A COMUNIDADE DE QUEIMADAS FRENTE À EXPANSÃO … · Foto 17 – Produção de biscoito de goma,...

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL MESTRADO PROFISSIONAL EM SUSTENTABILIDADE JUNTO A POVOS E TERRAS TRADICIONAIS DISSERTAÇÃO DE MESTRADO A COMUNIDADE DE QUEIMADAS FRENTE À EXPANSÃO MINERARIA NO ALTO JEQUITINHONHA: A DEFESA DE UM TERRITÓRIO. TIAGO GEISLER MOREIRA COSTA BRASÍLIA DF [2017]

Transcript of A COMUNIDADE DE QUEIMADAS FRENTE À EXPANSÃO … · Foto 17 – Produção de biscoito de goma,...

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    UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL

    MESTRADO PROFISSIONAL EM SUSTENTABILIDADE JUNTO A POVOS E

    TERRAS TRADICIONAIS

    DISSERTAO DE MESTRADO

    A COMUNIDADE DE QUEIMADAS FRENTE EXPANSO

    MINERARIA NO ALTO JEQUITINHONHA: A DEFESA DE UM

    TERRITRIO.

    TIAGO GEISLER MOREIRA COSTA

    BRASLIA DF

    [2017]

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    [TIAGO GEISLER MOREIRA COSTA]

    A COMUNIDADE DE QUEIMADAS FRENTE EXPANSO MINERARIA NO ALTO JEQUITINHONHA: A DEFESA DE UM TERRITRIO.

    Dissertao submetida como requisito parcial

    para obteno do grau de Mestre no

    Programa de Ps-Graduao Profissional em

    Desenvolvimento Sustentvel (PPG-PDS),

    rea de Concentrao em Sustentabilidade

    junto a Povos e Terras Tradicionais.

    ORIENTADOR(A): Dra. Mnica Celeida Rabelo Nogueira.

    BRASLIA DF

    2017

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    Moreira Costa, Tiago Geisler

    A comunidade de queimadas frente expanso mineraria no alto

    jequitinhonha: a defesa de um territrio. / Tiago Geisler Moreira Costa. Braslia - DF,

    2017. f. 108.

    Dissertao de Mestrado - Centro de Desenvolvimento Sustentvel, Universidade de

    Braslia.

    Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais

    (MESPT)

    Orientador(a): Dra. Mnica Celeida Rabelo Nogueira.

    1. Territrio 2. Identidade 3. Quilombola. I. Moreira Costa, Tiago Geisler. II. A

    comunidade de queimadas frente expanso mineraria no alto Jequitinhonha: a

    defesa de um territrio.

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    UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    CENTRO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTVEL

    MESTRADO PROFISSIONAL EM SUSTENTABILIDADE JUNTO A POVOS E

    TERRAS TRADICIONAIS

    TIAGO GEISLER MOREIRA COSTA

    A COMUNIDADE DE QUEIMADAS FRENTE EXPANSO

    MINERARIA NO ALTO JEQUITINHONHA: A DEFESA DE UM

    TERRITRIO.

    Dissertao submetida a exame como requisito parcial para obteno do grau de

    Mestre no Programa de Ps-Graduao Profissional em Desenvolvimento Sustentvel

    (PPG-PDS), rea de Concentrao em Sustentabilidade junto a Povos e Terras

    Tradicionais.

    Dissertao aprovada em 30 de maio de 2017.

    Braslia - DF,

    Orientadora: Dr(a). Mnica Celeida Rabelo Nogueira. Universidade de

    Braslia.

    Examinadora interna: Dr(a). Gloria Moura Universidade de Braslia.

    Examinador externo: Dr. Carlos Alexandre B. Plnio dos Santos.

    Professor Adjunto -Departamento de Antropologia - Universidade de

    Braslia.

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    AGRADECIMENTOS

    Este trabalho fruto de um esforo alicerado pela generosa

    contribuio de diversas pessoas que estiveram comigo neste caminhar de 2

    (dois) anos, quando passei pelo MESPT. Agradeo, primeiramente, a minha

    famlia, especialmente minha me, por seu apoio incondicional na conquista de

    nossos estudos, nunca nos deixando parar esta caminhada to importante e

    libertadora.

    Agradeo especialmente ao meu irmo Bruno Sander e a minha

    cunhada Diana pela acolhida em sua casa, oferecendo-me a tranquilidade

    necessria para construo deste momento. Alm do apoio irrestrito a mim

    oferecido nos perodos de estudo. Muito obrigado por tudo!

    Aos quilombolas de Serro, em especial o senhor Ataide de Queimadas

    que foi um importante interlocutor deste processo. Estamos firmes e seguimos

    juntos na luta. Agradeo por abrirem as portas e compartilharem os seus

    anseios e dificuldades.

    Agradeo aos colegas de mestrado com que tive a oportunidade

    conviver durante esse curto perodo de tempo, mas que se fez grandioso pelos

    laos de amizade e companheirismo na luta, dividindo as angstias e alegrias.

    Agradeo, em especial, a Ldia, Carolina Rodrigues, Andrea Brasil, Gilberto

    Martins, Alceu Karipuna Cosme, Oscar, Fienza (Fichena) e Creuza Kraho.

    Vocs so pessoas que muito ajudaram a construir minha formao ao longo

    do mestrado. Gratido.

    Agradeo aos colegas Moiss, Lucas Manchineri e Gilmar Galache

    (Terena) com quem tive um maior contato e hoje posso lhes disser que

    formamos uma irmandade. Eternamente grato pela convivncia sincera neste

    tempo do MESPT.

    Agradeo professa Dra. Marcia Maria Gramkow pela orientao e

    pelas valiosas contribuies que vieram somar na construo deste trabalho.

    Grato por dividir um pouco da grande experincia em pesquisa e, antes de

    tudo, pela preocupao demonstrada durante a realizao do trabalho. Muito

    obrigado!

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    Agradeo ao professor Dr. Matheus de Mendona de Gonalves Leite

    por ter sido meu primeiro orientador e parceiro nos trabalhos com as

    comunidades quilombolas de Serro, pelas oportunidades dada ao longo de

    minha formao acadmica. Gratido.

    Ao professor Dr. Jos Emlio Medauar Ommati pelas conversas e trocas

    de ideias nos corredores da PUC Minas / Serro. Exemplo de profissional e,

    antes de tudo, um professor de verdade que nos instiga o interesse pela

    pesquisa, ainda, por sua seriedade com que trata os assuntos propostos. Muito

    obrigado por dividir o conhecimento.

    Aos extensionista do escritrio da Emater MG em Serro, pela parceria

    que formamos ao longo destes mais de 10 (anos) de trabalho com as

    comunidades rurais de Serro. Em especial, Margarida por ser a primeira

    extensionista com quem trabalhei e tive a oportunidade de ver o carinho dos

    agricultores rurais para com ela, reflexo de um trabalho que dignifica o homem

    do campo.

    Finalmente, e no menos importante agradeo aos amigos que partilham

    comigo este momento. Obrigado a todos pela torcida!

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    PARA UM NEGRO

    para um negro

    a cor da pele

    uma sombra

    muitas vezes mais forte

    que um soco.

    para um negro

    a cor da pele

    uma faca

    que atinge

    muito mais em cheio

    o corao.

    Ado Ventura

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    RESUMO

    O presente trabalho tem por tema o processo de defesa do territrio da

    comunidade quilombola de Queimadas frente expanso minerria no alto

    Jequitinhonha municpio de Serro Minas Gerais. O interesse pelo tema surgiu

    mediante os estudos junto ao projeto de extenso da PUC Minas / Campus

    Serro, A luta por reconhecimento dos direitos das comunidades

    remanescentes de quilombos durante minha graduao em Direito. O estudo

    tambm faz parte de minha militncia junto luta das comunidades

    quilombolas de Serro, onde tive a oportunidade de auxili-los num perodo de

    10 (dez) anos, que se iniciou quando trabalhei no escritrio da Emater-MG em

    2006 e, logo depois, como extensionista universitrio junto a PUC Minas.

    Situa-se primeiramente o espao/local da situao pesquisada, situando

    o leitor sobre dados espacial, geogrfico e populacional do municpio.

    Apresentamos umas discusses conceituais que se referem teoria sobre

    identidade e territrio, tendo em vista o apoio terico para compreender a

    relao entre questes que se processam ao longo das dcadas em

    Queimadas, territrio de quilombo, edificado historicamente nas relaes e

    prticas construtoras da identidade quilombola. Depois refletir no

    questionamento das dinmicas de ressignificao identitrias que emergem

    frente s ameaas comunidade quilombola de Queimadas e seu territrio.

    PALAVRAS CHAVES: QUILOMBOLA MINERAO TERROTRIO

    IDENTIDADE

  • 9

    ABSTRACT

    The present work has as its theme the process of defending the territory

    of the quilombola community of Queimadas front of the mining expansion in Alto

    Jequitinhonha city of Serro Minas Gerais. The interest for the theme arose

    through studies with the extension project of the Pontifical Catholic University of

    Minas Gerais / Campus Serro. "The fight for recognition of the rights of the

    remaining communities of quilombos" during my graduation in Law. The study is

    also part of my militancy in the struggle of the quilombola communities of Serro,

    where I had the opportunity to assist them in a period of 10 (ten) years, which

    began when I worked at the Emater-MG office in 2006 and soon Later, as a

    university extensionist with PUC Minas.

    It is located the space / place of the researched situation, situating the

    reader on spatial, geographic and population data of the municipality. We

    present conceptual discussions that refer to the theory of identity and territory,

    in view of the theoretical support to understand the relationship between issues

    that occur throughout the decades in Queimada, territory of quilombo, built

    historically in the relations and constructive practices of the quilombola identity.

    Then reflect on the questioning of the dynamics of identity resignification that

    emerge in the face of threats to the quilombola community of Queimadas and

    its territory.

    Key Words: Quilombola; Mining; Territory; Identity.

  • 10

    Sumrio

    A COMUNIDADE DE QUEIMADAS FRENTE EXPANSO MINERARIA NO ALTO JEQUITINHONHA: A DEFESA DE UM TERRITRIO. ..................................................... 1

    A COMUNIDADE DE QUEIMADAS FRENTE EXPANSO MINERARIA NO ALTO JEQUITINHONHA: A DEFESA DE UM TERRITRIO. ..................................................... 4

    LISTA DE FIGURAS / FOTOGRAFIAS ......................................................................................... 11

    LISTA DE SIGLAS ...................................................................................................................... 12

    INTRODUO ............................................................................................................................ 13

    PARTE 1 ENCONTROS E DESENCONTROS NO CENARIO DE SERRO. ................. 15

    1.1 - CARACTERIZAO REGIONAL / LOCAL ............................................................................... 15

    1.2 - FORMAO DE QUILOMBOS NO SERRO ................................................................. 21

    1.2 - A CHEGADA DO GRANDE EMPREENDIMENTO NO SERRO. .................................................... 28

    2 IDENTIDADE: CONCEITOS TERICOS E METODOLOGICOS. .............................. 48

    2.1 OPO DA ABORDAGEM TERICA E CONCEITUAL DE APOIO. ............................................ 56

    2.2 - METODOLOGIA DE TRABALHO DE PESQUISA E SISTEMATIZAO: .............. 60

    2.3 - PROCESSO DE ANLISE DA IDENTIDADE QUILOMBOLA DE QUEIMADA: NARRATIVA

    HISTRICA DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE QUEIMADAS: CRIAO, CONSTRUO E

    FORMAO. ............................................................................................................................... 64

    2.4 - DE CAMPONS DA ROA QUILOMBOLA. ........................................................ 75

    2.4.1 CONDIES DE POSSIBILIDADES............................................................................ 87

    PARTE 3 CONSIDERAES E CONCLUSES ........................................................................... 97

    REFERNCIA BIBLIOGRFICA: ................................................................................... 102

  • 11

    LISTA DE FIGURAS / FOTOGRAFIAS

    Foto 01 Mapa do estado de Minas Gerais com destaque ao municpio de Serro.

    Fonte: site oficial da Prefeitura Municipal.

    Foto 02 Mapa do municpio de Serro / Dimenso territorial. Fonte: site oficial da

    Prefeitura Municipal.

    Foto 03 Mapa dos rios no municpio de Serro-MG.

    Foto 04 Mapa das bacias hidrogrficas de Minas Gerais. Fonte: Diviso de

    Sistema da Informao do Setor de Geoprocessamento do Instituto Mineiro de

    Gesto das guas (IGAM). (http://www.serro.mg.gov.br/aspectos-gerais.html.)

    Acesso em: 20/02/2017

    Foto 05 Foto satlite cidade de Serro Minas Gerais

    Foto 06 Mapa dos relatrios antropolgicos apresentado ao INCRA no RTID das

    comunidades do Ba e Ausente, desenvolvido pela equipe da PUC Minas.

    Foto 07 Imagem das reas que o subsolo est registrada em nome de alguma

    empresa mineraria - Imagem retirada do Relatrio Antropolgico da comunidade do

    Ba, apresentado ao INCRA.

    Foto 08 Mapa apresentado pelo empreendedor e constante nos EIA/RIMA.

    Foto 09 Foto reunio de deliberao do CODEMA em Serro Minas Gerais.

    Foto 10 Fotografia das residncias da comunidade de Queimadas.

    Foto 11 Foto de Donas Krenas / Comunidade de Queimadas em Serro MG.

    Foto 12 Fotografia de produto Feijo Mido cultivado na comunidade de

    Queimadas.

    Foto 13 Casa de farinha da casa de donas Krenas.

    Foto 14 Moinho de cana. Utenslio usado para moer a cana.

    Foto 15 Fotografia satlite comunidade

    Foto 16 Fotografia satlite comunidade e sede de Serro-MG

    Foto 17 Produo de biscoito de goma, durante visitas do projeto.

    Foto 18 Produo de biscoito de goma, durante visitas do projeto.

    Foto 19 Produo de biscoito de goma, durante visitas do projeto.

    Foto 20 Dona Krena passando caf, comunidade de Queimadas.

    Foto 21 Projeto Cidado no papel, projeto da PUC Minas / Campos Serro.

  • 12

    LISTA DE SIGLAS

    EIA - Estudo de Impacto Ambiental.

    RIMA - Relatrio de Impacto Ambiental.

    CODEMA - Conselho Municipal de Meio Ambiente do Municpio do Serro.

    CF/88 Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 .

    EMATER-MG Empresa de Assistncia Tcnica e Extenso Rural.

    ADCT - Ato das Disposies Constitucionais Transitrias.

  • 13

    INTRODUO

    O presente trabalho tem por tema o processo de defesa do territrio da

    comunidade quilombola de Queimadas frente expanso minerria no alto

    Jequitinhonha municpio de Serro Minas Gerais.

    O interesse pelo tema surgiu mediante os estudos junto ao projeto de

    extenso da PUC Minas / Campus Serro, A luta por reconhecimento dos

    direitos das comunidades remanescentes de quilombos durante minha

    graduao em Direito. O estudo tambm faz parte de minha militncia junto

    luta das comunidades quilombolas de Serro, onde tive a oportunidade de

    auxili-los num perodo de 10 (dez) anos, que se iniciou quando trabalhei no

    escritrio da Emater-MG em 2006 e, logo depois, como extensionista

    universitrio junto a PUC Minas.

    Partindo de minhas inquietaes tericas e conceituais resolvi

    empreender nesta pesquisa para, atravs da observao participante, tentar

    compreender as questes que a comunidade de Queimadas vem vivendo.

    Busco desenvolver uma pesquisa de anlise qualitativa em que seja

    possvel dialogar com os diversos atores envolvidos na problemtica aqui

    trabalhada e, antes de tudo, reunir os principais pontos que afetam a identidade

    quilombola na comunidade de Queimadas.

    Durante minhas visitas na comunidade busco encontrar nas falas ou

    atitudes dos moradores da comunidade traos que demonstrem as flutuaes e

    suas ambivalncias e como essa identidade vem sendo construda e

    ressignificada mediante os conflitos no curso de sua histria.

    Tento descobrir na vivncia da comunidade, atravs de uma observao

    participante os elementos conceituais que vo dialogar com os textos

    trabalhados e que vo apoiar na identificao dos elementos identitrios e

    territoriais em questo.

    A presente pesquisa foi tratada a partir de minha experincia vivida junto

    s comunidades quilombolas de Serro, durante todos esses anos em que atuei

    como extensionista junto ao projeto de extenso da PUC Minas / Campus

    Serro.

  • 14

    Apresento a dissertao em trs grandes tpicos, onde inicialmente situo

    o espao/local da situao pesquisada, situando o leitor sobre dados espacial,

    geogrfico e populacional do municpio.

    Em seguida trago a exposio sobre alguma das discusses conceituais

    que se referem teoria sobre identidade e territrio, tendo em vista o apoio

    terico para compreender a relao entre questes que se processam ao longo

    das dcadas em Queimadas, territrio de quilombo, edificado historicamente

    nas relaes e prticas construtoras da identidade quilombola.

    Na Terceira parte busco refletir no questionamento das dinmicas de

    ressignificao identitrias que emergem frente s ameaas comunidade

    quilombola de Queimadas e seu territrio.

    As questes aqui desenvolvidas percorreram o caminho da leitura com

    reflexo e dilogo com a comunidade e, para que este pudesse ser efetivado,

    foi construda uma parceria desde o primeiro momento em que me aproximei

    desta realidade.

    Espero com essa dissertao contribuir para a reflexo e tambm

    despertar para um maior engajamento na luta e na defesa territorial da

    comunidade quilombola de Queimadas, frente instalao de empreendimento

    minerrio em seu territrio.

    Estou apoiado, para pensar as questes conceituais propostas, pelo

    antroplogo Roberto Cardoso de Oliveira, por ser o pensador que mais cedo

    contribuiu no entendimento de construo da identidade nos povos indgenas e

    nos demais povos tradicionais. Alm do Cardoso, dialoguei no trabalho com

    outros pesquisadores para ter suporte nas questes conceituais e relacionais

    de identidade/territrio. Dentre eles Jos Maurcio Arruti, Alfredo Wagner Berno

    de Almeida, Glria Moura, Eliane Cantarino ODwyer e outros.

    Dentre os diferentes aspectos na abordagem terica e metodolgica

    assinalo como conceito central a categoria de identidade, por perceber que o

    prprio conceito nos permite, alm de observar, refletir o movimento de

    construo e da expanso que se realiza no confronto do desenrolar do conflito

    na comunidade quilombola de Queimadas na defesa de seu territrio.

  • 15

    PARTE 1 ENCONTROS E DESENCONTROS NO CENARIO DE SERRO.

    1.1 - CARACTERIZAO REGIONAL / LOCAL

    O municpio de Serro, em Minas Gerais, surge com a chegada dos

    bandeirantes no incio do sec. XVIII1, em busca de ouro e diamante, minerais

    encontrados fartamente pela regio.

    Em 1714 a Vila do Prncipe elevada sede de comarca, tornando-se

    uma das principais do estado de Minas Gerais, pela riqueza que acabava de

    ser encontrada na regio. Conforme registra vila:

    Foi nos depsitos aluvionais s margens de rios e crregos que o

    ouro aflorou em abundncia nas exploraes de incios do sculo

    XVIII na regio do Serro, como viria tambm a ser no leito do

    Jequitinhonha e seus afluentes que, um pouco mais tarde, se dariam

    lavras de diamantes nas proximidades de Milho Verde e So Gonalo

    do Rio das Pedras. Se a natureza do terreno propiciou no passado

    rica atividade mineradora, o mesmo no aconteceu com relao

    atividade agrcola, que ainda hoje encontra condies favorveis em

    apenas parte do municpio.

    (...)

    As cabeceiras do rio Jequitinhonha e seus afluentes manifestaram-se

    de uma considervel riqueza e logo surgiram, as suas margens, os

    ranchos de que se originariam os primeiros povoados. Durante a

    dcada inicial do sculo XVIII, os trabalhos se desenvolviam ainda de

    forma desordenada, registrando-se constantes choques entre

    mineradores e aventureiros que para ali afluam em grande nmero.

    (VILA, 1995, p. 139-140)

    O espao do municpio de Serro (MG), localizado na regio do Alto

    Jequitinhonha (diviso poltico-administrativa do estado de Minas Gerais),

    possui uma populao de 21.431 (vinte e um mil quatrocentos e trinta e um)

    1 Segundo Rafael Sanzio Arajo dos Anjos, neste perodo que vo ocorrer os maiores volumes de

    povos africanos transportados para o territrio brasileiro (ANJOS, 2013, p. 141).

  • 16

    habitantes2, IBGE (2016), e aproximadamente 65% (sessenta e cinco por

    cento) da populao vive na zona urbana do municpio.

    Localizado no nordeste do Estado de Minas Gerais, o vale do rio

    Jequitinhonha pode ser, a grosso modo, dividido em duas pores

    contrastantes: o Alto e o Baixo Jequitinhonha. A calha alta do rio

    situa-se numa rea de transio entre o cerrado e o semi-rido,

    marcado por predominncia de unidades familiares na agricultura,

    posse da terra pulverizada, baixo dinamismo econmico, alta taxa de

    migrao, tanto sazonal quanto definitiva, e agricultura extrativista

    baseada em um sistema de pousio. (GALIZONE, 2002)

    Situado na regio da Serra do Espinhao, o Serro est localizado em

    uma rea de transio entre os biomas da Mata Atlntica e cerrado. A regio

    cercada por pequenas matas e rios que abastecem a sede e tambm os seus

    distritos. importante destacar que:

    A Serra do Espinhao, em todos os seus aspectos, absolutamente

    singular. Resultado de uma dinmica geolgica associada aos

    movimentos tectnicos que formaram os continentes atuais a mais de

    um bilho de anos, pode ser considerada uma espcie de cicatriz do

    parto que deu origem ao territrio em que, hoje em dia, habituam os

    brasileiros. uma cadeia de montanhas longa, entrecortada por

    picos, vales, rios e lagos, abrangendo poro considervel dos

    estados de Minas Gerais e Bahia. (BARBOSA, 2014, pag. 31)

    A rea total do municpio de 1.217,813 Km o que faz com que o Serro

    seja um dos maiores municpios da regio do alto Jequitinhonha em dimenso.

    E sua extenso territorial faz com que a diversidade seja ainda maior em

    relao s diversas formas de vidas, cultura, geografia e biomas. Conforme

    mostrado na figura abaixo:

    2 Dados do IBGE, segundo o censo demogrfico de 2016. Disponvel em:

    http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=316710&search=||infogr%E1ficos:-informa%E7%F5es-completas. Acesso em: 20/02/2017

    http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=316710&search=||infogr%E1ficos:-informa%E7%F5es-completashttp://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=316710&search=||infogr%E1ficos:-informa%E7%F5es-completas

  • 17

    Foto: Mapa do Estado de Minas Gerais

    Foto: Mapa do Municpio de Serro (Extenso territorial).

  • 18

    Grande parte da populao serrana que vive na zona rural exerce a

    agricultura familiar de subsistncia, e possui apenas posse sobre a terra onde

    produz ou mora. Grande parte destas terras foram herdadas de geraes e

    geraes, locais onde a entidade familiar desenvolve a prtica da agricultura de

    subsistncia com a colaborao dos membros da famlia.

    Divisor de guas o Serro possui um nmero considerado de pequenos

    crregos, rios e cachoeiras; onde alguns vertem sentido Vale do Jequitinhonha

    e outros, sentido no sentido Vale do rio Doce.

    Foto: Mapa das bacias hidrogrfica do municpio de Serro Minas Gerais.

    O rio Jequitinhonha nasce em Serro e um dos principais rios do estado

    de Minas Gerais; ele passa pela regio nordeste de Minas e vai at o estado da

    Bahia, onde desagua no Oceano Atlntico;

  • 19

    O rio do Peixe, outro importante rio que nasce em Serro, um dos

    afluentes do rio Doce, inicialmente ele desagua no rio Guanhes e este

    desagua no rio Santo Antnio, que logo em seguida desagua no rio Doce.

    O Serro est situado em uma regio de transio entre bacias

    hidrogrficas, a regio divisora de bacias; divisor de vales. Embora, o Serro

    esteja enquadrado como Vale do Jequitinhonha, o municpio possui parte do

    seu territrio que verte tambm para a bacia do Rio Doce.

    O estado de Minas Gerais, devido a sua extensa dimenso territorial,

    subdividido em vales marcados por bacias hidrogrficas. Essa diviso

    importante para facilitar a regionalizao das polticas de desenvolvimento

    conforme as necessidades e realidades locais.

    Foto: Mapa das bacias hidrogrficas do Estado de Minas Gerais.

    A explorao da atividade minerria faz parte da histria do estado e

    tambm do Serro, essa atividade iniciou-se juntamente com a fundao da

  • 20

    comarca no sec. XVIII e perdurou at final dos anos 1980. poca em que ainda

    era comum ver dragas3 e equipamentos de garimpos espalhadas pelos leitos

    dos crregos e rios.

    Entre as dcadas de 1980 e 1990 o Serro vivenciou o auge da

    explorao do carvo vegetal. Tempo em que pequenos agricultores e sitiantes

    exploravam suas terras atravs do desmatamento ilegal de matas nativas para

    extrao de madeira utilizada na produo de carvo vegetal. Em substituio

    mata nativa, explorada ilegalmente, comeava a formao de novas

    pastagens nestes locais desmatados, onde ocorreu fortalecimento e a

    expanso ainda maior da pecuria leiteira.

    O avano das leis ambientais e a intensificao da fiscalizao fizeram

    com que a extrao ilegal de madeira nativa para produo de carvo

    diminusse, pois essa atitude passou a ser tipificada como crime pela legislao

    federal. A extrao de madeira nativa por essas reas ocasionou um

    desmatamento considervel dando lugar s pastagens.

    O Serro, durante um grande perodo, vivenciou a destruio de parte de

    sua Mata Atlntica, pois o carvo foi o sustento de muitas famlias devido o

    grande nmero de pessoas que trabalhavam nesta atividade.

    Neste cenrio surgem novas fazendas e pequenos stios para a

    explorao da pecuria e tambm agricultura de subsistncia.

    Foto: Imagem de Satlite do municpio de Serro Minas Gerais.

    3 mquina utilizada para tirar a areia e cascalho do fundo dos rios ou crregos;

  • 21

    Com o fim da explorao do carvo vegetal ocorreu a migrao de

    grande parte dos trabalhadores rurais que trabalhavam nas carvoarias para

    outras atividades. A agricultura familiar passou a ser uma das principais

    atividades econmicas desenvolvidas no municpio. Outros que no

    conseguiram se realocar em outras atividades no campo vieram para a cidade,

    perodo que ocorreu um xodo rural considervel no municpio.

    .

    1.2 - FORMAO DE QUILOMBOS NO SERRO

    A formao de quilombos pela regio resultante de um processo

    histrico de desenvolvimento colonizador, iniciado com a chegada dos

    bandeirantes logo nas primeiras dcadas do sc. XVIII, em busca de riquezas

    minerais aqui existentes como ouro e diamante. Em decorrncia deste

    processo histrico temos em Serro o estabelecimento de alguns quilombos.

    A antiga comarca do Serro Frio, situada no nordeste de Minas Gerais,

    reunia sob sua jurisdio os termos do Serro, Conceio e

    Diamantina. Incrustada na serra do Espinhao, a regio fora

    constituda no encontro da pecuria extensiva, da agricultura de

    subsistncia e da minerao de ouro e diamantes. Na segunda

    metade do sculo XIX a comarca abarcava uma vasta zona agrcola e

    pastoril que alimentava, principalmente, a populao dedicada

    minerao diamantina. As fazendas de cana-de-acar e gros se

    espalhavam por toda parte e as lavras se estendiam pelos leitos

    fluviais e dorsos das elevaes ribeirinhas, nos arredores de Serro e

    Diamantina. Franqueadas explorao privada desde 1832, estas

    prosperavam sobretudo nas jazidas prximas ao rio Jequitinhonha. O

    ouro se tornara escasso e j no atraa grandes inverses de capital

    e mo-de-obra. (Cf. SANTOS).(MOTA, 2006, pag. 05)

    Por sua produo considervel de ouro a comarca do Serro Frio era uma

    das mais importantes do estado de Minas Gerais do perodo colonial, possua

    uma grande rea territorial que abarcava vrios distritos. Sua populao era

    formada em parte por negros escravizados e negros libertos. Devido

    grandeza de riquezas retiradas neste perodo, o Serro e regio receberam um

  • 22

    grande nmero de negros escravos para trabalharem nas fazendas e tambm

    no garimpo.

    Sabe-se que os quilombos no Brasil se formaram a partir de diversidade

    de origens, ou seja, nem todos tm origem na resistncia/fuga, h casos de

    doao e compra de terras, aps alforria etc.

    Na dcada de 1860 Diamantina figurava como o principal centro

    urbano do norte mineiro. Em 1856 reunia em torno de 17 mil

    habitantes, nmero bastante superior aos 10.584 moradores do

    Serro.13 Embora no haja nmeros precisos para o perodo em que

    ocorre a rebelio, o recenseamento geral de 1872 mostra que, nesta

    poca, a populao escrava ainda representava cerca de 39% dos

    habitantes em Diamantina e 18% no vizinho Serro, sendo constituda

    principalmente por escravos nascidos no Brasil.14 O segmento

    crioulo era especialmente numeroso no Serro, correspondia a 60%

    dos cativos do distrito da cidade desde a dcada de 1840.15 A maior

    concentrao escrava em Diamantina era explicada pelo dinamismo

    de sua economia. Entre as dcadas de 1830 e 1870, o municpio

    passou por um segundo boom de extrao diamantfera que

    provocou uma corrida de pessoas regio e foi capaz de sustentar

    constantes importaes de escravos africanos. Provenientes

    especialmente da frica centro-ocidental, eles tenderam a

    permanecer na regio aps a extino do trfico atlntico, sendo

    empregados, sobretudo, como lavradores e mineiros. (Cf. SLENES)

    (MOTA, 2006, pag. 05/06)

    Sede da Comarca o Serro contava com um nmero considervel de

    negros que prestavam os mais diversos servios sociedade serrana do

    sculo XVIII e XIX. Quando libertos prestavam outros servios, mas aos

    poucos iam se espalhando pelo municpio. Em busca de locais em que fosse

    possvel ter uma vida livre e digna longe dos caprichos do regime.

    Na comarca do Serro, muitos ex-escravos atuavam como pequenos

    proprietrios, artesos, viviam de suas agncias ou trabalhavam

    como jornaleiros, por exemplo na minerao de ouro e diamantes.

    No trabalho coletivo de extrao e lavagem das pedras nas lavras,

    labutavam lado a lado com os cativos. Alm de minerar, outras

    atividades eram desempenhadas conjuntamente: escravos e forros

  • 23

    buscavam lenhas nas matas, dormiam nos ranchos da beira dos rios

    diamantinos, freqentavam as mesmas vendas ou compareciam s

    igrejas e irmandades locais. (Cf. SOUZA). (MOTA, 2006; pag 44/45)

    A comarca do Serro durante muito tempo foi uma das maiores

    produtoras de ouro do estado. Alm da minerao outros ofcios eram

    exercidos pelos negros libertos que, aos poucos, prestavam sociedade

    serrana da poca diversos servios.

    Devido ao uso de muita mo de obra escrava nos trabalhos da roa isso

    fez com que diversos quilombos formassem pela regio, onde desenvolviam

    resistncia ao regime vigente4 e pela luta da libertao dos negros.

    A comunicao entre eles foi to forte que foram capazes at de articular

    uma rebelio contra o regime, isso ocorreu em Serro no sculo XIX quando os

    quilombos da regio articularam contra os brancos mas, no fim, foi frustrada

    com captura de um delator.

    As motivaes da rebelio de 1864 foram mltiplas e continuaram a

    inspirar os escravos nos anos seguintes. Podem ser buscadas nas

    durezas do cativeiro nos pequenos engenhos e lavras de Minas; nas

    percepes cativas sobre as guerras e o emancipacionismo da

    dcada de 1860; no questionamento da autoridade dos brancos pelas

    invases de terras; bem como na fora e vulnerabilidade dos

    quilombos mineiros. As comunidades de fugitivos das serras do

    Itamb e do Espinhao funcionaram como grandes campos de

    treinamento para o levante, e seu grau de solidariedade aos escravos

    indica o claro do papel que desempenhavam na organizao social

    das comunidades escravas da Comarca do Serro. Ao engajarem-se

    na insurreio, bem possvel que buscassem proteger as relaes

    sociais e econmicas que haviam cuidadosamente construdo com as

    senzalas. Em 1864, especialmente, um importante espao de

    autonomia para escravos e quilombolas se encontrava em jogo. O

    acesso a terra estava ameaado pela escalada da represso policial

    e pelo avano do loteamento de terrenos diamantinos nas periferias

    de Diamantina, destinado ao assentamento dos faiscadores pobres.

    (MOTA, 2006; pag. 50)

    4 Como a rebelio de 1864 A galinha est morta, agora s falta assar.

  • 24

    O municpio neste perodo tinha uma grande populao negra que era a

    fora de trabalho a qual sustentava a comarca, os escravos eram parte

    considervel da populao serrana e mantinham um elo de comunicao e

    interao entre si numa aliana pela liberdade e sobrevivncia.

    Os escravos africanos constituam boa parte da fora de trabalho nas

    lavouras de cana do Serro ou em minas como a do Barro, de onde

    ajudaram a traar alianas duradouras com os quilombos

    circunvizinhos. (Cf. MACHADO FILHO). Nestes espaos, uma nova

    cultura em que se mesclavam elementos da vivncia sob a

    escravido e do passado africano estava possivelmente a solidificar a

    solidariedade que garantiu dois meses de resoluta resistncia por

    parte dos rebeldes. (MOTA, 2006; pag 49/50)

    Essas comunidades negras rurais compartilham uma vida e uma histria

    em comum, resqucios de um regime escravocrata marcado pela explorao

    que perdurou por sculos. Desenvolvia em Serro no s a minerao, mas

    tambm as lavouras de cana de acar, atividades que utilizavam de mo de

    obra negra para o seu desenvolvimento.

    Neste perodo, vrios quilombos comearam a se formar pela regio,

    cada um adaptado ao seu espao e ao territrio com simbologias e

    significaes prprias de cada local. Segundo Lilian Gomes, estes grupos,

    submetidos a processos de excluso desde os tempos coloniais, construram

    territorialidades repletas de significaes prprias. (GOMES, 2010, p. 186).

    Atualmente podemos encontrar em Serro cinco comunidades

    remanescentes destes antigos quilombos que a se formaram pela regio. Estas

    comunidades so: Ba, Ausente, Vila Nova, Fazenda Santa Cruz e

    Queimadas5; todas devidamente certificadas pela Fundao Cultural Palmares

    FCP, desde o ano de 2007.

    Embora quase todas as comunidades quilombolas do Serro tenham se

    formado pela explorao do garimpo, uma delas se deu por um processo de

    ocupao territorial diverso. A comunidade de Queimadas tem sua histria

    5 Conforme certido de autodefinio registrada no livro de cadastro geral n014, registro n1.665,

    fl.082, nos termos do Decreto e da portaria interna da FCP n 98, de 26 de novembro de 2007, publicada no Dirio Oficial da Unio n 228 de 28 de novembro de 2007, Seo 1, folha 29, se auto define como remanescente de quilombo. Texto extrado da certido de auto definio da comunidade de Queimadas.

  • 25

    ligada ao desenvolvimento das fazendas de cana-de-acar e caf que se

    formaram naquela regio.

    As comunidades rurais do Alto Jequitinhonha, nordeste de Minas

    Gerais, so originadas quase sempre de grandes posses ou

    fazendas, que na regio no apresentavam muitas diferenas entres

    si. Localizadas prximas aos cursos d'guas, so resultado do

    crescimento demogrfico e da partilha incessante da terra entre

    geraes sucessivas. (GALIZONI, 2002)

    Uma prtica comum na regio era os donos de terras doarem aos

    trabalhadores um pedacinho de terra para eles no abandonassem o servio e

    nem sassem de perto das fazendas e, assim, os fazendeiros continuassem

    usufruindo da mo de obra barata ou muitas vezes sem qualquer custo. Outro

    ato comum praticado pelos fazendeiros era migrar o trabalhador do local

    doado, como forma deste ir abrindo novas reas de plantios e de pastagens.

    Conforme as fazendas iam se expandindo pelo territrio, tambm iam se

    formando os ranchos e stios de trabalhadores destas fazendas, pois era

    comum residirem nas proximidades das fazendas.

    Durante o final do sculo passado as comunidades quilombolas de Serro

    trabalharam intensamente na explorao do garimpo e tambm nas lavouras

    das fazendas da regio. Os negros que no trabalhavam em garimpo eram

    utilizados nas fazendas de cana de acar e caf que estavam em expanso

    pela regio.

    O garimpo, durante muito tempo, foi a fonte de explorao das

    comunidades quilombolas que margeiam o rio Jequitinhonha e seus afluentes.

    As precrias condies a que os trabalhadores eram submetidos6 ainda esto

    vivas na memoria dos moradores.

    Nestas comunidades quilombolas vrios pontos de garimpos foram

    instalados, geralmente os garimpeiros forneciam os equipamentos mnimos

    necessrios para que os quilombolas pudessem explorar ouro e diamantes nos

    pequenos rios que cercavam as comunidades e seus territrios.

    6 Relatos dos moradores das comunidades de Ba e Ausente sobre as condies precrias que estavam

    submetidos os trabalhadores; Relatos fortes da explorao que estavam submetidos como fome, estupro, excesso de pimenta na comida entre outros.

  • 26

    Atualmente, o garimpo foi abolido na regio devido s fiscalizaes

    constantes dos rgos ambientais e pelo desenvolvimento da legislao. Isso

    fez com que os trabalhadores migrassem para outras atividades laborativas.

    Uma das alternativas foi a agricultura de subsistncia para aqueles que ainda

    insistiam em permanecer no campo.

    Com a decadncia do garimpo em seus territrios as comunidades

    quilombolas intensificaram suas atividades na prtica da agricultura familiar de

    subsistncia, na criao de pequenos animais e na produo de uma pequena

    horta para consumo prprio.

    A atividade de agricultura familiar sempre foi desenvolvida pela entidade

    familiar como um todo, abrangendo desde a criana que comea aos 8 ou 10

    anos a ajudar os pais no plantio e os afazeres da roa at a idade que precisa

    sair da comunidade para buscar estudo ou trabalho fora da comunidade.

    A terra o principal meio de produo e patrimnio dos

    agricultores, mas em decorrncia da presso demogrfica e da

    exausto do ambiente, torna-se ao longo do tempo um limite para a

    sua reproduo social. Quando o nmero de membros excede a

    capacidade de suporte da terra, surge o imperativo de se decidir no

    interior da famlia como ser resolvida essa questo e, nesse

    contexto, a herana constitui um ponto nodal para compreender as

    estratgias de permanncia dos agricultores familiares na terra.

    (GALIZONI, 2002)

    Neste contexto, a comunidade quilombola de Queimadas veio se

    espalhando por uma rea considervel, conforme se casavam tambm iam se

    espalhando pelo territrio. Abriam novas picadas nas matas virgens e ali

    estabeleciam suas moradias; como forma de manter a reproduo e vivncia

    social do grupo que ocupava o territrio.

    A prtica da agricultura familiar se desenvolveu em Queimadas desde o

    incio de seu processo de ocupao no inicio do sculo XVIII, enquanto em

    outras comunidades como Ba e Ausente se dedicavam mais ao garimpo.

    Assim, podemos dizer que em Serro ocorreram 2 (dois) processos

    distintos de ocupao territorial. Um regido pela explorao dos garimpos e

    outro pelo desenvolvimento das fazendas de cana de acar, caf e gado.

  • 27

    A diversificao do ambiente imps populao um uso e

    apropriao tambm diversificada dos terrenos (Ribeiro, 1997). As

    terras do Alto Jequitinhonha foram apropriadas de acordo com a

    utilizao possvel: privadas e rotativas nas manchas mais frteis de

    cultura - nas grotas - coletivas e extrativistas nas chapadas. Na

    relao estabelecida entre homens e natureza, os limites colocados

    por esta fizeram com que fossem construdas formas especficas de

    apropriao dos terrenos: existem reas de uso coletivo, reas de

    uso privado, reas em pousio, etc. (Galizoni, 2002)

    Em Queimadas a relao com a terra decorre de seu processo histrico

    de ocupao; a regio se desenvolveu voltada para a cultura da cana-de-

    acar e do caf. Fazendas iam se expandindo medida que ia crescendo a

    necessidade de abastecer a sede do municpio e a regio.

    No obstante esta integrao das formas mais ou menos autnomas

    de atividades produtivas empreendidas pelos escravos economia

    geral, preciso ressaltar que o trabalho livre sobre a terra no

    garantiu, de forma alguma, o acesso dos ex cativos a ela no momento

    posterior Abolio. Ao contrrio, a excluso do segmento

    populacional negro em relao propriedade da terra foi

    peremptoriamente estabelecida por meio de uma srie de atos do

    poder legislativo ao longo do tempo. Ainda durante a escravido, a

    Lei de Terras de 1850 veio substituir o direito terra calcado na

    posse por um direito auferido via registros cartoriais que

    comprovassem o domnio de uma dada poro de terra4. O direito

    legtimo adquirido atravs da posse efetiva uma noo do direito

    costumeiro, que at hoje regeu a relao do campesinato tradicional

    com a terra, incluindo os grupos camponeses negros.

    Embora tenham sido libertos do regime vigente na poca, os negros

    livres ou libertos ficaram fora da possibilidade de conquista ou mesmo do

    acesso terra. Continuaram dependendo dos donos de terras para poderem

    conquistar um pequeno pedao de terra onde fosse possvel reproduzir uma

    vida digna e livre.

  • 28

    1.2 - A CHEGADA DO GRANDE EMPREENDIMENTO NO SERRO.

    O estado de Minas Gerais possui vocao para explorao minerria em

    geral desde os tempos do Brasil colnia at os dias atuais. O Serro fruto

    deste desenvolvimento expansionista ocorrido no sculo XVIII, com a

    explorao das minas aurferas que aqui surgiam.

    Embora o municpio de Serro tenha surgido atravs da explorao

    minerria no inicio do sculo XVIII, agricultura tambm foi uma atividade

    desenvolvida na regio. Era necessrio produzir e abastecer a sede da

    comarca e a regio7. Isso ocasionou uma dinmica de expanso diversa em

    algumas regies do municpio. Assim, como o garimpo, as fazendas se

    desenvolveram em algumas regies.

    A minerao de ouro e diamante perdurou em Serro at pouco tempo

    atrs, hoje a lembrana dos trabalhos pesados no garimpo ainda presente na

    memria dos moradores mais velhos das comunidades quilombolas de

    Ausente, Ba e Fazenda Santa Cruz. Essas comunidades vivenciaram de perto

    a explorao minerria em seus territrios.

    A microrregio de Serro composta por vrios municpios de pequeno

    porte, onde parte de sua populao no possui acesso infraestrutura bsica

    como saneamento, transporte e servios de sade adequados. Municpios que

    enfrentam crise financeira e sobrevivem do fundo de participao repassado

    pelo Governo Federal, o que dificulta a realizao de obras de melhoria e

    infraestrutura.

    A localizao geogrfica faz com que o Serro possua caractersticas

    fsicas, geolgicas e ambientais especificas8; e com isso, tem despertado o

    interesse de grandes empresas que exploram a atividade de minerao.

    Atividade que est se expandindo cada dia mais por toda a regio9.

    A histria do Serro perpassa por explorao de atividades extrativistas

    como o garimpo de ouro e diamante, carvo; e neste momento, volta

    7 Neste perodo o que era produzido na zona rural era transportado em tropas para sede dos municpios

    vizinhos ou mesmo os distritos que pertenciam a comarca de Serro. 8 Por fazer parte da Serra do Espinhao a regio concentra com uma fauna e flora bem caractersticas;

    alm do desenvolvimento de uma vida caracterstica do serto mineiro. 9 Na regio do municpio de Serro esto chegando vrios pedidos de implantao de empreendimentos.

  • 29

    minerao na esperana de que essa seja a oportunidade para o

    desenvolvimento da regio e tornar, juntamente com a agricultura, uma das

    principais atividades econmicas desenvolvidas no municpio.

    A economia do Serro gira em torno da explorao das fazendas com

    atividades como pecuria leiteira, a produo de queijo, agricultura de

    subsistncia e o pequeno comrcio local.

    A busca por aumentar as exportaes e efetivar medidas capazes de

    enfrentar a crise econmica aponta para um incentivo expanso de grandes

    empresas e empreendimentos do setor minerrio pelo mercado mundial.

    Nos ltimos 10(dez) anos a regio passou a receber algumas empresas

    que exploram a atividade de minerao, devido constatao da presena dos

    minerais que podem ser encontrados no subsolo. O potencial da regio para

    minerao tem se revelado com a chegada de alguns projetos pela regio. Em

    municpios como Conceio do Mato Dentro, Dom Joaquim, Alvorada de Minas

    e, tambm, agora o Serro.

    Grandes projetos comeam a ser implantados pela regio e so visto por

    grande parte dos moradores pela ideia de que ir proporcionar o

    desenvolvimento econmico nestes municpios. Ocorre que, mesmo que sejam

    tomadas com algumas medidas mitigatrias previstas pelos impactos gerados

    com a implantao e execuo destes projetos no possvel neutralizar os

    danos causados no mbito cultural, social e ambiental.

    O municpio possui um subsolo rico em diversos minerais, sua

    localizao espacial e geogrfica proporciona uma geologia peculiar e formada

    h bilhes de anos, isso permite a existncia de diversos minerais como ferro,

    ouro, cromo e outros. O que possvel verificar pela visualizao do mapa

    abaixo:

  • 30

    Foto: Mapa geolgico do municpio de Serro Minas Gerais.

  • 31

    possvel perceber a existncia de diversos minerais no subsolo do

    Serro, minerais que so demandados por empresas do setor de minerao. E,

    com o intuito de fornecer ao mercado nacional e internacional matria-prima

    para outros produtos, a regio comea receber essas empresas que buscam

    matria prima e local para implantar seus projetos.

    Em Serro algumas reas, onde esto localizadas as comunidades

    remanescentes de quilombo e seus respectivos territrios, futuramente podero

    ser objeto de interesse por parte destas grandes empresas; devido s riquezas

    que podem ser encontradas em seus territrios. Atualmente, a comunidade

    quilombola de Queimadas, situada na zona rural do municpio est vivenciando

    essa experincia.

    No quadro abaixo possvel observar alguns retngulos sobre a rea

    territorial do municpio de Serro, esses retngulos representam reas no

    subsolo j registrado por algumas empresas que exploram a atividade

    minerria. reas que futuramente devero ser exploradas e implantado algum

    projeto por essas empresas.

  • 32

    Foto: Mapa geolgico do municpio de Serro Minas Gerais e retngulos j registado em nome de empreendimentos dentro do municpio.

  • 33

    A microrregio j vivencia a experincia de um grande empreendimento.

    O projeto Minas Rio implantado na divisa dos municpios de Serro, Alvorada

    de Minas e Conceio do Mato Dentro encontra-se em fase de explorao.

    O aumento da produo mineral ocasiona o desenvolvimento de projetos

    como o Minas Rio10 e Projeto Serro e outros grandes empreendimentos

    que pretendem instalar na regio do Serro (MG). Tais projetos esto causando

    um avano sobre diversas reas como comunidades quilombolas11, reas de

    proteo ambiental (parques) e outras reas de importncia para conservao

    da fauna e flora.

    O desenvolvimento de empreendimentos que exploram a atividade

    minerria representa uma nova dinmica para as comunidades rurais,

    principalmente as comunidades quilombolas que j vivenciaram a experincia

    do garimpo.

    Esse tipo de empreendimento altera as relaes construdas /

    constitudas ao longo do tempo, essa nova dinmica iniciada com a chegada

    destas grandes empresas faz com que haja uma ressignificao da identidade

    local. Essa ressignificao poder ocorrer pelo conflito gerado ou mesmo pela

    lgica das empresas que se instalam pela regio.

    Ao provocar alteraes das relaes econmicas, ambientais, culturais e

    sociais constitudas historicamente as comunidades negras rurais comeam a

    agregar e assumir novas identidades at ento implcita12, conforme os

    interesses de sua luta por sobrevivncia e a defesa de seu territrio. Esse um

    processo de ambivalncia da identidade13.

    A expanso de grandes empreendimentos e projetos de minerao pela

    regio do Serro aponta para uma nova dinmica na vida de pessoas que

    residem no campo. Moradores da zona rural que sempre tiveram uma vida

    voltada ao plantio / cultivo da terra e que exercem atividade da agricultura no

    10

    Um projeto de mineroduto considerado o maior projeto do mundo neste sistema. 11

    O projeto Minas-Rio desapropriou em Conceio do Mato Dentro uma comunidade quilombola que ainda no tinha reconhecimento pela Fundao Cultural Palmares (FCP). 12

    Refiro aqui sobre o fato de a identidade quilombola ser uma necessidade externa, um reconhecimento exigido pelo Estado, mas que a histria da comunidade. Indiferente da denominao dada, seu passado de remanescente est implcito nos costumes e histria do povo. 13

    O que refere aqui como processo de ambivalncia da identidade significa essa dinmica causada pelos conflitos que constroem nossa identidade ao longo da vida.

  • 34

    regime de economia familiar comeam questionar sobre seu futuro, haja vista a

    incerteza causada com a chegada destes grandes projetos.

    Neste cenrio de expanso minerria a terra / territrio torna-se o

    principal objeto de disputa; vez que, essas grandes empresas comeam a

    manifestar seu interesse em adquirir essas reas para explorar riquezas

    existentes no subsolo e, consequentemente, comea a manipulao do

    mercado da terra na regio.

    Diversos so os personagens que surgem neste cenrio de expanso

    minerria, pois comeam a aparecer pessoas interessadas nas terras para,

    posteriormente, venderem s empresas de minerao que pretendem se

    instalar pela regio.

    Os comerciantes locais que esperam aumentar as vendas com a

    chegada deste grande empreendimento, pois haver uma maior quantidade de

    dinheiro circulando na economia local; e os moradores das zonas rurais que

    defrontam com uma realidade at ento desconhecidas.

    A instalao/expanso de empreendimentos de prtica extrativista

    mineral pela regio de Serro aponta para o processo de impacto /

    ressignificao das identidades construdas nos territrios das comunidades

    quilombolas.

    O caso ora proposto pretende analisar a situao da comunidade de

    Queimadas que disputa o espao / terra / territrio onde pretende instalar o

    empreendimento denominado Projeto Serro, e sua consequncia sobre a

    identidade quilombola local.

    A disputa recai sobre o territrio da comunidade quilombola de

    Queimadas, situada na zona rural do municpio de Serro (MG), local / espao

    onde pretende instalar o empreendimento minerrio denominado Projeto

    Serro.

    A instalao do referido empreendimento aponta para um impacto sobre

    a comunidade de Queimadas, haja vista a sobreposio deste sobre o territrio

    da comunidade. Esse impacto j percebido apenas com a possibilidade de

    instalao o Projeto Serro e se revela em diversas relaes estabelecidas

    pelos moradores ao longo de suas vidas. O referido impacto se revela nas

    relaes sociais, culturais e ambientais, gerando consequncias sobre o ser

    quilombola em Queimadas.

  • 35

    O Projeto Serro envolve diversos atores sociais, dentre eles esto os

    moradores da cidade, os moradores da comunidade quilombola de Queimadas,

    os comerciantes locais e a administrao pblica municipal que passa ser de

    grande importncia neste processo.

    O Projeto Serro da empresa Anglo American Minrio de Ferro Brasil

    S.A pretende explorar minrio de ferro em um local situado aos arredores da

    sede do municpio e tambm da comunidade quilombola de Queimadas,

    sobrepondo, inclusive, a parte do seu territrio, afetando uma rea considerada

    zona de amortizao do Parque Estadual do Pico do Itamb.

    Em 2015, a empresa Anglo American Minrio de Ferro Brasil S.A entrou

    com requerimento em mbito administrativo para que o municpio de Serro

    declarasse a conformidade do projeto/empreendimento descritas no Estudo de

    Impacto Ambiental (EIA) e no Relatrio de Impacto Ambiental (RIMA),

    apresentado ao municpio para anlise da conformidade do mesmo com as

    normas de uso e ocupao do solo14.

    Diante da solicitao feita pelo empreendedor o prefeito encaminhou a

    solicitao ao Conselho Municipal de Meio Ambiente do Municpio do Serro

    (CODEMA), para que esse exera seu papel legal e se manifeste sobre o

    pedido do empreendedor em relao ao Projeto Serro.

    O referido empreendimento est localizado aos redores da sede do

    municpio de Serro, em um raio de aproximadamente 7 quilmetros15; bem

    como na proximidade / divisa da comunidade quilombola de Queimadas,

    localizada a menos de 8 quilmetros do centro do empreendimento, local este

    onde se pretende explorar a atividade minerria.

    14

    Criado por lei municipal de 2008. 15

    A rea de estudo localiza-se a nordeste da sede municipal, da qual dista aproximadamente 7 km, em linha reta, de centro a centro das unidades de referncia.

  • 36

    Foto: Imagens de satlite e geogrfica da localizao do empreendimento no municpio de Serro Minas Gerais. Imagem contida no EIA/RIMA apresentado pela empresa.

    O local onde se pretende instalar a mina para explorar a extrao do

    minrio de ferro faz parte de uma regio onde est localizada a comunidade

    quilombola de Queimadas, sobrepondo-se tal empreendimento a parte de seu

    territrio.

    A instalao do empreendimento denominado Projeto Serro cria

    condies que apontam para uma ressignificao da identidade quilombola dos

    moradores de Queimadas. A forma de ser e relacionar com meio ambiente e o

    espao historicamente vivenciado pelos moradores entra em jogo neste

    contexto.

    O problema ora analisado pretende compreender os possveis impactos

    e transformaes gerados pela expanso do empreendimento minerrio sob a

  • 37

    identidade quilombola, que pretende instalar prximo comunidade de

    Queimadas.

    Como afirmado no voto proferido pelo professor Dr. Matheus de

    Mendona Gonalves Leite (PUC Minas) apresentado junto ao CODEMA, esse

    afirma que este empreendimento (Projeto Serro) vai alterar a forma de vida

    historicamente construda e compartilhada nesta comunidade.

    a expanso das atividades capitalistas e a implantao de grandes

    projetos de investimento desestabilizam as formas de vida de

    comunidades tradicionais, perturbando a estabilidade e a lgica das

    relaes sociais, econmicas e ambientais existente nestas

    comunidades tradicionais, e precarizando, ainda mais, os j

    deficientes servios pblicos existentes. (LEITE, 2015)16

    A identidade construda pelo grupo sofrer alterao com a instalao

    deste empreendimento, bem como a forma pela qual o grupo se organiza

    socialmente e como este lida com a terra e seu territrio. Isso fatalmente ocorre

    devido proximidade da mina de extrao de minrio de ferro com a

    comunidade de Queimadas.

    A empresa Anglo American Minrio de Ferro Brasil S.A entrou com o

    requerimento administrativo para que o municpio de Serro-MG declarasse a

    conformidade do empreendimento denominado Projeto Serro com as normas

    de uso e ocupao do solo.

    Em audincias pblicas realizadas e estudos feitos pelo prprio

    CODEMA em parceria com a PUC Minas / Campus Serro, percebeu-se que o

    empreendimento (Projeto Serro) no est em conformidade com as normas de

    uso e ocupao do solo do municpio. Uma vez que o empreendimento ir

    afetar a captao da gua do municpio e, tambm, pela constatao de uma

    comunidade remanescente de quilombo na chamada rea de influncia direta

    deste empreendimento, que at ento no constava nos documentos

    (EIA/RIMA) apresentados pelo empreendedor.

    Fato que motivou o empreendedor a entrar com pedido judicial para

    conseguir a declarao via judicial.

    16

    Voto apresentado no CODEMA do Municpio de Serro Minas Gerais.

  • 38

    A existncia de uma comunidade quilombola na rea de influncia direta

    do empreendimento no tinha sido considerada pela empresa Anglo American

    Minrio de Ferro Brasil S.A quando elaborou os EIA/RIMA. A mesma s

    reconheceu a existncia da comunidade remanescente de quilombo aps

    audincia pblica realizada no dia 16 de setembro de 2015 e manifestao

    presencial dos moradores de Queimadas, conforme voto apresentado:

    No dia 16 de setembro de 2015, foi realizada reunio ordinria do

    CODEMA, com a participao de representantes legais do

    empreendedor e de moradores da comunidade quilombola de

    Queimadas. Os representantes legais do empreendedor

    apresentaram do EIA/RIMA referente ao Projeto Serro, especialmente

    em relao localizao e tipo de empreendimento que se pretende

    instalar e operar no local. Por sua vez, os moradores da comunidade

    quilombola de Queimadas mostraram, no mapa cartogrfico

    apresentado pelo empreendedor, que a comunidade est localizada

    na rea de Influncia Direta (AID) do empreendimento minerrio. A

    seguir, os membros do CODEMA questionaram sobre a existncia de

    sobreposio entre a rea de Influncia Direta (AID) do

    empreendimento minerrio e a zona de amortecimento do Parque

    Estadual do Pico do Itamb; do impacto sobre as bacias do Rio do

    Peixe e do Rio Guanhes; da infraestrutura viria a ser utilizada para

    o escoamento do minrio de ferro extrado; e sobre a sobreposio

    entre a rea de Influncia Direta (AID) e o territrio da comunidade

    quilombola de Queimadas.

  • 39

    Foto 08 Imagem da reunio do Conselho Municipal de Meio Ambiente de Serro Minas Gerais. (CODEMA)

    Assim, logo aps o decreto municipal que declarou a desconformidade

    do empreendimento Projeto Serro com as normas municipais de uso e

    ocupao de solo pelo prefeito municipal, a empresa Anglo American Minrio

    de Ferro Brasil S.A ajuizou procedimento judicial17 exigindo a obrigao de

    fazer, onde o municpio de Serro seja obrigado a declarar a conformidade do

    empreendimento com as normas legais do municpio, e consequentemente, a

    empresa possa prosseguir com o processo de licenciamento ambiental.

    O procedimento judicial ainda se encontra em andamento, no tendo

    chegado ao final, mas em uma primeira deciso em que o empreendedor pede

    que seja concedida uma medida cautelar de suspenso da deciso do prefeito

    municipal, o Juiz de Direito da comarca do Serro-MG negou a liminar em que a

    empresa pede para que seja concedida tal certido.

    17

    Procedimento judicial numero 0671.16.000620-9.

  • 40

    Atualmente o processo encontra-se em segunda instncia perante o

    Tribunal de Justia do Estado de Minas Gerais para analise e proceda o

    julgamento do recurso interposto pela reclamante (Anglo American Minrio de

    Ferro Brasil S.A) contra a deciso do Juiz de manter a escolha do Prefeito em

    seguir o conselho.

    Com a judicializao do procedimento para obteno da certido de

    conformidade e tambm a presso da empresa esses fatos tm intensificado a

    disputa pela terra e gerado uma nova dinmica sobre a identidade e o ser

    quilombola na regio de queimadas.

    A judicializao do conflito existente em relao ao empreendimento

    denominado Projeto Serro cria uma dinmica ainda mais complexa para os

    moradores da comunidade de Queimadas, pois os moradores passaram a no

    mais participar das reunies da associao comunitria e de outras decises

    coletivas que interessam ao grupo, o que pode apontar para um retrocesso no

    processo de empoderamento e organizao da comunidade.

    A maior parte destes grupos que hoje vm reivindicar seu direito

    constitucional o faz como um ltimo recurso na longa batalha para

    manterem-se em suas terras, as quais so alvo de interesse de

    membros da sociedade envolvente, em geral grandes proprietrios e

    grileiros, cuja caracterstica essencial tratar a terra apenas como

    mercadoria. (SCHMITT, et al. 2002. pag. 05/06)

    Instaurado o conflito, esse ir proporcionar uma manifestao dos

    grupos envolvidos, seja da empresa, comunidade serrana ou dos prprios

    moradores da comunidade quilombola de Queimadas.

    A proteo jurdica da comunidade de Queimadas est assegurada no

    direito em mbito internacional, os conflitos do dia a dia fazem com que esses

    grupos enquadrados na Conveno n 169 da OIT lutem pelo reconhecimento

    estatal por direitos coletivos do grupo.

    A conexo e intersees especficas entre o direito e a antropologia

    praticada aps a Constituio de 1988 no Brasil, tem se dado

    consensualmente em torno da auto-identificao de povos e grupos

    que reivindicam direitos territoriais, o que para o direito est

    fundamentado na conveno 169 da OIT, segundo a qual a

  • 41

    conscincia de sua identidade que dever ser considerada como

    critrio fundamental para a identificao dos grupos aos quais se

    aplicam as disposies jurdicas, e para os antroplogos contempla a

    perspectiva atual da disciplina que considera a auto-atribuio como

    fator socialmente relevante para compreender formas de

    pertencimento e organizao social.( ODWYER, 2010. pag 48)

    Nos termos da conveno 169 da Organizao Internacional do

    Trabalho (OIT), quando se tem a presena de comunidades tradicionais em

    locais onde pretende instalar grandes empreendimentos, a comunidade dever

    ser consultada previamente sobre o assunto. Como consta no artigo 15, aqui

    descrito:

    Artigo 15 - 1. Os direitos dos povos interessados aos recursos

    naturais existentes nas suas terras devero ser especialmente

    protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a

    participarem da utilizao, administrao e conservao dos recursos

    mencionados. 2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos

    minrios ou dos recursos do subsolo, ou de ter direitos sobre outros

    recursos, existentes na terras, os governos devero estabelecer ou

    manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados,

    a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam

    prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar

    qualquer programa de prospeco ou explorao dos recursos

    existentes nas suas terras. Os povos interessados devero participar

    sempre que for possvel dos benefcios que essas atividades

    produzam, e receber indenizao equitativa por qualquer dano que

    possam sofrer como resultado dessas atividades.

    Consulta prvia significa que antes mesmo de ser concedida qualquer

    autorizao, ainda que provisria para grandes empreendimentos ou obras que

    impactam diretamente uma comunidade tradicional, essa dever ser

    consultada previamente.

    Com o intuito de abastecer o mercado mundial o Brasil adotou um

    modelo econmico que tem aparentemente privilegiado a expanso de grandes

    empreendimentos extrativistas minerrios por todo o pas. Paul E. Little nos

    alerta que o territrio de um grupo social determinado, incluindo as condutas

  • 42

    territoriais que o sustentam, pode mudar ao longo do tempo dependendo das

    foras histricas que exercem presso sobre ele. (LITTLE, 2002; pag. 5)

    O Brasil com a promulgao da Constituio Federal de 1988, e pela

    presso do movimento e comunidade negra em geral, conferiu a essa minoria

    (quilombolas) certos direitos que at ento no eram positivados no conjunto

    normativo do Estado Brasileiro, e, dentre eles, os direitos territoriais das

    comunidades remanescentes de quilombo. Como forma de garantir a

    reproduo fsica e social do grupo.

    Os chamados remanescentes das comunidades dos quilombos

    existem formalmente desde a promulgao da Constituio Federal

    Brasileira de 1988. No mbito dos debates da Assemblia Nacional

    Constituinte, responsvel pela elaborao da carta magna, ficou

    instituda a ideia de que determinadas comunidades negras deveriam

    ser contempladas por um dispositivo legal especfico que lhes

    garantisse o direito s terras tradicionalmente ocupadas. (NETO,

    2015. Pag 158)

    Nesse sentido, Oscar Vilhena Vieira diz que:

    Em 1988, resgatando uma divida histrica e moral da sociedade

    brasileira para com a comunidade negra, nossa Constituio

    determinou, por intermdio de seu artigo 68 do Atos das Disposies

    Constitucionais Transitrias, que aos remanescentes das

    comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras

    reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os

    ttulos respectivos (SUNDFELD, 2002, pag.7)

    J SUNDFELD afirma que:

    o momento da constituinte representou um acerto de contas. Pairava

    na conscincia de todos que se engajaram naquele processo um

    dever moral de emancipar os grupos desprivilegiado da histria

    nacional, at ento alijados das condies necessrias para uma

    existncia digna. Esse sentimento se constitucionalizou.

    (SUNDFELD, 2002; pag. 17)

  • 43

    As comunidades quilombolas trazem consigo uma herana cultural

    orientada por uma ancestralidade que constri sua identidade, ou seja, o

    sentimento de pertencimento a determinados locais e grupos. Grupo que

    partilha traos culturais comuns que os diferenciam dos demais, neste caso

    com uma ancestralidade negra vinda do regime escravocrata, mas

    ressignificada no tempo.

    A comunidade quilombola de Queimadas est ligada ao elo histrico da

    escravido vivida na regio de Serro mas, antes de tudo, aos trabalhos nas

    fazendas que abasteciam a sede.

    Pode-se dizer que um trao cultural comum em Queimadas seja o

    passado ligado aos trabalhos nestas fazendas de cana-de-acar e do caf

    mas, antes de tudo, porque em seu passado esto presentes os traos da

    ancestralidade escrava.

    Um exemplo disso o termo remanescente de quilombo, institudo

    pela Constituio de 1988, que vem sendo utilizado pelos grupos

    para designar um legado, uma herana cultural e material que lhes

    confere uma referncia presencial no sentimento de ser e pertencer a

    um lugar e a um grupo especfico. (ODWYER, 2010. Pag. 42)

    O artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias (ADCT)

    reconheceu aos remanescentes de quilombos que estavam ocupando suas

    terras na data da promulgao da CF/88 o ttulo definitivo de suas terras,

    restando ao Estado apenas o reconhecimento deste direito.

    o art. 68 do ADCT no cogitou da interveno da vontade do Estado

    ou qualquer outra pessoa fsica ou jurdica para a converso da

    posse em propriedade. Essa converso se d s pelo fato de existir,

    em 5 de outubro de 1988, a posse qualificada e prolongada dos

    remanescentes das comunidades dos quilombos sobre terras que,

    poca imperial, formavam aqueles agrupamentos organizados por

    escravos fugidos.(SUNDFELD, 2002; pag. 34)

    No s a permanncia histrica foi levada em considerao, mas

    tambm a continuidade do grupo no espao em que historicamente viveram.

  • 44

    Alm de uma herana negra ligada a escravido, necessria a permanncia

    do grupo no local para que o Estado apenas declare sua titulao.

    A partir da Constituio Brasileira de 1988, o termo quilombo, antes

    de uso quase restrito a historiadores e referido ao nosso passado

    como nao, adquire uma significao atualizada, ao ser inscrito no

    artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias (ADCT)

    para conferir direitos territoriais aos remanescentes de quilombos que

    estejam ocupando suas terras, sendo-lhes garantida a titulao

    definitiva pelo Estado brasileiro. (ODWYER, 2007. Pag. 01)

    Todas as reas que abrigam comunidades negras rurais que fazem ou

    fizeram parte da histria do pas passaram, com a Constituio Federal, a ter

    seu direito territorial reconhecido por lei, devendo o Estado apenas declar-lo

    nos termos da Constituio.

    Neste momento, com a promulgao da CF/88, as comunidades

    remanescentes de quilombos comearam a ser reconhecidas como sujeitos de

    direito com direitos garantidos pela CF/88. Alm do direito territorial inscrito no

    artigo 68 do ADCT (Ato das Disposies Constitucionais Transitrias), outros

    direitos tambm foram positivados para garantir a proteo e reproduo do

    grupo. Isso possvel perceber atravs da leitura do artigo 215 da CF/88.

    Art. 215. O Estado garantir a todos o pleno exerccio dos direitos

    culturais e acesso s fontes da cultura nacional, e apoiar e

    incentivar a valorizao e a difuso das manifestaes culturais. 1

    O Estado proteger as manifestaes das culturas populares,

    indgenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do

    processo civilizatrio nacional.

    E tambm pela leitura do artigo 216 da CF/88:

    Art. 216. Constituem patrimnio cultural brasileiro os bens de

    natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em

    conjunto, portadores de referncia identidade, ao, memria

    dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais

    se incluem: I - as formas de expresso; II - os modos de criar, fazer e

    viver; III - as criaes cientficas, artsticas e tecnolgicas; IV - as

  • 45

    obras, objetos, documentos, edificaes e demais espaos

    destinados s manifestaes artstico-culturais; V - os conjuntos

    urbanos e stios de valor histrico, paisagstico, artstico,

    arqueolgico, paleontolgico, ecolgico e cientfico .

    Dos dispositivos constitucionais acima descritos possvel perceber que

    a Constituio Federal protegeu todo um conjunto de direitos que visam

    garantir a preservao dos espaos fsicos que foram e, ainda so, importantes

    para as comunidades negras rurais, tendo em vista que passou a proteger os

    modos de criar, fazer, viver, as formas de expresso e, dentre outros, a prpria

    cultura afro-brasileira.

    s comunidades remanescentes de quilombo igualmente atribudo o

    papel de grupo tnico, elemento fundamental formador do processo civilizatrio

    nacional. (ODWYER, 2002, pag.23)

    Esses grupos foram importantes na construo do pas no passado e

    ficaram invisveis no tempo, mas continuaram a sua reproduo fsica e social

    em locais que facilitavam sua existncia como grupo, porm devido a essa

    invisibilidade resistiram e ainda esto presentes na histria do pas. A referida

    invisibilidade proporcionou a existncia destes grupos at os dias atuais.

    Acontece, porm, que o texto constitucional no evoca apenas uma

    identidade histrica que pode ser assumida e acionada na forma da

    lei. Segundo o texto, preciso, sobretudo, que esses sujeitos

    histricos presumveis existam no presente e tenham como condio

    bsica o fato de ocupar uma terra que, por direito, dever ser em seu

    nome titulada (como reza o artigo 68 do ADCT). Assim, qualquer

    invocao ao passado, deve corresponder a uma forma atual de

    existncia, que pode realizar-se a partir de outros sistemas de

    relaes que marcam seu lugar num universo social determinado.

    (ODWYER, 2007, pag.02)

    A proteo jurdica s comunidades de remanescentes de quilombo vai

    alm do artigo 68 do ADCT, ou seja, a CF/88 protegeu tambm outros direitos

    das populaes afrodescendentes. possvel perceber atravs de uma leitura

    sistemtica da CF/88, que tombou os stios arqueolgicos das populaes

    formadoras da identidade nacional. Assim, a construo de uma identidade

  • 46

    originria dos quilombos torna-se uma referncia atualizada em diferentes

    situaes etnogrficas nas quais os grupos se mobilizam e orientam suas

    aes pela aplicao do artigo 68 do ADCT. (ODWYER, 2007, pag.02)

    O conceito de povos e terras tradicionais no Brasil est inscrito no

    ordenamento jurdico ptrio atravs do Decreto Presidencial 6.040/2007, onde

    diz que:

    Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente

    diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas

    prprias de organizao social, que ocupam e usam territrios e

    recursos naturais como condio para sua reproduo cultural, social,

    religiosa, ancestral e econmica, utilizando conhecimentos, inovaes

    e prticas gerados e transmitidos pela tradio. (Grifo)

    Dessa definio legal sobre o que so povos e comunidades tradicionais

    podemos perceber que se trata de grupos tnicos diferenciados, que assim se

    autorreconhecem em relao a outros grupos e que utilizam seu territrio e os

    recursos naturais existentes como meios necessrios a sua vivncia e

    reproduo social, econmica e cultural em uma dinmica historicamente

    construda.

    Como o Decreto est fundamentado na conveno 169 da OIT,

    segundo a qual a conscincia de sua identidade que dever ser

    considerada como critrio fundamental para a identificao dos povos

    indgenas e tribais, a participao de antroplogos no processo foi

    desconsiderada na medida em que no se fariam mais necessrios

    relatrios antropolgicos atestando a identidade quilombola dos

    grupos que reivindicam a aplicao do Art.68 da Constituio Federal.

    (ODWYER, 2007, pag.50)

    o caso da comunidade de Queimadas marcada por uma cultura

    prpria ligada ao campo, que utiliza dos recursos naturais disponveis no

    territrio para a manuteno e reproduo das vidas que se espalhavam por

    aquele espao, conforme iam se casando e surgindo as novas entidades

    familiares.

    Alfredo Wagner Berno de Almeida, ao referir-se a povos e comunidades

    tradicionais afirma que:

  • 47

    Os povos e comunidades tradicionais, embora apoiados tambm nas

    unidades de trabalho familiar e em diferentes modalidades de uso

    comum dos recursos naturais, apresenta uma conscincia de si como

    grupo distinto, com identidade coletiva prpria, e formas de

    organizao intrnsecas que no reproduzem ocupao econmica

    ou relao com os meios de produo. (ALMEIDA, 2010; pag. 105)

    desta relao direta com o territrio que historicamente compartilham,

    onde formaram os laos de afinidades, compadrio e parentesco que podemos

    falar na formao da identidade do que ser quilombola. A formao da

    identidade est diretamente ligada as praticas de sobrevivncia construdas e

    reproduzidas pelo grupo ao longo de sua histria.

  • 48

    2 IDENTIDADE: CONCEITOS TERICOS E METODOLOGICOS.

    O presente captulo tem por objetivo discutir os aspectos da construo

    da identidade quilombola da comunidade de Queimadas. Sero apresentadas

    algumas discusses conceituais referentes teoria sobre identidade e territrio

    tendo em vista o apoio terico.

    Visa-se tentar compreender a relao entre questes que se processam

    ao longo das dcadas em Queimadas, territrio de quilombo construdo

    historicamente nas relaes e prticas cotidianas edificadoras da identidade

    quilombola.

    O Brasil durante sculos vivenciou o regime escravocrata, esse regime

    se sustentou custa do povo negro, que foi escravizado e utilizado para

    construir esse pas.

    Negros que no se submetiam a esse regime muitas vezes fugiam e

    procuravam um local de difcil acesso onde fosse possvel viver e se reproduzir

    sem que fossem descobertos ou perseguidos.

    Houve tambm os quilombos que se formaram a partir das senzalas,

    quando comeou o declnio das fazendas e do sistema escravocrata.

    A escravido deixou marcas na histria do Brasil, acima de tudo no povo

    negro que resistiu ao sistema, mas ainda hoje luta pela construo de uma

    sociedade livre e justa. Assim, em decorrncia deste processo, foi construda a

    identidade tnica marcada por essa histria. Esses fatos contriburam para que

    a referida identidade do negro no Brasil fosse orientada pelo passado com vista

    ao futuro.

    O reconhecimento de seus direitos historicamente negados surgiu com a

    Constituio Federal de 1988, que a partir da constatao das violaes de

    direitos, incluiu um rol de novos direitos aos povos de matriz africana, povos

    que foram fundamentais na construo do Brasil.

    Os negros deram vrias contribuies para a nao brasileira, por isso a

    necessidade de proteo de seus direitos, proteo de seus modos de modos

    de vidas.

    O principal objetivo demonstrar como o processo de construo da

    identidade quilombola em Queimadas est ligado intimamente dinmica

  • 49

    territorial, onde o conflito com o empreendimento minerrio tem causado

    conflitos e distores na construo coletiva do grupo.

    Uma dinmica, que rompe com o passado e estabelece uma nova

    postura dos moradores da comunidade mediante defesa do espao que

    historicamente ocupam. Espao importante para a reproduo da forma de vida

    que escolheram para viver.

    Nesta perspectiva preciso pensar a identidade de Queimadas atravs

    de seus valores que esto implcitos nas praticas sociais, alm de buscar

    compreender os valores que so histricos, sociais e culturais daquela

    comunidade.

    A identidade quilombola pode ser diferenciada das demais no s pelo

    fato de ter uma histria ligada ao regime escravocrata, mas tambm pelos

    costumes e formas de fazer e viver perpetuados ao longo da histria.

    A identidade tnica tem sido diferenciada de outras formas de

    identidade coletiva pelo fato de ela ser orientada para o passado.

    Essa referncia a uma origem comum presumida parece recuperar,

    de certo modo, a prpria noo de quilombo definida pela

    historiografia. Vale assinalar, contudo, que o passado a que se

    referem os membros desses grupos no o da cincia histrica,

    mas aquele em que se representa a memria coletiva7 portanto,

    uma histria que pode ser igualmente lendria e mtica. (ODwyer,

    2002, pag.17)

    Um passado marcado por violaes de direitos fez com que o grupo

    lutasse por direitos coletivos at ento a eles negado. Direitos que garantissem

    a reproduo social, cultural e espiritual do grupo. Direitos importantes para

    garantir a sobrevivncia do negro nos dias atuais.

    A experincia vivenciada pelo negro foi importante para sua construo

    social enquanto grupo, haja vista que o regime escravocrata fez com que vrios

    quilombos se formassem pelo territrio brasileiro.

    Grupos estes que vm a cada dia se redefinindo e gerando uma

    identidade orientada pelo passado, em uma perspectiva para o futuro. Da a

    necessidade de garantir o acesso terra como forma de assegurar sua

    sobrevivncia.

  • 50

    A tarefa de fundamentar teoricamente a atribuio de uma identidade

    quilombola a um grupo e, por extenso, garantir ainda que

    formalmente - o seu acesso terra trouxe tona a necessidade de

    redimensionar o prprio conceito de quilombo, a fim de abarcar a

    gama variada de situaes de ocupao de terras por grupos negros

    e ultrapassar o binmio fuga-resistncia, instaurado no pensamento

    corrente quando se trata de caracterizar estas conformaes sociais.

    (SCHMITT, et al. 2002. pag. 01/02)

    Nesse sentido, garantir o direito terra para as comunidades

    remanescentes de quilombos implica, antes de tudo, permitir que sua cultura

    continue a se perpetuar ao longo da histria. Pensar a identidade de uma

    populao implica em buscar compreender os valores por trs da lgica de

    pensamento e de sua vida cultural. Saberes, costumes e a cosmoviso

    integram os laos identitrios e reafirmam a experincia de um grupo social.

    (SOUZA, 2012. pag. 79)

    A materializao destes saberes e costumes se d atravs de prticas

    manifestadas no dia a dia. Garantir o espao fsico importante para permitir

    que as subjetividades do grupo se manifestem e estejam resguardadas nos

    termos da legislao.

    Assim, podemos dizer que o territrio um espao fsico, social, poltico

    com caractersticas culturais e simbologias prprias construdas pelas

    populaes remanescentes destes antigos quilombos. Rafael Sanzio Arajo

    dos Santos desenvolve o conceito do que venha a ser o territrio, dizendo que:

    O territrio tnico seria o espao construdo, materializado a partir

    das referncias de identidade e pertencimento territorial e,

    geralmente, a sua populao tem um trao de origem em comum. As

    demandas histricas e os conflitos com o sistema dominante tm

    imprimido a esse tipo de estrutura espacial exigncias de organizao

    e a instituio de uma autoafirmao poltica-social-econmica-

    territorial. (ANJOS, 2013; pag. 139)

    Carlos Ari Sundfeld diz sobre o processo de territorializao como:

    A territorialidade um fator fundamental na identificao dos grupos

    tradicionais, entre os quais se inserem os quilombolas. Tal aspecto

  • 51

    desvenda a maneira como cada grupo molda o espao em que vive,

    e que se difere das formas tradicionais de apropriao dos recursos

    da natureza. So as terras de uso comum, em especial as terras de

    pretos, cuja ocupao no feita de forma individualizada, e sim em

    um regime de uso comum. O manejo do espao territorial obedece a

    sazonalidade das atividades agrcolas, extrativista e outras,

    caracterizando diferentes formas de uso e ocupao do espao que

    tomam por base laos de parentesco e vizinhana, assentados em

    relaes de solidariedade e reciprocidade. (SUNDFELD, 2002; pag.

    78/79)

    No caso de Queimadas esse processo de territorialidade veio sendo

    construdo ao longo do tempo. Os moradores foram estabelecendo um trabalho

    coletivo de mutiro e iam estabelecendo laos de amizade e compadrio, num

    sistema de ajuda mtua em que os mutires eram feitos em poca de plantio,

    ou seja, vrios moradores se uniam para preparar e plantar o terreno um dos

    outros. Isso ajudou a construir a territorialidade da comunidade ao longo de

    todo espao, uma territorialidade baseada em laos de afinidade.

    Paul E. Little nos diz sobre o processo de territorializao que este :

    A territorialidade uma fora latente em qualquer grupo, cuja

    manifestao explicita depende de contingncias histricas. O fato de

    que um territrio surge diretamente das condutas de territorialidade

    de um grupo social implica que qualquer territrio um produto

    histrico de processos sociais e polticos. Para analisar o territrio de

    qualquer grupo, portanto, precisa-se de uma abordagem histrica que

    trata de contexto especifico em que surgiu e dos contextos em que foi

    defendido e/ou reafirmado. (LITTLE, 2002; pag. )

    Em Queimadas esse processo percebido nas prticas do dia a dia, em

    que moradores sedem suas casas para atendimento mdico, reunies da

    prpria associao comunitria e em outros momentos que o grupo precisa se

    reunir para pensar no coletivo.

    A esfera do individual no caso de Queimadas sede lugar ao espao do

    grupo, uma vez que comum entre os moradores a liberao dos espaos

    familiares como a casa para servir o grupo em momentos para atendimento

    mdico.

  • 52

    E Little continua dizendo que A cosmografia de um grupo inclui seu

    regime de propriedade, os vnculos afetivos que mantm com seu territrio

    especifico, a histria de sua ocupao guardada na memoria coletiva, o uso

    social que d ao territrio e as formas de defesa dele. (LITTLE, 2002; pag. 4)

    Esse processo histrico de territorializao ocorre com a expanso das

    fazendas de cana-de-acar e caf. Embora o processo de constituio da

    comunidade se deu por lotes individuais, em que os donos das fazendas iam

    distribuindo lotes ao trabalhador para que no distanciasse das fazendas e,

    assim pudessem permanecer sobre seus cuidados, o processo de construo

    se deu de forma coletiva.

    Laos de confiana e afinidade foram sendo estabelecidos ao longo da

    histria da comunidade, pois eram construdos nos momentos coletivo ajuda

    mtua, ou seja, nos mutires entre todos que ocupavam aquele espao.

    No que diz respeito territorialidade desses grupos, a ocupao da

    terra no feita em termos de lotes individuais, predominando seu

    uso comum. A utilizao dessas reas obedece a sazonalizao das

    atividades, sejam agrcolas, extrativistas ou outras, caracterizando

    diferentes formas de uso e ocupao dos elementos essenciais ao

    ecossistema, que tomam por base laos de parentesco e vizinhana,

    assentados em relaes de solidariedade e reciprocidade. (ODwyer,

    2010. pag. 43)

    Embora os direitos territoriais estejam reconhecidos formalmente em

    textos normativos, a efetivao de tais direitos ainda est longe de ser uma

    realidade, nesse sentido Almeida diz que:

    As dificuldades de efetivao destes dispositivos legais indicam,

    entretanto, que h tenses relativas ao seu reconhecimento jurdico-

    formal, sobretudo porque rompem com a invisibilidade social, que

    historicamente caracterizou estas formas de apropriao dos

    recursos baseadas principalmente no uso comum e em fatores

    culturais intrnsecos, e impelem a transformaes na estrutura

    agrria. (ALMEIDA, 2008; pag. 26)

    Paul E. Little se refere a este processo dizendo que:

  • 53

    A conduta territorial surge quando as terras de um grupo esto sendo

    invadidas numa dinmica em que, internamente, a defesa do territrio

    torna um elemento unificador de grupo e, externamente, as presses

    exercidas por outros grupos ou pelo governo da sociedade dominante

    moldam(e as vezes impem) outras formas territoriais. (LITTLE, 2002;

    pag. 4)

    Nesse sentido, a dinmica da comunidade de Queimadas em relao

    defesa de seu territrio se d conforme os conflitos aparecem. Sua

    ter