a lidar no próprio momento na sala de aula. Em tempo real mesmo, a gente tem que tomar decisões. (Neto) (grifo nosso)

Ainda considerando Franco (2006), Clarice também é convidada a viver em

seu tempo, para lidar com sua aluna de 18 anos, em relação à questão de

(in)disciplina:

Isso é um aprendizado a cada dia, porque cada aluna é uma. Por exemplo, a minha aluna que tem 18 anos. A expectativa dela com relação à Podologia é muito diferente da expectativa da minha aluna que tem 42 [anos], que já é casada, que já tem filho adolescente e que está buscando uma melhoria na vida. A de 18 anos está aqui para buscar uma primeira profissão; acabou de sair do ensino médio. (Clarice)

A mesma intensidade de choque de gerações, potencializada por sua herança

na educação considerada tradicional, foi encontrada no caso narrado por Maria, da

área de Estética:

A diferença é gritante de várias formas. Inclusive eu estou sempre me adaptando. Eu já tive muita dificuldade em lidar com os alunos do jeito que eles estão... soltos, livres. Tudo é normal e tudo pode. Em Estética, no meu tempo, a gente ainda tinha muito respeito pelo professor [...] até certo receio. Eu via o professor com uma autonomia maior porque ele conseguia

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manter a sala sob seu domínio. Hoje já é mais difícil ter esse domínio, porque são muitos direitos. Hoje a gente tem que tomar muito cuidado para chamar a atenção do aluno. Tem que tomar muito cuidado. O aluno, como eu disse, está muito solto. O docente fica numa situação delicada. Não tem muito jeito, a gente tem que se adaptar. (Maria)

Maria comparou seu comportamento como aluna ao comportamento de suas

alunas. Nesse contexto, visualizamos a oportunidade de aprofundamento da

discussão sobre o choque de gerações, ao que ela respondeu:

Cada geração tem um perfil, tem [...] como é que eu vou dizer? Têm as novidades da geração, as coisas do momento. Hoje fica difícil você falar para um aluno: “Não tenha Facebook

31.” Imagina... Isso já faz parte.” (Maria)

As entrevistas possibilitaram uma expansão do saber viver em seu tempo, no

contexto da necessidade de atualização profissional constante nas áreas de Saúde

e Bem-estar:

Nesse intervalo, de 1999 a 2011, eu fiz muitos cursos. [...] Eu fiz curso de especialização em drenagem linfática, em pele pós-operatório, [...] vários cursos, [...] alguns sobre ácidos, curso de estética para gestantes. Enfim, tudo o que eu achava que ia complementando [o curso técnico], eu ia fazendo. (Maria) O profissional da área de Segurança do Trabalho não pode ficar focado somente no seu instrumento básico, que são as Normas Regulamentadoras. Se ele não acompanhar as notícias do jornal, as matérias das revistas técnicas, ele não vai ser um profissional atual. É importante viver o estudo do momento. Você tem que estar inserido todo momento naquilo que você gosta de fazer. Se eu trabalho com a Segurança do Trabalho, eu tenho que respirar e viver a Segurança do Trabalho para que eu não fique defasada. Até porque o aluno é antenado hoje. Está na Internet, está no Face [Facebook]. (Lorena)

Começamos a notar aqui um entrelaçar entre os diferentes saberes. O saber

pedagógico pode se cruzar com o saber pessoal:

Eu não posso ensinar de uma única forma. Eu preciso me adequar ao grupo. Primeiro isso é o mais importante. Eu tenho que usar de todas as linguagens possíveis. Eu acho que o primeiro aprendizado que eu tive foi esse. Tem gente que é visual, auditivo, enfim, tem aquele que você precisa olhar bem nos olhos. [...] Eu tento ensinar da forma como eu gostaria de aprender. (Ana) (grifo nosso)

31

Rede virtual de relacionamento.

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Assim como em Maria, o adequar se fez presente também na fala de Ana:

Como cada um [aluno] aprende. Cada um tem o seu processo. [...] isso também não está na graduação, porque eu conheço pessoas licenciadas que dão aula e que não têm esse olhar. Eu me questiono com relação a isso. Não sei se é a área ou o perfil. Ou se é do ser humano mesmo. (Ana)

Em um determinado momento de sua entrevista, Ana julgou necessária a

formação na área pedagógica para o bom desempenho da docência. Em outro

momento, identificou saberes que não são ensinados em uma formação formal,

como, por exemplo, em um curso de Licenciatura.

Em mais de uma entrevista, ouvimos que “a aula tem que ser bem dinâmica”,

como Francisco no esclareceu, entrelaçando o saber pedagógico e o saber pessoal:

A gente tem que tentar passar o conteúdo da melhor forma possível. A gente tem que discutir mais esses aspectos pedagógicos. [...] Tenho certeza que você tem que saber o que você vai passar. [...] esse domínio dos conceitos é fundamental. Mas, se você não conseguir fazer um link com o aluno, não vai dar certo. (Francisco)

Discutido isso, podemos passar à análise dos saberes pessoais, que já

começam a se entrelaçar a outros saberes.

4.3.3 Saberes pessoais

Retomamos um trecho da entrevista com Gabriela, já citado no “eixo da

profissionalidade”, pois se trata de uma introdução propícia para apresentar o que

conceituamos como saberes pessoais docentes nesta pesquisa:

E eu falo muitas vezes isso na sala de aula. Eu falo: “A gente não está aqui para ter aula maçante. A gente está aqui para construir. Quando a gente constrói, a gente aprende. E se a gente dá risada, se emociona, se a gente consegue fazer associações, isso marca para o resto da vida. Se for algo para a gente passar, só por passar, é só mais um dia nas 1.200 horas que a gente vai passar aqui dentro”. Então tem uma questão de usar as emoções, os sentimentos, as coisas que fazem sentido, as percepções que eu trago para cá [para a sala de aula]. Por experiência própria. Isso é meu. É o que eu tento, trazer para cá daquilo que eu vivi. (Gabriela) (grifos nossos)

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Tanto Gabriela como Júnior recordaram, em suas falas, o quanto trazem para

suas práticas o que é de seus “professores internos”. A primeira recordação de

Júnior, de seu tempo como aluno, foi a relação com seus professores. Seguramente,

o pesquisado traz isso para sua prática. Em sua primeira fala, já citada também

anteriormente, no “eixo das influências”, Júnior reforçou o quanto se sente próximo

dos alunos e valorizou essa experiência, recordando:

Eu tive professores que me apoiaram bastante em momentos difíceis. Em momentos difíceis, sabe? Sabe quando a gente pensa em desistir, em parar? [...] Para entrar em uma sala de aula, você precisa saber qual é o valor de uma vida e de uma amizade. Acho que isso é primordial. Não tem como entrar em uma sala de aula sem isso. (Júnior)

É importante considerar, neste momento da análise, que Júnior tinha seis

meses de experiência na docência quando foi entrevistado e que havia terminado o

curso técnico há pouco menos de dois anos. Em momentos de sua entrevista, ele

demonstrou o quanto ainda se enxerga como aluno:

Me sinto ainda um aluno. É até engraçado, porque você ainda se vê nos alunos. Eu olho pra sala e penso: “Eu fazia isso mesmo, quando era aluno!”. Eu me identifico. Parece comigo quando eu estudava. (Júnior)

Essa identificação de Júnior pode se constituir em um saber pessoal que o

ajuda a desempenhar seu papel de docente na educação profissional. O ver-se no

outro é característica do contexto do “ser-em-relação”, de Moreno (1975).

Como Freire (2002, p. 106) pontua:

Ensinar e, enquanto ensino, testemunhar aos alunos o quanto me é fundamental respeitá-los e respeitar-me são tarefas que jamais dicotomizei. [...] A prática docente que não há sem a discente é uma prática inteira. [...] Este é outro saber indispensável à prática docente. O saber da impossibilidade de desunir o ensino dos conteúdos da formação ética dos educandos.

Francisco também notou a indissociabilidade entre atividade docente e

atividade discente:

Precisa se envolver com os alunos. Sem se envolver, não tem como desenvolver. Isso eu aprendi desde o começo de minha carreira na escola pública. (Francisco)

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Gabriela enfatizou o saber pessoal, citado por ela como o saber perceber,

que, às vezes, está compreendido também no saber pedagógico do saber viver em

seu tempo e no “ser-em-relação” moreniano:

É o saber perceber o outro, saber perceber o grupo, saber perceber os indivíduos. E até nossa postura, o nosso comportamento. Perceber o momento de propor uma intervenção, uma atividade. Tem que saber perceber o emocional da turma. (Gabriela)

Nessa direção, podemos fazer um paralelo novamente com Freire (2002, p.

153):

Testemunhar a abertura aos outros, a disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios, são saberes necessários à prática educativa. [...] O fechamento ao mundo e aos outros se torna transgressão ao impulso natural da incompletude.

Essa abertura ao outro e essa capacidade de percepção descritas por Freire

(2002), estão presentes também na fala de Luanda:

Eu olho muito a expressão facial. Eu aprendi muito a observar o outro. Eu olho para ver se o aluno está entendendo ou não o que eu estou dizendo. Na Enfermagem, é observar se o paciente está com dor ou não. Na sala de aula, é tentar interpretar expressões “Entendi”, ou “Não entendi”, ou “Estou voando!”. (Luanda)

O saber pessoal foi traduzido de muitas formas distintas nas entrevistas:

saber perceber, saber criar vínculo, saber lidar com o aluno e saber olhar o outro:

Em sala de aula, acho que precisamos desenvolver o olhar para o aluno que tem maior dificuldade. (Clarice)

Esse é um saber pessoal que está diretamente relacionado ao saber

pedagógico. Na fala de Neto:

Saber lidar com as pessoas. Você tem aquele aluno que chega cansado depois de trabalhar o dia inteiro e tem aquele que não fez nada o dia inteiro. Tem aquele que vem com experiência em campo e aquele que vem com experiência nenhuma. A gente vê objetivos bem diferentes entre os alunos. Vejo muitas cabeças diferentes em sala de aula e temos que saber lidar com cada um deles. (Neto)

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Nas seguintes falas, percebemos a amorosidade e a humanidade no

processo de ensino-aprendizagem, que são fortemente pontuadas por Freire (2002):

E sempre, sempre observei as pessoas ao meu redor. “Então, o que eu posso fazer por essa pessoa?” (Luanda) E uma outra coisa que se aprende é o lado humano [...] a convivência e as relações interpessoais. (Maria) Eu gosto muito de ter proximidade com os alunos. Até retomando o que eu disse da minha formação [mencionou a proximidade com seus docentes]. É preciso conhecer o aluno. [...] Vou citar o caso de uma aluna. A gente vê que ela tem muita dificuldade. Até de vir pra aula, por questões físicas e psicológicas. O modo de lidar com ela em sala de aula acaba sendo diferente. Às vezes, você está aí em sala e ela está chorando. Os resultados dela são excepcionais, pelas dificuldades. Ela se esforça muito. Outra aluna de 50 anos é muito batalhadora. Ela não tem nenhum contato com a prática, mas quer aprender. É uma pessoa que eu achei que ia acabar abandonando o curso. Eu me surpreendi com a evolução que ela teve. Eu acho que é isso [a proximidade com os alunos] que faz a diferença. (Neto)

Na entrevista de Ana, encontramos o que denominamos como saber pessoal

motivacional, o qual entendemos como a capacidade de perceber a necessidade de

motivação no processo de ensino-aprendizagem. Quando questionada sobre o

impacto do exemplo de seu professor em seu comportamento como docente, hoje,

Ana apontou que:

O Cesar era um cara assim [...] oriental. Oriental gosta de tudo cheio de regras. Ele olhava aquele aluno que ele via que não tinha potencial, mas queria ajudar. Ele falava: “Tenho que ajudar esse cara!” Ele gostava de mexer com essas potências. Ele gostava de despertar as pessoas que achavam que não tinham dom. Tanto que eu não me esqueço disso que, na primeira aula de Shiatsu que eu dou para uma turma [...] – Shiatsu é o monstro em um primeiro momento para os alunos [do Técnico em Massoterapia], pois é meio difícil mesmo [...] – eu uso a frase dele: “Eu vou fazer vocês amarem isso. A minha missão é fazer com que vocês se apaixonem.” [...] Ele tinha paixão por aquilo e fazia as pessoas gostarem. As pessoas eram contagiadas. Ele era assim. Ele olhava o aluno no olho e falava assim: “Vamos!”. Ele era muito cartesiano e muito certinho. Eu tenho ele fortemente como referência. (Ana)

Gabriela, por sua vez, propôs o saber espacial como o saber posicionar-se no

grupo. Poderíamos entendê-lo como um saber pessoal e pedagógico. Sua

explicação é clara e lógica:

O saber aprender, o saber perceber. Acho que também... um saber espacial é importante. É porque a gente tem o quadrado da sala de aula que nos traz

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aquele ranço da escola tradicional. E acho que tem uma questão que é contínua aqui dentro do quebrar o gelo. O professor aqui na frente, em uma posição tão hierárquica e até opressora. O saber perceber também é a percepção que nossos alunos têm de quem está aqui na frente. Noventa por cento dos alunos estão acostumados com o ensino tradicional, onde você apenas ouve. Então esse espaço onde você pode transitar pelos alunos, escutar, ver onde estão as “panelas”, onde estão as afinidades, é o saber espacial. O saber espacial é saber se localizar. “Onde é que eu estou?” (Gabriela)

Neto fez semelhante reflexão:

A gente tem que se localizar como professor. É você que tem 40, 30 alunos na sua frente pra formar. É com o tempo que a gente evolui. A cabeça que eu tenho hoje é muito diferente da que quando eu entrei. Eu não achava que conseguiria dar aula. Sou muito fechado. Eu não achava que conseguiria me aproximar dos alunos. (Neto)

Enfim, o saber pessoal passa pelo envolvimento afetivo, como apontou

Lorena:

Era uma turma bem diferenciada. Eram alunos respeitosos, amorosos e unidos. Eles dividiam entre eles as dores de cada um. Não dá para ignorar essas emoções no processo de aprendizagem. O aluno acaba percebendo a sensibilidade do professor. (Lorena)

E assim, Freire (2002, p. 164-165) nos ajuda a compreender esse

envolvimento a que se referiu Lorena:

Como prática estritamente humana, jamais pude entender a educação como uma experiência fria, sem alma, em que os sentimentos e as emoções, os desejos, os sonhos devessem ser reprimidos por uma espécie de ditadura reacionalista.

Por todos esses aspectos, o saber pessoal se entrelaça ao saber pedagógico

e ao saber profetizar.

4.4 Saber profetizar

Tendo passado pela análise de dados que se referem ao saber pessoal,

começamos a visualizar outro entrelaçamento entre os saberes pessoais e o saber

profetizar. Consideramos aqui o conceito das profecias autorrealizadoras de Pato

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(1986), que pode ter seu significado explicado em Freire (2002, p. 47): “Mal se

imagina o que pode passar a representar na vida de um aluno um simples gesto do

professor”.

O profetizar surgiu espontaneamente na entrevista de Gabriela, conforme

podemos constatar no seguinte trecho da entrevista:

O que falta para mim? [...] Acho que é, às vezes, até me livrar um pouco do tradicional. Tem algumas coisas que eu ainda carrego. Meu desafio é tirar um pouco do profetizando, sabe? Quando eu digo: “Isso aqui não vai funcionar”. O meu desafio é usar o meu saber perceber, sem deixar ele me dominar. (Gabriela) (grifos nossos)

Quando questionada sobre o verbo “profetizar” de sua fala, Gabriela explicou:

É quando eu digo: “Faça assim, senão não vai dar certo”, como se eu fosse dona da verdade absoluta. A gente tem que tomar cuidado com a verdade absoluta que a gente passa para os nossos alunos. Às vezes, eu me pego com verdades absolutas. Por exemplo, do meu próprio tio. Tinha muitas questões que ele trazia para a sala de aula que eu, adolescente, falava: “Ele está de brincadeira!”. É uma coisa que era verdade absoluta para ele e é até hoje. Eu me pego me policiando para não ter essas questões. Ele era muito rígido, um professor muito rígido, e um dia, ele disse para um aluno [...] Acho que eu posso contar isso aqui, né? [...] “Viu? Se você não melhorar...”, ou algo assim, “Se você não se empenhar e se dedicar, você não vai conseguir fazer nada de diferente na vida além de ficar lá no RS [rede local de supermercados], arrumando os produtos!”. Era um garoto que estava na oitava série, mas que tinha repetido muito, então ele já trabalhava. Acho que ele já tinha uns 16 anos e tinha muito dificuldade para aprender. E meu tio falou em sala de aula falava: “Se você não estudar, não vai ter jeito. Vai passar a vida fazendo pacotes no RS”. Eu sempre via esse menino embrulhando os pacotes no RS, ainda quando ele devia estar perto dos 30 anos. Então, até onde aquilo foi profético para o menino? A gente tem que tomar muito cuidado. (Gabriela) (grifo nosso)

Ao relatar sua experiência, Júnior, docente e ex-aluno do SENAC, também

nos ajudou a entender sobre a profecia autorrealizadora, mas sob outra ótica, a de

ter um resultado positivo na vida dos alunos:

Uma lembrança que me marcou bastante foi no meu último dia do curso [Técnico em Segurança do Trabalho], quando fui apresentar meu projeto. Eu ouvi algo de um professor que mexeu muito comigo. Eu não me esqueço até hoje. Bem no último dia, quando eu acabei de apresentar, o professor Cristiano disse: “Hoje, eu não estou formando um aluno. Eu estou formando um amigo, um irmão. Eu conquistei isso nesse um ano e meio e você me conquistou”. Eu não esperava ouvir aquilo de um professor meu! A gente teve mesmo uma relação de amizade, de tanto ele me ajudar [...] Ele virou e me disse: “Essa vaga já é sua!” Eu estava meio desacreditado. Ele dizia: “Vai, que é sua! Você só vai me ligar na quarta-feira,” – porque minha entrevista foi em uma segunda – “avisando que você passou!”. Quando eu

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liguei já na terça, avisando que eu tinha passado, ele disse: “Eu sabia. Não esqueça que fui eu que te dei aula”. (Júnior) (grifo nosso)

Outro depoimento que nos remete à profecia autorrealizadora positiva é o da

docente de Podologia, Clarice:

Inclusive foi meu professor, que é o coordenador do curso de Podologia [Tecnólogo], que identificou esta possibilidade de dar aula. Ele me ofereceu fazer uma pós-graduação em docência para que, depois de concluída essa pós, eu fosse trabalhar com ele. Antes mesmo disso acontecer, ele mesmo me falou sobre a possibilidade no SENAC. (Clarice)

A profecia autorrealizadora, nos casos de Júnior e de Clarice, pode ser

considerada como uma disparadora do processo de constituição da

profissionalidade docente. O mesmo ocorre no caso de Maria:

Eu até me lembro do nome dessa professora do curso de depilação... Ela disse assim para minha irmã: “A tua irmã precisa fazer um curso técnico. Com um curso técnico, ela vai longe”. (Maria)

Na trajetória de Ana, também encontramos marcas de uma profecia, desta

vez negativa, embora não autorrealizadora:

Eu sempre vim de escola pública e, quando eu fui fazer faculdade, tinha um professor que me dizia que eu não chegaria a lugar algum. Eu peguei isso como um desafio. Escola pública ou privada, não importa. É algo da pessoa. Eu tomei esse desafio. Mexeu comigo. Mexeu positivamente. (Ana)

Na entrevista de Ana, conseguimos entrelaçar o saber pessoal, entendido

como motivacional, com o saber profetizar, o saber profissional-experiencial do

docente com relação a seu aluno e, ainda, o saber pedagógico, razão pela qual

julgamos pertinente trazer esse trecho mais extenso da entrevista:

Duas alunas deram depoimentos no final da aula que me emocionaram também. Como a vida delas mudou depois daquele curso, daquele momento. O que mexe muito comigo é ver aquele aluno que não tem potencial nenhum e, de repente, está brilhando lá fora. [...] Nossa! Na verdade acho que, ao longo da história dele, nunca ninguém lhe deu uma oportunidade antes, ninguém lhe deu um cutucão. [...] Há uma mudança de vida, de temperamento – uma descoberta de personalidade e um caminho novo. [...] Em especial aqui, por ter esse método no SENAC. [referindo-se ao “cutucão”]. A metodologia do SENAC permite isso, mas isso também parte do profissional [docente] que está por trás. Temos que dar oportunidade para o aluno se desenvolver. Isso é uma algo que me toca muito. [...] Falando agora, me veio [sic!] todos os alunos de uma vez.

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Cada um dos alunos e sua história. Eles vêm e desabafam achando que você pode resolver alguma coisa. Mas, na verdade, você ajuda só de ouvir e falar: “Você vai conseguir. Segura as pontas que vai dar certo!” Acho que eles nem esperam tanto que você dê um caminho. É o ouvir mesmo. Isso, nossa! Mexe muito comigo! Tem muitas histórias. Isso é muito forte! Bem forte! [...] Um aluno que logo me chamou a atenção quando eu entrei foi o Jorge. Todo mundo veio já me passar o diagnóstico, logo que eu entrei. Agora, parece que eu adotei um filho! Eu jamais, sinceramente, [...] sinceramente, quando eu percebi, eu me perguntei: “Como eu vou ajudar esse cara com déficit de tudo...?” É um aluno com déficit de aprendizagem. Ao longo de sua trajetória educacional, ele criou o hábito de simplesmente anotar tudo, mas tudo, para conseguir aprender. Ele anota, anota e anota, mas não consegue criar uma linha de raciocínio, como exige algo filosófico como a Massoterapia, que envolve a Medicina Oriental e as patologias. Você precisa conhecer a evolução das doenças. Enfim, ele tinha muita dificuldade pra isso. Na prática, ele era ótimo. Ele decorava [as manobras], repetia muito tudo e conseguia fazer. Mas eu pensava assim: “Puxa! Esse cara vai ser difícil de atender e tratar. Só se ele levar o caderninho dele onde ele for”. Daí, nos atendimentos, eu percebi que ele continuava anotando tudo. Eu disse: “Jorge, nos próximos atendimentos em laboratório, você continue anotando tudo”. Já estávamos no último módulo com os atendimentos massoterapêuticos e ele continuava anotando todas as condutas. Mesmo assim, ele se saiu bem... bem. Eu não imaginava que ele fosse trabalhar e que ele fosse criar uma autoconfiança, porque ele não tinha isso. Ele era superinseguro e tinha um sentimento de incapacidade. Isso ele deixava claro. Ele olhava pra mim e dizia: “Professora, eu não vou conseguir fazer isso, né?” Eu virava e falava: “Venha aqui!”. Mas, no fundo, eu pensava: “Puxa! Como eu vou ajudar?”. [...] Eu pedia sua calma e dizia que cada um tinha o seu momento para despertar isso. “Você vai ter o seu momento, o seu despertar. Vai chegar o momento. Continue estudando e tenha paciência com você mesmo.” Eu sempre dizia isso a ele. [...] Faz um ano que ele se formou. Ele vem direto aqui no SENAC. A gente criou um vínculo. Quando ele tem dúvida, ele anota e vem falar comigo. Ele tem todos os atendimentos anotados na sua agenda. Hoje ele atende. Esses dias, ele veio me contar que vai trabalhar em uma clínica médica com fisioterapeuta e ortopedista

32. Ele também faz vários cursos livres com a

gente. Fez o último agora de Massagem Indiana. Ele encontrou hoje seu caminho e é seguro no que faz. Confesso que, para mim, foi uma grande surpresa. [...] Ele me ensinou a acreditar muito mais no potencial das pessoas. Até em mim! Todo mundo passa por um momento de superação na vida. Até eu, em um momento do meu aprendizado, quis abandonar tudo. E eu não tenho nenhum déficit. Ele me ensinou isso, que se você acreditar, você consegue. Sei que isso é um clichê. (Ana) (grifos nossos)

Esse entrelaçamento finaliza de maneira conclusiva esse eixo dos saberes

docentes.

32

Ele já atende com Quick Massage e Auriculoterapia em uma loja.

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138

4.5 Eixo das ações formativas e compartilhamento entre pares

Neste último momento da análise dos dados, abordaremos um dos objetivos

específicos desta pesquisa, visando a apontar a relevância das formações

específicas para o exercício docente nas áreas de Saúde e Bem-estar.

É importante considerar o conjunto articulado de ações estratégicas que é

programado pela instituição campo de pesquisa, abrangendo:

o Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE), com duração de 12

horas, cumpridas integralmente, que tem como objetivo principal discutir o

“Jeito SENAC de Educar”, apresentando, ao docente que ingressa na

instituição, os principais documentos educacionais que norteiam o processo

de ensino-aprendizagem: a Proposta Pedagógica (2003), referenciada em

diversos momentos desta pesquisa; os Planos de Curso e os Planos de

Orientação, desenvolvidos para cada um dos cursos técnicos oferecidos; os

Planos de Atividade, pensados para o caso dos cursos de curta e média

duração; e o Regimento do SENAC São Paulo. Esse conjunto de informações

são as referências principais para contextualizar o docente no processo de

ensino-aprendizagem, assim como nos processos burocráticos, além de

mostrar a ele como a instituição entende a Educação hoje. Esse Programa é

a formação básica inicial para o docente;

os módulos de extensão do (PDE), cada um com carga-horária de 8 horas,

cumprida integralmente, que propõem um aprofundamento de questões

apresentadas no módulo básico de 12 horas, como: o planejamento de aula; o

processo de avaliação; e as estratégias participativas no processo de ensino-

aprendizagem;

o Programa de Educação Corporativa (Educor), que, além de abranger o PDE

e seus módulos, oferece formações de cunho técnico nas específicas áreas

de conhecimento: Enfermagem, Estética, Massoterapia, Podologia e

Segurança do Trabalho, para atualização profissional constante, que coincide

com o “saber viver em seu tempo” do docente;

o projeto Roda de Prosa, pensado de maneira conjunta por três unidades do

SENAC São Paulo (Jundiaí, Campinas e Sorocaba), são momentos coletivos

organizados trimestralmente, que propõem desde uma reflexão filosófica

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sobre o educar até uma formação bem específica sobre o novo diário de

classe eletrônico. É um momento de compartilhamento entre os docentes das

distintas áreas de conhecimento da unidade. Pelo menos um encontro anual

reúne os docentes das três unidades envolvidas;

as reuniões pedagógicas de área, que ocorrem mensal ou bimestralmente, de

acordo com a possibilidade de cada área específica (Enfermagem, Estética,

Massoterapia, Podologia e Segurança do Trabalho). Nesses momentos

coletivos: debatemos as ressonâncias das formações anteriores;

aprofundamos discussões sobre necessidades específicas das áreas, como a

forma de planejamento de cada docente e a necessária expansão para o

planejamento coletivo; pensamos sobre os aspectos operacionais de cada

curso; e fazemos um acompanhamento pedagógico do processo de ensino-

aprendizagem de cada turma do curso técnico, observando-se o

desenvolvimento de cada aluno do grupo.

Em Placco e Souza (2006, p. 17), encontramos a fonte provocadora para

esse objetivo específico da pesquisa, que visa a investigar o contexto formativo

docente na instituição: “A aprendizagem do adulto resulta da interação entre adultos,

quando experiências são interpretadas, habilidades e conhecimentos são adquiridos

e ações são desencadeadas”.

As ações estratégicas citadas acima não foram analisadas de per si, mas a

partir do olhar e das falas dos profissionais.

Duas questões finais da entrevista, relativas à fase profissional, provocaram a

reflexão sobre esse conjunto de ações formativas, sobre o compartilhamento entre

pares e sobre o planejamento coletivo.

Entre os dez sujeitos pesquisados:

4 (quatro) declararam que as ações formativas são suficientes;

4 (quatro) declararam que haveria espaço para outras formações;

2 (dois) se mostraram indecisos e não tiveram clareza para responder.

É válido reforçar que as respostas não variaram de acordo com o tempo de

cada pesquisado na docência, tampouco com a trajetória educacional de cada um.

Há reconhecimento das ações formativas oferecidas, conforme apontaram as

falas de Gabriela, Francisco e Lorena:

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A instituição nos dá um respaldo importante, com as formações, as Rodas de Prosa. (Gabriela) Eu sou fã [das formações], tanto as que acontecem aqui, como em São Paulo [na sede da instituição]. A gente sempre quer mais. (Francisco) O que a instituição faz hoje: ela ajuda muito a gente se formar. (Lorena)

Esse reconhecimento coincide com a necessidade de constante

aprimoramento por parte dos formadores desses docentes, portanto sempre haverá

espaço disponível para as ações formativas.

O movimento de constituição da profissionalidade é constante, infindável e

ininterrupto. Logo, as ações formativas devem seguir esse mesmo movimento,

configurando-se, também, como constantes, infindáveis e ininterruptas.

É notável que todos os pesquisados têm a percepção da docência como uma

profissão aprendida, que estará constantemente em processo de desenvolvimento e

aprendizagem. E, assim, nos deixaram pistas significativas sobre suas necessidades

formativas:

Não sei se uma formação. Talvez uma sensibilização. Sensibilizar em função dos alunos que estão em sala de aula. Eles [alunos] vêm. Vêm com suas histórias. O que eles vêm fazer aqui? Existe uma realidade muito diferente da realidade que eu vivi como aluna. Quem são os nossos professores? Eu não sei como te dizer. Acho que a gente precisaria de uma sensibilização para o saber perceber. Aprender a perceber. (Gabriela) (grifo nosso)

Esse saber perceber, que se destacou no eixo dos saberes e que

encontramos em Freire (2002), Tardif (2002) e Imbernón (2011), foi abordado

também por Rios (2010, p. 125):

O outro, de que se fala na relação docente, é, para o professor, o aluno. Reconhecer o outro no aluno é considerá-lo na perspectiva da igualdade na diferença, que é o espaço da justiça e da solidariedade. O aluno é efetivamente diferente, especialmente no que diz respeito à sua maturidade em relação ao conhecimento.

Em diversas falas, notamos, com clareza, a pontuação sobre a necessidade

de formações pedagógicas para esse grupo de docentes. Tal dado valida o enfoque

atribuído atualmente para a formação contínua dos docentes, no âmbito das práticas

pedagógicas, e reforça a questão da constituição da profissionalidade docente in

loco:

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Acho que me falta experiência na sala de aula. Por isso que é ao longo do tempo que a gente vai aprendendo na própria sala de aula. Eu não cheguei a ter disciplinas pedagógicas nem na graduação, nem agora no mestrado, [...] Eu tento sempre aprimorar a questão didática da aula. É isso que falta para mim. (Neto) (grifos nossos) A necessidade maior [...] maior, maior de todas, é na hora de avaliar o aluno. Ele vai ser aprovado ou reprovado? Ele vai ficar com insuficiente? Ele vai ser bom? Ele vai ser ótimo? Está aí minha maior dificuldade. Isso, sem dúvida, [...] Embora a gente fale que é o aluno que conquista a sua menção [...] na verdade, ele está em sua mão. Então, é um medo muito grande de ser injusta. Olha... [a avaliação] é importante, com certeza, mas teoricamente é diferente da prática. É na prática que se aprende a avaliar, porque cada aluno é um aluno. Você tem que avaliar conhecimento, a desenvoltura dele na prática. Você tem que tomar muito cuidado para não se envolver na vida pessoal [do aluno]. Ele traz a vida pessoal pra dentro da sala de aula. Muitas vezes, ele tem muitas justificativas para as faltas ou o porquê ele dormiu na aula ou o porquê ele não prestou atenção ou o porquê ele foi mal em uma avaliação. (Maria) (grifos nossos)

Foi evidenciada nas falas a importância do compartilhamento entre pares,

assim como vemos em Placco e Souza (2006, p. 17), que sinalizam:

Como bem nos informa Brookfield (1986), seria ingênuo imaginarmos que a aprendizagem do adulto ocorre apenas em cenários restritos ou instâncias formais. Entendida como fenômeno e processo, pode ocorrer em qualquer cenário, entre eles famílias e grupos de ação comunitária como protagonistas.

No eixo das influências, já notamos o despertar para a docência ou para

determinada área de conhecimento, no seio familiar. E, nas falas seguintes,

pudemos notar o valor dado pelos pesquisados para esse compartilhamento entre

pares. Assim como já vimos em Imbernón (2011, p. 33): “A competência profissional,

necessária em todo processo educativo, será formada em última instância na

interação que se estabelece entre os próprios professores, interagindo na prática de

sua profissão”.

Entre os dez pesquisados, cinco falaram com clareza sobre a necessidade de

momentos mais privilegiados para o compartilhamento entre pares, no contexto da

constituição da profissionalidade docente. Dentre eles, destacamos as falas de

Gabriela e de Clarice:

Sinto falta do compartilhamento, principalmente quando a gente se afasta mais de uma turma e se aproxima de outra. O compartilhar é muito importante. São muitas turmas. [...] o que eu posso melhorar? (Gabriela)

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Sinto muita falta, porque eu tenho dificuldades para fazer meu planejamento. [...] Eu peco ainda no quesito de planejamento. Eu quero ajudar os docentes que trabalham comigo. (Clarice)

Falamos de uma expansão dos momentos de compartilhamento, pois é

percebida a existência da colaboração entre pares, no dia a dia da equipe, como

apontou a fala de Júnior:

Mas eu ainda estou buscando a minha formação como professor, por isso que eu recorro aos colegas [...] para ter esse suporte. (Júnior)

Para ele, as ações formativas são consideradas como momentos privilegiados

para a relação entre pares:

As formações PDE, Roda de Prosa têm me auxiliado bastante. Primeiro, porque você começa a se relacionar com os colegas. Depois, para entender melhor a instituição, toda estrutura e toda base. (Júnior)

Existe clareza sobre essa aprendizagem que se enriquece na troca entre os

pares. Ela foi percebida nas falas de diferentes pesquisados, dentre eles, Neto e

Francisco:

Fui aprendendo muito com os demais docentes. Fiquei um mês apenas acompanhando as aulas dos colegas. Eu trabalho mais na área ambiental; outro, com perícias; outro, com ergonomia. Nós trabalhamos em campos diferentes e a troca é muito importante. (Neto) O compartilhamento entre docentes faz a diferença no meu planejamento. O tempo, a gente até tem. A gente precisa se organizar para melhorar o planejamento coletivo. Eu compartilho minhas aulas com todo mundo. (Francisco)

Em uma fala solitária, mas marcante, Lorena recordou-se de um momento de

compartilhamento entre os pares que a tocou de maneira pessoal:

Estávamos em uma reunião de fim de ano. Eu falei que eu estava grávida. Vocês foram as pessoas com quem eu compartilhei a notícia, depois do meu marido e da minha família. Isso me marcou. (Lorena)

Podemos perceber, nessa fala de Lorena, o quanto o compartilhamento

ultrapassa o âmbito profissional quando o convívio é significativo, autêntico e

intenso.

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Ana também nos deixou uma contribuição quanto à questão da

multidisciplinaridade dentro das áreas da Saúde e Bem-estar. Ana é docente

multidisciplinar e tem consciência sobre o quanto aprendeu com essa oportunidade:

Essa troca multidisciplinar, por exemplo, é muito importante e muito rica. Tinha que ter isso. Até para você ver como o outro pensa, como ele transmite a informação. Até para somar pra gente como professor. Essa troca poderia ser ainda mais rica. [...] dentro da nossa área de Saúde e Bem-estar mesmo. É o olhar diferente de cada área. (Ana) (grifos nossos)

A questão trazida por Ana está evidenciada em Placco e Souza (2006, p. 70-

72) e poderíamos trabalhar aqui a própria questão da constituição identitária do

professor, se esse fosse o objetivo desta pesquisa:

[...] Em outras palavras, precisamos do outro para nos mobilizar, para compreender melhor quem somos e a partir daí decidirmos o que fazer, como agir. [...] O professor interpreta a realidade com que se depara, o que lhe dá elementos para planejar ações, experimentar soluções, revê-las, recriá-las.

Tendo analisado as diferentes reflexões que emanaram nas entrevistas,

temos clareza sobre a relevância das formações específicas para o exercício

docente, oferecidas hoje pela instituição. Além disso, percebemos a importância

dada aos momentos favoráveis de compartilhamento entre os pares, tanto formais

como informais, nos corredores e na sala dos docentes. Ouvindo as diferentes falas,

podemos concluir que se aprende a ser docente todos os dias, também com a ajuda

de seus pares.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este capítulo final resgata as principais conclusões dos eixos das análises de

dados, levando-se em consideração, permanentemente, os objetivos desta

pesquisa.

É importante retomarmos, neste momento, a Proposta Pedagógica (2010, p.

7) da instituição campo de pesquisa, atuante na educação profissional, na qual ela

afirma que:

[...] Educar é uma ação intencional e política. Possibilita ao indivíduo o desenvolvimento de competências, fundamentado em conhecimentos científicos e tecnológicos, aprendendo a conhecer, viver, conviver, agir e transformar sua vida e sua prática social, e a participar de sua comunidade. (grifo nosso)

Nessa direção, Coelho (1996 apud RIOS, 2010, p. 51) entende que:

A docência é um processo complexo que supõe uma compreensão da realidade concreta da sociedade, da educação, da escola, do aluno, do ensino-aprendizagem, do saber, bem como um competente repensar e recriar do fazer na área da educação, sem suas complexas relações com a sociedade. (grifos nossos)

Temos de compreender a questão do “tornar-se” e “manter-se” docente todos

os dias, in loco e em relação com o corpo discente, considerando, como Rios (2010,

p. 53), que:

O docente é o professor em exercício, isto é, que efetivamente desenvolve uma atividade. Ser professor é uma profissão. Mas é no efetivo exercício de sua profissão que o professor recebe a denominação de docente, particípio presente – aquele que está desenvolvendo um processo de ensinar. (itálico da autora) (grifos nossos)

Diferentes saberes permeiam toda a trajetória da constituição da

profissionalidade desse docente, que se inicia no seio familiar e culmina na

socialização profissional.

No primeiro bloco da análise de dados, que denominamos “eixo das

influências”, foi evidenciada a valorização da Educação no contexto familiar dos

sujeitos pesquisados. Foi com marcante emoção que esses sujeitos se recordaram

de seus pais, irmãos e tios que os estimularam a estudar, a explorar determinadas

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áreas do conhecimento e a pensar sobre a carreira docente. Os “professores

internos” também emergiram como disparadores do processo constitutivo da

profissionalidade docente.

Em outras palavras, o docente que inicia sua carreira não chega desprovido

de subsídios. Ele carrega consigo seus valores e crenças oriundos da fase de

socialização primária, suas experiências e vivências da fase de socialização escolar

e, de forma destacável, carregam consigo os “professores internos” que vivem (e

sobrevivem, mesmo com o passar do tempo e a distância física), em suas diferentes

concepções sobre educação, ensino, aprendizagem, compartilhamento e

afetividade.

Por isso iniciamos a análise do segundo eixo, o “eixo da profissionalidade”,

a partir do olhar sobre o aluno que esse docente foi um dia, cujo histórico,

descrito tanto no eixo das influências como no eixo da profissionalidade, nos traz

elementos relevantes para a compreensão da constituição da profissionalidade

docente: bom desempenho escolar; expectativas elevadas com relação à formação

educacional; níveis de autoexigência elevados; participação em grupos de estudo ou

monitorias; e valorização da educação profissional. Os docentes pesquisados

apontaram elementos de identificação com os alunos, no que se refere à autonomia

para aprendizagem – um dos preceitos da Proposta Pedagógica (2010) da

instituição campo de pesquisa – e à autonomia profissional e financeira.

Nesses dois primeiros eixos da análise de dados, fomos tocados por

elementos comoventes presentes na memória afetiva dos docentes que participaram

desta pesquisa. A escola é um espaço de pertencimento em suas vidas. Tanto o é

que os sujeitos pesquisados não “saíram da escola” e, estimulados pelo próprio

exercício docente, nunca “pararam de estudar”. Assim, seguem seus estudos em

distintos programas de pós-graduação (lato ou stricto sensu) ou, até mesmo, em

uma segunda graduação. Nos encontros psicodramáticos, foi possível perceber que

a escola é uma extensão de suas casas e de seus espaços de atuação

profissional.

Tais atuações profissionais – como fisioterapeutas, massoterapeutas,

enfermeiros, esteticistas, podólogos, químicos, farmacêuticos, engenheiros e

técnicos em Segurança do Trabalho – foram fundamentais subsídios no início de

suas carreiras como docentes. De fato, a atuação dos docentes como profissionais

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das áreas da Saúde e Bem-estar é uma condição para a atuação docente na

educação profissional.

Os participantes da pesquisa “tornaram-se” docentes sem terem,

necessariamente, feito escolhas profissionais prioritárias para tal. É unânime, entre

eles, que a profissão docente é uma profissão aprendida. Esses participantes

apontaram nítida percepção de que há um processo contínuo de aprendizagem in

loco e na relação aluno-docente. Fazendo um paralelo com Freire (2002, p. 25):

“[...] Quem ensina, aprende ao ensinar e quem aprende, ensina ao aprender”.

No contexto da educação profissional, nas áreas de Saúde e Bem-estar, a

maioria do corpo docente não cursou Magistério, Licenciatura ou Mestrado. É na

prática, dentro da sala de aula, expandindo-se para a ação extramuros da escola,

que o docente evolui em seu processo constitutivo.

Em seus relatos, os docentes apontaram momentos intensos e significativos

de aprendizagem e de construção de vínculos produtivos com os alunos, a tal ponto,

que há um movimento inverso: o docente é estimulado a estudar mais para melhorar

a qualidade de suas aulas.

Mesmo com o entendimento de que o exercício docente seja uma “profissão

aprendida” in loco e na interação com seus alunos e com seus pares, os sujeitos

pesquisados não assumem a profissão docente, explicitamente. São podólogos,

esteticistas, enfermeiros, massoterapeutas, fisioterapeutas, engenheiros e técnicos

que sentem viver o contínuo processo de formação para a docência. Não há dúvidas

de que a escola seja, para eles, um espaço de pertencimento; contudo, a docência

não é assumida como profissão. A justificativa apontada para isso foi a ausência de

formação específica em Pedagogia, Licencitatura, Pós-graduação lato sensu

formativa para a docência ou Mestrado. E, novamente, nesse contexto, é valorizada

sua atuação profissional nas áreas de Saúde e Bem-estar, sem a qual não teriam

subsídios para entrar em sala de aula na educação profissional.

Outra consciência observada foi a possibilidade de transformação social.

Em diferentes relatos, os docentes pesquisados apontaram sua intencionalidade em

lutar por uma formação educacional–profissional de qualidade, em prol tanto de

melhorias na vida do aluno (e de sua família), como de melhorias nas atuações dos

profissionais das áreas de Saúde e Bem-estar. Destaco que entendemos aqui a

formação de qualidade como sinônimo de boa educação (RIOS, 2010).

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Foi percebida a ampliação da função social da docência. Conseguiremos

melhorar a Enfermagem, a Podologia, a Massoterapia, a Estética ou a Segurança do

Trabalho, se conseguirmos oferecer uma educação profissional de qualidade para

os alunos. O docente, portanto, também é disparador do processo constitutivo da

profissionalidade do futuro profissional das áreas de Saúde e Bem-estar.

É o saber ser professor, a partir do “saber-fazer” prático das áreas de Saúde e

Bem-estar. É esse saber ser professor que transforma o saber ser desse aluno da

educação profissional.

O saber ser é associado ao “fazer-saber” que Barato (2003) nos propôs,

rompendo a dicotomia entre teoria e prática, assim como Balzar (2002 apud ROSE,

2007, p. 280) nos instigou a pensar sobre a integração mente e corpo: “Não

deveríamos abrir espaços em nossas escolas para expandir a experiência dos

estudantes, [...] para reconciliar suas mãos com suas mentes?”.

O futuro profissional – esteticista, podólogo, massoterapeuta, técnico em

Enfermagem e técnico em Segurança do Trabalho – constituirá sua profissionalidade

a partir do saber ser e do “fazer-saber”. Mãos e mentes integradas para o cuidado

com o ser humano.

Visando a abordar a especificidade das áreas de Saúde e Bem-estar, foi

proposta, nesta pesquisa, uma nova organização de categorias, baseada em Placco

e Souza (2006) e Tardif (2002), as quais analisamos no “eixo dos saberes

docentes”. Foi possível notar:

a valorização da experiência profissional do docente atuante nas áreas de

Saúde e Bem-estar;

a especificidade de saberes, como o saber cuidar;

a consciência dos pesquisados sobre a necessidade de desenvolvimento dos

saberes pedagógicos;

a reflexão sobre a importância do saber viver em seu tempo, sob diferentes

perspectivas;

o estímulo para pensarmos sobre as profecias autorrealizadoras.

No desenvolvimento da análise e da interpretação dos dados coletados, tanto

nas entrevistas como nos dois encontros psicodramáticos realizados, foi possível

notar como os saberes se entrelaçam no processo de constituição da

profissionalidade docente, tornando-se, assim, interdependentes.

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A figura do profissional das áreas de Saúde e Bem-estar é indissociável da

figura do docente. Logo, os saberes pedagógicos se entrelaçam aos saberes

profissionais-experienciais do docente e do profissional atuante. A docência surge

como extensão de suas primeiras profissões “de formação”.

Outro saber profissional-experiencial, específico da área de Saúde e Bem-

estar, destacado pelos pesquisados, foi o saber cuidar de vidas – o que envolve três

dimensões: cuidar de si, do outro e do mundo, segundo Fazenda e Souza (2014).

Observamos, ainda, nos relatos, a percepção de necessidade de

desenvolvimento dos saberes pedagógicos, entendidos como a forma de ensinar, a

forma de conduzir a aula e o olhar para o aluno. Em outras palavras, é o

aprender a ensinar e o aprender a ser professor.

O desejo de desenvolvimento profissional como docente é latente e garantirá

a almejada permanência duradoura na docência na educação profissional, declarada

nos relatos dos pesquisados.

Os saberes pessoais, da maneira como são abordados nesta pesquisa,

permeiam todos os demais saberes: profissionais-experienciais, pedagógicos e do

profetizar. É o saber ser humano para saber ser docente, afinal, resgatando

novamente Freire (2002, p. 106), “[...] me movo como educador porque, primeiro, me

movo como gente”.

Estão nos saberes pessoais os valores essenciais da constituição da

profissionalidade docente que envolvem o perceber o outro, o querer ajudar o

outro e o querer transformar a sua realidade e a do outro.

Outro fato que nos marcou foi a não consciência sobre as profecias

autorrealizadoras. Os docentes demonstraram percepção sobre sua capacidade de

transformação social, mas não têm consciência da atitude do profetizar em sala.

Novamente, o entrelaçamento de saberes proporciona a reflexão sobre o “saber

profetizar”, proposto nesta pesquisa. Encontramos, nos relatos dos pesquisados,

falas que nos apontaram tanto uma profecia positiva, que é a fala daquele docente

que ultrapassa o aspecto motivacional e estimula o aluno a não desistir dos estudos,

como uma profecia negativa, que, inversamente, desestimula, desmotiva e afeta a

autoestima do aluno. A consciência sobre o poder da influência de suas palavras

pode ser considerada, por fim, um saber que também se entrelaça aos demais

saberes, os pedagógicos e os profissionais-experienciais, sob a ótica da docência e,

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até mesmo, pessoal. Dessa forma, temos sinalizada nesta pesquisa a necessidade

de reflexão sobre o saber profetizar.

São os diferentes saberes de alunos e de docentes que proporcionam a

aprendizagem efetiva in loco e com o grupo de aprendizagem, assim como vemos

em Placco e Souza (2006, p. 84):

A escuta e a valorização das contribuições de cada um facilitam a disseminação de ideias, o fortalecimento de vínculos e a apropriação das memórias e dos saberes individuais, que vão tecendo a história e a identidade grupal, num revezamento de lideranças e responsabilidades. A sistematização do vivido pelo grupo, a cada encontro, permite que o grupo se reconheça, se narre e se mantenha. (grifos nossos)

Cada aluno chega ao curso técnico com seu projeto de transformação de

vida, que se torna justamente coletivo. Os docentes participantes da pesquisa

demonstraram-se corresponsáveis pela formação desses futuros profissionais, assim

como pela realização de um sonho, seguindo o que nos propôs Freire (2002, p.

163): “Se não posso, de um lado, estimular os sonhos impossíveis, não devo, de

outro, negar a quem sonha o direito de sonhar. Lido com gente e não com coisas”.

Por fim, em Placco e Souza (2006, p. 17), encontramos a fonte provocadora

para o “eixo das formações”, que visou a investigar o contexto formativo docente

na instituição: “A aprendizagem do adulto resulta da interação entre adultos, quando

experiências são interpretadas, habilidades e conhecimentos são adquiridos e ações

são desencadeadas”. Torna-se prioritário, assim, estudar e compreender como

esse adulto docente aprende.

Há reconhecimento por parte dos docentes sobre as distintas ações

formativas oferecidas hoje pela instituição campo de pesquisa. Contudo,

encontramos em seus relatos possibilidades de futura expansão dos momentos de

compartilhamento entre pares, não necessariamente envolvendo uma formação

formal específica. Pode-se pensar em uma melhor organização do tempo dedicado

ao planejamento coletivo e ao simples compartilhar de experiências e vivências,

afinal: “[...] A aprendizagem do adulto decorre de uma construção grupal. A

aprendizagem se dá a partir do confronto e do aprofundamento de ideias” (PLACCO

e SOUZA, 2006, p. 23). (grifo nosso)

Uma vez que os saberes pedagógicos carecem de desenvolvimento, as

ações formativas dedicadas a todos os aspectos que envolvem o desenvolvimento

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do aprender a ser docente devem, a nosso ver, ser priorizadas. Assim também as

formações que se tornam necessárias para o saber viver em seu tempo. Esse

aprender a ser docente é um dos motivos mais citados pelos pesquisados como

justificativa à intencionalidade de duradoura permanência na docência.

Considerando todo contexto que retomamos até aqui, respondemos aos

objetivos de pesquisa. É possível analisar a constituição da profissionalidade como

um processo de desenvolvimento do exercício docente, in loco e na relação aluno-

docente, de modo gradativo, contínuo e inesgotável. Tal desenvolvimento humano

ultrapassa a relação profissional aluno-docente e se expande para fora dos muros

da escola, enfim, para o mundo pelo qual somos todos responsáveis. Afinal, somos

um “ser-em-relação” e um “ser Presente no mundo”. Cuidamos de nós, dos outros e

do mundo.

O indivíduo inicia a carreira docente influenciado por seu contexto familiar, por

seus “professores internos” e munido de suas experiências como profissionais. In

loco, com os alunos e com seus pares, amplia o desenvolvimento de saberes que se

tornam imprescindíveis para o “saber-fazer” docente. No contexto da educação

profissional, suas atuações nas áreas de Saúde e Bem-estar os sustentam na

profissão docente, enquanto buscam o desenvolvimento do “saber-fazer” docente.

Para isso, formações específicas para a docência devem permanecer no centro das

prioridades de ações, em prol de uma educação profissional de qualidade.

Buscamos, com esta pesquisa, estimular o avanço de estudos sobre a

constituição da profissionalidade docente no contexto da educação profissional

técnica, nas áreas de Saúde e Bem-estar, levando-se em consideração sua

relevância, tanto acadêmica como social. Certamente, muitos temas ainda podem e

devem ser explorados no âmbito da educação profissional.

Também poderemos aprofundar, em um futuro estudo, a questão da gestão

do conhecimento diante de todos os saberes que se entrelaçam na constituição da

profissionalidade docente. Afinal, tratamos da profissionalidade docente como um

processo infindável que passa pela imortalidade do conhecimento. Foi a fala de

Gabriela que nos estimulou a refletir sobre isso:

O amor pelo ensinar, pelo pensar que eu posso mudar a vida de alguém [...] eu posso lançar uma sementinha minha para o João e essa sementinha é a do meu professor que já morreu. Eu não estou deixando o meu conhecimento morrer. Estou levando isso adiante e isso é uma coisa que me toca. (Gabriela) (grifos nossos)

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Seguimos com o desafio permanente de nos tornarmos melhores educadores

na educação profissional todos os dias, cuidando de vidas, de sonhos e do “nosso”

mundo.

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APÊNDICE

PROCESSAMENTO DOS ENCONTROS PSICODRAMÁTICOS

Primeiro encontro: realizado dia 01 de junho de 2015

Diretora: Danielle Girotti Callas.

Participantes (áreas prioritárias de atuação na instituição): Gabriela

(Segurança do Trabalho), Francisco (Segurança do Trabalho), Clarice (Podologia),

Maria (Estética), Ana (Massoterapia) e Luanda (Enfermagem).

Desafio: encontrar um horário disponível comum na agenda dos

pesquisados. Por isso, realizamos a atividade com seis participantes.

Duração do encontro: 2h30.

Passamos à descrição das quatro etapas distintas desse encontro

psicodramático: o aquecimento inespecífico e específico, a dramatização e o

compartilhar.

Aquecimento inespecífico33:

O grupo é recebido com um café da manhã singelo e a sala já está arrumada

com as cadeiras em círculo. Os docentes pesquisados demonstram corporalmente

ainda não se sentirem à vontade. Chegam vestidos de maneira mais formal do que

cotidianamente, preparados para o que interpreto como um “momento diferente”.

De pronto, reforço a solicitação de autorização prévia de todos os

participantes do grupo para utilização científica dos conteúdos e dos registros

(escritos e imagens – fotografias e vídeos) das aulas. Explico que os registros são

fundamentais para a análise a posteriori, uma vez que não consegui suporte de uma

33

“Moreno lembra-nos que o processo de aquecimento é a indicação concreta, tangível e mensurável de que estão operando os fatores da espontaneidade” (MONTEIRO, 1993, p. 28).

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ego-auxiliar34, em função da distância do local (Jundiaí), do dia e horário (segunda

pela manhã).

Em seguida, trato brevemente do “contrato” de nossos encontros falando

sobre os objetivos da pesquisa, a necessidade de cumprimento do horário, a

participação livre sem prejulgamentos, o exercício de ouvir e perceber o outro – tão

mencionado nas entrevistas que antecederam os encontros – e o comprometimento

em participar também do segundo encontro já agendado.

Os participantes demonstram curiosidade sobre a atividade coletiva e ao

serem questionados a respeito de suas expectativas com relação aos encontros,

respondem:

Está meio misterioso. Quero saber o que vai acontecer... (Maria) Eu fiquei pensando bastante ontem [domingo] sobre isso. A gente fica emocionada nesses trabalhos. [...] Eu não paro nunca pra pensar sobre a minha vida. [...] Eu fui convidada a pensar sobre a minha vida como professora [...] estou em um momento muito delicado que minha mãe veio [de Belém] passar um tempo com a gente aqui. (Luanda) É algo que acaba mexendo com as nossas caixinhas. Eu estou super curiosa. Mas eu gosto dessas coisas de resgate [...] de abrir o álbum da sua vida. Eu gosto disso. Vamos falar sobre o vínculo aluno-professor. O professor que eu sou e o professor que eu tive. (Ana) Curiosa. Vamos falar sobre o profissional da saúde na docência. (Clarice) Curioso. Eu nem sei como eu cheguei até aqui [referindo-se à carreira docente]. (Francisco)

Percebi que houve um movimento preparatório individual, não intencional,

para os encontros coletivos, pois os sujeitos pesquisados chegam como se tivessem

acabado de sair de suas entrevistas individuais. Algumas das entrevistas já tinham

acontecido há seis meses. Podemos perceber isso também nas falas de Maria e de

Gabriela:

Vamos continuar falando sobre a constituição da profissionalidade, nossos professores-exemplos. (Gabriela) Todo o resgate de nosso trajeto me fez chegar à conclusão de que sou uma educadora. Eu já estou nisso há quase 15 anos e o Francisco há quase 10 anos. (Maria)

34

O ego-auxiliar, no Psicodrama, não apenas tem a função de zelar pelos registros das atividades como também “[...] tem a importante função de ajudar, de forma decisiva, o protagonista a perceber os vários aspectos dos elementos presentes na ação dramática” (GONÇALVES, WOLFF e ALMEIDA, 1988, p. 101).

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Após alinhamento do objetivo do encontro, recorri a um dos primeiros

recursos que aprendemos na formação em Psicodrama – o caminhar, solicitando

assim que eles se levantassem e que caminhassem livremente pela sala. É o vir

para o “aqui e agora”, tão valorizado por Moreno35. Os pesquisados já têm o hábito

de fazer esse movimento do “levantar-se para caminhar” nas atividades

psicodramáticas que desenvolvemos com os alunos hoje.

Confesso ter feito o seguinte solilóquio: “Será que vai dar certo desse

jeito?”36.

Como um iniciador físico37, simples, capaz de mobilizar e aproximar o grupo,

solicito que eles se agrupem em duplas – com olhar observador focado no outro.

Questiono-lhes sobre a existência de alguma queixa de dor física. Em caso positivo,

devem tentar ajudar o outro com sua dor, na medida do possível.

As escolhas das duplas acontecem com facilidade e com agilidade.

A dupla Clarice e Maria mantém-se em um respeitoso silencioso. Sem

palavras, trocam toques suaves de conforto nos ombros. O silêncio é mantido

mesmo com a desconcentração da dupla Gabriela e Luanda. Luanda corporalmente

resiste a “deixar-se” ser vista e tocada pelo outro. Gabriela toma as iniciativas para

tentar desenvolver a atividade. Enquanto Ana tem o desafio de romper com a

formalidade e rigidez corporal de Francisco. Tanto Luanda como Francisco sentem

necessidade de falar sem interrupção, evitando assim um toque mais profundo.

Podemos notar que mesmo profissionais das áreas da Saúde e Bem-estar podem

demonstrar resistência inconsciente ao toque do outro.

Clarice faz seu solilóquio: “Pronto! Já concretizamos!”.

35

“Moreno salientava a importância de se pensar a respeito da interação humana levando principalmente em conta o tempo presente. [...] Moreno pretendia estar encontrando pela primeira vez o método adequado para o estudo das interações ‘aqui e agora’ (em latim hic et nuc), o método sociométrico” (GONÇALVES, WOLFF e ALMEIDA, 1988, p. 55). 36

“Solilóquio é uma das técnicas verbais utilizadas para tornar expressáveis níveis mais profundos do mundo interpessoal do protagonista. [...] No Psicodrama, o cliente a utiliza para reproduzir sentimentos e pensamentos ocultos que teve realmente em uma situação com pessoa relacionada a ele na vida, ou agora, no momento da ação dramática” (GONÇALVES, WOLFF e ALMEIDA, 1988, p. 90). Nota da processadora: Aqui, empresto o conceito de solilóquio para expressar um sentimento oculto que tive como processadora do primeiro momento psicodramático com esse grupo de pesquisa. 37

“Os iniciadores podem ser usados um de cada vez, dois ou mais ao mesmo tempo, mas o fato é que todos convergem para os iniciadores finais, que são os mentais ou psicológicos. De qualquer forma, todos eles são responsáveis pela mobilização de afetos e explicitação de emoções. [...] Didaticamente, vamos apresentá-los na seguinte ordem: físicos, intelectivos, temáticos, sócio-relacionais, psicoquímicos, fisiológicos, mentais/psicológicos” (MONTEIRO, 1993, p. 30).

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Aquecimento específico:

Na próxima etapa, peço para que o grupo retome o caminhar e o convido a

iniciar uma viagem diferente. Na sala, passam a caminhar pela terra, pela areia e

pela água. O grupo responde bem à atividade. Passamos pelo mar azul e pela

floresta38. Sigo detalhando esse percurso. Instigo o grupo: “Aonde vocês querem

chegar? Visualizem uma trilha até avistarem uma clareira, onde encontramos a

CASA”. E revelo: “Essa CASA é você!”.

Dramatização:

Na condução do psicodrama interno, todos estão confortavelmente

acomodados e dou início à visitação à CASA: fachada, ambiente externo e cômodos

internos. Estimulo a reflexão: “Entrem nesta CASA!”, “O que tem na CASA que é

você?”, “Que papel desempenho em cada um dos cômodos? Maridos, namorados,

esposa, filho(s), filha(s), amigos, colegas de trabalho, alunos...”, “Quem ocupa os

diferentes espaços da CASA?”, “Como é essa casa por dentro?”, “Que espaço

ocupa a vida profissional de vocês nesta CASA?”, “Quem é você?”39. Todos os

participantes ficam completamente concentrados. Não se movem. Permanecem de

olhos fechados, sem resistência ou inquietação.

Papéis e lápis coloridos estão expostos na sala. Peço que os participantes

iniciem seus desenhos começando pela planta baixa da sua CASA. É desnecessário

pedir concentração, pois todos se mantêm em um profundo silêncio.

Clarice rompe com o silêncio, pois sente necessidade de compartilhar que

visualiza duas CASAS: a casa de hoje e a casa ideal. Peço para que ela se

38

“A ação no ‘como se’ permite o reconhecimento e a posterior libertação, de papéis idealizados, que vê impedindo a ação espontânea no quotidiano” [do grupo protagonista como um todo] (GONÇALVES, WOLFF e ALMEIDA, 1988, p. 80). 39

“Ao imaginar sua casa, o sujeito tem a oportunidade de rever seus papéis, seus conteúdos, conceitos, valores, suas relações, expectativas e limites [...] A casa é o lócus em que cada um vai se constituindo ao longo de sua existência. É o que lhe dá abrigo, proteção, calor, aconchego. É onde se estabelecem as primeiras relações vinculares. A casa simboliza o EU de cada um. A utilização do psicodrama interno, como ponto de partida, está pautada em Fonseca (2000). Constitui-se numa dramatização, cuja ação é interna e simbólica, por meio de visualizações. Pode ser visto como um exercício de atenção do sujeito sobre si mesmo. [...] A dramatização, através de desenhos, foi proposta por Altenfelder Silva Filho (1992) e é considerada uma das formas de psicodrama interno” (CERVELLINI-HAGUIARA, GIRO e VILLELA, 2008, p. 141).

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concentre na casa de hoje. Todos seguem envolvidos com seus desenhos. Clarice

demonstra muita curiosidade em conhecer a atividade mais profundamente e diz:

“Você vai ter que me contar como funciona isso da casa. Estou impressionada!”.

Partimos para os solilóquios40 desse momento: “Tranquilo” (Francisco), “Está

tudo bem” (Ana), “Isso é difícil. Eu não sei desenhar” (Luanda), “Estou caprichando”

(Maria), “Ai, não sei não” (Clarice) e “Está caminhando” (Gabriela).

Na sequência, peço que cada participante apresente a sua CASA para o

grupo, mostrando principalmente onde fica seu espaço profissional.

Clarice, muito aquecida e com vontade de continuar o trabalho, pede para ser

logo a primeira a compartilhar:

Eu tive que fazer dois desenhos – o de hoje e o outro que é o meu ideal. Não teve jeito. Eu moro sozinha. Eu imaginei uma serra, em um dia muito ensolarado, mas fresco por causa da altura. Eu desenhei minha moto. É claro! A minha casa parece uma choupana de madeira e de vidro. Ela tem os mesmos cômodos da minha casa: sala, quarto, cozinha e banheiro, porque eu moro sozinha. A minha sala sou eu. Quando eu quero ficar comigo mesma, eu fico na sala. Quando eu quero pensar sobre a minha vida e sobre as minhas escolhas, eu fico sempre no meu sofá da sala. Nem assisto à televisão. Eu converso com meus pensamentos. Eu sempre trabalho na cozinha. Minha mesa de trabalho está na cozinha. Não uso a escrivaninha do meu quarto. Eu cozinho, mexo no computador, preparo minhas aulas. Minha vida está ali na cozinha. Minha casa tem uma varandinha que é onde eu fico contemplando as minhas plantas. Mas aqui eu não penso. Eu só contemplo. Meu quarto é meu aconchego por isso é onde está a minha família. Isso é o hoje. O banheiro só é o lugar onde eu tomo banho e escovo os dentes. Não tem uma simbologia para mim. Mas eu quero falar sobre o meu ideal de casa também. Aqui eu também moro sozinha só que eu tenho uma varanda protegida por um vidro. Protegida contra o vento, contra a chuva. Isso eu não tenho hoje na minha casa. Se está ventando, eu não consigo ficar na minha varanda hoje. Daí, eu vou colocar o trabalho nesta varanda. A sala e a cozinha passariam a ser o espaço da família e dos amigos. O quarto passaria a ser o meu eu. A varanda seria o espaço para explorar livremente o meu trabalho. (Clarice)

Senti necessidade de questioná-la sobre a qual trabalho se referia e Clarice

responde:

Eu queria que o espaço que eu tivesse para trabalhar com a Podologia fosse exatamente assim como minha varanda – um grande vidro em contato com a natureza. Estar realizando o meu trabalho, mas contemplando a natureza fora. Para a docência também esse ambiente natural seria inspirador. A porta dessa varanda seria bem grande para entrar muita coisa. Olhe o desenho da minha varanda! É isso. (Clarice)

40

Ver nota de rodapé 38.

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Clarice, ao colocar o trabalho na cozinha, demonstra o valor que dá a ele. Ela

diz que sua vida está na cozinha e que seu trabalho está nesse mesmo espaço. A

cozinha, onde está, é a representação de sua vida profissional, é seu sustento e é o

lugar do pensamento/conhecimento. Em sua casa idealizada, demonstra

necessidade de segurança e proteção, não apenas pessoal como também

profissional, pois o trabalho ficaria na “varanda protegida”. Ao pensar em trabalho,

assim como na entrevista, pensa primeiramente na atuação como podóloga, sem

deixar de mencionar, espontânea e imediatamente, a docência, que como uma

expansão nítida, no caso de Clarice. Ela relaciona diretamente a docência com “a

porta bem grande para entrar muita coisa”.

Sem necessidade de pedido, Maria toma a palavra para fazer seu

compartilhamento:

Bom, quando você pediu para a gente imaginar, eu imaginei um lugar de frente para a praia. É o que eu mais gosto. Eu me sinto muito bem perto do mar. Eu imaginei um lugar de água límpida e quentinha. Um lugar bem gostoso. E aí, quando você falou da casa, ficou bem claro para mim uma casa de frente para o mar. Não sei se vai dar para visualizar direito aqui no meu desenho. Tem uma fachada também bem grande e envidraçada. Eu imaginei espaço para bastante gente. Para minha família, para os meus amigos, porque eu não sou uma pessoa solitária. Eu gosto de estar no meio de gente, de cozinhar. Então eu imaginei tudo junto: a cozinha, com uma mesa de refeições, a sala de estar. Depois, no restante da casa, eu coloquei três quartos. Primeiro, o meu. Depois, outros dois para quando vierem minhas filhas e os amigos. E fiz meu espaço de trabalho atrás, nos últimos cômodos. Por quê? Para não interferir nos atendimentos. (Maria)

Sem ser questionada, Maria já menciona a docência:

Eu não imaginei a docência. Confesso. Pelo menos não nesta casa que projetei neste momento da minha vida. A entrada para os atendimentos estéticos será externa. O espaço terá uma maca e eu focaria mais os tratamentos de SPA. Não mais trabalharia com esse esquema de tantos aparelhos. Aqui atrás também teria árvores, um banheiro e uma salinha de estar. A volta toda da casa seria avarandada. Eu sempre sonhei com uma casa assim! Janelas e portas bem grandes para a casa ficar aberta sempre. Eu não tenho noção de espaço no desenho, mas esse aqui é o mar! A varanda faz parte da casa, mas não está dentro. Ela significa liberdade. Acho que eu pensei como uma aposentada. (Maria)

Podemos notar a relação do desenho da casa de Maria com sua história de

vida relatada na entrevista. A docência surgiu em sua vida. Não foi uma opção sua.

Também não pensa em permanecer para sempre na docência, enquanto a Estética

sempre estará em sua vida, mesmo após a aposentadoria.

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Luanda continua novamente a atividade de maneira bem fluida:

Quando você falou para a gente pensar, eu pensei no lugar que eu vou mesmo. Quando eu estou chateada, eu vou mesmo para o condomínio Ibi Aram [em Itupeva], onde estou construindo minha casa. Tem um lago e um deck para a gente se sentar. Minha mãe fala que eu tenho que tirar os sapatos e pôr mesmo o pé na grama. Minha casa ali ficaria bem legal. Eu imaginei toda minha família, inclusive meu irmão que já faleceu. Espaço para o trabalho neste lugar? Onde? Eu não consegui imaginar neste momento um lugar do trabalho. Eu só consegui imaginar minha família rindo, comendo e cozinhando. E não tem divisão de quartos, como era na casa da minha mãe. Isso me remete à minha infância mesmo. Na casa da minha mãe sempre foi assim. Cheia de gente. A gente sempre estudava muito junto na sala enquanto os outros cozinhavam e brincavam. Eu trabalho tanto e eu não consegui pensar no trabalho neste momento. Nossa! Eu já cheguei a trabalhar 12 horas direto no hospital e a passar duas noites sem ir pra casa. Acho que por isso só penso na minha família agora. Hoje eu trabalho mais do que vivo isso que vivi na minha infância com minha família. Talvez tudo isso seja saudade dessa época. Minha infância foi muito saudável. Olha só a mesa, a sala e a cozinha! Tudo junto! Olha o barco, o deck e os patinhos. (Luanda)

Luanda vive um momento em sua vida em que fez uma opção prioritária por

sua família. Abandonou temporariamente seu emprego no hospital e seguiu com a

docência no SENAC. É perceptível isso em sua CASA. Assim como na entrevista,

percebemos a marcante influência familiar em sua vida. Hoje, a prioridade é sua

família.

Gabriela relata que:

Senti dificuldade de pensar. Foi difícil pensar em uma casa. Acho que eu tenho uma visão familiar carregada de que construir a casa é uma coisa fora do concreto. (Gabriela)

Gabriela estava muito emocionada. Depois de uma pausa e de um longo

olhar para os demais, como se estivesse pedindo autorização para se abrir,

prossegue:

Eu demorei muito para chegar na casa. Era tudo muito abstrato. Como é que eu vou chegar na casa? Eu não conseguia desenvolver a casa. Eu conseguia ver as pessoas, mas não a casa. O que é que eu vou desenhar? Acabei fazendo uma casa “caixa”. Acho que era o que eu precisava: entrar em uma caixa para me encontrar. Daí, eu consegui. Associando um pouco com minha vida profissional. Eu acho que a parte da cozinha marca o início de minha vida profissional, pois foi ali que eu discutia o que eu queria fazer. Enfim, com meus pais, com meus tios, com quem chegava. Eu fiz dois quartos. Um, só meu, e o outro, para todo mundo que vem me visitar. Eu fiz um banheiro, que é o meu melhor cômodo de reflexão. Quando eu estou com dúvidas, tomar um banho me ajuda muito. O meu quarto é onde eu me

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organizo depois dos insights do banheiro. Muito do que eu fiz na minha vida profissional surgiu nos insights de banheiro e foi organizado no meu quarto. Eu fiz uma casa que tem uma sala com uma saída para uma sacada bem grande. Meu fundo está de frente para a praia. Acho que minha vida profissional está na sacada. Tem um portão bem grande. Um pergolado. Muito verde. A cozinha foi onde eu decidi ser fisioterapeuta, depois eu caminhei muito pelos outros cômodos para chegar a ser professora. Sabe? A cozinha é a vida da profissional da Saúde. (Gabriela)

Assim, Gabriela, com sua casa, traz a ideia da profissionalidade em

constituição. Também menciona prioritariamente sua família e demonstra

necessidade de liberdade e abertura. Todas as casas até aqui possuem uma

varanda. A fisioterapeuta surge antes da docente.

Seguimos com Ana, que diz:

Parece que a gente está brigando entre praia ou sítio, né? Eu, primeiro, me imaginei entre cavalos. Mas, quando você falou da casa, me veio logo a casa pronta à beira mar também. Me veio a imagem da sala, com meu pai [já falecido], com meu sobrinho, com meus amigos. Do jeito como eu gosto, casa cheia. Eu logo imaginei um sobrado. Meu fundo é que dá para a praia. Eu imaginei um jardim com meu consultório. Meu consultório e uma sala zen. Minha biblioteca com meus livros. A lateral toda desta linda planta. Não dá muito pra ver. Desculpe. Tem uma escada circular que dá para o meu quarto e para o quarto da minha mãe. Não sei por que coloquei o quarto da minha mãe, mas enfim. No meu quarto, eu gosto de dançar. Desde criança. Aqui eu visualizei um espaço muito maior. Tem uma grande sacada de vidro. Olhe aqui no desenho. Eu tenho muito poder aquisitivo. Eu penso, leio e escrevo na sacada. Tem uma academia de frente para o mar. Eu não coloquei uma divisão entre sala e cozinha. O consultório vai ficar de frente para a rua. (Ana)

Ao pensar sobre vida profissional, Ana fala apenas de seu consultório.

Quando questionada sobre a docência, aponta a indissociabilidade da fisioterapeuta

e da docente:

Eu não consigo separar a docência. OIhe a biblioteca aqui. Eu faço meu atendimento no mesmo ambiente onde preparo minhas aulas. (Ana)

Ana também faz referência a uma sacada e a sua família. Além de posicionar,

os estudos em sua vida.

Francisco passa a fazer a última apresentação:

Minha casa é simples. Muito simples. É um sobradinho daqueles de madeira, parecido com aqueles de Paranapiacaba, para quem conhece. Fica em um lugar bem alto na Serra da Mantiqueira. Com um friozinho. Tem uma varandinha aqui, uma sala bem aconchegante, uma cozinha e um banheiro. Tem uma escada que leva para o segundo andar, onde tem um

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banheiro e dois quartos. A casa, hoje, com a criançada [uma filha de 3 anos e outro filho de 2 anos], está meio bagunçada. Às vezes, eu preparo aula na cozinha ou na sala. Tem um livro que eu só consigo ler no banheiro. Onde eu me organizo melhor e paro para refletir é no carro. É onde as pessoas menos me azucrinam. O carro é para mim o que o banheiro é para a Gabriela. O meu profissional está na cozinha e na sala. Minha casa é pequenininha e de madeira. Tinha uma época que minha vida se resumia ao carro, quando eu trabalhava em quatro lugares diferentes. E a fachada da minha casa ficou assim. [...] A varanda fica bem na frente. (Francisco)

Todos elogiam a casa de Francisco: “Uau, o cara está fazendo Engenharia,

né gente?”. Todos dizem que querem ser seus vizinhos.

Compartilhamento

Quando sinalizo que nosso encontro está chegando ao fim, todos se

manifestam: “Ah! Mas já?”. Todos se levantam e se posicionam espontaneamente

em círculo, de mãos dadas, sem necessidade de consigna da direção.

Alinho a proposta de que continuaremos o desenvolvimento das CASAS na

próxima semana e peço as manifestações de sentimentos finais:

Eu não tenho medo de olhar para isso tudo. Eu sei que tem muita coisa nesse desenho que fala sobre mim. Eu gosto disso. (Clarice)

Tranquilo. (Francisco) Feliz. (Maria) Nossa! Nem sei... (Ana) Eu estou surpresa com minha casa. Eu vivo a Enfermagem. Hoje eu vivo intensamente a Educação e nada apareceu na minha casa. Eu não consegui colocar tudo isso aí. (Luanda) Saio pensando. (Gabriela)

É possível notar que os participantes saíram comovidos e sensibilizados para

o próximo encontro.

Ainda reforço para os participantes que o objetivo do encontro não é

terapêutico, mas que seus desenhos podem ser trabalhados na terapia.

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Segundo encontro realizado dia 08 de junho de 2015

Diretora: Danielle Girotti Callas.

Participantes e áreas prioritárias de atuação: Gabriela (Segurança do

Trabalho), Francisco (Segurança do Trabalho), Clarice (Podologia), Maria (Estética),

Ana (Massoterapia) e Luanda (Enfermagem).

Duração do encontro: 3 horas.

Conseguimos garantir a presença dos mesmos participantes do primeiro

encontro.

Aquecimento inespecífico

Primeiramente, fazemos juntos uma rodada sobre o que cada um já fez no

seu dia até chegar a nosso encontro, marcado para as 10h. Esse aquecimento

favorece o chegar para o “aqui e agora”. Além disso, esse grupo aprecia essa

atividade que fazemos em diferentes momentos, como nas reuniões pedagógicas e

nas integrações com os alunos.

Aquecimento específico

Primeiramente, questiono-os sobre as ressonâncias de nosso primeiro

encontro e me surpreendo com as falas:

Nossa! Eu pensei sobre a minha casa essa semana. Eu definitivamente não consegui encontrar um lugar para o trabalho na minha casa. Eu fiquei pensando assim: “Nossa! Todo mundo encontrou um lugar pro trabalho na casa, só eu que não?” Fiquei pensando... Acho que o trabalho é tão forte que está em todo canto mesmo. Acho que eu nem estou conseguindo separar meu trabalho do resto. (Luanda) Eu também. Ontem mesmo eu estava na praia pensando sobre o que eu preciso mudar na minha casa. Eu gosto dessas reflexões. (Ana) Eu decidi não pensar na casa. Eu não ia dar conta. Eu não estava a fim de pensar. É algo que eu tenho que trabalhar mais. (Gabriela)

41

41

Conversei individualmente com Gabriela para recomendar que ela trabalhe a CASA em sua terapia.

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Eu tentei encontrar o significado dessa atividade da CASA na Internet, mas eu não achei. (Clarice) Bom. Eu fiquei pensando sobre o encaixar o trabalho na CASA. Começamos a imaginar a natureza e senti uma ruptura quando você falou do trabalho. Depois, pensando bem, parece que ficou fácil para mim. Até porque eu trabalho hoje na minha casa [como esteticista]. Só que eu fiquei pensando. Hoje o meu negócio está na frente da minha casa. No desenho, ele ficou lá no fundo. A docência, eu não consegui colocar. O ambiente que me veio não tem nada haver com a docência. Eu fiquei pensando nisso. (Maria) As reflexões profissionais estão sempre na minha pauta. Principalmente agora, com todas as preocupações que vivemos. Ontem eu fiquei pensando no carro [...] que é mesmo meu melhor espaço para a reflexão... até profissional. (Francisco)

Na sequência, solicito que duplas sejam novamente formadas. Os

participantes se sentam exatamente na mesma posição/cadeira da sala, como no

primeiro encontro. Todos se vestem com roupas no mesmo tom de cor. As mesmas

duplas se reúnem, como uma continuação do primeiro encontro.

O grupo chega mais leve e descontraído para o segundo encontro.

O aquecimento inespecífico é a atividade “da árvore e do vento”. Na direção,

instigo o grupo: “Alguém conhece essa atividade?”. E prossigo: “Quem está na frente

é árvore e quem está atrás é o vento. Quem é o vento vai moldar a sua árvore”. Sou

interrompida por Ana, da Massoterapia: “É pra fazer massagem?”. Todos riem de

forma bem descontraída.

Convido Clarice a ser minha dupla, para demonstrar na prática o movimento.

Todos observavam concentrados e silenciosos.

Como diretora, incluo uma nova consigna: “Considere que essa árvore é o

seu aluno”. Optamos por fazer essa atividade em silêncio. Novamente, Luanda tem

dificuldade para se concentrar, dizendo que ficou tentando imaginar o aluno.

Francisco fazia movimentos mais abruptos e rápidos. Todos conduziam seus alunos

sem interrupção e de maneira concentrada, de forma que a atividade durou mais

tempo do que o planejado (cerca de 20 minutos). Após a troca de posição – árvore

ou vento – entre as duplas, fizemos a seguinte reflexão: “Foi mais fácil ser a árvore

ou o vento?”.

Foi mais difícil ser o vento. (Francisco) Foi mais fácil ser árvore. (Ana)

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Foi mais fácil ser vento. [...] Isso passa também por uma relação de confiança. (Gabriela) Foi mais fácil ser árvore. (Luanda) Árvore. Mas ser vento foi também muito bom. [...] Ser conduzido é muito bom. [...] Mas o mexer no outro também é bom. É mais divertido. (Maria) Quando o outro está rígido, temos que tentar romper com a rigidez, né, Francisco? (Ana)

Reforço que o objetivo da atividade “da árvore e do vento” é para estimulá-los

a pensar sobre a sala de aula: “Essa atividade tem relação com o vivido em sala de

aula?”. E completei a reflexão: “Ser vento ou ser árvore. Conduzir ou ser conduzido.

A árvore sempre obedece ao vento?”.

A reflexão se internaliza em cada participante. Não havia espaço para as

palavras, pois o cenário dramático nos esperava.

Sinto que essa semana de intervalo entre o primeiro e o segundo encontro foi

favorável às reflexões e ao que chamei da “digestão da casa”.

Dramatização

Devolvi os desenhos para cada um dos participantes, pedindo que entrassem

novamente em contato com suas casas: “Olhem para suas casas hoje e

reencontrem o espaço profissional de vocês. Onde vocês colocaram o trabalho?”.

Ou, no caso de Luanda: “Pense se você conseguiria olhar algo do trabalho hoje na

sua casa”.

Depois de uma longa pausa para reflexão e retomada do psicodrama interno,

peço que tentem localizar o trabalho docente, pontuando que ele pode ou não ser

encontrado.

Abro espaço para as reflexões:

Quando eu pensei no consultório e na salinha zen, eu já pensei na docência. Eu não consigo desvincular minha atuação profissional com meus pacientes, como fisioterapeuta, e a sala de aula. Não tem como desconectar. Assim como eu trabalho pela melhoria de hábitos saudáveis com meus pacientes, eu trabalho com meus alunos. Eu até coloquei a biblioteca. Eu nunca consegui separar teoria e prática. Eu nunca percebi que eu era docente. Foi só quando eu comecei a dar aula. Tudo está relacionado à minha vivência. Eu não consigo separar um cômodo da minha

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casa para a docência. A docência está aqui [e aponta para o espaço do consultório]. Tudo junto. (Ana) Eu tive mais ou menos a mesma percepção dela [de Ana]. Eu acabei colocando uma estante de livros e uma escrivaninha na minha casa. Mas foi meio forçado. Não sei se tem relação com meu momento atual e com o que eu quero para um futuro próximo. Eu não consigo encaixar. Eu estou tentando focar numa linha de tratamentos estéticos relaxantes. Eu só vejo que eu poderia dar uns cursos livres, sobre isso. Mas não essa coisa de todo dia. Horas planejando aulas. Menções. (Maria)

Peço que todos circulem e demarquem a sala de aula em seus desenhos. E

falas muito significativas surgem:

Eu não sei se eu consigo demarcar esse espaço e tempo para o trabalho. Eu não consigo olhar para a minha casa e ver isso. O trabalho até pode ocupar um espaço bem importante na minha vida. Acabei demarcando a sala e a sacada, onde cabem muitas pessoas. O trabalho ocupa cerca de 40% do espaço de minha casa. (Gabriela) Eu não sei. Eu escolhi a Enfermagem. Eu nunca tinha pensado. Tem coisas tristes. Eu me sinto preparada para vivê-las. Eu não consigo mesmo separar a docência da Enfermagem. Faz parte do meu processo. Nem a Enfermagem nem a docência estão na minha casa. Talvez estejam tão inerentes que estejam em todos os lugares. (Luanda) Hoje minha vida acontece na cozinha. Eu vivo a Podologia. Eu não me vejo mais fora da Podologia. Eu quero melhorar a Podologia. Então, assim, eu tenho vontade de estudar para melhorar. Eu não quero dissociar nada da Podologia. Eu não vejo a sala de aula separada do trabalho prático da Podologia. Eu coloquei uma mesa para eu preparar as aulas na minha casa. (Clarice) Eu, inicialmente, pensei no espaço da sala e da cozinha para minha vida profissional. Eu incluí também o quarto. [notamos que o espaço de trabalho em sua casa chegou a cerca de 70% de sua casa] Não sei se tudo isso mesmo. Mas acho que tem também o banheiro. [atingindo 90% da casa] (Francisco)

É importante considerar que Francisco é o participante com maior carga-

horária na docência. Sua principal atividade atualmente é a docência e não as

prestações de serviço como consultor.

Tento aprofundar a reflexão sobre o espaço da sala de aula: “Pensem no

espaço da sala de aula. Como vocês se sentem nesta sala de aula? O que tem

nesta sala de aula que é importante para vocês?”42.

42

Oriento individualmente Luanda a visualizar a sala de aula, mesmo sem tê-la posicionado em sua casa.

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Luanda diz que vai visualizar a sala de aula fora da sua casa e Ana fica em

dúvida se deve visualizar a sala de aula como aluna ou como docente. Claramente,

seu papel como aluna é mais forte do que seu papel43 como docente.

Peço que reflitam mesmo sobre o que há nesses espaços e que concretizem

isso no desenho. Depois de um longo tempo de reflexão, ainda estimulo: “O que tem

nesta sala de aula e o que você tem que saber para entrar neste lugar?”.

Silêncio e concentração são marcas visíveis desse grupo. Estimulo a troca

entre o grupo e emergem as reflexões:

Eu me sinto bem. Eu me sinto em casa na sala de aula. (Gabriela) Prazeroso. (Maria) Bem. Eu me sinto bem. (Luanda) Eu, primeiro, me visualizei entrando com materiais na sala como aluna. Depois, comecei a enxergar um monte de peças anatômicas em um laboratório. E, depois, coloquei vários alunos na minha sala. Sala cheia. (Ana) Eu fiquei imaginando o primeiro dia de uma turma. Muito gás. Você começa com muita energia. É desafiador. Você não conhece a turma. Não sabe dos anseios de cada um. (Clarice) Eu tenho a mesma perspectiva que Clarice. A expectativa dos alunos é alta. Tem que ter aquele gás. Tem que buscar recursos para dar aula. Vídeos, equipamentos de testes práticos. Eu me sinto um pouco ansioso. (Francisco)

Peço que se reagrupem em trios para compartilharem seus desenhos e

pensarem sobre o que é necessário para esse espaço. A troca nesses subgrupos

acontece de maneira muito fluida, descontraída e prazerosa. Notamos aqui o prazer

no compartilhamento entre pares.

Compartilhamento

Abrimos para a troca no grupo completo e encontramos falas conclusivas

importantes para a reflexão sobre os saberes docentes:

43

“As teorias psicodramáticas levam o conceito de papel a todas as dimensões da vida. Com efeito, elas o utilizam para abordar a situação do nascimento, e a existência, enquanto experiência individual e enquanto modo de participação na sociedade” (GONÇALVES, WOLFF e ALMEIDA, 1988, p. 66).

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Eu vou usar uma frase da Maria que tem tudo haver com o que a gente faz e com a sala de aula. O que a gente precisa ter para entrar nesta sala de aula é conhecimento e relacionamento. A gente tem que saber o que a gente está fazendo lá diante dos alunos. Tem uma questão de preparo importante. Tanto Luanda como Maria colocam que a gente tem que pensar no como a gente vai estimular o crescimento do aluno. Temos que ajudá-los a construir. O que move essa sala de aula são justamente as dúvidas. Os alunos trazem essas dúvidas. A gente precisa construir junto, sabendo que são pessoas diferentes, pessoas com características físicas, emocionais e sociais diferentes, que vão aprender de formas diferentes. Como cada um aprende? (Gabriela) Quando pensamos sobre o que tem que ter [na sala de aula], colocamos em primeiro lugar o aluno. A aula pode até acontecer debaixo da árvore, mas se não tiver aluno... Ele [o aluno] é nosso material essencial. (Maria)

Podemos identificar, nas falas acima:

o entrelaçar do saber profissional-experiencial, com os saberes pessoais e

pedagógicos;

a relação aluno-docente como condição para o processo de ensino-

aprendizagem;

a necessidade de conhecer o aluno e sua forma de aprender (saber

pedagógico);

a perspectiva de transformação social no construir com o aluno.

O segundo trio traz reflexões complementares:

Nós colocamos aqui, como importante, ter lousa e giz. É ainda importante escrever e rever o processo juntos. Nossa vivência fora de sala de aula é muito importante. A interação com os alunos é muito importante. As pessoas são diferentes. A gente tem que ter um retrato de como esse aluno é individualmente. Temos que melhorar sempre a comunicação com esse aluno. (Francisco) O que é importante também é o conhecimento prévio desse aluno. Um dia, você pode preparar aquela mega aula e ninguém vai acompanhar. Ou você prepara uma aula mais simples, e o público é mais exigente. O fato de nós sermos profissionais [das áreas da Saúde e Bem-estar] engrandece a aula. É esse algo a mais que o Francisco falou. Falo do seu conhecimento dia a dia como profissional. Isso acrescenta muito para o aluno. O aluno faz uma pergunta que te remete a uma situação que você viveu, que você nem tinha planejado tratar naquela aula, mas que faz com que a aula seja mais grandiosa e prazerosa. Sem a vivência profissional não seria possível. (Clarice) Eu queria completar com aquilo que a gente conversou [na entrevista] sobre o olhar o outro. É difícil ver aqueles que fazem um curso para a docência [pós-graduação para a Docência] desenvolverem esse olhar. Acho que talvez seja algo nato em você. Mas acho que também pode ser desenvolvido. (Ana)

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E Clarice manifesta uma pertinente frase para encerrar nosso encontro:

A sala de aula é um grande laboratório. (Clarice)

Percebemos nessas falas:

a interação aluno-docente, novamente;

a importância da comunicação;

o saber pessoal do olhar o outro (que não é ensinado nas formações

docentes, como na pós-graduação para a docência, ou no magistério);

o reconhecimento dos conhecimentos prévios dos alunos;

o saber ser profissional da saúde para saber ser docente;

a vivência profissional como condição sine qua non para ser docente na

educação profissional (saberes experienciais-profissionais).

As palavras finais dos participantes foram: “Prazer” (Ana), “Pensamento”

(Clarice), “Intensidade” (Gabriela), “Dúvidas produtivas” (Luanda), “Satisfação”

(Francisco) e “Trabalho” (Maria).

E, assim, encerramos nossa atividade com êxito e com um sentimento de

satisfação.

Considerações finais deste processamento

Nos encontros psicodramáticos, também foi possível perceber:

a evidente importância do compartilhamento entre pares, pela própria

atividade em si;

as ressonâncias das entrevistas individuais;

a presença marcante das famílias na vida dos pesquisados;

suas aberturas para a vida. Todas as casas são abertas e possuem sacadas;

a ausência de divisão rígida entre o pessoal e o profissional. Não

encontramos divisões rígidas entre os cômodos da casa;

a impossibilidade de dissociação entre o ser profissional das áreas de Saúde

e Bem-estar e o ser docente;

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a docência, não como uma profissão, mas como uma extensão de suas

profissões;

o sentimento de “bem-estar” na sala de aula.

Bibliografia do processamento:

ALTENFELDER SILVA FILHO, Luis M. A. Psicodrama: utilização do desenho em psicoterapia psicodramática. Revista Brasileira de Psicodrama, v. 2, n. 12, 1992. CERVELLINI-HAGUIARA, Nadir. A princesa perdida no caminho da escola. Revista Brasileira de Psicodrama, v. 10, n. 2, 2002. CERVELLINI-HAGUIARA, Nadir; GIRO, Natália; VILLELA, Vera H. L. Uma viagem pelos caminhos de formação do psicodramatista: a ação transformadora, ética e estética do role-playing. Revista Brasileira de Psicodrama, v. 16, n. 2, 2008. FONSECA, J. Psicoterapia da relação: elementos de psicodrama contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Ágora, 2000. GONÇALVES, Camila; WOLFF, José Roberto; ALMEIDA, Wilson C. de. Lições de psicodrama: introdução ao pensamento de J. L. Moreno. 8. ed. São Paulo: Ágora, 1988. MONTEIRO, Regina F. (Org.). Técnicas fundamentais do Psicodrama. 2. ed. São Paulo: Ágora, 1993.

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Fotos ilustrativas dos desenhos:

A planta baixa da casa de Gabriela, com o espaço demarcado para a sala de aula:

A fachada “aberta” da casa idealizada por Clarice:

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A fachada de Francisco:

O espaço para atuação profissional de Ana:

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A casa à beira-mar de Maria:

A sala de aula de Luanda:

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ANEXO A

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

(Decreto nº 93.933 de 14/01/87; Resolução CNS nº 196/96)

Este formulário de consentimento tem por objetivo informar-lhe sobre esta

pesquisa, a qual você foi convidado a participar, bem como ter sua autorização

explícita para realizá-la.

Espera-se, através deste, oferecer-lhe uma ideia básica sobre a pesquisa e o

que a sua participação envolverá. Se você desejar mais detalhes sobre algo

mencionado aqui, ou informações não incluídas, sinta-se à vontade para perguntar.

Por favor, leia cuidadosamente este formulário e as informações aqui

contidas.

TÍTULO DO PROJETO: A constituição da profissionalidade e os saberes docentes

na educação profissional de nível técnico das áreas de Saúde e Bem-estar.

JUSTIFICATIVA, OBJETIVOS E PROCEDIMENTOS: o motivo que nos leva a

estudar o problema de pesquisa é o crescimento da demanda por cursos de

habilitação de nível médio profissional no Brasil, a partir do aumento de oferta de

bolsas de estudo e do alto índice de empregabilidade e da lacuna existente na

academia para se estudar as especificidades da profissionalidade e os saberes dos

docentes das áreas de Saúde e Bem-estar.

A pesquisa pretende compreender como se dá a constituição da

profissionalidade docente e quais saberes se fazem necessários no contexto da

educação profissional técnica, nas áreas da Saúde e Bem-estar. Para tanto, temos

como objetivos específicos: buscar elementos na trajetória profissional e pessoal dos

profissionais das áreas da Saúde e Bem-estar que possam ter influenciado suas

escolhas pela docência na educação profissional; compreender como se dá o

processo de constituição docente nas áreas de Saúde/Bem-estar, em que há

carência de profissionais, e em que suas formações iniciais não conduziam

necessariamente à docência; diferenciar os saberes docentes envolvidos nas áreas

de Saúde e Bem-estar, que vão além do saber pedagógico; reconhecer a

importância da atuação prática, como docente e como profissional das áreas de

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Saúde e Bem-estar, para o desempenho na sala de aula; e apontar a relevância das

formações específicas para o exercício docente nas áreas de Saúde e Bem-estar.

Como escolha de procedimentos metodológicos, propomos, inicialmente, uma

pesquisa qualitativa, com a realização de entrevistas com 10 docentes

exclusivamente das áreas citadas. Nesse momento, investigaremos suas trajetórias,

suas percepções sobre a constituição da profissionalidade docente e os saberes

docentes. Como etapa complementar, propomos a realização dois encontros

psicodramáticos.

RISCO OU DESCONFORTO: não há risco associado a esta entrevista, mas, se em

algum momento, você se sentir desconfortável, pode solicitar a suspensão de sua

participação.

SIGILO: os nomes dos participantes estarão em absoluto sigilo. Todas as

informações obtidas na pesquisa serão utilizadas apenas para a análise científica

dos dados. Serão citados nomes fictícios.

GARANTIA DE ESCLARECIMENTO, LIBERDADE DE RECUSA E GARANTIA DE

SIGILO: você será esclarecido sobre a pesquisa em qualquer aspecto que desejar.

Você é livre para recusar-se a participar, retirar seu consentimento ou interromper a

participação a qualquer momento. A sua participação é voluntária. Uma cópia deste

consentimento lhe será entregue.

CUSTOS DA PARTICIPAÇÃO, RESSARCIMENTO E INDENIZAÇÃO POR

EVENTUAIS DANOS: a participação no estudo não acarretará custos para você e

não será disponível nenhuma compensação financeira adicional.

Declaro que concordo em participar deste estudo. Recebi uma cópia deste

termo de consentimento livre e esclarecido e me foi dada a oportunidade de ler e

esclarecer minhas dúvidas.

___________________________ ______________

Participante Data

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TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Eu, ________________________________________________________________,

portador do RG no.____________________, declaro ter recebido as devidas

explicações sobre a pesquisa intitulada A constituição da profissionalidade e os

saberes docentes na educação profissional de nível técnico das áreas de Saúde e

Bem-estar e concordo que minha desistência poderá ocorrer em qualquer momento,

sem que ocorram quaisquer prejuízos.

Declaro ainda estar ciente de que a participação é voluntária e que fui devidamente

esclarecido quanto aos objetivos e procedimentos desta pesquisa.

Nome: ______________________________________________________________

Assinatura: __________________________________________________________

Pesquisadora:

Nome: Danielle Girotti Callas

RG: 22.079.702-X

Fone de contato: (11) 99215-1036

Data: ____/____/____

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ANEXO B

ROTEIRO DIRIGIDO PARA ENTREVISTA

Fase pré-profissional

Objetivo: investigar sua trajetória pessoal e profissional na Educação, além de

elementos de sua memória afetiva.

- Você tem familiares que trabalham com Educação?

- Você tem lembranças marcantes do seu tempo de aluno? Quais?

- Você fez a formação de nível técnico? O que buscava?

- Como você foi como aluno?

- Você se recorda de algum professor que tenha marcado sua trajetória? (Em qual

momento de sua formação? Por quê?)

- Você ajudava outro colega ou irmão a estudar na escola?

Fase profissional

Objetivo: investigar a constituição de sua profissionalidade e apontar os

saberes docentes percebidos.

- Como e quando começou sua carreira como docente?

- Que responsabilidade temos como docentes da Educação Profissional?

- Sinto-me mais professor ou mais... (enfermeiro, massoterapeuta, podólogo – a

depender que quem está sendo entrevistado)? Como você responde hoje à questão:

“Qual é sua profissão?”

- Existe diferença entre dar um treinamento e dar aula?

- Professor: aprende-se a ser professor ao longo da vida: “profissão aprendida”.

Você concorda com essa afirmação. Por quê?

- O que acontece quando você está na sala de aula?

- O que te falta na sala de aula?

- Pode citar alguma história de vida de um aluno que tenha te tocado de maneira

diferente?

- A que fontes você recorre para preparar suas aulas?

- As formações oferecidas pela instituição onde você leciona são suficientes?

- Você sente falta de um momento mais privilegiado para o compartilhamento e

planejamento coletivo?

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- Você sente que já está totalmente pronto como professor?

- Quais aprendizagens ou quais momentos marcaram sua carreira profissional como

docente?

- Você pensa ou já pensou em abandonar essa carreira docente? Por quê? Ou

pretende permanecer por longo tempo?

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ANEXO C

Exemplo de transcrição de entrevista44

ENTREVISTA COM GABRIELA

Gabriela, 30 anos, é fisioterapeuta e cursou a pós-graduação lato sensu em Gestão

Integrada em Segurança do Trabalho, Qualidade, Meio Ambiente e

Responsabilidade Social. Com 7 anos de experiência na docência, está atualmente

com 20 horas semanais (em média) dedicadas à docência e horas complementares

no trabalho de coordenação. Trabalha também com atendimentos fisioterapêuticos

domiciliares.

Fase pré-profissional:

- Conte-me ... Quando começou sua vida na escola?

Cedo. Eu me lembro do primeiro dia em que fui à escola. Tem uma questão

emocional forte, porque eu fui pra escola quando meu irmão nasceu. Acho que tinha

uma questão prática da organização familiar. Eu tinha quatro aninhos quando dei

“tchau” para minha mãe pela primeira vez na porta da escola. O primeiro dia foi bem

marcante. E... desde então eu estou na escola.

- Você sente então que ainda não saiu da escola?

Sinto que eu não saí da escola.

[A entrevistada responde de forma bem pausada e clara.]

- Tem familiares seus que trabalham com a Educação?

Sim. Minha mãe, em casa, dava aulas particulares de Matemática, então eu

acompanhei muito o lecionar da minha mãe, mesmo ela não sendo o professor

padrão de sala de aula. Mas meu tio, irmão da minha mãe, que viveu... na verdade,

eu vivi com ele na casa da minha avó, é professor. Eu acompanhei muito a vida

44

As dez entrevistas realizadas foram transcritas e gravadas no CD-ROM que acompanha este trabalho.

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desse professor que é meu tio. Quando eu já era adolescente, eu fui ter aulas com o

meu tio. O estudar sempre esteve dentro de casa. O que é interessante também

[...] eu acho válido contar [...] é que meu pai fez faculdade enquanto eu era criança.

Então eu ia para a escolinha e meu pai ia para a faculdade.

[A entrevistada começa a se emocionar. Seu pai faleceu precocemente aos 52 anos,

devido a um grave câncer. Recordar-se dele traz comoção.]

- Então, você via seu pai indo para a escola?

Exatamente. E eu via o quanto isto envolvia nossa dedicação familiar. Tudo

precisava dar certo para meu pai conseguir ir para a aula à noite. De uma forma

indireta, ele também foi meu professor. Ele acompanhou a minha vida de escola.

- Sua mãe lecionava Matemática para quem?

Para alunos do fundamental. A gente chamava de ginásio.

- E seu tio?

Também dava aulas para o ensino fundamental. Sempre fundamental. Um

fundamental mais maduro [...] sétima e oitava séries. Ele se formou em Matemática.

Eu mesma fui ter aula com ele, quando estava na sétima série. Então ele nunca

lecionava para as quintas e sextas séries. Quando ele terminou a faculdade de

Matemática, ele também foi fazer a faculdade de Educação Física. Teve um período

que ele lecionava e ia para a faculdade de Educação Física. Quando ele se formou,

ele também foi meu professor de Educação Física. “Me ensinou” a jogar futebol,

volleyball, handball. [...] Tem essa vertente esportiva que é forte na família também.

- Além de você, algum outro parente, como primos, na segunda geração, que

se tornou professor?

Não. Na minha geração, apenas eu.

- E seus irmãos?

Por enquanto, não. Meu irmão tem uma tendência forte. Fez iniciação científica.

Quer fazer mestrado. Fez Educação Física também.

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- Você chegou a fazer uma formação de nível técnico? Ou ingressou

diretamente na faculdade?

Eu tive uma tendência muito forte para fazer um curso técnico. Eu tinha a vontade,

mas me faltava coragem. Eu tinha um pouco de medo de [...] de [...] enfrentar o

mercado de trabalho. Eu achava que eu ainda não tinha o tino e a maturidade.

- Você vinculava os cursos técnicos com mercado de trabalho?

Imediatamente. A concepção até familiar era essa. Daí eu fui e fiz cursinho. Na

verdade, eu fiz 4 meses de cursinho, muito improdutivamente. Eu passei em um

vestibular de meio de ano. Daí, entrando na faculdade, eu abandonei a possibilidade

de fazer um curso técnico.

- Vamos fazer um resgate temporal. Você foi para a escola com 4 anos...

Isso, com quatro anos.

- Era uma escola de educação infantil ...

Educação infantil privada.

- Você ficou por lá por quanto tempo?

Fiquei lá 1 aninho.

- Depois você foi para uma escola de ensino fundamental ...

Ainda era uma escola infantil, que oferecia o Jardim e a Pré-escola.

- Outra escola?

- Uma escola pública. Nossa! Tenho várias recordações!

[Gabriela emociona-se novamente ao se recordar dessa escola.]

Daí eu fui para a escola do SESI, na sequência.

- Por quanto tempo você permaneceu lá?

Da primeira à oitava série. Não existia a nona série. Saí do SESI no oitavo ano e

prestei o chamado vestibulinho, porque existia a dúvida. Foi nesse momento que

surgiu a questão dos cursos técnicos. Fazer ou não fazer? Conciliar [o ensino médio

tradicional] ou não com o técnico?

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- Você se lembra em qual ano foi isso?

Foi no ano 2000... [pensativa] Isso mesmo. Consegui fazer alguns vestibulinhos e o

engraçado é que eu não consegui ir para a escola que eu queria. Eu fui para outra

escola, em função da distribuição de bolsas de estudo. Fui para onde eu tinha mais

desconto e eu não fui para o lugar onde eu mais me encontrava. O que mais me

marca no período colegial dos três anos era... [pausa] Eu não me sentia acolhida.

Então toda acolhida que eu tive do primeiro dia de escolinha, lá atrás, até a oitava

série, eu não senti mais naquele período de colégio. Acho que tinha também um

pouco daquelas coisas de adolescente. Aquela transição. Aquela dúvida. Fazer

curso técnico? O que você quer da vida? O que você vai fazer? Precisa passar no

vestibular!

- Muitas escolhas?

Muitas escolhas e acho que ainda muita imaturidade. Acho que até falta de viver a

escola, porque era uma questão assim de... [pausa] Enquanto as outras vivências

que eu tive envolviam uma questão afetiva... [pausa] Eu gosto disso por causa

disso... [pausa] Eu gosto disso por causa do professor. Eu gosto disso porque me

identifico. Eu não conseguia mais me identificar. Tudo era muito jogado em função

do vestibular que eu tinha que prestar. Então, eu não tinha esse vínculo afetivo. “Ah!

Eu vou pra aula daquele professor”. Tanto que me lembro dos momentos em que

isso aconteceu. No colegial, eu me lembro de algumas aulas de Biologia. Eu me

lembro de uma aula de Geografia e eu me lembro de algumas aulas de História. Se

você me perguntar sobre o assunto que foi dado, como foi dado e as palavras do

professor, eu sei te responder!

- Por que você acha que se lembra especificamente dessas aulas?

Porque elas me marcaram. Foram significativas.

- Positivamente?

Positivamente.

- Então você fez os seus três anos de ensino médio ...

Em uma escola privada. Depois fiz cursinho e fui para a faculdade.

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- Sua graduação foi em Fisioterapia em uma escola pública?

Fisioterapia na escola estadual paulista, no campus de Marília.

- Vou voltar um pouquinho... Você falou que tinha muitas recordações da

escola pública. Que recordações são essas?

Eu lembro que tinha que colocar o uniforme. Eu me lembro perfeitamente dele. Era

um shortinho “baloné” com uma blusinha quadriculadinha vermelha. Isso era muito

marcante. O uniforme era marcante e a entrada da escola era marcante. Eu

passo hoje em frente dessa escola e acho que ela não é tão grande quanto parecia

antes. Para mim, ela era gigante [pausadamente para enfatizar]. Quando eu entrava,

tinha uma rampa super comprida. A gente subia aquela rampa [sua fala, neste

momento, se assemelha à fala de uma criança]. Então era um ritual que era gostoso

de viver.

- Então essas recordações são boas?

São boas. Eu tenho boas recordações. Eu acho que tinha nessa escola uma coisa

muito importante: um lúdico muito forte por trás de tudo que a gente fazia. Então eu

me lembro bastante como a gente aprendia com o lúdico. Eu lembro do tanque de

areia, do parquinho [novamente voltava a ser criança]. E do quanto aquilo ali não era

só um espaço para se divertir. Era um espaço para se divertir e um espaço para

entender. A gente dividia espaço, coisas, comida, lanche. Era bem assim.

- O que leva hoje a Gabriela, com 30 anos, a parar para processar dessa forma

o que era a escola? O que você acha? Como você chegou a essa conclusão

sobre o lúdico?

Ah... Eu tenho algumas questões importantes. Há dois anos eu estou em processo

de análise. Então tem algumas questões importantes que eu trago [...]

principalmente as memórias que eu trago, principalmente as afetivas.

- As memórias são fortes para você na escola, certo?

São muito fortes. Quando você disse para mim: “Você não saiu da escola.” Eu

reafirmo que eu não saí da escola. Eu não me vejo fora da escola.

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- Isso é muito importante. Você foi trabalhando essa percepção na terapia?

Exatamente. E eu falo muitas vezes isso na sala de aula. Eu falo: “A gente não está

aqui para ter aula maçante. A gente está aqui para construir. Quando a gente

constrói, a gente aprende. E se a gente dá risada, se emociona, se a gente

consegue fazer associações, isso marca para o resto da vida. Se for algo para a

gente passar, só por passar, é só mais um dia nas 1.200 horas que a gente vai

passar aqui dentro”. Então tem uma questão de usar as emoções, os sentimentos,

as coisas que fazem sentido, as percepções que eu trago para cá [entende-se “para

a sala de aula”]. Por experiência própria. Isso é meu. É o que eu tento trazer para cá

daquilo que eu vivi.

- Você está me dizendo que tem a intencionalidade de tocar o aluno, de marcar

sua trajetória e de contribuir com o projeto dos alunos, da forma como a

escola fez um dia por você?

Sim. Tenho. [silêncio reflexivo]

- Se você fosse olhar toda sua trajetória [escolar], qual foi o momento mais

marcante? Foi na educação infantil, foi na escola do SESI, tendo aulas com

seu tio, foi na faculdade ou foi na pós?

Nossa! É difícil. São tão marcantes as recordações de infância. Pelo fundo de

estrutura que isso tem para minha vida. Mas tem uma história que ainda eu não

pontuei. Quando eu cheguei a Marília, eu estava há 350 km de distância da minha

família, daí foi a hora do meu pai e da minha mãe me darem “tchau”. Então foi uma

situação totalmente inversa. “Tchau, mãe!” e “Tchau, filha!”. Foi a inversão quase 20

anos depois. Diferentemente do que tinha lá na escola infantil em um ambiente mais

acolhedor, eu tive que rebolar para conseguir inclusive entender que raios era

aquela universidade, que raios era aquele diretório. Quando eu cheguei, tinha

metade da faculdade em greve e o pessoal estava brigando. Eu não entendia

porque eu não podia ficar na biblioteca. Eu cheguei e fui para a biblioteca na

primeira semana. Aí eu fiz matrícula e a faculdade entrou em greve.

- Que choque!

Eu pensava: “O que eu faço agora?”. Eu era da primeira turma de Fisioterapia.

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- Eu não sabia que sua turma tinha sido a primeira ...

Fui da primeira. Os desafios foram imensos. A gente foi para aprender Fisioterapia e

a gente aprendeu sobre Sociologia, Filosofia... Eu acho que faz parte um pouco você

lutar. Então, tinha uma questão que eu nunca tinha vivido dentro de todo o meu

processo escolar. Porque na educação infantil, eu estive em uma escola privada.

Depois passei pela escola do SESI, onde tinha meu tio lá dentro. Isso tinha um lado

bom e outro ruim, mas eu estava em uma posição confortável. Muitas vezes, eu não

precisava brigar ou gritar. E de repente eu fui pra uma escola particular que tinha

tudo pronto. Apostila e cadernos prontos. Cadeira pronta. “Leia, sente, estude e rale

para o vestibular.” Não tinha essa questão do ter que conquistar alguma coisa.

Quando eu cheguei à faculdade, eu tive [que conquistar algo]. Então foi uma

transição meio que “Oi... Isso é a vida real. Vamos lá. Nem tudo são flores”. Algumas

coisas nem existiam ainda [na faculdade]. Por exemplo, “o laboratório no qual vocês

terão que fazer estágio daqui dois anos”. Então a gente viveu a conquista. Se a

gente ficasse esperando a apostila pronta, nada ia acontecer. Acho que foi na

faculdade que o aprender a aprender ficou mais claro para mim. Tinha situações em

que o professor chegava e falava: “Ah! Vocês não sabem resolver esse caso? Se

virem e resolvam. É um ótimo momento para vocês pesquisarem sobre o sistema

renal aqui, na casa de vocês, ou na biblioteca. Se virem. Eu quero isso aqui

resolvido”. Era um pouco assim: vivam, resolvam, aprendam. Aprendam a aprender

e me tragam o que vocês conseguirem. E é uma situação que, sozinho, você não dá

conta. Você precisa muito do coletivo. Acho que as coisas que mais me marcaram

de toda essa trajetória foram na faculdade. Eu acho. Foi uma quebra de paradigmas

muito grande. Foi um marco.

- Quantos anos durou a sua graduação?

Foram quatro anos em período integral.

- Em qual ano você entrou na universidade?

Em 2000... Peraí... Preciso fazer as contas. Entrei em 2003 na faculdade e saí em

2007.

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- Depois você foi fazer a pós-graduação ...

Pós em Gestão Integrada em Segurança do Trabalho, Qualidade, Meio Ambiente e

Responsabilidade Social.

- Em qual ano?

Em 2010. Não... foi de 2011 para 2012. Eu fiquei do ano de conclusão da faculdade

até 2011 sem retomar os estudos, digamos, acadêmicos. Fiz cursos pontuais, que

podemos chamar de curta duração. Cursos pela Internet, com grupos de discussão.

Eu fui trabalhar em hospital, então precisei de algumas capacitações em função

disso. E eu não fazia uma pós-graduação. Eu acho que eu não me decidia.

- Você sente que foi adiando a decisão?

Fui. Fui adiando. Eu tinha uma pretensão muito grande, logo que saí da faculdade,

em começar o mestrado. Na verdade, existia e existe até hoje um programa de

aprimoramento na UNESP de Botucatu, dentro de um hospital. Minha intenção era ir

para a área hospitalar. Esse aprimoramento durava um ano e meio ou dois. Não me

recordo bem agora. E esse aprimoramento era visto como uma base para o

mestrado, por conta da linha de pesquisa. Quem fazia esse curso de

aprimoramento, começava, na sequência, a fazer o mestrado. Eram as portas de

ingresso para o mestrado. Para mim, era uma situação bem legal. Eu gostava. Eu

me identificava. O que aconteceu foi que nessa época meu pai foi diagnosticado

com câncer. No final da minha faculdade, o meu pai já estava no ciclo de

quimioterapia. Meu pai estava passando por uma cirurgia no dia em que eu estava

tirando a foto para o convite de formatura. Ele estava fazendo rádio [radioterapia] e

estava muito debilitado.

- Eu me lembro da foto que você me mostrou com ele no baile de formatura...

E aí foi o grande “baque”, porque eu vi que não ia dar para continuar em Marília. Eu

já tinha passado quatro anos estudando em período integral, sem trabalhar. De

repente, caiu uma ficha assim: “Pô! Há quase quatro, sete anos atrás eu estava

pensando em fazer um curso técnico. Optei pela faculdade e não fui trabalhar”. Tudo

isso começou a fazer muito eco, sabe? E uma responsabilidade muito grande em

estar com minha família no momento em que estávamos vivendo. Aí eu voltei [para

sua cidade natal]. Mas, não tinha me tocado que eu não tinha me programado para

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isso. Eu só disse: “Eu vou voltar”. Não pensei como iria conseguir um emprego e

fazer mestrado. Eu me senti muito perdida fora da escola.

- Você se sentiu perdida fora da escola. Isso é importante?

Sim.

- Apenas outra informação: qual curso técnico você pensou em fazer?

Na época, eu queria fazer um curso relacionado à tecnologia da informação. Nada a

ver com o que eu queria de verdade.

- E daí, como veio a sua pós-graduação?

A pós aconteceu quando eu já trabalhava na instituição X [instituição campo desta

pesquisa]. Eu sentia, enquanto profissional, que eu precisava me capacitar e

entender mais sobre o todo do curso no qual eu estava lecionando. Digo, sobre o

curso para o qual eu mais lecionava.

- Sempre foi o Técnico em Segurança do Trabalho seu principal curso de

atuação?

Não. Já foi Massoterapia, por exemplo. Já foi o Técnico em Massoterapia o principal.

No início, eu tinha menos aulas no Técnico em Segurança [do Trabalho]. Quando eu

fui contratada para o Técnico em Segurança do Trabalho, foi porque eu dava aulas

sobre assuntos que os professores que eram técnicos em Segurança do Trabalho

não dominavam. Por exemplo, as aulas de Ergonomia. Eles [professores técnicos

em Segurança do Trabalho] também não curtiam essas aulas e não se

identificavam. A minha proposta foi exatamente a de estudar para entender o que

era a Segurança do Trabalho e porque a Ergonomia era importante. A partir daí, eu

comecei a me organizar. Quando eu comecei a perceber que minhas aulas em

Segurança do Trabalho, só em Ergonomia, não seriam suficientes para atender à

demanda da instituição, eu comecei a querer entender muito mais sobre o que fazia

o técnico em Segurança do Trabalho. Daí, eu fui fazer a pós.

- Podemos dizer que a pós-graduação escolhida foi uma necessidade

profissional?

Foi por necessidade profissional.

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- Vamos voltar um pouquinho. Como você foi como aluna?

Eu era a aluna “CDF” [gíria para aluna que estuda demais].

- A aluna E.E.? [termo particular que surgiu em uma turma de Técnico em

Segurança do Trabalho que significa “aluna excedeu às expectativas”]

Aluna E.E.

- Você ajudava outros colegas e seus irmãos a estudarem?

O meu irmão era algo totalmente fora de cogitação. Ele tinha uma onda meio

rebelde. Ele teve dislexia e todos os outros tipos de distúrbio que você possa

imaginar. Foi para a psicopedagoga. Ele era o inverso. Minha mãe falava: “Eu falo

para esta menina parar de estudar e este outro não para um minuto para estudar!”.

Em casa, tinham essas diferenças claras na infância e na adolescência.

- Qual é diferença de idade entre você e seu irmão?

Três anos. Hoje vivemos algo totalmente diferente. Por exemplo, a gente, hoje,

somente fala de assuntos relacionados à vida acadêmica, quando sentamos para

comer juntos. Ele traz o paper que ele leu no final de semana. Mas os meus amigos,

eu ajudava. Por exemplo, eu tenho uma amiga de longa data da época do colegial.

Toda vez que tinha prova de História, ela surtava. Ela tinha algum problema de

saúde de tanto que ela passava mal. A gente, digo eu, sentava com ela e dizia:

“Peraí. Vamos traçar uma linha [do tempo]...” Porque eu acho que foi o que minha

mãe me ensinou: “Trace a linha que você não se esquece!”. Eu tracei a linha para

muitos amigos e eu nem era tão boa em História. Eu queria ajudar os demais. Eu

aprendia mais quando eu estudava com eles. Eu gostava dessa proposta de tentar

ensinar. Eu não sabia tudo. Era o vamos estudar juntos, na verdade.

- Você se recorda de algum professor que tenha marcado sua trajetória?

Considerando toda essa longa trajetória que você relatou ...

Tem que ser um só? [risos de ambas]

- Pense no que mais te marcou...

Quem mais me marcou foi minha orientadora na faculdade.

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- Por quê?

Porque ela tinha um jeito de me mostrar o quanto eu tinha que ser autônoma. Ela

me marca exatamente porque ela me dá, não só a liberdade, mas a

responsabilidade. Ela me mostrava por onde eu tinha que ir, mas não o que eu tinha

que fazer. Eu tive momentos de crises com ela. Eu pensava: “Por que ela não me

ajuda? Ela não me ajuda! Ela não me ajuda!”. E, de repente, eu me via com ela

sábado à noite tirando dúvidas. Ela me indicava bases de pesquisa, artigos em

francês e dizia: “Vai lá e se vira”. Algumas atitudes dela me fizeram amadurecer. Aí

ela me marca! Ela dizia: “Tá vendo como você fez? Viu como dá pra fazer? Você

queria, então você fez.” Eu estava em uma linha de pesquisa em que em algum

momento eu disse: “Não é o que eu quero para minha vida”. Mas eu continuei até o

fim. Eu me cobrava: “Eu tenho que terminar”.

- Missão dada é missão cumprida?

É exatamente por aí.

- Você pensa em começar um mestrado hoje, considerando suas questões

profissionais e pessoais?

Eu penso em começar um mestrado entre os próximos 6 meses e 1 ano. Mas eu

ainda preciso amadurecer. Eu ainda carrego aquele “ranço”: “O que é que eu vou

fazer na vida?”. Sabe? Aquele [ranço] pós formatura?

Se eu tenho a necessidade, eu faço, da mesma forma que eu fiz a pós-graduação.

Mas eu estou em um momento de observar. Eu vou fazer pela necessidade ou eu

vou fazer porque isso faz sentido para minha vida? Não é pelo hoje, é pelo futuro.

Fase profissional:

- Agora a gente vai dar um salto. Resgate como você chegou à carreira

docente aqui nesta instituição. Como foi isso?

Eu acho que sempre ficou claro que eu queria dar aula, independente do lugar que

eu estivesse.

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- Você sempre teve vontade [de dar aula]?

Mas eu acho que eu sempre deixei claro. Então as pessoas entendiam que eu

estava ali, mas que eu queria ter feito mestrado. Quando eu entrei na clínica e

comecei a trabalhar naquele momento em que eu voltei pra casa e caí de

paraquedas em Jundiaí, não tinha mais o grupo de estudos. Já que não tinha grupo

de estudos, eu comecei a recortar artigos e ia grudando no mural da clínica. Eu tanto

instigava que, um dia, a dona da clínica disse que ia fazer um curso de Neurociência

e começou a contar pra todo mundo. O pessoal começou a se interessar pelo curso.

Resumo: o curso acabou acontecendo na própria clínica. Tinha um monte de gente

e isso porque o curso era aos sábados! Então tinha uma questão assim, o pessoal

olhava pra mim e perguntava: “Você gosta de estudar, né?” e “Você vai fazer

mestrado!”. Era uma característica “CDF” da escola que eu levei para a clínica. E

isso nunca me atrapalhou. Pelo contrário.

- Até aqui você nunca tinha dado aula?

Não. Até 2008 aqui, não. Aula, aula [repetição proposital], enquanto docente

contratada, não. Mas, eu fui monitora da Fisiologia. Então eu não tinha que ficar com

o pincel lá na frente da mão, mas eu era monitora. Isso fazia com que eu tivesse que

me preparar. Ainda não como a super professora. Mas quando eu via, todo mundo já

estava sentado em roda comigo. Isso hoje faz sentido como aula para mim, mas eu

não podia considerar naquela época que eu estava dando aula. Até porque nem na

minha cabeça era aula. Não era aula. Nesse curso, uma das terapeutas

ocupacionais já dava aula aqui na instituição. Era a época dos contratos PF e PJ

[pessoa física e pessoa jurídica]. Um dia, ela me disse: “Eu vou ter que me afastar

das aulas e eles estão precisando de professores. Você não quer ir lá conhecer?

Conversar com a coordenadora? Eu falo que você vai procurar por ela”. Quando eu

cheguei, eu achava que seria uma conversa para entender a situação. Mas saí com

o início das aulas marcado e com o plano de curso em mãos.

- Então sua primeira experiência na docência foi aqui nesta instituição?

Foi aqui. Eu tinha uma questão de querer entender para quem eu ia falar. Isso me

afligiu um pouco. A problemática nunca foi falta de conteúdo. Mesmo que eu não

soubesse, eu ia aprender ao me preparar para a aula. O meu desafio era: “Quem

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são estas pessoas?”, “Para quem eu vou dar esta aula?”. Essa era minha

preocupação. Esse era o meu frio na barriga para chegar aqui na frente.

- Por que você acredita que foi contratada?

Eu fui contratada, primeiro, pela necessidade da instituição.

- A necessidade de alguém com conhecimento?

A necessidade de alguém com o perfil. Ninguém queria dar a competência de

Anatomofisiologia e, para mim, isso era gostoso. Era um lugar onde eu pisava bem.

Eu dizia: “Eu só preciso entender para quem eu vou falar!”.

- O primeiro convite foi para o curso Técnico em Massoterapia?

O primeiro convite foi.

- Como você saiu daqui naquele dia da entrevista?

Eu saí um pouco assustada, mas eu saí feliz. Era uma chance de voltar a estudar.

Era a chance para entender como poderia funcionar este lance de dar aula e ver se

era a carreira que eu queria seguir.

- Hoje, quando te perguntam sobre sua profissão, o que você responde? Por

exemplo, ao preencher aquelas fichas cadastrais ...

Na ficha, eu ainda coloco fisioterapeuta.

- E se numa festa, te perguntam o que você faz?

Eu digo que trabalho na instituição X.

- Em algum lugar você se ouve falando a frase “Eu sou professora”?

Ouço. Eu falo. Menos do que “Eu sou físio”. Na verdade, eu falo mais “Eu trabalho

na instituição X”. Daí, se me perguntam o que eu faço, eu completo: “Eu sou

professora”.

- Vamos resgatar o que eu chamo de processo de constituição da

profissionalidade docente, que é um conceito novo, diferente da

profissionalização. A profissionalidade é algo que você desenvolve ao

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desempenhar determinada função. Como se deu a sua constituição de sua

profissionalidade docente?

Eu acho que por estar aqui [na instituição]. Por eu estar aqui. Por um curso que eu

não conhecia e fui querendo conhecer. Eu me desenvolvi para entender as pessoas,

os objetivos do curso, as expectativas de quem estava ali [no caso, os alunos]. Tudo

é muito diferente. Por exemplo, a competência de Anatomofisiologia, que é a mesma

para Podologia, Massoterapia e Estética, é, na verdade, diferente em cada curso e

em cada turma.

- Por quê?

Porque... Eu acho que hoje em consigo entender os objetivos. Por exemplo: “Qual é

o foco que eu tenho que dar sobre sistema cardíaco na Massoterapia?”. Ou seja, o

que precisamos saber especificamente na Massoterapia? Então é fazer com que os

alunos pensem. O perguntar para os alunos acaba sendo algo importante para o

meu aprender a ensinar. Eu fui me constituindo [como docente] em função da

demanda que existia [na instituição] e dos desafios que foram colocados. E também

por toda minha história. Têm que fazer sentido [as aulas]. Foi aí que eu fui me

desenvolvendo.

- Então você me diz que a mesma aula de Anatomofisiologia não funciona da

mesma forma nas diferentes áreas de Podologia, Massoterapia, Estética e até

na Enfermagem?

Correto.

- O que fez a diferença em seu processo?

O aluno.

- Você sente que foi se desenvolvendo...

Quando você fala da profissionalidade, eu vejo o quanto aprendi com as questões

que temos que tratar aqui. Em um momento eu tive que aprender a cuidar de diários

e a usar uma planilha em Excel. [...] Isso também faz parte do que aprendi para

estar aqui. Eu aprendi para estar em sala de aula. Como eu me desenvolvi? É lógico

que, para estar em sala de aula com os alunos, a instituição nos dá um respaldo

importante, com as formações, as Rodas de Prosa [evento educacional focado nos

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funcionários da instituição]. O que todas essas reflexões trouxeram para a

constituição da minha profissionalidade? Isso é muito importante. Entender que não

é um abandono, como eu pensei lá trás com minha orientadora. A gente fala para o

aluno: “O caminho é por aqui. Vamos lá que eu vou te mostrar!”. Existe uma questão

institucional que é muito importante no processo [de constituição da

profissionalidade].

- Você concordaria com a afirmação de que o ser professor é uma profissão

aprendida?

É. Eu concordaria.

- Você sente que aprende a ser professora todos os dias? Você se sente

pronta como professora?

Eu sinto que eu aprendo a ser professora todo dia, mas eu não me acho pronta.

[frase dita demonstrando convicção]

- Você não se acha pronta por quê?

Eu acho que pronta... Ah! Pronta eu estou. Mas não parou. É latente. Tem tantas

coisas que mudam. Ah! Os alunos não são sempre os mesmos. Eu acho que o

professor aprende muito mais com o aluno. A gente fez as analogias das diferenças

das turmas. Mas tem turmas do mesmo curso que não rendem do mesmo jeito.

Então eu consigo hoje entender que a gente aprende enquanto está dando aula. Por

isso a gente não pode falar assim: “Tá pronto. Chega.” Enquanto você não entrar na

sala de aula e estiver ali de fato, você não está pronto mesmo. Você fica pronto na

medida em que a aula vai acontecendo. Acho que a aula só está pronta quando ela

termina.

- O que acontece quando você está na sala de aula?

Quando eu estou na sala de aula, eu tenho voz.

- E como você se sente em sala?

[Pensativa] Eu me acho. Eu me sinto fazendo o que eu sei. Isso é muito importante.

Eu me sinto segura. Eu sei onde estou pisando. Eu tenho voz. Eu acho que é por

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conta do que aconteceu com meu desenvolvimento da profissionalidade. É um

resultado.

- O que você acha que é importante falar para um docente que está começando

na profissão docente? Por exemplo: Você vai entrar em sala e ...

[Pensativa novamente] Não sei se é o mais importante, mas eu sempre começo

falando assim: “Você vai entrar em tal sala... Essa sala é assim... O público é

assim...”. Não é estigmatizá-los, mas, por exemplo: “Você vai dar a mesma aula em

duas turmas diferentes. Nesta turma, você pode encontrar estes desafios e, nesta

outra, você ainda vai encontrar desafios diferentes da primeira”. Acho que temos que

mostrar quem é o público.

- Temos um saber... que saber é esse?

É o saber perceber o outro, saber perceber o grupo, saber perceber os indivíduos. E

até nossa postura, o nosso comportamento. Perceber o momento de propor uma

intervenção, uma atividade. Tem que saber perceber o emocional da turma.

- Se continuarmos pensando sobre os saberes e sobre o saber perceber que

foi muito bem pontuado, que outros saberes são necessários para se entrar

em uma sala de aula?

O saber aprender, o saber perceber. Acho que também... [longa pausa] um saber

espacial é importante.

- Fale um pouco mais sobre esse saber espacial.

É porque a gente tem o quadrado da sala de aula que nos traz aquele “ranço” da

escola tradicional. E acho que tem uma questão que é contínua aqui dentro do

quebrar o gelo. O professor aqui na frente, em uma posição tão hierárquica e até

opressora. O saber perceber também é qual é percepção que nossos alunos têm de

quem está aqui na frente. Noventa por cento dos alunos estão acostumados com o

ensino tradicional, onde você apenas ouve. Então, esse espaço onde você pode

transitar pelos alunos, escutar, ver onde estão as “panelas”, onde estão as

afinidades, é o saber espacial. O saber espacial é saber se localizar. Onde é que eu

estou?

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- Ficou claro. O que você sente que falta para você em sala de aula hoje?

O que falta para mim... Acho que é, às vezes, até me livrar um pouco do tradicional.

Tem algumas coisas que eu ainda carrego. Meu desafio é tirar um pouco do

profetizando, sabe? Quando eu digo: “Xi.. isso aqui não vai funcionar”. O meu

desafio é usar o meu saber perceber sem deixar ele me dominar.

- Você falou sobre profetizar?

Falei.

- Fale um pouquinho mais sobre o profetizar.

É quando eu digo: “Faça assim, senão não vai dar certo”, como se eu fosse dona da

verdade absoluta. A gente tem que tomar cuidado com a verdade absoluta que a

gente passa para os nossos alunos. Às vezes, eu me pego com verdades absolutas.

Por exemplo, do meu próprio tio. Tinha muitas questões que ele trazia para a sala de

aula que eu adolescente falava: “Ele está de brincadeira!”. É uma coisa que era

verdade absoluta para ele e é até hoje. Eu me pego me policiando para não ter

essas questões. Ele era muito rígido, um professor muito rígido e um dia, ele disse

para um aluno... Acho que eu posso contar isso aqui, né...? “Viu? Se você não

melhorar...”, ou algo assim, “Se você não se empenhar e se dedicar, você não vai

conseguir fazer nada de diferente na vida além de ficar lá no RS [rede de

supermercados local] arrumando os produtos!”. Era um garoto que estava na oitava

série, mas que tinha repetido muito, então ele já trabalhava. Acho que ele já tinha

uns 16 anos e tinha muito dificuldade para aprender. E meu tio falou em sala de aula

falava: “Se você não estudar, não vai ter jeito. Vai passar a vida fazendo pacotes no

RS”. Eu sempre via esse menino embrulhando os pacotes no RS ainda, quando ele

devia estar perto dos 30 anos. Então, até onde aquilo foi profético para o menino? A

gente tem que tomar muito cuidado.

- Sem dúvida. Você sente que há uma responsabilidade, eu diria específica, em

ser docente na educação profissional?

Sim.

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- Qual é essa responsabilidade?

Acho que existe uma responsabilidade muito grande em mostrar algumas questões

que vão além da competência. São questões plurais, éticas, morais... Entender a

responsabilidade. Em todo momento, eu me vejo falando: “Para quem eu estou

falando?”. Por exemplo, para o futuro técnico em Segurança do Trabalho. Eu tento

lembrá-los sempre o que significa falar sobre Ergonomia e orientar os funcionários

de uma empresa. Qual é sua missão como técnico em Segurança do Trabalho? Que

problemas sérios você pode evitar na vida de outras pessoas? Acho que eu trago

essa questão da responsabilidade na vida do outro.

- Você entende que é em sala de aula que isso deva acontecer?

Eu entendo que é. Na sala de aula.

- Você hoje recorre a quais fontes para preparar sua aula?

Eu ainda utilizo muito os livros. Eu ainda compro muitos livros. Eu acabo utilizando

alguns artigos [científicos]. Mas uso isso como fundo de informações. Eu já tentei

utilizar os artigos em sala de aula, mas eu percebo que, algumas vezes, os artigos

são escritos por graduandos ou mestrandos que não têm a vivência técnica. Essa é

minha grande dúvida com relação ao mestrado.

- Você diz vivência técnica, profissional?

Sim. Técnica, profissional. Você vê muitas vezes a falta de respaldo. Os alunos

perguntam: “E agora, o que eu faço na prática com esse dado de tal pesquisa

acadêmica?”. Existe uma questão de inferir. Eu ainda uso os artigos nas aulas, mas

tomando muito cuidado com as orientações que eu vou passar, justamente para que

eles consigam pensar em soluções. Eu inverto e faço com que a busca de resposta

faça parte do desafio da atividade: “Ok. A gente tem este dado revelado na pesquisa

da Federal do Triângulo Mineiro, ou do Ministério do Trabalho. Agora, qual é a

solução que podemos propor?. O que vocês enxergam como técnicos em

Segurança do Trabalho?”. Eu ainda uso os artigos, mas eu mudei o foco.

- Como você trabalha uma aula de ética na Segurança do Trabalho?

Eu tenho utilizado algumas questões reflexivas no início da aula, alguns vídeos e até

alguns documentários. “Como a gente se sente quando está doente? Como a gente

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se sente quando sente um desconforto? Como a gente se sente quando não somos

acolhidos pela empresa? E quando somos apenas um número na empresa?” Eu

trago esse tipo de reflexão. “Quantas ‘Marias’ como a deste documentário nós

conhecemos? Olhem para isso!” A discussão tomou um rumo que uma vez a gente

chegou a discutir a Psicodinâmica do Trabalho em uma aula sobre Ergonomia.

- Olhando novamente para sua carreira docente nesta instituição, teve

momentos marcantes?

Foram muitos os momentos marcantes.

- Quais?

Acho que um bem marcante foi quando uma aluna com muita dificuldade conseguiu

fazer uma análise ergonômica completa. A Mariana. Quando ela conseguiu por ela,

sozinha, mostrar para mim sua planilha com o que tinha de errado e o que ela

sugeria. Foi surpreendente!

- Fale um pouco sobre quem era a Mariana.

A Mariana era uma aluna da Segurança do Trabalho que tinha dificuldade de base

de aprendizagem. Ela tinha uma alfabetização – digamos – precária. Ela tinha

muitos problemas. Não se escolarizou. Foi se alfabetizar já em idade adulta, em uma

escola de educação de jovens e adultos. A compreensão dela era muito limitada. As

informações técnicas sempre a remetiam a uma vivência pessoal. Era o que ela

conseguia correlacionar naquele momento. Quando eu comecei a trabalhar tensão,

flexão, movimentos articulares, ela começou a entender [Ergonomia]. Mas ela

entendeu porque ela não escreveu. Ela fez. Ela fez a flexão. Ela se movimentou

para entender. Aquilo fez com que ela tivesse outro tipo de aprendizado. Foi incrível

como ela foi uma das primeiras da turma a internalizar tudo aquilo. No momento em

que eu pedi para que fizessem a análise de um funcionário de sua empresa projeto,

ela não teve dificuldade em me explicar. Na verdade, ela teve mais dificuldade em

escrever a palavra “flexão” corretamente do que de me explicar a Ergonomia

observada.

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- O que você aprendeu com essa situação de Mariana?

Eu aprendi que o aprendizado não é só o letramento, o aprendizado que consta no

papel. Ela sabia Ergonomia. Usar outros recursos com essa aluna foi importante.

Não deixei mais de “fazer o movimento de flexão” em nenhuma outra turma. Outro

caso que me marcou bastante foi o aluno da Massoterapia que era cego. Ele era

cego em uma sala de videntes e a proposta era de passar o conteúdo de

Anatomofisiologia. Houve uma diferença muito grande, pois foi uma sala onde eu

tive que transformar o sistema nervoso num elemento figurado. Todos os alunos

tiveram que fazer parte da mesma aula. Eu inverti [a aula]. Ao invés de começar

falando sobre as estruturas, eu comecei pelos sentidos. “Então, como que a gente

sente?” E fui provocando uma sala onde um aluno não tinha um dos sentidos.

Terminar essa competência naquela turma foi muito bom. O momento de feed back

foi muito bom, porque foi rico. Foi rico. O desafio do aluno cego me trouxe a

oportunidade de desenvolver a aula e de aprender com isso de uma maneira que eu

não imaginava. E tudo foi muito bem recebido pela sala.

- Você aprendeu o que com essa situação?

Eu aprendi que existem outras formas da gente aprender e existem outras formas da

gente ensinar. Não existe a receitinha de bolo. Existe a fórmula do comodismo.

Datashow e vamos lá. Foi isso que aprendi. A gente consegue se reinventar. Isso foi

bom. Isso foi muito bom. Não sei se eu conseguiria dar uma aula fora desses

padrões hoje. Eu acho até que não consigo mais dar uma aula sobre sistema

nervoso com giz e lousa. “Você pode me conseguir barbante, massa de modelagem

e um pouco de algodão? É isso que eu vou precisar para esta aula.” Eu não consigo

mais entender aquela aula quadrada. Esta aula vai ter que ser assim para todo

mundo agora.

- Qual foi seu sentimento ao término dessa competência? Foi uma

competência longa, certo?

Longa. Meu sentimento foi de “Ufa! Puxa! Deu certo!”.

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- Existe algum outro momento marcante de aprendizagem que você queira

citar?

Eu acho que o aprendizado é tão contínuo. Há momentos que a gente consegue

aprender de fato. Por exemplo, o dia em que a aluna Wanda apresentou seu projeto.

A Wanda é uma aluna com problemas de saúde e uma dor física visível. Você vê

que aquela menina está sofrendo e dizendo com todas as letras: “Eu vou

apresentar”. Foi um “tapão” na cara de muita gente. É um dos momentos que me

marca bastante. Se a gente tivesse tempo, eu poderia passar a tarde falando sobre

momentos marcantes. Os encerramentos de curso e as apresentações finais de

projeto também me marcam muito. Quando você faz as intervenções de início de

turma também me marca. A condução da atividade, a forma e o Psicodrama.

- Você sente falta de um momento mais privilegiado para o compartilhamento e

o planejamento coletivo entre docentes?

Eu sinto falta. Sinto falta do compartilhamento, principalmente quando a gente se

afasta mais de uma turma e se aproxima de outra. O compartilhar é muito

importante. São muitas turmas. E sinto falta do momento específico para o

planejamento. Sinto que é uma demanda para que a gente não corra o risco de usar

sempre a mesma aula. A aula está pronta. Ok. Mas, o que eu possa melhorar?

- Você sente que as formações que nós conseguimos organizar hoje são

suficientes?

Haveria espaço para outras formações.

- Alguma específica? Nós falamos sobre muitos saberes. Alguma formação

específica para algum desses saberes?

Não sei se uma formação. Talvez uma sensibilização. Sensibilizar em função dos

alunos que estão em sala de aula. Eles vêm. Vêm com suas histórias. O que eles

vêm fazer aqui? Existe uma realidade muito diferente da realidade que eu vivi como

aluna. Quem são os nossos professores? Eu não sei como te dizer. Acho que a

gente precisaria de uma sensibilização para o saber perceber. Aprender a perceber.

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- Você me trouxe experiências, em sua memória afetiva, do seu tio, da sua mãe

e da sua orientadora. Você acha que existe algo deles em você, professora

hoje?

Tem... Tem muito. [risos] Eu não me sinto alguém falando de outra posição. Mas tem

uma junção de todos. Às vezes eu me vejo em sala muito “mãezona”: “Por que não

deu para você fazer?”. Sabe quando a mãe é levada na lábia? Acho que a gente tem

que entender os porquês. Mas eu me vejo assim. Eu me pego usando umas frases

que não são minhas. Esta frase é de minha orientadora. Outro dia, na última aula da

Podologia, elas estavam em dúvida sobre as células. Não era a minha aula e elas

me procuraram com a dúvida no intervalo. Eu me lembrei daquelas músicas que os

professores usavam nas aulas do cursinho lá trás. A música está tão clara na minha

cabeça. Elas [as alunas de Podologia] acharam linda. Eu disse que a autoria não era

minha e me lembrei na hora do meu professor de Biologia do cursinho. Tem muita

coisa que a gente trás. Eu tenho muito da minha orientadora quando digo: “Vamos,

gente. Se vira. Vai”.

- Essa frase é bem você mesmo. Você já pensou ou pensa em abandonar a

carreira docente?

Sim. Já.

- Por quê?

Porque existe uma questão que ainda me balança. O aluno pergunta se você

trabalha ou só dá aula. É cultural. E tem a questão da remuneração. Existe uma

dúvida latente. Será que eu continuo na carreira e penso em viver a Educação

enquanto carreira? Ou será que eu vou voltar para a clínica e vou viver outra

profissão, para fazer o meu “pezinho de meia”, e daí, mais pra frente, eu volto para a

Educação? Eu acho que é um senso comum. Eu me culpo por causa disso. Parece

que as pessoas só vão dar aula quando estão perto de se aposentar. “Então

cansei... e agora vou dar uma aulinha!”. Às vezes, eu me pego pensando se é esse

mesmo o caminho. Será que eu fico aqui porque, de certa forma, isso aqui é o meu

porto seguro? Eu me identifico e tenho voz. Eu sei onde estou pisando. Mas talvez

eu não tenha o retorno financeiro que eu quisesse. É uma questão de valorização

mesmo da Educação no Brasil. Somente por isso eu penso.

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- Existe algum motivo forte que te faria ficar, além de ter voz e ser seu espaço?

Outro motivo forte... Acho que é a possibilidade de uma carreira aqui dentro.

- Existe mais que você queira dizer ou alguma dúvida que tenha permanecido?

Não. Ainda teremos um momento coletivo?

- Sim. Teremos.