A Chama Crioula No Rio Grande Do Sul

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A chama crioula no Rio Grande do Sul Por Augusto Paim O menino-escravo perde um cavalo da estância e, como castigo, é tortu seu patrão até quase morrer, sendo salvo por Nossa Senhora. É o qu Negrinho do Pastoreio, uma das mais conhecidas no Rio Grande do Sul, onde o he o vilão é branco. Um reflexo da situação dos negros do extremo sul do Brasil n quando o trabalho escravo era utilizado para a produção de charque. O primeiro recenseamento, feito em 1780 pelo tenente Córdova, apontava a existência de ma negros, o equivalente a 28,4% da população gaúcha na época. A professora de comunicação Rhéa Sylvia Gartnër, que estuda a África 30 anos, especifica a origem desses povos: ‘‘Os africanos e descendentes entrados à força Rio Grande do Sul, de 1737 a 1853, pertenciam a duas culturas: a sudanesa e a denominavam genericamente de angolas, congos, minas e moçambique’’. Segundo Rhéa Sylvia, porém, existe registro da presença africana no estado já em 1635, ante colonização portuguesa. Isso se deve ao fato de a região do Prata ter feito pa tráfico negreiro promovido pelos espanhóis. Mais tarde, os afro-gaúchos participaram da Revolução Farroupi no Corpo dos Lanceiros Negros, escravos que pegaram nas armas com a promessa d ao fim do conflito. Pelos cálculos do exército imperial, os negros compunham d metade de todo o contingente do exército rebelde. O afro-gauchismo Atualmente, segundo o IBGE, apenas 5,3% da população do Rio Grande do autodeclara de cor preta. Ainda assim, é o maior porcentual da regi branqueamento se deve principalmente à imigração alemã e italiana no século XI chegada de poloneses e judeus ao estado no século XX. Segundo o tradicionalista Chico Sosa, que estuda a origem dos elementos da cultura sul-riograndense, o gaúcho primit conhecido como pêlo-duro, é resultado da mistura dos índios com os espanhóis n Prata. O hábito de tomar chimarrão, aliás, é herdado dos índios, se ‘‘cimarron’’, que deu origem ao termo, é espanhola e quer dizer xucro, bárbaro, bruto. So afirma, porém, que as influências africana e indígena na cultura gaúcha se con

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A chama crioula no Rio Grande do SulPor Augusto Paim

O menino-escravo perde um cavalo da estncia e, como castigo, torturado por seu patro at quase morrer, sendo salvo por Nossa Senhora. o que conta a lenda do Negrinho do Pastoreio, uma das mais conhecidas no Rio Grande do Sul, onde o heri negro e o vilo branco. Um reflexo da situao dos negros do extremo sul do Brasil no sculo XVIII, quando o trabalho escravo era utilizado para a produo de charque. O primeiro recenseamento, feito em 1780 pelo tenente Crdova, apontava a existncia de mais de 5 mil negros, o equivalente a 28,4% da populao gacha na poca. A professora de comunicao Rha Sylvia Gartnr, que estuda a frica h mais de 30 anos, especifica a origem desses povos: Os africanos e descendentes entrados fora no Rio Grande do Sul, de 1737 a 1853, pertenciam a duas culturas: a sudanesa e a banto. Eles se denominavam genericamente de angolas, congos, minas e moambique. Segundo Rha Sylvia, porm, existe registro da presena africana no estado j em 1635, antes do incio da colonizao portuguesa. Isso se deve ao fato de a regio do Prata ter feito parte da rota do trfico negreiro promovido pelos espanhis. Mais tarde, os afro-gachos participaram da Revoluo Farroupilha (1835-1845) no Corpo dos Lanceiros Negros, escravos que pegaram nas armas com a promessa de alforria ao fim do conflito. Pelos clculos do exrcito imperial, os negros compunham de um tero metade de todo o contingente do exrcito rebelde.

O afro-gauchismoAtualmente, segundo o IBGE, apenas 5,3% da populao do Rio Grande do Sul se autodeclara de cor preta. Ainda assim, o maior porcentual da regio Sul do Brasil. Esse branqueamento se deve principalmente imigrao alem e italiana no sculo XIX, alm da chegada de poloneses e judeus ao estado no sculo XX. Segundo o tradicionalista Chico Sosa, que estuda a origem dos elementos da cultura sul-riograndense, o gacho primitivo, tambm conhecido como plo-duro, resultado da mistura dos ndios com os espanhis na regio do Prata. O hbito de tomar chimarro, alis, herdado dos ndios, sendo que a palavra cimarron, que deu origem ao termo, espanhola e quer dizer xucro, brbaro, bruto. Sosa afirma, porm, que as influncias africana e indgena na cultura gacha se confundem.

Os negros ingressaram no Rio Grande do Sul no sculo XVII e, com isso, passaram a participar do processo de sincretismo que veio a formar a cultura gacha. Segundo Sosa, toda a percusso da msica tradicionalista sul-rio-grandense tem influncia do ritmo africano. Como exemplos, a vaneira, que uma dana cubana que foi para a Espanha e depois retornou ao estado como vaneiro, e a polca, que de origem polaca, mas pegou influncia africana. Outra dana tpica, a milonga tem sua nomenclatura originada no verbo milonguear, que significava falar para os negros que formaram a cultura gacha. No livro O Linguajar do Gacho Brasileiro, o historiador Dante de Laytano aponta mais alguns desses africanismos lingsticos em palavras como angico (rvore), banzo (tristonho, pensativo), boc (pessoa tola), bugiganga (coisa pequena, insignifcante), caula (filho mais moo), cafund (lugar distante), cambada (corja de desordeiros), japona (casaco de pano grosso) e marimbondo (inseto), entre outros. Tambm existem estudos que afirmam uma forte presena da prtica de religies de origem africana no estado. O batuque e a umbanda so praticados at mesmo em cidades colonizadas por alemes e italianos. A professora Rha Sylvia, que possui a maior biblioteca sobre o continente africano do estado, d exemplos da contribuio africana na culinria. O doce de coco, a canjica e o quibebe so algumas dessas comidas que tiveram origem no outro lado do Atlntico. Para ela, porm, a maior influncia dos negros est na maneira de pensar. A alegria, a bondade, a tolerncia, o amor paz e a bravura so, na sua viso, influncias negras no carter no s do gacho, mas de todo brasileiro.

Identidade: Os gachosUm sujeito de bota, bombacha, leno e chapu, tomando chimarro enquanto assa o churrasco. Outro todo de branco, colares em volta do pescoo, batucando numa caixa de fsforos. Qual deles gacho? A resposta pode no ser to bvia quanto parece. Quem chega a Porto Alegre pela BR-116 encontra, na entrada norte da cidade, uma esttua de bronze com 6,55 metros de altura e 3,8 toneladas. Trata-se do Monumento ao Laador, escultura representando um gacho tpico segurando um lao e olhando para o horizonte. O modelo para a esttua, construda em 1958 e considerada smbolo do Rio Grande do Sul, foi o tradicionalista Paixo Crtes. Junto com mais sete colegas do grmio estudantil do Colgio Jlio de Castilhos, Crtes fundou, em 1948, na capital do estado, o 35 Centro de Tradio Gacha (CTG), marco do incio do Movimento Tradicionalista Gacho (MTG, www.mtg.org.br), que sistematizou os elementos da cultura sul-rio-grandense.

Em mais de meio sculo de existncia, o MTG no s se consolidou como se expandiu para outras regies. Hoje existe uma Confederao Brasileira de Tradio Gacha, congregando entidades de estados do Sudeste e do Centro-Oeste. O MTG tambm j se faz presente em outros pases (h uma Confederao Norte-Americana da Tradio Gacha) e continentes. Portanto, ser gacho no mais sinnimo de ser sul-rio-grandense.

Mas o que ser gacho?Os gachos inventaram uma rede de CTGs como mquina poderosa para a replicao de seu cdigo tradicionalista e seu peculiar modo de vida. No h nada parecido, nem to eficaz, em outros movimentos culturais brasileiros. No h, por exemplo, um CTC, Centro de Tradies Cariocas, ou Cearenses. Essa foi a concluso de Hermano Vianna, doutor em antropologia social pelo Museu Nacional/UFRJ, ao detectar um grupo tradicionalista na divisa entre Minas Gerais e Bahia. Em muitas cidades brasileiras, para muitos jovens, ser gacho se tornou uma opo identitria to vlida, to reconfortante e to divertida quanto ser punk ou ser surfista, afirma. Para Ada Cristina da Silveira, doutora em jornalismo pela Universidade Autnoma de Barcelona, na Espanha, e autora do livro O Esprito de Cavalaria e as Suas Representaes Miditicas, essa identificao de etnias diversas com o gauchismo se d atravs dos valores pregados por ele, como a auto-afirmao e a busca da luta, do enfrentamento e da coragem. A origem desses valores estaria na histria de combates do Rio Grande do Sul, principalmente na Revoluo Farroupilha (1835-1845). Essa mitificao do gacho guerreiro criticada pelo socilogo Cristvo Feil, em artigo intitulado A Disneylndia de bombachas. Segundo ele, durante a Revoluo Federalista (1893-1895) foram mortas mais de 10 mil pessoas, entre civis e militares de ocasio, numa Provncia que contava com 1 milho de almas, onde a degola de prisioneiros era prtica comum em ambos os lados --- liberais e republicanos. Feil explica que h uma idealizao do passado por parte do tradicionalismo e que os primeiros esboos desse constructo mental que procura representar o tipo ideal dos indivduos nascidos na regio meridional do Brasil foram dados por jovens lderes polticos republicanos, ainda no final do sculo XIX, todos seguidores do positivismo de Auguste Comte. A identidade que o senso comum registra do gacho uma das tantas tradies inventadas pelo mundo afora, afirma Feil, que argumenta: A cultura do Rio Grande do Sul muito mais rica do que o esteretipo do tradicionalismo fetichizado. O tradicionalismo crioulo

excludente e autoritrio, sufoca todas as outras manifestaes de um estado mltiplo, colorido de etnias, artes, linguagens e imaginrios. As causas dessa homogeneizao da cultura sul-rio-grandense estariam na origem do movimento tradicionalista (expresso paradoxal para Feil, j que tradicionalismo evoca algo fixo no tempo, portanto no h movimento). Paixo Crtes e os demais fundadores do 35 CTG eram representantes da classe mdia urbana e filhos de fazendeiros latifundirios (herdeiros, portanto, dessa viso de mundo) reivindicando uma mitologia do mundo rural. Em funo disso, italianos, alemes, judeus, poloneses, ndios e negros, entre outras etnias que compem a populao sul-rio-grandense, ficaram de fora da construo dessa representao. O tradicionalismo propugna um determinado conjunto de valores com o qual nem todas as faces da sociedade concordam, aponta Ada. Mas por que esse sucesso na construo da imagem do gacho tpico? A resposta estaria no funcionamento da indstria cultural. O esteretipo um elemento extremamente conveniente, porque de fcil assimilao, explica. Quem determina o que h de gacho numa roupa, numa dana? Quem diz o que gacho e o que no ? A Carta *de Princpios+ do MTG? Os manuais de Paixo Crtes? Essas questes, levantadas por Hermano Vianna, so o resumo da discusso sobre a autenticidade do tradicionalismo. E mostram que saber quem ou no gacho no assim to fcil.