A Cola e outros contos para ler na escola

30
Antonio Fais A Cola e outros contos para ler na escola

description

Contos de Antonio Fais

Transcript of A Cola e outros contos para ler na escola

Page 1: A Cola e outros contos para ler na escola

Antonio Fais

A Cola

e outros contos para ler na escola

Page 2: A Cola e outros contos para ler na escola

Copyright © by Antonio Fais

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra

pode ser utilizada, desde que sejam levados em conta os

direitos dos autores.

Antonio Fais

A Cola e outros contos para ler na escola.

São Carlos :AF Editores. 2006.

1. Literatura Brasileira. 2. Ciências humanas.

3. Autor. I. Título. CDD - 869

AF Editores

Telefone: (16) 9782-6955

[email protected]

São Carlos - SP

2012

Page 3: A Cola e outros contos para ler na escola

3

Índice

O Problema do Rei ............................................ 5

A Cola ................................................................ 9

Piruá ................................................................ 13

Pau-Brazil ........................................................ 15

O Juízo de Papai Noel ..................................... 17

Heróis .............................................................. 21

A Bola .............................................................. 25

Page 4: A Cola e outros contos para ler na escola

4

Page 5: A Cola e outros contos para ler na escola

5

O Problema do Rei

Era uma vez, há muito e muito tempo, um reino onde

todos eram felizes. É, devia ser a muito tempo mesmo,

mas deixa pra lá. Felizes? Bem, não era bem assim. Eles

viviam em paz, não havia disputas, não havia mais

guerras. Pra falar a verdade, era um reino muito chato,

pois, sem guerras, não havia muito o que fazer. Vale

lembrar que, como essa é uma história antiga, não havia

TV, onde se vê as querelas dos outros, videogame,

computador, e nem poderia, pois não havia sequer

energia elétrica.

Enfim, para quebrar a monotonia o Rei criou um

concurso: quem inventasse a melhor maneira dele se

distrair, receberia até metade de sua fortuna! É, parece

que valia a pena pôr a cabeça para pensar, pois diziam

que ele era muito rico. Mas de pouco lhe valia esse

dinheiro ou mesmo o prêmio, pois só apareciam

palhaços, jogos bobos e um montão de coisas chatas.

Um dia, porém, apareceu um jovem com um jogo com

pedras pretas e brancas, com cavalos, torres, reis,

bispos, rainhas e peões em um tabuleiro xadrez. Parecia

interessante, mas o nome era meio esquisito e longo:

Campo Hermético de Batalhas Pacíficas! Tentaram

outros, como Preto x Branco, mas foi recusado, pois não

parecia politicamente correto; Gladiadores ou Batalha

Page 6: A Cola e outros contos para ler na escola

6

Mortal, mas fazia apologia à violência. Bem, como

sempre, o nome que pegou foi o da vontade do povo:

xadrez. Houve, de início, alguns protestos,

principalmente do clero, que em tudo sempre viu

sacanagem, pois acharam meio esquisito o cavalo comer

bispo, bispo comer rainha. Mas, depois de muita

explicação, foi permitido, apenas o Rei conseguiu que ele

não pudesse ser comido, substituído por um xeque-mate.

Bem, nem o rei, nem os súditos daquele reino eram

muito inteligentes, o que garantiu um bom tempo de

comida e estadia grátis para o jovem inventor. Até que

enfim aprenderam a jogar. Não foi fácil, mas aprenderam.

O rei, fascinado pelo jogo e contente com suas grandes

vitórias conquistadas, é bem verdade que algumas

facilitadas pelo mestre e os súditos, porque, saibam, rei é

rei, e sempre será rei, finalmente resolveu dar a

recompensa ao jovem inventor.

Apesar de rei ser rei e sempre manter sua palavra, ao

menos nos contos, fazia isso com dor no coração, pois

não queria se apartar de sua fortuna. Dirigindo-se ao

jovem em audiência pública:

Achei interessante tua invenção. Creio que tu mereças

uma recompensa. – Meio que desdenhando do feito do

rapaz, para diminuir seu prêmio.

Que bom que Vossa Majestade tenha gostado. Soube

que havia prometido até metade de sua fortuna real por

algo que o distraísse – disse o jovem ardiloso, ciente

do pesar do monarca.

Page 7: A Cola e outros contos para ler na escola

7

Não é bem assim! Não é bem assim, meu jovem. Teria

de ser algo realmente inusitado....

Mas, adianto Majestade, não quero metade de vossa

fortuna real – Interrompeu ao Rei o rapaz.

Vejo que tens senso de justiça, meu jovem. Quanto

queres então?

Venho, Vossa Majestade, de um lugar pobre, onde há

fome, muita fome. Quero, portanto, o meu pagamento

em grãos de trigo.

Grãos de trigo? Recomendo-te que recebas em ouro e

aí comprarás todo o trigo de que necessitam.

Com todo respeito, insisto Majestade, quero apenas

trigo.

Se é assim que queres, assim será, jovem tolo.

Quantas toneladas de trigo tu hás de querer?

Quero que Vossa Majestade ponha um grão de trigo na

primeira casa do tabuleiro, dobre e ponha dois grãos

na segunda casa e, assim por diante, dobrando

sempre, quatro na terceira, oito na quarta, até as

sessenta e quatro casas do tabuleiro.

Assim será meu jovem. Eu, o Rei, ordeno que se

cumpra e amanhã ser-te-á entregue tua recompensa.

O Rei nessa noite dormiu aliviado por ter feito um grande

negócio e não ter perdido metade de sua fortuna, mas,

também com uma certa angústia da injustiça, pensou até

em dar uma recompensa extra ao jovem rapaz.

Page 8: A Cola e outros contos para ler na escola

8

No dia seguinte, foi acordado logo cedo por seus

serviçais que, desesperados, não sabiam o que fazer: a

noite toda trabalhando, pouco tinham passado do meio

do tabuleiro, mas não havia mais onde estocar trigo e,

cada nova casa, o negócio dobrava.

Chamem meus matemáticos! - Ordenou o rei.

Já o fizemos, Majestade. E eles disseram que mesmo

que plantássemos trigo por toda terra vista e ainda por

ser descoberta, não haveria grãos suficientes para

pagar o jovem rapaz!

Pelo que vocês viram o Rei entrou em uma fria. Só de

curiosidade, supondo que três grãos de trigo pesem um

grama, com a produção mundial de trigo de 2004, ou

seja, 574 milhões de toneladas, calcule quantos anos

seriam necessários para pagar a dívida do Rei. Faça as

contas e não se assuste. Ah. Uma tonelada de trigo, no

atacado, custa cerca de R$ 500!

Como será que o Rei resolveu este problema?

Page 9: A Cola e outros contos para ler na escola

9

A Cola

(ou Como Se Tornar Um Bom Aluno)

De modo desastroso, chegava ao fim aquele que

tinha sido, até então, o pior ano de minha vida: a

quinta série. Nos anos anteriores, eu sempre estava

entre os melhores alunos da classe, os professores

me elogiavam, mas agora não, nada me entrava na

cabeça, havia emburrecido de vez e era o fim, eu ia

repetir o ano e não tinha a menor idéia de como

explicar isso à minha mãe.

As provas iam começar no dia seguinte. A primeira

era do seu Argemiro – Português. E eu precisava

tirar dez. Dez em Português. Sabe o que é isso?

Em sua última aula antes da prova, ele pergunta:

Vocês têm alguma dúvida?

E eu, que nunca abrira a boca em sala, de modo

meio agressivo, falei:

Todas!

Como assim? – Insiste na pergunta, com um ar

meio cínico, que me encorajava a enfrentá-lo.

Eu não sei nada. Acho que não vou nem fazer

mais as provas. Vou começar tudo de novo no

ano que vem.

Page 10: A Cola e outros contos para ler na escola

10

Ele, rindo, como soubesse o que eu estava

passando, disse:

Eu também já tive essas dificuldades para

aprender e tirar nota nas provas.

E como o senhor fazia?

Simples: eu colava! – Falando alto, de modo a

acordar até o Washington que sempre dormia em

sua aula.

Nesse momento, só o que se ouvia na classe era

um burburinho geral. Levou alguns minutos até que

ele pudesse continuar:

E é isso que vou fazer com vocês: podem colar

em minha prova.

Ainda entre o barulho que não parava, perguntei:

Como assim?

Vocês vão poder fazer colas. Mas têm umas regras:

cortem um papel de 15 por 10 centímetros; a

primeira coisa a pôr, é o seu nome completo; só

poder ser preenchido à mão; escrevam nele o que

vocês quiserem; e, finalmente, ele só poderá ser

consultado duas vezes durante a prova: quem

quiser usá-lo, deve me avisar antes de fazer a

consulta. Combinado?

Combinado! – Concordamos todos, ou ao menos

a maioria, já que parecia um bom negócio para

quem simplesmente ia repetir o ano.

Page 11: A Cola e outros contos para ler na escola

11

Eu me lembro bem, até hoje, da confecção de

minha cola e da dificuldade em convencer minha

mãe que o professor tinha autorizado. Primeiro

escrevi meu nome, bem pequeno, para sobrar

espaço e espremer lá toda a matéria. Em seguida

fui pondo as regras de acentuação: “proparoxítonas

todas; oxítonas em AEO, paroxítonas PS: UM XURI

NÃO dá LÃ, hiatos... Diferenciais: pólo, pára, pôr,

pêra, pêlo...” e assim por diante. De tão pequena a

letra, sobrou espaço no papel.

No dia da prova, fiquei pensando qual seria a

melhor hora de pedir para colar, afinal só poderia

fazê-lo duas vezes. Não foi necessário. Eu havia

decorado tudo. Tirei dez! Todo mundo foi bem,

menos os que não haviam feito a cola.

Sugerimos ao professor de História que nos

deixasse fazer assim também, mas ele, além de

não permitir, contou ao Diretor sobre péssimo

exemplo do professor Argemiro, que, se bem me

lembro, foi advertido e não mais integrou o quadro

de professores no ano seguinte (Vale aqui um

parêntese: no auge do governo militar não

sabíamos como protestar contra tamanha injustiça.

Essa lição, infelizmente, só me veio bem mais

tarde). Voltando aos fatos:

Embora não pudesse, fiz uma cola, no mesmo

tamanho e tudo, para a prova de História: “Atenas:

oligarquia 621ac código Drácon. Fortuna

Page 12: A Cola e outros contos para ler na escola

12

concentrada cidadãos metecos escravos. Sólon

594ac classes Bulé Eclésia. Pisístrato tirania.

Clístenes Péricles demos ostracismo...” e um novo

dez. E para as provas de Matemática... E

Ciências... E Francês... Relia a cola antes de

começar a prova e novamente dez. Na prova de

geografia precisei fazer uma consulta à cola durante

a prova e, por incrível que pareça, foi a única que

não tirei dez: tinha pulado uma página do livro que

faltou na cola. Desse ano em diante, só passei

colando.

Page 13: A Cola e outros contos para ler na escola

13

Piruá

Sei de gente que não gosta de comer feijão, tomate ou

carne. Até batata! Como pode alguém não gostar de

batata?! No entanto, nunca ouvi falar de alguém que não

gostasse de pipoca.

Pipoca seria uma das coisas mais perfeitas do mundo,

não fosse aquela pelinha que fica nos dentes. Ninguém

dá nada por aqueles grãozinhos dos sabugos de milho

que não se desenvolveram adequadamente. Quem diria

que aqueles grãos têm tanta energia acumulada para,

com um pouco de calor, virar pipoca - branca, bonita,

gostosa!

Comer pipoca é uma delicia! Mas não aquela do cinema,

de microondas, com sabor de pizza (quando quero sabor

de pizza, como pizza!), ou com catchup por cima. Falo

daquela feita na panela, quentinha; bem simples e

barata.

É fácil fazer uma boa pipoca: basta uma panela, com

tampa; milho; óleo bem quente e uma bacia reservada.

Em alguns minutos... Como é gostoso ouvir aquele

estourinho... Até ele diminuir, diminuir... Sal? Sal é posto

depois, a gosto.

Aí a gente come tudo! Só sobram uns piruás - que são

mais, ou menos, dependendo do pipoqueiro.

Page 14: A Cola e outros contos para ler na escola

14

Como grãos de milho, tentando virar pipoca, são os

adolescentes. Cheios de energia acumulada e

disposição, prontos para explodir e se tornar algo belo.

Meu espanto é com a quantidade de piruá que vemos

pelo mundo, atendendo nas lojas, bares e telefones;

projetando e construindo casas; julgando e defendendo

pessoas; em seus consultórios, escritórios e salas aula.

Por que será que não viraram aquela pipoca bonita e

gostosa?

Alguns vão dizer que o milho não era bom.

Concordo...Em parte. Mas a grande responsabilidade é

mesmo dos pipoqueiros: pais; professores; editores de

jornal, televisão, Internet; chefes, presidentes etc. Ou

seja, eu e você que está lendo, já que creio que nenhum

adolescente tenha paciência para ler o que escrevo.

Na maior parte das vezes não escolhemos a panela e a

tampa certas; não usamos óleo suficiente, ou colocamos

demais; não temos paciência para esperar a quentura, ou

queremos que a pipoca fique pronta muito depressa; não

reservamos um recipiente apropriado para o que esta por

vir. Tem ainda os que querem sofisticar demais a pipoca,

com temperos, molhos e gostos.

Pipoca, apesar de simples, é uma arte – requer talento e

paixão.

Portanto, capriche! Todos gostamos muito de comer

pipoca. E deixe que depois a gente coloca o sal, cada

qual ao seu gosto.

Page 15: A Cola e outros contos para ler na escola

15

Pau-Brazil

Lembro-me, de ouvir falar, dos Réis. Contos de Réis!

Ainda acho bonito e engraçado quando escuto que algo

custa cinco conto, conto mesmo, pois ninguém usava no

plural. Conto de Réis.

Ao longo de minha vida passei por desastrosos planos

econômicos e várias trocas de moedas. Vivi o tempo do

Cruzeiro; Cruzeiro Novo; Cruzeiro, de novo; Cruzado;

Cruzado Novo; Cruzeiro, de novo; Cruzeiro Real; e Real,

de novo - porque Réis era apenas o plural de Real.

Estou convencido de que o que têm atrapalhado todos

esses planos são estes nomes sem sentido que dão à

nossa moeda. Algo tão importante não pode ser assim

escolhido, ao acaso; tem que ter uma razão, um nome

forte, com significado histórico e, ao mesmo tempo,

simples e de fácil aceitação: Pau-Brasil é o nome ideal ou

Pau-Brazil, para não haver problemas no exterior.

A primeira grande vantagem é que já estamos

acostumados e usamos esta moeda no dia-a-dia: um

lanche, por exemplo, que custa cinco reais (R$ 5,00),

custaria cinco Paus-Brazil (P$ 5,00) ou, popularmente

falando, cinco Pau!

Nas transações do dia-a-dia, percebam que perderia o

sentido aquela enorme quantidade de zeros, pois tudo

Page 16: A Cola e outros contos para ler na escola

16

custaria entre 1 e 999 pau. Uma calça custa cem Pau e

um carro trinta Pau, ficando os zeros implícitos, sendo

tudo muito mais simples, além de desestimular a inflação.

O governo poderia apelar para o orgulho nacional e o

povo iria corresponder. Quando os economistas viessem

a público dizendo que deveríamos fazer sacrifícios para

que o Pau suba, certamente toda população iria

colaborar. Quando dissessem que teríamos que manter a

alta do Pau em relação ao dólar, não haveria dúvidas que

o Pau deveria sempre estar forte. Talvez apenas perca a

coerência a expressão “tô duro” pra quando se está sem

dinheiro, “tô mole” parece mais adequado!

Mesmo os humoristas teriam o seu quinhão com alguns

trocadilhos infames com expressões como “com quantos

paus se faz uma canoa”, “pau pra toda obra”, “baixar o

pau”; além dos inimagináveis apelidos que poderiam ser

dados às notas, moedas, carteiras e porta-moedas!

Quando pensava como deveriam se chamar os centavos,

lembrei-me de um amigo de faculdade extremamente

criativo para nomes e apelidos, o Sívio Yamada, e ele me

inspirou: os centavos seriam chamados de Japa. Assim

um cafezinho custaria um Pau e cinqüenta Japa. Bem,

agora deixo pela imaginação de cada um as figuras que

apareceriam nas notas e moedas.

Page 17: A Cola e outros contos para ler na escola

17

O Juízo de Papai Noel

Aconteceu, como um dia acontece a todo mundo, de

morrer Papai Noel.

Julgou-se, de início, pelos seus atos aqui na Terra, que

seria prontamente acolhido por Deus, pois, de certo,

Satanás não havia de querer tal indivíduo perambulando

pelo Inferno dando exemplos de bondade e consideração

para com os outros.

Assim sendo, senso comum, ele se dirigiu prontamente

ao Céu, devendo ser apenas um ato formal Deus pedir

para que Lúcifer fosse avisado da chegada de mais uma

alma ao Paraíso. Este, ou algum assessor menor,

deveria apenas carimbar “RECUSADO” no prontuário do

defunto.

Se bem ainda não sabem, mas um dia saberão, funciona

mais ou menos assim: cada indivíduo, ou alma, se

preferirem, dirige-se para onde julga ser merecedor. A

outra parte, Deus ou o Diabo, é comunicada e, caso ache

justo ser de seus domínios tal alma, faz reclamá-la. Vale

ressaltar que a concorrência é acirrada. Caso não haja

consenso e não havendo acordo na Junta de

Conciliação, o indivíduo pode: (1) ir para o Purgatório,

onde entra em uma longa fila de espera até que seu caso

seja julgado e, com todos os recursos que têm direito as

Page 18: A Cola e outros contos para ler na escola

18

partes, leva uma eternidade; (2) voltar à vida afim de que

seja reavaliada sua situação. Neste caso pode voltar em

(A) mesma situação que saiu; (B) situação pior – para se

recuperar; (C) situação melhor – para ver como se

comporta com o que aprendeu em vidas anteriores; não

se tendo claro um consenso sobre qual das situações,

entre 2B e 2C, é pior; (3) ir para o Limbo, sendo que este

último pode ser de duas espécies: (A) em um lugar que

não se sabe ao certo onde é, não podendo assim se

fazer uma melhor avaliação da pena; e (B) na própria

Terra, onde a alma, em corpo físico, em forma humana,

perambula entre os demais, nunca apresentando

progressos no trabalho e demais situações cotidianas.

Dizem, inclusive, que mais da metade dos viventes (mais

da metade!), se assim os podemos chamar, é composta

por almas condenadas em 3B.

Fato é que o Demo reclamou para si o Bom Velhinho e,

quando chamado a dar seus motivos, falando direto com

Deus, pois tal alma não poderia ser julgada por

assessores de menor importância, perguntou-lhe o mais

alto regente:

Por que Vossa Senhoria acha que esta alma deve ir

para o Inferno? – Pergunta Deus, convicto de sua

vitória.

Para ser breve, pois, embora habitemos a eternidade,

o nosso tempo é curto, explico: o Bom Velhinho, Santa

Claus, Papai Noel, Pai Natal, São Nicolau, como o

chamam na Terra, o tempo todo foi um mau exemplo à

Page 19: A Cola e outros contos para ler na escola

19

humanidade (falava isso apontando para o velhinho,

presente, ali sentado que, espantado, sentindo-se

culpado, nada entendia). O Natal foi inventado, lá pelo

ano 300 após o nascimento de nosso tão adorado

Jesus (não se sabe se aqui havia ironia ou era sincero

o seu tom), pela instituição que mais usa seu nome em

vão. Usurparam dos povos nórdicos a data que

comemorava o fim da mais longa noite do ano e o

início da vitória do dia sobre a noite, 25 de dezembro, e

Papai Noel, com uma mentira (pois todos sabem que

Ele nunca poderia ter nascido nesta data) e muitos

presentes, ajudou a consolidar a festa de natal. Eu

poderia ainda falar muito mais, de pecados maiores e

menores, da sua ligação com as forças capitalistas,

maus tratos às renas, exploração de Duendes, a

tentativa de iludir crianças, do estimulo à corrupção de

menores que trocam o bom comportamento puro por

presentes etc. etc. e tal. Mas vou só me ater a esses

graves pecados iniciais, pois não haveria inferno

suficiente para tantos pecados – concluiu o Demo,

arfando inflamado.

Pensativo, Deus, que não suporta perder almas, pediu:

Sei, sei! Realmente, olhando de seu ponto de vista o

caso é grave. Entenda, porém, Vossa Senhoria, que

estamos julgando uma instituição e sonhos, não uma

simples alma igual a todas as outras. Neste sentido,

apesar de não lhe tirar a razão, queria gentilmente

pedir-lhe para que considerasse mandar,

Page 20: A Cola e outros contos para ler na escola

20

provisoriamente, o Bom Velhinho, de volta à Terra, de

tal sorte que ele possa reparar os seus erros.

E como Vossa Senhoria acha que ele deveria voltar

para expiar esses graves pecados? E, principalmente,

onde? Pois não há de voltar em um lugar qualquer. –

concluiu o Diabo com um ar de satisfação.

Deus novamente se fez pensativo e, com um certo

sorriso malicioso, de quem sabia minimizar derrotas, sem

muitas escolhas, sugeriu:

O lugar é fácil: o Brazil. Lá ele terá bastante trabalho e

oportunidades de se recuperar. Quanto ao seu papel,

vamos deixá-lo crescer, sem nossa interferência, para

ver o que acontece.

Eu topo! – falou o Demo, sabendo que a posse da

alma seria agora apenas uma questão de tempo.

Apertaram-se as mãos e foram cuidar das tantas outras

almas que por lá chegam todos os dias.

Page 21: A Cola e outros contos para ler na escola

21

Heróis

Aos doze anos, o que mais quer um garoto é se tornar

um herói. No meu caso, em 71, não precisava ser um

grande herói nacional ou qualquer coisa do tipo, até

porque nessa época (do Brasil – Ame-o ou Deixe-o / Pra

frente Brasil!) quem se atrevesse contestar o governo era

subversivo. Bastava, portanto, ser um pequeno herói, do

time da escola, por exemplo. O futebol nacional, depois

da copa de 70, estava cheio de heróis e na escola o

craque era o Nandinho, um baixinho cabeludo, que

marcava um monte de gols por partida. Todas as

meninas gritavam o nome dele.

Eu também queria jogar futebol, mas o professor de

Educação Física, sei lá por que, achou que eu devia

jogar basquete. Ali eu não teria muita chance de ser

aclamado pelas meninas. Éramos dez jogadores, o seu

David dizia que não havia reservas, todos eram titulares,

mas, obviamente, havia os titulares que jogavam e os

que ficavam no banco. Eu era titular do banco.

Nós éramos do time do Instituto e faríamos a final dos

Jogos Colegiais contra a Industrial. Tínhamos perdido

deles na primeira fase de 22 a 12! E agora era a final.

Aqueles meninos eram grandes, pouco provável que

tivessem só doze anos, mas jogo é jogo e íamos jogar.

Bem, eu, que era titular do banco, não tinha entrado em

Page 22: A Cola e outros contos para ler na escola

22

nenhuma partida, ia torcer um pouco mais de perto que o

resto do colégio.

Também não éramos mais dez, pois o Zezinho e o

Paulinho, que jogaram na primeira derrota nem

apareceram para a final. O seu David fez seu habitual

discurso antes do jogo para, ganhando ou perdendo,

jogarmos limpo e para nos lembrarmos das jogadas

ensaiadas. O problema era que os adversários também

se lembravam das poucas jogadas que tínhamos.

O primeiro tempo foi um massacre: 16 a 4 para eles.

Restava-nos, portanto, o lema do Barão de Coubertin -

não gostava desse cara, queria mesmo ganhar! E como

nessa idade não temos muitos limites e senso crítico, eu

achava que ainda era possível!

No segundo tempo, a partida melhorou muito para gente:

sem muito mais a perder, jogamos bem melhor. Com

dois jogadores com cinco faltas, o único que continuava

no banco era eu. Faltava pouco mais de um minuto e

estava 27 a 22 para eles, a partida estava decidida e o

seu David resolveu me dar uma chance de jogar um

pouco.

Eu dei sorte, logo que entrei peguei uma bola no garrafão

e arremessei e diminuí para três pontos a diferença. Já

me senti aí um herói, pois havia feito meus primeiros

pontos como jogador de basquete e ouvia todos gritarem

meu nome. Para mim, nada mais precisava acontecer.

Eles deram a saída e ficaram controlando a bola, até que

perto do 30 segundos arremessaram e erraram, eu

Page 23: A Cola e outros contos para ler na escola

23

recebi a bola e corri com toda a velocidade à frente,

nunca tive tanto medo, era só eu e a cesta, não havia um

adversário sequer para eu justificar o meu erro, fui quase

chorando em direção a ela, arremessei, a bola bateu no

aro e caiu fora; ainda consegui pegar o rebote e passei

para o Paulão, que, bem alto, embaixo da cesta, fez mais

dois pontos. Vinte segundos! 27 a 26! Ainda gritavam o

meu nome, mas só um milagre poderia nos salvar. Eles

tinham vinte segundos para bater bola, mas um jogador

do time deles, para acabar logo o jogo e consagrar sua

vitória, arremessou e errou. O seu David pediu tempo.

Faltavam agora poucos segundos. O plano era o

seguinte: o Paulão, um molengão, mas com mais de um

e oitenta, ia pra perto do garrafão, a gente passava a

bola pra ele e ele arremessava. Perfeito!

Deram a saída e a bola veio à minha mão. Eu quase no

meio da quadra e todos gritavam: “Passa pro Paulão. Pro

Paulão”. O Paulão perto da cesta, a cesta, a bola em

minha mão, a torcida, o Paulão, a bola, a cesta, ... Cinco,

quatro, três, dois, um... Joguei a bola e ouvi o juiz apitar o

final. Ela ia lentamente em direção à cesta, bateu no aro,

subiu, bateu de novo e rodou, rodou... Parecia uma

eternidade, não se ouvia um som, só a bola rodando, até

que, chorando, ela entrou: 28 a 27!

A gente gritava e pulava. Todos gritavam o meu nome!

Todos gritavam o meu nome...

Page 24: A Cola e outros contos para ler na escola

24

Bem, como disse logo no começo, todos querem um dia

ser herói. Não tenho plena certeza que foi assim que se

deu, mas é assim que sempre vou me lembrar.

Page 25: A Cola e outros contos para ler na escola

25

A Bola

Aos sete anos, Tonico ganhou do pai um par de chuteiras

e uma bola de capotão. Afinal, já era hora do garoto

gostar de futebol. Sem saber como começar, sentou-se

no chão e se pôs a contar da vida de moleque do interior,

de peões e bolas de gude, pipas e peladas, do timinho

que “tinha até jogo de camisa” e do sonho de jogar em

um time grande, falou da passagem pelo juvenil do XV de

Piracicaba: ficara no banco de reservas num jogo contra

o Santos de Pelé! Tonico não parecia entender a

importância do jogo.

Mudou de tática: foi ao gol e pediu para o menino chutar

umas bolas, mas ele não tinha muita coordenação.

Tentou ainda dar umas explicações de como posicionar o

pé de apoio, da terminação do chute - não houve jeito.

A surpresa foi quando, aos 10 anos, Tonico entrou em

casa afobado procurando pela bola. O pai, feliz, saiu logo

atrás e presenciou a cena do filho sendo aclamado ao

entrar em campo. E, de longe, viu o fraco desempenho

do filho com a bola nos pés, mas a sua determinação em

não mais jogar no gol: “Se tiver que jogar no gol, vou

embora... com minha bola”. Ele e a bola ficaram.

A bola foi logo substituída por outra e outras em cada

natal ou aniversário.

Page 26: A Cola e outros contos para ler na escola

26

No colégio, sem a sua bola, era diferente e Tonico ficou

de fora do time da 5ª A. Mas ele queria jogar e jogou...

pela 5ª E – isso depois de negociar com o professor e até

o diretor da escola. Mas o que pareceria alegria, trouxe

alguns problemas: a 5ª E bateu a 5ª A, sua classe, por 6

x 0, com dois gols seus. Quase apanhou na saída. A

pendenga só foi resolvida quando convenceu uns amigos

do colegial a “interferir”... em troca de uma bola novinha.

O pai foi assistir a final. Torcia, gritava:

Vai! Chuta! Volta! Isso! Não!

Foi um desastre. Perderam feio. Entreolharam-se no final

do jogo e nunca mais falaram de futebol.

O pai, aqui ou ali, ouvia dizer que o menino jogava bem,

mas nada dizia.

A única vez que pensou novamente em interferir na vida

do filho foi quando soube que Tonico, durante o cursinho,

disputava o campeonato amador da cidade. Achava que

o menino deveria estudar e não perder tempo com

“aquela bobagem”. Mas, como se prometera, nada disse.

Quando Tonico disse ao pai que haviam sido campeões,

ouviu:

E o vestibular? Quando é?

A resposta veio em março:

Pai, entrei em Agronomia na ESALQ de Piracicaba.

USP! Parabéns. – disse, guardando a emoção.

A grande surpresa veio meses depois, quando o pai

recebe uma ligação de um velho amigo de futebol:

Page 27: A Cola e outros contos para ler na escola

27

Tonhão, vem pra Pira hoje. O XV joga com o Santos e

o Tonico vai jogar. Lembra? XV e Santos...

Tinha que parar com aquilo e foi. Torcia quieto. Iria

embora sem anunciar sua presença em campo. Foi um

belo jogo: o XV ganhou e Tonico fez um dos gols.

Não resistiu e desceu ao vestiário. Lá, olha pro Tonico

sem saber o que dizer e ouve:

Pai, fica com a camisa do XV. Quero estudar. Futebol,

daqui pra frente, vai ser só pra diversão.

E o pai, em um longo abraço, diz:

Filho, o que você decidir tá bem decidido. Vou pôr junto

àquelas chuteiras. Obrigado.

Page 28: A Cola e outros contos para ler na escola

28

Page 29: A Cola e outros contos para ler na escola

29