A cena e as vozes

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Revista de LetRas e CuLtuRas LusfonasNOVEMBRO

2010n m e r o

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Cinco sculos desde o Auto da ndiaA cena e as vozes

Estudantes de portugus do cursode Nova Delhi (Madalena)

editorial

A Cena e as VozesCinco sculos desde o Auto da ndia

Durante o Renascimento, Portugal marcou a Histria Universal atravs de uma longa Viagem que, muito para alm de interesses, desejos, valores e razes da poca, deu origem a um dos maiores encontros de cultura da humanidade, paradigma de uma nova Rota e verdadeira rede de comunicao de intercmbio e de caminhos que se ir alargar em conhecimento.Partindo da efemride da primeira representao do famoso Auto da ndia, em 1509, retomando a noo de Cena no seu mais vasto sentido e, como tal, indissocivel das Vozes, o Instituto Cames pretende, no vigsimo nmero da revista Cames, homenagear um importantssimo testemunho do dilogo cultural entre Portugal e a ndia.Esta breve pea teatral, no amplo repertrio do genial Gil Vicente, projecta a cena e as vozes que durante cinco sculos espelharam e continuam a traduzir a inspirao, os estados de alma, as arquitecturas, os rituais e as marcaes de uma busca orientada pelo fascnio do ex-ptico. Recriado o palco, na poca de quinhentos, e reconstrudo com dilogo e intriga, em ambiente de corte e de credo, utilizando crtica e devoo, mecanismos e aparelhos em cenografias de um sol que nasce a oriente e se desenvolve em novos raios, assiste-se consagrao desse mito, num processo performativo que ir perdurar, evoluindo

em registos marcados por influncias e fuses.A invocao da ndia no teatro portugus e, paralelamente, as frmulas artsticas desenvolvidas tanto em Goa como em Diu e Damo a partirde confluncias de matrizes europeias e asiticas, e a respectiva convolao em novas realidades, so aspectos de superior relevo, nem sempre sublinhados, a par de outros valores patrimoniais mais evidentes no campo da arquitecturaou das artes decorativas.A pesquisa e o saber dos autores convidados, especialistas na rea da antropologia, do teatro, da lingustica e da etno-musicologia, com amplas vivncias locais, desvendam-nos artes e falares em palavras como gaudd, devadasi, teatr, mand ou concani, to fascinantes quanto o seu verdadeiro significado. Realo neste contexto o Dr. Duarte Ivo Cruz, que em boa hora nos lembrou a oportunidade desta temtica, e a Doutora Rosa Maria Perez que, para alm da sua participao como autora, nos deu acesso a um vastssimo campo de informao e de contactos, empenhando-se de forma sempre franca e inovadora na construo e coordenao deste novo modelo da revista Cames. O formato de edio adoptado publicao no stio do Instituto Cames, igualmente disponvel em suporte digital, facilitando a conexo entre texto, imagem e som, em articulao com outras fontes de informao , privilegia mais uma vez, mas agora no mbito das tecnologias de comunicao, o dilogo e o intercmbio de conhecimento em rede.Na senda das relaes culturais entre os dois pases, de que ressalta a realizao de uma interessante exposio fotogrfica de Benoy K. Behl sobre Velha Goa, patente ao pblico neste instituto em 2005, bem como da presena portuguesa atravs do Centro Cultural em Deli e diversos centros de lngua e leitorados por todo o pas.Finalmente, e como sempre, aos que trabalharam neste novo desafio autores, fotgrafos, tradutores, revisores, coordenadores e pesquisadores a ttulo individual ou sob os auspcios das mais diversas instituies, para alm do empenho dos colaboradores do Instituto Cames, um reconhecido agradecimento.

Coroas de flores vendidas portados templos hindus para o culto Rosa Maria Perez

Revista de LetRas e CuLtuRas Lusfonas

I n s t I t u t o C A m e s

PresidenteAna Paula Laborinho

Vice-PresidentesDinah Azevedo NevesMrio Filipe

R e V I s tA C A m e s

Projecto e coordenaoRosa Maria PerezMiguel Fialho de Brito

ProduoLusa Cunha RegoRui Vaz

colaboraoMaria CaritaMariana RetoMuseu Nacional

do AzulejoEditorial FrenesiMuseu do CaramuloCasa Ramos PintoMuseu So RoqueInstituto de Investigao

Cientfica e TropicalCasa do AlentejoEscola da NoiteEditora LeyaFundao CultursintraBiblioteca Nacional

de PortugalBiblioteca da AjudaMuseu Nacional

de Arte AntigaMuseu do ChiadoMuseu da CidadeInstituto dos Museus

e ConservaoInstituto de Gesto

do Patrimnio Arquitectnico

Arquivos Nacionais / Torre do Tombo

Sociedade Portuguesa de Autores

Sociedade de GeografiaBiblioteca CasanatensePalcio Nacional da PenaMarionetas de LisboaMuseu Nacional do Teatro

aPoio FotogrFicoMuseu Nacional do TeatroBiblioteca CasanatenseMarionetas de LisboaSociedade de GeografiaSociedade Portuguesa

de AutoresMuseu da CidadeInstituto dos Museus

e ConservaoBiblioteca da AjudaEscola da NoiteCasa do AlentejoEditora FrenesiCostin RaduRosa Maria PerezCludia PereiraHugo CardosoPedro PomboManuel PalmaHlder CaritaNuno FevereiroJos Frade

design grFicoTVM designers

traduoOlinda GilRichard RogersMaria Fondo

reVisoSnia Oliveira

dePsito legal124734/99

coPyright instituto camesISSN: 0874-3029

agradecimentosPaulo da Costa DomingosRicardo LealIsabel CampantTnia OlimMargarida Costa LimaIldeberto GamaCarlos Ladeira

caPaMscaras em madeira e em papier mach, venda no mercado tibetano de Calangute Rosa Maria Perez

6 ndia: do colonialismo mundializao R o s a M a r i a P e r e z

30 ndia e dramaturgia: histria, esttica e ideologia D u a r t e I v o C r u z

54 A dana dos deuses.Ritual e performance num templo hindu de Goa

R o s a M a r i a P e r e z

76 msica em Goa S u s a n a S a r d o

86 As danas e as canes dos Gaudde catlicos de Goa C l u d i a P e r e i r a

104 o Cancioneiro das comunidades norteiras; lngua, fontes e tradio

H u g o C a r d o s o

124 Auto da ndiaG i l V i c e n t e

134 Cronologia

138 Glossrio

147 Resumenes en espaol Abrgs en Franais Abstracts in english

Tapete persa (fragmento) em felpa de l, teia e trama de algodo, Isphahan, sculo XVII, 46,5 X 54,5 cmDoao Vasco Parreira, Fundao Alberto LacerdaMuseu do Caramulo, Inv. n. FAL 243

ndia: do colonialismo mundializao1

R o s a M a r i a P e r e z

A ndia cosmopolitaIndependentemente das suas divises inter-

nas em lngua, religio, regio e casta, que adiante apresentaremos, segundo o historiador ingls E. P. Thomson, a ndia o pas mais importante para o futuro do mundo, estatuto confirmado pelo cresci-mento econmico dos ltimos anos, pelo seu lugar de liderana no domnio da cincia e da tecnologia, pela sua populao correspondente a um sexto da populao do globo e, geracionalmente falando, a mais jovem, por uma classe mdia de mais de 300 milhes de indivduos equivalente, portanto, populao dos Estados Unidos da Amrica edu-cada, profissionalizada em diferentes sectores, e tendo o ingls como lngua dominante2. Desde a independncia, em 1947, a ndia passou de um pas em vias de desenvolvimento a uma potncia mundial, atraindo o investimento internacional em grande escala e desafiando os esteretipos correntes de civilizao tradicionalista e resistente mudana3.

Este protagonismo no palco da contempora-neidade foi reconhecido pela atribuio iniciada ainda em pleno raj britnico de seis prmios Nobel no domnio das cincias (Chandrasekhara Venkata Raman, Prmio Nobel da Fsica, em 1930, Hargobind Khorana, Prmio Nobel da Medicina e da Fisiologia, em 1968, e, de novo no rea da Fsica, Subramaniam Chandrasekar, em 1983), da Economia (Amartya Sem, em 1998), da Paz (Madre Teresa de Calcut, em 1979, que, embora nascida em Skopje, na ento Jugoslvia, se tornou cidad da ndia na sua causa contra a desproteco humana), da Literatura (Rabindranath Tagore, em 1913)4, esta ltima com reverberao na produo literria contempornea.

Efectivamente, e para mencionar apenas um caso, um dos mais desejados prmios literrios dos nossos dias, o Man Booker Prize, que contempla, desde 1969, o melhor romance escrito em lngua inglesa por um autor oriundo de um pas-membro da Commonwealth, da Irlanda ou do Zimbabwe, tem laureado regularmente autores indianos: V. S. Naipaul, In A Free State (1971), Ruth Prawer Jhabvala,

Mapa Atlas, Ferno Vaz Dourado.http://purl.pt/400/2/

Heat and Dust (1975), Salman Rushdie, Midnights Children (1981) de novo consagrado com os pr-mios Booker of Booker e Best of the Booker, em 1993 e 2008 respectivamente, criados no mbito das comemoraes dos 25. e 40. aniversrios do prestigiado prmio literrio, para destacar a melhor obra de entre as vencedoras desde a sua criao, Arundhati Roy, The God of Small Things (1997), Kiran Desai, The Inheritance of Loss (2006), Aravind Adiga, The White Tiger (2008). Alm disso, a famosa

e debatida short list do Booker, constituda pelos seis finalistas, tem includo sempre um ou mais escritores indianos.

Num outro plano, dizia Shekhar Kapur, realiza-dor de Elizabeth e de Bandit Queen, que Bollywood definiria e dominaria o entretenimento global no sculo XXI. De que fenmenos falamos ns? Precisa-mente, e de novo, da conjuntura histrica especfica da entrada da ndia na economia transnacional ao longo dos ltimos 20 anos, na ps-liberalizao e na

centralidade dos Non Resident Indians (NRI) na pol-tica indiana. Os NRI so parte integrante daquele que um dos maiores fluxos mundiais de circulao de grupos, a dispora indiana, a mesma que levou para as academias e institutos de investigao da Europa e dos Estados Unidos notveis especialistas das humanidades, das cincias e das tecnologias, e uma mo-de-obra verstil oferecida por uma populao que constitui um dos factores de maior rejuvenesci-mento demogrfico do mundo ocidental.

Esta ndia em viagem assimilou modelos cul-turais dos pases de instalao e, em contrapartida, levou-lhes diferentes formas de cosmopolitismo. Assim, em Inglaterra os filmes indianos vendem mais do que os ingleses; as estrelas de Bollywood, presena de relevo nos principais festivais cinematogrficos da Europa e dos Estados Unidos, fazem publicidade de marcas consumidas pela Europa trendy, a mesma que consome as artes e o cinema da ndia e a sua cozinha, que adopta prticas de yoga e de meditao em ginsios franchising, que veste kurta e salwar kameeze e se cobre com pacheminas.

O cinema da ndia, mais especificamente Bollywood, assume-se como um importante ve-culo de transaco cultural que muito nos diz sobre as dinmicas da cultura pblica na contempora-neidade. Sabemos que os filmes indianos sempre viajaram para diferentes partes do mundo, consti-tuindo aquilo a que Gopinath chamou uma troca pan terceiro-mundista entre a ndia, a frica Orien-tal e do Sul, o Mdio Oriente e a Europa Oriental (Gopinath 2008)5. Efectivamente, o cinema indiano negociou desde sempre transies e conflitos no tecido sociocultural e poltico.

Com Satyajit Ray, foi o prprio movimento nacionalista que adquiriu expresso plstica e que levou ao mundo os desgnios emancipatrios do futuro Estado-nao, ao mesmo tempo que evi-denciava a forma como o cinema se relaciona com questes cvicas e polticas. Hoje, podemos perti-nentemente adoptar a expresso de Rajadhyaksha, boliodizao do cinema indiano (Rajadhyaksha

DiuDamo

http://www.instituto-camoes.pt/revistacamoes20/flash/slideshow1/slideshow1.html

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2008), para definir a chegada de Bollywood ao palco da globalidade graas televiso por satlite6 e ao sistema de compras online7, e a sua emergncia como um espao de produo cultural, onde so manifestas as relaes entre prticas culturais e poltica de Estado, os lugares e modos de consumo, as redes e formas de sociabilidade que cruzam (Avoori e Punathambekar 2008).

Do cinema indiano podemos dizer o que suge-rimos a propsito da literatura: sendo ele ampla-mente projectado para a dispora, cujos modelos e afiliaes tenta modelar, esse cinema ancorou-se nos pases mais cosmopolitas do ocidente que aclamam realizadoras como Mira Nair, conhecida, sobretudo, pelos seus Monsoon Wedding (2001) e The Namesake (2006) filme baseado no livro com o mesmo ttulo da tambm consagrada Jumpa Lahiri; Deepa Mehta que esgotou bilheteiras com a sua controversa trilogia Fire (1996), Earth (1998) e Water (2005), todos passados na ndia e todos a desafiar modelos tradicionais de relaes e de hierarquias de gnero; ou o provocador M. Night Shyamalan, realizador indiano de filmes ameri-canos como The Sixth Sense (1999), Signs (2002), The Village (2004), Lady in the Water (2006), The Hapenning (2008).

As outras ndiasQuando falamos de um fenmeno desta natu-

reza referimo-nos a um pblico eminentemente urbano, embora os projectos de desenvolvimento rural tenham levado, desde finais do sculo XX, electricidade s aldeias e, com ela, a rdio e a

televiso. Quando do meu primeiro trabalho de campo na ndia, numa aldeia do Gujarate sem rede elctrica, realizado na dcada de 1980 e parte de 1990, as msicas dos filmes indianos eram ouvidas num ou noutro rdio a pilhas; as not-cias do Estado e, mais improvavelmente, do pas eram trazidas por pequenas companhias de teatro e por ocasionais visitantes de vocao asctica, numa curiosa juno entre ritual e performance. Esses pequenos grupos, de actores exclusivamente masculinos, funcionavam como canais mediticos alternativos que encenavam passagens das grandes epopeias hindus, o Mahabaratha e o Ramayana, reconfiguradas e adaptadas s circunstncias par-ticulares das aldeias da sua rede de circulao, s quais, simultaneamente, transmitiam notcias dos tempos que passavam, elas prprias muitas vezes ficcionadas.

Acontece que a ndia uma sociedade predo-minantemente agrria, com cerca de 70% da sua populao a viver em aldeias e a trabalhar no sector primrio, apesar de, no ltimo sculo, a relao entre a populao rural e urbana se ter alterado drasticamente (em 1901 um em cada dez indianos vivia em vilas ou cidades), com a migrao para as cidades e decorrente presso no universo urbano, cujas infra-estruturas se tm tornado cada vez mais insuficientes.

Esta aparente polarizao no deve ser tomada, todavia, como analiticamente operatria. Na ver-dade, a ndia constitui um dos mais diversificados painis sociais e culturais do mundo contempor-neo e ser indiano comporta a possibilidade de falar uma das vinte e duas lnguas classificadas ou um

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Vistas da cidade de Puri, em Orissa, uma das cidades sagradas do hindusmo, construda volta do templo de Jagannath, Senhor do Universo e uma incarnao de Vishnu; em Puri realiza-se anualmente uma das maiores festividades rituais da ndia,o Rath Yatra(Festa do Carro) Rosa Maria Perez

http://vimeo.com/15321020

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Raj Rani Mandir, templo hindu da cidade de Bhubaneswar, Orissa, conhecido pelo seu deul (santurio) decorado com esculturas extremamente elaboradas Rosa Maria Perez

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dos seus muitos dialectos8, e de adoptar algumas das principais religies da sia e do globo.

Tal complexidade tem existido milenarmente naquela que , sem dvida, a maior democracia do mundo, com origem na independncia do raj brit-nico, em 1947, apesar das lutas comunais que, nos ltimos anos, tm oposto hindus e muulmanos ou hindus e sikhs. Estas lutas so muitas vezes ateadas por interesses poltico-partidrios cuja anlise excede o escopo deste texto. No entanto, a coabitao de sculos do hindusmo com outras religies, como o islo ou o cristianismo, pe em evidncia o seu carcter negocial e extremamente adaptativo, o qual, alm de religies ancestrais com origem no territrio, o budismo9, o jainismo10 e a mais recente doutrina sikh, albergou culturas religiosas exgenas, como a teologia parsi, o cristianismo e, em menor escala, o judasmo.

Pajelas representandoas deusas Kali e Durga Rosa Maria Perez

Pequeno altar domstico em Diu Rosa Maria Perez

Deus Ganesh com vermelhona cabea, templo de Siddheswar, em Bhubaneswar, Orissa Rosa Maria Perez

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Dois casos devem ser referidos como indica-dores da plasticidade do hindusmo, por oposio s teorias que o essencializaram com base em este-retipos como tradio e resistncia mudana. O primeiro a doutrina sikh, que se constituiu como alternativa ao hindusmo e ao islo, aglutinando, no entanto, elementos dos dois. Guru Nanak, o seu fundador no sculo XV, defendia um sistema iguali-trio, verdadeiramente vanguardista relativamente a questes de igualdade social e de gnero, ao mesmo tempo que tentou esboroar velhas separaes afir-

mando que: No h hindus, no h muulmanos. Propunha a substituio dos elaborados rituais hin-dus por cerimnias que tinham como finalidade o culto de uma irrepreensvel conduta tica, baseada na compaixo, na coeso social e na unidade religiosa em torno de um s deus. O meio filosfica e cultural-mente vibrante em que cresceu, no Punjab, e onde tomou contacto com hindus, muulmanos, budistas e jainistas, levou-o do pluralismo revelao de uma realidade divina una e nica. Nomeou seu sucessor Guru Angad, assim se iniciando uma linha que con-duziria Khalsa, a Ordem dos Puros, baseada na igualdade entre homens e entre sexos, na absteno de violncia, no ideal da abnegao e na ausncia de barreiras o que, a cumprir-se, teria como principal consequncia a abolio das castas, instituio de desigualdade e de segregao social e humana11.

Um segundo laboratrio de anlise o islo, que hoje em dia tem na ndia a segunda umma, comunidade dos crentes, a seguir Indonsia. Alm da sua singularidade no territrio, onde ignorou os modelos tradicionais de hegemonia que imps noutros lugares do mundo, ele d-nos conta da ina-dequao da imagem corrente de duas civilizaes antagnicas e irredutveis, imagem esta necessa-riamente simplificadora da essncia intrnseca do islo e do hindusmo, por um lado, e da natureza das suas relaes recprocas, por outro.

A produo dominante das cincias sociais sobre o subcontinente indiano toma geralmente como assimtricas as influncias mtuas entre islo e hin-dusmo. O ltimo, dominante na ndia enquanto prtica social e religiosa, teria moldado o primeiro, ajustando-o ao sistema de castas facto que, de resto, diversos estudos sociolgicos e antropolgicos corroboram. Inversamente, a influncia do islo sobre o hindusmo seria bem mais restrita e acantonada a movimentos sectrios hindus inspirados no pensa-mento islmico, com proeminncia para a mstica sufi. Porm, ao longo dos sculos, inmeras foram as converses de hindus ao islo e larga a medida em que esta adeso modificou a cultura dos convertidos (Assayag 1995). Com efeito, uma anlise antropol-gica das relaes entre hindus e muulmanos na ndia

Devotos hindus no lago de Bindu Sagar, em Bhubaneswar, Orissa Rosa Maria Perez

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Jama Masjid, Ahmedabad, mesquita construda em princpios do sculo XVpor Ahmed Shah, o fundador da cidade, com partes de templos hindus e jainistas demolidos Rosa Maria Perez

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Colunas de mesquita de Sidi Sayad (ou "Mesquita do Escravo", por ter sido construda por um ecravo de Ahmed Shah), no centro de Ahmedabad, perto do rioSabarmati; um devoto faz uma das cinco oraes do dia Rosa Maria Perez

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encaminha-nos para um plano mais subterrneo e mais genuno de uma experincia social milenar e convida-nos a prescindir do nvel estrito do discurso, que nem sempre corresponde a experincias efectivas nem reproduz as representaes recprocas de hindus e muulmanos; abandonando, assim, a ideia de tra-dio como herana, patrimnio ou, menos ainda, etnicidade, e assumindo-a antes como um sistema de relaes entre indivduos capazes de colaborarem entre si ou de se antagonizarem, e cujas relaes de solidariedade ou de incompatibilidade so necessa-riamente descontnuas no tempo e nos modos.

Como j tive oportunidade de salientar, a relativa escassez de fontes polticas e econmicas e a abundncia de peas artsticas e literrias de carcter religioso conduziram sobreavaliao do papel da religio na civilizao indiana (Perez 2006a). Este essencialismo encontrou, no plano social, o seu duplo: as castas da ndia, que foram tomadas como intrnsecas e permanentes.

Por casta, termo que os portugueses deram ao jati local, entende-se, como sabemos, uma forma

de organizao social muitas vezes considerada especificamente hindu caracterizada pela endoga-mia (a obrigatoriedade de um homem se casar com uma mulher da sua casta), a endocozinha (a troca e o consumo de alimentos no interior do grupo) e a especializao profissional hereditria. Contraria-mente a uma sociedade de classes em que a grada-o estatutria tem como operadores principais o poder econmico e poltico, a lgica de hierarquiza-o das castas eminentemente religiosa e assenta na oposio entre pureza e impureza ritual, sendo a primeira em teoria detida pelos brmanes, os mais puros do sistema, e a ltima pelos intocveis, os mais impuros e condenados a trabalhar com as substncias mais poluentes, resultantes da morte e da deteriorao humana, animal e vegetal12.

Um quadro como estes necessariamente sim-plificador e, medida que o mapa etnogrfico da ndia se foi preenchendo, diferentes foram as crticas por ele estimuladas. A contemporaneidade social indiana exibe inequivocamente as limitaes analticas desta abordagem, desde logo no complexo mundo urbano

Jovem sikh com um elaborado turbante que indica de um dos cinco "k" do sikhismo, kesh,o cabelo no cortado Rosa Maria Perez

Jovens gujaratis no baoli de Dada Hari, Guzarate Rosa Maria Perez

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acima referido, onde se diluem os traos distintivos de casta atravs de um crescente isomorfismo que passa pela adopo de novas formas de vesturio e de codificao do corpo, pela partilha de prticas de lazer, pela diversidade de ocupaes profissionais descoladas dos indicadores de casta em servios, comrcio, administrao, ensino13.

A ndia dos portugueses

Os portugueses protagonizaram na ndia o in-cio da grande ocupao colonial que at indepen-dncia, em 1947, o subcontinente viria a conhecer. Lembremos que prximo da sua chegada ocorreu a segunda grande vaga de ocupao arbico-islmica,

Sacerdotes do templo de Sri Manguesh, Priol, Goa; o jenoi ("cordo sagrado") a cruzaras costas indica o estatutode brmane Rosa Maria Perez

Sannyasi, "renunciante", asceta que prescindiu dos seus referentes familiares e sociais e de quaisquer bens materiais, para se dedicar procura espiritual com vista libertao do ciclo das reincarnaes (moksha) Rosa Maria Perez

Homens da aldeia de Valthera, no Gujarate; o uso do turbante branco e do dothi (pano, geralmente branco, enrolado volta das pernas) indicaa sua ruralidade Rosa Maria Perez

Homens vankar, aldeia de Valthera, Gujarate Rosa Maria Perez

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Igreja e Convento de Santa Mnica, Velha Goa Miguel Fialho de Brito

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de matriz mogol, cujo imprio viria a expandir-se em poder e em espao, at ser contido, cerca de dois sculos mais tarde, pelo raj britnico, que deteve na ndia o principal mas no exclusivo domnio euro-peu tendo em conta a gesto colonial holandesa e, em menor escala, francesa. E sublinhemos que, embora a ocupao portuguesa do subcontinente indiano se tenha restringido a um pequeno pedao do territrio (Goa, Damo e Diu, depois de uma frustrada hegemonia no Gujarate perdida a favor dos ingleses e oferecida como presente de casa-mento a um rei ingls a grande metrpole da ndia, Bombaim), para o indiano comum os portugueses foram, de facto, quem abriu as portas da ndia sua prolongada colonizao14 e, tambm, quem as fechou, com a anexao de Goa por Nehru, em 1961.

Como explicitarei mais adiante (it. infra, A dana dos deuses), os primeiros tempos do colonialismo portugus na ndia consistiram na recusa da diferena cultural e das prticas sociais e rituais a ela associadas, tendo o cristianismo operado como mecanismo de traduo cultural e de tentativa de uniformizao dos territrios ocupados. Curiosamente, como tambm assinalei noutra altura, a produo portuguesa sobre a ndia, maioritariamente de natureza historiogrfica, tem-se circunscrito sobretudo aos territrios de pre-sena nacional Goa e, secundariamente, Damo e Diu , aqueles em que estudiosos e estudados, partilhando uma mesma lngua e uma mesma reli-gio, se reconhecem e se identificam15 (Perez 1994: 234). A esta perspectiva, que iludiu a existncia de diferenas sociais e que tomou como coincidentes planos que efectivamente o no so, parentesco de

Cruzeiro da Igreja de So Paulo, Diu Rosa Maria Perez

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lngua e parentesco de cultura, chamei lusocntrica. O portugus foi imposto como lngua oficial e a lngua local, o concani, reduzido ao estatuto de dialecto, sendo, desta forma, inibido o desenvolvimento de uma literatura nativa16. Um terreno de produo escapou, no entanto, a esta inibio: o teatr ou tiatr. Muito pouco estudado ainda, ele diz-nos muito, no entanto, sobre os processos de coexistncia cultural na longa durao e sobre as harmonias e rupturas que nela se inscrevem.

Estando esta edio da revista Cames intrin-secamente ligada comemorao do quinto cen-tenrio do Auto da ndia de Gil Vicente, vale a pena

pr em evidncia alguns dos traos distintivos do teatro termo cuja origem etimolgica inequ-voca. Num artigo dedicado articulao entre tradio e modernidade, a historiadora Rowena Robinson elege como caso de estudo precisamente o teatro em Goa sobre o qual nos diz o seguinte:

This is a narrative about the little world of Goan teatr (tea-ah-tr) and the ways in which it plays with the modern: creates it, critiques it, comes to terms with it. As part of the same movement, tradition is defined and represented in particular ways. The teatr is itself a modern, popular theatrical form, which has elements of the pantomime: topical allusions, songs

Restaurante em Calangute,Goa Rosa Maria Perez

Cartaz publicitrioem Delhi Rosa Maria Perez

Cartaz publicitrio numa ruade Panjim, Goa Rosa Maria Perez

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and dances, jesting and buffoonery. A story threads its way somewhat disjointedly through the whole per-formance, the other elements interjecting periodically as interludes and moments of comic relief (Robinson 1999: 504).

Esta uma narrativa sobre o pequeno mundo do teatr (tea-ah-tr) gos e sobre os modos como ele joga com a modernidade: como a cria, a cri-tica, a integra. Como parte do mesmo movimento, a tradio definida e representada de formas particulares. O teatr , ele prprio, uma forma moderna, teatral, que tem elementos da panto-mina: aluses contemporneas, canes e danas, gestos e mmica. Uma histria tecida um pouco isoladamente ao longo de toda a performance, vindo os outros elementos interromp-la perio-dicamente como interldios e momentos de base cmica (Robinson 1999: 504).

Esta passagem remete-nos por si s para a natureza de algumas peas de Gil Vicente entre as quais o prprio Auto da ndia. Ora, segundo a mesma autora, os primeiros teatrs em Goa datam das ltimas dcadas do sculo XIX, mantendo, no entanto, ligaes com elementos performa-tivos muito anteriores como o khel17 e o zagor18, ambos formas de msica e de dana ligadas nos seus incios a celebraes rituais, mas integrando posteriormente aspectos da vida social, bem como narrativas orais. Para a autora, o teatr, representado em concani, tem origem no catolicismo e, mais particularmente, em grupos de migrantes goeses em Bombaim, interceptando assim, na sua genea-logia, a prpria modernidade no que ela contm de migrao e movimento, de novas configuraes de espao e de comunidade (Robinson idem: 505).

A temtica do teatro em Goa ajuda-nos a explici-tar a articulao proposta por Robinson. Na verdade, ao mesmo tempo que so encenadas a representati-vidade poltica moderna, a cultura moderna (asso-ciada, nomeadamente a sries ocidentais emitidas pela televiso por satlite exibindo a transformao de papis de gnero e de relaes familiares) ou modernos sistemas econmicos ligados ao desen-volvimento tecnolgico e ao crescimento de merca-

Imagens da representaodo Auto da ndia, Marionetas de LisboaCedido por Ildeberto Gama

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dos mundiais e, internamente, ao desenvolvimento do turismo e ao seu impacto a nvel local, as relaes tradicionais de famlia e de gnero tornam-se um espao de proteco dos efeitos erosivos da moder-nizao, sendo criticados os novos modelos de famlia nuclear isolada de redes familiares mais alargadas e tomando como epicentro a mulher trabalhadora , e a famlia tradicional glorificada (Robinson idem: 506).

Interessantemente, se pensarmos no Auto da ndia encontramo-nos perante uma estrutura em espelho, uma vez que as viagens martimas que, em termos cronolgicos, assinalam a chegada da Europa modernidade, trouxeram consigo o colapso do casamento, evidenciado no caso ver-tente pela infidelidade da mulher, a Ama, que, numa espcie de emancipao precoce do modelo monogmico, tem ligaes extra-conjugais quase promscuas (seduzindo simultaneamente o Caste-

lhano e o Lemos) e mente ao marido arruinado, no seu regresso das ndias mui fermosas.

Se quisermos seguir este fio de anlise, o pr-prio tecido social ameaado, como ameaado em Goa o sistema tradicional face modernidade, e cujo esboroamento o teatr encena. Nele pode-mos identificar outras traves-mestras dos autos vicentinos: a intriga, a caricatura de personagens desajustadas aos modelos sociais e culturais, a crtica ao poder poltico e religioso. Formalmente o teatr uma arte performativa singular na articu-lao de elementos dramticos com msica (solos, duetos e coros chamados cantaram19), comdia e improviso, sketches cmicos e monlogos (Kale 1999: 138). Estamos, no fundo, perante uma confi-gurao mais vasta, se tivermos em conta a ligao entre performances cnicas, msica e dana no territrio cultural indiano: em snscrito, drama e dana dizem-se pela mesma palavra, natya20, e

Programas de representaes de teatro

Imagem do cartaz da exposio O que o Teatr CLP Goa

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esto intimamente ligados ao teatro popular e aos rituais religiosos.

Em Goa, o teatr constitui a forma de entreteni-mento mais vibrante e de maior sucesso comercial21,

popularidade que sugere, segundo Kale, a existn-cia de um cdigo comum de valores, atitudes e per-cepes do eu e do mundo (Kale 1999: 139) e que, por isso, deve ser abordado como uma instituio social e um acto de comunicao de uma comuni-dade que se constituiu na interaco histrica entre modelos nativos e a adopo ecltica de formas de cultura portuguesa e europeia, cujos resultados so apontados por outras prticas e instituies sociais (idem: 141). , em suma, fecundo observar esse mundo de l, criado pelos portugueses, encenando as suas idiossincrasias, aqui e ali quase emulando o olhar satrico de Gil Vicente22. Eis o que me faz retomar uma sugesto abaixo enunciada (cf. infra,

Representao de teatrdo CPL-IC de Goa

Cena de representao de teatr pelo Grupo Dramtica de Sa Gonalo Rosrio Estibeiro

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Murti de Mahalasa no seu palki, quando a deusa desce ao tanque sagrado do templo;templo de Sri Mahalasa, Mardol, Goa Pedro Pombo

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Nobre portugus na ndia, sculo XVI, aguada de tinta sobre papelBiblioteca Casatenense, RomaM.S. 1889-96-a, 97-b Ministrio per i Bene e la Activita Culturale

O mercado de GoaJan Huygen van Linschoten - Historie de la navigation.Amsterdan: 1638Gravura aguarelada. Lisboa, Sociedade de Geografia,NW 436

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A Dana dos Deuses): tomar como descontnua a metrpole e a colnia, colonizadores e colonizados, apesar de analiticamente tentador ilude a comple-xidade deste universo de relaes que, como todas as relaes entre indivduos e grupos, resistem a apressadas dicotomias.

De tanto nos fala o teatr em Goa ao construir uma comunidade partilhada por catlicos e hindus, reinventando a tradio e projectando-a no presente, introduzindo vozes alternativas ideologia dominante, definindo significaes identitrias. De tanto nos fala tambm a ndia que os portugueses colonizaram: de conflitos e resistncias, de conjunes e de coexis-tncias culturais que lhe conferiram inquestionveis singularidades, elucidadas nas suas expresses perfor-mativas pelos textos que integram este volume.

1 A minha colaborao nesta edio da revista Cames teve sempre como interlocutor o seu vice-presidente, Dr. Miguel Fialho de Brito, cuja erudio e criatividade foram profunda-mente inspiradoras e a quem muito agradeo.

2 Nos ltimos anos, os media e muitos estudos acadmicos tm sido tentados a categorizar a ndia a partir de indicado-res verdadeiramente explosivos: a segunda maior nao do mundo demograficamente falando, com uma populao de 1,1 bilio de habitantes, ou seja, 16% da populao mundial, e um crescimento demogrfico de aproximadamente 2,11% (Censos de 2001), constituindo, na sua diversidade, a maior democracia do mundo.

3 Os livros mais recentes tm, a este nvel, ttulos significa-tivos: Planet India. How the Fatest-Growing Democracy is Transforming America and the World (Kambar 2007) ou The elephant, the tiger and the cell phone. Reflections on India, The Emerging 21st Century Power (Tahroor 2007).

4 Nesta rea foram laureados dois outros escritores intima-mente ligados ao subcontinente, embora em diferentes perodos e itinerrios de vida: em 1917, Rudyard Kipling, nascido na ndia, educado em Inglaterra, e cujos escritos se construram sobre a ndia, e, em 2001, V. S. Naipul, naciona-lizado ingls e nascido na Trinidad, de origem indiana.

5 Eis o que nos sugere que a tal boliodizao no um fen-meno recente e que ela anterior prpria dispora ao mesmo tempo que nos fornece mecanismos para repensar este e outros conceitos que com ele tm permutado (nome-adamente o conceito de migrao e a prpria definio de globalizao).

6 O canal digital de filmes em hindi B4U (Bollywood for You) foi lanado em 1999 no Reino Unido e est disponvel em mais de 100 pases; com ele concorrem actualmente os canais Zee Network, Star Plus e Sony Entertainement Television cujo objectivo prioritrio atingir o mercado internacional.

7 O Eros Internacional, o maior distribuidor mundial de filmes em hindi, procurado pelos membros da dispora, mas tambm por todos os consumidores do cinema da ndia.

8 Estas lnguas coincidem geralmente com os limites dos esta-dos. No Norte, 76% da populao fala lnguas indo-arianas (assamesi, bengali, bodo, dogri, gujarati, hindi, kashmiri, concani, maithili, marathi, meitei, nepali, oriya, punjabi, snscrito, santali, sindhi, urdu), sendo o hindi a lngua nacional. No sul, as lnguas dravidianas (kannada, malaya-lam, tamil, telugu), correspondendo a 21%, so dominantes. Outros grupos devem ser mencionados, sobretudo o austro-asitico (1,2%) e o tibeto-birmans (1%). O ingls a lngua oficial, funcionando como veculo de comunicao entre esta enorme diversidade lingustica.

9 Como sabemos, o budismo teve origem na recusa dos fun-damentos do hindusmo pelo prncipe Sidharta Gautama, ou Sakyamuni, nascido num reino do Norte da ndia, actual Nepal, no sculo VI-V a.C., que, por isso, renunciou s suas origens sociais e religiosas para procurar a libertao, o nirvana (de facto, o termo Buda refere-se a um estado de ascese e significa iluminado). Tendo, nos seus incios, abalado o sistema de castas contra cuja estratificao se levantava o budismo acabaria por ser inteligentemente absorvido pelo hindusmo nos seus princpios mais ino-vadores; o facto de no propor uma alternativa social ao sistema acabaria por lhe retirar expresso na ndia, tendo-se, pelo contrrio, implantado mais a oriente noutros contextos da sia. Sculos mais tarde, o imperador mauria Ashoka (322-273 a.C.) converteu-se ao budismo, tentando imp-lo nos seus vastos domnios (que incluam parte do actual Iro, Afeganisto e Paquisto), sem grande durabilidade, contudo. Na ndia contempornea posterior a Ambedkar um poltico intocvel que props a converso em massa da sua casta, mahar, ao budismo as converses por parte de castas socialmente desvalorizadas tm alguma expresso. Os convertidos, designados por neo-budistas, mantm, todavia, o estigma decorrente da intocabilidade hindu. Outros h que adoptam o budismo como prtica: ocidentais que nele procu-ram parasos perdidos em ashrams muitas vezes preparados para o efeito.

10 A sua proximidade temporal e filosfica com o budismo e a prpria semelhana de algumas representaes plsticas tm levado alguns a consider-lo uma variante combinatria da doutrina do Buda. ao jainismo que se deve a filosofia da no-violncia, aimsha, que Gandhi elegeu como um princ-pio essencial do seu projecto de independncia. Acantonado sobretudo no actual Gujarate, o jainismo que, do ponto de vista da ascese, impe um rigor excessivo, numa perspectiva social e arquitectnica apresenta interessantes interseces com o hindusmo. Levado ao extremo, o princpio de no-vio-lncia (que o hindusmo viria a integrar, abolindo o sacrifcio animal e adoptando o vegetarianismo como indicador de estatuto) implica uma quase total a-sociabilidade. Efectiva-mente, a preocupao jainista em no provocar qualquer tipo de morte mesmo a de um insecto impe aos praticantes mais ortodoxos precaues to minuciosas que praticamente os imobilizam, retirando-os da vida em sociedade.

11 A religio sikh assaz significativa no que respeita evo-luo dos sistemas de pensamento e de crena. Ao correr dos tempos, ela viria a incorporar uma componente blica, separando os homens que Guru Nanak cujo pensamento inspirou Gandhi queria iguais entre si.

12 Para o sistema de castas poder e estatuto, ao contrrio do que se verifica numa sociedade de classes, no so, pois, coincidentes. Por isso os brmanes, detentores do maior

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estatuto social no tm necessariamente poder poltico e/ou econmico.

13 So sobretudo as castas de servios (barbeiros, lavadeiros, sapateiros, varredores) que mantm as ocupaes tradicio-nais e os estigmas sociais a elas associados. A base do sistema tende, deste modo, a fixar os estatutos sociais, muito parti-cularmente no caso dos intocveis, segregados no espao em degradadas periferias urbanas e em habitaes precrias de salubridade diminuta.

14 Para Said, a colonizao de um territrio tem, como sabe-mos, origem no seu conhecimento (Said 1978), tendo sido este conhecimento produzido substantivamente, no caso da ndia, pelo Romantismo alemo. Efectivamente, a ideia de Me ndia usada pelo movimento nacionalista como emblema identitrio foi germinada pelos Romnticos ale-mes que, rejeitando a genealogia masculina crist de religio, viam na ndia um paraso perdido da humanidade, situado algures nas montanhas dos Himalaias, onde pro-jectavam imagens maternais de uma inocente idade de ouro (Donaldson e Kwok 2002:18). O mentor desta ideia, o alemo Joahan-Gottfried Herder, inspirou Jacob Grimm e outros estudiosos, o mais influente dos quais foi Max Mller, que dedicou uma parte considervel da sua Comparative Religion procura da ndia como o lugar de origem de todas as culturas e religies, ou, nas palavras de Donaldson e Kwok, o tero do mundo (Donaldson e Kwok 2002:17).

A hiptese de Mller de que indianos e europeus perten-ceriam a um mesmo stock, ariano, agitou o seu pblico europeu, particularmente o britnico, o mesmo que recusaria essa possibilidade veiculada pelos primeiros linguistas do indo-europeu, nomeadamente Franz Bopp e Humboldt, eles prprios inspirados nos estudos de snscrito de um juiz do raj em Calcut, William Jones. Esse pblico, e sobretudo os missionrios europeus, advogavam antes a superioridade dos arianos ocidentais, europeus, em conhecimento cientfico e tecnolgico, aos quais caberia, por isso, resgatar da sua meno-ridade civilizacional os arianos orientais, indo-iranianos, cuja decadncia moral e espiritual encontraria no cristianismo o garante de redeno.

15 Como tenho vindo a mostrar, esta reduo da ndia aos luga-res de lngua portuguesa e de religio crist naturalmente enganadora, tanto do ponto de vista social quanto religioso; no primeiro caso, porque mesmo a sociedade crist se estrati-ficou segundo o modelo hindu de varna, no segundo porque, se possvel falar de singularidade da sociedade goesa, ela reside precisamente nos pontos de partilha ritual entre hin-dusmo e cristianismo (vide, sobretudo, Perez 1998).

16 Acontece que nem nos perodos mais ureos de presena colonial o portugus foi a lngua dominante no territrio: em Goa foi secundarizado pelo concani; em Damo e Diu no conseguiu impor-se ao gujarati.

17 Termo snscrito que significa jogo e pea e que na costa do Conco designa danas rituais realizadas nas aldeias nos principais rituais do calendrio hindu, como o Holi, ocorrendo preferencialmente no Carnaval entre os catlicos de Goa (que usam para estas performances o termo contra dana).

18 De jagar, um gnero performativo hindu em Goa, os zagors, popularizados por aldeias catlicas de Bardez, que era rea-lizado por altura de festas rurais e de festividades da igreja e patrocinado pela comunidade de aldeia.

19 Cantaram so canes compostas ou interpretadas pelos cantarist, cantores, que abrem o teatr e que so uma parte muito importante dele, sendo quase sempre as cantaram crticas sociais e polticas.

20 Por isso, tambm, um mesmo tratado snscrito de artes performativas, Natyashastra, engloba o teatro, a dana e a msica.

21 Embora seja representado ao longo do ano, as pocas mais importantes so o Vero (de Abril a Junho) e o perodo que vai do Diwali ao Carnaval (entre Outubro e Fevereiro).

22 Retomo Robinson: From the beginning, teatrs were cha-racterized by Rabelaisian qualities of gaiety, laughter and ribaldry, travesty, irreverence and mockery. While Catholic values implicitly shaped the moral universe of the teatr, teatrs were not slow to poke fun at anything that smelt of the sanctimonious of dissimulation. This was despite the fact that until 1961, under the Portuguese, particular prohibitions applied to such performances. For instance, it was forbidden for any actor to put on a clerical dress or the dress of a religious order. Mimicry of the ceremonies and rites of the Church in dramatic representations was also not permitted (Robinson 1999: 511).

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Auto da ndia, 2008 Grupo de Teatro Escolada Noite Elenco: Antnio Jorge, Maria Joo Robalo, Miguel Magalhes, Slvia Brito