A Comida Baiana-Celina Abbade

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A COMIDA BAIANA DE JORGE AMADO REVELANDO O LÉXICO AFRICANO Celina Márcia de Souza Abbade (PPGEL-UNEB-UAB/UCSAL) RESUMO: Diversos aspectos da cultura de um povo podem ser revelados a partir de um levantamento lexical. Sem dúvida, a culinária desse povo pode trazer muitas contribuições acerca da sua história. Tomando-se como base um levantamento culinário de um livro de cozinha retirado da literatura brasileira, A Comida Baiana de Jorge Amado ou O Livro de Cozinha de Pedro Archanjo com as Merendas de Dona Flor (COSTA, 1994), tentar-se-á demonstrar o quanto o povo africano deixou as suas marcas na cultura baiana a partir de seus hábitos alimentares. PALAVRAS-CHAVE: Léxico. Culinária. África. Jorge Amado. Dendê. APRESENTAÇÃO A história de um povo sempre revela a história de sua formação linguística. Em outras palavras, podemos dizer que as questões políticas, econômicas e sociais que envolvem o surgimento de um povo, irão delinear o seu caminho linguístico. A língua é o seu mais fiel retrato social e cultural. Sabemos de onde é uma pessoa no momento em que ela começa a falar. E essa mesma língua que distingue as nações, distingue também condições sociais, culturais, regionais... Mesmo existindo uma unidade linguística, há diversidade nessa unidade no momento em que a língua é realizada nas mais divergentes situações, lugares ou épocas. A língua de uma nação é uma mistura de substratos e superstratos diversos. A língua oficial da nossa nação é o português que herdamos dos europeus e que se sobrepôs aos falares autóctones. A língua portuguesa é uma língua românica, herdada de uma civilização de enorme prestígio cultural, a civilização europeia, e que, como tal, tem o privilegio de conhecer a sua origem. Sabemos que o português é oriundo de um latim que foi falado e expandido a partir de um dos maiores impérios que a humanidade já conheceu: o Império Romano. Foi o povo romano que expandiu esse latim para além das fronteiras europeias, passando por diversas regiões até chegar ao Brasil, através dos portugueses, povos anteriormente romanizados. Sua formação se deve a inúmeros traços linguísticos deixados

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A relação entre gastronomia e literatura

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  • A COMIDA BAIANA DE JORGE AMADO REVELANDO O LXICO AFRICANO

    Celina Mrcia de Souza Abbade (PPGEL-UNEB-UAB/UCSAL)

    RESUMO: Diversos aspectos da cultura de um povo podem ser revelados a partir de um levantamento lexical. Sem dvida, a culinria desse povo pode trazer muitas contribuies acerca da sua histria. Tomando-se como base um levantamento culinrio de um livro de cozinha retirado da literatura brasileira, A Comida Baiana de Jorge Amado ou O Livro de Cozinha de Pedro Archanjo com as Merendas de Dona Flor (COSTA, 1994), tentar-se- demonstrar o quanto o povo africano deixou as suas marcas na cultura baiana a partir de seus hbitos alimentares.

    PALAVRAS-CHAVE: Lxico. Culinria. frica. Jorge Amado. Dend.

    APRESENTAO

    A histria de um povo sempre revela a histria de sua formao

    lingustica. Em outras palavras, podemos dizer que as questes polticas,

    econmicas e sociais que envolvem o surgimento de um povo, iro delinear

    o seu caminho lingustico. A lngua o seu mais fiel retrato social e cultural.

    Sabemos de onde uma pessoa no momento em que ela comea a falar. E

    essa mesma lngua que distingue as naes, distingue tambm condies

    sociais, culturais, regionais... Mesmo existindo uma unidade lingustica, h

    diversidade nessa unidade no momento em que a lngua realizada nas

    mais divergentes situaes, lugares ou pocas.

    A lngua de uma nao uma mistura de substratos e superstratos

    diversos. A lngua oficial da nossa nao o portugus que herdamos dos

    europeus e que se sobreps aos falares autctones. A lngua portuguesa

    uma lngua romnica, herdada de uma civilizao de enorme prestgio

    cultural, a civilizao europeia, e que, como tal, tem o privilegio de conhecer

    a sua origem. Sabemos que o portugus oriundo de um latim que foi falado

    e expandido a partir de um dos maiores imprios que a humanidade j

    conheceu: o Imprio Romano. Foi o povo romano que expandiu esse latim

    para alm das fronteiras europeias, passando por diversas regies at

    chegar ao Brasil, atravs dos portugueses, povos anteriormente

    romanizados. Sua formao se deve a inmeros traos lingusticos deixados

  • por um latim ibrico que se formou por volta de dois sculos a.C. quando os

    romanos desembarcaram na Pennsula Ibrica e conquistaram essa regio.

    A Pennsula foi invadida por questes polticas e constituiu um dos episdios

    da Segunda Guerra Pnica. A romanizao na Pennsula Ibrica durou

    quase 200 anos, teve incio em 218 a.C. e s terminou em 19 a.C. no

    governo de Augusto. Com a conquista da Pennsula Ibrica, o latim, que era

    a lngua dos romanos, foi adotado por quase totalidade dos povos que

    habitavam a Pennsula, com exceo dos vascos que habitavam o norte da

    pennsula e no aceitaram o latim como lngua, continuando a falar a sua

    prpria lngua. Na Pennsula Ibrica, o portugus foi se formando juntamente

    com outras lnguas originadas do latim hispnico: galego, castelhano,

    catalo etc. O sculo XVI foi o marco das investidas martimas em busca de

    novas terras. Na Amrica, portugueses e espanhis, principalmente,

    iniciavam suas conquistas com interesses polticos e econmicos. Mais uma

    vez a lngua e a cultura desses povos penetravam nas regies invadidas

    assim como os romanos haviam feito na Europa.

    Em 1500 a histria nos conta que desembarcaram em uma parte da

    Amrica, portugueses para catequizarem os habitantes de uma terra que

    passaria por diversos nomes at se chamar Brasil. E a lngua portuguesa

    comeou a se expandir a partir da atual Bahia, local onde os portugueses

    primeiramente desembarcaram. Salvador, em 1549, tornou-se a primeira

    capital brasileira. Todas as influncias lingusticas que chegaram a nossas

    terras naquela poca passaram pela capital baiana.

    Os autctones, chamados de indgenas, que aqui j se encontravam,

    tiveram a sua cultura e lngua exterminadas em funo da lngua do povo

    vencedor. No fosse a imposio portuguesa, talvez o rumo da nossa lngua

    verncula tivesse sido o de uma das lnguas indgenas. Colocadas

    margem, as lnguas indgenas que sobreviveram, ficaram restritas s

    pequenas comunidades espalhadas pela nao e continuam nessa situao

    at os dias atuais.

    Da frica subsaariana, a partir do sculo XVI, foram transplantados

    para o Brasil ao longo de quatro sculos, mais de quatro milhes de

    africanos. Em trs sculos, uma mdia de quatro a cinco milhes de falantes

    africanos atravessaram o Atlntico nas piores condies possveis para

  • habitarem o nosso pas, e servirem como escravos de Nova Terra. Mas

    mesmo escravizado, esse povo trouxe em sua bagagem a sua lngua,

    cultura e histria. Do sculo XVI ao XIX, os escravos foram deixando seus

    estratos lingusticos na lngua portuguesa, lngua de cultura das terras

    brasileiras. E, se no sculo XVI, os descendentes de origem africana

    somavam vinte por cento da populao, no sculo XIX j atingiam a marca

    dos cinquenta e sete por cento, se tornando o povo predominante. Mas esse

    predomnio era apenas populacional porque o poder econmico e poltico

    permaneceriam nas mos dos quarenta e um por cento dos europeus que

    outrora aqui se instalaram.

    Dessa maneira, vai-se formando um vernculo prprio e divergente do

    portugus europeu. O portugus que falamos hoje, no mais a lngua

    romnica que chegou de Portugal. Inmeros fatores contriburam para essa

    variao e mudana lingustica, at porque o portugus falado em Portugal

    atualmente, tambm no mais o que chegou aqui no sculo XVI. Mas, sem

    adentrar nos fatores que geram as divergncias lingusticas, o portugus

    falado no Brasil repleto de distines. Em cada pedacinho brasileiro, o

    portugus adquire caractersticas especificas e traos regionais que fazem

    dessa nossa lngua uma diversidade constante, inserida em uma unidade

    milenar.

    No Brasil, o portugus se miscigenou com diversas outras lnguas, e

    se expandiu por inmeras regies, deixando traos especficos e distintos

    em cada uma delas. Esses traos e distines vm sendo estudados pelos

    cientistas da lngua que percorrem diversas perspectivas para entender e

    explicar essas variaes, assim como os traos conservadores da mesma.

    A Bahia no deveria ser diferente das outras regies, mas parece que

    o falar baiano tem uma ginga prpria. Nas terras em que Tom de Souza

    governou, o negro no deixou morrer as suas razes. O povo que se forma

    nessa regio parece que j nasce com uma baianidade nag, banta, iorub

    etc. As razes dos negros africanos, presente na Bahia em cada trao

    cultural, se mostram de forma marcante na lngua desse povo, pois os

    imigrantes que aqui chegaram, trouxeram e deixaram seus traos

    lingusticos que se expressam de forma marcante no lxico.

  • Dos indgenas, povos autctones, os baianos no herdaram apenas o

    banho dirio ou a dormida nas redes. A toponmia baiana est repleta de

    traos indgenas, e o acervo lexical, que chegou lngua portuguesa por

    nossos nativos, muito vasto. Mas isso assunto para outro momento.

    Dos negros, povos que vieram da frica e chegaram aqui j

    escravizados, a Bahia herdou suas crenas, suas comidas, suas danas,

    suas lutas, seu gingado, sua garra, tornando o negro da capital baiana,

    maioria de um povo que se formou dessa mestiagem.

    Nessa mistura lingustica, a lngua portuguesa da Bahia se torna uma

    lngua exclusiva e prpria de um povo, que como a sua lngua, no sabe

    exatamente a sua origem devido a uma grande mistura de povos e raas.

    Mas, mesmo sem entender, o povo vai utilizando a lngua do jeito que vai

    aprendendo, acrescentando uma mudana aqui, uma variao acol. Nas

    palavras do professor Coseriu (1979; p. 78), podemos confirmar esse fato:

    E o ouvinte adota o que no sabe, o que o satisfaz esteticamente, o que lhe

    convm socialmente ou o que lhe serve funcionalmente. A adoo , por

    isso, um ato de cultura, de gosto e de inteligncia prtica.

    Podemos estudar a lngua sob diversas nuances e para descrever os

    traos lingusticos baianos, poderamos partir de diversos aspectos A

    vertente escolhida aqui a dos estudos lexicais. O estudo do lxico de uma

    lngua nos remete sempre ao conhecimento da histria de quem a utiliza.

    Diversos aspectos da cultura de um povo podem ser levantados a partir de

    um estudo lexical.

    Sem dvida, a culinria de um povo pode trazer muitas contribuies

    acerca da sua histria. Um estudo lexical da culinria brasileira, mais

    precisamente, baiana, nos leva de imediato, pelo menos aos trs povos

    responsveis pela nossa miscigenao. A culinria brasileira nada mais do

    que a prova de uma mistura que, desde a Idade Mdia com a chegada dos

    portugueses, mistura mandioca dos indgenas, os manjares portugueses e

    as comidas de dend africanas. Tomando-se como base um levantamento

    culinrio de um livro da literatura brasileira, tentar-se- demonstrar o quanto

    o povo africano deixou as suas marcas na cultura baiana a partir de seus

    hbitos alimentares. O corpus de amostragem ser composto das lexias que

    designam os pratos das comidas de dend encontrados em A Comida

  • Baiana de Jorge Amado ou O Livro de Cozinha de Pedro Archanjo com as

    Merendas de Dona Flor (COSTA, 1994), um livro de receitas retirado da

    literatura amadiana. A partir do mesmo, mostrar-se-o algumas lexias de

    origem africana existentes na cozinha baiana deixando evidente a influncia

    africana nessa cultura a partir de seus hbitos e costumes alimentares.

    OS ESTUDOS LEXICAIS

    A linguagem faz parte da histria do homem e esse fato inegvel e

    incontestvel. Essa linguagem pode ser expressa por palavras e essas

    palavras iro constituir o sistema lexical de uma lngua e,

    consequentemente, de um povo. Assim, estudar o lxico de uma lngua

    estudar tambm a histria do povo que a fala.

    O estudo lexical de uma lngua diz muito sobre o povo que a fala. As

    mudanas no lxico esto sempre relacionadas s mudanas polticas e

    culturais de quem utiliza essas lexias. Sabemos que o latim, desde quando

    comeou a ser utilizado como lngua de cultura, j era falado juntamente

    com inmeras outras lnguas, e desde a sua expanso na Romnia vem

    sofrendo influncias e interferncias chegando ao ponto de hoje o prprio

    latim deixar de se chamar latim para multiplicar-se em inmeras outras

    lnguas. Hoje latim pode ser portugus, italiano, francs, espanhol, sardo etc.

    vai depender da regio em que esteja sendo falado. Inmeros povos

    influenciaram e deixaram substratos e superstratos no latim enquanto ele se

    expandia. No sculo XV e, sobretudo desde o sculo XVI, o lxico romnico

    vai experimentar uma nova expanso que est relacionada com os

    descobrimentos, atravs dos quais Portugal e Espanha se convertem em

    potncias martimas.

    Estudar o lxico de uma lngua abrir possibilidades de conhecer a

    histria social do povo que a utiliza a partir do seu vocabulrio. A Lexicologia

    enquanto cincia do lxico estuda as diversas relaes deste lxico com os

    outros sistemas da lngua, e, sobretudo a relaes internas do prprio lxico.

    Apesar de a Lexicologia ser uma cincia recente, os estudos acerca das

    palavras remontam a Antiguidade Clssica. Sem o lugar merecido, os

    estudos lexicais permaneceram em segundo plano durante um bom tempo

    da histria lingustica. Quase nada se fazia com as palavras de uma lngua

  • alm de organiz-las alfabeticamente e buscar suas definies a partir de

    sua literatura.

    Dentro dos estudos lexicais existe a teoria os campos lingusticos que

    tem como um de seus precursores, Jost Trier (1931). Trier vai estudar as

    palavras visando ao setor conceitual do entendimento, mostrando que elas

    constituem um conjunto estruturado em que uma est sob a dependncia

    das outras. Assim, as palavras se unem como numa cadeia, e a mudana

    em um conceito acarreta modificao nos conceitos vizinhos e assim por

    diante. Nesse sentido, as palavras formam um campo lingustico atravs de

    um campo conceitual e exprimem uma viso do mundo de acordo com a

    reconstituio que elas possibilitam. A teoria proposta por Trier, possibilita

    outro terico, L. Weisgerber, a inclu-la em uma ampla teoria lingustica e,

    nessa teoria, surge o conceito de campo lingustico que abarca tanto os

    campos lxicos, quanto os campos sintticos. Assim, desses campos

    lingusticos, surgem os campos lexicais e os campos semnticos.

    Os campos lexicais representam uma estrutura, um todo articulado,

    onde h uma relao de coordenao e hierarquia articuladas entre as

    palavras que so organizadas maneira de um mosaico: o campo lxico. As

    palavras so organizadas em um campo com mtua dependncia,

    adquirindo uma determinao conceitual a partir da estrutura do todo. O

    significado de cada palavra vai depender do significado de suas vizinhas

    conceituais, elas s tm sentido como parte de um todo, pois s no campo

    tero significao. Assim, para entender a lexia individualmente necessrio

    observ-la no seu conjunto de campo, pois fora desse conjunto no pode

    existir uma significao, uma vez que a mesma s existe nesse conjunto e

    em sua razo, formando-se assim uma estrutura de campos lexicais.

    O estudo estrutural das lexias necessita da anlise da lngua funcional

    entendida como lngua enquanto sistema, ou seja, uma lngua at certo

    ponto unitria dentro de uma lngua histrica e no aquilo que se refere a

    uma lngua histrica tomada em seu conjunto que geralmente compreende

    uma srie de lnguas funcionais que s vezes so bastante diferentes. As

    unidades funcionais de uma lngua devem estabelecer-se ali onde

    funcionaram, e mediante as oposies em que funcionam. Ora, o

    funcionamento de uma lngua difere muitas vezes de sua histria. Logo, toda

  • descrio estrutural de uma lngua histrica, deve ser realizada em cada

    uma das lnguas funcionais que ela abarque. A lngua funcional, suas

    unidades e estruturas, devem identificar-se no plano funcional do sistema da

    lngua, pois, tanto o estudo da norma, como o tipo de lngua, supe o plano

    como j conhecido.

    Vale lembrar que a linguagem livre e sua mudana to inevitvel

    quanto a mudana do ser humano. Mudamos a lngua porque ela viva, e,

    tudo que est vivo, est passvel de modificaes. Uma lngua s deixa de

    se modificar quando ela deixa de ser falada. Nada casual, mas a mudana

    inevitvel. Citando Engenio Coseriu (1979; p.175-176), podemos concluir

    que: A mudana lingustica tem, efetivamente, uma causa eficiente, que a

    liberdade lingustica, e uma razo universal, que a finalidade expressiva (e

    comunicativa) dos falantes.

    A COMIDA BAIANA DE JORGE AMADO OU O LIVRO DE COZINHA DE

    PEDRO ARCHANJO COM AS MERENDAS DE DONA FLOR

    Em 1987 resolvi estudar a obra do meu pai, o escritor Jorge Amado, para fazer um livro de cozinha. Fiz a leitura de seus romances em ordem cronolgica para sentir a evoluo da presena e da importncia da comida e da bebida nos seus livros. Dei-me conta que o material muito mais rico do que imaginava e que valeria pena identificar no somente os pratos da culinria baiana, mas tudo que se come e bebe, seja vatap, acaraj, jaca, cachaa, champanhe, seja terra, rato, gente. (COSTA, 1994)

    Assim nasce A Comida Baiana de Jorge Amado ou O Livro de

    Cozinha de Pedro Archanjo com as Merendas de Dona Flor. Pedro Archanjo

    e Dona Flor, so personagens de romances de Jorge Amado. Foi Pedro

    Archanjo quem inspirou Paloma Amado a organizar esse livro de receitas.

    Manual de Culinria Baiana o ttulo dado por Pedro Archanjo, personagem

    de Tenda dos Milagres (AMADO, 1969) a seu livro de cozinha. Nas

    palavras de Paloma Amado:

    Pedro Archanjo um ob de Xang, Oju Ob cheio de conhecimento e sabedoria. Conhece o povo mestio da Bahia como a palma de sua mo, seus hbitos, sua cultura. Atravs de Archanjo pode-se ter a noo exata da delicadeza e da fora, da simplicidade e da sofisticao desta culinria que tambm fruto da miscigenao, que junta o dend africano mandioca do ndio e ao azeite de oliva portugus. (COSTA, 1994, p. xxv)

  • Dona Flor a personagem central de Dona Flor e seus dois

    Maridos (AMADO, 1966) que, do ponto de vista alimentar, tambm um

    livro de cozinha baiana. Utilizando novamente as palavras de Paloma

    Amado, pode dizer-se desse romance que:

    Alm de dar receitas todas corretas e factveis mostra o jeito de comer da Bahia; explica os carurus de Cosme e Damio; ensina o que servir num velrio; explica como fazer uma grande merenda tarde Em Dona Flor e seus dois Maridos se encontra uma relao das comidas de candombl, com os pratos preferidos de cada

    santo e as quesilas o que os santos e seus filhos no podem comer e s vezes nem pronunciar o nome. (COSTA, 1994, p. xxiv,xxv).

    Aps fazer o levantamento de todo o material, Paloma Amado afirma

    ter, inicialmente, cado na tentao de fazer um estudo sobre a alimentao

    atravs de um ponto de vista antropolgico ou sociolgico, mas resiste e faz

    a opo pelo livro de cozinha, devido ao grande nmero de material

    encontrado. Divide esse material por temas e resolve fazer vrios livros.

    Esse o primeiro deles e divide-se em duas partes: a primeira, O Livro de

    Cozinha de Pedro Archanjo, refere-se aos pratos utilizados nos almoos e

    jantares baianos. Na segunda, com As Merendas de Dona Flor, lembra os

    pratos no apenas servidos entre as refeies principais, mas que compem

    os cafs da manh e os jantares baianos. A Comida Baiana de Jorge Amado

    dividida em vrias partes alm das duas principais. Comea com uma

    introduo onde se faz um histrico do surgimento e utilizao da comida

    baiana nos romances de Jorge Amado. Segue com O Livro de Cozinha de

    Pedro Archanjo dividido em onze captulos: (Dos Tira-Gostos (p.3), Dos

    Grandes Pratos da Comida de Azeite (p.31), Das Frigideiras (p.57), Das

    Moquecas (p.75), Da Rampa do Mercado (p.95), Das Aves (p.113), Do Mar e

    do Rio (p.135), Dos Assados de Carne (p.151), Das Carnes-Secas (p.165),

    Das Caas de Tio Abduim (p.179), Dos Doces (p.189). Em seguida, As

    Merendas de Dona Flor se divide em cinco partes: De Beiju e Cuscuz

    (p.221), Dos Bolos (p.233), Dos Mingaus (p.253), De Legumes e Frutas

    (p.267), Dos Biscoitinhos e de Outras Coisas (p.279). O livro termina com os

    ndices de Receitas, Livros e Personagens; de Pratos e Ingredientes e de

    Pessoas e Restaurantes Citados.

  • Escolheu-se aqui fazer um levantamento apenas das lexias que

    designam os alimentos feitos a base do dend, principal ingrediente da

    culinria africana que se inseriu de tal forma da culinria baiana que dend

    lembra a Bahia.

    O CAMPO LEXICAL DAS COMIDAS DE DEND

    O dend o fruto de uma palmeira, do qual se extrai um leo de

    colorao vermelha. O dendezeiro Elaeais guineensis Jaquim uma

    palmeira originria da costa oriental da frica (Golfo da Guin), sendo

    encontrada em diversas regies desde o Senegal at Angola. O azeite de

    dend chegou ao continente americano no perodo do trfico de escravos

    entre frica e Brasil, mas consumido h mais de 5.000 anos.

    Atualmente o azeite de dend o leo mais produzido e consumido

    no mundo e o Brasil possui o maior potencial mundial para a produo do

    leo de dend, dado aos quase 75 milhes de hectares de terras aptas

    dendeicultura. A Bahia participa com aproximadamente 900.000 deste total,

    sendo o nico estado do nordeste brasileiro com condies climticas

    adequadas na faixa costeira para o plantio do dendezeiro.

    Por se tratar de uma iguaria que participa dos ritos sagrados de matriz

    afro-brasileira, o dend ultrapassa as cozinhas baianas para adentrar nas

    cozinhas dos terreiros de candombl como oferenda aos deuses. Apenas

    Oxal, por castigo dos deuses, no pode desfrutar das delcias do azeite de

    dend.

    Desde 1930 em O pas do Carnaval, Jorge Amado alimenta seus

    personagens. Inicialmente com as comidas sertanejas (cacau, carne seca,

    feijo, farinha...), mas, j em Jubiab, a comida baiana feita para

    homenagear o santo e cumprir as obrigaes do candombl, faz com que os

    pratos de dend comecem a colorir as pginas de seus livros.

    Partindo desse ingrediente to caracterstico da culinria baiana,

    seguem as lexias que designam as comidas de azeite nas obras do

    baianssimo Jorge Amado.

  • O CAMPO LEXICAL DAS COMIDAS DE DEND EM A COMIDA BAIANA

    DE JORGE AMADO

    Tira-Gostos

    ACARAJ s.m. Bolinho de feijo fradinho, temperado com cebola e sal e frito no azeite de dend e cebola. Obras: O pas do carnaval; Cacau; Suor; Jubiab; Gabriela, cravo e canela; A morte de Quincas Berro d gua; Os pastores da noite; Dona Flor e seus dois maridos; Tenda dos milagres; Tereza Batista cansada de guerra; O sumio da santa. ACARAJ DE FEIJO BRANCO- exp. O mesmo acaraj, s que feito com o feijo branco. Obra: Cacau ABAR- s.f. Bolinho de feijo fradinho, temperado com cebola, sal, azeite de dend, cebola e camaro seco, cozido envolto em folha de bananeira. Obras: O pas do carnaval; Jubiab; Gabriela, cravo e canela; A morte e a morte de Quincas Berro d gua; Os pastores da noite; Dona Flor e seus dois maridos; Tenda dos milagres; Tereza Batista cansada de guerra; O sumio da santa.

    Grandes Pratos

    VATAP- s.m. Mistura feita de po picado embebido em leite de coco para amolecer temperado com cebolas e colocado no ao fogo no azeite de dend refogado com cebola e camaro seco passado no liquidificador. Junte a essa mistura uma outra tambm batida no liquidificador de amendoim e castanha com leite de coco, acrescentando gengibre ralado e caldo de peixe e leite de coco. Mexe sempre e ao final refoga com um pouco do azeite de dend. Obras: Os subterrneos da liberdade; Gabriela, cravo e canela; Dona Flor e seus dois maridos; Tenda dos milagres; Tereza Batista cansada de guerra; Farda, fardo, camisola de dormir; O sumio da santa. CARURU- s.m. Chamado de amal no candombl uma iguaria base de quiabo e cozida ao fogo, temperada com cebola, sal, gengibre, castanha-de-caju, amendoim, camaro seco e azeite de dend, mexendo-se sempre at engrossar um pouco e mudar de cor. Obras: Gabriela, cravo e canela; Os pastores da noite; Dona Flor e seus dois maridos; Tenda dos milagres; Tereza Batista cansada de guerra; Farda, fardo, camisola de dormir; Tocaia Grande; O sumio da santa. CARURU DE FOLHA- Exp. A mesma iguaria caruru, substituindo o quiabo por folhas de quiabo, taioba e lngua-de-vaca. Obras: Dona Flor e seus dois maridos. EF- s.m. Espcie de caruru, feito com folhas de taioba, lngua-de-vaca, espinafre ou bertalha.

  • Obras: Gabriela, cravo e canela; Dona Flor e seus dois maridos; Tenda dos milagres; Tereza Batista cansada de guerra; Farda, fardo, camisola de dormir; O sumio da santa. QUITAND- s.m. Tida como comida rara uma iguaria a base de feijo fradinho, temperado com camaro seco, amendoim, cebola, alho e coentro, juntados ao azeite de dend e levados ao fogo para ser mexido at dar o ponto. Obras: Tereza Batista cansada de guerra; O sumio da santa. FAROFA DE DEND- Exp. Farofa feita com farinha misturada ao azeite de dend, cebola, sal e camaro seco. Deve ser mexida com colher de par para que o azeite seja absorvido por igual. Obra: Tenda dos milagres. MOLHO DE PIMENTA PARA COMIDA DE AZEITE- Exp. Pimentas malaguetas e de cheiro machucadas em um pilo, acrescidas camaro seco torrado, refogadas no azeite de dend e temperadas com sal. Obras: Suor; Gabriela, cravo e canela; Dona Flor e seus dois maridos; O sumio da santa. Moquecas ARRAIA- Guisado feito com arraias frescas em postas, lavadas com limo e temperadas com limo, tomate, cebola, pimento, alho, coentro, refogados no azeite de oliva e de dend e levadas ao fogo baixo para cozinhar. Ao final do cozimento, coloca-se leite de coco grosso regado com azeite de dend. Servido com arroz, farofa de dend e molho de pimenta. Obras: A morte de Quincas Berro d gua; Tenda dos milagres; O sumio da santa. ARATU- Guisado feito com aratu catado, lavado com limo e temperado com tomate, cebola, coentro, pimenta-de-cheiro e alho batidos no liquidificador, acrescidos de sal e refogados no azeite de oliva , cozinhando com a panela destampada para reduzir o caldo. Ao final do cozimento, coloca-se leite de coco grosso regado com azeite de dend. Serve em folhas de bananeiras passadas rapidamente ao fogo. Obras: Suor; Dona Flor e seus dois maridos; O sumio da santa. OSTRA- Guisado feito com ostras temperadas com tomate, cebola, coentro, pimenta-de-cheiro e alho batidos no liquidificador, acrescidos de sal e refogados no azeite de oliva, cozinhando com a panela destampada para reduzir o caldo. Ao final do cozimento, coloca-se leite de coco grosso regado com azeite de dend. Serve em folhas de bananeiras passadas rapidamente ao fogo. Obra: O sumio da santa. CAMARO - Guisado feito com camares lavados com limo e temperados com limo, tomate, cebola, pimento, alho, sal, pimentas-de-cheiro,

  • refogados no azeite de oliva e de dend e levadas ao fogo baixo para cozinhar. Ao final do cozimento, coloca-se leite de coco grosso regado com azeite de dend. Obras: Dona Flor e seus dois maridos; Os pastores da noite; O sumio da santa. PEIXE- Guisado feito com peixe lavado com limo e temperados com limo, tomate, cebola, pimento, alho, sal, refogados no azeite de oliva e de dend e levadas ao fogo baixo para cozinhar. Ao final do cozimento, coloca-se leite de coco grosso regado com azeite de dend. Servido com arroz branco e farofa de dend; acompanha bem um vatap. Obras: So Jorge dos Ilhus; Seara vermelha; Gabriela, cravo e canela; A morte de Quincas Berro d gua; Os pastores da noite; Dona Flor e seus dois maridos; Tenda dos milagres; Tereza Batista cansada de guerra; Tieta do Agreste; Tocaia Grande; O sumio da santa. FOLHA- Guisado feito com o peixe assado e enrolado em folhas de bananeiras. Temperado com tomate, cebola, coentro, cebolinha, pimenta-de-cheiro e sumo de limes e disposto em uma assadeira, recheado e envolto em uma farofa de azeite-de-dend e farinha de mandioca, embrulhado com folhas de bananeiras amarradas com um cordo para ser levado ao forno por uns 40 minutos. Obras: Tenda dos Milagres (segundo receita de Nazar Costa). SIRI-MOLE- Guisado feito com siri-mole sem casca, lavado com limo e temperados com limo, tomate, cebola, pimento, alho, e coentro, sal, refogados no azeite de oliva e de dend e levadas ao fogo baixo para cozinhar. Ao final do cozimento, coloca-se leite de coco grosso regado com azeite de dend. Obras: Dona Flor e seus dois maridos; Tenda dos milagres; Tereza Batista cansada de guerra; O sumio da santa. Frituras PEIXE FRITO NO DEND- Peixe frito, lavado no limo, temperado no alho, sal e sumo de limo, passado na farinha de mandioca e colocado em uma frigideira com azeite de dend para ser frito. Obras: Mar Morto; Dona Flor e seus dois maridos; Tenda dos milagres; O sumio da santa.

    CONSIDERAES FINAIS

    O acervo lexical de uma lngua vai-se formando com o tempo e de

    acordo com a sua histria. Negar a identidade lingustica africana na

    formao da lngua portuguesa no Brasil negar as nossas origens e razes.

    Se politicamente o portugus durante o processo de colonizao de nossas

  • terras foi superior ao negro, lingusticamente essa situao inexiste. A

    contribuio lingustica de matriz africana, embora ainda insatisfatoriamente

    estudada, inegvel. E na culinria, nenhum ingrediente representa melhor

    a cultura africana do que o dend, leo que se faz presente em quase todas

    as cozinhas baianas, seja nas mesas do dia-a-dia, seja nos rituais religiosos

    de matriz africana.

    REFERNCIAS

    COSTA, Paloma Jorge Amado. A Comida Baiana de Jorge Amado ou O Livro de Cozinha de Pedro Archanjo com as Merendas de Dona Flor, So Paulo, Maltese, 1994. FERRO, J. 1996. Arqueologia dos Hbitos Alimentares, Lisboa, Dom Quixote. AMADO, Jorge. Tenda dos Milagres. So Paulo: Martins, 1969. (Coleo Obra de Jorge Amado, Vol. 18). AMADO, Jorge. Dona Flor e seus dois Maridos. So Paulo: Martins, 1966. (Coleo Obra de Jorge Amado, Vol. 17).