A Cola e outros contos para ler na escola
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Transcript of A Cola e outros contos para ler na escola
Antonio Fais
A Cola
e outros contos para ler na escola
Copyright © by Antonio Fais
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra
pode ser utilizada, desde que sejam levados em conta os
direitos dos autores.
Antonio Fais
A Cola e outros contos para ler na escola.
São Carlos :AF Editores. 2006.
1. Literatura Brasileira. 2. Ciências humanas.
3. Autor. I. Título. CDD - 869
AF Editores
Telefone: (16) 9782-6955
São Carlos - SP
2012
3
Índice
O Problema do Rei ............................................ 5
A Cola ................................................................ 9
Piruá ................................................................ 13
Pau-Brazil ........................................................ 15
O Juízo de Papai Noel ..................................... 17
Heróis .............................................................. 21
A Bola .............................................................. 25
4
5
O Problema do Rei
Era uma vez, há muito e muito tempo, um reino onde
todos eram felizes. É, devia ser a muito tempo mesmo,
mas deixa pra lá. Felizes? Bem, não era bem assim. Eles
viviam em paz, não havia disputas, não havia mais
guerras. Pra falar a verdade, era um reino muito chato,
pois, sem guerras, não havia muito o que fazer. Vale
lembrar que, como essa é uma história antiga, não havia
TV, onde se vê as querelas dos outros, videogame,
computador, e nem poderia, pois não havia sequer
energia elétrica.
Enfim, para quebrar a monotonia o Rei criou um
concurso: quem inventasse a melhor maneira dele se
distrair, receberia até metade de sua fortuna! É, parece
que valia a pena pôr a cabeça para pensar, pois diziam
que ele era muito rico. Mas de pouco lhe valia esse
dinheiro ou mesmo o prêmio, pois só apareciam
palhaços, jogos bobos e um montão de coisas chatas.
Um dia, porém, apareceu um jovem com um jogo com
pedras pretas e brancas, com cavalos, torres, reis,
bispos, rainhas e peões em um tabuleiro xadrez. Parecia
interessante, mas o nome era meio esquisito e longo:
Campo Hermético de Batalhas Pacíficas! Tentaram
outros, como Preto x Branco, mas foi recusado, pois não
parecia politicamente correto; Gladiadores ou Batalha
6
Mortal, mas fazia apologia à violência. Bem, como
sempre, o nome que pegou foi o da vontade do povo:
xadrez. Houve, de início, alguns protestos,
principalmente do clero, que em tudo sempre viu
sacanagem, pois acharam meio esquisito o cavalo comer
bispo, bispo comer rainha. Mas, depois de muita
explicação, foi permitido, apenas o Rei conseguiu que ele
não pudesse ser comido, substituído por um xeque-mate.
Bem, nem o rei, nem os súditos daquele reino eram
muito inteligentes, o que garantiu um bom tempo de
comida e estadia grátis para o jovem inventor. Até que
enfim aprenderam a jogar. Não foi fácil, mas aprenderam.
O rei, fascinado pelo jogo e contente com suas grandes
vitórias conquistadas, é bem verdade que algumas
facilitadas pelo mestre e os súditos, porque, saibam, rei é
rei, e sempre será rei, finalmente resolveu dar a
recompensa ao jovem inventor.
Apesar de rei ser rei e sempre manter sua palavra, ao
menos nos contos, fazia isso com dor no coração, pois
não queria se apartar de sua fortuna. Dirigindo-se ao
jovem em audiência pública:
Achei interessante tua invenção. Creio que tu mereças
uma recompensa. – Meio que desdenhando do feito do
rapaz, para diminuir seu prêmio.
Que bom que Vossa Majestade tenha gostado. Soube
que havia prometido até metade de sua fortuna real por
algo que o distraísse – disse o jovem ardiloso, ciente
do pesar do monarca.
7
Não é bem assim! Não é bem assim, meu jovem. Teria
de ser algo realmente inusitado....
Mas, adianto Majestade, não quero metade de vossa
fortuna real – Interrompeu ao Rei o rapaz.
Vejo que tens senso de justiça, meu jovem. Quanto
queres então?
Venho, Vossa Majestade, de um lugar pobre, onde há
fome, muita fome. Quero, portanto, o meu pagamento
em grãos de trigo.
Grãos de trigo? Recomendo-te que recebas em ouro e
aí comprarás todo o trigo de que necessitam.
Com todo respeito, insisto Majestade, quero apenas
trigo.
Se é assim que queres, assim será, jovem tolo.
Quantas toneladas de trigo tu hás de querer?
Quero que Vossa Majestade ponha um grão de trigo na
primeira casa do tabuleiro, dobre e ponha dois grãos
na segunda casa e, assim por diante, dobrando
sempre, quatro na terceira, oito na quarta, até as
sessenta e quatro casas do tabuleiro.
Assim será meu jovem. Eu, o Rei, ordeno que se
cumpra e amanhã ser-te-á entregue tua recompensa.
O Rei nessa noite dormiu aliviado por ter feito um grande
negócio e não ter perdido metade de sua fortuna, mas,
também com uma certa angústia da injustiça, pensou até
em dar uma recompensa extra ao jovem rapaz.
8
No dia seguinte, foi acordado logo cedo por seus
serviçais que, desesperados, não sabiam o que fazer: a
noite toda trabalhando, pouco tinham passado do meio
do tabuleiro, mas não havia mais onde estocar trigo e,
cada nova casa, o negócio dobrava.
Chamem meus matemáticos! - Ordenou o rei.
Já o fizemos, Majestade. E eles disseram que mesmo
que plantássemos trigo por toda terra vista e ainda por
ser descoberta, não haveria grãos suficientes para
pagar o jovem rapaz!
Pelo que vocês viram o Rei entrou em uma fria. Só de
curiosidade, supondo que três grãos de trigo pesem um
grama, com a produção mundial de trigo de 2004, ou
seja, 574 milhões de toneladas, calcule quantos anos
seriam necessários para pagar a dívida do Rei. Faça as
contas e não se assuste. Ah. Uma tonelada de trigo, no
atacado, custa cerca de R$ 500!
Como será que o Rei resolveu este problema?
9
A Cola
(ou Como Se Tornar Um Bom Aluno)
De modo desastroso, chegava ao fim aquele que
tinha sido, até então, o pior ano de minha vida: a
quinta série. Nos anos anteriores, eu sempre estava
entre os melhores alunos da classe, os professores
me elogiavam, mas agora não, nada me entrava na
cabeça, havia emburrecido de vez e era o fim, eu ia
repetir o ano e não tinha a menor idéia de como
explicar isso à minha mãe.
As provas iam começar no dia seguinte. A primeira
era do seu Argemiro – Português. E eu precisava
tirar dez. Dez em Português. Sabe o que é isso?
Em sua última aula antes da prova, ele pergunta:
Vocês têm alguma dúvida?
E eu, que nunca abrira a boca em sala, de modo
meio agressivo, falei:
Todas!
Como assim? – Insiste na pergunta, com um ar
meio cínico, que me encorajava a enfrentá-lo.
Eu não sei nada. Acho que não vou nem fazer
mais as provas. Vou começar tudo de novo no
ano que vem.
10
Ele, rindo, como soubesse o que eu estava
passando, disse:
Eu também já tive essas dificuldades para
aprender e tirar nota nas provas.
E como o senhor fazia?
Simples: eu colava! – Falando alto, de modo a
acordar até o Washington que sempre dormia em
sua aula.
Nesse momento, só o que se ouvia na classe era
um burburinho geral. Levou alguns minutos até que
ele pudesse continuar:
E é isso que vou fazer com vocês: podem colar
em minha prova.
Ainda entre o barulho que não parava, perguntei:
Como assim?
Vocês vão poder fazer colas. Mas têm umas regras:
cortem um papel de 15 por 10 centímetros; a
primeira coisa a pôr, é o seu nome completo; só
poder ser preenchido à mão; escrevam nele o que
vocês quiserem; e, finalmente, ele só poderá ser
consultado duas vezes durante a prova: quem
quiser usá-lo, deve me avisar antes de fazer a
consulta. Combinado?
Combinado! – Concordamos todos, ou ao menos
a maioria, já que parecia um bom negócio para
quem simplesmente ia repetir o ano.
11
Eu me lembro bem, até hoje, da confecção de
minha cola e da dificuldade em convencer minha
mãe que o professor tinha autorizado. Primeiro
escrevi meu nome, bem pequeno, para sobrar
espaço e espremer lá toda a matéria. Em seguida
fui pondo as regras de acentuação: “proparoxítonas
todas; oxítonas em AEO, paroxítonas PS: UM XURI
NÃO dá LÃ, hiatos... Diferenciais: pólo, pára, pôr,
pêra, pêlo...” e assim por diante. De tão pequena a
letra, sobrou espaço no papel.
No dia da prova, fiquei pensando qual seria a
melhor hora de pedir para colar, afinal só poderia
fazê-lo duas vezes. Não foi necessário. Eu havia
decorado tudo. Tirei dez! Todo mundo foi bem,
menos os que não haviam feito a cola.
Sugerimos ao professor de História que nos
deixasse fazer assim também, mas ele, além de
não permitir, contou ao Diretor sobre péssimo
exemplo do professor Argemiro, que, se bem me
lembro, foi advertido e não mais integrou o quadro
de professores no ano seguinte (Vale aqui um
parêntese: no auge do governo militar não
sabíamos como protestar contra tamanha injustiça.
Essa lição, infelizmente, só me veio bem mais
tarde). Voltando aos fatos:
Embora não pudesse, fiz uma cola, no mesmo
tamanho e tudo, para a prova de História: “Atenas:
oligarquia 621ac código Drácon. Fortuna
12
concentrada cidadãos metecos escravos. Sólon
594ac classes Bulé Eclésia. Pisístrato tirania.
Clístenes Péricles demos ostracismo...” e um novo
dez. E para as provas de Matemática... E
Ciências... E Francês... Relia a cola antes de
começar a prova e novamente dez. Na prova de
geografia precisei fazer uma consulta à cola durante
a prova e, por incrível que pareça, foi a única que
não tirei dez: tinha pulado uma página do livro que
faltou na cola. Desse ano em diante, só passei
colando.
13
Piruá
Sei de gente que não gosta de comer feijão, tomate ou
carne. Até batata! Como pode alguém não gostar de
batata?! No entanto, nunca ouvi falar de alguém que não
gostasse de pipoca.
Pipoca seria uma das coisas mais perfeitas do mundo,
não fosse aquela pelinha que fica nos dentes. Ninguém
dá nada por aqueles grãozinhos dos sabugos de milho
que não se desenvolveram adequadamente. Quem diria
que aqueles grãos têm tanta energia acumulada para,
com um pouco de calor, virar pipoca - branca, bonita,
gostosa!
Comer pipoca é uma delicia! Mas não aquela do cinema,
de microondas, com sabor de pizza (quando quero sabor
de pizza, como pizza!), ou com catchup por cima. Falo
daquela feita na panela, quentinha; bem simples e
barata.
É fácil fazer uma boa pipoca: basta uma panela, com
tampa; milho; óleo bem quente e uma bacia reservada.
Em alguns minutos... Como é gostoso ouvir aquele
estourinho... Até ele diminuir, diminuir... Sal? Sal é posto
depois, a gosto.
Aí a gente come tudo! Só sobram uns piruás - que são
mais, ou menos, dependendo do pipoqueiro.
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Como grãos de milho, tentando virar pipoca, são os
adolescentes. Cheios de energia acumulada e
disposição, prontos para explodir e se tornar algo belo.
Meu espanto é com a quantidade de piruá que vemos
pelo mundo, atendendo nas lojas, bares e telefones;
projetando e construindo casas; julgando e defendendo
pessoas; em seus consultórios, escritórios e salas aula.
Por que será que não viraram aquela pipoca bonita e
gostosa?
Alguns vão dizer que o milho não era bom.
Concordo...Em parte. Mas a grande responsabilidade é
mesmo dos pipoqueiros: pais; professores; editores de
jornal, televisão, Internet; chefes, presidentes etc. Ou
seja, eu e você que está lendo, já que creio que nenhum
adolescente tenha paciência para ler o que escrevo.
Na maior parte das vezes não escolhemos a panela e a
tampa certas; não usamos óleo suficiente, ou colocamos
demais; não temos paciência para esperar a quentura, ou
queremos que a pipoca fique pronta muito depressa; não
reservamos um recipiente apropriado para o que esta por
vir. Tem ainda os que querem sofisticar demais a pipoca,
com temperos, molhos e gostos.
Pipoca, apesar de simples, é uma arte – requer talento e
paixão.
Portanto, capriche! Todos gostamos muito de comer
pipoca. E deixe que depois a gente coloca o sal, cada
qual ao seu gosto.
15
Pau-Brazil
Lembro-me, de ouvir falar, dos Réis. Contos de Réis!
Ainda acho bonito e engraçado quando escuto que algo
custa cinco conto, conto mesmo, pois ninguém usava no
plural. Conto de Réis.
Ao longo de minha vida passei por desastrosos planos
econômicos e várias trocas de moedas. Vivi o tempo do
Cruzeiro; Cruzeiro Novo; Cruzeiro, de novo; Cruzado;
Cruzado Novo; Cruzeiro, de novo; Cruzeiro Real; e Real,
de novo - porque Réis era apenas o plural de Real.
Estou convencido de que o que têm atrapalhado todos
esses planos são estes nomes sem sentido que dão à
nossa moeda. Algo tão importante não pode ser assim
escolhido, ao acaso; tem que ter uma razão, um nome
forte, com significado histórico e, ao mesmo tempo,
simples e de fácil aceitação: Pau-Brasil é o nome ideal ou
Pau-Brazil, para não haver problemas no exterior.
A primeira grande vantagem é que já estamos
acostumados e usamos esta moeda no dia-a-dia: um
lanche, por exemplo, que custa cinco reais (R$ 5,00),
custaria cinco Paus-Brazil (P$ 5,00) ou, popularmente
falando, cinco Pau!
Nas transações do dia-a-dia, percebam que perderia o
sentido aquela enorme quantidade de zeros, pois tudo
16
custaria entre 1 e 999 pau. Uma calça custa cem Pau e
um carro trinta Pau, ficando os zeros implícitos, sendo
tudo muito mais simples, além de desestimular a inflação.
O governo poderia apelar para o orgulho nacional e o
povo iria corresponder. Quando os economistas viessem
a público dizendo que deveríamos fazer sacrifícios para
que o Pau suba, certamente toda população iria
colaborar. Quando dissessem que teríamos que manter a
alta do Pau em relação ao dólar, não haveria dúvidas que
o Pau deveria sempre estar forte. Talvez apenas perca a
coerência a expressão “tô duro” pra quando se está sem
dinheiro, “tô mole” parece mais adequado!
Mesmo os humoristas teriam o seu quinhão com alguns
trocadilhos infames com expressões como “com quantos
paus se faz uma canoa”, “pau pra toda obra”, “baixar o
pau”; além dos inimagináveis apelidos que poderiam ser
dados às notas, moedas, carteiras e porta-moedas!
Quando pensava como deveriam se chamar os centavos,
lembrei-me de um amigo de faculdade extremamente
criativo para nomes e apelidos, o Sívio Yamada, e ele me
inspirou: os centavos seriam chamados de Japa. Assim
um cafezinho custaria um Pau e cinqüenta Japa. Bem,
agora deixo pela imaginação de cada um as figuras que
apareceriam nas notas e moedas.
17
O Juízo de Papai Noel
Aconteceu, como um dia acontece a todo mundo, de
morrer Papai Noel.
Julgou-se, de início, pelos seus atos aqui na Terra, que
seria prontamente acolhido por Deus, pois, de certo,
Satanás não havia de querer tal indivíduo perambulando
pelo Inferno dando exemplos de bondade e consideração
para com os outros.
Assim sendo, senso comum, ele se dirigiu prontamente
ao Céu, devendo ser apenas um ato formal Deus pedir
para que Lúcifer fosse avisado da chegada de mais uma
alma ao Paraíso. Este, ou algum assessor menor,
deveria apenas carimbar “RECUSADO” no prontuário do
defunto.
Se bem ainda não sabem, mas um dia saberão, funciona
mais ou menos assim: cada indivíduo, ou alma, se
preferirem, dirige-se para onde julga ser merecedor. A
outra parte, Deus ou o Diabo, é comunicada e, caso ache
justo ser de seus domínios tal alma, faz reclamá-la. Vale
ressaltar que a concorrência é acirrada. Caso não haja
consenso e não havendo acordo na Junta de
Conciliação, o indivíduo pode: (1) ir para o Purgatório,
onde entra em uma longa fila de espera até que seu caso
seja julgado e, com todos os recursos que têm direito as
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partes, leva uma eternidade; (2) voltar à vida afim de que
seja reavaliada sua situação. Neste caso pode voltar em
(A) mesma situação que saiu; (B) situação pior – para se
recuperar; (C) situação melhor – para ver como se
comporta com o que aprendeu em vidas anteriores; não
se tendo claro um consenso sobre qual das situações,
entre 2B e 2C, é pior; (3) ir para o Limbo, sendo que este
último pode ser de duas espécies: (A) em um lugar que
não se sabe ao certo onde é, não podendo assim se
fazer uma melhor avaliação da pena; e (B) na própria
Terra, onde a alma, em corpo físico, em forma humana,
perambula entre os demais, nunca apresentando
progressos no trabalho e demais situações cotidianas.
Dizem, inclusive, que mais da metade dos viventes (mais
da metade!), se assim os podemos chamar, é composta
por almas condenadas em 3B.
Fato é que o Demo reclamou para si o Bom Velhinho e,
quando chamado a dar seus motivos, falando direto com
Deus, pois tal alma não poderia ser julgada por
assessores de menor importância, perguntou-lhe o mais
alto regente:
Por que Vossa Senhoria acha que esta alma deve ir
para o Inferno? – Pergunta Deus, convicto de sua
vitória.
Para ser breve, pois, embora habitemos a eternidade,
o nosso tempo é curto, explico: o Bom Velhinho, Santa
Claus, Papai Noel, Pai Natal, São Nicolau, como o
chamam na Terra, o tempo todo foi um mau exemplo à
19
humanidade (falava isso apontando para o velhinho,
presente, ali sentado que, espantado, sentindo-se
culpado, nada entendia). O Natal foi inventado, lá pelo
ano 300 após o nascimento de nosso tão adorado
Jesus (não se sabe se aqui havia ironia ou era sincero
o seu tom), pela instituição que mais usa seu nome em
vão. Usurparam dos povos nórdicos a data que
comemorava o fim da mais longa noite do ano e o
início da vitória do dia sobre a noite, 25 de dezembro, e
Papai Noel, com uma mentira (pois todos sabem que
Ele nunca poderia ter nascido nesta data) e muitos
presentes, ajudou a consolidar a festa de natal. Eu
poderia ainda falar muito mais, de pecados maiores e
menores, da sua ligação com as forças capitalistas,
maus tratos às renas, exploração de Duendes, a
tentativa de iludir crianças, do estimulo à corrupção de
menores que trocam o bom comportamento puro por
presentes etc. etc. e tal. Mas vou só me ater a esses
graves pecados iniciais, pois não haveria inferno
suficiente para tantos pecados – concluiu o Demo,
arfando inflamado.
Pensativo, Deus, que não suporta perder almas, pediu:
Sei, sei! Realmente, olhando de seu ponto de vista o
caso é grave. Entenda, porém, Vossa Senhoria, que
estamos julgando uma instituição e sonhos, não uma
simples alma igual a todas as outras. Neste sentido,
apesar de não lhe tirar a razão, queria gentilmente
pedir-lhe para que considerasse mandar,
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provisoriamente, o Bom Velhinho, de volta à Terra, de
tal sorte que ele possa reparar os seus erros.
E como Vossa Senhoria acha que ele deveria voltar
para expiar esses graves pecados? E, principalmente,
onde? Pois não há de voltar em um lugar qualquer. –
concluiu o Diabo com um ar de satisfação.
Deus novamente se fez pensativo e, com um certo
sorriso malicioso, de quem sabia minimizar derrotas, sem
muitas escolhas, sugeriu:
O lugar é fácil: o Brazil. Lá ele terá bastante trabalho e
oportunidades de se recuperar. Quanto ao seu papel,
vamos deixá-lo crescer, sem nossa interferência, para
ver o que acontece.
Eu topo! – falou o Demo, sabendo que a posse da
alma seria agora apenas uma questão de tempo.
Apertaram-se as mãos e foram cuidar das tantas outras
almas que por lá chegam todos os dias.
21
Heróis
Aos doze anos, o que mais quer um garoto é se tornar
um herói. No meu caso, em 71, não precisava ser um
grande herói nacional ou qualquer coisa do tipo, até
porque nessa época (do Brasil – Ame-o ou Deixe-o / Pra
frente Brasil!) quem se atrevesse contestar o governo era
subversivo. Bastava, portanto, ser um pequeno herói, do
time da escola, por exemplo. O futebol nacional, depois
da copa de 70, estava cheio de heróis e na escola o
craque era o Nandinho, um baixinho cabeludo, que
marcava um monte de gols por partida. Todas as
meninas gritavam o nome dele.
Eu também queria jogar futebol, mas o professor de
Educação Física, sei lá por que, achou que eu devia
jogar basquete. Ali eu não teria muita chance de ser
aclamado pelas meninas. Éramos dez jogadores, o seu
David dizia que não havia reservas, todos eram titulares,
mas, obviamente, havia os titulares que jogavam e os
que ficavam no banco. Eu era titular do banco.
Nós éramos do time do Instituto e faríamos a final dos
Jogos Colegiais contra a Industrial. Tínhamos perdido
deles na primeira fase de 22 a 12! E agora era a final.
Aqueles meninos eram grandes, pouco provável que
tivessem só doze anos, mas jogo é jogo e íamos jogar.
Bem, eu, que era titular do banco, não tinha entrado em
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nenhuma partida, ia torcer um pouco mais de perto que o
resto do colégio.
Também não éramos mais dez, pois o Zezinho e o
Paulinho, que jogaram na primeira derrota nem
apareceram para a final. O seu David fez seu habitual
discurso antes do jogo para, ganhando ou perdendo,
jogarmos limpo e para nos lembrarmos das jogadas
ensaiadas. O problema era que os adversários também
se lembravam das poucas jogadas que tínhamos.
O primeiro tempo foi um massacre: 16 a 4 para eles.
Restava-nos, portanto, o lema do Barão de Coubertin -
não gostava desse cara, queria mesmo ganhar! E como
nessa idade não temos muitos limites e senso crítico, eu
achava que ainda era possível!
No segundo tempo, a partida melhorou muito para gente:
sem muito mais a perder, jogamos bem melhor. Com
dois jogadores com cinco faltas, o único que continuava
no banco era eu. Faltava pouco mais de um minuto e
estava 27 a 22 para eles, a partida estava decidida e o
seu David resolveu me dar uma chance de jogar um
pouco.
Eu dei sorte, logo que entrei peguei uma bola no garrafão
e arremessei e diminuí para três pontos a diferença. Já
me senti aí um herói, pois havia feito meus primeiros
pontos como jogador de basquete e ouvia todos gritarem
meu nome. Para mim, nada mais precisava acontecer.
Eles deram a saída e ficaram controlando a bola, até que
perto do 30 segundos arremessaram e erraram, eu
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recebi a bola e corri com toda a velocidade à frente,
nunca tive tanto medo, era só eu e a cesta, não havia um
adversário sequer para eu justificar o meu erro, fui quase
chorando em direção a ela, arremessei, a bola bateu no
aro e caiu fora; ainda consegui pegar o rebote e passei
para o Paulão, que, bem alto, embaixo da cesta, fez mais
dois pontos. Vinte segundos! 27 a 26! Ainda gritavam o
meu nome, mas só um milagre poderia nos salvar. Eles
tinham vinte segundos para bater bola, mas um jogador
do time deles, para acabar logo o jogo e consagrar sua
vitória, arremessou e errou. O seu David pediu tempo.
Faltavam agora poucos segundos. O plano era o
seguinte: o Paulão, um molengão, mas com mais de um
e oitenta, ia pra perto do garrafão, a gente passava a
bola pra ele e ele arremessava. Perfeito!
Deram a saída e a bola veio à minha mão. Eu quase no
meio da quadra e todos gritavam: “Passa pro Paulão. Pro
Paulão”. O Paulão perto da cesta, a cesta, a bola em
minha mão, a torcida, o Paulão, a bola, a cesta, ... Cinco,
quatro, três, dois, um... Joguei a bola e ouvi o juiz apitar o
final. Ela ia lentamente em direção à cesta, bateu no aro,
subiu, bateu de novo e rodou, rodou... Parecia uma
eternidade, não se ouvia um som, só a bola rodando, até
que, chorando, ela entrou: 28 a 27!
A gente gritava e pulava. Todos gritavam o meu nome!
Todos gritavam o meu nome...
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Bem, como disse logo no começo, todos querem um dia
ser herói. Não tenho plena certeza que foi assim que se
deu, mas é assim que sempre vou me lembrar.
25
A Bola
Aos sete anos, Tonico ganhou do pai um par de chuteiras
e uma bola de capotão. Afinal, já era hora do garoto
gostar de futebol. Sem saber como começar, sentou-se
no chão e se pôs a contar da vida de moleque do interior,
de peões e bolas de gude, pipas e peladas, do timinho
que “tinha até jogo de camisa” e do sonho de jogar em
um time grande, falou da passagem pelo juvenil do XV de
Piracicaba: ficara no banco de reservas num jogo contra
o Santos de Pelé! Tonico não parecia entender a
importância do jogo.
Mudou de tática: foi ao gol e pediu para o menino chutar
umas bolas, mas ele não tinha muita coordenação.
Tentou ainda dar umas explicações de como posicionar o
pé de apoio, da terminação do chute - não houve jeito.
A surpresa foi quando, aos 10 anos, Tonico entrou em
casa afobado procurando pela bola. O pai, feliz, saiu logo
atrás e presenciou a cena do filho sendo aclamado ao
entrar em campo. E, de longe, viu o fraco desempenho
do filho com a bola nos pés, mas a sua determinação em
não mais jogar no gol: “Se tiver que jogar no gol, vou
embora... com minha bola”. Ele e a bola ficaram.
A bola foi logo substituída por outra e outras em cada
natal ou aniversário.
26
No colégio, sem a sua bola, era diferente e Tonico ficou
de fora do time da 5ª A. Mas ele queria jogar e jogou...
pela 5ª E – isso depois de negociar com o professor e até
o diretor da escola. Mas o que pareceria alegria, trouxe
alguns problemas: a 5ª E bateu a 5ª A, sua classe, por 6
x 0, com dois gols seus. Quase apanhou na saída. A
pendenga só foi resolvida quando convenceu uns amigos
do colegial a “interferir”... em troca de uma bola novinha.
O pai foi assistir a final. Torcia, gritava:
Vai! Chuta! Volta! Isso! Não!
Foi um desastre. Perderam feio. Entreolharam-se no final
do jogo e nunca mais falaram de futebol.
O pai, aqui ou ali, ouvia dizer que o menino jogava bem,
mas nada dizia.
A única vez que pensou novamente em interferir na vida
do filho foi quando soube que Tonico, durante o cursinho,
disputava o campeonato amador da cidade. Achava que
o menino deveria estudar e não perder tempo com
“aquela bobagem”. Mas, como se prometera, nada disse.
Quando Tonico disse ao pai que haviam sido campeões,
ouviu:
E o vestibular? Quando é?
A resposta veio em março:
Pai, entrei em Agronomia na ESALQ de Piracicaba.
USP! Parabéns. – disse, guardando a emoção.
A grande surpresa veio meses depois, quando o pai
recebe uma ligação de um velho amigo de futebol:
27
Tonhão, vem pra Pira hoje. O XV joga com o Santos e
o Tonico vai jogar. Lembra? XV e Santos...
Tinha que parar com aquilo e foi. Torcia quieto. Iria
embora sem anunciar sua presença em campo. Foi um
belo jogo: o XV ganhou e Tonico fez um dos gols.
Não resistiu e desceu ao vestiário. Lá, olha pro Tonico
sem saber o que dizer e ouve:
Pai, fica com a camisa do XV. Quero estudar. Futebol,
daqui pra frente, vai ser só pra diversão.
E o pai, em um longo abraço, diz:
Filho, o que você decidir tá bem decidido. Vou pôr junto
àquelas chuteiras. Obrigado.
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29