A Cidade e a Cultura

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A CIDADE E A CULTURAUM ESTUDO SOBRE PRTICAS CULTURAIS URBANAS

Joo Teixeira Lopes, Universidade do Porto Dissertao de Doutoramento em Sociologia [1] Porto, Novembro de 1998 memria de minha Av, Eufrsia Pedro Teixeira Lopes, sereno exemplo de dignidade "The times they are a-changin" Bob Dylan "Eu no gosto do bom gosto Eu no gosto do bom senso Eu no gosto dos bons modos No gosto Eu aguento at rigores Eu no tenho pena dos trados Eu hospedo infratores e banidos Eu respeito convenincias Eu no ligo pra conchavos Eu suporto aparncias Eu no gosto de maus tratos ... Eu aguento at os modernos E seus segundos cadernos Eu aguento at os caretas E suas verdades perfeitas O que eu no gosto do bom gosto ... Adriana Calcanhoto, Senhas

INTRODUOFUGA E PARTITURA OU UMA METFORA PARA UMA DISSERTAO I should imagine that this kind of writing might make many and perhaps most of the readers of La Distinction and of this book feel uncomfortable or angry. He is talking about us or, at least, people like us.Jim McGuigan, Culture and the Public Sphere

Este um trabalho de natureza cientfica. Obedece a cnones e a protocolos de regras mais ou menos rgidos. Mas encontra-se vulnervel a uma certa margem de imprevisto. Se, inicialmente, o nosso objecto consistia na anlise dos pblicos urbanos, das suas prticas e dos modos de recepo, em cenrios de interaco diferenciados, cedo nos apercebemos do carcter restrito de tal inteno. De facto, subjacente a esta delimitao, encontra-se um conceito fundamental: o trabalho de mediao exercido pela esfera simblica no decorrer dos processos de mudana social. Mais do que mero interface ou zona de fronteira, falamos, afinal, de uma mediao dialctica, capaz de transformar os campos que coloca em interaco, ao mesmo tempo que a si mesma se modifica[2]. Alis, a esfera simblica remete-nos para um jogo de espelhos entre uma face visvel e uma outra recndita a evocao de algo ausente. Tornar esse ausente presente uma das motivaes da anlise sociolgica do simblico. Se verdade que a ordem simblica um veculo de expresso das sociedades, um conjunto de representaes que os agentes sociais elaboram a propsito de si mesmos, da sua interrelao e do mundo em que habitam, ento essa esfera transporta consigo os processos de construo de sentido. Mas no se trata de um sentido puramente abstracto, formal ou categorial. Existe uma correspondncia, no automtica, no semelhante reproduo em duplicata, face ao real e s prticas sociais. Desta forma, estudar o simblico e a complexa cadeia do sentido, reenviar-nos-, simultaneamente, para o homem concreto e real, condicionado pelas suas condies materiais de existncia e para o sujeito autnomo, reflexivo, inventivo e imaginativo que, aproveitando brechas, campos de possveis ou mesmo subvertendo e alargando estreitas margens de manobra, constri quotidianamente a sociedade e o prprio real, afastandose do modelo do sonmbulo social, dependente e encarcerado pelas configuraes sociais onde se move.

O itinerrio terico que delineamos no captulo I (com seguimento, no captulo II, em termos de teorias de mdio alcance que fazem o debate contemporneo), viagem pelo estudo do simblico com direito a paragens para esclarecimento e acrscimo de visibilidade, tendo por ponto de chegada (e simultaneamente eterno ponto de partida...) a descoberta da complexidade e as teorias que com ela lidam (damos apenas quatro significativos exemplos que tm o mrito de recuperar, superando-o, praticamente todo o patrimnio terico acumulado ao longo do percurso), leva-nos a no encalhar nos dilemas etc.[3]. Em suma, se verdade que uma sociologia da cultura e do simblico deixaria de ser sociologia se aceitasse de antemo a autonomia total da cultura e do simblico (enquanto estruturas de sentido auto-suficientes cuja compreenso seria necessariamente interna[4]), no menos verdade que seriam tudo menos culturais e simblicos, os fenmenos estritamente isomrficos da base societal e dela totalmente prisioneiros. Esta concepo encontra-se magnificamente ilustrada pela metfora do homem como msico de jazz, proposta por certas correntes da psicologia social: capaz de criar uma verdadeira fuga e improvisao, que tem uma beleza e harmonia prprias, a aco do sujeito no est todavia desligada do tema proposto pelo seu encontro com o ambiente, mas que no reflecte, como se seguisse uma partitura[5]. Corrigiramos: nem sempre reflecte. Por vezes, quando a partitura rgida e no permite experimentaes, a melodia segue-a de muito perto. No entanto, mesmo nessas situaes, dois intrpretes distintos construiriam duas leituras diferentes dessa mesma partitura ( o que tentamos defender quando falamos no trabalho dissimulado de produo patente na recepo cultural e nos vrios usos que se do cultura, como de resto se encontra patente nos captulos III e XII). Melodia e partitura, texto e contexto, caminham lado a lado. Um requer o outro. Parafraseando Giddens, diramos que no so dualismos, mas dualidades. Admitem-se, no entanto, situaes de rpida mutao social, em que as partituras so parcialmente esquecidas, realando-se o carcter aberto, plurvoco, ambivalente e aparentemente indeterminado das interpretaes sociais. Segundo a leitura dos dados que constam das contextualizaes e enquadramentos que fazemos nos captulos V, VI e VII, estamos na crista de uma dessas vagas de mudana. No entanto, quem aprendeu a partitura jamais a esquecer e, por formas tantas vezes inusitadas e surpreendentes, a improvisao revela-se, afinal, contida dentro de certos anterioridade do sujeito versus anterioridade do social, conhecimento versus aco, sujeito versus objecto, actividade versus reactividade,

parmetros. A fora da partitura e a irrupo da fuga e da improvisao, bem como o jogo que entre elas se estabelece, encontram-se expostos no captulo XI que deve ser lido em conjunto com boa parte da reflexo conclusiva (termo um tanto ou quanto absurdo para terminar uma dissertao, em especial quando ela nos inquieta mais do que nos reconforta em certezas ou verdades inolvidveis), designadamente ao propor-se a existncia de um continuum chamado (ps)modernidade (captulo XIII) e a localizao (em termos de tempo, espao e estrutura social) dos movimentos de mudana social. Um dos exemplos porventura mais desenvolvidos prende-se com as representaes sociais da noite. Como se ter ocasio de constatar, a partir da segunda parte do captulo X, os discursos sobre a noite so multivocais, salientando ora os constrangimentos que impedem uma intensificao das sadas nocturnas (em boa parte associados aos recursos de que os agentes dispem), ora as possibilidades de afirmao de identidade, mtuo desvendamento e autenticidade. Convm explicitar, no entanto, de que prticas ou, seguindo o fluir da metfora, de que msica nos ocupamos. Chamar-lhes urbanas no nos parece ser um delito grave, mesmo estando conscientes da crescente substituio das velhas dicotomias que cortam em dois o territrio por metforas de redes e fluxos, prprias de um mosaico de situaes. Afinal, a msica annima de um saxofone que se escuta numa esquina de duas ruas cosmopolitas ser sempre diferente da flauta pastoril... Ao longo de toda esta dissertao, mas em particular no captulo IV, tentaremos reflectir sobre a recomposio do espao urbano e sobre as suas consequncias ao nvel da esfera pblica e das relaes que desenvolve com o domnio privado, das polticas culturais, da imagem de cidade e das prticas sociais que nela se desenrolam. Este processo est igualmente longe de ser unvoco, existindo contradies vrias e incontornveis, em especial quando o discurso da recuperao e enobrecimento urbano esquece as transformaes do espao pblico e a emergncia de uma sociedade dual. Ocupar-nos-emos, igualmente, embora de forma breve, com a histria da cidade onde se desenrola e tece o enredo desta dissertao (captulo VIII). Numa poca em que a globalizao um lugar comum, mas em que se reavivam, por oposio, localismos e paroquialismos vrios, nada como a temporalidade para traar linhas de continuidade e ruptura, identificar persistncias estruturais, dar o devido valor a conjunturas ou episdios espordicos. Os captulos V, VI, VII e VIII, no seu conjunto,

fornecem as coordenadas espcio-temporais desta dissertao, a partitura dentro da qual certas interpretaes se tornam mais plausveis do que outras. Foi dentro deste esprito de equilbrio tenso, de procura de snteses e complementaridades, sem forar ao desaparecimento artificial de movimentos de justaposio e/ou conflitualidade entre tendncias contraditrias, que organizamos a nossa pesquisa. Os caminhos metodolgicos (captulo IX) traduzem esse mesmo esprito de no recusar partida a conjugao daquilo que surge como incontornvel aporia. Assim, ao accionarmos aimaginao metodolgica, usufrumos da combinao de abordagens qualitativas e quantitativas, intensivas e extensivas, duras e moles, nica forma, afinal, de respeitar a especificidade de cada dimenso do objecto de estudo. Umas requerem aproximaes interpretativas, minuciosas, internas; outras exigem enquadramentos estruturais e institucionais. Umas e outras no so independentes, to-pouco se bastam a si mesmas. Possuem um carcter relacional, caracterstica fundadora da complexidade do objecto de estudo. Nada disto novo e constitui j uma saudvel rotina do discurso sociolgico. Mesmo a investigao emprica, um passo aqum todavia, fornece cada vez mais exemplos destas fecundas imbricaes. Reivindicamos, ainda assim, um pouco de originalidade. No acreditamos que a produo cientfica em cincias sociais se limite, como alguns defendem, a um exerccio de intertextualidade. Os discursos cientficos sobre o social so distintos dos textos literrios, bebendo no racionalismo aplicado de Bachelard a fonte dessa especificidade. A nossa abordagem das prticas culturais pretende actualizar criticamente as teorias legitimistas do campo cultural patentes na obra de Bourdieu (claramente desactualizada face s transformaes que se vm verificando quer na produo cultural, quer no consumo, desde os anos 80), com a ajuda de recentes reflexes sobre os novos mundos da cultura e o estudo da recepo, ofcio que requer um praticante cultural e no um mero consumidor. A pluralidade das culturas urbanas, a sua variao consoante os cenrios de interaco (razo que nos leva a insistir em trs estudos de caso), a emergncia de novos padres de gosto e a sua ligao quer a significativas alteraes da estrutura social portuguesa (e portuense), quer centralidade expressiva das redes de sociabilidade, impelem-nos a um questionar de relaes anteriormente estabelecidas em universos sociais mais estticos, menos sujeitos circulao da novidade e mais cristalinos quanto correspondncia entre prticas e classes sociais. A harmonia desse espao social ordenado em ntidas hierarquias, e fundado em arbitrrios dissimulados, constituiu um desafio poderoso a uma sociologia da cultura de intuitos

crticos e desmistificadores. No entanto, a emergncia de novas lgicas sociais, tornando mais opaca a ligao entre interpretao e partitura, para manter a metfora, envolve-nos no compromisso de manter elevada a imaginao sociolgica. Hoje, coloca-se amide a questo do valor da cultura, ou do que falamos quando falamos de cultura. Ter validade a iconoclasta afirmao do niilista russo Pisarev, de que um par de botas equivale a Shahespeare? A partir do urinol Fonte de Duchamp e das sopas Campbell de Warhol, esta questo torna-se evidente no campo artstico. Mas ela uma invariante da histria desse campo: o que deve, num dado momento e numa sociedade determinada, ser considerado como Arte? Da mesma maneira, a questo reaparece no domnio das prticas culturais, com o discurso catastrofista do nivelamento cultural, ou com a aura optimista da ideologia pluralista. Baudrillard refere-se a este propsito mercadoria absoluta; mais mercadoria do que a prpria mercadoria, fundada no xtase do valor: triunfo da equivalncia, indiferena perante a questo do valor, maximizao de todos os estilos. Em suma, se tudo arte, a arte morre. Por um raciocnio paralelo, se tudo cultura (anything-goes culture), a cultura desaparece, nada restando seno as suas carpideiras (os apocalpticos de Eco), ou os seus bacantes festivos (os integrados). No cremos que a cultura tenha morrido. Caso contrrio, de nada serviria este trabalho, a no ser como elegia de um passado que se revisita com nostalgia. De qualquer modo, sobre essa polmica no adiantaremos muito mais. Guardamos intactos os nossos juzos de valor. um debate que no comandamos, que no queremos comandar embora possamos porventura esclarec-lo, situando os pontos em discusso. Antes de mais, explicitando que a questo do valor nos remete para os quadros de referncia, os discursos e as prticas dos agentes. Precisando em seguida um pouco melhor, ao acrescentarmos que esses esquemas de anlise, essas representaes e essas aces so pontos de vista em relao (Bourdieu, teoria do campo). Finalizando a incompleta interveno, com a considerao de que constituem o objecto por excelncia da sociologia da cultura. Por outras palavras, as condies sociais em que surgem as questes do valor so, antes de mais, uma questo de pesquisa emprica. Renunciamos a um ponto de vista soberano. No renunciamos, no entanto, (e mantemos ainda a metfora...), a analisar com a mesma mincia e empenho analtico, a relao aparentemente mundana e trivial que os sujeitos mantm com uma cano pop da moda, ou as formas subtis de recepo do que outrora se chamava a msica com maiscula.

CAPTULO I ITINERRIO TERICO EM TORNO DA PRODUO DOS FENMENOS SIMBLICOS No estudo da relao entre os fenmenos culturais e a estrutura social, tm os primeiros sido vtimas de um erro terico fundamental: ora so considerados como uma entidade autnoma e desligada dos enraizamentos societais, ora so reduzidos a um mero epifenmeno de outras instncias com verdadeiro poder explicativo, como se fosse possvel hierarquizar os diferentes campos da actividade humana em instncias estanques e incomunicveis. Estas duas concepes funcionam, de facto, como irmos gmeos, uma sendo o espelho antinmico da outra, mas em ambos os casos dissolvendo-se o que seria a especificidade da ordem simblica. Como Clifford Geertz refere, tentando explicar um atraso relativo das componentes culturais, no estudo das relaes entre a estrutura social e a ordem cultural, mais difcil lidar cientificamente com as ideias do que com as relaes econmicas, polticas e sociais [6] . Duplamente difcil (e encontrando-se, por isso, numa situao duplamente perifrica) a anlise das formas culturais andinas e quotidianas, j que estas se movem, por definio, no terreno do implcito, do no sistemtico, do no -dito, do no discursivo. Para este efeito, ter contribudo uma deficiente (porque no totalmente sistemtica) e conflitual abordagem do simblico por parte dos clssicos fundadores da sociologia, a quem sempre regressamos quando se trata de delinear um qualquer itinerrio terico. No entanto, grande parte do que hoje se escreve a respeito dos clssicos resulta, muitas vezes, de abordagens descontextualizadoras do sentido da sua obra, ou ento, aspecto mais grave, de leituras em segunda ou terceira mo, o que, tendo aparecido como resultado de uma bricolagem terica, nos aconselha a um prudente regresso ao original. A sociologia jamais abandonou, salvo raras excepes, os seus grandes mestres. Alis, muita da conflitualidade terica interna encontra -se j em incubao nas obras de cada um deles, assumindo mesmo, como no caso de Max Weber, a obsesso de um dilogo constante e implcito com Karl Marx. Este ir beber fonte no acalenta a esperana de descobrir o que ainda no foi descoberto. Trata-se, apenas, de fazer regressar a conflitualidade

sobre os fenmenos simblicos, no ao seu ponto de partida, tarefa que seria inglria, mas aos pensadores que mais directamente se ligam moderna teoria social, mesmo que esta no reivindique explicitamente a sua herana. 1. Ponto de partida: a trilogia dos fundadores. 1.1. Karl Marx e o materialismo histrico Ao falar-se de Marx e do materialismo histrico, ocorre-nos sempre a estereotipada ligao entre a infraestrutura, o conjunto das relaes sociais de produo, e o seu reflexo legitimador, a superestrutura, onde se enquadram as formulaes polticas, jurdicas, ideolgicas, religiosas; as ideias, se preferirmos, ou a cultura em sentido lato. Para esta viso simplificadora, muito contribuiu, por omisso, o prprio autor, apesar do esforo posterior de Engels para esclarecer e suavizar o aparelho conceptual marxista. A anlise do movimento histrico das relaes de produo e o combate s teses idealistas constituem o motor da produo terica marxiana. De facto, o paralelismo quase isomrfico que se estabelece entre a produo material e a produo intelectual, resulta, precisamente, da sua concepo de praxis e de mudana social enquanto efeito das contradies e conflitos entre as foras produtivas e as relaes sociais de produo. Karl Marx recusa a absolutizao dos contedos intelectuais e culturais, combatendo todas as abstraces da razo pura desligadas das relaes humanas reais e concretas: As relaes sociais esto intimamente ligadas s foras produtivas. Adquirindo novas foras produtivas, os homens modificam o seu modo de produo, e modificando o seu modo de produo, a sua maneira de ganhar a vida, eles modificam todas as suas relaes sociais (...) Os mesmos homens que estabelecem as relaes sociais de acordo com a sua produtividade material, produzem tambm os princpios, as ideias, as categorias, de acordo com as suas relaes sociais. Assim, estas ideias, estas categorias, so tambm to pouco eternas quanto as relaes que elas exprimem. Elas so produtos histricos e transitrios [7] . Em A Ideologia Alem, Marx e Engels so extremamente claros na crtica aos jovens hegelianos, denunciando tudo o que neles contribui para a

autonomizao ilusria das representaes, ideias e conceitos, esquecendo, deliberadamente ou no, a ligao existente entre essas formas mentais e a realidade histrica (omeio material): Nenhum destes filsofos se lembrou de perguntar qual seria a relao entre a filosofia alem e a realidade alem, a relao entre a sua crtica e o seu prprio meio material [8] . Para estes autores, a produo mental depende, inequivocamente, das relaes sociais que os indivduos mantm no quadro de uma determinada actividade produtiva. Esta a realidade, ou seja, a forma como actuam partindo de bases, condies e limites materiais determinados e independentes da sua vontade [9] . Torna-se assim explcito que as categorias mentais no so mais do que a linguagem da vida real, invertendo-se, por conseguinte, o nexo causal defendido pelos idealistas alemes: so os homens reais, isto , os indivduos inseridos num determinado modo de produo quem produz as ideias e no o contrrio: Contrariamente filosofia alem, que desce do cu para a terra, aqui parte-se da terra para atingir o cu [10] . Por outras palavras, no a conscincia que determina a vida, mas sim a vida que determina a conscincia [11] . Nada poderia ser dito de forma to precisa, eliminando, de uma s vez, a possibilidade de existncia autnoma das religies, da moral, da metafsica e mesmo do Estado. A ideologia tende a surgir, ento, como mistificao, falsa conscincia, espelho inverso da realidade, negao da verdade das condies materiais de existncia. Na mesma linha, a ideologia dominante a expresso da posio das classes dominantes, as quais, por possurem os meios de produo material so tambm detentoras dos meios de produo intelectual, atravs dos quais apresentam os seus p ensamentos e ideias particulares como sendo universais e nicos: Os pensamentos dominantes so apenas a expresso ideal das relaes materiais dominantes concebidas sob a forma de ideias [12] . No entanto, Marx e Engels complexificam o seu sistema terico ao centrarem o essencial da sua proposta na actividade humana criadora. As ideias no so abstraces nem produtos da pura lgica, porque foram construdasna e pela aco humana historicamente situada. To-pouco os homens aparecem desprovidos de conscincia, como se fossem recipientes vazios. O que Marx pretende, segundo algumas interpretaes, , afinal, a consagrao do princpio da determinao/construo social da actividade intelectual, o seu carcter especfico e irredutivelmente humano [13] . Por isso,

critica em Feuerbach o conceito de Homem, preferindo falar dos homens de carne e osso os homens histricos reais, detentores de uma conscincia real, prtica, existente sob a forma de linguagem e intimamente dependente da actividade social. Marx pretende ser, antes de mais, o historiador de uma histria real, profana, restituindo aos homens o seu papel de autores e actores do seu prprio drama [14] , quando sua poca vingavam as descries pormenorizadas sobre epopeias e feitos hericos das grandes figuras e dinastias, e os fil sofos reinavam no vazio das grandes ideias. A sua tese fundamental , pois, a de que as circunstncias histricas em que decorre a actividade humana a influenciam de forma irremedivel, condicionando a percepo e a interpretao da realidade. No se pretende reduzir aqui o marxismo a um humanismo bem intencionado. Mas no podemos deixar de criticar um outro reducionismo, esse muito mais frequente: o de equiparar o marxismo a um economicismo determinista que reduz tudo o resto a um plido reflex o da base suprema da realidade. Engels, j o dissemos, apressou-se a combater essa interpretao simplista do legado de Marx, acentuando a possibilidade de um efeito de retorno da superestrutura sobre a infraestrutura, introduzindo o clebre conceito dadeterminao em ltima instncia [15] . Mas o prprio Marx (isoladamente ou em parceria com Engels) enfatizou, inmeras vezes, o carcter activo da existncia humana, tido como o principal trao distintivo da espcie. No de admirar, por isso, que Marx e Engels admitam a contnua modificao de foras de produo, de capitais e de circunstncias atravs das sucessivas geraes: (...) por consequncia, to verdade serem as circunstncias a fazerem os homens como a afirmao contrria [16] . Considerar que o contributo marxista se reduz a uma engrenagem terica mecnica de explicao das sociedades esquecer a pedra de toque do seu pensamento: a dialctica, a recusa das noes abstractas e vazias, a constante referncia circunstncia de o homem ser, simultaneamente, produto e produtor da sua histria. Althusser reala em especial este ponto: apesar de se opor dialctica enganadora de Hegel, Marx deixa intacto o sentido da dialctica em si, dela expurgando as marcas idealistas. Desta forma, errado pe nsar-se que a contradio uma unidade simples. Existe, isso sim, uma acumulao

de circunstncias ou contradies,

algumas

de

carizradicalmente

heterogneo e actuando, por conseguinte, em sentidos opostos [17] . Impossvel conceber um modelo economicista ou tecnologicista, j que tal seria equivalente ao princpio espiritual eterno presente na dialctica hegeliana que Marx to veementemente criticou. Assim, a dialctica Capital/Trabalho no se apresenta como um esquema simples e unidireccional, sendo sempre especificada pelas formas e as circunstncias histricas concretas nas quais se exer ce [18] , nomeadamente e aqui Althusser mostra a sua preocupao com a importncia das situaes conjunturais as configuraes da Superestrutura (Estado, ideologia, religio, movimentos polticos organizados, etc.) e a situao histrica interna e externa (esta ltima cada vez mais importante em contextos de mundializao). Para este autor, sobredeterminao o conceito que melhor exprime a complexidade da dialctica marxista, recusando qualquer tipo de determinismo unidireccional e aproximando-se, por conseguinte, de um modelo circular de influncias recprocas: Em Marx a identidade tcita (fenmeno essncia verdade...) do econmico e do poltico desaparece em benefcio de uma nova concepo da relao das instncias determinantes no complexo estrutura-superestrutura que constitui a essncia de qualquer formao social (...) de uma parte a determinao em ltima instncia pelo modo de produo (econmico); de outra parte a autonomia relativa das superestruturas e a sua eficcia especfica [19] . No existe, em Marx, uma dialctica econmica em sentido puro. A sua anlise reenvia-nos, constantemente, para a complexidade das relaes recprocas entre estruturas sociais e formas de pensamento. A recusa dos princpios redutores essencial na sua obra, bem como a crtica mordaz economia poltica e abstraco e desumanizao patentes no seu conceito de homo oeconomicus, enquanto justificao ideolgica de um particular modo de produo. Mas, apesar do pensamento marxiano ser ele prprio complexo e contraditrio, em muito influenciado pelas circunstncias histricas da sua poca (que lhe exigiam uma retrica de mobilizao rpida e eficaz das classes trabalhadoras), coaduna-se o seu ncleo-duro com esta releitura? Dito por outras palavras, ao ser desta forma interpretado, no encontraremos mais facilmente Althusser do que o prprio Marx? O debate vem j dos anos sessenta e seria descabido desenvolv-lo aqui.

1.2. mile Durkheim e a tendncia para a reificao da sociedade Ao contrrio do que uma viso superficial possa sugerir, existem algumas similitudes entre o pensamento de Durkheim e o pensamento marxiano, apesar do menosprezo por parte do primeiro quanto constituio de uma sociedade dividida em classes, aspecto essencial para o materialismo histrico [20] . De facto, tanto Durkheim como Marx recusam a ideia de que se possa encontrar no indivduo, nas suas ideias ou na sua conscincia, a chave explicativa da actividade social, procurando na sociedade e nas relaes sociais os factores de explicao da conduta humana [21] . Ambos reiteram o princpio da no conscincia e do primado das relaes sociais. Como refere Jos Machado Pais, Durkheim adopta o lema escolstico individuum est ineffabile, isto , do que individual no pode falar-se [22] . Alis, os indivduos so tidos como tendencialmente egostas, o que requer uma coordenao que os transcenda e que parta de interesses comuns, assegurando o objectivo primordial de manuteno da coeso social. Nesta linha, Durkheim considera que as representaes e as significaes so socialmente construdas, colocando uma nfase especial na sua partilha atravs dos processos de integrao social e de formao de uma conscincia colectiva. Desta forma, as ideias e os sentimentos so irredutveis aos indivduos, devendo ser considerados como produtos impessoais, isto , socialmente construdos. A conscincia colectiva, alis, por Durkheim considerada como um composto, superiormente formado acima das mentes individuais. Ao ter vida prpria, jamais depende dos estados de conscincia subjectivos, seguindo a evoluo das suas prprias leis e assumindo um carcter universal. A conscincia colectiva existe sempre, em qualquer estado societal. clebre a tese de Durkheim sobre a diviso social do trabalho [23] , de acordo com a qual a passagem de um tipo de solidariedade mecnica (baseada na submisso das conscincias individuais a um tipo psquico comum de sociedade) solidariedade orgnica (assente na especializao das tarefas, na diferenciao dos papis sociais e, por conseguinte, na complementaridade entre indivduos mutuamente dependentes) no implica um enfraquecimento da coeso social, nem to-pouco o desaparecimento da conscincia colectiva. Ambos os tipos de solidariedade respondem, pois, mesma finalidade, ainda que por vias opostas:

a reafirmao da ordem social e moral. Assim, se verdadeira a constatao de um declnio da religio nas sociedades contemporneas (fenmeno extremamente ligado ao enfraquecimento da solidariedade mecnica), no menos verdade que outros substitutos funcionais se institucionalizaro [24] . A sociedade assumir sempre, perante os indivduos, um cunho sagrado. Alis, segundo o autor, o culto do indivduo em torno do qual giram as modernas sociedades, est intimamente ligado aos princpios morais da tica crist, apesar do reconhecimento da existncia provisria de um hiato moral, o que exige a refundao de rituais e smbolos. Desta forma, os factos sociais so exteriores ao indivduo exercendo sobre ele um poder coercitivo. Exteriores porque anteriores, resultado de um permanente processo de aprendizagem e de interiorizao de uma mo ral superior atravs de processos educativos. Para Durkheim, e como refere Giddens, a anlise funcional de um fenmeno social implica o estabelecimento de uma correspondncia entre o social e as ideias colectivas [25] . Assim, tal como em Marx, encontramos no autor francs uma clara afirmao da dependncia das ideias, representaes e fenmenos mentais face aos processos sociais que esto na sua gnese: Para compreender a maneira como a sociedade se representa a si prpria e ao mundo que a rodeia, a natureza da sociedade, e no a dos particulares, que devemos conceber. Os smbolos com que ela se pensa mudam de acordo com o que ela [26] . Todas as categorias do pensamento so construes sociais, sendo de alguma forma o resultado da morfologia institucional de uma dada sociedade. Desta forma, o autor rejeita as teses filosficas que defendem o apriorismo dos conceitos e ideias. No entanto, este ponto no se afigura totalmente claro, uma vez que Durkheim, ao falar da exterioridade e do constrangimento que os fenmenos sociais (incluindo as ideias e as representaes) exercem sobre o indivduo, refere, como j mencionmos, que eles so-lhe, ao mesmo tempo, anteriores, preexistindo-lhe. Alis, precisamente por esse mesmo facto (a anterioridade) que podem ser considerados exteriores ao indivduo. De qualquer forma, existe aqui a margem de ambiguidade suficiente para que se possa falar de um idealismo no desejado no pensamento durkheimiano as ideias e as representaes antes do indivduo. Essa mesma ambiguidade persiste quando analisamos a correspondncia entre os fenmenos culturais e os processos societais. Apesar de os primeiros estarem dependentes da evoluo dos segundos, no podemos apressadamente

afirmar a existncia de um materialismo mecnico em Durkheim. o prprio que afirma quea conscincia colectiva (...) algo mais do que um mero epifenmeno da sua base morfolgica, tal como a conscincia individual algo mais do que uma simples eflorescncia do sistema nervoso [27] . Alm do mais, a sociedade est em permanente devir, resultando da interdependncia de instituies e agrupamentos. Assim, e mesmo considerando uma tendncia fixista da ordem social (j que todas as categorias so produto da sociedade, entendida como um Ser com identidade prpria), Durkheim aceita a evoluo social. A ambiguidade continua a existir na prpria concepo de actor social. Apesar de os reduzir frequentemente a uma espcie de robots sem vontade prpria nem intencionalidade, ocasies existem em que as motivaes pessoais dos actores adquirem um papel relevante. De qualquer forma, clara em Durkheim a tentao de reificao e mitificao do organismo social, caindo, por isso mesmo,[28]

no

que

Augusto

Santos

Silva

apelida

deposio

espiritualista

, ao construir uma espcie de metafsica da sociedade,

considerando esta como uma entidade ontologicamente superior ao indivduo e irredutvel sua soma. O conceito de totalidade , para este autor, a categoria por excelncia, assumindo indubitavelmente uma concepo holstica e sistmica esituando-se numa corrente de pensamento sociolgico vulgarmente designada por estrutural-funcional [29] . Esta crena numa realidade superior leva Machado Pais a falar num sentimento desagrado patente na teoria durkheimiana; um sagrado que d sentido ordem do mundo e que apenas os socilogos, detentores de um habitus cientfico rigorosamente controlado podero conhecer e explicar, descobrindo e formulando as leis do seu funcionamento [30] . Conhecimento que se torna, por isso, esotrico, distanciado do senso comum e assente na consolidao de corpos doutrinveis, no culto prioritrio de cortes epistemolgicos, em formas elementares de religiosidade (dogmtica) [31] . Ainda assim, o prprio Durkheim, alimentando uma vez mais equvocos e incertezas, num movimento que vai do radical sociologismo a posies consideravelmente mais moderadas, considera que o indivduo tem um papel importante na gnese das maneiras colectivas de agir e de pensar: Pelo facto de as crenas e as prticas sociais nos chegarem do exterior, no quer dizer que as recebamos passivamente e sem as submetermos a modificaes. Ao

pensarmos as instituies colectivas, ao assimil-las, individualizamo-las e incutimo-lhes em maior ou menor grau o nosso cunho pessoal, assim que, ao pensarmos o mundo sensvel, cada um de ns lhe d um colorido sua maneira e que sujeitos diferentes se adaptam de um modo diferente a um mesmo m eio fsico. Eis porque cada um de ns cria, em certa medida, a sua moral, a sua religio, a suatcnica. No h conformismo social que no comporte toda uma gama de matizes individuais. O que no impede que o campo das variaes permitidas seja limitado [32] . Afinal, a liberdade individual est longe de ser aqui negada, aparecendo mesmo, noo que muitos autores iro mais tarde desenvolver, como um campo limitado de possveis. Se esta nota de rodap figurasse no corpo principal do texto, talvez Durkheim (e com Durkheim a prpria abordagem sociolgica) no fosse to frequentemente acusado de um anti-individualismo e de um sociologismo radicais. No entanto, h que contextualizar a produo terica durkheimiana no jogo de foras dos subcampos acadmico e cientfico de incio do sculo. A atitude imperialista de unificar os procedimentos de conhecimento do social indissocivel da necessidade de conferir legitimidade institucional anlise sociolgica, convenientemente delimitada da psicologia, da filosofia social e do direito. Da a explicitao do mtodo, a definio dogmtica de um caminho, a clarificao rigorosa de fronteiras entre a natureza e a histria; o racional e o irracional; o sagrado e o profano; o normal e o patolgico; entre a cincia e a metafsica; entre sapiens e demens [33] ; a obsesso da procura da ordem, coerncia e regularidade do tecido social, sem margem para desvios subjectivistas ou tentaes de ecletismo. Importa, ainda, referir uma outra limitao do modelo durkheimiano. Se, de facto, todas as representaes colectivas (filosofia, religio e a prpria cincia) e crenas tendem a ser funcionais, no sentido de obedincia integrao na realidade social colectiva, ento h que levar tal raciocnio at s suas ltimas consequncias. O que implica, nomeadamente, o reconhecimento dos limites presentes na cincia, como forma parcial de conhecimento ligada a contextos sociais especficos [34] . Por outras palavras, subsiste a iluso de um conhecimento independente do sujeito que conhece, como se este, com o seu quadro de representaes, valores e pressupostos, no interferisse no prprio processo de observao.

Em suma, para o autor a cultura e as formas simblicas em geral so indissociveis da prpria sociedade. Nas palavras de Franco Crespi, quando Durkheim se refere a esta ltima, pensa, de facto, nas formas culturais (representaes, normas, modelos de comportamento, etc.), que a constituem na sua objectividade relativamente independente [35] . Concepo que, se por um lado exerceu uma notvel influncia em posteriores modelos tericos de base no psicologista, contribuiu, por outro lado, para o esquecimento da fora expressiva do agir social e da importncia dos processos de interaco social e de reconhecimento do e pelo outro na construo de identidade [36] . 1.3. Max Weber e a produo de sentido Ao contrrio de Karl Marx e de mile Durkheim, encontramos em Max Weber uma clara subordinao do objecto face ao sujeito, bem como a afirmao da especificidade da conduta humana e da ordem cultural. Alis, a anlise da obra de Weber afigura-se de uma importncia acrescida se pensarmos que ela exerce, mais do que os outros autores referidos, uma importncia decisiva na teoria social contempornea. A grande revoluo conceptual de Weber, tanto mais ousada quanto nela haveria a tentao de afirmao da anlise sociolgica, face, designadamente, psicologia e filosofia, encontra-se desde logo na definio da prpria disciplina: uma cincia que pretende entender, atravs da interpretao, a aco social para assim a explicar causalmente no seu desenvolvimento e nos seus efeitos [37] . Por aco entende-se toda a conduta a que o sujeito confere um sentido subjectivo; por aco social, um comportamento cujo sentido se orienta pelo sentido da aco dos outros. Alm do mais, apesar de privilegiar o tipo-ideal da aco racional, Weber faz questo de no ignorar importantes territrios da anlise sociolgica, em especial aqueles que se situam no que Giddens chama de conscincia prtica, ao considerar que os limites entre uma aco com sentido e um modo de conduta simplesmente reactivo (...) so inteiramente elsticos. Uma parte muito importante dos modos de conduta de interesse para a sociologia (...) faz-se na fronteira entre ambos [38] . Com estas consideraes, Weber recusa-se a deixar de lado elementos to importantes para a anlise sociolgica como a gestualidade, a expresso

corporal, todos os comportamentos no verbais e, em suma, as aparentemente insignificantes condutas quotidianas. A metodologia weberiana, em clara ruptura com a tradio positivista, opera atravs da interpretao, sendo esta considerada como a compreenso intelectual de uma conexo de sentido. E s o indivduo tem competncia para produzir uma aco significativa, sendo as estruturas (e restantes ent idades colectivas, como o Estado, a famlia ou a Igreja) produto da actuao social de singulares. Por outro lado, se a compreenso visa a anlise do sentido implicado numa aco, o objecto da sociologia o mundo cultural numa acepo ampla, incluindo tanto os artefactos materiais, obras da actividade humana, como os comportamentos e as aces orientados para a prossecuo de determinados fins, e at mesmo os rituais, os afectos e as modalidades irracionais da aco. Desta forma, opera-se uma ntida ruptura face s cincias naturais. Como menciona Frank Parkin, ao contrrio das molculas e dos planetas, as pessoas tm motivos para as suas aces. O seu comportamento orientado por significados subjectivos. Mais ainda, os actores sociais tm as suas prprias ideias e explicaes acerca da razo pela qual se comportam de determinado modo e essas ideias e essas explicaes so uma parte indispensvel de uma anlise compreensiva das condutas [39] . Assim, ao considerar que o indivduo e as suas aces devem constituir o objecto por excelncia da sociologia (individualismo metodolgico), Weber afirma-se, por conseguinte, contra todas as tentativas de reificao da sociedade e da estrutura social: aco como orientao significativamente compreensvel da prpria conduta s existe para ns como conduta de uma ou vrias pessoas individuais [40] . A oposio a Durkheim no poderia ser mais clara, na recusa da lgica unilateral do determinismo sociologista. Como refere Peter Hamilton, o pensamento weberiano caracteriza-se por uma falta de f na possibilidade de alguma vez obter respostas irrevogveis para as questes sociolgicas [41] . As cincias da cultura, na quais se incluem tanto a sociologia como a histria (e Weber sempre demonstrou um particular interesse pela sociologia histrica) devem preocupar-se com a singularidade histrica, entendida comomeio de conhecimento da essncia geral das experincias [42] . O facto histrico consiste, afinal, na natureza particular de um determinado fenmeno, sendo heuristicamente ricas as pistas e as ilaes que se podem retirar para

outras

situaes

ou

individualidades

histricas [43] .

Esta

ligao

do

individualismo metodolgico com a anlise histrica leva A. Teixeira Fernandes a considerar que se lcito falar em E. Durkheim de uma tendncia para um reducionismo naturalista, ser igualmente lcito falar de uma tendncia em M. Weber para um reducionismo histrico [44] . Trata-se, no fundo, de descobrir o que num dado meio social e numa dada poca se reveste de uma natureza particular, singular ou tpica em relao a outros meios sociais e a outras pocas. Ilustrando este raciocnio com a anlise das cartas de Goethe Sr. Stein, Weber considera, num primeiro momento, ser fundamental conhecer as condies gerais nas quais essas cartas foram escritas, bem como oconjunto da vida cultural do mundo envolvente [45] para, num segundo momento, interpretar a experincia individual dos valores e das normas dominantes actualizadas pelo criador dessas cartas. Assim, de uma assentada, Weber rejeita tanta as modalidades de anlise sociolgica que consideram o indivduo de forma a-histrica e descontextualizada, preocupando-se sempre em inseri-lo no conjunto da envolvente societal, como as verses que ignoram as vivncias, as experincias e as emoes individuais. Frank Parkin faz notar, a esse respeito, a distino e a complementaridade que Weber estabelece entre a compreenso actual do sentido visado de um acto (actuelles Verstehen) e a compreenso explicativa (erklarendes Verstehen) [46] . Enquanto que a primeira se pode ilustrar pela capacidade que temos de compreender que algum est irritado pela simples leitura da sua expresso facial, mediante a intuio patente no acto observacional, a segunda requer a incluso num contexto cultural mais vasto, um quadro de conhecimento alargado, dentro do qual se torna possvel compreender o fenmeno social [47] . Em sntese, a compreenso da aco humana preocupa-se com os objectos culturais, isto , orientados por valores e motivaes (factor distintivo das cincias da cultura face s cincias da natureza), mas sempre enquadrados numa determinada individualidade histrica. Este mtodo pretende, assim, captar a constelao nica de caractersticas que definem a originalidade de cada conduta ou instituio social, num certo momento histrico [48] . Essa constelao, no o esqueamos, encontra-se sempre ligada a um universo pleno de sentido e subjectivamente vivido e elaborado. essa

caracterstica tpica e exclusivamente humana a produo de sentido -, que nos leva a salientar a seguinte definio de cultura: (...) segmento finito de entre a infinitude sem sentido do devir do mundo, segmento a que os seres humanos conferem sentido e significao (...) A pressuposio transcendental de toda a cincia cultural no repousa sobre a nossa opinio acerca do valorde uma certa cultura ou da cultura em geral, mas sim do facto de sermos seres culturais dotados da capacidade e da vontade de tomar uma atitude deliberada perante o mundo e de lhe atribuir significao [49] . Deste modo, as cincias sociais e a sociologia em particular so formas de conhecimento duplamente interpretativo, ou, nas palavras de Parkin, uma actividade de segundo nvel, j que se reporta a teorias e concepes dos actores sociais e no aos comportamentos desses actores, em bruto, tal como so [50] . Assim, os significados subjectivos da aco so, por si mesmos, ingredientes indispensveis para a sua prpria explicao, valendo como factos sociais. a vez de Weber acentuar, como de resto faz recorrentemente, embora nem sempre de forma explcita, a sua distncia face a Marx, designadamente sua noo de ideologia como mistificao, iluso ou falsa conscincia. Mas a demarcao vale tambm em relao a Durkheim, em especial no que se refere sua exigncia de ruptura face ao senso comum [51] . A anlise complexifica-se quando o autor se pretende demarcar da inteno nomottica da cincia experimental "positivista". De facto, Weber defende que qualquer operao cientfica est impregnada de juzos de valor e de concepes do mundo, ideais que so to sagrados para os outros como os nossos o so para ns [52] . Da, a afirmao muito clara da dependncia da cincia face a determinadas perspectivas especiais e parciais que seleccionam as manifestaes sociais que so objecto de investigao. Nas palavras do autor, uma parte nfima da realidade individual adquire novo aspecto de cada vez que observada por aco do nosso interesse condicionado por tais ideias de valor [53] . Essa parte da realidade a que se encontra ligada, precisamente, ao quadro cultural de referncia, aos interesses e s atitudes significativas do cientista. Por conseguinte, todo o trabalho cientfico parte de uma orientao subjectiva, a qual, por sua vez, est intimamente ligada ao esprito de uma determinada poca histrica. Desta forma, Weber critica as leis amplas e abstractas que, no seu entender, so as mais vazias de contedo e as mais distanciadas da realidade. Pelo mesmo

motivo, recusa todas as imputaes causa/efeito de cariz unilateral, presente tanto no monismo sociologista de Durkheim, como no mecanicismo materialista de Karl Marx. Da apontar para o carcter pluralista e probabilista da causalidade. Como alternativa, Weber prope a construo de tipos-ideais, enquanto conceitos genticos que se afastam da realidade emprica para melhor captar a sua significao cultural especfica, atravs da acentuao unilateral de certas caractersticas, a partir de um ou mais pontos de vista. No entanto, o procedimento dever ser lgico e jamais normativo segundo Weber, existem ideais-tipo tanto de bordis como de religies [54] . Cada exerccio de pesquisa dever, partindo do tipo-ideal construdo, verificar o seu grau de adequao aos factos concretos. Desta forma, como a prpria cincia, o conceito sempre provisrio. Contudo, como acentua Frank Parkin, possvel acentuar unilateralmente determinados critrios, obtendo-se, no limite, tipos-ideais totalmente diferentes apesar de se basearem no mesmo fenmeno. Assim, a afirmao de que os tipos-ideais nos dizem menos acerca da realidade social do que acerca dos preconceitos interiores , no mnimo, defensvel [55] . Uma outra questo, provavelmente a mais polmica na obra de Weber e transversal, alis, maior parte dos seus escritos, prende -se com o lugar da cultura na determinao dos fenmenos sociais. notrio que Weber valoriza a dimenso cultural dos factos histricos, como acontece quando analisa a emergncia do capitalismo, mas parece-nos errado considerar essa componente como sendo exclusiva. Parkin diz mesmo que injustificada a sua to divulgada reputao antimaterialista [56] . De facto, Weber muito claro quando defende a pluralidade causal. O prprio conceito de individualidade histrica, anteriormente referido, apon ta no mesmo sentido: complexo de relaes na realidade histrica, congregadas num todo conceptual sob o ponto de vista do seu significado cultural [57] . No entanto, ao analisar a gnese do capitalismo, Weber coloca a nfase no esprito do capitalismo, considerando-o como a verdadeira origem da acumulao de capital; um capitalismo racional, baseado no raciocnio econmico legitimado pela tica protestante do trabalho, fenmeno que se insere no movimento mais geral de alargamento da dominao racional e legal, indissocivel da constatao, lcida mas algo melanclica, do desencantamento do mundo, uma vez que o funcionamento do social se

reduz obedincia de regras impessoais e no ao encanto mgico e carismtico das sociedades mais antigas. Ainda assim, de salientar, ao contrrio do que afirmam algumas crticas vulgares, que Weber defende a complexidade e a multidimensionalidade dos fenmenos sociais, recusando as perspectivas unilaterais, sejam elas materialistas ou espiritualistas: ...com ambas se presta um mau servio verdade histrica, se forem consideradas como ponto de chegada e no de partida da investigao [58] . Ponto de partida que, j o referimos, sempre provisrio (institudo numa dada singularidade histrica) e jamais uma verdade eterna.

1.4. Breve Balano. Da anlise destes trs autoresuma espcie de trindade secular de socilogos, deificada onde quer que se ensine sociologia [59] -, constata-se que muitas das crticas que lhes foram dirigidas carecem de fundamento. De facto, a sua obra complexa e o seu pensamento vai alm da habitual vulgata que muitas vezes se insiste em lhes atribuir. Alis, a sua obra contm em si mesma elementos de superao de certos aspectos mais criticados: Marx insiste antes de mais no enraizamento social da actividade humana e luta contra os preconceitos do homemoeconomicus e as leis econmicas universais; Durkheim admite a criatividade e a diferena individuais; Weber defende o cruzamento de vrias lgicas com efeito causal. O principal problema reside nalguma impreciso conceptual que os caracteriza, marcada por avanos e recuos, afirmaes e rectificaes. Por outro lado, o nico autor a desenvolver uma teoria sistemtica sobre a actividade cultural, conferindo-lhe um grau assinalvel de autonomia, Max Weber. Ainda assim, e tal como os outros dois autores, a sua teoria, enquanto grande edifcio conceptual, suscita um vasto leque de dificuldades de operacionalizao e de converso para uma linguagem propcia pesquisa emprica. No entanto, as principais questes que levantam continuam a ser as grandes inquietaes da anlise sociolgica: sujeito versus objecto, idealismo versus materialismo, consenso versusconflito... finalismo versus mecanicismo,

Estudar criticamente as suas obras no , por isso, um exerccio de procura da arqueologia da escrita sociolgica mas sim, pelo contrrio, mergulhar plenamente na actualidade do debate sociolgico, encontrando pontes de contacto com a contemporaneidade e procurando incentivo tanto na exemplaridade de certas anlises, como nas formas e mtodos ora complementares, ora conflituais de abordagem da realidade. Sem descurar o que, em tais propostas, existe de errneo, contraditrio, precipitado ou simplesmente desadequado. Nas palavras de Peter Hamilton: A sociologia tem, pelo menos, a pretenso de ser uma cincia e nenhuma cincia pode permitir-se considerar o trabalho dos seus principais pensadores como inviolvel e imune a crticas. S explorando os erros dos seus antepassados uma cincia pode progredir [60] . 2. Tendncias actuais da sociologia no estudo da cultura. 2.1. A anlise da vida quotidiana: fenomenologia social, etnometodologia e interaccionismo simblico. Uma das principais correntes actuais da sociologia, ramificada em vrias escolas de pensamento, encontra a sua origem na anlise compreensiva das sociedades, herdando os ensinamentos de Husserl (pela banda da fenomenologia), de Heidegger e Gadamer (pela banda da hermenutica), de Dilthey, Rickert, Simmel e, principalmente, de Weber. A actividade humana entendida como aco consciente, dotada de sentido e subjectivamente orientada, o grande trao de unio entre a fenomenologia social, a etnometodologia e o interaccionismo simblico. Desta forma, a realidade social encarada como o resultado da actividade dos sujeitos, enquanto construo social que resulta da sua contnua produo do mundo, imbuda de intencionalidade comunicativa, base das relaes intersubjectivas. Segundo Franco Crespi, estas teorias proporcionam um melhor conhecimento da gnese da cultura e da sua dinmica intrnseca. No que se refere fenomenologia social, impe-se uma referncia obra de Alfred Schutz, enquanto busca pioneira dos fundamentos da vida quotidiana e da razo prtica. Para Schutz, o mundo da vida quotidiana a regio da realidade na qual o homem se empenha e que pode modificar qua ndo nela

opera [61] . Considerando que a realidade se encontra dividida em provncias ou regies finitas de sentido (a cincia, o sonho, a arte, a vida quotidiana, etc.), Schutz preocupa-se especialmente com o que apelida de realidade primeira: o mundo da vida quotidiana, universo no qual agimos e em relao ao qual adoptamos uma atitude natural de confiana. Universo aproblemtico at demonstrao em contrrio (until further notice), um mundo fundamentalmente igual para mim e para os outros, e que permite, por isso, a compreenso mtua, o contacto intersubjectivo e a troca de posies e de perspectivas atravs de uma srie de realidades dadas como adquiridas. Mundo comum, interpretado, apreendido e construdo de acordo com um stock prvio de experincias e vivncias, mas impondo limites actuao dos indivduos, j que as suas aces, apesar de subjectivamente orientadas, criam objectos que exercem constrangimentos livre aco dos outros e vice-versa. O stock de conhecimento, funciona como guio de referncia para a aco prtica, isto , pr-reflexiva, atravs da qual damos um sentido realidade envolvente: O mundo da vida, compreendido na sua totalidade como um mundo natural e social, a arena, bem como a entidade, que fixa os limites da minha e da nossa aco recproca [62] . De facto, as significaes consideradas como adquiridas e partilhadas pelos vrios sujeitos no mundo da vida quotidiana impedem uma atitude, que seria insustentvel, de permanente questionamento de tudo o que nos rodeia. Os outros aparecem como corpos dotados de conscincia, homens como eu [63] e a realidade apenas se torna problemtica quando surge algum acontecimento que no encaixa no meu esquema (stock) de referncia. Ns sabemos o que o outro faz e porque o faz, j que existe uma reciprocidade de perspectivas que nos permite prever e antecipar a sua aco. A conscincia reflexiva actua sempre a posteriori, quando penso nas aces em que estive envolvido e surge a necessidade de as tornar inteligveis. A forma que possumos para aceder ao comportamento e motivao dos outros liga-se, indissociavelmente, s suas performances corporais. ento q ue todo um conjunto de condutas, rituais e linguagens, inclusivamente no -verbais, passam a ser considerados, no s como objectos legtimos da anlise sociolgica, mas tambm como sinais de orientao nas rotinas quotidianas. volta desse mundo da vida, assente no corpo [64] , que gira toda a teoria de Schutz, negligenciando o fascnio de muitos pensadores pelas magnficas

construes do conhecimento culto ou erudito, afinal uma provncia finita de realidade. Schutz e a fenomenologia social ocupam-se de tudo o que seja conhecimento socialmente produzido e partilhado, centrando a sua ateno nos pormenores supostamente insignificantes e andinos da vida de todos os dias. Nesta linha, h uma clara aproximao aos esquemas cognitivos e mentais do senso comum, s realidades tidas como adquiridas (taken-for-granted), ao pensamento que no se pensa. Para estes autores, ao contrrio dos racio nalistas, no h qualquer necessidade de romper com o senso comum para iniciar um processo de construo cientfica; pelo contrrio, o senso comum o objecto por excelncia da anlise sociolgica e esta deve-se adequar aos seus esquemas de referncia. Em termos fenomenolgicos, no relevante que as interpretaes e construes do senso comum sejam errneas e mistificadoras; o que interessa o seu papel na percepo e edificao da realidade quotidiana, a realidade primeira e tida como evidente e ordenada, ainda que assim o no seja. Mesmo as experincias que transcendem esta realidade primeira (a experincia cientfica, esttica, religiosa, etc.) acabam por ser apropriadas de acordo com a linguagem da vida vulgar. Tal como no teatro, quando desce o pan o, assim a conscincia regressa realidade da vida quotidiana, transformando as outras experincias em intervalos mais ou menos curtos: A realidade dominante envolve-as por todos os lados (...) e a conscincia sempre retorna realidade dominante como se voltasse de uma excurso [65] . Durante o decorrer de um dia, viajamos choques cognitivos por[66]

vrias

provncias do

finitas

de

significado, de

experimentando ou estilos

que

resultam

confronto

sentidos

diferentes (sonhar, acordar, estar activo, ler um livro ou ouv ir

msica, etc.). Como refere Giddens, apesar de ocorrerem com frequncia, estes choques fazem parte das rotinas dos agentes, j que estes esto habituados a transitar, de forma habitualmente serena, entre diferentes tipos de linguagem [67] . No mundo da vida quotidiana, tambm ela uma provncia finita de sentido, a actividade, o estar-se activo e em viglia a principal caracterstica do estilo cognitivo. Desta forma, a aco humana empenhada traduz -se por actos performativos (acts of performing) que transformam a realidade. As minhas performances permitem-me aceder ao mundo da vida, alterando-o e apresentando-o aos outros com o poder de uma facticidade externa e objectiva, que limita tanto as suas aces como as deles limitam as minhas. De facto, o comportamento intersubjectivo decifra-se atravs de determinadas

manifestaes exteriores que funcionam como signos e sistemas de si gnos que objectivam, atravs da comunicao, significados inicialmente subjectivos. Estes, da parte de quem age, traduzem-se por esquemas expressivos que permitem ao interlocutor e/ou ao observador, accionar os seus esquemas interpretativos, baseados em codificaes de experincias anteriores. Desta forma, reduz-se a complexidade da realidade social e permite-se, apesar da intrnseca indeterminao do agir humano, uma certa previsibilidade recproca dos comportamentos [68] . A cultura, nesta perspectiva, no apenas constituda pelas obras que transcendem o aqui e agora da realidade quotidiana. As grandes obras da experincia esttica, com os seus imponentes nomes e tradies so apenas uma quasi-realidade, uma provncia finita de sentido, entre muitas outras. No existe, pois, nenhuma justificao para lhe conferirmos uma superioridade ontolgica. A cultura no concebida apenas em termos de objectos ou artefactos, ela uma cultura-aco [69] , eminentemente relacional e intersubjectiva, constantemente actualizada e instantaneizada nas nossas actuaes quotidianas. Assim, e em sntese, a abordagem fenomenolgica assenta, no tanto na expresso de um mundo interior, mas, antes de mais, no carcter intencional da aco, mediado pela linguagem enquanto canal da actividade social prtica diria [70] . Os actos comunicativos e a constante produo de significado constituem, por isso, o fazer qu otidiano da sociedade, entendida como uma realizao engenhosa dos actores [71] . A etnometodologia, neologismo criado por Harold Garfinkel [72] ,

preocupa-se, por seu lado, com os implcitos subjacentes aco quotidiana, partindo do princpio, igualmente presente na fenomenologia social, de que os agentes sociais apreendem e constroem a realidade tendo em vista objectivos essencialmente prticos:Utilizo o termo etnometodologia para me referir investigao das propriedades outras racionais aces das expresses de indicalidade (indexicality) e prticas [73] . Utilizando

situaes quasi-experimentais, Garfinkel consegue trazer ao de cima os significados implcitos da aco prtica, significados de natureza pr -reflexiva e no exprimveis discursivamente. Agindo sempre na fronteira do normal e do desviante, este autor tem como objectivo resgatar os tais significados taken-for-granted que os actores utilizam nas rotinas dirias;

significados que, apesar de surgirem como naturais (e por isso no explcitos), provam a centralidade da componente cultural da natureza humana, moldada por um poderoso, lento e permanente processo de sociali zao e de adequao s normas e padres dominantes; socializao que consiste, no tanto na sujeio s normas, mas na sua interpretao interpretao que, por sua vez, confere um sentido ao mundo da vida. Ora, atravs dos processos constitutivos dessas interpretaes, o socilogo consegue aceder aos mtodos socialmente contextualizados de construo da realidade. Para isso, provoca transgresses situao estabelecida e observa a reaco ao imprevisto por parte dos actores sociais quando sentem como estranhos os quadros mais habituais. Desta forma, ao discutirem-se as regras usualmente mais pacficas, compreende-se o carcter de permanente negociao a que esto submetidas. A melhor prova da centralidade das convenes (uma conveno, por natureza, uma marca cultural) reside no facto de as pessoas perderem a orientao cognitiva quando as aparentemente insignificantes regras do dia-a-dia so questionadas ou violadas. De facto, forma-se uma sensao desconcertante quando alter no corresponde ao comportamento esperado por ego. Por momentos, e antes mesma do rudo ser assimilado e porventura compreendido, como se um universo inteiro de regras e convenes subjacentes mais andina interaco desmoronasse, e com ele arrastasse os actores sociais envolvidos. A situao resvala sempre para um contexto de anomia quando no existe uma correspondncia entre o acontecimento real e o acontecimento esperado: o acontecimento anmico quando no tem um sentido nos termos das regras do jogo (...) o delinquente posto fora do jogo: o que lhe censurado no ter infringido as regras, mas ter -se comportado de um modo tal que as regras comummente aceites no permitem interpretar os acontecimentos surgidos, e regular a sua conduta de acordo com essa interpretao [74] . De facto, so essas regras ou convenes que organizam as situaes de interaco, tornando-as congruentes com as expectativas recprocas que esto na base da previsibilidade do comportamento humano. Nestas alturas, quando a ordem convencional subvertida, o senso comum trai-se, revelando os pressupostos raramente pensados sob os quais repousa a sua actividade. O senso comum, alis, pode ser definido como o pensamento em aco nas rotinas dirias; um pensamento que raramente

reflecte nos seus alicerces mais profundos porque est em situao de permanente performance. Uma vez mais, a anlise cientfica no opera pela definio de um sistema de relaes objectivas que enquadram a actividade humana; pelo contrrio, a metodologia cientfica deve partir da compreenso emptica, a partir do interior (from within). Desta forma, aceita-se como metodologicamente possvel a identificao emptica entre observador e observado. As tcnicas de observao so, por isso, utilizadas em situao de exclusividade, de forma a poder captar tanto a linguagem verbal, como a no-verbal, tanto a palavra como o gesto, tanto o discurso como o corpo. Alis, o observador social deve, de vez em quando, fazer por usar uma linguagem que seja coerente com a dos sujeitos observados, evitando sobrepor realidade especfica analisada categorias abstractas, elaboradas independentemente do contexto social que se pretende estudar [75] . Assim, respeita-se o princpio da indicalidade, que impede generalizaes abusivas, j que to das as explicaes so contigentes e devem ser interpretadas de acordo com o contexto especfico em que foram emitidas [76] . As estruturas so aqui reduzidas aos processos de atribuio de sentido por parte dos actores sociais, enquanto mero produto das suas interaces e da sua percepo e interpretao da vida social: fenmenos estruturais como o rendimento, a distribuio pelas profisses, a organizao familiar, as classes sociais e as propriedades estatsticas da linguagem, so produtos que emergem de uma grande quantidade de comunicaes, percepes, juzos e outras tarefas acomodativas pelas quais as pessoas concertadament e encontram a partir do interior, os meios sociais com os quais a sociedade as confronta, mantm, restaura e altera as estruturas sociais que so os produtos amalgamados do curso temporalmente prolongado das aces dirigidas para esses meios sociais [77] . De facto, s o agir pode ser considerado como relativamente autnomo (ele depende tambm dos contextos em que se exerce) e nel e, ou melhor, nas suas interpretaes, que assenta a ordem social que, como j referimos, instvel e sujeita a subverses constantes, o que nos afasta de todo e qualquer modelo esttico das relaes entre cultura e estrutura social.

Finalmente, e para completar este breve olhar sobre as correntes que se situam do lado da produo ritualizada e quotidiana da sociedade e da cultura, importa referir o papel do interaccionismo simblico e, em particular, de Erving Goffman. Estudando a interaco social como representao, Goffman suscitou sobre si dvidas acerca da legitimidade cientfica da sua obra, dvidas essas que devem ser compreendidas no mbito das lutas pela consagrao no interior do campo cientfico e do sub-campo da sociologia acadmica americana. Utilizando um vocabulrio pleno de analogias dramatrgicas, no se coibindo de recorrer pequena histria e s suas fontes, ilustrando os seus conceitos com anedotas ou excertos de romances, Goffman no poderia ter deixado de suscitar reaces de repulsa e de desconfiana. No entanto, ele o primeiro a afirmar o carcter integrado da sua pesquisa, demonstrando mesmo a convico de que constitui uma nova perspectiva de conjunto sobre a vida social, um quadro de referncia que poder ser aplicado a qualquer configurao social concreta [78] . O cerne da sua anlise situa-se no estudo dos papis sociais, enquanto quadros no interior dos quais se exprimem e se individualizam as personalidades individuais dos actores: Considerarei o modo como o indivduo em situaes de trabalho habituais se apresenta a si prprio e sua actividade perante os outros, as maneiras como orienta e controla a impresso que os outros formam dele, as diferentes coisas que poder ou no fazer enquanto desempenha perante os outros o seu papel [79] . Existem trs entidades fundamentais no estudo do tipo-ideal da interaco social: os dois actores (ou personagens...) em presena e ainda a audincia ou pblico. Cada actor tem como tarefa a gesto da sua apresentao pblica, cabendo audincia o papel de sancionar ou consagrar essa representao. Como refere Nicolas Herpin, o Eu s se substancializa pela mediao do pblico. Os actores de teatro, por melhor que saibam os seus papis e por mais vezes que os tenham representado com sucesso tm sempre medo; o que no mais do que reconhecer obscuramente o peso decisivo de cada pblico na substancializao do papel apresentado [80] . A projeco de uma dada impresso, e a interpretao dessa impresso, constituem dois momentos fundamentais no processo de interaco. O actor, mesmo em situao de silncio, no deixa de transmitir uma impresso: Os actores podem deixar

de se expressar, mas no podem impedir-se de exprimir alguma coisa [81] . Existe aqui, de forma muito clara, uma nfase nos processos de comunicao e na mediao exercida pela linguagem. A impresso adquire um determinado significado, o que a remete para o seu carcter eminentemente sim blico. J H. Mead referia o poder constitutivo da ordem simblica, atravs do quadro de referncias contido na objectivao de significados patente no conceito de outro generalizado, face ao qual os indivduos formam as suas identidades e incorporam os seus papis [82] . No entanto, a interpretao da impresso transmitida no depende apenas da representao. Existem, igualmente, o que Goffman chama de portadores ou indcios de informao, como por exemplo a relao que se pode estabelecer entre a aparncia e o estatuto scio-econmico do actor ou entre determinados comportamentos e os rtulos (labels) ou esteretipos associados ao papel em representao (pense-se, designadamente, no conjunto de rtulos que se associam a um determinado papel desde que ele representado por uma mulher). Assim, natural que exista uma seleco por parte dos actores antes de escolherem os seus papis, de acordo com a valorao positiva ou negativa que fazem dos rtulos que lhes esto intimamente associados. Desta forma, Goffman admite ir mais longe do que os fenomenlogos e os etnometodlogos, ao considerar a pertinncia da interferncia d e certos factores exteriores situao de interaco; factores vincadamente estruturais e, por isso, de ndole macrossociolgica. Alis, o autor preocupa -se com as regras que esto na base da definio da situao de interaco, de maneira a que seja possvel prever reciprocamente o agir dos intervenientes, mantendo a ordem social [83] . De igual modo, rejeita a utilizao de dimenses psicol gicas e/ou existenciais, atribuindo um grande relevo comunicao exercida em consonncia com a cena social. Esta mesma tendncia verifica-se quando considera a importncia dos factores contextuais nas situaes de interaco. conhecido o seu modelo de anlise baseado na considerao da oposio entre a fachada (ou regio frontal) e os bastidores (ou regio de traseiras). A linguagem, as condutas, as performances verbais, variam acentuadamente de uma regio para a outra, o que nos leva necessariamente anlise (ainda que tal no seja explicitamente referido por Goffman) da sua configurao estrutural e da importncia do espao na vida social [84] .

Alis, a clebre afirmao de Goffman, de que o Eu um efeito dramtico remete-nos, precisamente, para a constatao de que a representao no se identifica necessariamente com o ego. Para uma correcta anlise da situao de interaco, devemos considerar o contexto em que esta ocorre: a regio, o papel e a constituio do pblico, os indcios transmitidos, etc. Joo Arriscado Nunes defende mesmo que Goffman considera a articulao entre a ordem social e a ordem da interaco atravs de um vnculo fraco (loose coupling) entre as duas ordens, estabelecido atravs de processos de transformao dos elementos prprios da ordem estrutural em elementos caractersticos da ordem da interaco [85] . Pode-se ainda acrescentar que as prprias variaes nas situaes de interaco remetem inevitavelmente para a presena de mecanismos institucionais. No entanto, ao procurar essa articulao, Goffman respeita o princpio de que ela deve ser procurada nos elementos invocados nos prprios episdios de interaco, sem recorrer a uma mudana de procedimentos de anlise ou a uma mudana na escala de anlise [86] . Desta forma, nas prprias situaes microssociolgicas que devemos procurar as variveis explicativas das prticas sociais, considerando -as como sistemas sociais auto-suficientes [87] . Assim, existe um acordo fundamental entre o interaccionismo simblico e as anlises fenomenolgicas e etnometodolgicas: o objecto de estudo o homem na sua vida quotidiana e no incessante trabalho de produo simblica e cultural. A realidade social no predeterminada do exterior; ela sempre o resultado da percepo, interpretao e avaliao dos actores [88] . Do mesmo modo, a comunicao exerce um papel mediador fundamental, enquanto veculo de significados com a fora de smbolos, sem com isso retirar ao sujeito o seu papel activo, designadamente nas interpretaes que fornece. Se, por um lado, o actor social est imbudo das regras e convenes dominantes numa dada sociedade (a cultura o seu ambiente), por outro lado ele no cessa de produzir novos horizontes de vida, alterando o quadro de referncias de que portador. Alis, ao colocarem a sua nfase na gnese e funcionamento da cultura, as motivaes subjectivas da aco acabam por ser realadas face s suas determinaes objectivas. 2.2. A sociedade como totalidade: funcionalismo, estruturalismo e

ps-estruturalismo. Nos antpodas das correntes anteriormente mencionadas, situam -se os paradigmas que encaram a sociedade e os sistemas simblicos como totalidades. Esta anlise holstica, de cariz objectivista, isto , baseada na ruptura face aos saberes e condutas quotidianas dos actores, assenta num campo semntico onde pontificam conceitos como o de funo, estrutura ou sistema. O seu prin cipal objectivo a procura das regularidades, padres institucionais ou invariantes que pautam o fluxo das relaes sociais, recusando uma continuidade entre os dados sensveis das experincias vividas e a lgica da explicao cientfica. Mesmo quando se referem aos actores, como acontece com Parsons, tais perspectivas acabam por privilegiar a situao, sendo esta constituda por um conjunto de valores, normas e regras definido a nvel supra-individual [89] . Os actores interiorizam, mais ou menos passivamente e atravs de processos de institucionalizao, um conjunto de modelos e padres simblicos que lhes so exteriores e os condicionam. Em vez da anlise dos indivduos em termos da sua livre aco social, isenta de determinaes, Parsons defende a obedincia a conjuntos especficos de valores, codificados e institucionalizados em papi s sociais [90] , ou, como refere Madureira Pinto, a um redutor determinismo idealista [91] que tudo limita aos valores dominantes numa dada sociedade, inclusivamente a prpria diviso do trabalho e o sistema de estratificao social. Desta forma, o funcionalismo apaga o sujeito enquanto agente activo, limitando-lhe o campo de aco ao espartilho pr-definido de um determinado leque de papis sociais, em obedincia reproduo do sistema social. Esquecendo, como refere Giddens, o carcter negociado das normas enquanto abertas a interpretaes conflituais e divergentes [92] , fenmeno extremamente ligado a uma desigual repartio do poder no seio dos sistemas sociais. Preocupando-se, exclusivamente, com a integrao dos valores comuns. Esta concepo de cultura e de sociedade tem bvios efeitos ideolgicos. Se entre o indivduo e as normas, valores e regras dominantes existe uma continuidade e no uma ruptura, a tendncia dos sistemas sociais ser para a evoluo homeostsica. Os conflitos e os mecanismos de negociao nos processos de interaco que as correntes subjectivistas anteriormente referidas

postulavam so aqui negados pelo prprio peso das sanes que se exercem sobre os comportamentos desviantes. A noo de uma totalidade integrada, harmoniosa e coerente que precede o estudo das partes essencial para a compreenso do funcionalismo. De facto, o sistema, enquanto todo composto por partes interdependentes, de forma a que uma modificao numa delas acarreta modificaes nas restantes e no prprio todo, evita a entropia e tende para a integrao. Tal como um organismo, os sistemas sociais asseguram a sua perpetuao pela satisfao da s necessidades que lhe so inerentes, acentuando-se, por isso, o seu carcter sincrnico. Mesmo quando existem disfunes, o sistema assegura a sua unidade atravs da substituio do elemento que funciona mal por um outro que lhe equivalente [93] . Nesta perspectiva, a produo da cultura deve ser procurada no todo social, em ntima relao com os restantes sistemas ou subsistemas, e nunca como entidade autnoma ou enquanto produto do sentido que os indivduos subjectivamente atribuem sua aco. A funo da cultura, mesmo quando considerada como um sistema relativamente autnomo (Parsons), esgota -se na orientao normativa do agir individual, controlando-o e uniformizando-o. O estruturalismo, enquanto anlise holstica, assegura uma continuidade face aos pressupostos do funcionalismo. Contudo, reconhece preferencialmente a totalidade como uma entidade em relao e, muitas vezes, em conflito mais do que as posies dos elementos constituintes da sociedade, importa definir as suas relaes e as leis que as regulam. Alm disso, liga -se indissociavelmente lingustica, em particular a de raiz saussuriana. Giddens considera fundamental para a compreenso das limitaes do estruturalismo, a explicitao da concepo saussuriana de lngua ( langue) e fala (parole). Enquanto forma estrutural, enquanto sistema, a primeira, esttica, deve ser separada dos seus mltiplos usos ou desempenhos, aquilo que constitui o lado executivo da linguagem. A lngua, alis, definida como sistema de signos cujo nico trao essencial a unio dos significados e das imagens acsticas [94] . Desta forma, e como Giddens refere, a linguagem aparece como um sistema abstracto e idealizado, fortemente desligado dos seus contextos, aplicaes ou usos concretos. Assim, a linguagem desenvolve-se num jogo de diferenas internas, divorciada das suas instantaneizaes. O significado deriva,

apenas, das diferenas estabelecidas entre essa palavra e as demais. Consequentemente, as palavras no significam os seus object os (tese do carcter arbitrrio do signo): a linguagem forma e no substncia. Qualquer elemento para ser compreendido deve, por isso, ser enquadrado no interior do sistema, despossudo que se encontra de autonomia ou existncia enquanto entidade singular [95] . Desta forma, a concepo de estrutura remete para um conjunto de posies em permanente relao, derivando o lugar de c ada posio desse jogo ininterrupto. Assim, os stios, lugares ou posies possuem um estatuto ontologicamente superior ao dos sujeitos que os ocupam. por ocupar um dado lugar, e no pelas suas idiossincrasias, que um determinado sujeito pensa, imagina ou sonha de uma forma particular: Em suma, os stios num espao puramente estrutural so primeiros em relao s coisas e aos seres reais que os vm ocupar e tambm em relao aos papis e aos acontecimentos sempre um pouco imaginrios que necessariamente ocupados[96]

surgem quando

eles so

. Por outro lado, esta abordagem topolgica e relacional considera

os sujeitos como estando numa fila para ocupar diferentes lugares na estrutura, moldando a sua personalidade e o seuhabitus de acordo com as caractersticas intrnsecas de cada um desses lugares. Desta forma, e porque se trata de uma cadeia ou fila de posies em permanente relao (e mutao), o sujeito ocupa sempre o lugar do morto, o espao que no momento seguinte ser de outro. Assim, o sentido sempre o efeito de uma posio. O anti -humanismo do estruturalismo no consiste tanto na eliminao do sujeito, mas sim na sua transformao em sujeito nmada, circulante e encarnando de forma impessoal as propriedades associadas aos lugares ou posies. Desta forma, a aco tida como uma dimenso secundria, bem como o carcter histrico da experincia social. O programa terico do ps-estruturalismo, por seu lado, pode ser ilustrado com a referncia tese da descentrao do sujeito. De acordo com esta perspectiva, nega-se uma vez mais a possibilidade de acesso conscincia humana atravs dos actos ou objectos cultura is. Derrida, por exemplo, defende a autonomia do texto, enquanto Foucault, ao analisar o momento histrico da emergncia da figura do autor, fala na sua morte anunciada, e lana a questo o que importa quem fala?: (...) a escrita est agora ligada ao sacrifcio da prpria vida; apagamento voluntrio que no tem

de ser representado nos livros, j que se cumpre na prpria existncia do escritor. A obra que tinha o dever de conferir a imortalidade passou a ter o direito de matar, de ser a assassina do seu autor [97] . O texto, afinal, segue o seu prprio curso, sujeitando-se s mltiplas interpretaes e reconstrues dos seus leitores, desvanecendo-se, por isso, a figura do autor. Como objecto cultural que , o texto ultrapassa os contextos de co -presena (o aqui e agora da interaco) e implica uma distncia que acaba por favorecer o papel do receptor/consumidor. Desta forma, os objectos culturais no permitem, por si ss, aceder intencionalidade da aco humana que os gerou. 2.3. Breve balano e reencaminhamento em direco complexidade. Que balano pode ser feito da comparao entre estes dois plos da produo terica sociolgica e que traduzem profundas aporias (sujeito versus objecto, mecanicismo versus finalismo, etc.)? Por um lado, impe-se destacar algumas limitaes fundamentais das anlises compreensivas de cariz fenomenolgico. Podemos referir a principal dessas limitaes como sendo uma colossal ingenuidade perante todos os constrangimentos que precedem a aco individual. De facto, ao pretender constituir-se como uma sociologia da vida quotidiana, naquilo que ela possui de recorrente e rotineiro, mas tambm de equvoco e de imprevisto, as perspectivas fenomenolgica e hermenutica [98] esquecem que as possibilidades dessa aco s sero visveis quando se procurarem as regularidades que objectivamente enquadram o devir social. Os agentes no sabem tudo sobre a sua vida, embora o que saibam seja de primordial importncia para a anlise sociolgica. No pode esta, no entanto, arvorar-se como razo dogmtica e omnisciente. Assim, na perspectiva de um racionalismo relacional (procura do sistema de relaes objectivas que enquadram os fenmenos sociais) que poderemos detectar o conjunto da situao (a cena total, para utiliz ar a linguagem do interaccionismo). A finitude, incompletude e assimetria dos pontos de vista subjectivos, alertam-nos para as limitaes das correntes fenomenolgicas e interpretativas, designadamente na falta de ligao s dimenses estruturais da vida social: as pertenas classistas, as hierarquias sociais, a distribuio assimtrica de recursos, competncias e poderes so

frequentemente ignorados ou remetidos ao estatuto de variveis dependentes (produto da interaco, da interpretao subjectiva ou da atribuio de sentido). No a participao emptica que leva identificao entre observador e observado. uma veleidade descabida e desmentida empiricamente, a pretenso de resgatar a totalidade do olhar nativo. A finitude dos pontos de vista particulares e a sua relativa incongruncia exigem do olhar sociolgico que, por mais que se aproxime dos terrenos do fluir social, mantenha a distncia suficiente para uma perspectiva mais vasta que lhe permita compreender o conjunto de relaes que estruturam uma determinada situao. O olhar sociolgico move-se na permanente dialctica entre a aproximao e o distanciamento. No se proclame, por isso, a adequao da anlise cientfica ao discurso do senso (no comum, h, entre ou dos lay um sociologists: so abordagens mas comunicantes elas, descontinuismo radical)

irremediavelmente distintas. Alm do mais, se o cerne da interaco consiste no transmitir de uma impresso, tantas vezes apreendida de forma ambgua e equvoca [99] , mesmo quando os actores possuem um conhecimento competente da situao, como postular a adequao aos esquemas cognitivos do senso comum? O conhecimento prtico, por definio, no se pensa a si prprio [100] , sendo constitudo por um conjunto de princpios geradores dos desempenhos quotidianos. Como pretender, na hiptese de nos colocarmos na pele do observado, reflectir sobre o irreflectvel [101] ? Alis, se como defende Adriano Duarte Rodrigues, a relao entre os actores e a experincia quotidiana se apresenta como uma douta ignorncia, dando a ver mais do que aquilo que sabem efectivamente dizer e explicar [102] , importa construir os mecanismos conceptuais que permitam detectar essa dcalage. Do mesmo modo, o interaccionismo simblico, apesar de considerar as regras e convenes que estruturam as situaes de interaco social, defende que a subjectividade um produto dessas mesmas situaes, esquecendo -se de tudo o que no est presente no palco, bem como do carcter altamente assimtrico de distribuio das mscaras que permitem a cada indivduo um conjunto limitado de representaes. Ainda assim, estas correntes desempenharam um importante papel na recentragem da investigao sociolgica na direco da vida quotidiana e dos seus nfimos pormenores e rituais. O homem vulgar ganhou dignidade

epistemolgica, bem como o seu discurso, as suas posturas corporais, os seus pequenos gestos, as suas mltiplas formas de comunicar e, de alguma forma, de reproduzir e construir a realidade envolvente. A espontaneidade das condutas sociais quotidianas aparece-nos, luz destas correntes, como um esforado trabalho de adequao ao mundo intersubjectivo; trabalho tanto mais eficaz quanto todo o aparece seu imbudo stock de de naturalidade. conhecimentos, De facto, que os esquemas tratar tipificadores do senso comum, os quadros de referncia dos actores, bem como permitem como taken-for-granted um vasto conjunto de significados, resultam de um acumular de experincias diversas (atravs da prpria estrutura de papis sociais) e de um aplicar desse stock na decifrao de novas situaes. Por outro lado, como refere Adriano Duarte Rodrigues, a abordagem fenomenolgica chama-nos a ateno para os mltiplos mundos (Schutz chama-lhes provncias finitas de sentido) em que decorrem os processos interactivos e para os diferentes pontos de vista implicados; multiplicidade essa correlativa da complexidade e variedade de papis sociais que os indivduos vo ostentando. Alis, este realar da coexistncia de mundos dspares e por v ezes incongruentes e conflituais, lembrando-nos o conceito de heterotopia proposto por Foucault, alerta-nos para a relevncia de uma srie de elementos que esto ausentes da situao de interaco e que os agentes constantemente evocam (a determinao institucional dos papis sociais, por exemplo). No entanto, uma vez mais, a elucidao dos mecanismos mais profundos que marcam esta multiplicidade de mundos da experincia (sistemas de estratificao social, distribuio do poder, antagonismos socia is, etc.) fica muito aqum do desejado, como se todos os actores tivessem a mesma possibilidade de seleccionar os papis que desejam. Ainda assim, no podemos correr o risco de reduzir as propostas compreensivas a verses mais ou menos sofisticadas do individualismo metodolgico. Como refere Karin Knorr-Cetina [103] , as propostas das correntes micro-sociolgicas, alm de constituirem um desafio para os paradigmas estabelecidos (frequentemente acomodados pretensa fidedignidade dos mtodos quantitativos duros), surgem, essencialmente, como uma reaco ao modelo normativo da ordem social, questionando os mecanismos de incorporao da ordem dominante atravs do processo de socializao. A viragem cognitiva que estas correntes representam, levam os analistas a

considerar os processos dinmicos e frequentemente conflituais de definio, interpretao, construo e negociao da ordem estabelecida nas situaes interaccionais. Assim, estas teorias da interaco social in situ, apesar do inventrio de crticas que lhes podem ser dirigidas, no se reduzem s verses simplistas do subjectivismo. O seu objecto no o indivduo, mas sim o cruzamento e reciprocidade de intencionalidades e perspectivas nas situaes interaccionais. Como refere Giddens, compreender o que se faz apenas possvel atravs do conhecimento, ou seja, ser capaz de descrever aquilo que os outros fazem e vice-versa [104] . No entanto, ao pecarem, como j foi referido, pela falta de referncia aos mecanismos institucionais que transcendem a interaco, acabam por validar a ideia de que a situao contm em si todos os elementos necessrios sua explicao. No que diz respeito s propostas estruturalistas e ps-estruturalistas, registamos como principal limitao o seu exagerado formalismo. De facto, e retomando uma vez mais o exemplo da linguagem, no se compreende como pode a lngua ser desligada dos seus usos concretos e da capacidade criativa dos agentes na sua adaptao mais ou menos verstil a diferentes situaes. Nesta linha, e como refere Giddens [105] , a exagerada preocupao com o significante, com a forma, faz esquecer as realidades a que ele se pode referir: Conhecer uma linguagem significa certamente conhecer regras sintcticas mas, igualmente importante, conhecer uma linguagem significa adquirir uma variedade de instrumentos metodolgicos envolvidos tanto na produo das prprias expresses como na constituio e reconstituio da vida social nos contextos quotidianos da actividade social [106] . Por outras palavras, ao remeter o funcionamento da linguagem para as suas diferenas internas, os estruturalistas perdem a dimenso essencial dos usos sociais da mesma. Como Giddens uma vez mais refere, o que confere preciso linguagem vulgar o seu uso em contexto, enquanto parte integrante das estrat gias dos actores na estruturao da sua vida quotidiana. Desta forma, a anlise estrutural levanta srios problemas metodolgicos ao nvel da construo dos dados cientficos, uma vez que os processos de recolha e tratamento da informao devem ser analisados como resultado de mecanismos de negociao patentes nas situaes interaccionais, elas prprias socialmente condicionadas [107] . Por outro lado, sabido que a anlise estrutural tende, muitas vezes, na procura de invariantes que determinam o fluir social, a uma anlise sincrnica

e, por isso, no histrica, postulando a existncia de universais que nunca se alteram (atente-se nas propostas tericas de Lvi-Strauss, por exemplo). No entanto, enquanto instrumento metodolgico, a anlise estrutural oferece um quadro de inteligibilidade que, ao no se reduzir conscincia dos actores, evita muitos erros prprios de uma confiana cega nos discursos e prticas do senso comum. A procura da significao objectiva dos factos scio-culturais, na sua irredutibilidade inteno humana, um dos seus princpios fundamentais . Impe-se, por conseguinte, retirar algumas ilaes destes combates epistemolgicos. Uma delas, porventura a mais importante, liga -se ao que Jos Madureira Pinto, no seguimento de Edgar Morin, apelida de avano em direco complexidade [108] . Em vez de insistirmos no paradigma da simplificao, porque no aceitar controladamente alguma heterodoxia (de resto j plenamente assumida pelo mainstream da anlise sociolgica) e integrar, de forma tensa e dialctica, algumas das perspectivas claramente complementares das diferentes correntes aqui apresentadas? 2.4. Algumas teorias de sntese [109] . A teoria social tem-se vindo a debater, desde h largas dezenas de anos, com persistentes aporias que tm inibido avanos substantivos em reas estratgicas da produo intelectual, resultantes, em grande parte, da luta que se desenrola no campo cientfico pela posse dos critrios de legitimao que seleccionam e credenciam um corpo disponvel de teorias. Por outro lado, a falta de audcia cientfica [110] tem frequentemente como resultado o marcar passo terico, isto , a discusso recorrente em torno de pares epistemolgicos (considerada por Bachelard como um poderoso obstculo ao progresso cientfico). As propostas que em seguida se apresentam constituem, na nossa opinio, momentos representativos de significativos avanos substantivos ou saltos dialcticos na produo terica sobre a constituio da cultura, da sociedade e da relao que estabelecem entre si. Talvez por essa mesma razo assumam a arquitectura prpria das grandes teorias, vises de conjunto sobre a gnese e o papel do social. Por isso, requerem o complemento de outras propostas tericas que possibilitem um

acesso mais directo linguagem da pesquisa emprica, desafiando o seu potencial de estmulo a investigaes concretas. 2.4.1. Clifford Geertz e a concepo semitica de cultura. Ao defender um conceito semitico de cultura, Clifford Geertz aproxima-se inevitavelmente de Max Weber, designadamente na procura das conexes de sentido e na rejeio das pretenses nomotticas das cincias sociais:Acreditando como Max Weber, que o homem um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua anlise; portanto, no como uma cincia experimental em busca de leis, mas como uma cincia interpretativa procura do significado [111] . Todavia, Geertz suficientemente claro ao defender, por um lado, a estruturao da significao e, por outro, a sua determinao social. Alis, um pouco semelhana de Paul Ricouer, Geertz considera as prticas sociais, eminentemente simblicas, como textos, e o papel do etngrafo semelhante ao do crtico literrio. De facto, a sua tarefa a de tentar ler (no sentido de constr