A Compreensão Da Desobediência Civil Em Hannah Arendt

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A COMPREENSÃO DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL EM HANNAH ARENDT THE COMPREHENSION OF CIVIL DISOBEDIENCE IN HANNAH ARENDT Gehad Marcon Bark 1 André Filipe Pereira Reid dos Santos 2 RESUMO O presente artigo tem como objetivo precípuo examinar o fenômeno político da desobediência civil, conjugando alguns de seus aspectos conceituais ao estabelecimento de um possível estatuto de legitimidade, ambos calcados nos elementos ação e consenso dentro da comunidade política. Adota-se a concepção de ação no conceito de vita activa de Hannah Arendt como supedâneo para o desenvolvimento da idéia de desobediência civil, enquanto manifestação política que questiona normas despidas de conteúdo axiológico ou elaboradas em desconformidade com o consentimento dado pela sociedade civil à autoridade constituída e expresso pelo pacto constitucional. Cuida-se também de proceder ao exame daquilo que Arendt apresenta a respeito da ação como experiência fundamental do indivíduo na política para entender como as relações entre cidadãos ocorrem em meio à pluralidade que é característica desse contexto. Para isso, compreendem-se como essenciais para a vida política, também, as noções de poder, legitimidade, consentimento e promessa no interior do contexto político, enquanto figuras capitais para a articulação política do indivíduo. A liberdade será abordada a partir da percepção negativa apresentada por Isaiah Berlin, como elemento cuja função é limitar a ação em sua ilimitabilidade, enquanto condição para a plena possibilidade de participação ativa do cidadão na política. Assim, a desobediência civil, é percebida como manifestação que, para ser legítima, deve ser praticada a partir da observância dos princípios que estruturam a formação do corpo político. Nesse ponto, coloca-se ainda a necessidade de discernir a diferença entre a ação política e a ação baseada pelo julgamento moral do cidadão. Enfim, discute-se a necessária observância de princípios fundamentais oriundos do consenso político como critério de legitimidade das normas. PALAVRAS-CHAVE: Ação; Comunidade Política; Consenso; Desobediência Civil; Liberdade Negativa; Princípios ABSTRACT This article has the main objective of examining the political phenomenon known as civil disobedience, allying the analysis of its conceptual notion to the formulation of its possible legitimacy, both built from the meanings of action and consensus in the political community. In order to do that, this work takes the concept of action from Arendt’s elaboration of vita activa as foundation to the development of the idea of civil disobedience as a political manifestation, that only challenges laws that are not based upon axiological content, or that were elaborated in discordance with the consensus given to the established authority and expressed by the constitutional pact. It is also necessary to discuss what Arendt proposes concerning action as the fundamental experience in a political background, in order to figure out how the relations between individuals take place among the inherent plurality of this kind of context. For this purpose, the concepts of power, legitimacy, consensus and promises are assumed as fundamental to articulate the political life of human beings. The notion of freedom 1 Formado em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba), acadêmico de Filosofia na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro do Grupo de Pesquisa Direito, Sociedade e Cultura. 2 Sociólogo, Professor do Programa de pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e membro do Grupo de Pesquisa Direito, Sociedade e Cultura.

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O presente artigo tem como objetivo precípuo examinar o fenômeno político da desobediência civil, conjugando alguns de seus aspectos conceituais ao estabelecimento de um possível estatuto de legitimidade, ambos calcados nos elementos ação e consenso dentro da comunidade política. Adota-se a concepção de ação no conceito de vita activa de Hannah Arendt como supedâneo para o desenvolvimento da ideia de desobediência civil, enquanto manifestação política que questiona normas despidas de conteúdo axiológico ou elaboradas em desconformidade com o consentimento dado pela sociedade civil à autoridade constituída e expresso pelo pacto constitucional. Cuida-se também de proceder ao exame daquilo que Arendt apresenta a respeito da ação como experiência fundamental do indivíduo na política para entender como as relações entre cidadãos ocorrem em meio à pluralidade que é característica desse contexto. Para isso, compreendem-se como essenciais para a vida política, também, as noções de poder, legitimidade, consentimento e promessa no interior do contexto político, enquanto figuras capitais para a articulação política do indivíduo. A liberdade será abordada a partir da percepção negativa apresentada por Isaiah Berlin, como elemento cuja função é limitar a ação em sua ilimitabilidade, enquanto condição para a plena possibilidade de participação ativa do cidadão na política. Assim, a desobediência civil, é percebida como manifestação que, para ser legítima, deve ser praticada a partir da observância dos princípios que estruturam a formação do corpo político. Nesse ponto, coloca-se ainda a necessidade de discernir a diferença entre a ação política e a ação baseada pelo julgamento moral do cidadão. Enfim, discute-se a necessária observância de princípios fundamentais oriundos do consenso político como critério de legitimidade das normas.

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  • A COMPREENSO DA DESOBEDINCIA CIVIL EM HANNAH ARENDT

    THE COMPREHENSION OF CIVIL DISOBEDIENCE IN HANNAH ARENDT

    Gehad Marcon Bark1

    Andr Filipe Pereira Reid dos Santos2

    RESUMO

    O presente artigo tem como objetivo precpuo examinar o fenmeno poltico da desobedincia

    civil, conjugando alguns de seus aspectos conceituais ao estabelecimento de um possvel

    estatuto de legitimidade, ambos calcados nos elementos ao e consenso dentro da

    comunidade poltica. Adota-se a concepo de ao no conceito de vita activa de Hannah

    Arendt como supedneo para o desenvolvimento da idia de desobedincia civil, enquanto

    manifestao poltica que questiona normas despidas de contedo axiolgico ou elaboradas

    em desconformidade com o consentimento dado pela sociedade civil autoridade constituda

    e expresso pelo pacto constitucional. Cuida-se tambm de proceder ao exame daquilo que

    Arendt apresenta a respeito da ao como experincia fundamental do indivduo na poltica

    para entender como as relaes entre cidados ocorrem em meio pluralidade que

    caracterstica desse contexto. Para isso, compreendem-se como essenciais para a vida poltica,

    tambm, as noes de poder, legitimidade, consentimento e promessa no interior do contexto

    poltico, enquanto figuras capitais para a articulao poltica do indivduo. A liberdade ser

    abordada a partir da percepo negativa apresentada por Isaiah Berlin, como elemento cuja

    funo limitar a ao em sua ilimitabilidade, enquanto condio para a plena possibilidade

    de participao ativa do cidado na poltica. Assim, a desobedincia civil, percebida como

    manifestao que, para ser legtima, deve ser praticada a partir da observncia dos princpios

    que estruturam a formao do corpo poltico. Nesse ponto, coloca-se ainda a necessidade de

    discernir a diferena entre a ao poltica e a ao baseada pelo julgamento moral do cidado.

    Enfim, discute-se a necessria observncia de princpios fundamentais oriundos do consenso

    poltico como critrio de legitimidade das normas.

    PALAVRAS-CHAVE: Ao; Comunidade Poltica; Consenso; Desobedincia Civil;

    Liberdade Negativa; Princpios

    ABSTRACT

    This article has the main objective of examining the political phenomenon known as civil

    disobedience, allying the analysis of its conceptual notion to the formulation of its possible

    legitimacy, both built from the meanings of action and consensus in the political community.

    In order to do that, this work takes the concept of action from Arendts elaboration of vita activa as foundation to the development of the idea of civil disobedience as a political

    manifestation, that only challenges laws that are not based upon axiological content, or that

    were elaborated in discordance with the consensus given to the established authority and

    expressed by the constitutional pact. It is also necessary to discuss what Arendt proposes

    concerning action as the fundamental experience in a political background, in order to figure

    out how the relations between individuals take place among the inherent plurality of this kind

    of context. For this purpose, the concepts of power, legitimacy, consensus and promises are

    assumed as fundamental to articulate the political life of human beings. The notion of freedom

    1 Formado em Direito pelo Centro Universitrio Curitiba (Unicuritiba), acadmico de Filosofia na Universidade

    Federal do Paran (UFPR) e membro do Grupo de Pesquisa Direito, Sociedade e Cultura. 2 Socilogo, Professor do Programa de ps-Graduao Stricto Sensu em Direitos e Garantias Fundamentais da

    Faculdade de Direito de Vitria (FDV) e membro do Grupo de Pesquisa Direito, Sociedade e Cultura.

  • is tackled from the negative view defended by Isaiah Berlin, as element whose intention is to

    restrain the natural limitlessness of action and to grant the whole possibility of active

    participation in politics. As a result, civil disobedience is understood as a manifestation that

    must be based on the observance of principles that guide the edification of political

    community, as criterion of its own legitimacy. At this point of view, shows up as well the

    necessity of discerning the difference between the political action and the action based only

    on individual and moral judgment. Ultimately, it is discussed the crucial observance of basic

    principles shaped by political consensus as condition to the legitimacy of laws.

    KEYWORDS: Action; Civil Disobedience; Consensus; Negative Freedom; Political

    Community; Principles

    Ao erigir o conceito de vita activa, Hannah Arendt concebe a ao como fenmeno

    que estabelece, perpassa e define a vida humana na esfera poltica. certo que inmeras

    outras atividades humanas (compreendidas no conceito de vita activa) so tambm

    indissociveis da noo de ser humano, mas apenas a ao que confere algo

    essencialmentepoltico existncia e convivncia entre homens. (ARENDT, 2010, p. 8) A

    capacidade de ao, fruto da pluralidade do campo poltico, em princpio paradoxalmente,

    caracterizada pela igualdade entre indivduos e pela singularidade de cada um deles no meio

    poltico, como condio pela qual a poltica existe e possvel. (ARENDT, 2010, p. 9)

    Para os gregos, os homens seriam confrontados por duas ordens de existncia, como

    assinala Arendt. Uma seria aquela constituda e vivida no mbito do lar, ao passo que a outra,

    o bios politikos, seria experimentada na associao entre os homens do corpo poltico. Nessa

    segunda instncia que estaria localizado o fenmeno da ao, e, na mesma medida, o

    discurso, ambos como atividades estritamente ligadas ao domnio dos assuntos humanos. No

    haveria, portanto, apenas o zoon politikon, mas um indivduo cuja vida compreendia a

    interao em duas esferas distintas.

    A condio para a vida poltica na plis, e tambm a essncia dessa espcie de

    associao, era a liberdade. Primeiramente a liberdade em relao ao mbito privado da

    famlia, considerado como um fenmeno pr-poltico por representar um ambiente no qual era

    visada a satisfao das necessidades primordiais do ser humano.

    Assim, visto que necessidade e liberdade eram condies mutuamente excludentes,

    para que o indivduo pudesse ter participao na vida poltica, necessitava do desprendimento

    em relao s questes envolvendo sua vida privada. Mas a liberdade era tambm vivenciada

    sob um ponto de vista propriamente poltico compreendendo a igualdade entre os indivduos

    para externar suas opinies, para agir e para governar, no seio de uma esfera na qual no

    existiam governar e ser governado. (ARENDT, 2010, p. 39)

  • Em contrapartida, como vista pela teoria poltica moderna, a igualdade guarda

    caractersticas calibradas muito mais de acordo com as noes contratualistas envolvendo as

    relaes entre sociedade civil, Estado e a formao da autoridade poltica, mormente no

    tocante importncia da previsibilidade dos comportamentos individuais no mbito do

    convvio humano.

    Enquanto a igualdade no sentido grego traduz-se na plena liberdade de ao do

    indivduo no campo poltico, entre os modernos h uma clara predileo por concepes que

    mitiguem a espontaneidade dessa ao em favor da adequao a padres de comportamento e

    da reduo da atuao poltica ao restrito mbito da representatividade. Em outras palavras,

    no campo poltico, segundo a perspectiva moderna, com a consolidao e aprimoramento da

    noo de autoridade, o ser humano deve deixar de agir para apenas se comportar conforme

    uma srie de regras postuladas.

    Houve, portanto, substancial modificao no pensamento ocidental em relao

    percepo dos fundamentos da existncia do espao pblicodos homens, com o gradativo

    esfacelamento do carter imperativo que nele preponderava e o deslocamento dessa esfera a

    uma posio de subordinao funcional. Na modernidade, passa a vigorar uma compreenso

    teleolgica do poltico. Se Arendt afirma que, quanto aos membros da plis, a vida no lar

    existe em funo da vida boa na plis (2010, p. 45), para os modernos a poltica reserva-se

    misso de garantir a segurana da vida privada por meio da regncia dos assuntos do mundo

    no mbito pblico.

    Esta inverso do sentido da poltica foi causada pelo surgimento do campo social,

    que segundo Arendt passou a aglomerar o tratamento de questes que na Antiguidade diziam

    respeito ao indivduo e suas necessidades domsticas. Entre os gregos a igualdade dos

    membros da plis assegurava-lhes a possibilidade de ser visto e ouvido por todos, e tambm

    de partilhar uma opinio que seria respeitada por ser emitida por um indivduo que se

    encontrava entre seus semelhantes. Mais especificamente, pode-se afirmar que a prpria razo

    pela qual o indivduo passava a compor este grupo era a vontade de que algo seu, ou algo

    que tinha em comum com outros, fosse mais permanente que as suas vidas terrenas.

    (ARENDT, 2010, p. 67)

    A percepo da poltica e dos temas tratados nesse domnio consonante com o que

    se concebe por pblico dentro de uma comunidade. As questes tratadas neste espao so

    vistas por todos, e permitem a apreenso de uma realidade constituda que pode ser conhecida

    pelos homens. Donde concluir-se, em ltima anlise, que a presena de outros garante-nos a

    realidade do mundo e de ns mesmos. (ARENDT, 2010, p. 61)

  • O pblico representa a existncia e algo que compartilhado pelos homens,

    notadamente quanto s relaes que se constituem no prprio espao de convivncia

    permeado pela ao.

    Como visto, contrapunha-se a este espao o mbito privado, cerne da preocupao

    com a mantena da famlia, de cunho econmico, onde as questes vividas pelo indivduo

    permaneciam ocultas. O lar cumpria a paradoxal funo de permitir o acesso vida pblica

    pela representao simblica que alava o homem condio de libertao das necessidades

    da vida.

    A confuso entre as questes atinentes a uma e outra esfera da vida, bem como a

    mudana na compreenso fundamental da poltica modernamente, fruto de uma nova

    concepo acerca das relaes que as questes econmicas estabelecem com o campo

    poltico. Arendt afirma que quando se permitiu que essa riqueza comum, anteriormente

    relegada privatividade dos lares, conquistasse o domnio pblico, as posses privadas [...]

    passaram a minar a durabilidade do mundo. (2010, p. 84)

    Quando a poltica perdeu seu carter de espao para a realizao da individualidade

    humana, destinando-se agora soluo de problemas privados, esfacelou-se seu mais

    imanente carter de publicidade.

    A partir da compreenso dessas diferentes noes do poltico, Arendt almejar

    encontrar o espao do indivduo na poltica para a plena realizao de sua individualidade.

    Porque, entre os gregos, o domnio pblico [...] era o nico lugar em que os homens podiam

    mostrar quem realmente eram e o quanto eram insubstituveis (2010, p. 50) e a manuteno

    desse espao para a individualidade dava sentido coordenao dos assuntos pblicos.

    Em seu aspecto mais elementar, a ao traz consigo a capacidade de iniciar processos

    inteiramente novos, e no apenas mantm a mais ntima relao com a parte pblica do

    mundo comum a todos ns, mas a nica que o constitui (ARENDT, 2010, p. 247),

    contrariando as leis que regem os demais processos naturais existentes.

    O discurso a preenche de sentido, possibilitando a distino entre os homens por

    meio da revelao no interior da pluralidade. A reunio dos homens entre si, pela ao e pelo

    discurso, acaba por constituir o plexo de relaes humanas de atos e palavras que dizem

    respeito aos assuntos do mundo (espao-entre). (ARENDT, 2010, p. 228) Ao inserir-se no

  • domnio humano, o desvelamento e o incio desencadeiam processos inteiramente novos que,

    desprendidos do sujeito, redundam na descoberta do ser pela sua estria de vida3.

    Para Arendt, constitui-se um espao de aparncia entre os indivduos, no qual a

    condio humana plenamente realizada, distinguindo o homem de outros seres vivos como

    ser capaz de descoberta do mundo e de si mesmo.

    O espao de aparncia constitui, ento, o local onde os indivduos agem e falam. Sua

    manuteno suscita como elemento agregador o fenmeno do poder, que sempre potencial e

    que somente por conta da reunio de pessoas possvel. Se o ser humano, individualmente,

    em meio pluralidade, capaz de agir, ento o poder traduz-se na capacidade exclusivamente

    humana que deriva do efetivo atuar conjunto. (2010, p. 60)

    No pensamento poltico ocidental consolidou-se, ento, a noo de que a melhor

    maneira para organizarem-se os homens seria alcanada pela ciso entre um espao de

    governantes e outro de governados.

    Nesta perspectiva, etimologicamente, desde a Antiguidade (especialmente em Plato

    e Aristteles), h uma limitao do conceito de ao em prol da segunda verso da poltica.

    Isso fica claro na utilizao das palavras gregas archein (comear, liderar e, finalmente,

    governar) e pratein (atravessar, realizar e acabar), e das latinas agere (por em

    movimento, liderar) e gerere (cujo significado original conduzir). (ARENDT, 2010, p.

    236) Todas buscam designar a ao sob a dplice perspectiva do incio vinculado pessoa do

    governante, e da execuo dos atos destinada aos governados (mera reproduo).

    Na busca pela limitao da instabilidade que perpassa o domnio dos assuntos

    humanos, ao e discurso foram subordinadas noo de autoridade para o pensamento

    filosfico poltico, desde Plato e Aristteles.4

    Os elementos do incio e da espontaneidade, que, somados ao sentido do discurso,

    eram tidos como indispensveis ao convvio dos cidados livres na plis, passam a vigorar

    como caracteres essenciais somente atuao dos lderes governantes.

    3 Na apresentao de Roberto Raposo de "A condio humana" para o portugus, utilizada como referncia para

    este artigo, o termo "estria" (em oposio a "histria") corresponde palavra "story", empregada por Arendt no

    texto original em ingls para se referir aos relatos acerca das vidas dos indivduos, produzidos a partir do exame

    das relaes humanas que as permeiam. No mesmo texto, a palavra "history", traduzida como "histria", assume

    o significado corrente de conjunto de conhecimentos relativos ao passado da humanidade". (ARENDT, 2010, p. VIII)

    4 O lugar-comum, que j encontramos em Plato e Aristteles, de que toda comunidade poltica consiste em

    governantes e governados (suposio na qual se baseiam, por sua vez, as atuais definies de formas de governo

    governo de um ou monarquia, governo de poucos ou oligarquia e governo de muitos e democracia) baseava-se mais na suspeita em relao ao que no desprezo pelo homem [...]. (ARENDT, 2010, p. 277)

  • Segundo a concepo arendtiana, no entanto, a ao, no seu mais pleno sentido,

    constituinte do ser humano, no pode ser afastadasob pena da perda do sentido da poltica,

    embora desestabilize o domnio dos assuntos humanos. Surgem, ento, a capacidade de fazer

    promessas como elemento dotado de um poder estabilizador (ARENDT, 2010, p. 303), e a

    faculdade de perdoar como remdio para a irreversibilidade da ao. O valor das promessas

    repousa na reciprocidade que necessariamente permeia o pacto, garantindo alguma

    previsibilidade vida em comunidade.

    O poder, agregando o espao pblico e, assim, conferindo um sentido de realidade

    surge quando os homens agem de forma concertada, ou seja, quando se vinculam mediante

    promessas. A soberania limitada precisamente pelo pactuado entre os homens, que,

    politicamente, so livres para agir, vinculando-se por meio das promessas estabelecidas.

    Assim, como experincia fundamental dos homens, a ao , no campo poltico,

    limitada pelas promessas pactuadas. A ao sempre permite um novo incio e representa uma

    alternativa para subverter o fluxo das crises que se desencadeiam por processos naturais.

    Mais fundamentalmente, j que no mais se concebem modelos distintos daqueles

    em que se separa governantes e governados, a ao no campo poltico, modernamente

    vinculada noo de liberdade, significa participar do governo. (ARENDT, 1988, p. 175) A

    participao transcende a mera abstrao da representatividade democrtica, cuja estrutura

    poltica revela crescente desinteresse dos governados pela coisa pblica.

    Em ltima anlise, revela-se de absoluta importncia a existncia de um espao para

    a manifestao, j que a ao sofre as limitaes impostas pelos atuais modelos

    governamentais. Para Arendt, um dos exemplos mais significativos da ao poltica por

    excelncia, nesta acepo, pode ser encontrado com a Comuna de Paris, no perodo que se

    seguiu Revoluo Francesa. (1988, p. 193) Cuida-se de exemplo da formao, espontnea

    como a ao, de um espao pblico de manifestao e formao de opinio como nova forma

    de ao poltica.

    Sob o ponto de vista poltico, na Frana constituram-se verdadeiros espaos para a

    liberdade de ao, mas no apenas com a Comuna de Paris. Em todas as outras associaes,

    reivindicando sua participao no governo, os indivduos demonstravam que no somente

    poderiam, mas desejavam expressar suas opinies em relao atuao da autoridade ps-

    revolucionria. O mesmo possvel afirmar em relao aos soviets, na Rssia.

    O fundamental, portanto, a possibilidade de participao. Participao ativa que

    exigea preservao de certo ncleo de liberdades polticas essenciais do indivduo, que no

    pensamento poltico concebe-se como um sentido negativo da liberdade (BERLIN, 2002, p.

  • 228), o espao de no-interferncia usufrudo pelo indivduo, ou, inversamente, o plexo de

    limitaes imposto a toda a sociedade e ao Estado, em relao ao indivduo.

    Mas a liberdade j foi encarada sob um aspecto positivo, quando ento passa a

    identificar o desejo que o indivduo nutre de ser seu prprio senhor (BERLIN, 2002, p.

    236). Segundo essa perspectiva, conforme Isaiah Berlin, inmeras teorias culminaram por

    fundamentar muitos dos regimes polticos autoritrios, na medida em que passam a

    condicionar o projeto de liberdade atuao em prol de entidades supraindividuais (a classe, o

    partido, o Estado Nacional). (2002, p. 248)

    Teoricamente, essas correntes projetavam um momento de harmonia final, em que

    todos os enigmas so resolvidos, todas as contradies conciliadas. (BERLIN, 2002, p. 269)

    Na prtica, a transposio denoes totalizantes para a prxis poltica da primeira metade do

    sculo XX possibilitou o surgimento de regimes totalitrios, ao subordinar a liberdade a uma

    suposta marcha da histria.

    Segundo Berlin, nos conformes do que se construiu em torno da noo positiva do

    autodomnio pela razo como liberdade, supor que as snteses supremas (2002, p. 272)

    sero alcanadas, possuindo um carter unificador e totalizante dentro da sociedade, conferir

    espao para gradual destruio da tendncia criativa do ser humano.

    Por sua vez, o pluralismo, com a dose de liberdade negativa que acarreta

    (BERLIN, 2002, p. 272), revela-se mais consentneo com a vida em um contexto poltico que

    busque preservar o indivduo em sua unicidade e em seu espao inviolvel para o agir poltico

    (condio que justifica a prpria existncia da poltica). Por esse segundo conceito, a

    liberdade no ilimitada e no entendida como o supremo valor a ser realizado na

    sociedade, pois, se relaciona com inmeras reinvindicaes importantes que nascem no seio

    da comunidade poltica.

    Para Arendt, o poder de prometer constitui-se numa das limitaes impostas ao

    dentro da sociedade. A vantagem que essa forma de vinculaoproporciona a possibilidade

    de alguma previsibilidade da ao humana, preservando-se, contudo, o grau de liberdade

    originalmente vivenciada no campo poltico.

    por meio das promessas que os indivduos, unidos, agem concertadamente e

    adquirem poder, conservando suas identidades em meio pluralidade de homens, mas ainda

    assim constituindo outra espcie de soberania, comunitria, muito superior em relao

    soberania daqueles que so inteiramente livres (BERLIN, 2002, p. 305), por ser a nica

    forma de manifestao autntica da ao conjunta dotada de elevado potencial transformador.

  • Esta limitao imposta ao, ao menos no que concerne realidade dos governos

    constitucionais, traduzida por leis positivas, que, permeando o domnio das relaes

    humanas, se destinam a erigir fronteiras e a estabelecer canais de comunicao entre os

    homens, cuja comunidade continuamente posta em perigo pelos novos homens que nela

    nascem. (ARENDT, 1989, p. 517)

    O contrato ou pacto representado pela constituio adotada pelo povo, cujos

    princpios ou representam categorias e conceitos morais fundamentais que so, pelo menos

    ao longo de grandes extenses de tempo e espao [...] uma parte do que os torna humanos.

    (BERLIN, 2002, p. 272)

    O contrato redunda na formulao de princpios, cuja origem pode ser encontrada,

    por exemplo, na crena em determinados valores e noes que historicamente se agregaram

    identidade de determinados povos ou culturas. De uma forma um pouco mais conforme com a

    linha argumentativa adotada pelos tericos do contratualismo, tais valores podem ter como

    fundamento aquele consenso que sucede o estado de natureza em favor da instituio do

    corpo poltico. (BOBBIO, 2008, p. 39)

    Esses valores, assim como devem pautar a ao dos indivduos no campo poltico,

    conferem s normas sua legitimide, que, enquanto atributo fundamental, no seu significado

    genrico, tem aproximao com o sentido de justia ou de racionalidade, algo justificado pelo

    entendimento. (GARCIA, 2004, p. 93)

    Demanda-se o alcance de um conceito de norma que possa tanto se aproximar do

    ideal de satisfao das pretenses da justia poltica, quanto da positividade exigida para

    assegurar o convvio em sociedade.

    Sob um aspecto preliminar, concebida a liberdade do indivduo para atuar de forma

    politicamente engajada (o que pressupe a aceitao de alguns princpios elementares da

    sociedade), aquela norma que no for pautada nos valores mais caros comunidade,

    ilegtima.

    Inevitavelmente, recorre-se, quando deste empreendimento, argumentao em

    torno de alguma concepo de carter jusnaturalista, mas num sentido suprapositivo, por meio

    de cuja concepo se possa submeter o ordenamento jurdico a uma crtica axiolgica fundada

    no valor da pessoa humana, agregando ao ordenamento posto elementos que remetam a

    autoridade ao fundamento ltimo do corpo poltico, qual seja, a vida digna do cidado (uma

    vez que se concebe que, para o pensamento ocidental, a poltica agora deve ser condicionada a

    uma determinada finalidade).

  • Nesse ponto se coloca, portanto, o debate em torno da desobedincia civil, sendo

    certo que imperatividade das normas criadas contrape-se, de um lado, a crise de

    legitimidade da autoridade constituda que perpassa os ordenamentos e, de outro, a demanda

    cada vez maior de autonomia e garantia de liberdade para a atuao poltica dos governados,

    enquanto condies que so fundamentais para a prpria realizao da cidadania.

    Se a elaborao da norma deve ser fundamentada por princpios, nas hipteses em

    que isso no ocorre, o critrio orientador da ao no campo poltico (notadamente quanto

    desobedincia civil e suas possibilidades dentro de contextos polticos) deve ser distinto

    daquele que embasa o mero agir moral5.

    Isso ocorre porque, segundo Arendt, no centro das consideraes morais da conduta

    humana est o eu; no centro das consideraes polticas da conduta est o mundo. (2004, p.

    220) Politicamente, cuida-se da percepo de que vivo no s com outros, mas tambm com

    o meu eu, e que esse viver junto, por assim dizer, tem precedncia sobre todos os outros.

    (2004, p. 221)

    Pois embora a ao seja a experincia caracterstica do indivduo que age no campo

    poltico, mas nem toda ao, que proporciona os novos incios(ARENDT, 2010, p. 222), e

    conjugada ao discurso permite a revelao do indivduo para o mundo, pode ser encarada

    como uma ao poltica.

    A pluralidade revela o indivduo no apenas para o mundo, mas o revela tambm

    para si mesmo e possibilita o dilogo entre eu e eu mesmo (ARENDT, 1989, p. 528), fonte

    das consideraes de carter moral. Esse dilogo, entretanto, no perde o contato com o

    mundo de meus semelhantes (ARENDT, 1989, p. 528), e embora diga respeito questo da

    conscincia (ARENDT, 2004, p. 218), a ao que o adota como critrio tambm dada

    experincia vivida no mbito da pluralidade.

    No que isso demonstre que a moral no possa constituir critrios politicamente

    vlidos de julgamento, pois h inmeras situaes em que padres polticos e morais e

    conduta podem entrar em conflito. (ARENDT, 2004, p. 221)

    5 Thoreau, questionando o princpio democrtico, afirma que a razo pela qual as decises so tomadas de

    conformidade com a vontade expressada pela maioria, no a de que seja mais provvel que tal maioria esteja certa, nem a de que isso parea o mais justo minoria, e sim a de que a maioria fisicamente mais forte. (1968, p. 19) O autor confronta diretamente a regra da maioria e indaga acerca da possibilidade de existncia de um

    governo em que o apelo conscincia seja expediente comum na funo de sopesar a justia ou injustia das

    aes perante alguma comunidade. bem verdade que o condicionamento das aes praticadas perante a

    comunidade apenas a critrios moralidade individual expediente passvel de ser submetido a inmeras crticas.

    Diferentemente do que ocorre com a comunidade fundada no consenso, no h limites claros quando o indivduo

    recorre apenas conscincia como parmetro de escolha. Eis a razo pela qual anlise da desobedincia civil

    passa pelo crivo da ao poltica e dos princpios elementares estabelecidos pela comunidade.

  • A impotncia do homem (ARENDT, 2004, p. 223), fundamental para manuteno

    dos regimes totalitrios, exemplo de situao extrema em que todo espao de aparncia que

    conforma o domnio das relaes concernentes aos assuntos humanos eliminado, juntamente

    com toda a possibilidade de ao, para dar espao ideologia, ao impulso consecuo das

    leis da histria e do movimento totalitrio6.

    Por outro lado, se plausvel concluir que h um espao para os indivduos

    manifestarem suas opinies e que h preceitos fundamentais que orientam a vida poltica, o

    recurso moral desnecessrio. Se h alguma lei inqua (diga-se, fruto de concepo outra

    que no o consentimento), a prpria estrutura poltica, nos limites dos princpios bsicos

    adotados, permitiria o respectivo questionamento por meio da ao.

    Quando agem em conjunto, ou seja, em meio pluralidade que permeia a condio

    humana, os homens adquirem poder e, da mesma forma que concedem autoridade a

    determinada instituio, podem retir-la. na presena da faculdade de prometer e de

    perdoar, criadoras das ilhas de certeza necessrias para a estabilidade do agir conjunto

    (LAFER, 2009, p. 223) que o fenmeno do poder mantm a durabilidade do espao-entre,

    possibilitando a existncia do domnio dos assuntos humanos.

    O consentimento a expresso fundamental do acordo estabelecido entre os

    indivduos e, do ponto de vista terico, da mesma forma como concebida a ao em relao

    poltica, manifestao inerente condio humana (ARENDT, 2008, p. 79) na medida

    em que demonstra resguardar o germe do seu contrrio correspondente: a possibilidade de

    divergncia dos governados.

    Para Celso Lafer, quando Arendt traz suas reflexes sobre o consentimento para a

    formao da comunidade poltica, o faz buscando demonstrar que a constituio uma

    conveno, em que a contingncia uma virtude, pois a verdade da lei repousa no consenso

    geral da comunidade. (LAFER, 2009, p. 225) As leis positivas, por conseqncia, erigem a

    fronteira necessria entre os indivduos, preservando-os em suas liberdades para agir em meio

    pluralidade do ordenamento poltico.

    6 importante notar que Thoreau (1968, p. 14), ao escrever seu ensaio poltico sobre a desobedincia civil em

    1848, desloca a ateno de sua reflexo muito mais para o problema da conscincia individual dos cidados que

    se submetem autoridade de um governo. Embora seja sugerida uma forma de interferncia com possibilidade

    reflexos no campo poltico, deve-se observar que, sob o enfoque da fundamentao e dos objetivos da

    desobedincia civil, orientam a manifestao, respectivamente, o julgamento moral do indivduo e sua

    conscincia. Para Thoreau, negar apoio ao Estado pela desobedincia da lei (ainda que isso faa de forma isolada

    e no acarrete as desejadas mudanas nas polticas tidas como inquas) a maneira pela qual o indivduo pode

    encontrar para agir de acordo com seus prprios princpios numa situao em que a injustia institucionalizada.

  • Os sistemas legais, calcados fundamentalmente em promessas, so projetados para

    estabilizar as relaes humanas. As manifestaes de desobedincia civil representariam, na

    modernidade, a crescente eroso da autoridade constituda, acompanhada pelo esclarecimento

    dos contestadores quanto ao seu papel fundamental na poltica.

    O Direito (ou pelo menos deveria ser) permeado por valores necessariamente

    ligados aos processos histricos que acompanharam a formao de uma dada comunidade e

    suas normas, que dotadas de um fundamento, prescrevem deveres dentro da comunidade

    adequando-se realidade histrica que buscam ordenar.7

    A assombrosa velocidade com que ocorrem mudanas nas comunidades, por sua vez,

    fator que condiciona, invariavelmente, o surgimento de focos de insatisfao no seio da

    comunidade, mormente quando demonstra do que o aparato legal se depara com severas

    dificuldades na sua tentativa de adequar suas prescries realidade concreta da

    comunidade.8

    No raro, inmeras expectativas que, examinadas sob a tica dos princpios

    fundamentais adotados, so legtimas, no encontram o devido amparo na legislao vigente.

    A conseqncia a atuao dos governados na busca das modificaes desejadas, como

    demonstram, por exemplo, os inmeros avanos alcanados no campo da legislao

    trabalhista por todo o mundo no incio do sculo XX, aps longos perodos de disputa

    poltica.

    O conflito entre as noes de legalidade e legitimidade se agrega a esse contexto. As

    normas, despidas de um contedo normativo fundamental (que, ento, no se pode afirmar

    sejam fruto do consenso humano), so apenas formalmente jurdicas.

    Conforme Arendt, a explcita manifestao do pacto original como fonte de

    obrigaes polticas que exige o consenso, pressupe tambm a conscincia dos cidados

    quanto sua imanente possibilidade de dissentir.

    Todo contrato (e as promessas so constituintes de alguma espcie de contrato),

    estabelecido mediante certas condies originais estabelecidas, cuja inobservncia rompe a

    7 Na mesma linha, Eugen Ehrlich (1986), considerado um dos pais-fundadores da sociologia do direito, vai

    afirmar que a interpretao do direito deve ser sempre feita com os olhos do presente para que os mortos no

    governem os vivos, estabelecendo uma crtica lei como letra morta que est sempre referida ao passado e que

    pode ser vivificada a partir de uma interpretao consoante com os valores presentes no contexto histrico em

    que vivem os intrpretes e destinatrios do direito. Essa crtica ehrlichiana aponta para as limitaes da Escola

    Histrica e estabelece o fundamento realista (preocupado com a realidade social) da sociologia do direito.

    8 Para Ehrlich, austraco que em seu contexto alm de questionar o historicismo jurdico alemo preocupava-se

    tambm com o avano do positivismo jurdico kelseniano, o direito codificado no acompanha as mudanas

    sociais e o direito produzido na prpria prtica social (direito vivo), percebendo (e definindo) o direito como

    cultura jurdica produzida (e reproduzida) na comunidade. (SOUZA; SANTOS, 2012)

  • reciprocidade inerente que caracteriza tal experincia e garante a previsibilidade no domnio

    tanto poltico quanto social das relaes humanas9. Eis um dos possveis limites obedincia

    dos governados.

    Segundo Arendt, na Constitutio Libertatis norte-americana (1988, p. 113), o

    consenso e a possibilidade de dissentir representavam os princpios bsicos da ao poltica,

    que encontraram sua principal expresso na atuao das associaes voluntrias ps-

    revoluo.

    Destacando a importncia desses ncleos de associao para a vida poltica, Arendt

    afirma que h enorme identidade entre a situao poltica norte-americana e os movimentos

    de desobedincia civil, ao asseverar que os contestadores civis no so mais que a derradeira

    forma e associao voluntria, e que deste modo eles esto afinados com as mais antigas

    tradies do pas. (2008, p. 85)

    Da a interpretao da desobedincia civil como fenmeno poltico vinculado aos

    conceitos de ao e poder, e crescente conscincia acerca da insuficincia do Direito para

    ordenar toda a complexa trama que acompanha a vida em comunidade. Para Arendt, a

    desobedincia civil se manifesta quando a sociedade civil ou chega concluso de que as

    mudanas reivindicadas no sero alcanadas pelos processos polticos normais, ou se

    defronta com aes do governo constitudo cuja legalidade e constitucionalidade esto

    expostas a graves dvidas. (2008, p. 68)

    No que concerne ao e o poder, Lafer salienta que a percepo quanto ao liame

    existente entre as associaes voluntrias e a desobedincia civil paradigmtica.

    Conscientemente manejada e, mais a fundo, amparada por um fundamento poltico, a

    desobedincia civil apenas funciona se vrias pessoas concordarem com um curso comum de

    ao. (LAFER, 2009, p. 232)

    Percebe-se nesse ponto, portanto, a razo pela qual a distino dos conceitos de

    conscincia moral e ao poltica possuem importncia fundamental no pensamento de

    Arendt, pois, no na conscincia individual e numa filosofia da subjetividade que se

    fundamenta a desobedincia civil. (LAFER, 2009, p. 231)

    9 Em Ehrlich tambm h essa possibilidade de rompimento do pacto social mnimo da sociedade com o estado

    (constituio), devolvendo sociedade a primazia sobre o estado (e o direito), que fora perdida com o avano do

    positivismo jurdico de matriz kelseniana-weberiana, que identifica o direito de uma sociedade com o direito

    estatal, confundindo legitimidade (social) com legalidade (formal). Para Ehrlich (1986), a sociedade anterior ao

    estado (grafado em minsculo para restabelecimento da isonomia dos contratantes) e no pode perder as rdeas

    da produo do direito.

  • Percebe-se a vinculao entre a ao enquanto experincia que necessariamente se

    realiza em meio pluralidade de indivduos, e a associao voluntria, como a maneira pela

    qual os contestadores, agindo em concerto, almejam promover as mudanas nas polticas

    pblicas existentes.

    Ademais, a desobedincia civil, enquanto manifestao caracterstica das

    manifestaes de poder, dotada de sentido pelo discurso que a ampara e humaniza, enquanto

    argumentao poltica que , caracterizada pelo potencial transformador inerente ao do ser

    humano que age, no-violenta.

    Segundo Lafer, trata-se de um fenmeno que tem como fundamento a possibilidade

    de dissentir, elemento essencial do consentimento consciente para a criao do espao

    pblico onde ocorre a interao humana, que deriva da aptido humana para agir em

    conjunto, graas qual se gera poder, inclusive fora dos quadros institucionais vigentes.

    (2009, p. 233)

    Pois o poder, como fenmeno distinto daqueles que so expressos pelas palavras

    vigor, fora, autoridade e violncia (ARENDT, 2009, p. 59), a capacidade de agir

    concertadamente. Essa noo permeia a concepo contratualista horizontal do Estado, de

    onde se concebe que o poder da autoridade , consensualmente, estabelecido pelos

    governados.

    Segundo Arendt, nesse sentido, poder e violncia seriam de tal maneira opostos que,

    "onde um domina absolutamente, o outro est ausente" (2009, p. 73-74), pois o poder surge

    naturalmente onde os homens agem concertadamente, ao passo que a violncia, dependendo

    da "atomizao social" (2009, p. 72) e da eliminao da possibilidade de agir conjunto,

    representa a desagregao do campo poltico.

    A desobedincia civil, como ao conjunta, traria consigo a possibilidade de

    transformar por ser produto do poder que se erige nas relaes empreendidas pelos homens,

    como contrrio da violncia, que decorre da arbitrariedade e elimina a possibilidade de ao

    movida pelo consenso.

    Portanto, a desobedincia civil, no pensamento de Arendt, se comporta como uma

    manifestao que, dentro do contexto da pluralidade que caracteriza a poltica (pautando-se

    sempre pelos princpios que fundamentam o pacto constitucional), traz no seu ntimo a

    possibilidade de resgatar a faculdade de agir e, desta maneira, como resistncia legtima

    degenerescncia da lei que corri uma comunidade poltica, impedindo a gramtica da ao e

    a sintaxe do poder. (LAFER, 2009, p. 234)

  • Demonstrando o engajamento poltico do cidado consubstanciado na plena ao

    transitando entre consentir e divergir (que somente existem, de fato, na presena um do

    outro), com vistas s determinaes do pacto fundamental elaborado para a instituio da

    comunidade, a desobedincia civil, sendo a expresso de um empenho poltico, no a

    rejeio da obrigao poltica, mas a sua reafirmao. (LAFER, 2009, p. 234)

    Para Lafer, ainda, a elaborao de Arendt parece adequada a uma aplicao concreta,

    pois parte da concepo de que a cidadania um dado que deve ser construdo de fato, pelo

    acesso ao espao pblico e o vnculo de cidadania. (2009, p. 235)

    Portanto, possvel associar a concepo de um Estado estruturado por princpios

    fundamentais previstos numa Constituio a uma compreenso de participao ativa que,

    articulada sobre as bases do consenso, busque por meio da constante insero do indivduo no

    campo poltico a construo de uma sociedade que proporcione melhores condies de vida

    para todos.

    A desobedincia civil, embasada nos valores fundamentais da comunidade, no

    somente representa a crena nesses princpios (cuja funo dotar o ordenamento de

    paradigmas valorativos), como revela a profundidade da fidelidade dos contestadores ao

    ordenamento.

    Mas a desobedincia civil como ao no prescinde de fundamentao por princpios

    estruturantes do sistema poltico, derivados do processo de formao da comunidade poltica

    pelo consenso, assim como capital a sua concepo como experincia resultante da

    interao no espao poltico (e, portanto, da essncia do prprio homem enquanto ser

    humano) que transcende as limitaes impostas pela representatividade poltica caracterstica

    do pensamento ocidental.

    Essa dualidade, englobando tanto a existncia de um corpo poltico fundamentado

    em princpios, quanto a manuteno de um status de cidadania (limitado pelas promessas e

    pelas leis positivas, nos conformes da noo de liberdade negativa), permite a insero e

    compreenso da desobedincia civil como manifestao legtima no mbito poltico.

    Por consequncia, da prpria legitimidade da norma jurdica de que se cuida, sob a

    perspectiva da apreenso daqueles ideais sociais consensualmente partilhados, cujo contedo

    valorativo dotado da funo de estruturar o ordenamento jurdico-poltico.

    A desobedincia civil como ao concertada, amparada nos valores fundamentais da

    sociedade, enquanto ncleo de onde emana o poder para a transformao, proporciona o

    resgate da vida poltica do indivduo por meio da participao direta e efetiva na definio e

    na adequao das normas da comunidade.

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