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ISSN: 1983-8379 1 Darandina Revisteletrônica - http://www.ufjf.br/darandina/. Anais do Simpósio Internacional Literatura, Crítica, Cultura VI Disciplina, Cânone: Continuidades & Rupturas, realizado entre 28 e 31 de maio de 2012 pelo PPG Letras: Estudos Literários, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. A cidade arlequinal e o sujeito moderno nos poemas de Paulicéia Desvairada Bruna Araujo Cunha 1 Joelma Santana Siqueira 2 RESUMO: Buscando compreender a interação do espaço na poesia moderna, este estudo se concentra na análise da obra Paulicéia Desvairada (1922), com o objetivo de investigar a figurativização da cidade, referências de espaços públicos da capital paulista e possíveis relações entre São Paulo dos anos 1920 e a paulicéia arlequinal de Mário de Andrade. Palavras-chave: Mário de Andrade; Poesia brasileira modernista; São Paulo; Espaço moderno; Modernidade. RÉSUMÉ: Essayant de comprendre l’interaction de l’espace dans la poésie moderne, cet étude se concentre sur l’analyse de l’oeuvre Paulicéia Desvairada (1922), avec l’objectif de faire des recherches sur les allégories de la ville, les références aux espaces publics de la capitale de São Paulo et les possibles rapports entre cette ville des annés 1920 et la paulicéia arlequinal de Mário de Andrade. Mots-clés: Mário de Andrade; Poésie moderniste brésilienne; São Paulo; Espace moderne; La modernité. No final do século XIX a Europa estava vivenciando uma nova “revolução” nas artes, que se intensifica no século XX. Oficialmente, no Brasil, o Modernismo começa com a Semana da Arte Moderna ocorrida em São Paulo, que foi um dos momentos decisivos da Literatura brasileira, pois juntamente com o Romantismo, representou uma fase de particularidade literária na dialética do local e do cosmopolita, conforme Candido (1985), e caracterizou-se pela busca da ruptura, preocupada com os problemas do Brasil. 1 Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). 2 Professora Doutora de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Orientadora do presente artigo.

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Letras: Estudos Literários, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora.

A cidade arlequinal e o sujeito moderno nos poemas de Paulicéia Desvairada

Bruna Araujo Cunha1

Joelma Santana Siqueira2

RESUMO: Buscando compreender a interação do espaço na poesia moderna, este estudo se concentra na análise

da obra Paulicéia Desvairada (1922), com o objetivo de investigar a figurativização da cidade, referências de

espaços públicos da capital paulista e possíveis relações entre São Paulo dos anos 1920 e a paulicéia arlequinal

de Mário de Andrade.

Palavras-chave: Mário de Andrade; Poesia brasileira modernista; São Paulo; Espaço moderno; Modernidade.

RÉSUMÉ: Essayant de comprendre l’interaction de l’espace dans la poésie moderne, cet étude se concentre sur

l’analyse de l’oeuvre Paulicéia Desvairada (1922), avec l’objectif de faire des recherches sur les allégories de la

ville, les références aux espaces publics de la capitale de São Paulo et les possibles rapports entre cette ville des

annés 1920 et la paulicéia arlequinal de Mário de Andrade.

Mots-clés: Mário de Andrade; Poésie moderniste brésilienne; São Paulo; Espace moderne; La modernité.

No final do século XIX a Europa estava vivenciando uma nova “revolução” nas artes,

que se intensifica no século XX. Oficialmente, no Brasil, o Modernismo começa com a

Semana da Arte Moderna ocorrida em São Paulo, que foi um dos momentos decisivos da

Literatura brasileira, pois juntamente com o Romantismo, representou uma fase de

particularidade literária na dialética do local e do cosmopolita, conforme Candido (1985), e

caracterizou-se pela busca da ruptura, preocupada com os problemas do Brasil.

1 Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).

2 Professora Doutora de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Orientadora do presente

artigo.

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Mário de Andrade (2002, p.253) descreveu a sua participação no Movimento

Modernista afirmando que essa manifestação artística foi uma ruptura, um abandono de

princípios e técnicas, uma revolta contra o que era a inteligência nacional, tendo em vista que

foi “manifestado especialmente pela arte, mas manchando também com violência os costumes

sociais e políticos, o movimento modernista foi o prenunciador, o preparador e por muitas

partes o criador de um estado de espírito nacional”.

Com o Modernismo Brasileiro muda-se a mentalidade política e social do país. Os

modernistas apresentavam um interesse extraordinário pela cultura popular, uma vez que

estavam preocupados em representar o Brasil. Nesse sentido, a ruptura da linguagem tem a

ver com a ruptura da mentalidade, pois se os artistas modernos valorizassem a língua natural

amolgariam “sem fissuras o “como falamos” ao “como somos” dando voz própria ao homem

brasileiro” (PAES, 1990, p.91).

O período que, por convenção, denominaram de Modernismo foi inaugurado com a

Semana da Arte Moderna, em 1922, que aconteceu no Teatro Municipal, na cidade de São

Paulo, todavia, o movimento tenha acontecido, também, em outras cidades brasileiras, é na

capital paulista que o movimento se oficializa.

Esse movimento não nasceu por acaso. Na Europa, e posteriormente no Brasil,

aconteciam algumas manifestações que tinham por objetivo inovar as artes. As vanguardas

europeias, tais como o Futurismo, Expressionismo, Cubismo, Dadaísmo e Surrealismo

surgiam com um ideal de ruptura, culto pelo nacionalismo, liberdade de expressão, inovação e

originalidade.

No Brasil, alguns autores e artistas do Modernismo beberam em fontes europeias,

como de costume, mas diferentemente dos artistas do Romantismo, uma vez que estes

idealizavam e imitavam o europeu, já aqueles buscavam influências em prol da liberdade,

com o intuito de renovar o país. Conforme Francisco Iglésias (1975), “os modernistas sentiam

o Brasil e queriam renová-lo, livre das importações de gosto duvidoso e que não se ajustavam

à sua realidade”.

Em fevereiro de 1922, entre os dias 13 a 17, aconteceu a Semana de Arte Moderna,

com manifestações inovadoras que tinham como propósito renovar o campo artístico e

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literário. A programação da Semana contava com exposições (por volta de 100 obras) e

sessões literário-musicais que aconteciam à noite.

Não se sabe de quem partiu a ideia de realizar o evento. Mário de Andrade afirma que

dele não foi. Só se sabe que Paulo Prado foi o grande financiador, desembolsando 847 mil-

réis pelo aluguel de três diárias no Teatro Municipal. Todavia,

... há quem diga que a semana de 22 só aconteceu devido a um simples acaso do

destino, a um feliz encontro entre dois opostos que se atraem e se completam. Sem

guardar o menor parentesco, os dois Andrades, Mário e Oswald, numa fusão

química de impacto, teriam funcionado como catalisadores de uma tendência que se

esboçava no cenário do pós-guerra. Dotados de estilo, personalidade, extração social

e atitude em tudo inversos, os Andrades conheceram-se em 1917, quando Oswald

foi a um recital no Conservatório Dramático e Musical, na avenida São João, 269,

do qual Mário era professor. Juntos dinamizaram e deram vida à constelação que se

formou em redor deles (CAMARGOS, 2002, p.68).

Houve também participação de artistas do Rio de Janeiro: Renato Almeida, Ribeiro

Couto, Agenor Barbosa, Álvaro Moreyra, Sérgio Buarque de Holanda, Heitor Villa-Lobos, Di

Cavalcanti, Rubens Borba de Moraes, e Ronald Carvalho. Apesar de não comparecer no

evento, Manuel Bandeira se fez presente através da leitura de seu poema Os Sapos. Vicente

do Rego Monteiro e Brecheret estavam em Paris, mas suas obras também foram expostas

(CAMARGOS, 2002, p.78).

No dia 13 de fevereiro de 1922, primeiro dia da Semana de Arte Moderna, a

programação contou com as conferências A emoção estética na arte moderna, de Graça

Aranha, e A pintura e a escultura moderna no Brasil, de Ronald de Carvalho. Além disso,

houve a apresentação de Villa Lobos e Ernani Braga.

Menotti del Picchia abriu o segundo dia do Festival, dia 15 de fevereiro. Sua palestra

foi acompanhada por trechos de prosas e poesias de Oswald de Andrade, Luis Aranha, Mário

de Andrade, entre outros. Guiomar Novaes, Renato Almeida, Frederico Nascimento Filho e

Lúcia Villa-Lobos também contribuíram com o evento. Durante o intervalo das apresentações,

do turno diurno para o noturno, Mário de Andrade explicava através de sua palestra, no

saguão do Teatro Municipal as tendências artísticas modernistas.

Nesse instante, sem que talvez tivesse plena consciência disso, aquele rapaz iniciava

um destino: o de esclarecer, durante anos a fio, através de seus escritos, o sentido e

os caminhos atuais das várias artes. Seu nome, o leitor já sabe: Mário de Andrade,

um dos principais organizadores daquele festival tumultuado que passaria à história

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da literatura brasileira como acontecimento de maior importância (LAFETÁ, 2004,

p. 214).

Mesmo depois das vais e insultos, os jovens modernistas não se privaram de continuar

com o evento, e no terceiro dia da Semana de Arte Moderna, dia 17 de fevereiro, houve

novamente apresentações de Villa Lobos, Ronald de Carvalho, Paulina d’Ambrosio, Ernani

Braga, Antão Soares, etc.

A respeito da Semana, o grande estudioso Antonio Candido afirmou ser ela o

“catalizador da nova literatura”, que só foi possível graças à ousadia dos jovens modernistas

que renovaram desde a poesia às artes plásticas (CÂNDIDO, 1985).

Se houve também em outros estados brasileiros manifestações modernistas, o que

levou o estado de São Paulo a ser o palco do acontecimento? O Rio de Janeiro, por exemplo,

era a capital federal do país, além de contar com a Academia Brasileira de Letras, a Biblioteca

Nacional, o Instituto Histórico e Geográfico, a Escola Nacional de Música, o Gabinete

Português de Leitura e a Escola Nacional de Belas-Artes. Por outro lado, o Rio não recebia

inúmeros imigrantes por dia, criando uma pluralidade étnica, nem possuía o crescimento

industrial de São Paulo. Sendo assim, o estado paulista, segundo Mário de Andrade era muito

mais moderno que o Rio de Janeiro.

A intensa urbanização e industrialização de São Paulo modificavam a fisionomia da

cidade, não sendo, por isso, possível que a mesma se expressasse em termos literários, pelo

simbolismo ou parnasianismo. Além de que o Rio de Janeiro era mais expressivo pelo seu

papel de centro de poder, no qual o exercício político e administrativo eram predominantes

(CAMARGOS, 2002, p. 48).

Alfredo Bosi escreveu que a virada do primeiro pós-guerra foi internacional, mas, no

Brasil, o conflito provinciano/citadino se fazia sentir com mais agudeza em São Paulo, pois

“só aqui o processo social e econômico gerava uma sede de contemporaneidade junto a qual o

resto da Nação parecia ainda uma vasta província do Parnaso” (BOSI, 2003, p.209).

Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade, foi a segunda publicação do autor e a

primeira obra modernista publicada no Brasil. Obra que começou a romper com as estruturas

do passado, ou seja, com a poesia parnasiana, principalmente ao adotar o verso-livre. Por isso,

segundo João Luiz Lafetá (2000) Paulicéia Desvairada foi a bandeira do movimento

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modernista. Mario de Andrade introduz nos seus poemas o tema da metrópole moderna com

presença significativa de um subjetivismo moderno representando a tensão entre o “eu” e a

“cidade”.

No Prefácio Interessantíssimo o poeta se considera um autor passadista, mas como

pode ser passadista sendo tão moderno? Talvez porque, como afirmou José Paulo Paes

(1990), o Prefácio era uma espécie de ata de fundação do “Desvairismo”. É nele que Mário de

Andrade resolve expor sua “teoria”, defendendo a liberdade na criação dos versos (verso

livre), a pintura não apenas como mera cópia da realidade, entre outras temáticas que nos

mostram que Paulicéia Desvairada foi um grande marco na literatura brasileira por buscar

romper com a tradição.

A grande temática da obra em questão é a tensão entre o eu e a cidade, a Paulicéia

Desvairada, a São Paulo marioandradiana. Todavia, o estudo do espaço nos poemas da obra

será o principal foco deste estudo, devido à observação da constante imbricação entre sujeito e

espaço percebido.

No primeiro poema, intitulado de “Inspiração”, Mário de Andrade declara a cidade de

São Paulo como a inspiração do livro. Logo em seguida, encontramos o segundo poema: “O

Trovador”, referente ao eu-lírico que irá “cantar” as poesias. E assim segue as ordens dos

poemas no livro, em uma ordenação plenamente harmônica.

De acordo com Telê Ancona Lopez (2004) a Paulicéia Desvairada nasceu sob o signo

do arlequim. O Arlequim era uma personagem da Commedia dell’Arte que juntamente com o

Pierró e a Colombina compunham as peças principais do teatro. De origem italiana, essa

espécie teatral foi muito praticada no Renascimento. As personagens, que utilizavam

diferentes máscaras, viajavam de cidade em cidade da região da Itália para apresentar as

peças. O Arlequim era o palhaço alegre e audacioso, já Pierró era o palhaço triste, acanhado.

Ambos os personagens, disputavam o amor da Colombina que se apaixona pelo Arlequim.

É essa figura ambígua e contraditória da Commedia dell’Arte, o Arlequim, que será

uma das fontes de inspiração para a poética de Mário de Andrade. Através desse personagem,

dessa máscara, Mário cria o neologismo arlequinal para caracterizar a cidade de São Paulo do

século XX. A edição original da Paulicéia Desvairada tem a capa inspirada, novamente, no

Arlequim, devido às roupas coloridas e em formato de losango que o personagem usava.

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A audácia vertical está presente em muitos poemas de Paulicéia Desvairada, que

incita o eu lírico a proclamar a modernização da cidade. Isso é recorrente em várias poesias,

nas quais percebemos que o atrevimento ousado do Arlequim quebra a tristeza e melancolia

da industrialização da cidade. Devido a essa sobreposição da audácia do arlequim sob o outro

significado, achamos melhor denominar este artigo de “A cidade arlequinal e o sujeito

moderno” e não “A cidade desvairada e o sujeito moderno”.

Podemos observar essa sobreposição do arlequim audacioso quando o eu-lírico

valoriza a cidade moderna na primeira estrofe do poema “Paisagem N.4”:

Os caminhões rodando, as carroças rodando,

rápidas as ruas se denrolando,

rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos...

E o largo côro de ouro das sacas de café!...

(ANDRADE, 1980, p.51)

Nesses versos percebemos o desenvolvimento da cidade. Os novos meios de transporte

(caminhões) surgem dividindo um espaço público com as carroças (elemento antigo). O som

das ruas que se desenvolvem em um ritmo maior, fator assimilável ao crescimento e

urbanização da cidade paulista.

No poema “O Domador”, o signo do arlequim aparece com o sentido da audácia,

porém nesses versos o eu-lírico deixa transparecer os caracteres rurais da cidade arlequinal,

pois como explanado acima, as consequências urbanas e industriais da cafeicultura iam

surgindo, mas os resquícios da cidade agrária ainda permaneciam.

Alturas da Avenida. Bonde 3.

Asfaltos. Vastos, altos repuxos de poeira

Sob o arlequinal do céu oiro-rosa-verde...

(ANDRADE, 1980, p.41).

O eu-lírico faz menção aos prédios (Alturas da Avenida), aos bondes e ao asfalto.

Todos esses elementos são constituintes da modernização da cidade. É perceptível nessa

estrofe um caráter de início da modernização, e não a cidade prontamente moderna. Tal fato

transparece no segundo verso, pois ao mesmo tempo que a São Paulo arlequinal entra na

modernidade, mantém resquício de um passado agrícola, pois algumas partes da cidade são

asfaltadas, mas ainda existem ruas com estradas de chão (repuxos de poeira), caracterizando a

passagem da vida agrícola para a urbana.

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A São Paulo que se encontrava em um momento de expansão econômica na década de

20, presenciava o aumento populacional, a modernização e urbanização, assim como a

veemente chegada dos imigrantes, de várias partes do mundo. Na medida em que São Paulo

iniciava esse processo de modernização, conferia à capital um passo para vir a ser uma grande

metrópole.

Na lírica marioandradiana observamos que ao mesmo tempo em que a modernização

surge como um fator positivo traz à tona a condição do ser humano diante desse espaço

moderno. Na estrofe que segue, o eu-lírico aceita a modernização, mas tem saudades do

passado:

Mas... olhai, oh meus olhos saudosos dos ontens

esse espetáculo encantado da Avenida!

Revivei, oh gaúchos paulistas ancestremente!

e oh cavalos de cólera sanguínea!

(ANDRADE, 1980, p. 41)

O fato de observamos que na obra do autor há preocupações com as questões sociais,

implicadas com o processo de modernização, dando indícios do estranhamento do indivíduo

com a dificuldade de se habituar ao novo, reforça a negação de Mário de Andrade em ser

tachado de futurista. Este autor não segue a corrente anti-humanitária dos futuristas como o

poeta Luís Aranha. Apesar de o próprio Mário afirmar que foi influenciado pelo Futurismo,

ele vivencia com estranhezas a modernidade.

Se por um lado, Luís Aranha faz uma apologia à vida moderna, relacionando o homem

com a máquina, o carro, a velocidade, por outro lado, Mário de Andrade aborda o processo de

modernização levando em consideração a condição humana do sujeito diante da nova

realidade. A propósito dessa diferente abordagem entre os poetas, no poema “Tristura”, de

Paulicéia, evidenciamos essa divergência:

Profundo. Imundo meu coração...

Olha o edifício: Matadouros da Continental.

Os vícios viciaram-me na bajulação sem sacrifícios...

Minha alma corcunda como a avenida São João...

E dizem que os polichinelos são alegres!

Eu nunca em guisos nos meus interiores arlequinais!...

(ANDRADE, 1980, p.39)

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É possível perceber nesses versos um ponto negativo desse novo elemento moderno, o

edifício, questionado por Mário e que proporciona ao sujeito um tom de angústia. O eu-lírico

em meio a esse ambiente chega a confundir-se com a mesma imundice da cidade. Nesse

sentido, a rima entre os vocábulos “profundo” e “imundo” sugere uma relação entre a altura

do edifício e o tamanho do sentimento do eu-lírico. O externo e o interno, o sujeito e a cidade

se confundem.

O eu-lírico da Paulicéia Desvairada observa e vivencia a cidade através de uma

experiência inovadora, que paralisa o sujeito, deixando-o perplexo diante de determinadas

situações. Walter Benjamin (2010) denomina esse acontecimento de experiência de choque,

acrescentando ainda que essa “desintegração da aura na vivência do choque” é o preço pago

pelo sujeito para sentir o mundo moderno.

No poema “Anhangabaú” fica claro o estranhamento das relações humanas na

modernidade

Estátuas de bronze nu correndo eternamente,

num parado desdem pelas velocidades...

(ANDRADE, 1980, p.41)

Nessa descrição evidenciamos os desajustes e contradições inerentes da modernização

que a população paulistana começa a enfrentar, fato já experienciado pelos países da Europa.

Além de que, o eu-lírico deixa um contraste para reflexão do leitor: ao mesmo tempo em que

a cidade é caracterizada pela velocidade, as estátuas (referência à arquitetura) permanecem

estáticas.

Vários poemas de Paulicéia Desvairada deixam transparecer o lado obscuro da

urbanização-industrialização da cidade. Nos versos abaixo, por exemplo, o sujeito poético

satiriza os políticos, cargos públicos criados com a finalidade de melhor administrar uma

cidade.

Oh! minhas alucinações! Vi os deputados, chapéus altos, Sob o pálio vesperal, feito de mangas-rosas,

sairem de mãos dadas ao Congresso...

Como um possesso num acesso em meus aplausos

aos salvadores do meu estado amado!...

(...)

Oh! minhas alucinações!

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Como um possesso num acesso em meus aplausos

aos herois do meu estado amado!...

E as esperanças de ver tudo salvo!

Duas mil reformas, tres projectos...

Emigram os futuros nocturnos...

E verde, verde, verde!...

Oh! minhas alucinações!

“O Rebanho” (ANDRADE, 1980, p. 35)

O primeiro verso dessa estrofe “Oh! minhas alucinações” aparece quatro vezes no

poema evidenciando a alteração de consciência do narrador, sugerindo ao mesmo tempo que a

experiência do eu-lírico não é verídica.

O eu-lírico utiliza desse momento inconsciente para dizer que ainda há esperança na

política do nosso país (E verde, verde, verde!.../ Oh! minhas alucinações). Os elogios e

críticas que o sujeito poético faz aos políticos são camuflados pelo momento “irreal”

vivenciado pelo sujeito. Vê-se uma visão confusa sobre os políticos, pois, por ser irreal

(alucinação) a esperança é irônica, fazendo sobressair a crítica.

O poeta apresenta também o lado negativo da cidade em processo de modernização

por meio da religiosidade:

Deus recortou a alma de Paulicea

num cor de cinza sem odor...

Oh! para além vivem as primaveras eternas!...

Mas os homens passam sonambulando...

E rodando num bando nefário,

vestidas de electricidade e gazolina,

as doenças jocotoam em redor...

“Paisagem N.2” (ANDRADE, 1980, p. 46)

Nessa estrofe, a angústia do eu-lírico, que responsabiliza de certa forma um ser divino

pela situação da cidade, é bem representativa. O poema trabalha, novamente, com a dualidade

entre a tradição e a modernidade ao dizer no terceiro verso “Oh! para além vivem as

primaveras eternas!...”.

Nos poemas de Paulicéia Desvairada,como os citados acima, Mário de Andrade faz

alusão a várias transformações urbano-industriais da cidade de São Paulo. Para tanto o autor

recorre às ruas, praças, rios, parques, fazendo-nos lembrar Zygmunt Baumam (2009, p.21)

quando sustenta o princípio de que “não se pode pensar em compartilhar uma experiência sem

partilhar o espaço”.

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O fato de Mário recorrer à espaço públicos é justificável, pois sabemos que nele

encontramos indivíduos de diferentes classes sociais, etnias, culturas, credos, enfim, nos

deparamos nesses ambientes com o sujeito múltiplo, que habita a metrópole, a cidade de

múltiplas faces. Além de que, a presença de um citadino em um espaço público é anônima,

principalmente, se estamos tratando das grandes cidades.

Entretanto o eu-lírico não faz menção a essa realidade apenas por meio de referências

aos espaços físicos da cidade de São Paulo no início dos anos 1920, e sim através das

impressões do sujeito, suas frustrações e medos.

No decorrer da análise das poesias de Paulicéia Desvairada nos deparamos com

espaços semantizados, isto significa que os espaços presentes nos poemas recebem referências

através e a partir da presença de um corpo humano, ou seja, o eu-lírico constrói a cidade por

meio de suas vivências, de suas sensações.

Mário de Andrade defende no “Prefácio Interessantíssimo” o surgimento de uma nova

arte, assim como Pierre Francastel observou o surgimento de um novo espaço, diferente

daquele espaço pictórico fundado no século XIX com a Renascença.

Segundo Pierre Francastel (1967) a primeira tentativa de renovar o espaço aconteceu

por meio do Cubismo com a introdução da quarta dimensão do espaço. Para tanto o autor nos

apresenta uma “nova ordem de figuração” que seria as sensações captadas pelos seres

humanos no plano da visão interior, e não somente as sensações registradas pela visão óptica.

“Daí em diante dirigimo-nos para um espaço afetado pelas dimensões polissensoriais de

nossas experiências íntimas” (1967, p.229).

Nesse sentido, o espaço semantizado, conceituado por J. Netto, e o espaço

polissensorial, conceituado por Pierre Francastel, são condizentes na obra de Paulicéia

Desvairada. Observemos:

São Paulo! comoção de minha vida...

Os meus amores são flores feitas de original...

Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro...

Luz e bruma... Forno e inverno morno...

Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...

Perfumes de Paris... Arys!

Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!...

São Paulo! comoção de minha vida...

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Darandina Revisteletrônica - http://www.ufjf.br/darandina/. Anais do Simpósio Internacional Literatura, Crítica,

Cultura VI – Disciplina, Cânone: Continuidades & Rupturas, realizado entre 28 e 31 de maio de 2012 pelo PPG

Letras: Estudos Literários, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Galicismo a berrar nos desertos da América!

“Inspiração”(ANDRADE, 1980, p.32)

Nesse poema que abre a obra, percebemos que o eu-lírico se refere à cidade de São

Paulo, todavia a descrição feita é filtrada pelo “eu”, ou seja, o sujeito descreve a cidade

através de suas sensações interiores, e não somente pela visão óptica. Por isso, é possível

afirmar que esse espaço é semantizado, uma vez que foi através da presença de um corpo

humano na cidade que o eu-lírico construiu uma imagem do que é a São Paulo arlequinal.

O sujeito poético nos apresenta suas sensações sobre São Paulo, a temperatura, a cor, o

cheiro. O próprio título do poema “Inspiração” evidência uma imaginação criadora por parte

do poeta que molda a cidade de acordo com suas sensações, evidenciando um mundo criado,

nas palavras de Pierre Francastel, as quais afirmam que “o mundo é muito mais reconhecido

pela imaginação do que pela visão” (1967).

Diante do exposto é possível entender porque para Roberto da Mata o “espaço é como

o ar que se respira, para sentir o ar é preciso situar-se”. É assim que o eu-lírico de Paulicéia

Desvairada sente a São Paulo, através de sua vivência.

O eu-lírico da obra de Mário de Andrade vivencia o que está ocorrendo na cidade, ao

mesmo tempo em que está triste está alegre, ele é o sujeito moderno contraditório como no

poema “Paisagem N.1”:

Minha Londres das neblinas finas!

Pleno verão. Os dez mil milhões de rosas paulistanas.

Ha neves de perfumes no ar.

Faz frio, muito frio...

E a ironia das pernas das costureirinhas

parecidas com bailarinas...

O vento é como uma navalha

nas mãos dum espanhol. Arlequinal...

Há duas horas queimou Sol.

Daqui a duas horas queima Sol.

Passa um São Bobo, cantando, sob os plátanos,

um tralálá... A guarda-civica! Prisão!

Necessidade a prisão

para que haja civilização?

Meu coração sente-se muito triste...

Enquanto o cinzento das ruas arrepiadas

dialoga um lamento com o vento...

Meu coração sente-se muito alegre!

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Este friozinho arrebitado

dá uma vontade de sorrir!

E sigo. E vou sentindo,

à inquieta alacridade da invernia,

como um gosto de lágrimas na boca...

(ANDRADE, 1980, p.37)

O eu-lírico concomitantemente descreve as mudanças ocorridas da temperatura da

cidade e as vivencia. Esse sujeito poético não é um mero observador, ele alude o que descreve

ao que sente, como nos momentos em que o sujeito oscila entre a tristeza e alegria pela

situação da cidade. Isto significa que o poeta da Paulicéia Desvairada aborda a cidade como

um espaço semantizado, ou seja, um espaço vivido, fenomenológico.

No poema “O Trovador” o poeta narra a cidade arlequinal através de sua vivência

entre passado e presente, primitivo e civilizado:

Sentimentos em mim do asperamente

dos homens das primeiras eras...

As primaveras de sarcasmo

intermitentemente no meu coração arlequinal...

Intermitentemente...

Outras vezes é um doente, um frio

na minha alma doente como um longo som redondo...

Cantabona! Cantabona!

Dlorom...

Sou um tupi tangendo um alaúde!

(ANDRADE, 1980, p.32)

Neste poema, composto por três estrofes e dez versos, o eu-lírico apresenta um certo

saudosismo pelo passado representado pela figura do trovador, artista medieval, que canta a

poesia. O sujeito poético sente a cidade que está em processo de modernização: “na minha

alma doente”.

Como bem explicou João Luiz Lafetá (2004), este poema se estrutura sobre o jogo de

oposições principalmente a partir da segunda estrofe. No último verso, através de uma

construção metalingüística, o eu-lírico analisa a si próprio: “Sou um tupi tangendo um

alaúde”, o poeta representa o primitivo brasileiro, o tupi, mas tangendo instrumentos de

cordas erudito, oriundos da Europa, ou seja, a poesia em língua portuguesa. Ele faz relação

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entre o primitivo e o civilizado. Com isso o eu-lírico deixa em aberto a identidade do sujeito,

presenciando o Macunaíma que estaria por vir na obra do escritor?

Vale ressaltar que a subjetividade poética de Mário de Andrade é rica de elementos

sociais, e seguindo esse viés está presente em sua lírica a “subjetividade que se volta para a

objetividade do indivíduo com a sociedade” como explicitou Adorno (2003, p.72).

Na lírica marioandradiana observamos que ao mesmo tempo em que a modernização

surge como um fator positivo traz à tona a condição do ser humano diante desse espaço

moderno. Na estrofe que segue, o eu-lírico aceita a modernização, mas tem saudades do

passado:

Mas... olhai, oh meus olhos saudosos dos ontens

esse espetáculo encantado da Avenida!

Revivei, oh gaúchos paulistas ancestremente!

e oh cavalos de cólera sanguínea!

(ANDRADE, 1980, p. 41)

Por meio da lírica, Mário de Andrade questionou, revestido da figura do arlequim, as

relações humanas na cidade moderna através da tensão entre o “eu” e a “cidade”, mas

sobretudo através da figurativização de São Paulo. Por isso, as experiências e as sensações do

eu-lírico são primordiais, uma vez que

viver numa cidade é uma experiência ambivalente. Ela atrai e afasta; mas a situação

do citadino torna-se mais complexa porque são exatamente os mesmos aspectos da

vida da cidade que atraem, e ao mesmo tempo, ou alternadamente, repelem

(BAUMAN, 2009, p. 19).

Os poemas que foram abordados demonstram a importância que tem o ambiente

construído na formação da personalidade. A cidade moderna impõe ao homem novas relações

com o espaço, consequentemente com os demais homens que compartilham esse espaço.

Neste sentido, através da leitura feita de algumas poesias no presente estudo, foi

possível perceber que a obra marioandradiana nos ajuda a refletir sobre a sociedade moderna,

e a pormos em questão a noção de modernidade como algo apenas positivo.

Referências

ADORNO, Theodor. Discurso sobre lírica e sociedade. In.: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria

da literatura e suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.

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