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A CEIA SECRETA INTRIGAS E OS MISTÉRIOS DO QUADRO DE

LEONARDO

Javier Sierra

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A CEIA SECRETA

INTRIGAS E OS

MISTÉRIOS DO QUADRO DE LEONARDO

Autor:  JAVIER SIERRA Editora: RELUME-DUMARAAssunto: LITERATURA ESTRANGEIRA-ROMANCESISBN : 8573164522 ISBN-13:  9788573164527

Livro em português

Brochura

 - 15,5 x 23 cm 1ª Edição - 2005 - 360 pág.

SINOPSE: 

É impossível não se surpreender com as intrigas e os

mistérios da elaboração do quadro de Leonardo Da Vinci, em que

nada é o que parece ser. Enquanto Da Vinci dá as últimas

pinceladas, um investigador é enviado a Milão para decifrar o

verdadeiro significado que está por trás de A última ceia. Por que

Jesus Cristo deixa os sacramentos da Eucaristia de lado? Por que

alguns dos discípulos encontram-se de costas para o mestre? Onde

está Judas? E Da Vinci, o que ele faz entre os discípulos?

Objeto da polêmica: O quadro A Última Ceia, de Leonardo da Vinci.

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A trama: Contado todo em flashback, o livro retorna ao ano de

1497, data que marcaria a finalização da obra de Leonardo da

Vinci - iniciada dois anos antes. Frei dominicano, Agustín Leyre, é

convocado a Milão para investigar o conteúdo do quadro. Em plena

era da Inquisição e auge da intepretação simbólica, o religioso

começa a entender as primeiras tentativas do pintor em adicionar

enigmas e filosofias racionais num templo católico. No entanto, o

que Agustín descobre o leva ao exílio no Egito, onde teria escrito

declarações nas cavernas Yabal al-Tarif. Qual descoberta teria

abalado um inquisidor?

Exórdio

Na Idade Média e no Renascimento, a Europa ainda

conservava intacta sua capacidade de entender símbolos e ícones

ancestrais. As pessoas sabiam quando e como interpretar um

capitel, uma expressão num quadro ou um prodígio na estrada,

apesar de só a minoria ter aprendido a ler e a escrever.

Com a chegada do racionalismo se perdeu aquela capacidade

de interpretação e, com ela, boa parte da riqueza legada por

nossos antepassados.

Este livro acolhe muito desses símbolos da forma como foram

concebidos. Mas também, pretende devolver nossa capacidade de

compreendê-los e nos beneficiarmos de sua infinita sabedoria.

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Não me lembro de adivinhação mais obscura e perigosa do

que aquela que me acometeu naquele Ano Novo de 1497, enquanto

os Estados pontifícios observavam como o ducado de Ludovico, o

Mouro, estremecia de dor.

O mundo era então um lugar hostil, furta-cor, um inferno de

areias movediças em que quinze séculos de cultura e fé

ameaçavam ruir sob a avalancha de novas idéias importadas do

Oriente. Da noite para o dia a Grécia de Platão, o Egito de

Cleópatra ou as extravagâncias da China exploradas por Marco

Polo mereciam mais louvores do que nossa própria história bíblica.

Aqueles foram dias agitados para a cristandade. Tínhamos um

papa simoníaco - um diabo espanhol coroado sob o nome de

Alexandre VI que comprara descaradamente a tiara no último

conclave -, príncipes subjugados pela beleza do paganismo e a

maré de turcos armados até os dentes à espera de uma boa

oportunidade para invadir o Mediterrâneo ocidental e converter

todo mundo ao islamismo. Bem se poderia dizer que nossa fé

jamais estivera tão indefesa em seus quase mil e quinhentos anos

de história.

E ali se encontrava este servo de Deus que vos escreve -

examinando com cuidado um século de mudanças, uma época em

que o mundo alargava diariamente suas fronteiras e exigia de nós

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um esforço de adaptação sem precedentes. Era como se a cada dia

a Terra se fizesse maior, forçando-nos a uma atualização

permanente dos conhecimentos geográficos. Nós, clérigos, já

intuíamos que deveríamos tomar providências para pregar a um

mundo povoado por milhões de almas que jamais ouviram falar de

Cristo, e os mais céticos previam um período de caos iminente,

provocado pela chegada de nova horda de pagãos.

Apesar de tudo, foram anos excitantes. Anos que contemplo

com certa saudade em minha velhice, neste exílio que me devora

pouco a pouco a saúde e as recordações. Minhas mãos já quase

não reagem, a vista fraqueja, o ofuscante Sol do sul do Egito turva

minha mente e só nas horas que precedem a primeira luz da

manhã sou capaz de organizar meus pensamentos e refletir sobre a

espécie de destino que me trouxe até aqui. Um destino a que nem

Platão, nem Alexandre VI, nem os pagãos são alheios.

Mas não apressarei os acontecimentos.

Basta dizer que agora, enfim, estou sozinho. Não sobrou

nenhum dos secretários que tive um dia, e hoje apenas Abdul, um

jovem que não fala minha língua e acredita que sou um santarrão

excêntrico que veio morrer em sua terra, atende às minhas

necessidades mais elementares. Vivo mal, isolado nesta antiga

tumba escavada na rocha, rodeado por poeira e areia, ameaçado

por escorpiões e quase sem movimento nas duas pernas. Todos os

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dias o fiel Abdul deixa neste cubículo um pastelão ázimo e o que

por sorte sobra em sua casa. É como o corvo que durante sessenta

anos carregou no bico trinta gramas de pão à Paulo, o Eremita, que

morreu com mais de cem anos nestas mesmas terras. À diferença

daquele pássaro de bom agouro, Abdul sorri quando me entrega o

pão, sem saber mais o que fazer. É suficiente. Para alguém que

pecou tanto como eu, qualquer deferência se converte em prêmio

inesperado do Criador.

Mas além da solidão, também a mágoa terminou por corroer

minha alma. Causa-me pena que Abdul não saiba o motivo que me

trouxe à sua aldeia. Não saberia explicar a ele por sinais.

Tampouco nunca poderá ler estas linhas e, ainda no caso remoto

que as encontre depois de minha morte e as venda a algum

cameleiro, duvido que sirvam para algo mais do que avivar uma

fogueira nas frias noites do deserto. Aqui ninguém entende latim

ou qualquer língua românica. E cada vez que Abdul me encontra

diante destes papéis encolhe os ombros, sem ação, ciente de estar

perdendo algo importante.

Essa idéia me mortifica dia a dia. A certeza íntima de que

nenhum cristão jamais lerá estas páginas atordoa minha lucidez e

enche meus olhos de lágrimas. Quando acabar de redigi-las,

pedirei que as enterrem com meus despojos, esperando que o Anjo

da Morte se lembre de recolhe-las e as leve ao Pai Eterno quando

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se celebrar o julgamento de minha alma. Triste é a história: os

maiores segredos são os que nunca vêm à luz.

O meu segredo sobreviverá?

Duvido.

Aqui, nas cavernas chamadas Yabal al-Tarif, a poucos passos

deste grande Nilo que abençoa com suas águas um deserto

inóspito e vazio, apenas rogo a Deus que me dê tempo suficiente

para justificar por escrito meus atos. Estou tão afastado dos

privilégios que tive um dia em Roma que ainda que o novo papa me

perdoasse sei que já não seria capaz de retornar ao aprisco de

Deus. Não suportaria deixar de escutar os longínquos lamentos dos

almuadens em seus minaretes, e a saudade desta terra que me

acolheu com tanta generosidade torturaria meus últimos dias.

Meu consolo é organizar aqueles fatos da maneira como

aconteceram. Vivi alguns deles em minha própria carne. De outros,

em compensação, tive notícia muito tempo depois de ocorridos. No

entanto, postos uns depois dos outros, darão a você, hipotético

leitor, uma idéia da magnitude da adivinhação que alterou minha

existência.

Não. Não posso dar mais as costas ao destino. E agora que

refleti sobre tudo o que meus olhos viram, vejo-me na obrigação de

contar... ainda que não sirva a ninguém.

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Esta adivinhação se originou na noite de 2 de janeiro de 1497,

longe, muito longe do Egito. Aquele inverno de há quatro decênios

foi o mais frio lembrado pelas crônicas. Nevara copiosamente e

toda a Lombardia estava coberta por uma espessa capa branca. Os

conventos de Santo Ambrósio, São Lourenço e Santo Eustórgio, e

até o cume da catedral, desapareceram no nevoeiro. As carretas de

lenha eram a única coisa que se movia nas ruas, e metade de Milão

dormia envolta num silêncio que parecia instalado ali há séculos.

Aconteceu às onze da noite do segundo dia do ano. Um grito

de mulher, dilacerador, rompeu a gelada paz do castelo dos Sforza.

Ao grito se seguiu um soluço, e a eles os agudos prantos das

carpideiras do palácio. O último estertor da sereníssima Beatrice

d'Este, uma jovem na flor da vida, a bela mulher do duque de

Milão, destruíra para sempre os sonhos de glória do reino, Santo

Deus. A duquesa morreu com os olhos bem abertos. Furiosa.

Maldizendo Cristo e todos os santos por levá-la tão cedo para seu

lado e agarrada com força às roupas de seu horrorizado confessor.

Sim. Ali definitivamente começou tudo.

Eu tinha quarenta e cinco anos quando li pela primeira vez o

relatório do que ocorreu naquele dia. Era um relato assustador.

Betânia, segundo o hábito, o solicitara por conduto secretissimus

ao capelão da corte do Mouro, e ele, sem perder um só dia, o

enviara a Roma com toda a pressa. Os ouvidos e os olhos dos

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Estados pontifícios funcionavam assim. Eram rápidos e eficazes

como os de nenhum outro país. E muito antes que chegasse ao

escritório diplomático do Santo Padre o anúncio oficial da morte da

princesa nossos irmãos tinham já todos os detalhes em seu poder.

Naquela época, minha responsabilidade dentro da complexa

estrutura da Betânia era a de assessor do mestre geral da Ordem

de São Domingos. Nossa organização sobrevivia dentro das

margens estreitas da confidencialidade. Numa época marcada por

intrigas palacianas, assassínio com veneno e traições de família, a

Igreja necessitava de um serviço de informações que lhe permitisse

saber onde podia pisar. Éramos uma ordem secreta, fiel apenas ao

papa e à cabeça visível dos dominicanos. Por isso, quase ninguém,

do lado de fora, ouvira falar de nós. Nós nos escondíamos por trás

da ampla capa da Secretaria de Chaves dos Estados pontifícios,

órgão neutro, à margem, de pouca presença pública e competência

limitada. No entanto, da porta para dentro funcionávamos como

um congregado de segredos. Era uma espécie de comissão

permanente para o exame de assuntos governamentais que

permitia ao santo padre se adiantar aos movimentos de seus

múltiplos inimigos. Qualquer notícia, por pequena que fosse e

pudesse afetar o status quo da Igreja, passava imediatamente por

nossas mãos, era avaliada e transmitida à autoridade pertinente.

Era nossa única missão.

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Nessa situação tive acesso ao relatório da morte de nossa

adversária, donna Beatrice d'Este. Ainda me lembro da cara dos

irmãos comemorando a notícia. Ignorantes. Pensavam que a

natureza nos poupara o trabalho de ter de matá-la. Suas mentes

eram simples assim. Funcionavam a golpes de cadafalso, de

condenação do Santo Ofício ou de matador de aluguel. Mas esse

não era o meu caso. À diferença deles, eu não estava tão seguro de

que a morte da duquesa de Milão significava o fim de um longo

encadeamento de irregularidades, conspirações e ameaças contra

a fé que pareciam se esconder na corte do Mouro e foram

comunicadas há meses à nossa rede de informações.

De fato, bastava mencionar seu nome em algum dos cabidos

gerais de Betânia para que os boatos dominassem o restante da

reunião. Todos a conheciam. Todos sabiam de suas atividades

pouco cristãs, mas ninguém jamais se atrevera a denunciá-la. Era

tal o temor que donna Beatrice inspirava em Roma que sequer o

relatório recebido do capelão do duque - que era, além disso, fiel

abade de nosso mosteiro de Santa Maria delle Grazie - se

pronunciava a respeito de suas andanças pouco ortodoxas. Coube a

frei Vicenzo Bandello, reputado teólogo e sábio dirigente dos

dominicanos milaneses, descrever o sucedido, mantendo-se afas-

tado de questões políticas que pudessem comprometê-lo.

Tampouco ninguém em Roma o recriminou pela prudência.

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Segundo o relatório assinado pelo abade Bandello, tudo

estava calmo até a véspera da tragédia. Antes desse momento, a

jovem Beatrice tinha tudo: marido poderoso, vitalidade

transbordante e um bebê prestes a nascer que logo perpetuaria o

nobre sobrenome do pai. Ébria de felicidade, passara a última

tarde dançando de sala em sala, divertindo-se com sua dama de

companhia favorita no palácio Rochetta. A duquesa viveria livre

das preocupações de qualquer mãe em seus territórios. Sequer

amamentaria o bebê, para não estragar os seios pequenos e delica-

dos; uma ama escolhida com cuidado se encarregaria de cuidar do

crescimento da criatura, de seus primeiros passos e de sua

alimentação, e madrugaria para levantá-la e lavá-la com água e

panos quentes. Ambos - bebê e ama - viveriam em Rochetta, numa

peça decorada com empenho por Beatrice. Para ela, a maternidade

era um jogo inesperado e benéfico, sem responsabilidade e

incertezas.

Mas foi exatamente ali, no pequeno paraíso imaginado para

seu rebento, que ocorreu a desgraça. Segundo frei Vicenzo, antes

do anoitecer em São Basílio, donna Beatrice caiu desmaiada sobre

um dos catres do aposento. Ao recuperar os sentidos, sentiu-se

mal. A cabeça girava enquanto o estômago lutava por se esvaziar

entre ânsias de vômito, longas e estéreis. Sem saber que tipo de

indisposição a afligia, ao vômito logo se seguiram fortes contrações

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no baixo ventre que anunciavam o pior. O filho do Mouro decidira

adiantar sua chegada ao mundo sem qualquer previsão. Beatrice,

pela primeira vez, assustou-se.

Naquele dia os médicos demoraram mais do que o normal

para chegar ao palácio. Tiveram de buscar a parteira fora dos

muros da cidade, e quando o pessoal necessário para tomar conta

da princesa chegou enfim ao seu lado já era tarde. O cordão

umbilical que alimentava o futuro Leão Maria Sforza se enredara

em torno do frágil pescoço da criança. Pouco a pouco, com a

precisão de uma corda, apertou a pequena garganta até asfixiá-lo.

Beatrice notou logo que algo ia mal. O filho, que um segundo antes

pressionava com força para sair de suas entranhas, deteve-se de

repente. Primeiro se agitou com violência e logo, como se o esforço

o debilitasse, esmoreceu até expirar. Quando notaram, os médicos

escarificaram de lado a lado a mãe, que se retorcia de dor e

desespero apertando um pano umedecido em vinagre entre os

dentes. Foi inútil. Desesperados, defrontaram-se apenas com um

bebê azulado e morto, com os olhinhos claros já quebradiços,

enforcado, no seio materno.

E foi assim que, alquebrada de dor, sem tempo para aceitar o

duro revés imposto pela vida, a própria Beatrice decidiu expirar

horas mais tarde.

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Em seu relatório, o abade Bandello dizia que chegou a tempo

de vê-la agonizar. Ensanguentada, com o ventre aberto e

mergulhada numa pestilência insuportável, delirava de dor,

pedindo aos gritos para se confessar e comungar. Mas, para sorte

de nosso irmão, Beatrice d'Este morreu antes de receber qualquer

sacramento...

E digo bem: para sorte.

A duquesa tinha apenas vinte e dois anos quando deixou

nosso mundo. Betânia sabia que levara uma vida pecaminosa.

Desde o tempo de Inocêncio VIII eu próprio tive ocasião de estudar

e arquivar muitos documentos a respeito. Os mil olhos da

Secretaria de Chaves dos Estados pontifícios conheciam bem a

espécie de pessoa que fora a filha do duque de Ferrara. Ali dentro,

em nosso quartel-general do monte Aventino, podíamos presumir

que nenhum documento importante gerado nas cortes européias

era alheio à nossa instituição. Na Casa da Verdade dezenas de

leitores examinavam diariamente escritos em todos os idiomas,

alguns codificados nas artimanhas mais impensáveis. Nós os

decifrávamos, classificávamos por prioridades e os arquivávamos.

Mas não todos. Os referentes a Beatrice d'Este levavam tempo

ocupando lugar prioritário em nosso trabalho e eram armazenados

numa peça a que poucos tínhamos acesso. Eram documentos

inequívocos que mostravam uma Beatrice possuída pelo demônio

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do ocultismo. E, o que era ainda pior, muitos aludiam a ela como a

principal incentivadora das artes mágicas na corte do Mouro.

Numa terra permeável às heresias mais sinistras, aquele dado

deveria ser levado bem em conta. Mas ninguém o levou a tempo.

Os dominicanos de Milão - entre eles o padre Bandello -

tiveram várias vezes ao alcance provas que demonstravam que

tanto donna Beatrice como sua irmã Isabella, em Mântua,

colecionavam amuletos e ídolos pagãos, e que ambas tinham

veneração excessiva pelos vaticínios de astrólogos e charlatães de

toda espécie. E nunca fizeram algo. As influências recebidas por

Beatrice foram tão nefastas que a pobre passou os últimos dias

convencida de que nossa Santa Madre Igreja se extinguiria em

breve. Amiúde dizia que a cúria seria levada de rastros até o Juízo

Final e ali, entre arcanjos, santos e homens puros, o Pai Eterno nos

condenaria, a todos, sem piedade.

Ninguém em Roma conhecia melhor do que eu as atividades

da duquesa de Milão. Lendo os relatórios sobre ela aprendi quão

enigmáticas podem chegar a ser as mulheres, e descobri o muito

que donna Beatrice mudou nos costumes e objetivos de seu

poderoso marido em apenas quatro anos de casamento. Sua

personalidade chegou a me fascinar. Crédula, entregue à leituras

profanas e seduzida por todas as idéias exóticas que circulavam no

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feudo, sua obsessão era converter Milão na herdeira do antigo

esplendor dos Médicis de Florença.

Creio que foi isso que me alertou. Ainda que a Igreja

conseguisse minar pouco a pouco os pilares de tão poderosa

família florentina, solapando o apoio dado a pensadores e artistas

amigos das coisas heterodoxas, o Vaticano não estava preparado

para enfrentar o revivescimento daquelas idéias na grande Milão

do norte. As cidades ainda sob a influência dos Médicis, a

lembrança da Academia fundada por Cosme, o Velho, para resgatar

a sabedoria dos gregos antigos, ou sua proteção sem limite a

arquitetos, pintores e escultores, fecundaram tanto a fértil ima-

ginação da princesa Beatrice como a minha. Mas ela a tomou como

guia de sua fé e contagiou, com sua venenosa fascinação, o duque.

Desde que Alexandre VI chegou ao trono de Pedro, em 1492,

enviei mensagens aos meus superiores hierárquicos para preveni-

los sobre o que poderia ocorrer ali. Ninguém me ouviu. Milão, tão

próxima à fronteira com a França e com uma tradição política tão

rebelde em relação a Roma, era a candidata perfeita para albergar

uma dissidência importante no seio da Igreja. Betânia tampouco

acreditou em mim. E o papa, tíbio com os hereges - um ano depois

de tomar a tiara pediu perdão pela perseguição a cabalistas como

Pico Della Mirandola -, deixou de ouvir minhas advertências.

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- Esse frei Agustín Leyre - costumavam dizer de mim os

irmãos da Secretaria de Chaves - presta demasiada atenção às

mensagens do Augure. Acabará tão maluco como ele.

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O Augure. Essa é a peça que falta para armar o quebra-

cabeça.

Sua presença merece uma explicação. Além de meus avisos

ao Santo Padre e às mais altas instâncias da ordem dominicana

sobre o rumo erradio do ducado de Milão, existia outra fonte de

informação que se somava aos meus temores. Era um testemunho

anônimo, bem documentado, que a cada semana enviava à nossa

Casa da Verdade minuciosas cartas denunciando a elaboração de

uma gigantesca operação mágica nas terras do Mouro.

Suas missivas começaram a chegar no outono de 1496,

quatro meses antes da morte de donna Beatrice. Eram dirigidas à

sede da ordem em Roma, no mosteiro de Santa Maria sopra

Minerva, onde eram lidas e guardadas como se fossem obra de um

pobre-diabo obcecado pelos presumíveis desvios doutrinários da

casa Sforza. E não os culpo. Vivíamos tempos de loucos, e as cartas

de um visionário tratavam nossos padres superiores sem

contemplação.

Ou quase todos.

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Foi o arquivista de nossa casa mãe quem me falou das cartas

desse novo profeta, na última reunião geral de Betânia.

- Você deveria lê-las - disse. - Só de vê-las pensei em você.

- Verdade?

Lembro-me dos olhos de coruja do arquivista, pestanejando

de emoção.

- É curioso: escreveu-as alguém com seus mesmos temores,

padre Leyre. Um profeta apocalíptico, culto, bem versado em

gramática, como a cristandade não havia visto desde o tempo de

frei Tanchelmo de Amberes.

— Frei Tanchelmo?

- Oh... Um velho maluco do século XI que denunciou a Igreja

por se ter convertido num bordel, e acusava os sacerdotes de viver

permanentemente com concubinas. Nosso Augure não chega a

tanto, embora, pelo tom das cartas, não tardará a chegar lá.

O arquivista, encurvado e lamuriento, acrescentou mais uma

coisa:

- Sabe o que o diferencia dos outros loucos?

Sacudi a cabeça.

— Parece melhor informado do que qualquer um de nós. Esse

Augure é um maníaco da precisão. Sabe tudo!

Aquele fradeco tinha razão. As folhas de papel engessado e

fino, escritas com uma caligrafia impecável, guardadas numa caixa

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de madeira com o selo de reservado, referiam-se com obsessiva

insistência a um plano secreto para converter Milão em nova

Atenas. Algo assim era o que eu suspeitava há muito tempo. O

Mouro, como os Médicis antes dele, contava-se entre esses

dirigentes supersticiosos que acreditavam que os antigos possuíam

conhecimentos do mundo mais avançados do que os nossos. Era

uma velha idéia. Segundo ela, antes de Deus castigar o mundo com

o dilúvio, a humanidade viveu uma Idade de Ouro próspera que

primeiro os florentinos e agora o duque de Milão queriam

restaurar a qualquer custo. E, para conseguir, não hesitariam em

deixar de lado a Bíblia e os preconceitos da Igreja, isto é, que

naquele tempo de glória Deus ainda não criara uma instituição que

o representasse.

Ainda havia mais: as cartas insistiam em que a pedra

fundamental daquele projeto estava sendo colocada diante de

nossos narizes. Se o que o Augure dizia era certo, a astúcia do

Mouro era infinita. Seu plano de converter o feudo na capital do

renascimento da filosofia e da ciência dos antigos, iam se apoiar

sobre uma base desconcertante: nada menos que nosso novo

convento em Milão.

O Augure conseguiu me surpreender. Fosse quem fosse o

homem que se escondia por trás dessas revelações, levou-as mais

longe do que eu jamais me atreveria. Como me advertiu o

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arquivista, parecia ter olhos em todas as partes. Já não apenas em

Milão, mas na própria Roma, pois algumas de suas últimas cartas

vinham encabeçadas por um Augure que nos desconcertou. Que

tipo de confidente estávamos enfrentando? Quem senão alguém

muito íntimo da cúria poderia saber como se chamavam os

escrivães de Betânia?

Nenhum de nós soube a quem apontar.

Por aqueles dias, o convento a que se referia suas mensagens,

o de Santa Maria delle Grazia, estava em obras. O Duque de Milão

destinara os melhores arquitetos do momento para sua edificação

e, encarregou Bramante da tribuna da igreja, Cristoforo Solari dos

interiores, e não regateou um ducado para pagar aos melhores

artistas a decoração de cada uma de suas paredes. Queria

converter o templo no túmulo de sua família, o local de repouso

eterno que imortalizaria sua memória pelos séculos dos séculos.

No entanto, o que para os dominicanos era um privilégio,

para o autor daquelas cartas era uma terrível maldição. Anunciava

grandes penalidades para o papa se ninguém pusesse fim àquele

projeto e pressagiava uma época funesta, fatal, para a Itália

inteira. O remetente anônimo daquelas mensagens ganhou a

alcunha de Augure sua visão da cristandade não podia ser mais

nefasta.

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Ninguém deu ouvidos àquele diabo anônimo até a manhã em

que chegou sua décima quinta carta.

Nesse dia, frei Giovanni Gozzoli, meu assistente na Betânia,

irrompeu no scriptorium com grande estardalhaço. Agitava no ar

uma nova mensagem do Augure, e, alheio aos olhares de

reprovação dos monges que ali estudavam, dirigiu seus passos até

minha carteira:

- Frei Agustín, deve ver isto! Deve ler imediatamente!

Nunca vi frei Giovanni tão alterado. O jovem frade passou a

nova carta diante de meus olhos e com a voz bem ostensiva

sussurrou:

- É incrível, padre. In-crí-vel.

- O que é incrível, irmão?

Gozzoli respirou fundo:

- A carta. Esta carta... O Augure... O mestre Torriani me pediu

que você a leia de imediato.

- O mestre?

- O piedoso Gioacchino Torriani, trigésimo quinto sucessor de

são Domingos de Guzmán na Terra e responsável máximo pela

nossa ordem, nunca levara a sério aquelas cartas anônimas.

Despachava-as com indiferença e em certa ocasião até me

recriminou por dedicar meu tempo a elas. Por que mudou de

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atitude? Por que me enviou esta nova carta com o pedido de

estudá-la logo?

- O Augure... - Gozzoli engoliu saliva.

- Sim?

- O Augure descobriu em que consiste o plano.

- O plano?

A mão de frei Giovanni segurava ainda a mensagem. Tremia

pelo esforço. A carta, de três páginas com o selo de lacre vermelho,

desceu suavemente sobre minha mesa.

- O plano do Mouro - sussurrou meu secretário, como se

descarregasse uma carga pesada. - Não entendeu, frei Agustín?

Explica o que pretende realmente fazer em Santa Maria delle

Grazie. Quer fazer magia!

- Magia? - Eu não saía do meu espanto.

- Leia-a.

Mergulhei na mensagem ali mesmo. Não havia dúvida de que

a carta fora escrita pelo mesmo autor das anteriores: os mesmos

altos de página e a caligrafia delatavam o autor.

- Leia-a, irmão! - insistiu.

Logo compreendi o porquê de tanta insistência. O Augure

tornava a revelar algo que ninguém esperava ouvir. Retrocedia há

quase sessenta anos, ao tempo do papa Eugênio IV, quando o

patriarca de Florença, Cosme de Médicis, conhecido como o Velho,

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decidiu financiar um concílio que poderia ter mudado para sempre

o rumo da cristandade. Era uma velha história. Ao que parece.

Cosme propiciou um encontro inútil entre delegações diplomáticas

díspares, que durou vários anos, com que pretendia conseguir a

reunificação da Igreja oriental e a de Roma. Os turcos ameaçavam

então estender sua influência sobre o Mediterrâneo e era preciso

detê-los de qualquer maneira. O velho banqueiro teve a idéia rara

de unir todos os cristãos sob um mesmo templo e mostrar a cara ao

inimigo comum com a força da fé. Mas o plano fracassou.

Ou não.

O que o Augure revelava naquela mensagem é que houve uma

agenda secreta por trás do concílio. Um objetivo disfarçado cujos

efeitos ainda se sentiam seis decênios depois em Milão.

Segundo ele, além das discussões políticas da época, Cosme

de Médicis empregou boa parte do tempo em negociar com as

delegações vindas da Grécia e Constantinopla a compra de livros

antigos, instrumentos ópticos e até manuscritos atribuídos à Platão

ou Aristóteles que se acreditava perdidos. Mandou-os traduzir

todos, sem exceção, e neles aprendeu coisas surpreendentes.

Assim descobriu que já em Atenas acreditavam na imortalidade da

alma e sabiam que o céu era responsável por tudo o que se movia

na Terra. Entenda-se bem: os atenienses não acreditavam em

Deus, mas na influência dos corpos celestes. Segundo aqueles

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desprezíveis tratados, os astros influíam sobre a matéria graças a

um "calor espiritual" semelhante ao que conecta corpo e alma nos

seres humanos. Aristóteles falou disso depois de aprender com as

crônicas da Idade de Ouro, e Cosme ficou fascinado com suas

lições.

Segundo o Augure, o velho banqueiro fundou uma academia

no estilo das antigas, só para ensinar estes segredos aos artistas.

Por culpa daquelas leituras se convencera de que o desenho de

obras de arte era uma ciência exata. Um livro confeccionado de

acordo com certas chaves atuaria como reflexo das forças cósmicas

e poderia ser utilizado para proteger ou destruir quem o

possuísse.*

*[Aqueles que partilharam esses segredos antes de Cosme, o

Velho, foram os construtores de catedrais góticas que receberam a

informação do Oriente muito antes de sua exportação para

Florença. Num romance anterior, Las Puertas Templarias

(Martínez Roca, 2000), explica como se produziu aquela transfusão

de sabedoria ancestral.]

- O quê? Já se deu conta, frei Agustín? - a pergunta de Gozzoli

me tirou do atordoamento. - O Augure diz que a arte pode ser

empregada como arma!

De fato. Um parágrafo mais abaixo a mensagem falava da

força da geometria. O número, a harmonia, o som, eram elementos

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que podiam ser aplicados a uma obra de arte para que irradiasse

influências benéficas ao redor. Pitágoras, um dos gregos

defensores da Idade de Ouro que deslumbrou Cosme de Médicis,

dizia que "os únicos deuses comprováveis são os números". O

Augure amaldiçoava todos.

- Uma arma - ciciei. - Uma arma que o Mouro pretende

ocultar em Santa Maria delle Grazie.

- Exato! - Gozzoli se mostrava ufano. - É justamente o que diz.

Não é incrível?

Começava a entender o repentino interesse do mestre

Torriani em tudo isso. Anos atrás, nosso amado superior geral

condenara os trabalhos do pintor Sandro Botticelli por causa de

uma suspeita semelhante. Acusou-o de usar imagens inspiradas em

cultos pagãos para ilustrar obras da igreja, embora a denúncia

encerrasse algo mais. Graças aos informantes de Betânia, Torriani

soube que Botticelli, na Villa di Castello da família Médicis,

representara a chegada da primavera utilizando uma técnica

"mágica". As ninfas que dançavam no quadro foram dispostas como

as peças de um gigantesco talismã. Mais tarde Torriani averiguou

que Lorenzo di Pierfrancesco, patrão de Botticelli, pedira-lhe um

amuleto contra o envelhecimento. O quadro era o remédio mágico

solicitado. Na realidade, continha todo um tratado contra o passar

do tempo que incluía a metade das divindades do Olimpo dançando

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contra o avanço de Cronos. E pretendiam passar por devota uma

obra assim, propondo-a como decoração para uma capela

florentina!

Nosso mestre geral descobriu a infâmia a tempo. A chave foi

dada por uma das ninfas da Primavera, Chloris, pintada com um

ramo de trepadeira saindo da boca. Era o símbolo inequívoco da

"linguagem verde" dos alquimistas, desses buscadores da eterna

juventude absorvidos por idéias espúrias a quem o Santo Ofício

perseguia onde quer que surgissem.

Mesmo em Betânia jamais conseguimos decifrar os detalhes

dessa misteriosa linguagem; bastou a suspeita para que o quadro

jamais fosse exibido numa igreja.

Mas agora, se o Augure estava certo, a história ameaçava se

repetir em Milão.

- Diga-me, irmão Giovanni, sabe por que o mestre Torriani me

pede para estudar esta mensagem?

Meu assistente, que já se sentara numa carteira ao lado e se

distraía olhando um livro de horas recém-desenhado, fez cara de

quem não entendia a pergunta:

- Como? Não chegou ao fim da carta?

Voltei a olhar para ela. No último parágrafo, o Augure falava

da morte de Beatrice d'Este e do muito que esta ia acelerar a

realização do plano mágico do Mouro.

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- Nada vejo de particular, querido Giovannino - protestei.

- Não lhe chama a atenção que cite a morte da duquesa em

termos tão explícitos?

- E por que deveria citar?

O padre Gozzoli bufou:

- Porque o Augure datou e enviou esta carta em 30 de

dezembro. Dois dias antes do parto desgraçado de donna Beatrice.

5

- Jura que escondeu um segredo nesta parede?

Marco d'Oggiono esfregava o queixo, perplexo, enquanto

olhava de novo o mural que o mestre pintava. Leonardo da Vinci se

divertia com aqueles jogos. Quando estava de bom humor, e estava

nesse dia, era difícil encontrar nele o famoso pintor, inventor,

construtor de instrumentos musicais e engenheiro, favorito do

Mouro e aplaudido em meia Itália. Naquela fria manhã, o mestre

tinha o olhar de menino travesso. Mesmo sabendo que contrariava

os frades, aproveitara a calma tensa vivida por Milão após a morte

da princesa para inspecionar seu trabalho no refeitório dos padres

dominicanos. Estava ali em cima, satisfeito entre apóstolos,

encarapitado num andaime de seis metros de altura e saltando de

tábua em tábua como um cavalo.

- Claro que há um segredo! - gritou. Seu riso contagiante

ecoou nas abóbadas vazias de Santa Maria delle Grazie. - Basta

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olhar com atenção minha obra e levar em conta os números.

Conte! Conte! - riu.

- Mas, mestre...

- Está bem - Leonardo sacudiu a cabeça, condescendente,

espichando a última sílaba à maneira de protesto. - Vejo que será

difícil ensinar você. Por que não pega a Bíblia ali embaixo, junto

com a caixa dos pincéis, e lê o capítulo treze de João, a partir do

versículo vinte e um? Talvez assim você encontre a iluminação.

Marco, um dos jovens e enfeitados discípulos do toscano,

correu em busca do livro sagrado. Apanhou-o no peitoril isolado

junto à porta e o sopesou. Devia pesar vários quilos. Com esforço,

Marco folheou aquele exemplar impresso em Veneza, com capa de

couro preto cinzelado em cobre, até que o evangelho de João se

abriu diante dele. Era uma edição bonita, com gravuras florais no

alto das páginas, cheia de letras góticas grandes e pretas.

- "Dito isto", começou a recitar, "comoveu-se Jesus em seu

espírito, e, demonstrando-o, disse: 'Em verdade, em verdade vos

digo que um de vós me entregará.' Os discípulos, pois, olhavam uns

para os outros, sem saber de quem Ele falava. Um dos discípulos,

aquele que Jesus amava, estava recostado ao peito de Jesus. Simão

fez-lhe sinal, dizendo-lhe: “Pergunta-lhe de quem é que Ele fala'."

- Chega! Está bem! - troou Leonardo, lá no andaime. - Olhe

agora aqui e me diga: você ainda não entende meu segredo?

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O discípulo fez que não com a cabeça. Marco já sabia que o

mestre tinha algum truque engatilhado.

- Mestre Leonardo - e sua recriminação tinha um tom de

franca decepção. - Já sei que está trabalhando nesta passagem

evangélica. Não me revela nada de novo mandando-me ler a Bíblia.

O que eu quero é saber a verdade.

- A verdade? Que verdade, Marco?

- Há boatos na cidade de que o senhor demora em acabar esta

obra porque deseja esconder algo importante nela. Substituiu a

técnica do afresco por outra nova e mais lenta. Por quê? Vou dizer:

porque assim poderá pensar melhor aquilo que deseja transmitir.

Leonardo não pestanejou.

- Eles conhecem sua preferência pelos mistérios, mestre, e eu

também quero conhecê-los, todos!... Três anos ao seu lado,

preparando misturas e ajudando suas mãos com os esboços e os

desenhos sobre cartão, creio que deveriam me dar alguma

vantagem sobre o pessoal de fora, não?

- Sim, sim. Mas quem diz todas essas coisas, pode-se saber?

- Quem, mestre? Todos! Até os monges desta casa santa

páram com freqüência seus discípulos e perguntam a eles!

- E o que comentam, Marco? - voltou a rugir lá de cima, cada

vez mais divertido.

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- Que seus Doze não são verdadeiros retratos dos apóstolos,

como seriam pintados por frei Filippo Lippi ou Crivelli, que

refletem as doze constelações do zodíaco, que escondeu nos gestos

de suas mãos as notas de uma de suas partituras para o Mouro...

Dizem qualquer coisa, mestre.

- E você?

- Eu?

- Sim, sim, você. - Outro sorriso pícaro voltou a iluminar o

rosto de Leonardo. - Estando tão perto de mim, trabalhando todos

os dias numa sala tão magnífica, a que conclusão você chegou?

Marco levantou o olhar até a parede em que o toscano dava

alguns retoques com um pincel de cerdas finíssimas. A parede

norte acolhia a representação da última ceia mais extraordinária

que Marco jamais vira. Ali estava Jesus, presente em carne e osso,

no centro exato da composição. Tinha o olhar lânguido e os braços

estendidos, como se estudasse de soslaio as reações dos discípulos

à revelação que acabara de fazer. Ao seu lado estava João, o

amado, que escutava Pedro sussurrando alguma coisa. Apurando

os sentidos, quase podia vê-los mover os lábios. Eram tão reais!

Mas João já não estava encostado no mestre como dizia o

evangelho. Dava até a impressão de nunca ter estado. Do outro

lado de Cristo, Felipe, o gigante, mantinha-se de pé, afundando as

mãos no peito. Parecia interrogar o Messias: "Acaso sou eu o

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traidor, Senhor?" Ou Tiago, que estufava o peito como se fosse um

guarda-costas, jurando lealdade eterna: "Ninguém lhe fará mal

enquanto eu estiver por perto", fanfarronava.

- E então, Marco? Você ainda não se pronunciou.

- Não sei, mestre... - titubeou. - Este seu mural tem algo que

me desconcerta. É tão, tão...

- Tão?...

- Tão próximo, tão humano, que me deixa sem palavras.

- Muito bem! - aplaudiu Leonardo, secando as mãos no

avental. - Está vendo? Sem querer já está mais perto de meu

segredo.

- Não entendo, mestre.

- E talvez não entenda nunca - sorriu. - Mas escute o que vou

dizer: tudo na natureza contém algum mistério. As aves nos

ocultam as chaves de seu vôo, a água encerra com precaução o

porquê de sua força extraordinária... E se conseguirmos que a

pintura seja um reflexo dessa natureza, não seria justo incorporar

nela essa mesma e enorme capacidade de guardar informação?

Cada vez que você admirar uma pintura lembre-se que está

entrando na mais sublime das artes. Nunca fique na superfície:

penetre na cena, mexa-se entre seus elementos, descubra os

ângulos inéditos, fareje o que está nos fundos... e assim você

chegará ao verdadeiro significado. Mas advirto: necessita-se

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conhecimento para isso. Não poucas vezes o que encontramos num

mural como este fica longe do que esperávamos encontrar. Dito e

feito.

6

Frei Giovanni cumpriu sem vacilar a segunda parte da missão

encomendada pelo mestre geral.

Depois de nossa conversa e de me mostrar a última carta do

Augure, regressou à casa mãe da ordem, deixando Betânia antes

de anoitecer. Torriani ordenou que voltasse para informá-lo de

minha reação. Em especial, queria saber que opinião eu tinha

sobre os boatos de graves anomalias nas obras de adaptação de

Santa Maria delle Grazie. Meu assistente devia transmitir-lhe

minha mensagem, clara e simples: se finalmente levassem em

conta meus velhos temores e se tomassem como prováveis as

revelações do Augure, devia localizá-lo em Milão e coconhecer dele

próprio o alcance dos projetos secretos que o duque tinha para

aquele convento.

Insisti com frei Giovanni:

- Em especial, devem-se examinar os trabalhos de Leonardo

da Vinci. Em Betânia já sabíamos de sua mania de mascarar idéias

heterodoxas em obras de aparência piedosa. Leonardo trabalhou

muitos anos em Florença, teve contato com os descendentes de

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Cosme, o Velho, e, entre todos os artistas que trabalham em Santa

Maria, é o mais propenso a participar das idéias do Mouro.

Gozzoli acrescentou minha outra grande preocupação ao seu

relatório para o mestre Torriani: insisti na necessidade de abrir

uma investigação sobre a morte de donna Beatrice. O vaticínio tão

preciso do Augure sugeria a existência de algum sinistro plano

ocultista, talvez idealizado pelo duque Ludovico ou por seus

pérfidos assessores, para estabelecer uma república pagã no

coração da Itália. Ainda que não houvesse muito sentido em que o

duque mandasse assassinar sua mulher e o filho nonato, a

mentalidade dos adeptos das ciências ocultas percorria amiúde

atalhos imprevisíveis. Não era a primeira vez que ouvia falar da

necessidade de sacrificar uma vítima notável antes de empreender

uma grande obra. Os antigos, esses bárbaros da Idade de Ouro,

faziam-no com freqüência.

Suponho que minha decisão animou Torriani.

O mestre geral avisou o irmão Gozzoli de suas intenções e na

manhã seguinte, com a geada ainda caindo sobre Roma,

abandonou suas dependências no mosteiro de Santa Maria sopra

Minerva disposto a cortar aquele problema pela raiz.

Desafiando os acessos nevados da Cidade Eterna, Torriani

subiu ao quartel de Betânia em mula e solicitou uma entrevista

comigo com a maior brevidade. Ainda ignoro que termos o irmão

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Gozzoli empregou para informá-lo sobre minhas idéias, mas era

evidente que o impressionara. Nunca vi nosso mestre assim: duas

bolsas arroxeadas caíam como chumbo de seu olhar cinzento,

apagando-o; suas costas pareciam se vergar sob o peso de uma

responsabilidade plúmbea, devorando pouco a pouco seu caráter

alegre e afundando uns ombros que também se enfraqueciam por

momentos. Torriani, mentor, guia e velho amigo, consumia o que

lhe restava de vida com as marcas de uma decepção gravadas no

rosto. E ainda assim, por trás do brilho de seus olhos, percebia-se

uma sensação de urgência:

- Pode atender um pobre servo de Deus, molhado e doente? –

disse logo que me viu no átrio de Betânia.

Mentiria se jurasse que não me surpreendeu encontrá-lo ali

tão cedo. Ele subira ao nosso alojamento sozinho, sem séquito, com

uma manta sobre o hábito e as sandálias cobertas por enormes

peles de coelho. Se o superior da Ordem de São Domingos

abandonava assim nossa casa mãe e a paróquia, e cruzava a cidade

em pleno temporal para se reunir com o responsável por seu

serviço de informação, o assunto devia ser gravíssimo. Ainda que

seu rosto sombrio convidasse a começar logo a conversa, não me

atrevi a perguntar nada. Esperei que retirasse sua manta e

consumisse o copo de vinho quente que lhe oferecemos. Subimos

ao meu pequeno estúdio, um recinto escuro apinhado de caixas e

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manuscritos, de onde se descortinava toda Roma, e mal se fechou a

porta o padre Torriani confirmou meus temores.

- Claro que vim aqui por causa dessas cartas perversas! -

protestou, arqueando as sobrancelhas brancas. - E você me

pergunta quem creio que seja o autor? Logo você, padre Leyre?

Torriani respirou fundo. Sua natureza doentia lutava para se

exaltar, enquanto o vinho ia ajustando o tom pouco a pouco. Fora,

a neve aumentava gradualmente no vale.

- Minha impressão - continuou - é que nosso homem tem de

ser alguém do séquito do duque ou, pelo menos, algum irmão do

novo convento de Santa Maria delle Grazie. Trata-se de uma

pessoa que conhece bem nossos costumes e sabe a quem dirigir as

cartas. No entanto...

- No entanto?

- Veja, padre Leyre: desde que li a carta que lhe enviei ontem

quase não consegui pregar o olho. Lá fora há alguém que nos avisa

sobre uma grave traição contra a Igreja. O assunto é muito sério,

sobretudo se, como temo, nosso informante procede da

comunidade de Santa Maria...

- Acredita que o Augure é um dominicano, padre?

- Estou quase seguro. Alguém de dentro, testemunha dos

avanços do Mouro, que não se atreve a denunciá-lo por medo de

represálias.

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- E suponho que já estudou a vida desses frades em busca de

seu candidato, não é verdade?

Torriani sorriu satisfeito:

- Todos eles. Sem exceção. A maioria procede de boas

famílias lombardas. São religiosos leais ao Mouro e à Igreja,

homens pouco dados à fantasias ou conspirações. Bons

dominicanos, em suma. Não posso imaginar quem possa ser o

Augure.

- Se é que algum deles é o Augure.

- Certamente.

- Permita-me recordar, mestre Torriani, que a Lombardia

sempre foi terra de hereges...

O geral da ordem, friorento, conteve um espirro antes de

responder:

- Isso foi há muito tempo, padre.

- Muito. Há mais de duzentos anos não resta nem rastro da

heresia albigense na região. É certo que aqueles malditos que

inspiraram nosso amado São Domingos a criar a Santa Inquisição

se refugiou ali depois da cruzada albigense *, mas todos morreram

sem contagiar ninguém com suas idéias.

* [Em 1208, o papa Inocêncio III ordenou a erradicação da heresia

albigense, criando uma força militar para exterminar os

heterodoxos do Languedoc francês. Embora se aceite que em 1244

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foram extintos os últimos hereges no assédio de Montségur, muitos

historiadores advertem que famílias inteiras de "homens bons" se

refugiaram na Lombardia perto da atual Milão, onde

permaneceram durante muito tempo a salvo da perseguição de

Roma, perseverando em sua fé original.]

- E, no entanto não se pode descartar a idéia de que sua

blasfêmia penetrou na mentalidade dos milaneses. Por que então

os milaneses seriam tão abertos à idéias heterodoxas? Por que

então o duque aceitaria crenças pagãs se ele mesmo não tivesse

crescido num ambiente predisposto a isso? E por que razão -

prossegui - um dominicano fiel a Roma, haveria de se esconder por

trás de umas mensagens sem assinatura, a não ser que ele mesmo

participe da heresia que agora denuncia?

- Patranhas, padre Leyre! O Augure não é um albigense. Pelo

contrário: preocupa-se em manter a ortodoxia com mais zelo do

que o próprio inquisidor geral de Carcassonne. Esta manhã, antes

de você chegar, li outra vez todas as cartas desse indivíduo. O

Augure deixa claro seu objetivo desde a primeira carta que nos

mandou: deseja que enviemos alguém para deter os planos do

Mouro em Santa Maria delle Grazie. É como se o que o duque fez

no resto de Milão, as praças, os canais para a navegação interior,

as comportas, não importassem... E isso reafirma a sua hipótese.

Torriani concordou com deleite.

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- Mas mestre - eu o contradisse -, antes de atuar deveria

avaliar se sua petição encerra alguma armadilha.

- Como? Você pretende deixar o Augure sozinho apesar das

provas que nos ofereceu? Mas se você mesmo há tempo denuncia

os desvios doutrinários da falecida mulher do Mouro!

- Exatamente. Essa família é esperta. Não será fácil encontrar

argumentos contra ela. Digo que devemos exercitar o máximo de

prudência antes de dar um passo errado.

- Não, padre. Nada disso. Esse homem, seja quem for, pede-

nos ajuda e já não podemos negá-la por mais tempo. Além disso,

saiba que por intermédio do cardeal Ascânio, irmão do duque,

comprovei até os mínimos detalhes que aparecem em seus

relatórios. E, creia, todos são exatos.

— “Exatos” — repeti, enquanto tratava de organizar minhas

idéias. — Sabe? Creio que o que mais me surpreende nesse

assunto é sua mudança de atitude, mestre Torriani.

— Não tem nada disso — protestou. — Arquivei as cartas do

Augure enquanto não havia provas sólidas para apoiá-las. Se não

tivesse acreditado nelas, as teria destruído, não lhe parece?

— Então, mestre, se o nosso informante está com a verdade e

se é um dominicano preocupado com o futuro de seu novo

convento, por que o senhor acha que esconde a identidade quando

escreve?

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Frei Gioacchino encolheu os ombros, devolvendo-me um

esgar de perplexidade.

— Tomara soubesse, padre Leyre. E me preocupa. Quanto

mais tempo passo sem respostas, mais me incomoda este assunto.

São muitas as frentes abertas por nossa ordem nestes dias, e abrir

mais uma ferida no seio da Igreja equivale a degradá-la sem

remédio. Por isso, chegou a hora de agir. Não podemos permitir

que se repita em Milão o que já ocorre em Florença. Seria um

desastre!

“Mais uma ferida.” Duvidei se devia mencionar o tema, mas o

silêncio de Torriani não me deixou opção:

— Suponho que se refere a Savonarola...

— E quem poderia ser? — O ancião respirou fundo antes de

prosseguir. — A paciência do santo padre acabou e já pensa em

excomungá-lo. Seus sermões contra a opulência do papa crescem

em aspereza; para o cúmulo, suas profecias sobre o fim da casa dos

Médicis se cumpriram e agora, seguido por uma multidão, anuncia

grandes castigos do Senhor contra os Estados pontifícios. Diz que

Roma deve sofrer para purgar seus pecados e o maldito se alegra

por isso. E sabe o que é pior? Cada dia tem mais seguidores. Se

por acaso o duque de Milão aderir a essa idéia de derrocada,

ninguém poderá deter o descrédito de nossa instituição...

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Confuso, persignei-me ante o funesto panorama que o mestre

geral esboçava. Girolamo Savonarola era, como Roma inteira sabia,

o grande problema de Torriani naquela época. Todo mundo falava

dele. Persistente leitor do Apocalipse, esse dominicano de fala

brilhante e grande capacidade de sedução acabara de instaurar

uma república teocrática em Florença para preencher o vazio

deixado pela fuga da família Médicis. De seu novo púlpito

arremetia contra os excessos de Alexandre VI. Savonarola era um

louco ou, pior ainda, um temerário. Desatendia as chamadas da

ordem recebidas de seus superiores e ignorava deliberadamente a

legislação canônica. Os Dictatus papae que desde o século XI

eximiam o pontífice e sua cúria da possibilidade de errar o

deixavam excitado. Desafiava até a décima nona sentença

(“Ninguém pode julgar o papa”), gritando do altar que o deteria em

nome de Deus.

Nosso mestre geral se desesperava. Não só fora incapaz de

deter a sede de grandeza daquele exaltado, mas a atitude de

Savonarola comprometia toda a ordem diante de Sua Santidade. O

rebelde, orgulhoso como Sansão diante dos filisteus, rechaçara o

chapéu cardinalício que lhe foi oferecido para acalmar suas críticas

e até recusara abandonar sua tribuna no convento florentino de

San Marco alegando ter uma missão divina mais importante a

cumprir. Essa, e não outra, era a razão pela qual o padre Torriani

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não queria que a lealdade dos pregadores de São Domingos fosse

questionada em Milão. Se o Augure era um dominicano e tinha

razão de chamar a atenção para os planos pagãos do Mouro em

nossa nova casa na cidade, a ordem voltaria a ficar interditada.

— Tomei uma decisão, irmão — sentenciou o mestre geral,

muito sério, depois de meditar um instante. — Temos de afastar

qualquer sombra de dúvida sobre as obras de Santa Maria delle

Grazie, recorrendo à força do Santo Ofício se for preciso.

— Padre! Não está pensando em julgar o duque de Milão? —

perguntei alarmado.

— Só se for necessário. Nada agrada mais os príncipes

seculares do que descobrir as fraquezas de nossa Igreja e utilizá-

las contra nós. Somos obrigados a nos adiantar aos seus

movimentos. Outro escândalo como o de Savonarola e nossa casa

ficaria prejudicada nos Estados pontifícios. Compreende?

— E como pensa, se posso perguntar, chegar até o Augure,

comprovar suas afirmações e reunir a informação necessária para

julgá-lo sem levantar suas suspeitas?

— Pensei muito nisso, meu querido padre Agustín —

anunciou, enigmático. — Você sabe melhor do que eu que se

enviasse um de nossos inquisidores intempestivamente, o tribunal

de Milão faria muitas perguntas e romperia a discrição requerida

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pelo caso. E se existisse um complô de tanto alcance todas as

provas seriam ocultadas com rapidez pelos cúmplices do Mouro.

- E então?

Torriani abriu a porta do estúdio e desceu a escada até o

portão de entrada, sem responder. Foi ao pátio das cavalariças e

buscou sua mula, dando por encerrada aquela reunião de urgência.

A nevasca continuava ganhando força do lado de fora.

- Diga-me, o que pensa fazer? - repeti.

- O Mouro previu que dentro de dez dias será celebrado o

funeral oficial da duquesa - respondeu por fim. - Chegarão a Milão

delegações de todas as partes, e então será fácil se infiltrar em

Santa Maria para fazer as investigações destinadas a localizar o

Augure. No entanto - acrescentou -, não podemos enviar um

religioso qualquer. Deve ser alguém com critério, que conheça leis,

heresias e códigos secretos. Sua missão será encontrar o Augure,

confirmar uma por uma suas afirmações e deter a heresia. O

escolhido deve ser um homem desta casa. De Betânia.

O mestre lançou um olhar receoso ao caminho que estava a

ponto de empreender. Com sorte levaria uma hora para percorrê-

lo, e, se a montaria não o jogasse sobre alguma placa de gelo,

chegaria em casa ao calor do meio-dia.

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- O homem que necessitamos - disse como se fosse anunciar

algo importante - é você, padre Leyre. Nenhum outro resolveria

com maior eficiência este assunto.

- Eu? - Aquilo me deixou perplexo. Pronunciara meu nome

com um deleite mórbido, enquanto procurava algo nos alforjes da

montaria.

- Mas o senhor sabe que tenho trabalho aqui, obrigações...

- Nenhuma obrigação como esta!

E extraindo um grosso feixe de papéis, presos com seu selo

pessoal, passou-os para mim com sua última ordem:

- Você partirá com rapidez para Milão. Hoje mesmo se for

possível. E com isso - olhou o maço de documentos que já estavam

em minhas mãos - identificará nosso informante, averiguará quanta

verdade existe por trás deste novo perigo e tratará de corrigi-lo.

O mestre apontou o pergaminho que encabeçava o maço.

Nele, em letras grandes escritas com tinta vermelha, lia-se a

adivinhação que continha a assinatura de nosso informante. Vira-a

muitas vezes, encerrava cada uma das cartas do Augure, mas até

então não prestara atenção nela.

Minha vista quis se nublar ao focalizar aquelas sete linhas e

sentir que se converteram em meu principal problema.

Diziam:

“Óculos éjus dinumera, sednoli voltum àdspicere.

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In latere nominis mei notam rínvenies.

Contemplari et contemplata aliis iradere.

Ventas” *

*[Do latim: "Conte-lhe os olhos, / mas não olhe para a cara. / A cifra

de meu nome / achará em suas costas. / Contemplar e dar aos

outros / o resultado de sua contemplação. / Verdade.]"

7

Obedeci, naturalmente. Que outra coisa poderia fazer?

Cheguei a Milão depois da noite do dia de Reis. Era uma dessas

manhãs de sábado em que o brilho da neve cega você e o ar limpo

esfria sem piedade suas entranhas. Cavalgara sem descanso para

atingir meu destino, dormindo três ou quatro horas em pousadas

nauseabundas, entorpecido e úmido por causa de uma viagem de

três jornadas na metade do inverno mais cruel de que era capaz de

recordar. Mas nada disso importava. Milão, a capital da

Lombardia, a sede de intrigas palacianas e disputas territoriais

com a França e os condados vizinhos, sobre o que eu tanto

estudara, descansava já aos pés de minha montaria.

O lugar era impressionante. A cidade dos Sforza, a maior ao

sul dos Alpes, tinha o dobro de extensão de Roma; oito grandes

portas ladeavam uma muralha impenetrável que rodeava uma urbe

de planície redonda que vista do céu devia lembrar o escudo de um

guerreiro gigantesco. No entanto, não foram suas defesas que me

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surpreenderam; aquela era uma cidade nova, limpa, que transmitia

uma intensa sensação de ordem. Os cidadãos não urinavam nas

esquinas, como em Roma, nem as prostitutas investiam sobre os

caminhantes, oferecendo-se. Ali, cada casa, cada prédio público

pareciam pensados para uma função suprema. Até sua orgulhosa

catedral, de aspecto frágil e esquelético, diferente em tudo das

maciças e volumosas catedrais do sul italiano, espargia suas

benéficas influências sobre o vale. Vista das colinas, Milão parecia

o último recanto do mundo em que se poderia enraizar a desordem

e o pecado.

Um trecho antes de chegar à Porta Ticinese, o mais nobre dos

acessos ao burgo, um amável mercador se ofereceu para me

acompanhar até a torre de Filarete, a entrada principal da

fortaleza do Mouro. Situado num dos extremos do escudo urbano,

o castelo dos Sforza parecia uma réplica em miniatura das

enormes muralhas da cidade. O mercador riu ao ver minha cara de

espanto. Disse que era curtidor em Cremona, bom católico, que me

acompanharia com prazer até o interior da fortaleza em troca de

minha bênção para ele e sua família. Aceitei o trato.

O bom homem me deixou em frente ao castelo do duque

justamente na nona hora. Aquele lugar era ainda mais magnífico do

que eu supusera. Bandeirolas com a terrível insígnia dos Sforza -

uma espécie de serpente gigante devorando um desgraçado -

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caíam das ameias. Faixas azuis tremulavam ao vento, enquanto

meia dúzia de enormes chaminés, fincadas em algum lugar do

interior da fortaleza, lançavam grandes baforadas de fumaça preta

e espessa. A entrada de Filarete constava de uma ameaçadora

grade de ferro e duas partes móveis da ponte levadiça rebitadas de

bronze, dobradas sobre si próprias. Pelo menos quinze homens a

vigiavam, furando com lanças os sacos de cereal que as carroças

queriam deixar perto das cozinhas.

Um daqueles uniformizados me apontou o caminho. Eu devia

me dirigir ao extremo oeste da torre, já dentro da fortaleza, e

perguntar pela área de recepção de visitas e o "escritório de luto"

instalado para receber as delegações que viriam para o funeral de

donna Beatrice. Meu cicerone de Cremona já me advertira que

toda a cidade pararia ao chegar aquele momento. E, de fato, nessa

hora não havia muita atividade. Surpreendeu-me que o secretário

do Mouro, um cortesão espigado de rosto inexpressivo, quase não

tardasse em me receber. O servidor se desculpou por não poder

conduzir este servo de Deus até seu senhor. Ainda assim, examinou

minha carta de apresentação com ar cético, comprovou que o selo

pontifício era autêntico e a devolveu com um gesto de desolação.

- Lamento, padre Leyre - e Marchesino Stanga, como ele se

chamava, desfez-se numa torrente de desculpas. - Deve entender

que meu senhor não recebe ninguém depois da morte de sua

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mulher. Suponho que compreende o difícil momento que

atravessamos e a necessidade do duque de ficar a sós.

- Claro - concordei com fingida cortesia.

- No entanto - acrescentou -, quando passar o luto farei

chegar a ele a notícia de sua presença na cidade.

Gostaria de poder fitar os olhos do Mouro e deduzir, como em

tantos interrogatórios que presenciei, se ocultavam ou não

sinistras sombras da heresia ou do crime. Mas aquele funcionário,

vestido com um gorro de cochinilha guarnecida de peles e gibão de

veludo, que falava com ar de mesquinha superioridade, estava

decidido a me impedir:

- Tampouco podemos hospedá-lo, como é nosso costume –

disse com secura. - O castelo está fechado e não recebemos

hóspedes. Rogo-lhe, padre, que reze pela alma de donna Beatrice e

que retorne depois do funeral. Então o atenderemos como merece.

- Requiescat in pace - murmurei enquanto fazia o sinal da

cruz. - Assim farei. - Também rezarei pelo senhor.

Tive uma sensação estranha. Impossibilitado de me instalar

perto do duque e sua família, frustrado em meu propósito de

deambular com mais ou menos liberdade por seu castelo, minhas

primeiras pesquisas ainda demorariam. Devia conseguir um

alojamento discreto que me garantisse certo ambiente de estudo.

Com os documentos de Torriani queimando em minha bolsa, ia

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precisar de calma, três pratos de comida por dia e uma boa dose

de sorte para decifrar o segredo. Não era prudente que um monge

buscasse pousada entre os leigos, portanto, minhas opções logo se

reduziram a duas: ou me instalava no antigo convento de São

Eustórgio, ou no novíssimo de Santa Maria delle Grazie, onde a

possibilidade de cruzar com o Augure excitava minha imaginação.

Depois, com o abrigo resolvido, haveria tempo de submergir na

chave que o mestre Torriani me entregou em Betânia.

Reconheço que a Divina Providência fez um trabalho

exemplar. São Eustórgio se revelou logo a pior das opções. Situado

perto da catedral, junto ao mercado de mantimentos, costumava

ficar cheio de curiosos que não tardariam a se perguntar que tipo

de assunto retinha ali um inquisidor romano. Mesmo que sua

situação me desse certo distanciamento sobre as atividades do

Augure, economizando o risco de encontrá-lo cara a cara sem

saber de quem se tratava, também sabia que me oferecia mais

inconvenientes do que vantagens.

Quanto à outra opção, a de Santa Maria delle Grazie, além de

ser o presumível refúgio de meu objetivo, só apresentava outro

pequeno, mas superável defeito: era ali que se celebrariam as

multitudinárias exéquias de donna Beatrice. Sua igreja, reformada

havia pouco por Bramante, estava a ponto de se converter no

centro de todos os olhares.

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Em compensação, Santa Maria dispunha de tudo o que se

precisaria. Sua bem sortida biblioteca, situada no segundo piso de

um dos prédios que davam para o que ali chamavam de Claustro

dos Mortos, abrigava livros de Suetônio, Filóstrato, Plotino,

Xenofonte e até alguns do próprio Platão importados no tempo de

Cosme, o Velho. Situava-se perto da fortaleza do duque e não

muito longe da Porta Vercellina. Tinha uma excelente cozinha, um

extraordinário forno de pastelaria, porão, horto, alfaiataria e

hospital. E, se não fosse pouco, todas aquelas vantagens

empalideciam diante de uma única: se o mestre Torriani não se

enganava, talvez o Augure pudesse surgir diante de mim em seus

corredores, sem necessidade de resolver adivinhação alguma.

Fui um ingênuo

Menos nesse aspecto concreto, a providência fez bem seu

trabalho: em Santa Maria havia uma cela disponível que me foi

atribuída de imediato. Tratava-se de um quartinho de três passos

por dois, um catre de madeira sem colchão e uma mesa pequena

situada sob um pobre postigo que dava para a rua chamada

Magenta. Os frades não fizeram perguntas. Examinaram minhas

credenciais com o mesmo olhar de desconfiança do secretário

Stanga, mas relaxaram quando garanti que fora à sua casa em

busca de serenidade para meu atribulado espírito.

- Até um inquisidor necessita de recolhimento - assegurei.

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E eles entenderam. Só impuseram uma condição. O sacristão,

um frade de olhos saltados e sotaque estranho, advertiu-me,

severo:

- Nunca entre sem permissão no refeitório. O mestre

Leonardo não quer que alguém interrompa seu trabalho e o abade

deseja satisfazê-lo em tudo. Entendeu?

Concordei.

8

A primeira coisa que visitei foi a biblioteca de Santa Maria.

Sentia uma grande curiosidade. Situada sobre o polêmico, e agora

restrito, refeitório que o Augure convertera em foco de todo o mal,

era uma peça ampla, de janelas retangulares, atravessada por uma

dezena de pequenas mesas de leitura e uma grande carteira para o

bibliotecário. Justamente atrás dele, depois de um grosso portão

com fechadura, guardavam-se os livros. O que mais me chamou a

atenção foi o sistema de calefação: uma caldeira no piso inferior

fornecia vapor de água a condutos de cobre que esquentavam as

lajes do solo.

- Não é pelos leitores - apressou-se a me explicar o

responsável pelo lugar quando me viu farejando com interesse

aquele dispositivo engenhoso. - É pelos livros. Guardamos

exemplares muito valiosos para deixar que sejam estragados pelo

frio.

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Creio que o padre Alessandro, guardião e custódio daquela

sala, foi o primeiro monge que não me olhou com desconfiança, e

sim com uma descarada curiosidade. Comprido, ossudo, de pele

branquíssima e modos finos, parecia encantado por ver uma cara

nova em seus domínios.

- Não costuma vir muita gente aqui - admitiu. - E muito menos

de Roma!

- Ah... Já sabe que sou romano?

- As notícias voam, padre. Santa Maria ainda é uma

comunidade pequena. Não creio que a esta hora haja alguém na

comunidade que não saiba da chegada de um inquisidor em nossa

casa.

O frade me piscou um olho em sinal de cumplicidade.

- Não estou aqui era missão oficial - menti. - Vim por motivos

pessoais.

- E que importa! Os inquisidores são homens de letras,

estudiosos. E aqui quase todos os frades têm dificuldade de ler ou

escrever. Se ficar algum tempo conosco, creio que nos faremos boa

companhia.

Logo acrescentou:

- É certo que em Roma trabalha na Secretaria de Chaves?

- Sim... - hesitei.

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- Magnífico, padre. Isso é magnífico. Vamos ter muito o que

falar. Creio que escolheu o melhor lugar do mundo para passar

alguns dias.

Alessandro me pareceu simpático. Beirava os cinquenta,

apresentava sem complexos um nariz em forma de gancho e o

queixo mais saliente que eu jamais vira. O pomo-de-adão lutava

para saltar da garganta. Tinha, sobre a mesa, grossas lentes com

que devia aumentar as letras dos livros, e as mangas do hábito

exibiam enormes nódoas de tinta. Não quis me abrir com ele de

imediato - de fato, tentava não olhá-lo muito para não ser

hipnotizado por aquele rosto contrafeito -, embora admitisse que

uma corrente de afeto sincero circulou logo entre nós. Insistiu em

atender às minhas carências enquanto estivesse no convento.

Ofereceu-se para me mostrar os recantos daquele esplêndido lugar

em que tudo parecia novo e me prometeu que velaria pela minha

tranqüilidade para que pudesse me concentrar.

- Se o seu exemplo se multiplicasse e mais frades viessem a

esta casa para estudar - queixou-se, como se não pudesse conter a

língua -, logo poderíamos convertê-la num Estúdio Geral,* como os

de Roma, e quem sabe numa universidade...

* [Centros de formação dominicanos em que se faziam estudos de

teoria, ou os célebres Trivium (gramática, retórica e dialética) e

Quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música).]

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- Os frades não vêm estudar aqui?

- Poucos, considerando o que este lugar pode oferecer.

Mesmo que pareça modesta, esta biblioteca reúne uma das

coleções de textos antigos mais importantes do mundo.

- Ah, sim?

- Perdoe-me se peco por imodéstia, mas trabalho nela há

muito tempo. Talvez a um romano culto como o senhor ela pareça

pequena perto da Biblioteca Vaticana, mas acredite-me que aqui

entesouramos textos que nem os bibliotecários do papa

imaginam...

- Então - disse, com cortesia - será um privilégio poder consul-

tá-los.

Frei Alessandro inclinou a cabeça como se aceitasse o elogio,

ao mesmo tempo em que revolveu seus papéis procurando algo

importante.

- Antes preciso um pequeno favor seu. Na verdade, caiu do

céu. Para alguém como o senhor, treinado em decifrar mensagens

para a Secretaria de Chaves, uma adivinhação como esta será

moleza.

O dominicano estendeu um pedaço de papel com algo

garatujado. Era um desenho simples. Uma escala musical tosca

interrompida por uma espécie de nota fora do lugar (lá, ou si

bemol) e um anzol. Assim:

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- O quê? - perguntou impaciente. - Já entendeu? Estou

tentando há três dias sem êxito.

- E o que supõe que se deve achar aqui?

- Uma frase em língua românica.

Observei a adivinhação sem chegar a intuir o significado. Era

evidente que a chave devia estar naquele si bemol fora de lugar. As

coisas fora de lugar sempre tinham a resposta, mas e o anzol?

Organizei mentalmente aqueles elementos, começando pela leitura

da escala, e sorri divertido.

- É uma frase, certamente - disse por fim. - E muito simples.

- Simples?

- Basta saber ler, frei Alessandro. Veja, se você partir da

tradução do anzol para a língua espanhola, que é "amo", o resto do

desenho ganha logo sentido.

- Não entendo.

- É simples. Leia "amo" e em seguida as notas.

O frade, indeciso, passou os dedos pelo desenho: "L'amo...

re... mi... fa... sol... la... za (si bemol)... re. Vamore mi fa

sollazarel...”* ["O amor me dá prazer." (N. do T.)]

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- Esse Leonardo é um pícaro! Verá quando eu o encontrar!

Jogar com as notas musicais... Maledetto.

- Leonardo?

A menção daquele nome me devolveu à realidade. Eu fora à

biblioteca em busca de um refúgio para decifrar a adivinhação do

Augure. Uma chave que, se não nos enganávamos, relacionava-se

com Leonardo, o refeitório proibido e o mural em que ele

trabalhava.

- Ah! - exclamou o bibliotecário ainda eufórico por sua

descoberta. - Ainda não o conhece?

Neguei com a cabeça.

- É outro amante das adivinhações. Todas as semanas desafia

a nós, monges, com uma adivinhação. Esta foi das mais difíceis...

- Leonardo da Vinci?

- E quem senão ele?

- Acreditei... - hesitei - que não falava muito com os frades.

- Só quando trabalha. Mas, como mora aqui perto, muitas

vezes passa para supervisionar seu mural e brinca conosco no

claustro. Adora os duplos sentidos, os equívocos, e nos faz rir com

suas lembranças.

"Os duplos sentidos."

Aquilo, longe de me divertir, inquietou-me. Estava ali para

decifrar uma mensagem que zombara de todos os analistas de

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Betânia. Um texto, diferente daquela frase picara disfarçada por

Leonardo em pentagrama, de cuja resolução dependiam vários

assuntos de Estado. Como poderia perder tempo com aquela

tagarelice insignificante?

- Pelo menos - eu disse, cortante - seu amigo Leonardo e eu,

temos algo em comum: gostamos de trabalhar a sós. Poderia me

dar uma carteira e zelar para que ninguém me incomode?

Frei Alessandro entendeu que eu não pedia um favor. Apagou

o sorriso de triunfo daquele rosto anguloso e concordou, obediente.

- Fique aqui. Ninguém interromperá seu estudo.

Naquela tarde, o bibliotecário cumpriu a palavra. As horas

que passei diante dos sete versos que me foram entregues pelo

mestre Torriani em Betânia foram algumas das mais solitárias que

passei em Milão. Entendia que aquele trabalho requeria solidão

como nenhum outro que enfrentei anteriormente. Li de novo:

Oculos ejus dinumera, ed noli voltum âdspicere.

In latere nominis

mei notam rinveníes. Contemplari et contemplata

aiiis iradere.

Ventas

Tudo seria mérito da paciência. Tal como aprendi nos

escritórios de Betânia, apliquei naquela babel de palavras as

técnicas do admirável padre Leon Battista Alberti. Padre Alberti

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ficaria encantado com meu desafio: não apenas devia desentranhar

uma mensagem oculta por trás de um texto vulgar, mas o texto,

provavelmente, me conduziria a uma obra de arte com um bom

mistério encerrado por trás. Ele foi o primeiro sábio a escrever

sobre a perspectiva, era uma amante da arte, poeta, filósofo,

compôs uma música fúnebre para seu cachorro e até desenhou a

Fontana de Trevi em Roma. Não só é admirável doutor, que Deus

levou, prematuramente, à glória, dizia que para resolver qualquer

adivinhação não importava sua espécie ou procedência: devia-se ir

do evidente ao oculto. Isto é, relacionar primeiro o óbvio, o az, para

buscar depois seu significado encoberto. E enunciou outra lei: as

adivinhações se resolvem sempre sem pressa, atentando para os

detalhes mínimos e deixando-os sedimentar em nossa memória.

Neste caso em particular, o óbvio, e bem óbvio, era que os

versos continham um nome. Torriani estava seguro e eu — quanto

mais os lia — também. Ambos acreditávamos que o Augure

entregava essa pista com a esperança de que a Secretaria de

Chaves a decifrasse e pudesse se comunicar com ele, portanto,

devia existir um processo de leitura que não oferecesse dúvida. Por

certo, se nosso anônimo confidente era tão cauteloso como parecia,

só os olhos de um bom espectador o identificaria.

Outra coisa que me chamou a atenção naquele aranzel foi o

número sete. Os números costumam ser importantes neste tipo de

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adivinhação. O poema era formado por sete linhas. Sua estranha

métrica, irregular, devia querer indicar alguma coisa. Algo assim

como o anzol de Leonardo. E se esse “algo” era a identidade que

eu buscava, o texto advertia que só a conseguiria contando os

olhos de alguém a quem não podia olhar o rosto. O paradoxo, no

entanto, desarmou-me. Como poderia contar os olhos de alguém

sem olhar a face?

O texto resistia a mim. O que indicaria a misteriosa alusão

aos olhos? Algo parecido com os sete olhos de Javé descritos pelo

profeta Zacarias (4, 10), ou os sete cornos e sete olhos do cordeiro

degolado do Apocalipse (5, 6)? Sendo assim, que tipo de nome

poderia ser encontrado por trás de um número? A frase central era

eloqüente: “A cifra de meu nome achará em suas costas.” A cifra?

Que cifra? Um sete, por acaso? Poderia se referir a um numeral, a

um sétimo? Como o anti-papa Clemente VII de Avignon, por

exemplo? Não demorei a descartar aquela possibilidade. Era

improvável que nosso escriba anônimo merecesse algum número

depois do nome. Mas, então, o quê? E mais ainda: como devia

interpretar o estranho erro que descobri no quarto verso? Por que

em lugar de invenies o codificador da mensagem escreveu

ninvenies?

As extravagâncias se acumulavam umas sobre as outras.

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Meu primeiro dia de trabalho em Santa Maria me deu uma

certeza; as duas últimas frases da “assinatura” eram, com absoluta

segurança, burocracias própria de um dominicano. O instinto de

Torriani não falhou. “Contemplari et contemplata aliis tradere” era

uma famosa sentença de São Tomás recolhida na Suma teológica e

aceita como um dos lemas mais conhecidos de nossa ordem.

Queria dizer “contemplar e dar aos outros o resultado de sua

contemplação”. A outra, “Ventas”, “Verdade”, além de ser outro

lema dominicano bem comum, costumava ser usado em nosso

brasão. É certo que não virá ambas as frases juntas, mas lidas em

seqüência pareciam dizer que para chegar à verdade devia-se estar

em atitude vigilante. No mínimo era um bom conselho. O padre

Alberti o aplaudiria.

Mas e as duas frases anteriores? Que tipo de nome ou

mensagem continham?

9

- Já ouviu falar do novo hóspede do convento de Santa Maria?

Leonardo costumava dedicar as últimas horas de luz na

contemplação da Última Ceia. O Sol do ocaso transformava as

figuras sentadas à mesa, primeiramente, em sombras

avermelhadas e, depois, em perfis escuros, sinistros. Ia com

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freqüência ao convento de Santa Maria só para contemplar sua

obra favorita e se distrair do resto de suas ocupações diárias. O

duque o importunava para que terminasse a colossal estátua

equestre em honra de Francesco Sforza, um cavalo monumental

que o obcecava durante o dia; no entanto, até o Mouro era

consciente de que a verdadeira paixão de Leonardo estava no

refeitório de Santa Maria. Aquele mural de cinco metros, por nove,

era a maior obra que já empreendera. Só Deus sabia quando ele a

terminaria, mas esse detalhe pouco importava ao gênio. Tão

abstraído estava diante de sua mágica criação que Marco

d'Oggioni, o mais curioso dos discípulos do toscano, teve de repetir

a pergunta:

- Não ouviu mesmo falar dele?

O mestre, abstraído, negou com a cabeça. Marco o encontrou

sentado numa caixa de madeira no centro do refeitório, com sua

cabeleira branca como neve solta, tal como se habituara ao

concluir o dia de trabalho.

- Não... É alguém interessante, caro?

- É inquisidor, mestre.

- Profissão terrível então.

- O caso, Mestre , é que também ele parece interessado em

seus segredos.

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Leonardo desviou a vista do Cenacolo e buscou o olhar azul

de seu discípulo. Tinha a fisionomia grave, como se a proximidade

de um membro do Santo Ofício despertasse algum temor encoberto

em sua alma.

- Meus segredos? Você pergunta de novo por eles, Marco?

Estão todos aqui. Já disse ontem. À vista. Há anos aprendi que se

você deseja ocultar algo da estupidez humana o melhor lugar é

esse em que todo o mundo pode vê-lo. Você entende, não é

verdade?

Marco assentiu sem muita convicção. O bom humor que o

mestre exibira no dia anterior se desfizera por completo.

- Pensei muito no que me disse ontem, mestre. E creio ter

compreendido algo mais sobre este lugar.

- Verdade?

- Apesar de trabalhar em solo sagrado e sob a supervisão de

homens de Deus, na sua Ceia não quis pintar a primeira missa de

Cristo, não é certo?

As sobrancelhas ruivas e estufadas do mestre levitaram de

assombro. Marco d'Oggiono prosseguiu:

- Não finja surpresa. Jesus não segura a hóstia na mão, não

renova o sacramento da eucaristia, e seus discípulos não comem

nem bebem. Se quer recebem a bênção.

- Grande - exclamou. - Continue. Está no bom caminho.

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- O que não entendo, mestre, é por que pintou esse nó

corredio no extremo da mesa. O vinho e o pão estão nas Escrituras:

o peixe, apesar de não ser citado por qualquer dos evangelistas,

posso entender como um símbolo do próprio Cristo. Mas, quem

falou de um nó corredio no mantel do banquete pascal?

Leonardo estendeu a mão em direção de Oggiono, chamando-

o para junto de si.

- Vejo que você tentou entrar no mural. Vai bem.

- E, no entanto, continuo longe do seu segredo, não é?

- Não se preocupe em chegar ao objetivo, Marco. Contente-se

apenas em percorrer o caminho.

Marco abriu os olhos, atônito.

- Escutou-me, mestre? Não o preocupa que um inquisidor

chegou ao convento e ande perguntando pela sua Ceia*?

*[ Termo coloquial com que se conhece em Milão a Última

Ceia.]

- Não.

- Não? É só isso?

- E que deseja que eu diga? Tenho coisas mais importantes

com que me preocupar. Como concluir esta Ceia e... seu segredo. –

Leonardo puxou a barba com um gesto divertido antes de

prosseguir: - Sabe, Marco? Quando por fim descobrir o segredo

que estou pintando e for capaz de lê-lo pela primeira vez, não

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poderá deixar de vê-lo jamais. E se perguntará como pôde estar tão

cego. Esses, e não outros, são os segredos mais bem guardados. Os

que estão diante de nossos narizes e não somos capazes de ver.

- E como aprenderei a ler sua obra, mestre?

- Seguindo o exemplo dos grandes homens deste tempo.

Como Toscanelli, o geógrafo, que já acabou de desenhar seu

próprio segredo diante dos olhos de toda Florença.

O discípulo nunca ouvira falar desse velho conhecido de

Leonardo. Em Florença o chamavam de o Físico e embora

ganhasse há muito a vida com seus mapas, fora antes médico e

leitor apaixonado dos escritos de Marco Polo.

- Mas você não saberá nada disso. - Leonardo sacudiu a

cabeça. - Para que deixe de me acusar de não ensinar como ler um

segredo, falarei hoje do que Toscanelli deixou na catedral de

Florença.

- Verdade? - Marco aguçou o ouvido.

- Quando regressar àquela cidade, não deixe de ver a enorme

cúpula que Filippo Brunelleschi construiu para o Duomo. Passe

tranqüilo sob ela e se concentre na pequena abertura feita num

dos lados. Nos dias de são João Batista e são João Evangelista, em

junho e em dezembro, o Sol do meio-dia atravessa esse orifício a

oitenta metros de altura e ilumina uma linha de mármore que meu

amigo Toscanelli dispôs cuidadosamente no solo.

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- Para quê, mestre?

- Não compreendeu? É um calendário. Os solstícios ali

marcados assinalam o início do inverno e do verão. Júlio César foi o

primeiro a se dar conta e o primeiro a fixar a duração do ano em

trezentos e sessenta e cinco dias e um quarto. Ele inventou o ano

bissexto.* E tudo graças à observação do avanço do Sol sobre uma

linha como aquela. Toscanelli, pois, dedicou-lhe esse engenho.

Sabe como? - Marco encolheu os ombros. - Colocando no início da

meridiana de mármore, por esta ordem atípica, os signos de

Capricórnio, Escorpião e Áries .

*[Em 1582, no tempo do papa Gregório XIII, o calendário juliano

sofreu um severo ajuste que abriu caminho para o atual calendário

gregoriano.]*

- E o que têm a ver os signos do zodíaco com a homenagem à

César, mestre?

Leonardo sorriu.

- O segredo está aí. Se você tomar as duas primeiras letras do

nome de cada um desses signos, respeitando sua ordem, assim: ca-

es-ar, terá o sobrenome oculto que buscávamos. Ca-es-ar... Claro

como a água! É perfeito!

- É mesmo.

- É algo assim que esconde seu Cenacolo, mestre?

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- Algo assim. Mas duvido que esse inquisidor, que você tanto

teme, chegue a descobri-lo.

- Mas...

- E, por certo - atalhou-o -, o nó é um dos muitos símbolos que

acompanham Maria Madalena. Um dia destes explico a você.

***

Devo ter dormido sobre a carteira.

Quando frei Alessandro me sacudiu aí pelas três da

madrugada, logo depois do ofício das matinas, um doloroso

entorpecimento se apoderara de meu corpo.

— Padre, padre! — bufou o bibliotecário. — O senhor está

bem?

Devo ter respondido alguma coisa, porque entre as

sacudidelas o bibliotecário fez uma observação que me despertou

de vez:

— O senhor falava em sonho! — riu, como se ainda zombasse

da minha incapacidade de resolver adivinhações. — Frei Matteo, o

sobrinho do prior, ouviu-o balbuciar não sei que frases estranhas

em latim e veio me avisar na igreja. Acreditava que o senhor estava

possuído!

Alessandro me olhava com uma expressão entre divertida e

preocupada, contraindo aquele nariz de gancho com que parecia

me ameaçar.

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— Não é nada — desculpei-me, bocejando.

— Padre, viajou durante muito tempo. Mal provou comida

desde que chegou, e de pouco adianta minha preocupação. Está

seguro de que não posso ajudá-lo em seu trabalho?

— Não é necessário, acredite-me — a falta de jeito do

bibliotecário com o hieróglifo do anzol não augurava grande ajuda.

— E que diabos era isso de Oculos ejus dinumera? O senhor

repetia uma e outra vez.

— Dizia isso?

Empalideci.

— Sim. E não sei o que mais sobre um lugar chamado

Betânia. Sonham muito com passagens da Bíblia, com Lázaro o

ressuscitado e coisas assim? Porque Lázaro era de Betânia, não?

Sorri. A ingenuidade de frei Alessandro parecia ilimitada.

— Duvido que compreenda irmão.

— Tente — disse, oscilando graciosamente ao ritmo de suas

palavras. O frade estava a um palmo de mim, observando-me com

interesse crescente, com aquele enorme pomo-de-adão subindo e

descendo na garganta. — Afinal de contas, sou o intelectual deste

convento...

Prometi satisfazer sua curiosidade em troca de algo para

comer. Acabara de me dar conta que sequer ceara na minha

primeira noite em Santa Maria. Meu estômago rugia debaixo do

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hábito. Solícito, o bibliotecário me conduziu até a cozinha e

conseguiu algum resto da ceia anterior.

— É panzaneila, padre — explicou, estendendo-me uma tigela

ainda tépida que aliviou minhas mãos geladas.

— Panzaneila?

— Coma. Sopa de pepino, tomate, cebola e pão. Assentará

bem...

Aquela mistura espessa e aromática deslizou como seda em

minhas entranhas. Com a noite fechada do lado de fora, sob a

iluminação de uma vela, também devorei o que sobrara de um

excelente pastel de massa seca bem sovada, que chamavam de

torroni e um par de figos secos. Depois, com a barriga satisfeita,

meus reflexos começaram a funcionar de novo.

— Não come, frei Alessandro?

— Oh, não — sorriu o esgrouviado. — O jejum não me

permite. Estou assim desde antes que o senhor chegou a esta casa.

— Compreendo.

A verdade é que não lhe dei mais importância.

“Então dormi recordando os primeiros versos da ‘assinatura’

do Augure”, recriminei-me. Não era de estranhar. Enquanto

agradecia a frei Alessandro suas atenções e elogiava a merecida

fama de sua cozinha, recordei que em Betânia já tiveram a

oportunidade de comprovar que aqueles versos não tinham

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procedência evangélica. Na realidade, tampouco correspondiam a

algum texto de Platão nem de qualquer outro clássico conhecido,

muito menos estavam nas epístolas dos padres da igreja ou de leis

do direito canônico. Aquelas sete linhas desobedeciam aos mais

elementares códigos cifrados usados por cardeais, bispos e abades

que codificavam já quase todas suas comunicações com os Estados

pontifícios por temor de ser espionados. As frases raramente eram

legíveis: convertiam-se do latim oficial a uma gíria de consoantes e

números graças a uns moldes de substituição muito elaborados,

cunhados em bronze pelo meu admirado Leon Battista Alberti. Em

geral, aqueles moldes eram formados por uma série de rodas

superpostas em cujas bordas eram colocadas as letras do alfabeto.

Com perícia e instruções mínimas, as letras da roda exterior eram

substituídas pelas da roda inferior, cifrando assim qualquer

mensagem.

Tanta precaução tinha sua lógica: para a cúria, o pesadelo de

se ver descoberta por nobres a quem odiavam, ou por cortesãos

contra quem intrigavam, multiplicara por cem o trabalho da

Betânia em pouco tempo e nos convertera em ferramenta

imprescindível para o governo da Igreja. Mas, como explicar tudo

aquilo ao bom Alessandro? Como confessar que a chave que me

atormentava se desviava dos métodos cifrados que eu conhecia e

por isso me obcecava?

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Não. Óculos ejus dinumera não era dessa classe de

mensagens que pudesse ser explicada a um leigo em códigos

secretos.

- Posso perguntar em que está pensando, padre Leyre?

Começo a crer que não me dá atenção.

Frei Alessandro puxou-me pelo hábito para reconduzir-me

pelos escuros corredores do convento até a zona dos dormitórios.

- Agora que já comeu - disse em tom patriarcal, sem perder

aquele trejeito zombador com que me obsequiava desde nosso

encontro -, será melhor que descanse até o ofício das laudes. Antes

do amanhecer virei despertá-lo e me explicará o que tem entre as

mãos. De acordo?

Aceitei de má vontade.

Àquela hora a cela estava gelada, e só a idéia de despir o

hábito e me meter num catre úmido e duro me aterrava mais do

que a vigília. Pedi ao bibliotecário que acendesse a vela sobre a

mesinha e combinamos nos vermos e passar a alva no claustro do

hospital para esclarecer certas coisas. Não que me seduzisse a

idéia de compartilhar detalhes de meu trabalho com alguém. De

fato, sequer apresentei meus respeitos ao prior de Santa Maria,

mas algo me dizia que frei Alessandro, apesar de sua imperícia

com as adivinhações, seria de utilidade naquela embrulhada.

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Vestido, deitei-me na cama e me cobri com a única manta de

que dispunha. Ali, contemplando o teto de tábuas caiadas, tornei a

rever o problema dos versos codificados. Tinha a sensação de que

perdera algum detalhe. Algum absurdo, porém fundamental. E

assim, com os olhos como pratos da balança, repassei tudo o que

sabia sobre a origem das frases. Se não errava na minha

apreciação e a madrugada não enganava minha inteligência, era

bem claro que o nome de nosso informante anônimo - ou pelo

menos sua cifra - se escondia nos primeiros dois versos.

Era um jogo curioso. Como ocorre com certas palavras

hebraicas, algumas têm, além de seu significado, um determinativo

que complementa seu sentido. Os dois lemas dominicanos

indicavam, pois, que nosso homem era um pregador. Disso estava

quase seguro. Mas e as frases precedentes?

Conte-lhe os olhos

mas não olhe para a cara.

A cifra de meu nome

achará em suas costas.

Olhos, cara, cifra, nome, costas...

Na penumbra, com a mente exaurida, comecei a entender.

Talvez se tratasse de outro beco sem saída, mas de repente o da

cifra do nome não me pareceu tão absurdo. Os judeus chamavam

de gematria a disciplina que atribui a cada letra de seu alfabeto um

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valor numérico. João, em seu Apocalipse, empregou-a com

maestria ao escrever que "o que tiver inteligência que calcule o

número da Besta. Pois é o número de um homem, e esse número é

666". Aquele 666 correspondia, com efeito, ao mais cruel dos

varões de seu tempo: Nero César, cujas letras somadas davam a

terrível cifra tripla. E se o Augure fosse um judeu convertido? E se,

temendo alguma represália, ocultasse a identidade precisamente

por esse detalhe de sua vida? Quantos monges de Santa Maria

sabiam que são João era iniciado na gematria e apontou Nero em

seu livro sem pôr em jogo sua vida?

O Augure fez a mesma coisa?

Antes de dormir, febril, transferi aquela idéia para o

abecedário latino. Considerando que o A (o alef hebraico) equivale

a 1, o B (bet) a 2, e assim sucessivamente, não era difícil

transformar em cifras qualquer palavra. Agora só bastava somar

entre si os números obtidos para que o produto resultante

indicasse o valor numérico definitivo do termo eleito. A cifra. Os

judeus, por exemplo, calcularam que o nome completo e secreto de

Javé somava 72 e os cabalistas, os magos dos números hebraicos,

complicaram mais ainda as coisas ao buscar os 72 nomes de Deus.

Em Betânia zombávamos amiúde disso.

No nosso caso, por desgraça, o assunto era mais obscuro,

porque desconhecíamos até o valor numérico do nome do autor...

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se é que tinha algum. A menos que, seguindo ao pé da letra as

instruções de seus versos, pudéssemos encontrar nas costas de

alguém olhos que não pudéssemos ver na cara.

E com esse enigma digno de uma esfinge, me deixei embalar

pelo sono.

10

Pouco antes do ofício das laudes frei Alessandro se

apresentou em minha cela, risonho e feliz como um noviço. Devia

pensar que não era todos os dias que um doutor chegado de Roma

partilhasse com ele um enigma importante, e estava decidido a

saborear seu dia de glória. Deu-me, no entanto, a impressão de que

desejava fazê-lo pouco a pouco, como se temesse que a "revelação"

se acabasse de repente e o deixasse insatisfeito. Por isso, não sei

se por cortesia ou para dilatar o prazer de me ter em suas mãos, o

fradeco considerou que a madrugada seria um bom momento para

a confissão; isso sim, depois de me apresentar ao restante de sua

comunidade.

O relógio da cúpula de Bramante deu as cinco enquanto o

bibliotecário me conduzia, entre as trevas e de rastros, até a igreja.

O templo -localizado do lado oposto às celas, perto da biblioteca e

do refeitório -constava de uma nave retangular de dimensões

modestas, dispunha de uma abóbada cilíndrica sustentada por

colunas de granito provenientes de algum mausoléu romano e era

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coberto do solo ao teto por afrescos com motivos geométricos,

circunferências e sóis. O conjunto resultava algo carregado para

meu gosto.

Chegamos tarde. Apinhados no altar-mor, os irmãos de Santa

Maria rezavam já o te deum sob a tênue luz de dois enormes

candelabros. Fazia frio e o vapor exalado pelos frades esfumava

seus rostos como uma espessa e misteriosa névoa. Alessandro e eu

nos encostamos numa das pilastras do templo e os observamos de

uma distância conveniente.

- Aquele que está no canto - murmurou o bibliotecário,

apontando para um frade enfermiço, de olhos amendoados e cabelo

branco crespo - é o prior Vicenzo Bandello. Ali onde está é douto

entre os doutos. Há anos combate os franciscanos e sua idéia da

imaculada concepção da Virgem... Muitos dizem que continua em

desvantagem.

- Estudou teologia?

- Sem dúvida - assentiu com firmeza. - À direita dele, o rapaz

moreno de pescoço comprido é seu sobrinho Matteo.

- Já o vi.

- Todos acreditam que algum dia será um escritor de renome.

Mais adiante, junto à porta da sacristia, estão os irmãos Andrea,

Giuseppe, Lucca e Jacopo. Não são apenas irmãos no sentido

metafórico; também são filhos da mesma mãe.

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Olhei aqueles rostos um a um, tentando memorizar seus

nomes.

- Você disse que apenas uns poucos lêem e escrevem com

fluência, verdade? - indaguei.

Frei Alessandro não pôde avaliar a intenção oculta em minha

pergunta. Se respondesse com precisão me permitiria descartar de

um só golpe bom número de suspeitos. O perfil do Augure

correspondia a um homem culto, instruído em muitas disciplinas e

bem situado na corte do duque. Nessa altura acreditava que as

probabilidades de fracassar em meus esforços para decifrar a

chave eram elevadas - ainda me doía a proverbial lentidão com que

examinei a adivinhação de Leonardo - e se tudo fosse mal só me

restaria o remédio de encontrar o autor pela via da dedução. Ou da

sorte.

O bibliotecário passeou o olhar sobre os congregados,

tentando recordar suas habilidades com o alfabeto:

- Vejamos... - conjeturou. - Frei Guglielmo, o cozinheiro, lê e

declama poesia. Benedetto, o caolho, trabalhou como copista

durante muitos anos. O bom monge perdeu o olho tentando

escapar de um assalto em seu convento anterior, em Castelnuovo,

enquanto protegia a cópia de um livro de horas. Desde então está

sempre mal-humorado. Protesta por tudo, e nada do que façamos

por ele parece satisfazê-lo.

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- E o pequeno?

- Matteo, já disse, escreve como os anjos. Tem apenas doze

anos, mas é um jovem esperto e inquieto... Deixe-me ver... - o

bibliotecário hesitou de novo. - Adriano, Esteban, Nicola e Jorge

aprenderam a ler comigo. E Andrea e Giuseppe também.

Em poucos segundos, a relação dos candidatos saiu fora do

leito. Devia tentar outra estratégia.

- Diga-me, quem é o frade esbelto, alto e forte, da esquerda? -

perguntei, curioso.

- Ah! Esse é Mauro Sforza, o coveiro. Sempre se esconde

atrás de algum irmão, como se temesse ser reconhecido.

- Sforza?

- Bem... É um primo afastado do Mouro. Faz tempo que o

duque nos pediu o favor de admiti-lo no convento e o tratássemos

como outro qualquer. Nunca fala. Tem sempre este aspecto

assustado, e dizem as más línguas que é por tudo o que se passou

com seu tio materno Gian Galeazzo.

- Gian Galeazzo? - pulei. - Quer dizer Gian Galeazzo Sforza?

- Sim, sim. O legítimo duque de Milão, morto há três anos. O

mesmo que convenceu o Mouro a ficar com o trono. O pobre frei

Mauro era quem cuidava de Gian Galeazzo antes que o mandassem

para cá, e seguramente foi ele quem lhe administrou a beberagem

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de leite quente, vinho, cerveja e arsênico que lhe derreteu o

estômago e o matou em três dias de agonia.

- Ele o matou?

- Digamos que o usaram para cometer o crime. Mas isso –

soprou entre os dentes, satisfeito por me surpreender - é segredo

de confissão; já me entende...

Observei Mauro Sforza dissimuladamente, compadecendo-me

de seu triste destino. Abandonar à força a vida palaciana e trocá-la

por outra em que só dispunha de um hábito de lã áspera, uma

muda e dois pares de sandálias deve ter sido duro de engolir pelo

rapaz.

- E escreve?

Alessandro não respondeu. Empurrou-me até o ajuntamento

não só para nos integrarmos às rezas, mas também para nos

beneficiarmos do calor do grupo. O abade inclinou a cabeça à

maneira de saudação tão logo nos viu e continuou com suas

orações. Elas se prolongaram até que o primeiro raio solar

atravessou a rosácea de azulejo e o vitral que se abria sobre a

porta principal. Não posso dizer que minha chegada causou

sensação na comunidade porque, além do prior, de perfil aquilino e

aspecto cauteloso, duvido que algum outro frade reparou em mim.

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Mas, notei que o padre Bandelio se perturbou com o meu

olhar atento, tanto, que incomodado, desviou seus passos para

outro lado.

E mais: enquanto o prior dava sua bênção, do altar, aos

presentes frei Alessandro me obrigou a nos separarmos do grupo e

a segui-lo até o claustro do hospital.

Àquela hora, os poucos doentes que pernoitaram nele ainda

dormiam, imprimindo ao pátio de azulejo vermelho um aspecto

sombrio.

— Disse ontem que conhece bem mestre Leonardo... —

comentei. Estava seguro de que a trégua que me fora concedida de

começar a disparar perguntas estava a ponto de acabar.

— E quem não o conhece aqui! Esse homem é um prodígio.

Um prodígio estranho, uma criatura de Deus única.

— Estranho?

— Bem, digamos que é anárquico em seus costumes. Nunca

se sabe se vem ou vai, se tem intenção de pintar no refeitório, ou

só deseja refletir diante de sua obra e localizar novas falhas no

reboco ou erros na expressão de seus personagens. Passa o dia

com seus taccuinl; * anotando tudo.

*[Pequenos cadernos de notas.]*

— Meticuloso.

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— Não, não. É desordenado e imprevisível, mas tem uma

curiosidade insaciável. Enquanto trabalha no refeitório, imagina

todo tipo de loucuras para melhorar a vida do convento: pás

automáticas para arrotear a horta, condutos de água até as celas,

pombais que se limpam sozinhos...

— Está pintando uma Última Ceia, não é? — interrompi-o.

O bibliotecário avançou até o magnífico parapeito de granito

que adornava o centro do claustro do hospital e me olhou como se

eu fosse um animal raro.

— Ainda não a viu, não é certo? — sorriu como se já soubesse

a resposta, quase como se se apiedasse de minha condição. — O

que o mestre Leonardo está terminando no refeitório não é uma

Última Ceia, padre Agustín; é A última ceia. Entenderá quando a

tiver diante dos olhos.

— Então é um ser estranho, mas virtuoso.

— Verá — me corrigiu. — Quando mestre Leonardo chegou a

esta casa há três anos e começou os preparativos para o Cenacolo,

o prior desconfiava dele. De fato, como encarregado dos arquivos

de Santa Maria e responsável pelo nosso futuro ele encarregou-me

de escrever a Florença para averiguar se o toscano era um artista

confiável, cumpridor de prazos e perfeccionista no trabalho. Ou um

destes buscadores de fortuna que deixam tudo pela metade a quem

há que brigar para conseguir que acabem a obra.

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— Mas se não me engano vinha recomendado pelo duque em

pessoa.

— É certo. Mas para nosso abade isso não era garantia

suficiente.

— Está bem, continue. Que descobriu? Era organizado ou

caótico?

— As duas coisas!

Fiz um gesto de não entender:

— As duas coisas?

— Não disse que era estranho? Como pintor, é, sem dúvida, o

mais extraordinário que jamais se viu, mas ao mesmo tempo é o

mais rebelde. Praticamente não consegue terminar a tempo uma

obra; na verdade, jamais termina a tempo. E, o que é pior, lixa-se

para as instruções de seus mecenas. Sempre pinta o que lhe dá na

telha.

— Não pode ser.

— Mas é, padre. Os monges do mosteiro de São Donato de

Scopeto, perto de Florença, encomendaram-lhe há quinze anos um

quadro sobre o Nascimento de Nosso Senhor... Que ainda não está

pronto! Sabe o pior? Leonardo alterou aquela cena até o limite do

tolerável. Em lugar de pintar uma adoração dos pastores ao

menino Jesus, o mestre começou uma pintura em tábua a qual

chamou A adoração dos magos* e a encheu de personagens

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retorcidos, de cavalos e homens fazendo estranhos gestos para o

céu, que não aparecem descritos nos Evangelhos.

(*) [Hoje nos Uffizi de Florença. (N. do editor espanhol.)]

Senti um calafrio.

— Tem certeza?

— Nunca minto. Mas saberá que isso ainda não é nada.

- Nada?

Se o que frei Alessandro insinuava era certo, o Augure ainda

se mostrava tímido em seus temores: aquele diabólico Da Vinci

chegara a Milão deixando atrás graves antecedentes de

manipulação de obras de arte. Algumas das frases lapidares que

lera nas cartas anônimas começavam a ressoar em minha mente

como trovões que anunciam tormenta. Deixei-o continuar:

- Aquela não era uma adoração qualquer. Não tinha sequer

uma estrela de Belém! Não lhe parece extraordinário? E a você o

que isto diz?

- A mim? - As maçãs do rosto marmóreas de frei Alessandro

adquiriram uma morna cor de pêssego. Ruborizava-se porque um

homem ilustrado vindo de Roma lhe perguntasse abertamente por

sua sincera opinião sobre algo. - A verdade? Não sei o que pensar.

Leonardo, já disse, é uma criatura fora do comum. Não me

estranha que a Inquisição se fixou nele...

- A Inquisição?

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Outra pontada me atravessou o estômago. No pouco tempo

que nos conhecíamos, frei Alessandro desenvolveu uma habilidade

inata de me sobressaltar. Ou talvez eu estivesse mais suscetível?

Sua menção ao Santo Ofício me fez sentir culpado. Como não

pensei antes? Como não me ocorreu consultar o arquivo geral da

Sacra Congregazione antes de viajar a Milão?

- Deixe-me contar - disse, entusiasmado, como se ficasse

encantado de rebuscar na memória essa classe de coisas. - Depois

de deixar inacabada sua Adoração dos magos, Leonardo se mudou

para Milão e foi contratado pela Confraternidade da Imaculada

Concepção, que, como sabe, são os franciscanos que obedecem a

São Francisco, o Grande, e com quem nosso prior tem litígios

permanentes. Ali o toscano voltou a ter os mesmos problemas que

em Florença.

- De novo?

- Imediatamente. Mestre Leonardo tinha de realizar um

tríptico para a capela da Confraternidade com os irmãos Ambrósio

e Evangelista de Predis. Entre os três, cobraram duzentos escudos

adiantados por conta do trabalho, e cada um se encarregou de uma

parte do retábulo. O toscano ficou com a parte central. Sua

incumbência era pintar uma Virgem rodeada de profetas, enquanto

as partes laterais mostrariam um coro de anjos músicos.

- Não continue: jamais concluiu seu trabalho...

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- Mas, não. Desta vez Mestre Leonardo terminou sua parte,

mas não cumpriu o que fora pedido. Na sua madeira não havia

profeta algum. Em compensação, apresentou um retrato de Nossa

Senhora dentro de uma gruta, junto com o menino Jesus e São

João.* O muito ousado garantiu aos frades que sua tábua

representava o encontro que as duas crianças tiveram enquanto

Jesus e a família fugiam para o Egito. Mas, isso também não está

em nenhum Evangelho!

*[A Virgem dos rochedos, hoje no Louvre. (N. do editor

espanhol.)]

- E, claro, denunciaram-no ao Santo Ofício.

- Sim. Mas, não pelo motivo que o senhor imagina. O Mouro

interferiu para trancar o processo e o livrou de um julgamento

certeiro.

Hesitei se devia continuar fazendo perguntas. Ele é quem

desejava que o pusesse ao corrente de minhas adivinhações. Mas,

não podia negar que suas informações me intrigaram.

- Então, qual foi a denúncia que levou à Inquisição?

- Leonardo se inspirou no Apocalipsis Nova para pintar o

quadro.

- Nunca ouvi falar de semelhante livro.

- Trata-se de um texto herético escrito por um velho amigo

seu, um franciscano menorita chamado João Mendes da Silva,

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também conhecido como Amadeu de Portugal, que morreu em

Milão no mesmo ano em que Leonardo terminou seu quadro. O tal

de Amadeu publicou um livro insinuando que a Virgem e São João

eram os verdadeiros protagonistas do Novo Testamento, e não

Cristo.

Apocalipsis Nova. Memorizei aquele dado para acrescentar ao

eventual sumário que poderia abrir contra Leonardo por heresia.

- E como os frades se deram conta dessa relação entre o

Apocalipsis Nova e a pintura de Leonardo?

O bibliotecário sorriu.

- Era evidente. O quadro representava a Virgem com o

menino Jesus e o anjo Uriel ao lado de João Batista. Em condições

normais, Jesus deveria aparecer abençoando seu primo João, mas

no quadro acontecia exatamente o contrário! Além disso, a Virgem,

em vez de abraçar seu primogênito, estendia os braços protetores

sobre o Batista. Já entendeu? Leonardo retratara São João não só

legitimado por Nossa Senhora, mas, distribuindo sua bênção ao

próprio Cristo, demonstrando assim sua superioridade sobre o

Messias.

Felicitei entusiasmado frei Alessandro.

- Você é um observador sagaz - disse. - Iluminou a mente

deste servidor de Deus. Estou em dívida consigo, irmão.

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- Se me perguntar, responderei. É uma promessa que sempre

cumpro.

- À semelhança do jejum?

- Sim. Como o jejum.

- Admiro-o, irmão. De verdade.

O bibliotecário inchou como um pavão e enquanto a claridade

ia empurrando as sombras do claustro, revelando os relevos e

ornamentos que ocultava, atreveu-se por fim a romper a, suponho,

provocadora espera que se impusera:

- Então deixará que o ajude em suas adivinhações?

11

Naquele momento não soube o que responder. Além de frei

Alessandro, o outro frade com quem eu falava com certa

freqüência era o sobrinho do prior, Matteo. Ainda era uma criança,

porém mais esperto e curioso do que os de sua idade. Talvez, por

isso, o jovem Matteo não resistiu à tentação de se aproximar de

mim e perguntar como era minha vida em Roma. A grande Roma.

Não sei o que imaginaria como seriam os palácios pontifícios

e as intermináveis avenidas de igrejas e conventos, mas em troca

de minhas generosas descrições me presenteou com algumas

confidências que me fizeram desconfiar das boas intenções do

bibliotecário.

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Entre risos me contou qual era a única coisa capaz de tirar do

eixo seu tio, o prior.

- E o que é? - perguntei, intrigado.

- Encontrar frei Alessandro e Leonardo, de mangas

arregaçadas, cortando alface na cozinha de frei Guglielmo.

- Leonardo vai à cozinha? - A surpresa me deixou perplexo.

- Como? Mas, não faz outra coisa! Quando meu tio deseja

encontrá-lo já sabe que esse é seu esconderijo favorito. Poderá não

molhar nenhum pincel durante dias, mas é incapaz de nos visitar e

não passar horas junto aos fogões. Sabia que Leonardo teve uma

taberna em Florença, na qual era cozinheiro?

- Não.

- Ele me contou. Chamava-se A Insígnia das Três Rãs de

Sandro e Leonardo.

- De verdade?

- Certamente! Contou-me que a montou com um amigo seu

que também era pintor, Sandro Botticelli.

- E o que aconteceu?

- Nada! A clientela não gostava de seus guisados de verdura,

suas anchovas enroladas em gomos de couve, ou uma coisa que

faziam com pepino e folhas de couve cortadas em forma da rã.

- E aqui faz a mesma coisa?

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- Bem - Matteo sorriu. - Meu tio não deixa. Desde que chegou

ao convento, o de que mais gosta é examinar nossa despensa. Diz

que está buscando o cardápio para a Última Ceia. Que a comida

que deve estar sobre a mesa é tão importante como o retrato dos

apóstolos... e o desavergonhado leva semanas trazendo seus

discípulos e amigos para comer numa mesa que dispôs no

refeitório, enquanto esvazia a adega do convento.*

*[Existe exatidão histórica desta prática de Leonardo. Uma carta

de frei Vicenzo Bandello a Ludovico, o Mouro, escrita na Semana

Santa de 1496, diz: "Meu senhor, passaram-se já mais de doze

meses desde que me enviou o mestre Leonardo para realizar esta

encomenda e durante todo o tempo não fez um só traço em nossa

parede. Neste tempo, meu senhor, a adega do priorado sofreu um

grande desgaste e agora está quase completamente seca, pois o

mestre Leonardo insiste que se provem todos os vinhos até achar o

adequado para sua obra-prima e não aceitará qualquer outro.

Enquanto isto, meus frades passam fome, pois o mestre Leonardo

dispõe a seu capricho nossa cozinha dia e noite, confeccionando o

que ele afirma serem as comidas de que necessita para sua mesa;

mas nunca se dá por satisfeito; e, duas vezes por dia, manda sentar

seus discípulos e serventes para comer todas elas. Meu senhor,

rogo-lhe que apresse o mestre Leonardo a executar sua obra,

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porque sua presença e a da sua quadrilha ameaçam nos deixar na

miséria."]

- E frei Alessandro o ajuda?

- Frei Alessandro? - repetiu. - Ele é dos que se sentam à mesa

para comer! Leonardo diz que aproveita então para estudar a

silhueta deles e como pintará o que comem, mas ninguém o viu

fazer outra coisa além de devorar nossas reservas!

Matteo riu, divertido.

- A verdade - acrescentou - é que meu tio escreveu várias

vezes ao duque protestando contra os abusos do toscano, mas o

duque não lhe fez caso. Se continuar assim, Leonardo terminará

por nos deixar sem a colheita.

12

As sextas-feiras 13 nunca foram do agrado dos milaneses.

Mais sensíveis às superstições francesas que outros latinos, as

jornadas que unem o quinto dia da semana ao fatídico lugar que

ocupava Judas na mesa da Última Ceia lhes recordavam efemérides

traumáticas. Sem ir mais longe, foi numa sexta-feira 13 de outubro

de 1307 que prenderam os templários na França por ordem de

Filipe IV, o Belo. Então os acusaram de negar Cristo, de cuspir no

crucifixo, trocar beijos obscenos em locais de culto e adorar um

extravagante ídolo chamado Bafomet. A desgraça da ordem dos

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cavaleiros das capas brancas foi tal que desde aquele dia todas as

sextas-feiras 13 são tidas por dias de mau agouro.

O décimo terceiro dia de janeiro de 1497 não ia ser exceção.

Ao meio-dia, uma pequena multidão se acotovelava às portas do

convento de Santa Maria. A maioria fechara antes do tempo suas

lojas de seda, perfume ou lã na praça do Verzaro, atrás da

catedral, para não perder o prodígio. Pareciam impacientes. O

anúncio que os atraíra até ali era singularmente preciso: antes do

ocaso, a serva de Deus Verônica da Binasco entregaria a alma a

Deus. Ela própria fizera a previsão com a segurança de quem se

jactara antes de profetizar outras desgraças. Recebida por

príncipes e papas, tida por santa em vida por muitos, sua última

façanha fora ser expulsa do palácio do Mouro havia só dois meses.

As más línguas diziam que pediu para ser recebida por donna

Beatrice d'Este para lhe anunciar seu fatal destino. Fora de si,

donna Beatrice mandou recolhê-la ao seu convento para nunca

mais voltar a vê-la.

Marco d'Oggiono, discípulo predileto do mestre Leonardo,

conhecia-a bem. Vira o toscano falar com ela amiúde. Leonardo

gostava de discutir com a religiosa suas estranhas visões da

Virgem. Anotava não apenas o que ela dizia, mas também,

bosquejava detalhes de seu rosto angelical, de seus ademanes

doces e o porte dolente, que depois tratava de transferir para seus

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quadros. Por desgraça, se soror Verônica não errava, tais

confidências terminariam aquela sexta-feira. Sem almoçar, Marco

arrastou o toscano até o leito fúnebre da religiosa, consciente de

que não lhes restava muito tempo.

- Agradeço-lhe por ter vindo. A irmã Verônica agradecerá por

vê-lo pela última vez - sussurrou o discípulo ao mestre. Leonardo,

impressionado pelo cheiro de incenso e azeites daquela pequena

cela, contemplou admirado o rosto marmóreo da beata. A pobre

mal podia abrir os olhos.

- Não acredito que possa fazer algo por ela - disse.

- Sei, mestre. Ela é quem insistiu em vê-lo.

- Ela?

Leonardo inclinou a cabeça até chegar perto dos lábios da

moribunda. Os lábios tremeram um bom tempo, como se

murmurassem uma litania apenas audível. O pároco de Santa

Maria, que espargira os santos óleos sobre soror Verônica e rezava

o santo rosário junto dela, deixou que o visitante se acercasse um

pouco mais.

- Ainda pinta gêmeos em suas obras?

O mestre estranhou. A monja o reconhecera sem sequer se

dar o trabalho de abrir os olhos.

- Pinto o que sei, irmã.

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- Ah, Leonardo! - balbuciou. - Não acredite que não percebi

quem é. Sei perfeitamente. Embora a esta altura de minha vida não

valha a pena discutir consigo.

Soror Verônica falava com lentidão, num tom imperceptível

que o toscano custava a perceber.

- Vi seu retábulo da igreja de San Francesco, a sua madonna.

- Gostou?

- A Virgem, sim. Você é um artista com um grande dom. Mas

os gêmeos, não... Diga-me, já os corrigiu?

- Já, irmã. Tal como me pediram os irmãos franciscanos.

- Você tem fama de teimoso, Leonardo. Hoje me disseram que

voltou a pintar gêmeos no refeitório dos dominicanos. É verdade?

Leonardo se ergueu, perturbado.

- Viu o Cenacolo, irmã?

- Não. Mas, o seu trabalho está sendo muito comentado.

Deveria saber.

- Já disse a eles antes, soror Verônica: só pinto aquilo de que

estou seguro.

- Então por que insiste em incluir gêmeos em suas obras para

a Igreja?

- Porque existiram. André e Simão foram irmãos. É o que

dizem Santo Agostinho e outros grandes teólogos. O apóstolo Tiago

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confundia-os amiúde com Jesus porque se pareciam muito. Nada

disso inventei. Está escrito.

A monja deixou de sussurrar.

- Ai, Leonardo! - gritou. - Não incorra no mesmo erro que em

San Francesco! A missão de um pintor não é confundir o fiel e sim

lhe mostrar com clareza os personagens encomendados.

- Erro? - Leonardo levantou a voz sem querer. Marco, o

pároco e as duas irmãs que cuidavam da moribunda se voltaram

para ele. – Que erro?

- Vamos, mestre! - resmungou a moribunda. - Por acaso não o

acusaram de confundir em sua obra São João com Jesus? Por acaso

não os retratou como se fossem duas gotas d'água? Não tinham o

mesmo cabelo frisado, as mesmas bochechas e quase o mesmo

gesto? Sua obra não induzia a uma perversa confusão entre João e

Cristo?

- Desta vez não acontecerá, irmã. Não no Cenacolo.

- Mas me dizem que pintou Tiago com o mesmo rosto de

Jesus!

Todos ouviram o protesto de soror Verônica. Marco, que

ainda sonhava demonstrar ao mestre que seria capaz de decifrar os

segredos de sua obra, prestou atenção.

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- Não há confusão possível - respondeu Leonardo. - Jesus é o

eixo de minha nova obra. É um enorme "A" no centro do mural. Um

alfa gigante. A origem de toda minha composição.

D'Oggiono acariciou o queixo, meditativo. Como não se dera

conta antes? Repassava mentalmente A última Ceia: Jesus parecia

de fato um enorme "A" maiúsculo.

- Um "A"? - soror Verônica baixou a voz. Aquilo a

surpreendeu. – E pode-se saber o que escreveu desta vez em sua

obra, Leonardo?

- Nada que os verdadeiros fiéis não possam ler.

- A maioria dos bons cristãos não sabe ler, mestre.

- Por isso pinto para eles.

- E isso lhe dá o direito de se incluir entre os Doze?

- Encarno o mais humilde dos discípulos, irmã. Represento

Tadeu, quase no fim da mesa, como o ômega que vai no fim do alfa.

- Ômega? Você?... Vá com cuidado, Mestre. É muito

pretensioso e o orgulho poderia perder sua alma.

- É uma profecia? - perguntou, irônico.

- Não zombe desta anciã e aguarde o presságio que tenho

para lhe fazer. Deus me deu uma visão clara do que está por vir.

Deve saber, Leonardo, que não serei eu a única que hoje entregará

sua alma ao Pai Eterno - disse. - Alguns dos que chamam de

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verdadeiros fiéis me acompanharão ao Tribunal do Juízo. Temo que

não merecerão a misericórdia do altíssimo.

Marco d'Oggiono, impressionado, viu soror Verônica ofegar

por causa do esforço.

- Você, em compensação, ainda tem tempo para se

arrepender e salvar sua alma.

13

Nunca agradecerei bastante irmão Alessandro pelo muito que

me ajudou nos dias que se seguiram àquele passeio. Além dele e do

jovem Matteo, que às vezes visitava a biblioteca para bisbilhotar o

trabalho do frade insociável vindo da cidade pontifícia, mal trocava

palavras com alguém. Só via o restante dos monges nas horas de

comer no improvisado refeitório que preparavam junto ao chamado

Grande Claustro, ou então, na igreja nos momentos de oração.

Mas, nos dois lugares predominava a regra do silêncio e não era

fácil estabelecer relações com qualquer deles.

Na biblioteca, pelo contrário, tudo mudava. Frei Alessandro

perdia a rigidez que mostrava entre os seus e soltava a língua tão

reprimida em outros lugares da vida monástica. O bibliotecário era

de Riccio, junto ao lago Trasimeno, mais perto de Roma do que de

Milão, o que de certo modo justificava seu isolamento do resto dos

frades e fazia com que me visse como um patrício necessitado de

proteção. Ainda que jamais o vi provar pedaço, cada dia me trazia

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água, massas de trigo pretas como seixos rolados (especialidade de

frei Guglielmo que surripiava às escondidas para mim), e até me

abastecia de azeite limpo para a lâmpada cada vez que ameaçava

se extinguir. E tudo - como compreendi mais tarde -para não se

afastar de mim à espera de que o inesperado hóspede necessitasse

descarregar em alguém suas tensões e revelasse novos detalhes de

seu "segredo". Creio que a cada hora passada, Alessandro supunha

o segredo cada vez maior. Eu o criticava porque a imaginação não

era bom aliado para alguém que pretendia decifrar mistérios, mas

ele se limitava a sorrir, certo de que suas habilidades seriam de

utilidade algum dia. Do que jamais pude me queixar dele foi de sua

extraordinária humanidade. Logo frei Alessandro se tornou um

bom amigo. Estava por perto sempre que fazia falta. Consolava-me

quando eu jogava a pena no chão, desesperado diante da falta de

resultados, e me estimulava a perseverar naquela diabólica

adivinhação. Mas, Óculos ejus dinumeni resistia a tudo. Mesmo

quando aplicava valores numéricos às letras só apresentava

confusão. No terceiro dia de decepções e desvelo, frei Alessandro

já vira os versos, sabia-os de cor e brincava com eles impaciente,

buscando com o semblante franzido a maneira de romper o código.

Cada vez que encontrava alguma luz naquele aranzel seu rosto se

iluminava de satisfação. Era como se, de repente, suas feições

aguçadas conseguissem se suavizar, trocando aquele rosto duro

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por outro de criança entusiasmada. Numa daquelas comemorações

soube, por exemplo, que os enigmas de cifras e letras eram seus

favoritos. Desde que leu Raimundo Lulio, o criador da Arsmagna

dos códigos secretos, vivia para eles. Arqueie gufo (mocho, como

eram chamados os frades que tresnoitavarn ou os que não

pareciam se importar em se levantar nas matinas) era uma fonte

inesgotável de surpresas. Parecia conhecer tudo - cada obra

importante da arte da criptografia, cada tratado cabalístico, cada

ensaio bíblico. E, no entanto, tamanha preparação teórica não

parecia nos servir muito.

- Então - murmurou Alessandro numa daquelas tardes em que

sua comunidade fervia de atividade preparando os funerais de

donna Beatrice - pensa de verdade que devemos contar os olhos de

alguma imagem do convento para resolver seu problema?... Seria

tão simples assim?

Toquei suas mãos com afeto enquanto encolhia os ombros. O

que podia responder? O bibliotecário me observava com seus olhos

de coruja, enquanto roçava o queixo curto. Mas como eu, ele

também desconfiava dessa opção. Tínhamos nossos motivos. Se a

cifra do nome devia ser buscada no número de olhos de uma

imagem - fosse a Virgem, São Domingos ou Santa Ana -, o

resultado nos levaria a um beco sem saída. No fim das contas, não

era possível achar um nome próprio de apenas uma ou duas letras,

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que seria o resultado evidente que nos daria o número de olhos de

qualquer das estátuas de Santa Maria. Além disso, nenhum dos

frades da comunidade respondia por nome ou apelido tão conciso.

Nenhum Io, Eo, Au ou nada parecido se alojava ali. Sequer um

nome como Job, de apenas três letras, serviria. Em Santa Maria

não havia nenhum, e tampouco nenhum Noé, Lot, e ainda que

houvesse, em que rosto encontraríamos três olhos para atribuir a

autoria das cartas?

De repente me dei conta de algo. E se a adivinhação não se

referisse aos olhos de um ser humano? E se se tratasse de um

dragão, uma hidra de sete cabeças e quatorze olhos, ou alguma

outra espécie de monstro pintado nas "costas" de alguma sala?

- Mas, não há monstros assim em qualquer lugar de Santa

Maria - protestou frei Alessandro.

- Nesse caso, talvez estejamos errados. Talvez a figura de

quem devemos contar os olhos não esteja neste convento, mas em

outro prédio. Numa torre, um palácio, outra igreja próxima...

- É isso, padre Agustín! Achamos! - Os olhos do bibliotecário

relampejaram de emoção. - Não percebe? O texto não está falando

de uma pessoa ou de um animal, mas de um prédio!

- Um prédio?

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- Claro! Meu Deus, que estupidez! Está claro como a água! Os

óculos, além de olhos, são também janelas. Janelas redondas. E a

igreja de Santa Maria está cheia delas!

O bibliotecário rabiscou algo num pedaço de papel. Era uma

versão alternativa, rápida, que me estendeu nervoso com a

esperança de que eu a aprovasse. Se estivesse com a razão, todo o

tempo tínhamos a solução diante de nossos narizes. Segundo o

gufo, nosso "conte-lhe os olhos / mas não olhe para a cara" também

podia ser entendido como "conte-lhe as janelas, mas não olhe sua

fachada".

Devíamos reconhecer: embora forçado, o texto tinha um

sentido esmagador.

A parte exterior da igreja de Santa Maria estava, com efeito,

cheia de óculos, de janelas redondas desenhadas por um certo

Guiniforte Solari de acordo com o mais puro gosto lombardo

estimulado pelo Mouro. Havia janelas por todas as partes, até

mesmo encaixadas no contorno da novíssima cúpula bramantina

sob a que eu rezava há uma semana. Podia ser tão simples? Frei

Alessandro não tinha dúvida:

- Vê? É a fachada lateral, padre Agustín! - voltou a insistir. - A

segunda frase confirma: In latere nominis mei notam rinvenies.

Deve-se buscar a cifra de seu nome nas costas! Contar as janelas

de um único lado, sem considerar as da fachada! Aí está sua cifra!

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Foi o melhor momento de minha estadia em Milão.

14

Ninguém percebeu. Nenhum dos vendedores, cambistas ou

frades que vagueavam naquele ocaso pelos arredores de San

Francesco, il Grande, prestou atenção no indivíduo malvestido que

entrou às pressas na igreja dos franciscanos. Era véspera de

feriado, dia de mercado, e os milaneses tinham de se abastecer de

carne e mercadorias para os dias de luto oficial que se avizinha-

vam. Além disso, a notícia da morte de soror Verônica da Binasco

correu como rastilho de pólvora pela cidade, ocupando boa parte

das conversações e desencadeando um apaixonado debate sobre

seus verdadeiros poderes como visionária. Em semelhantes

circunstâncias, era lógico que um vagabundo não lhes despertasse

a atenção. Mas, aqueles néscios se equivocaram mais uma vez. O

mendigo que entrou em San Francesco não era um qualquer. Tinha

os joelhos arroxeados por horas de penitência e a cabeça

tonsurada com esmero como prova de devoção. Tratava-se com

efeito de um homem temente a Deus, um varão de coração puro

que atravessou, tremendo, o umbral da porta grande da igreja dos

franciscanos, certo de que alguns desses vizinhos supersticiosos,

talvez impressionados pelos presságios de soror Verônica, iam

delatá-lo cedo ou tarde. Não lhe era difícil imaginar o que estava a

ponto de se desencadear: alguém, sem muito tardar, correria a

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informar o sacristão da presença de outro mendigo no templo. O

sacristão informaria o diácono que, também sem demora, avisaria

o verdugo. Há semanas as coisas ocorriam assim, e ninguém

parecia se importar. Os falsos mendigos que entraram no templo

antes dele desapareceram sem deixar rastro. Por isso, estava certo

de que não sairia vivo dali. E no entanto, era um preço que ia

pagar a gosto... Sem respirar muito, o homem da roupa surrada

deixou para trás a dupla fila de bancos que ladeavam a nave

principal e acelerou o passo até o altar-mor. Não se via uma só

alma na igreja. Melhor. De fato, já quase podia sentir a presença

do Santo. Jamais se sentira tão perto de Deus. Ele estava perto. A

essa hora a luz filtrada pelos vitrais era a ideal para apreciar todos

os detalhes do "milagre". O peregrino aguardara tanto para chegar

até aquele retábulo e render homenagem à Opus Magnum que as

lágrimas lhe saltavam dos olhos, de emoção. E não em vão. Enfim,

lhe fora permitido ver uma obra de que poucas pessoas em Milão

conheciam o verdadeiro nome: a Maestà.*

*[Majestade. Era o nome original da composição de Leonardo, A

Virgem dos rochedos.]

Era esse o fim do caminho?

O falso vagabundo deduzia assim.

Aproximou-se com cautela. Ouvira descrever tantas vezes a

Obra que as vozes dos que o instruíram sobre os detalhes ocultos,

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sobre sua verdadeira chave de leitura, acotovelavam-se agora na

sua memória, ofuscando-lhe a razão. O quadro, de 189 x 120

centímetros, ajustado como uma luva na abertura do altar previsto

para ele, era inequívoco: na parte de baixo duas crianças de pouca

idade se olhavam sem desviar os olhos. Uma mulher de rosto

sereno protegia ambos com seus braços enquanto um anjo solene,

Uriel, apontava o leito do Pai com um dedo firme e acusador.

"Quando contemplares esse gesto confirmarás a verdade que foi

revelada a você", acreditava ouvir ainda. "O olhar do anjo te dará

razão."

Seu coração se acelerou. Ali, na solidão absoluta do templo, o

peregrino esticou a mão com certo temor, como se pretendesse se

unir para sempre àquela cena divina. Era exato. Exato como as

bondades de sua fé. Os que peregrinaram em segredo até aquele

lugar antes dele não mentiam. Ninguém mentiu. Aquela obra do

mestre Leonardo continha as chaves para culminar a busca

milenária da verdadeira religião.

O peregrino lançou um novo olhar sobre o notável óleo

quando de repente algo atraiu sua atenção. Que estranho. Quem

pintara um halo sobre as cabeças dos três personagens

evangélicos? Acaso não lhe disseram seus irmãos que aquele

adorno supérfluo, fruto de mentes retrógradas e ávidas de

prodígios, fora omitido deliberadamente pelo mestre pintor? Então,

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o que faziam ali? O falso mendigo se assustou. Os halos não eram a

única alteração da Opus Magnum. Onde estava o dedo de Uriel

assinalando o verdadeiro Messias? Por que a mão descansava

sobre o regaço em vez de assinalar o autêntico Filho de Deus? E

que razão obrigava o anjo a não olhar já para o espectador?

A sensação vertiginosa de horror cresceu até se apoderar do

peregrino. Alguém manipulara a Maestà.

— Dúvida, não é certo?

O vagabundo não moveu um só músculo. Ficou gelado ao

escutar uma voz cavernosa e seca às suas costas. Não ouvira

guinchar os gonzos da porta da igreja, de maneira que o intruso

devia estar observando-o há um bom tempo.

— Já sei que você é como os demais. Por algum motivo

obscuro vocês, hereges, vêm em manadas à casa de Deus. Embora

atraídos pela luz, são incapazes de reconhecê-la.

— Hereges? — sussurrou, paralisado.

— Oh, vamos! Acreditavam que não íamos perceber?

A língua do peregrino não conseguiu articular nenhuma

palavra mais.

— Pelo menos desta vez não achará o consolo de rezar diante

de sua desprezível imagem.

Sua pulsação estava fora de controle. Chegara sua hora.

Estava aturdido, furioso. Sentia-se enganado por arriscar a vida

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para se prostrar diante de uma fraude. O quadro que tinha à frente

dos olhos não era a Opus Magnum. Não era a Maestà prometida.

— Não pode ser... — murmurou.

O desconhecido riu.

— É fácil de entender. Dar-lhe-ei a graça do conhecimento

antes de enviá-lo para o inferno. Leonardo pintou a Maestà em

1483, há quatorze anos. Os franciscanos não ficaram contentes

com ela. Esperavam um quadro que reforçasse seu credo na

Imaculada Concepção e que servisse para iluminar este altar. Em

compensação apresentou uma cena que não aparece em qualquer

evangelho e reúne São João e Cristo em algum momento da fuga

para o Egito.

— A Mãe de Deus, João, Jesus e o arcanjo Uriel. O mesmo que

avisou Noé do Dilúvio. Que mal vêem nisso?

— Todos são iguais — respondeu a voz em tom amargo. —

Leonardo aceitou modificar o quadro e nos entregou este, que

apresenta algumas modificações em relação ao primeiro. Eliminou

os detalhes insolentes.

— Insolentes?

— E como chama uma obra em que não se consegue

distinguir São João de Jesus Cristo, e em que nem a Virgem nem

seu filho estão coroados com a auréola de santidade que lhes

corresponde por direito próprio? Como se entende que as duas

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crianças sagradas sejam idênticas uma à outra? Que espécie de

blasfêmia é essa que procura confundir os crentes?

Uma sensação de alívio permitiu-lhe respirar fundo pela

primeira vez. O verdugo — e estava seguro de que era ele — nada

compreendera. Os irmãos que o precederam e jamais retornaram

devem ter morrido em suas mãos sem revelar a razão daquele

culto discreto, e ele estava disposto a manter seu voto de silêncio

mesmo à custa do próprio sangue.

— Não serei eu quem esclarecerá suas dúvidas — disse com

serenidade, sem se atrever a olhar de frente o dono da voz.

— É uma lástima. Uma verdadeira lástima. Não percebem que

Leonardo os atraiçoou pintando esta nova versão da Maestà? Se

olhar com atenção o quadro à frente verá que os dois meninos

estão já claramente diferentes um do outro. O que está mais perto

da Virgem é São João. Leva sua cruz de haste comprida e reza

enquanto recebe a bênção do outro menino: Cristo. Uriel já não

aponta com o dedo para ninguém, e fica bem claro enfim quem é o

Messias esperado.

- Atraiçoou?

Era possível que o mestre Leonardo desse as costas aos seus

irmãos? O peregrino voltou a esticar a mão para a tela. Chegara

até ali amparado pela multidão que entrava em Milão para assistir

aos funerais de donna Beatrice d’Este, sua protetora. Também ela

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os vendera? Era possível que tudo aquilo por que tanto lutaram

desmoronasse agora?

— Na realidade não necessito que me esclareças qualquer

coisa — prosseguiu a voz desafiadora. — Sabemos já quem inspirou

em Leonardo esta maldade, e graças ao Pai Eterno esse miserável

está debaixo da terra há algum tempo. Não duvide: Deus castigará

frei Amadeu de Portugal e seu Apocalipsis Nova como deve. E, com

ele, seu ideal da Virgem entendida não como mãe de Cristo, mas

como símbolo da sabedoria.

- E, no entanto, é um símbolo belo - protestou. - Um símbolo

partilhado por muitas pessoas. Ou pensam condenar todos aqueles

que pintem a Virgem com o menino Jesus e o menino João?

- Se induzem à confusão nas almas dos crentes, sim.

- E de verdade acreditam que poderão se aproximar do

mestre Leonardo, de seus discípulos ou do pintor Luino?

- Bernardino de Lupino? Aquele a que também chamam

Lovinus ou Luini?

- Conhece-o?

- Conheço suas obras. É um jovem imitador de Leonardo que

pelo visto comete os mesmos erros. Não duvide: também ele cairá.

- O que pensa fazer? Matá-lo?

O peregrino notou que algo ia mal. Um atrito metálico, como

o que faria uma espada ao sair de sua bainha, soou em suas costas.

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Seus votos o impediam de carregar arma, de modo que elevou uma

prece à falsa Maestà, pedindo sua proteção.

- Também me matará?

- O Augure matará os imprudentes.

- O Augure...?

Não terminou de formular a pergunta quando uma estranha

convulsão agitou suas entranhas. A afiada lâmina de um enorme

sabre de aço perfurou suas costas. O peregrino soltou um estertor

terrível. Um palmo de metal partiu em dois o coração. Foi uma

sensação aguda, fugaz como um relâmpago, que o fez abrir os

olhos de puro terror. O falso vagabundo não sentiu dor, e sim frio.

Um abraço gélido que o fez cambalear sobre o altar e cair sobre os

joelhos arroxeados.

Foi a única vez que viu o agressor.

O Augure era uma sombra corpulenta, de carvão, sem

expressão no rosto. Começava a anoitecer na igreja. Tudo se

tornava escuro. Até o tempo começou a ficar mais lento de maneira

estranha. Ao tocar o degrau do altar, a trouxa que o peregrino

levava ao ombro se desfez, deixando cair dois pedaços de pão e um

maço de estampas com curiosas imagens. A primeira representava

uma mulher com o hábito de São Francisco, uma coroa tríplice na

cabeça, uma cruz como a de João na mão direita e um livro fechado

na esquerda.

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- Maldito herege! - resmungou o Augure ao ver aquilo.

O peregrino devolveu um sorriso cínico, enquanto via como o

Augure apanhava a estampa e molhava uma pena em seu sangue

para anotar algo no reverso.

- Jamais... abrirá... o livro da sacerdotisa.

Daquela posição contrafeita, com o coração bombeando

sangue aos borbotões no lajeado, conseguiu vislumbrar algo que

lhe passara despercebido até agora: embora Uriel não apontasse já

para João Batista como na verdadeira Opus Magnum, seu olhar

entreaberto dizia tudo. A "chama de Deus", com os olhos

semicerrados, continuava apontando o sábio do Jordão como o

único salvador do mundo.

- Leonardo - consolou-se antes de desaparecer na obscuridade

eterna - não os atraiçoara apesar de tudo. O Augure mentira.

15

Esperamos as primeiras luzes do sábado, 14 de janeiro, para

sair do convento e percorrer com tranqüilidade a fachada

ladrilhada de Santa Maria delle Grazie. Frei Alessandro, que

demonstrara certa tendência natural para as adivinhações, estava

de novo exultante. Era como se a geada que horas antes petrificava

aquela parte da cidade não o acompanhasse. Às seis e meia, logo

depois dos ofícios, o bibliotecário e eu estávamos preparados para

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sair à rua. Ia ser uma operação simples, que não levaria mais de

dois minutos mas que, no entanto, perturbava-me profundamente.

Frei Alessandro reparou, mas decidiu ficar quieto. Sabia que fosse

qual fosse a "cifra do nome" que obtivéssemos contando os olhos

da fachada continuaríamos sem resolver o problema. Teríamos um

número; talvez o do valor do nome de nosso informante anônimo,

embora não pudéssemos estar seguros disso. E se fosse a cifra

total das letras de seu sobrenome? Ou seu número de cela? Ou...?

- Esqueci-me de dizer algo - interrompeu-me enfim.

- De que se trata, irmão?

- De algo que talvez lhe traga alívio: quando tivermos esse

bendito número, ainda faltará muito o que fazer se quisermos

chegar ao fundo de sua adivinhação.

- É certo.

- Pois bem, deve saber que Santa Maria acolhe a comunidade

de frades mais acostumada a resolver adivinhações de toda a Itália.

Sorri. O bibliotecário, como tantos outros servos de Deus,

jamais ouvira falar de Betânia. Era melhor assim. Mas, frei

Alessandro insistiu em me explicar as razões de sua orgulhosa

afirmação: garantiu que o passatempo favorito daquela trintena de

dominicanos de elite era, precisamente, resolver hieróglifos. Havia-

os bastante habilidosos nessa arte, e até não poucos se divertiam

criando-os para os demais.

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- Os bosques geram filhos que depois os destroem. Quem são?

- enunciou o cantador, diante de minha inapetência para

acrescentar jogos à nossa missão. - Os cabos dos machados!

Frei Alessandro não economizou detalhes. De tudo o que me

disse, o que mais me chamou a atenção foi saber que o uso de

adivinhações em Santa Maria não era apenas recreativo. Amiúde

os frades os empregavam em seus sermões, convertendo-os em

instrumentos de doutrinação. Se o que aquele frade dizia não era

exagero, as paredes agasalhavam o maior campo de adestramento

de criadores de enigmas da cristandade, além de Betânia. Por esse

motivo, se o Augure saiu de algum lugar, ali era o local ideal.

- Acredite-me, padre Leyre - o bibliotecário se adiantou aos

meus cálculos. - Quando tiver o número e não souber o que fazer

com ele, consulte qualquer irmão nosso. Quem em menos pensar,

terá uma solução.

- Qualquer um, está dizendo?

O bibliotecário torceu o semblante.

- É claro! Qualquer um! Seguramente quem fizer a ronda do

pátio saberá mais de adivinhações do que um romano como o

senhor. Pergunte sem receio ao prior, ao padre cozinheiro, aos

responsáveis pela dispensa, aos copistas, a todos! Mas, cuide para

que não o ouçam muito e o repreendam por romper o voto de

silêncio que todo monge deve respeitar.

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E dizendo isto retirou a tranca que bloqueava o acesso

principal do convento.

Uma pequena avalancha de neve caiu do telhado,

esborrachando-se com estrondo aos nossos pés. Para ser sincero,

não esperava que algo tão banal como esquadrinhar a fachada de

uma igreja de madrugada resultasse exercício delicado. O frio

intenso convertera a neve em perigosa pista de gelo. Tudo estava

branco, deserto e envolto num silêncio que intimidava. Só a idéia

de se apoiar ao muro de azulejo do mestre Solari e costear o fosso

que circundava o terceiro claustro assustaria o mais valente: um

escorregão fora de tempo poderia quebrar a nuca ou nos deixar

aleijados para o resto de nossos dias. E isso para não dizer como

seria difícil explicar aos frades o que fazíamos àquela hora longe

de nossas orações, arriscando nossas vidas fora dos muros do

convento.

Não pensamos mais. Com cautela, tratando de molhar as

sandálias só o indispensável, avançamos devagar entre as placas

de gelo rumo ao centro da fachada, paralelamente à rua.

Atravessamos a rua quase de gatinhas e quando frei Alessandro e

eu subimos a uma distância prudente, com perspectiva sobre o

conjunto do prédio, nós a contemplamos. Uma iluminação tênue,

vinda de dentro, fazia as janelas brilharem como os olhos de um

dragão. Ali, de fato, desenvolvia-se uma série de janelas redondas,

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de olhos, que adornavam a igreja em todo seu comprimento. A

fachada ficava na volta da esquina, uns passos adiante, com a

"cara" virada para outro lado.

- Mas, não olhes para a cara... - bati com os dentes.

Gelado de frio, escondendo as mãos nas mangas do hábito de

lã, contei: um, dois, três... sete.

Aquele sete me desconcertou. Sete versos, sete olhos... A

cifra do nome do anônimo remetente era, sem dúvida, esse maldito

sete recorrente.

- Mas sete o quê? - perguntou o bibliotecário.

Encolhi os ombros.

16

O que aconteceu em seguida iluminou meu caminho.

- Então é o padre romano que acaba de se instalar em nossa

casa?

O prior de Santa Maria delle Grazie, Vicenzo Bandello,

sondou-me com o semblante severíssimo antes de me convidar a

entrar na sacristia. Enfim conhecia o homem que redigira o

informe sobre a morte de Beatrice d'Este para a Betânia.

- O irmão Alessandro me falou muito do senhor - prosseguiu. –

Ao que parece é um homem estudioso. Um intelectual atento, com

força de vontade, com quem esta comunidade poderá se

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enriquecer enquanto dure sua permanência entre nós. Como disse

que se chama?

- Agustín Leyre, prior.

Bandello acabara de concluir os ofícios da hora terceira, com

aquele Sol insuficiente gravitando sobre o vale de Padana. Estava

prestes a se retirar, para preparar o sermão do funeral de donna

Beatrice, quando o abordei. Foi um impulso irracional só em parte.

Não insistira frei Alessandro que eu perguntasse a qualquer irmão

da comunidade sobre minha adivinhação? Não era ele quem me

assegurara que o monge menos esperado poderia ter uma resposta

adequada? E quem poderia ser mais inesperado do que o abade?

Tomei a decisão, logo depois de regressar gelado do exterior

em busca de algum calor intramuros no convento. Quis o acaso que

eu farejasse na sacristia e o padre Bandello se encontrasse nela. O

bibliotecário me deixou sozinho. Acabara de se ausentar com o

pretexto de descer à cozinha em busca de alguma provisão para

nossa nova sessão de trabalho e foi então que senti a oportunidade.

Frei Vicenzo Bandello devia ter mais de sessenta anos, o rosto

enrugado e pregueado como um velame recolhido ao mastaréu, um

queixo forte e uma surpreendente capacidade de permitir que seus

gestos denunciassem cada uma de suas emoções. Era ainda mais

baixo do que supus na noite em que o vi na igreja. Movia-se

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nervoso de um para outro dos armários de portas pintadas da

sacristia, duvidando qual fechar primeiro...

- Diga-me, padre Agustín - interveio enquanto recolhia o

cálice e a patena da última missa. - Tenho uma curiosidade: qual é

seu trabalho em Roma?

- Meu cargo é no Santo Ofício.

- Sim, sim... E, segundo entendi, nos momentos livres de suas

obrigações se distrai resolvendo adivinhações. Muito bem - sorriu. -

É certo que nos entenderemos.

- É exatamente disso que gostaria de falar consigo.

- De verdade?

Concordei. Se o prior era a eminência que o bibliotecário

descreveu, era provável que não lhe escapasse a presença do

Augure em Milão. No entanto, devia ir com cautela. Talvez ele

mesmo fosse o redator dos bilhetes anônimos, mas temesse revelar

sua identidade até se assegurar a respeito de minhas verdadeiras

intenções. Ou, podia ser pior: talvez não conhecesse sua existência,

mas se eu a revelasse o que o impediria de alertar o Mouro de

nossa operação?

- Diga-me algo mais, padre Leyre. Como amante da

elucidação de segredos, já ouviu falar da arte da memória,

verdade?

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Bandello fez aquela pergunta como sem querer, enquanto eu

tentava em vão determinar seu grau de implicação no assunto das

cartas. Talvez pecasse por excesso de zelo. De fato, cada novo

monge que eu conhecia em Santa Maria engordava minha lista de

suspeitos. E frei Vicenzo não seria exceção. Para dizer a verdade,

de todas as opções possíveis, dos quase trinta frades que residiam

naquele lugar, o prior era o homem que melhor se encaixava no

perfil do Augure. Não sei como não percebemos antes em Betânia.

Até o nome, Vicenzo, tinha sete letras. Nem uma a mais. Como as

sete linhas do endiabrado Óculos ejus dinumera ou as sete janelas

da fachada sul da igreja. Percebi o detalhe quando comprovei o

desembaraço com que abria e fechava portas e relicários do apo-

sento e mantinha um grande molho de chaves sob o hábito. O prior

era dos poucos que tinha acesso aos cálculos e projetos do duque

para Santa Maria, e talvez o único que utilizasse um correio oficial

e seguro para fazer chegar suas cartas a Roma.

- Então? - insistiu, cada vez mais divertido diante de minha

atitude pensativa. - Ouviu ou não falar dessa arte?

Sacudi horizontalmente a cabeça enquanto tentava encontrar

nele alguma expressão que confirmasse meu julgamento.

- Pois é uma lástima! - prosseguiu. - Poucos sabem que nossa

ordem deu grandes estudiosos em tão digna disciplina.

- Jamais soube dela.

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- E certamente tampouco sabe que o próprio Cícero

mencionou essa arte em seu De oratore, ou que um tratado ainda

mais antigo, Ad Herennwm, detalha-a e nos oferece a fórmula

exata para se lembrar em seguida tudo o que alguém deseje...

- Oferece-nos? Aos dominicanos?

- Claro que sim! Há trinta ou quarenta anos, padre Leyre,

muitos irmãos nos entregamos ao seu estudo. O senhor mesmo,

que trabalha diariamente com expedientes e documentos

complexos, nunca sonhou em arquivar na memória um texto, uma

imagem, um número, sem se preocupar em repassar outra vez

porque já sabe que o levará consigo para sempre?

- Claro que sim. Mas só os mais privilegiados podem...

- E, tendo necessidade para sua atividade - atalhou-me -, não

se preocupou em averiguar qual é a melhor fórmula para obter

semelhante prodígio? Os antigos, que não tinham a mesma

capacidade para fazer cópias de livros do que nós, inventaram um

recurso magistral: imaginaram "palácios de memória" nos quais

juntar seus conhecimentos. Também não ouviu falar deles,

verdade?

Neguei com a cabeça, mudo de perplexidade.

- Os gregos, por exemplo, imaginavam um prédio grande,

cheio de aposentos e galerias suntuosas, e atribuíam a cada janela,

arcada, colunata, escada ou sala um significado diferente. No

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vestíbulo "guardavam" seus conhecimentos de gramática, no salão

os de retórica, na cozinha a oratória... E para lembrar qualquer

coisa previamente armazenada ali, só tinham de recorrer a este

canto do palácio com sua imaginação e extrair, em ordem inversa,

o que foi colocado. Engenhoso, não é certo?

Olhei para o prior sem saber o que dizer. Estava dando corda

para que eu perguntasse sobre as cartas que recebemos em Roma

ou não? Devia seguir o conselho de frei Alessandro e consultá-lo,

sem rodeio, sobre minha adivinhação? Temeroso de perder

prematuramente sua confiança, deslizei uma insinuação:

- Diga-me uma coisa, padre Vicenzo; e se em lugar de um

"palácio da memória" usássemos uma "igreja da memória"?

Poderíamos, para dar um exemplo, disfarçar o nome de uma

pessoa numa igreja de pedra e azulejo?

- Vejo que é perspicaz, frei Agustín - piscou um olho com

certa malícia. - E prático. O que os gregos criaram com palácios

imaginários, os romanos e até os egípcios tentaram com edifícios

reais. Se aqueles que entravam neles conheciam o "código de

memória" exato, poderiam caminhar por suas salas enquanto

recebiam uma valiosa informação.

- E numa igreja? - insisti.

- Sim, também poderia ser feito numa igreja - concedeu. –

Mas deixe-me ensinar-lhe algo antes de explicar como funcionaria

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um mecanismo desse tipo. Como eu dizia, nos últimos anos padres

dominicanos de Ravena, Florença, Basiléia, Milão ou Friburgo

estamos trabalhando num sistema de memorização que repousa

sobre imagens ou estruturas arquitetônicas especialmente

preparadas para isso.

- Preparadas?

- Sim, adaptadas, retocadas, enfeitadas com detalhes

decorativos que parecem supérfluos aos profanos, mas são

fundamentais para quem conhece o abecedário secreto escondido.

Compreenderá com um exemplo, padre Agustín.

O prior tirou de sob o hábito um papel dobrado que alisou

sobre a mesa das oferendas. Era uma folha não maior do que a

palma de sua mão, branca, com manchas de lacre numa ponta.

Alguém gravara nela uma figura feminina com o pé esquerdo

apoiado numa escada. Aparecia rodeada de pássaros e objetos

estranhos pendurados em seu peito e uma inscrição latina sob os

pés que a identificava plenamente. A "senhora Gramática" - e é

dela que se tratava - olhava para lugar nenhum com expressão

ausente.

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- Recentemente acabamos uma dessas imagens que, adiante,

servirá para lembrar as diferentes partes da arte da gramática. É

esta - disse, apontando aquele extravagante desenho. - Quer ver

como funciona?

Concordei.

- Olhe bem - excitou-me o prior. - Se alguém nos perguntasse

agora mesmo sobre os termos em que se fundamenta a gramática e

tivéssemos esta gravura diante de nossos olhos, saberíamos o que

responder sem vacilar.

- Deveras?

Bandello avaliou minha incredulidade.

- Nossa solução seria precisa: praedicatio, applicatío e

continentia. Sabe por quê? Fácil: porque "li" nesta imagem.

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O prior se inclinou sobre a folha e começou a traçar círculos

imaginários ao seu redor, apontando partes diferentes do desenho:

- Olhe-a bem: praedicatio está assinalada pelo pássaro do

braço direito, que começa por "P", e porque seu bico tem a forma

dessa letra. E o atributo mais importante da figura, por isso é

mostrado com duas imagens, além de ser o emblema de nossa

ordem. No fim das contas, somos pregadores, não é verdade?

Fixei-me no gracioso galhardete segurado pela "senhora

Gramática", dobrado sobre si mesmo formando o "P" de que falava

Bandello.

- O atributo seguinte - prosseguiu -, applicatio, está

representado pela Aquila-, a águia segurada pela Gramática na

mão. Aquila e applicatio começam pela letra "A", como o cérebro

do iniciado na ars memoriae estabelecerá logo a relação. Quanto a

continentia, é vista quase escrita no peito da mulher. Se é capaz de

ver esses objetos, um arco, uma roda, um arado e um martelo,

como se fossem letras, lerá logo c-o-n-t... Continential

Assombroso. Numa imagem de aspecto inocente, alguém

conseguira concentrar uma teoria tão completa da gramática. De

repente me passou pela cabeça que os livros impressos às centenas

nas gráficas de Veneza, Roma ou Turim incluíam gravuras em seus

frontispícios que poderiam conter mensagens ocultas que

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passariam despercebidas a nós, leigos. Na Secretaria de Chaves

nunca nos ensinaram algo semelhante.

- E os objetos que estão pendurados ou são sustentados pelos

pássaros? Também têm algum significado? - perguntei, ainda

espantado por aquela revelação.

- Meu caro irmão: tudo, absolutamente tudo, tem um

significado. Nesta época em que cada senhor, cada príncipe ou

cardeal têm tantas coisas para ocultar dos outros, seus atos, as

obras de arte que encomenda ou os escritos que protege escondem

coisas dele.

O prior encerrou aquela frase com um sorriso enigmático. Foi

minha oportunidade.

- E o senhor? - eu disse em voz baixa. - Também oculta algo?

Bandello me olhou sem perder o semblante irônico. Acariciou

o cocuruto perfeitamente barbeado e arrumou distraidamente os

cabelos.

- Um prior também tem seus segredos, de fato.

- E os esconderia numa igreja já construída? - prossegui em

meu desafio.

- Oh! - saltou. - Seria muito fácil. Primeiro numeraria tudo:

paredes, janelas, torres, sinos... A cifra é o mais importante!

Depois, com a igreja reduzida a números, buscaria aqueles que

poderiam se casar com letras ou palavras adequadas. E os

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compararia tanto no número de caracteres formados por uma

palavra como pelo valor dessa palavra quando reduzida por sua vez

à números.

- Isso é gematria, padre! A ciência secreta dos judeus!

- É gematria, de fato. Mas, não é um saber desprezível, como

o senhor dá a entender com tanto escândalo. Jesus era judeu e

aprendeu gematria no templo. Como não saberíamos que Abraão e

Misericórdia são palavras numericamente gêmeas? Ou que a

escada de Jacó e o monte Sinai somam, em hebraico, cento e trinta,

o que nos indica que os dois são lugares de ascensão aos céus

designados por Deus?

- Quer dizer - atalhei - que se tivesse de esconder seu nome,

Vicenzo, na igreja de Santa Maria, escolheria alguma

particularidade do templo que somasse sete, o mesmo que as sete

letras de seu nome.

- Exato.

- Como, por exemplo... sete janelas? Sete olhos?

- Seria uma boa opção, embora eu escolhesse algum dos

afrescos que adornam a igreja. Permitem acrescentar mais matizes

do que uma simples sucessão de janelas. Quanto mais elementos se

somarem a um espaço, mais versatilidade se concederá à arte da

memória. E a fachada de Santa Maria é muito simples para isso.

- Verdade ou impressão?

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- Verdade. Além disso, o sete é um número sujeito a muitas

interpretações. É a cifra sagrada por excelência. A Bíblia recorre a

ele com freqüência. Não me ocorreria usar uma cifra tão ambígua

para mascarar meu nome.

Bandello parecia sincero.

- Façamos uma combinação - acrescentou de surpresa. -

Confio ao senhor a adivinhação na qual minha comunidade

trabalha agora e o senhor me confia a sua. Estou certo de que

poderemos nos ajudar mutuamente.

Como é natural, aceitei.

17

O prior, satisfeito, pediu-me que o acompanhasse ao

convento. Desejava me mostrar algo. De repente, com o passo

rápido, atravessamos o altar-mor, deixamos para trás o coro e a

tribuna que estava sendo enfeitada para o funeral de donna

Beatrice, e enveredamos pelo longo corredor que desembocava no

Claustro dos Mortos. O convento era um lugar sóbrio, com paredes

de azulejo e colunas de granito organizadas de forma impecável ao

longo de corredores cuidadosamente pavimentados. A caminho de

nosso misterioso destino, frei Vicenzo fez um sinal ao padre

Benedetto, o copista caolho, que, como de costume, passeava sem

rumo entre as arcadas, com o olhar perdido num breviário que não

consegui identificar.

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- E então? - resmungou ao se sentir reclamado pelo superior.

– Outra vez de visita à Opus Diabolo?. Seria melhor que a

sepultasse sob uma camada de cal!

- Por favor, irmão! Quero que me acompanhe - ordenou-lhe o

prior. - Nosso hóspede precisa de alguém que saiba contar

histórias deste lugar, e ninguém melhor do que você. É o frade

mais antigo da comunidade. Mais ainda do que as paredes desta

casa.

Histórias, hein?

O único olho do ancião brilhou de emoção ao perceber meu

interesse. Estava enfeitiçado por aquele homem que parecia se

divertir mostrando sua deformidade ao mundo, exibindo com

orgulho a chaga que o órgão perdido deixou no rosto.

- Nesta casa se contam muitas histórias, sem dúvida. Sabe

por que chamamos este pátio de Claustro dos Mortos? - perguntou,

enquanto se unia aos nossos passos. - É fácil: porque aqui

sepultamos nossos frades para que regressem à terra tal como

vieram ao mundo. Já sabe, sem honras nem placas que os

recordem. Sem vaidades. Só com o hábito de nossa ordem.

Chegará o dia em que todo este pátio ficará semeado de ossos.

- É o seu cemitério?

- Muito mais do que isso. É nossa ante-sala para o céu.

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Bandello já estacara diante de um enorme portão de madeira

de folha dupla. Era um anteparo de aspecto rijo, que exibia uma

forte fechadura de ferro, na qual o prior não tardou a inserir outra

das chaves de seu molho. Benedetto e eu nos olhamos. Minha

pulsação se acelerou: ao vê-la, percebi que era exatamente o que o

abade queria me mostrar. Frei Alessandro já me pusera na pista e,

naturalmente, preparei-me para o grande momento. Atrás, numa

grande sala localizada abaixo do solo da biblioteca devia estar o

famoso refeitório de Santa Maria delle Grazie a que Leonardo

proibira o acesso dos monges. Se eu não me enganava, aquela era

a razão última de minha presença em Milão e o motivo que levara o

Augure a escrever suas cartas ameaçadoras à Casa da Verdade.

Uma nova dúvida me assaltou: Bandello e eu acaso estávamos

com a mesma adivinhação, sem saber? 1

- Se este lugar já estivesse benzido - o rosto do prior se

iluminou enquanto empurrava o portão -, lavaríamos antes as mãos

e o senhor esperaria aqui fora até que eu o autorizasse a entrar...

- Mas não está! - reclamou o caolho.

- Não. Ainda não. Mas isso não impede que sua atmosfera

sagrada impregne nossa alma.

- Atmosfera sagrada! Bobices!1 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

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E, dizendo isto, entramos os três.

Tal como supus, acabara de pôr o pé no futuro refeitório do

convento. Era um lugar obscuro e frio, coberto por grandes

papelões que descansavam apoiados nas paredes e dominado pelo

caos. Cordas e azulejos, biombos, cubos e - coisa curiosa - uma

mesa posta para um almoço, servida e coberta por uma grande

toalha branca, completavam um recinto que parecia estar há muito

no esquecimento. A mesa foi o que mais me chamou a atenção

porque era, com segurança, o único rastro de ordem em meio

àquela desordem. Nada indicava que fora usada. Os pratos

estavam limpos e toda a baixela aparecia coberta por uma fina

camada de poeira, resultado de semanas de abandono.

- Peço-lhe que não se assuste pelo lamentável estado de nosso

refeitório, irmão Agustín - disse Bandello enquanto arremangava o

hábito e evitava parte daquele mar de tábuas. - Este será nosso

refeitório. Estamos quase três anos assim, pode imaginar? Os

frades só podem entrar no recinto com autorização expressa do

mestre Leonardo, que o mantém fechado até terminar seu

trabalho. Enquanto isto, nosso mobiliário se estraga naquele canto,

em meio à sujeira e deste detestável cheiro de pintura.

- É um inferno, já não disse? Um inferno com diabo e tudo...

- Benedetto, por Deus! - recriminou-o o prior.

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- Não se preocupe. Em Roma estamos sempre em obras; este

ambiente me resulta familiar.

Separada do resto por biombos de madeira, numa das laterais

do imenso salão, adivinhava-se um tabuleiro em forma de "U",

sobre o qual estavam dispostas grandes banquetas envernizadas de

preto. Os restos de um fino baldaquim de madeira descansavam

também naquele espaço obscuro, apodrecendo por culpa do mofo.

À medida que íamos afastando bugigangas, Bandello dizia:

- Não há trabalho de decoração neste convento que não sofra

atraso. Mas, o pior é o desta sala. Parece impossível acabar com

ele.

- A culpa é de Leonardo - voltou a resmungar Benedetto. –

Leva meses brincando conosco. Acabemos com ele!

- Cale-se, eu lhe peço. Deixe-me explicar nosso problema para

frei Agustín.

Bandello olhou à direita e à esquerda, para se assegurar de

que ninguém mais escutava. A precaução era absurda: desde que

deixamos a igreja não cruzamos com nenhum irmão, à exceção do

ciclope, e era pouco provável que algum deles estivesse escondido

ali quando devia estar se preparando para o funeral ou fazendo

seus deveres diários. No entanto, o prior parecia inseguro,

atemorizado. Talvez por isso baixou tanto a voz quando se inclinou

no meu ouvido:

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- Logo compreenderá minha precaução.

- Deveras?

Frei Vicenzo concordou, nervoso.

- Mestre Leonardo, o pintor, tem fama de ser um homem

muito influente e poderia afastar-me do caminho se soubesse que

permiti sua entrada sem autorização...

- Refere-se ao mestre Leonardo da Vinci?

- Não grite seu nome! - balbuciou. - Estranha isso? O duque

em pessoa o chamou há quatro anos para que ajudasse a decorar

este convento. O Mouro deseja que o panteão familial dos Sforza se

situe sob a abside da igreja e necessita um entorno magnífico,

incontestável, para justificar sua decisão diante da família. Por isso

o contratou. E acredite quando digo que desde que o duque

embarcou neste projeto não houve um só dia de descanso nesta

casa. Nem um só - repetiu Benedetto. - E sabe por quê? Porque

esse mestre que sempre se veste de branco, a quem nunca verá

comer carne ou sacrificar um animal, é na realidade uma alma

perversa. Introduziu uma heresia sinistra em seus trabalhos nesta

comunidade e nos desafiou a encontrá-la antes que os dê por

prontos. E o Mouro o apoia!

- Mas Leonardo não é...

- Um herege? - me cortou. - Não, claro. À primeira vista não

parece. É incapaz de fazer dano a uma mosca, passa o dia

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meditando ou tomando notas em seus cadernos, e passa a

impressão de ser um varão sábio. Mas, estou seguro de que o

mestre não é um bom cristão.

- Posso perguntar uma coisa?

O prior consentiu.

- É verdade que mandou reunir toda informação possível

sobre o passado de Leonardo? Por que nunca confiou nele? O

irmão bibliotecário me pôs ao corrente.

- Foi logo depois que nos desafiou. O senhor compreenderá

que nos sentimos obrigados a pesquisar seu passado para saber

que tipo de homem enfrentávamos. O senhor teria feito a mesma

coisa se ele tivesse desafiado o Santo Ofício.

- Suponho que sim.

-Encarreguei frei Alessandro de traçar um perfil de sua obra

para que pudéssemos nos adiantar a seus passos. Foi assim que

averiguamos que os franciscanos de Milão já tiveram sérios

problemas com o mestre Leonardo. Ao que parece, usou fontes

pagãs para documentar seus quadros, induzindo os fiéis a graves

equívocos.

- Frei Alessandro me falou disso, e também de certo livro

herético de um tal frei Amadeu.

- O Apocalipsis Nova.

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- Exato. Mas, esse livro é apenas uma pequena amostra do

que ele encontrou. Nada lhe falou dos escrúpulos de Leonardo em

relação a certas cenas bíblicas?

- Escrúpulos?

- Isso é bastante revelador. Até agora não fomos capazes de

localizar uma única obra de Leonardo que mostre a crucificação.

Nem uma. Tampouco, alguma que reflita algumas das cenas da

Paixão de Nosso Senhor.

- Talvez nunca lhe encomendaram algo assim.

- Não, padre Leyre. O toscano evitou pintar essa classe de

episódios bíblicos por algum motivo obscuro. No início, pensamos

que podia ser judeu, porém, mais tarde, descobrimos que não. Não

respeitava as normas do shabat, tampouco outros costumes

hebraicos.

- E então?

- Bem... Creio que essa anomalia se relaciona com o problema

que nos ocupa.

- Fale-me dele. Frei Alessandro nunca mencionou que

Leonardo os desafiou.

- O bibliotecário não estava presente quando aconteceu. E, na

comunidade, só meia dúzia de frades conhecem os fatos.

Escuto.

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- Foi durante uma das visitas de cortesia que donna Beatrice

fazia a Leonardo, há uns dois anos. O mestre acabara de pintar São

Tomé em sua Última ceia. Representou-o como um homem barbudo

que levanta o dedo indicador para o céu, perto de Jesus.

- Suponho que é o dedo que depois poria na chaga de Cristo,

uma vez executado, não é?

- Foi o que eu pensei e assim o manifestei a sua alteza, a

princesa d'Este. Mas Leonardo riu de minha interpretação. Disse

que os frades não tínhamos nenhuma idéia de simbolismo e que se

quisesse poderia retratar uma cena do próprio Maomé, ali mesmo,

sem que nenhum de nós percebêssemos.

- Disse isso?

- Donna Beatrice e o mestre riram, mas a nós pareceu uma

ofensa. Mas, o que podíamos fazer? Indispormo-nos com a mulher

do Mouro e com seu pintor favorito? Se o fizéssemos, seguramente

Leonardo nos culparia pelo atraso do trabalho com A última ceia.

O prior continuou:

- Na realidade, eu o desafiei. Quis demonstrar que não era tão

inábil no terreno da interpretação de símbolos como pretendia,

mas pisei num terreno onde jamais deveria entrar.

- A que se refere, padre?

- Naquela época, costumava visitar o palácio Rochetta. Devia

informar o duque sobre os avanços nas obras de Santa Maria. E

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não eram raras as ocasiões em que surpreendia donna Beatrice se

distraindo na sala do trono com um jogo de cartas. As gravuras

eram figuras estranhas, chamativas, pintadas com cores fortes.

Nelas eram representados enforcados, mulheres segurando

estrelas, faunos, papas, anjos com os olhos vendados, diabos...

Logo soube que aquelas cartas era um velho legado da família.

Desenhou-as o antigo duque de Milão, Filippo Maria Visconti, com

a ajuda do condottiero (chefe) Francesco Sforza, em torno de 1441.

Mais tarde, quando ele assumiu o controle do ducado, presenteou

aquele baralho aos filhos, e uma cópia acabou nas mãos de

Ludovico, o Mouro.

- E o que aconteceu?

- Uma daquelas cartas representava uma mulher vestida de

franciscana que segurava um livro na mão. Chamou-me a atenção

porque o hábito que vestia era de varão. Além disso, parecia

grávida. Pode imaginar? Uma mulher grávida com hábito de

franciscano? Parecia uma zombaria. Pois bem. Não sei por que

recordei esse naipe durante aquela discussão com Leonardo e

lancei uma provocação. "Sei o que significa a carta da franciscana",

disse. Recordo que donna Beatrice ficou muito séria. "Que sabe o

senhor?", irritou-se. "É um símbolo que fala da senhora, princesa",

eu disse. Aquilo a interessou. "A franciscana é uma donzela

coroada, o que significa que tem sua mesma dignidade. E está

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gravida. O que anuncia a chegada deste estado de graça para a

senhora.

Essa carta é um anúncio do que lhe reserva o destino."

- E o livro? - perguntei.

- Isso foi o que mais a ofendeu. Disse-lhe que a franciscana

tapava o livro para ocultar que era uma obra proibida. "E que livro

acredita que era - perguntou-me mestre Leonardo - . "Talvez o

Apocalipsis Nova, que o senhor conhece bem", respondi não sem

ironia. Leonardo ficou valente e então lançou seu desafio. "O

senhor não tem idéia", disse. "Claro que esse livro é importante.

Tão ou mais que a Bíblia, mas seu orgulho de teólogo fará com que

nunca o conheça." E acrescentou: "Quando esse futuro filho da

duquesa nascer, já terei acabado de incorporar seus segredos ao

Cenacolo. E garanto que embora estejam diante de seus narizes

jamais poderão lê-los. Essa será a grandeza de meu enigma. E a

prova de sua ignorância."

18

- Quando poderei ver A última ceia? - perguntei ao prior.

Benedetto sorriu.

- Agora mesmo, se quiser - disse. - Está na sua frente. Basta

abrir os olhos.

No início não soube para onde olhar. A única pintura que era

capaz de distinguir naquele refeitório que cheirava a umidade e

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poeira era uma Maria Madalena agarrada aos pés da cruz de

Cristo. Brilhava numa parede do sul do salão e chorava com

amargura ante o olhar extático de São Domingos. Aquela Madalena

tinha os joelhos apoiados numa pedra retangular em que se podia

ler um nome que eu jamais vira: "Io Donatvs Montorfanv P."

- É um trabalho do mestre Montorfano - Bandello me tirou a

dúvida. - Uma obra piedosa, louvável, pronta há quase dois anos.

Mas, não é o que deseja ver.

O prior apontou então a parede oposta. A história da carta e

seu livro secreto me distraíra tanto que quase não era capaz de

decifrar o que viam meus olhos. Um monte de tábuas tapava boa

parte do canto sul do refeitório. No entanto, a escassa claridade

que banhava aquele canto me deixou entrever algo que me

paralisou. De fato, além da barreira de caixas e papelões, entre os

espaços deixados pelo grande andaime de madeira que cruzava a

parede de lado a lado, avistava-se... outra sala! Demorei algum

tempo para entender que se tratava de uma ilusão, e que ilusão!

Sentados ao longo de uma mesa retangular idêntica à de banquete

que tanto me chamara a atenção ao entrar, treze figuras humanas

de semblantes e atitudes vivas, frescas, pareciam representar uma

obra teatral só para nós. Não eram atores, Deus me perdoe; eram

os retratos mais reais e surpreendentes que jamais vira de Nosso

Senhor Jesus Cristo e de seus discípulos. Ainda faltava definir

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alguns dos rostos, entre eles o do próprio Nazareno, mas o

conjunto estava quase pronto e... respirava.

- O quê? Já pode vê-lo? Distingue o que está atrás?

Engoli saliva antes de concordar.

O padre Benedetto, misteriosamente satisfeito, deu-me uma

palmadinha suave nas costas convidando-me a tomar posição mais

próxima daquela parede mágica.

- Aproxime-se, não vai mordê-lo. É a Opus Diaboliàt que eu

tentava preveni-lo. Sedutora como a serpente do Paraíso, e tão

venenosa como ela...

Impossível expressar em palavras o que senti naquele

momento. Tinha a impressão de contemplar uma cena proibida, a

imagem suspensa de algo que aconteceu há quinze séculos e

Leonardo conseguira imortalizar com um realismo inacreditável.

Então ignorava porque o caolho a chamava "obra do Diabo",

quando parecia um legado dos próprios anjos. Como que ébrio,

caminhei absorto ao seu encontro sem olhar onde punha os pés. À

medida que me aproximava a parede ia ganhando mais vida. Santo

Cristo! De repente compreendi o que fazia aquela mesa preparada

sob os andaimes: toalha, pratos, jarros e grandes copos de cristal e

até travessas de cerâmica apareciam dispostos de maneira idêntica

dois metros mais acima, na parede, sem desmerecer em nada os

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verdadeiros. Mas e os discípulos? De onde copiara suas

expressões? De onde tirara suas roupas?

- Se quiser, irmão Agustín, podemos subir à armação para ver

o afresco mais de perto. Não creio que o mestre Leonardo venha

hoje supervisionar seu trabalho...

"Claro que quero", pensei.

- Logo descobrirá que por muito que se aproxime não

apreciará mais nada - o prior sorriu com malícia. - Aqui acontece o

contrário do que em qualquer quadro: se alguém se aproxima

muito da obra, perde a sensação de conjunto, confunde-se, e é

incapaz de encontrar um só traço do pincel que lhe sirva de guia

para interpretar a pintura.

- Mais uma prova de sua heresia! - bradou o caolho. - Esse

homem é um mago!

Não soube o que dizer. Durante um instante, talvez minutos,

não sei, fui incapaz de tirar a vista das figuras mais maravilhosas

que contemplei em minha vida. Ali, de fato, não havia marcas,

perfis nem raspaduras de espátulas ou borrões sobre riscos de

carvãozinho. E que importava? Ainda inacabado, com dois dos

apóstolos apenas esboçados na parede, com o rosto de Nosso

Senhor ainda sem expressão e as bordas exteriores de outras três

figuras sem colorir, já se podia passear dentro daquele banquete

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sagrado. Bandello, vendo o tempo correr, esforçou-se por me

devolver à realidade.

- Diga-me, frei Agustín: com essa sagacidade com que

impressionou o irmão Alessandro, ainda não apreciou nada

diferente nesta obra?

- Não... Não sei a que se refere, prior.

- Vamos, padre. Não nos decepcione. Aceitou nos ajudar em

nossa adivinhação. Se conseguirmos relacionar as anomalias desta

obra com as contidas em algum livro proibido conseguiremos deter

Leonardo e acusá-lo de voltar a se inspirar em fontes apócrifas.

Seria seu fim.

O prior aguardou um instante antes de continuar:

- Darei uma pista. Reparou que nenhum dos apóstolos, sequer

o próprio Jesus, conserva o halo de santidade? Não me diga que é

normal na arte cristã!

Deus abençoado. Vicenzo tinha razão. Minha estupidez era

ilimitada. Estava tão surpreso pelo extraordinário realismo dos

personagens que não percebi aquela ausência capital.

- E o que diz da eucaristia? - gritou o ciclope, desbocado. - Se

esta é, na verdade, A última ceia, por que Jesus Cristo não tem

diante de si o pão e o vinho para consagrá-los? Onde está o Santo

Graal que contém seu precioso sangue redentor? E por que sua

tigela está vazia? Herege! É um herege!

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- Que insinuam, irmãos? Que o mestre não seguiu o texto

bíblico ao pintar esta cena?

Parecia-me ouvir ainda as explicações de frei Alessandro

sobre o retrato da Virgem que Leonardo pintou para os monges de

San Francesco, o Grande. Então, também o toscano desatendeu

tanto as indicações bíblicas como as instruções de seus patronos. A

pergunta seguinte, portanto, devia lhes parecer pueril:

- Perguntaram-lhe por que fez assim?

- Claro que sim! - respondeu o prior. - E continuou rindo em

nossas barbas, chamando-nos de ingênuos. Disse que não é tarefa

sua nos ajudar a interpretar sua Ceia. Pode acreditar? O muito

esperto passa de tarde em tarde por aqui, dá um par de pinceladas

em algum dos apóstolos, senta-se durante horas para contemplar o

que já fez e mal se digna a falar à comunidade para explicar as

extravagâncias de seu trabalho...

- Pelo menos explicará citando alguma passagem evangélica,

não? - eu disse, adivinhando já sua resposta.

- Algum evangelho? - A pergunta do caolho soou maliciosa. –

Os senhores que conhecem tão bem os evangelhos como eu me

digam em que parte deles se descreve Pedro segurando uma adaga

à mesa, ou Judas e Cristo pondo a mão no mesmo prato... Não

encontrarão qualquer alusão a essas cenas. Não senhor.

- Pois exijam que ele explique!

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- Tira o corpo fora. Diz que só presta contas ao duque, que é

quem paga suas jornadas.

- Querem dizer que entra e sai desta casa quando deseja?

- E se faz acompanhar por quem quer. Às vezes, até por

mulheres da corte a quem deseja impressionar.

- Perdoe-me a ousadia, frei Benedetto, com todo o respeito

por alguém tão zeloso como o senhor, esses não são argumentos

para acusar alguém de heresia.

- Como não? Não são argumentos suficientes? Não basta um

Cristo sem o atributo divino, uma Última Ceia sem eucaristia e um

São Pedro escondendo uma adaga sabe Deus para atacar quem?

Benedetto franziu o nariz vermelho de ira, resmungando

contra o que eu acabara de lhes dizer. O prior tentou

contemporizar:

- Não o compreende, verdade?

- Não... - respondi.

- O que frei Benedetto tenta nos explicar é que ainda que para

o senhor esta cena só pareça uma representação maravilhosa da

ceia pascal, talvez não o seja em absoluto. Vi trabalharem muitos

pintores em encomendas semelhantes, menos ambiciosos sem

dúvida, mas ignoro que demônio Leonardo deseja representar em

minha casa- o prior enfatizou o possessivo para demonstrar como

se sentia atingido pelo caso. Logo, segurando-me a manga do

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hábito, prosseguiu em tom sombrio. - Tememos, irmão, que o

pintor do Mouro queira zombar de nossa fé e nossa Igreja e, se não

encontrarmos a chave de leitura de sua obra, ela ficará aqui para

sempre, como escárnio eterno por nossa estupidez. Por isso

precisamos de sua ajuda, padre Leyre.

A última frase do padre Bandello ecoou pelo enorme

refeitório. Sem me soltar a manga, o ciclope me puxou até outro

lugar sob o andaime, de onde dava para ver vários comensais do

Cencolo.

- Quer mais provas? Darei outra, para que esse impostor seja

queimado!

Segui-o.

- Está vendo? - vociferou. - Olhe bem.

- O que devo ver, padre Benedetto?

- Leonardo! Quem, senão ele? Não o reconhece? O bastardo

se retratou entre os apóstolos. É o segundo a partir da direita. Não

há dúvida: seu mesmo olhar, as mãos grandes e poderosas e até a

cabeleira branca. Diz que se trata de Tadeu, mas tem todos os seus

traços!

- Na verdade, padre, também nada vejo de errado nisso -

repliquei.

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- Também Ghiberti se retratou nas portas de bronze do

Batistério de Florença e não aconteceu nada. É um costume bem

toscano.

- Ah, sim? E por que Leonardo é o único personagem de toda

a mesa, juntamente com o apóstolo Mateus, que aparece dando as

costas a Nosso Senhor? Acredita mesmo que isso nada indica?

Nem o próprio Judas Iscariotes tem atitude tão insolente! Aprenda

uma coisa - acrescentou, em tom ameaçador: - Tudo o que faz esse

diabo de Da Vinci obedece a um plano oculto, a um propósito.

- Então, se Leonardo encarna Tadeu, quem é o verdadeiro

Mateus, que dá as costas a Nosso Senhor?

- Isso é o que esperamos do senhor! Que identifique os

discípulos, que nos diga o que significa de verdade esta maldita

Ceia!

Tentei acalmar aquele ancião enérgico e temperamental.

- Mas, padres - eu disse, dirigindo-me ao prior e a seu

excêntrico confessor -, para colocar minha cabeça a serviço desta

adivinhação necessito que me expliquem em que fundamentam sua

acusação contra o mestre Leonardo. Se querem um julgamento

contra ele, se buscam interromper os trabalhos com um argumento

sólido, devemos lidar com provas irrefutáveis, não com meras

suspeitas. Não preciso recordar que Leonardo é protegido do

senhor de Milão.

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- Nós o esclareceremos, não se preocupe. Mas antes conteste

mais uma coisa...

Fiquei contente em voltar a escutar o tom sereno do prior,

que retrocedeu um par de passos para examinar A última ceia em

sua totalidade.

- Só de vê-la, sabe exatamente o que representa esta cena?

Sua ênfase me fez desconfiar.

- Diga-me o senhor, padre.

- Está bem. Ao que parece, se trata do momento descrito pelo

Evangelho de João no qual Jesus anuncia aos discípulos que um

deles vai traí-lo. O Mouro e Leonardo escolheram a passagem com

o máximo cuidado

- Amen dico vobis guia unus vestrum me traditus esf - citei de

memória.

- "Um de vocês me atraiçoará." Exato.

- E o que vê de extraordinário nisso?

- Duas coisas - esclareceu. - Primeiro, que, à diferença das

Últimas Ceias clássicas, não escolhesse o momento da instituição

da eucaristia para este mural; e, segundo... - hesitou -, aqui o

traidor não parece Judas.

- Ah, não?

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- Olhe para o mural, santo céu - urgiu Benedetto. - Só me

resta um olho, mas vejo claramente que quem quer atraiçoar

Cristo, até quem: deseja matá-lo, é são Pedro.

- Pedro? São Pedro, está dizendo?

- Sim, Simão Pedro. Esse aqui - insistiu o caolho, apontando

entre a dezena de rostos. - Não vê como esconde uma adaga nas

costas e se prepara para agredir Cristo? Não vê como ameaça João

pondo-lhe a mão, no pescoço?

O ancião murmurava suas acusações com veemência, como se

levasse tempo examinando em segredo a disposição daquelas

figuras e chegasse à conclusões que escapavam ao comum dos

mortais. O prior, ao seu lado, assentia com algum temor:

- E o que me diz precisamente desse apóstolo João? - Sua

ênfase me alertou. - Viu como o pintou? Imberbe, com mãos finas e

cuidadas, com rosto de Madonna. Parece

uma mulher!

- Sacudi a cabeça, incrédulo. O rosto de João não estava

terminado. Apenas se intuía do esboço uns traços doces,

arredondados, quase de adolescente.

- Mulher? Está seguro? Nos Evangelhos não se diz que uma

mulher se sentou à mesa...

- Vejo que começa a compreender - respondeu Bandello mais

calmo. - Por isso urge resolver essa adivinhação. A obra de

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Leonardo encerra muitos equívocos. Muitas alusões veladas. Sabe

Deus quanto gosto de enigmas, a arte de esconder informação em

lugares reais ou pintados, mas este me escapa.

Notei como o prior se continha.

- Claro que - acrescentou sem esperar resposta - ainda é cedo

para que aprecie todos os matizes do problema. Volte aqui quando

quiser. Aproveite as ausências do pintor para isso. Sente-se para

apreciar o mural e trate de decifrá-lo por partes, tal como nós

fizemos. Em alguns dias será invadido pelo mesmo desgosto que

nos domina. Este mural o obcecará.

E, dizendo isto, o prior remexeu seu molho de chaves

buscando a chave adequada: uma grande e pesada, de ferro, com

três hastes em forma de cruz latina.

- Fique com ela. Existem só três cópias. Uma está com

Leonardo, e amiúde a empresta aos aprendizes. Outra fica comigo

e a terceira o senhor tem agora em suas mãos. E disponha de

Benedetto ou de mim se precisar de qualquer esclarecimento.

- Sem dúvida - acrescentou o caolho -, seremos de mais ajuda

do que o bibliotecário.

- Posso perguntar o que esperam deste inquisidor que agora

está ao seu serviço?

- Que encontre uma interpretação total e convincente para a

Ceia. Que identifique, se existe, esse livro em que disse ter-se

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baseado. Que determine se é ou não um texto herético como

aquele Apocalipsis Nova, e se for, que o detenha. Em troca - o prior

sorriu -, o ajudaremos com sua adivinhação. Que, por certo, ainda

não nos disse qual é.

- Procuro o homem que escreveu estes versos.

E, dizendo isso, estendi-lhes uma cópia de Óculos ejus

dinumera.

João 13.

19

Bernardino quase não se atrevia a olhar por cima do cavalete.

Embora já não fosse adolescente e superara de longe o limiar dos

trinta, essa espécie de trabalho o punha nervoso. Jamais conheceu

mulher, talvez fosse o único da corporação que não conhecesse, e a

Deus jurou que nunca conheceria. Prometeu também ao pai, ao

cumprir os quatorze anos, e também ao seu mestre ao ingressar

como aprendiz na bottega mais prestigiada de Milão. No entanto,

arrependia-se agora. A filha dos Crivelli há duas semanas punha à

prova sua débil natureza. Nua, com seus cabelos dourados e

encaracolados caindo-lhe nas costas, ereta na beirada do sofá e

com o olhar azul cravado no teto, aquela condessinha de dezesseis

anos era a imagem viva do desejo. Cada vez que abandonava o

trejeito de anjo e cravava os olhos nele, Bernardino se sentia

morrer.

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- Mestre Luini - a voz de donna Lucrezia lhe falou em surdina,

como se ela também se insinuasse -, quando acredita que o retrato

da menina ficará pronto?

- Logo, senhora condessa. Logo.

- Lembre-se que o prazo de nosso contrato expira na próxima

semana - insistiu.

- Sei muito bem, senhora. Não existe em minha vida data tão

presente como essa.

A mãe da Afrodite vigiava amiúde as sessões de pose. Não

que desconfiasse de Bernardino, homem de reputação

irrepreensível raramente; visto trabalhar fora de um convento, mas

ouvira tantas coisas sobre a voracidade dos cônegos e até do

próprio papa, que não achava exagero supervisionar aqueles

serões. Além disso, Bernardino era um varão atraente, talvez algo

efeminado, e o único gentil-homem que o marido deixava entrar em

casa sem temer por sua honra. O conde tinha razões de sobra para

desconfiar: os boatos de uma relação sentimental de sua belíssima

mulher com o duque estavam há tempo na boca de todos. Lucrezia

era a desejada. A mulher liberada que se excitava com todas as

novidades. E Elena, sua filha, aprumava-se já como digna

sucessora.

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- É bela, não é verdade? - observou com orgulho a condessa. –

Essas maçãs que tem por peitos, tão firmes, tão duras... Não pode

imaginar, mestre, quantos homens enlouqueceram por elas.

"Enlouqueceram?" O pintor conteve a duras penas o tremor

do pincel. Sua tela já continha quase todos os detalhes do corpo de

Elena: embora a imaginasse com cabelos mais escuros e

compridos, uma cascata deles acariciava seu ventre até tapar

aquele maravilhoso rincão de prazeres a que o artista renunciara.

- O que não entendo, mestre, é por que escolheu o tema de

Madalena para retratar minha filha, exatamente agora. É como se

quisesse chamar a atenção do Santo Ofício. Além disso, todas as

Madalenas são mulheres aflitas, tétricas. E nem sei o que parece

essa horrível caveira em suas mãos...

Bernardino depositou o pincel na paleta e se voltou para

donna Lucrezia. A luz da tarde iluminava seu divã, dando relevo às

formas que lhe resultavam vagamente familiares: as mechas louras

e sinuosas eram idênticas às de Elena; as maçãs do rosto

marcadas, exatas, os mesmos lábios úmidos e carnosos. E outros

peitos abundantes palpitavam sob um corpete ajustadíssimo de

tecido holandês. Vendo-a ali recostada podia entender o apetite

desmesurado do Mouro por semelhante beldade. Era até lógico que

a tagarelice sobre a Inquisição lhe passasse despercebida.

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- Condessa - disse -, lembro-lhe que deu liberdade à Mestre

Leonardo para escolher o tema e enviasse o discípulo de sua

escolha.

- Sim. É uma lástima que o mestre esteja tão ocupado com

esse venturoso Cenacolo.

- O que posso dizer eu? Mestre me pediu que pintasse uma

Madalena, e é o que faço. Além disso, vindo dele, o tema eleito

deveria orgulhar sua família.

- Orgulhar? Maria Madalena não foi uma puta? - exclamou. –

Por que não pôde encomendar um retrato ao natural como o que

seu mestre pintou para mim? Por que insistir em estigmatizar

minha família com uma sombra que há séculos nos persegue?

Bernardino Luini se calou. A família Crivelli era de origem

veneziana que, confiando na destreza de Leonardo, acreditava

possível encontrar um bom partido para a filha graças a um retrato

que exaltasse suas virtudes. E com uma Madalena assim resultaria

difícil. De fato, fora sua magra economia, e não seu critério, o que

deixou o caminho livre ao mestre para escolher o tema da tela. E

não desperdiçou a oportunidade. Bernardino olhou sua indolência

ao recordar a astúcia do toscano. Donna Lucrezia posava há anos

em sua bottega da rua Magenta, dando vida a alguns de seus

quadros mais notáveis. Se agora concordara em deixar a filha

posar como a favorita de Jesus era porque pensava logo em iniciá-

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la em seus mistérios. Não em vão. Lucrezia era o último expoente

de uma longa estirpe de mulheres que se acreditava herdeiras da

autêntica Maria de Magdala. Uma saga de fêmeas de feições claras

e suaves, que há gerações inspiravam poetas e pintores e que nem

sempre eram conscientes da herança que transmitiam.

Luini deu mais um par de pinceladas tentando evitar o sorriso

contagiante de Elena. Logo, pensativo, retomou sua conversação:

- Creio que se precipita em seu julgamento, senhora. Maria

Madalena... Santa Maria Madalena - corrigiu em seqüência - foi

uma mulher valente como poucas. Chamaram-na casta meretrix e,

à diferença do restante dos discípulos, que, à exceção de João,

fugiram de Jerusalém quando crucificaram Nosso Senhor, ela o

acompanhou até o pé do Gólgota. Aí está, senhora, o porquê da

caveira que sua filha segura. Mas, além disso, Madalena foi a

primeira a quem Jesus Cristo apareceu depois de ressuscitado,

demonstrando o profundo carinho que sentia por ela.

- E por que acredita que fez algo assim?

Luini sorriu, satisfeito:

- Para premiá-la por seu valor, naturalmente. Muitos

acreditamos que Jesus ressuscitado confiou então a Madalena um

grande segredo. Maria demonstrou que era merecedora dessa

distinção, e nós, cada vez que a pintamos, tratamos também de nos

aproximarmos daquela revelação.

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-Agora que mencionou, também eu ouvi Mestre Leonardo

falar desse segredo, embora evite dar muita explicação sobre ele.

Certamente o mestre é um homem cheio de enigmas.

- Do ponto de vista espiritual, muitos consideram a

inteligência um mistério, senhora. Talvez um dia o mestre decida

nos contar. Ou talvez escolha sua filha para fazê-lo...

- Tudo pode acontecer com esse homem. Conheço-o desde

que chegou a Milão em 1482, e nunca deixei de me surpreender

com suas intrigas. É tão imprevisível...

Lucrezia se deteve um instante, como se sua mente

repassasse velhas recordações. Logo perguntou com vivo

interesse:

- Não conhece, por acaso, o segredo da Madalena?

Luini voltou a olhar para a tela.

- Pense nisto, senhora: o verdadeiro ensinamento de Cristo

aos homens só pôde chegar depois que o Senhor superou o transe

da Paixão e ressuscitou com a ajuda do Pai Eterno. Só então teve

certeza absoluta da existência do Reino dos Céus. E quando

retornou dentre os mortos, quem encontrou primeiro? Maria

Madalena, a única que teve a coragem de esperá-lo, mesmo

contrariando as ordens do sinédrio e dos romanos.

- Nós mulheres sempre fomos mais valentes do que os varões,

mestre Luini. Ou mais imprudentes...

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Elena continuava muda, assistindo divertida à conversa. Se

não fosse pela lareira bem carregada que tinha por trás há muito

teria apanhado um bom resfriado.

- Admiro como a senhora a tenacidade das mulheres,

condessa. - disse Bernardino, voltando a sopesar o pincel. - Por

isso, é bom que saiba, que Maria Madalena desfrutou, a partir

daquela revelação, virtudes ainda mais notáveis.

- Ah, sim?

- Se algum dia forem reveladas, verá com quanta fidelidade se

refletem no retrato de sua Elena. Então ficará mais do que

satisfeita com esta tela.

- Mestre Leonardo nunca me falou de tais virtudes.

- Mestre Leonardo é prudente, senhora. As bondades de

Madalena assunto delicado. Até assustaram os discípulos no tempo

de Nosso Senhor. Nem os evangelistas quiseram contar muitas

coisas sobre elas!

O olhar da condessa faiscou maliciosamente:

- Natural! Porque era uma puta!

- Maria nunca escreveu uma linha. Nenhuma mulher daquele

tempo escreveu - prosseguiu o mestre Luini, ignorando as

provocações. Por isso, quem quiser saber sobre ela, deve seguir os

passos de João. Como já disse, o amado foi o único que esteve à

altura das circunstâncias quando crucificaram Cristo. Quem

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admira Madalena também admira João e considera seu evangelho o

mais belo dos quatro.

- Perdoe-me se insisto: até que ponto Madalena foi alguém

especial para Cristo, mestre Luini?

- Até o ponto de beijá-la na boca diante dos discípulos.

Donna Lucrezia se sobressaltou. Seu corpete estalou ao

encolher do peito.

- Como disse?

- Pergunte a Leonardo. Ele conhece os livros em que se

contam estes segredos. Só ele sabe como era o verdadeiro rosto de

João, ou Pedro, ou Mateus... e até Madalena. Não viram ainda seu

maravilhoso trabalho no convento de Santa Maria?

- Sim, claro que vi - respondeu com tédio, lembrando de novo

que; por culpa do Cenacolo não era Leonardo quem estava agora

em sua casa. Estive lá há uns meses. O duque quis me mostrar o

avanço do trabalho de seu pintor favorito, e me deslumbrou com a

magnífica execução daquele mural. Recordo que ainda faltavam os

rostos de alguns apóstolos e no convento ninguém sabia dizer

quando estariam prontos.

- Ninguém sabe, é certo - concordou Luini. - Mestre Leonardo

não encontra modelos para alguns apóstolos. Embora haja muitos

rostos sinistros na corte é difícil retratar a perversidade de um

Judas. Imaginei como é complicado encontrar um rosto puro e

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carismático como o de João. Nem imagine quantos rostos o mestre

teve de examinar para encontrar um bom para o discípulo amado!

Leonardo sofre muito cada vez que tropeça nestes obstáculos e se

atrasa sem solução.

- Leve então minha filha! - riu. - E que sente Madalena na

mesa em lugar de João!

A condessa Crivelli, divertida, levantou-se do divã, expondo

ao ar uma nuvem de perfume em que nadava pelo palácio.

Majestosa, aproximou-se das costas do pintor e deixou cair a mão

delicada sobre seu ombro.

- Já chega de conversa por hoje, mestre. Acabe o retrato logo

e receberá o restante do pagamento. Restam-lhe pelo menos duas

horas de luz antes de que o Sol se ponha. Aproveite-as.

- Sim, senhora.

Os sapatos de donna Lucrezia repicaram sobre o lajeado até o

som sumir. Elena não pestanejava. Continuava ali, magnífica, com

a pele rosada e limpa, e com o corpo recém-raspado pelas criadas

do palácio. Quando se assegurou de que a mãe entrou em seus

aposentos, saltou sobre o divã.

- Sim, sim, mestre! - aplaudiu, soltando Gólgota, que se

dirigiu ao pé do braseiro.- Isso! Apresente-me a Leonardo!

Apresente-me!

Luini a contemplou entrincheirado por trás da tela.

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- Quer mesmo conhecê-lo? - sussurrou depois de dar mais um

par de pinceladas, quando já não podia fingir indiferença.

- Claro que quero! O senhor mesmo me disse antes que talvez

ele me revele seu segredo...

- Mas a advirto: talvez não goste do que vai encontrar, Elena.

É um homem de caráter forte. Parece distraído, mas na realidade é

capaz de contemplar tudo com a precisão de um relojoeiro.

Percebe o número de folhas de uma flor só de olhá-la de soslaio, e

se empenha em estudar as minúcias de tudo, levando seus

companheiros ao desespero.

A condessinha não desanimou:

- Isso me agrada, mestre. Enfim um homem detalhista!

- Sim, sim, Elena. Mas ele, digo-lhe a verdade, não gosta

muito das mulheres...

- Oh! - um tom de desilusão se filtrou de sua vozinha. - Esta

parece ser a norma entre os pintores, não é verdade, mestre?

O pintor se escondeu ainda mais por trás do quadro quando a

modelo ficou de pé, mostrando-se como era bonita. Um calor

repentino lhe subiu à cabeça, enrubescendo-lhe a face e secando a

garganta.

- Mas... por que diz isso, Elena?

- Porque já está há quase dez dias retratando-me nua, os dois

fechados nesta mesma sala, e não fez nenhum gesto de

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aproximação. Minhas damas de companhia dizem que isso não é

normal e até se perguntam, as muito espertinhas, se o senhor não

é castratus.

Luini não soube o que responder. Levantou o olhar para

encontrar o de sua interlocutora e a encontrou a dois palmos dele,

cheirando a essência de nardo e com toda a pele palpitando. Nunca

pôde explicar o que aconteceu depois: a peça começou a dar voltas

ao redor enquanto uma força poderosa, estranha, que nascia de

suas vísceras, dominou-o por completo. Lançou o pincel e a paleta

para o lado e puxou a condessa para si. O contato com aquele

corpo jovem excitou sua entreperna.

- É... donzela? - titubeou.

Ela riu:

- Não. Não mais.

E descendo sobre ele beijou-o com um ímpeto desconhecido.

20

Tal como previu o padre Bandello, A última ceia logo se

tornou uma obsessão para mim. Só naquela tarde de sábado, com a

chave na mão, visitei-a quatro vezes antes do pôr-do-Sol. Só ia

depois de me assegurar de que o lugar estava vazio. De fato, creio

que foi a partir desse dia que na comunidade começaram a me

chamar de padre Trotolla, que quer dizer pião. Tinham seus

motivos. Sempre que algum frade cruzava por mim me encontrava

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como doido, vagando perto do refeitório, e com uma idêntica e

insistente pergunta nos lábios: "Alguém viu o mestre Leonardo?"

Suponho que cheguei ao convento no pior momento para

tropeçar nele. A preparação do funeral mudou os costumes da

cidade, mas em especial os de Santa Maria delle Grazie. Enquanto

frei Alessandro e eu queimávamos a mufa para decifrar a

adivinhação do Augure, o restante dos irmãos só se preparava para

o dia seguinte. A princesa morrera há treze dias e seu cadáver

repousava embalsamado numa arca de madeira de acácia na

capela da família do castelo. Os embaixadores dos reinos

convidados para o sepultamento passeavam impacientes pela

fortaleza do Mouro e o convento em busca de notícias sobre a

cerimônia.

Na realidade, estive alheio à agitação até a manhã de

domingo, 15 de janeiro, dia de São Mauro. Agradeci aos céus pelos

toques de sino que me despertaram cedo. Dormira mal, inquieto;

sonhei com os doze homens do Cenacolo que se moviam e

tagarelavam em torno do Messias. Já quase podia adivinhar as

obscuras intenções de cada um deles, mas intuía que o tempo para

arrancar-lhes seus segredos corria contra mim. Naquele domingo

donna Beatrice ia ser sepultada no novíssimo panteão dos Sforza,

sob o altar-mor de Santa Maria, e era provável que o misterioso

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Augure, que nos prevenira tantas vezes contra ela, decidisse

comparecer ao convento.

Dirigi-me ao refeitório depois das orações do amanhecer.

Seguramente aquele seria o único momento que teria para

recolher-me em sua tranqüila solidão. Voltaria a me enfronhar nos

traços de cores vivas do mestre Leonardo e imaginar que o

misterioso trabalho do toscano não consistia em pintar aquele

mural, mas em resgatar dele, pouco a pouco, com precisão de

cirurgião, uma cena mágica gravada sob o estuque pelos próprios

anjos.

Estava nesse devaneio quando, ao dobrar a oeste do Claustro

dos Mortos e dirigir meus passos até o portão que protegia o

refeitório, encontrei-o aberto de lado a lado. Dois homens que eu

nunca vira conversavam animadamente sob a entrada:

- Já sabe a do bibliotecário? - ouvi falar o que estava mais

perto de mim. Vestia calça vermelha, gibão com listras amarelas e

brancas, e tinha rosto de querubim com cabelos encrespados. Ao

ouvi-los falar de frei Alessandro tirei o capuz e, com ar distraído,

decidi prestar atenção, de uma distância segura.

- O mestre me falou algo - respondeu o outro, um jovem de

bom aspecto, moreno, atlético e atraente. - Dizem que anda muito

nervoso, e todos temem que possa cometer algum desatino.

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- É lógico. Mantém há tempo esse venturoso jejum... Creio

que está perdendo o juízo.

- O juízo?

- A falta de alimento deve provocar alucinações. Está

obcecado em ser descoberto e que o afastem dos livros. Deveria tê-

lo visto tremer de medo ontem à noite. Parecia um junco açoitado

pelo vento.

O mais forte dos dois olhou então para onde eu estava

colocado, obrigando-me a me mexer se não quisesse ser

descoberto. Consegui ainda ouvir uma última coisa:

- Afastá-lo dos livros, está dizendo? Isso não é possível. Não

acredito que se atrevam a tanto. Fez muito bem seu trabalho, para

merecer esse castigo...

- Então, concorda comigo?

- Certamente. O jejum acabará matando-o.

Aquilo me provocou uma suspeita. Não era normal que algo

tão íntimo, tão intramuros, como o jejum do padre Alessandro,

estivesse na boca de uns leigos alheios à comunidade. Mais tarde

soube que o homem das calças vermelhas era Salaino, o discípulo

favorito e protegido de Leonardo, e o moreno era um fidalgo

aprendiz de pintor amigo de Marco d'Oggiono. Eles, como Bandello

já me advertira, usavam amiúde a chave do refeitório. Quase

sempre o abriam para preparar as misturas de tinta do mestre ou

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colocar os utensílios em ordem. Pois bem: o que faziam ali num

domingo, com o enterro de donna Beatrice às portas, e vestidos a

rigor? Como é que falam de frei Alessandro com essa naturalidade

e, sobretudo, com esse conhecimento de seus costumes? E a troco

de que afirmavam que estava nervoso? Intrigado, passei diante

deles em direção à escada da biblioteca, tentando não chamar

muito sua atenção. Minha mente, sempre em movimento,

continuava disparando perguntas: onde diabos o bibliotecário

esteve na noite anterior? Era verdade que se encontrara com o

mestre Leonardo? Para quê? Não criticara abertamente o mestre

em nossas conversas? Era agora seu amigo?

Um calafrio me percorreu a coluna. A última vez que falei

com frei Alessandro foi no dia anterior, nas vésperas. Aplicava-se

em me mostrar os manuscritos consultados por Leonardo na

biblioteca do convento, no tempo em que eu tratava de identificar

neles o livro que o abade vira nas cartas de donna Beatrice. A

verdade é que em nenhum momento percebi mudança em seu

humor. De certa maneira, causou-me dó. O frade que melhor me

acolheu, que esteve grudado em mim desde o primeiro momento

em que pus os pés em Santa Maria era dos poucos que não

conhecia o que se estava armando ali.

Naquela tarde senti remorso e acabei por confessar-lhe o que sabia

de Leonardo e do desafio do Cenacolo. Devia a ele.

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- O que vou lhe contar - adverti-o - jamais deve sair de sua

boca...

O bibliotecário me observou surpreso.

- Jura?

- Por Cristo.

Concordou com gosto.

- Está bem. O prior acredita que Mestre Leonardo ocultou

uma mensagem secreta no mural do refeitório.

- Uma mensagem secreta? Na Última ceia?

- O prior suspeita que é algo que ofende a doutrina da Santa

Igreja. Uma crença que Mestre Leonardo pode ter lido num dos

livros que o senhor lhe emprestou.

- Qual? - impacientou-se.

- Pensei que o senhor soubesse.

- Eu? O mestre consultou muitos títulos de nossa biblioteca.

- Quais?

- Foram tantos... - duvidou. - Não sei. Talvez se interessou por

De secretis artis et naturae oper/bus.*

*[Na realidade, este livro não foi impresso antes de 1542, quando o

parisiense Claudio Celestino resolveu leva-lo aos tipos móveis.

Antes circulou em ambientes muito restritos sempre em forma

manuscrita. Uma cópia ficou guardada na Biblioteca de Santa

Marie delle Grazie.]

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- De secretis artis. É um manuscrito franciscano raro. Se não

me engano ouviu falar dele por frei Amadeu de Portugal. Lembra-

se?

- O autor de Apocalipsis Nova.

- O próprio. Nesse livro, um monge inglês chamado frei Roger

Bacon, conhecido inventor e escritor acusado de heresia e

encarcerado pelo Santo Ofício, falava das doze maneiras diferentes

que existem para esconder uma mensagem numa obra de arte.

- É um texto religioso?

- Não. É mais técnico.

- E que outro livro pode tê-lo inspirado?

Frei Alessandro roçou o queixo, pensativo. Não me parecia

nervoso, nem alterado por minhas perguntas. Continuava serviçal,

como sempre, quase como se minhas confissões sobre Leonardo

não o afetassem em nada.

- Deixe-me pensar - murmurou. - Talvez se utilizasse das

Vidas dos santos de frei Jacopo da Varazze... Sim. Ali poderia ter

encontrado o que o senhor busca.

- Nos livros do conhecido bispo de Gênova? - repliquei

assombrado.

- Foi, de fato, há mais de trezentos anos.

- E o que tem a ver Da Varazze com a mensagem oculta do

Cenacolo?

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- Se tal mensagem existe, estes livros poderiam conter a

chave para decifrá-la - os olhos do macilento frei Alessandro se

fecharam, como se buscasse concentração. - Frei Jacopo da

Varazze, dominicano como nós, recolheu no Oriente todas as

informações possíveis sobre a vida dos primeiros santos, e a dos

discípulos de Nosso Senhor. Suas descobertas entusiasmaram

mestre Leonardo.

Arqueei as sobrancelhas, incrédulo.

- No Oriente?

- Não estranhe, padre Leyre - prosseguiu. - Os detalhes

contidos neste livro não são precisamente canônicos.

- Ah, não?

- Não. A Igreja nunca aceitaria o parentesco que frei Jacopo

garante que tiveram os Doze entre si. Sabe que Simão e André

eram irmãos?

- Talvez isso explique por que Leonardo os pintou como

gêmeos.

- Deveras?

- E sabia que Da Varazze afirmou que muitos confundiam

Tiago com o próprio Cristo? E não percebeu a enorme semelhança

que tem com Jesus no Cenacolo?

- Então - suspeitei -, Leonardo leu este livro.

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- Deve ter sido mais do que isso. Estudou-o a fundo. E leu com

mais interesse do que o Opúsculo de Roger Bacon. Pode crer.

Frei Alessandro suspendeu aí nossa última conversa. Por isso,

quando escutei os discípulos do toscano dizerem que o

bibliotecário se encontrara com Leonardo naquela mesma noite,

estremeci. Sua casual indiscrição não só confirmava que o

bibliotecário me ocultara algo tão importante como sua amizade

com Leonardo, mas quem eu acreditava ser meu único amigo em

Santa Maria me delatara.

- Grazie. Mas por quê?

21

Procurei o bibliotecário em todos os lugares. Em sua mesa

ainda repousavam os dois volumes do bispo Da Varazze que me

mostrara na tarde anterior. Cinzelados em caracteres grandes se

destacavam o nome do autor e o título italiano do livro: Legendi di

sancti vulgarík storiado. Do outro livro, no entanto, o das Artes

Secretas do padre Bacon, não havia nem rastro. Se frei Alessandro

o guardasse em sua coleção, devia tê-lo bem escondido. Era

imaginação minha ou o bibliotecário pretendera desviar minha

atenção daquele tratado? Por quê? As perguntas se acumulavam.

Eu precisava que frei Alessandro me explicasse algumas coisas. No

entanto, por mais que o procurasse na igreja, na cozinha ou no

prédio das celas, ninguém soube me informar; sobre seu paradeiro.

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Tampouco, pude insistir muito. Com a crescente: maré de gente

que se aproximava de Santa Maria para ver de perto o cortejo

fúnebre, era fácil perder de vista o bibliotecário. Sabia que cedo;

ou tarde o encontraria e então me esclareceria que diabo se

passava ali.

Pelas dez da manhã, a praça situada em frente à igreja e todo

o caminho que separava Santa Maria do castelo estavam ocupados

por uma multidão silenciosa. Todos vestiam suas melhores roupas

e vinham munidos de velas e palmas secas que agitariam à

passagem do féretro da princesa. Não cabia um alfinete no trajeto.

Na igreja, em compensação a entrada fora restrita aos convidados

e embaixadores por desejo expresso do duque. Sob a tribuna fora

instalado um estrado revestido de veludo atravessado por cordões

de ouro terminados em borlas, no qual o Mouro e seus homens de

confiança entoariam suas orações. Toda a área estava sob a

proteção da guarda pessoal do duque e só nós, os monges de Santa

Maria, tínhamos certa liberdade de entrar e sair.

Dirigi-me à zona nobre da igreja não tanto com a esperança

de encontrar frei Alessandro, mas com a idéia de ver pela primeira

vez o mestre Leonardo. Se os ajudantes tinham aberto o refeitório

de manhã era provável que o mentor não andasse longe dali. Meu

instinto não falhou.

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Ao toque das onze, uma repentina agitação alterou a calma do

templo de Santa Maria. A porta principal, sob a maior de todas as

janelas, abriu-se com estrondo. As trombetas do exterior bramiram

anunciando a chegada do Mouro e seu séquito. O sinal arrancou

muda ovação entre os fiéis que tiveram acesso permitido. Então

uma dezena de homens de rosto severo e olhar vazio, cobertos por

longas capas e adornos de pele preta, entraram com passo marcial

rumo à tribuna. Ali o vi. Ainda que encerrasse o grupo, o mestre

Leonardo se destacava como Golias entre os filisteus. Mas, não foi

sua altura a única coisa que me chamou a atenção. O toscano, à

diferença dos brocados de pedras preciosas e mantos de seda

vestidos pelo restante dos cavalheiros, ia coberto de branco da

cabeça aos pés, e sua barba, comprida, loura e bem recortada lhe

caía sobre o peito, e enquanto caminhava olhava para um e outro

lado, como se buscasse rostos conhecidos entre a concorrência.

Sua figura parecia um fantasma de outra época. O Mouro, que ia

três passos à frente, a pele escura e os cabelos negros como o

betume, cortados em forma de taça, era o oposto do perfil solar do

gigante. Todo mundo reparava nele. Os porta-estandartes das

diferentes casas reais que compareceram ao sepultamento

percebiam antes sua presença do que a do próprio Ludovico. No

entanto, o toscano parecia viver alheio a tudo isso.

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- Sejam bem-vindos à casa do Senhor - recebeu-os do altar o

prior Bandello, rodeado por monges vestidos para a ocasião. Junto

a ele se encontravam o arcebispo de Milão, o superior dos

franciscanos e uma dezena de clérigos da corte.

O Mouro e seu séquito se persignaram e se acomodaram no

estrado reservado para eles, quase ao mesmo tempo em que o

grupo de músicos com o brasão dos Sforza penetrava no templo

anunciando a chegada do féretro.

O mestre Leonardo, de pé na terceira fila do estrado, olhava

com ansiedade para todos os lados e anotava com rapidez, sabe

Deus o quê, num daqueles taccuini que sempre tinha consigo.

Pareceu-me que da mesma maneira vigiava os rostos da multidão,

ouvia as notas do órgão de Santa Maria e o drapejar dos

estandartes das comitivas. Alguém me disse que na tarde anterior

ficou extasiado observando o vôo dos quatrocentos pombos

libertados na praça do Domo, e até me garantiram que fez

anotações sobre as salvas de canhão que o núncio de Sua Santi-

dade mandou disparar sob as muralhas da cidade em honra da

defunta. Para ele tudo merecia ser registrado. Tudo continha os

traços da ciência secreta da vida.

Certamente, não fui o único a observar seus movimentos

durante a cerimônia. Ao meu redor as pessoas falavam em voz

baixa sobre o toscano. Quanto mais me perdia em seu olhar azul e

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o seu porte majestoso, mais necessidade sentia de conhecê-lo. O

Augure primeiro e o padre Bandello depois exacerbaram essa sede

que agora me queimava por dentro.

Os convidados não ajudaram exatamente a sufocar minhas

ânsias. Cochichavam como periquitos sobre a última obsessão do

toscano: concluir um tratado sobre pintura em que tencionava

insultar poetas e escultores para exaltar a superioridade de seus

pincéis. Sua mente privilegiada se empenhava ao mesmo tempo em

distrair o Mouro da dor e em desenhar pontes elevadiças

impossíveis, torres de assalto que se moveriam sem cavalos ou

gruas para descarregar a lã dos barcos dos navigli*[*Canais oficiais

que cruzam Milão e que na época do mouro serviam para o

tranporte de mercadorias.(N. do editor espanhol).]

Da Vinci, abstraído, ignorava as paixões que despertava.

Agora parecia rabiscar no caderno um esboço do estranho traje

que o duque vestia para a ocasião: um manto de seda preta

belíssimo, navalhado por toda parte, talvez dando a entender que o

rasgara com suas próprias mãos.

Eu mal podia imaginar como estava perto de conversar com o

mestre.

Foi o irmão Giberto, sacristão de Santa Maria, quem me

propiciou aquele primeiro contato com o pintor, em meio a uma

circunstância tão dramática como inesperada.

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Ocorreu enquanto frei Bandello pronunciava as palavras da

consagração. Aquele rapagão do norte, de bochechas rosadas e

cabelo cor de abóbora, aproximou-se de mim pelas costas e puxou

ferozmente o hábito.

- Padre Agustín! Escute-me! - suplicou frei Giberto,

desesperado.

Seus olhos saltados quase não lhe cabiam no rosto. Estavam

injetados de sangue. - Acaba de acontecer algo terrível na cidade!

O senhor deve tomar conhecimento de imediato!

- Algo terrível?

As mãos do alemão tremiam.

- É um castigo de Deus - ciciou. - Um castigo para quem

desafia o Altíssimo!...

O sacristão não teve oportunidade de terminar. Benedetto, o

caolho facilmente irritável, confessor do prior, e frei Andrea de

Inveruno, com seus gestos afetados, aproximaram-se com idêntico

movimento de urgência:

- Devemos ir de imediato. E depressa! Acompanha-nos, padre

Agustín? - disse quase sem fôlego o sacristão. - Creio que

necessitaremos de reforços. Tanta urgência me desarmou. Não

sabia para onde ia acompanhá-los nem para quê, mas quando vi

um pajem do duque se aproximar de Leonardo e sussurrar-lhe algo

ao ouvido enquanto o puxava com a expressão alarmada, aceitei.

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Ali acabara de acontecer algo extraordinário. E eu queria saber o

que era.

22

Os dois oficiais de justiça do duque não acreditavam em seus

olhos. Diante deles estava o corpo sem vida de um frade. Uma

corda da grossura de um punho o submetia com firmeza pelo

pescoço, fixando-o a uma das vigas da praça do Comércio. Andrea

Rho, chefe da guarda, ainda não desjejuara. De fato, nem abotoara

o uniforme quando aquela notícia truncou sua entediante manhã

de domingo. Com os cabelos brancos revoltos, o estômago vazio e o

inconfundível odor de urso recém-desperto, Rho se aproximou de

má vontade para ver o que se passava. Pouco havia que fazer. O

desgraçado estava com a pele azulada e fria, veias do rosto

inchadas e os olhos abertos e secos. O terror esboçado naquelas

pupilas sugeria uma morte cruel. O defunto agonizara um bom

tempo antes de sufocar. Os braços, agora inertes, estendiam-se

paralelos ao hábito branco de São Domingos enquanto o punho das

mangas apenas deixava entrever duas mãos cuidadas, magras,

rígidas. Um suave fedor a cadáver chegou ao nariz do capitão.

- E então? - o olhar de Andrea vagueou entre a turbamulta de

curiosos sedentos de espetáculo. Muitos regressavam para casa

frustrados por não ver o suntuoso coche mortuário da duquesa, e

aquela agitação na rua prometia compensá-los. Rho desconfiava de

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todos. Procurava algum rosto cúmplice, alguém que contemplasse

a cena com orgulho.

– O que temos aqui?

- É um religioso, senhor. Um frade - respondeu

aguerridamente seu companheiro, enquanto tentava conter, com

os braços em cruz e a lança cravada no solo, a multidão nos

limites.

Isso já percebi, Adriano. Acordaram-me com essa notícia.

-Verá, senhor - titubeou o soldado. - Esse homem apareceu

pendurado esta manhã mesmo. Nenhuma oficina ou armazém

desta região abriu hoje, por isso ninguém viu nada...

- Você o revistou?

- Ainda não.

- Não? Ainda não sabe se o roubaram antes de pendurá-lo?

O tal de Adriano negou com um gesto de apreensão.

Provavelmente nunca tocara num cadáver. Rho o presenteou com

um esgar de desprezo antes de se dirigir à assistência.

- Ninguém sabe de nada, não é? - repreendeu-a aos gritos. –

Vocês são um bando de covardes. Ratos!

Ninguém se perturbou. As pessoas olhavam extasiadas o sutil

movimento pendular do monge, conjeturando em voz baixa sobre o

que acontecera. Deus sabe que os religiosos não costumam

carregar bolsa alentada e não compensa aos assaltantes agredi-los.

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Mas se não se tratava de ladrões, quem acabara com aquele

monge? E por que o justiçaram, abandonando-o em plena rua?

Andrea Rho rodeou um par de vezes o cadáver antes de

formular outra pergunta maliciosa ao companheiro:

- Está bem, Adriano. Sejamos diligentes. Você diria que

aconteceu o que aqui? Mataram-no ou se enforcou?

O rapaz, de espaldas fortes e olhar intermitente, meditou um

instante, como se da resposta dependesse sua promoção. Ruminou,

portanto, a resposta com cuidado, e quando estava a ponto de abrir

a boca para dizer algo... não pôde. Um vozeirão magnífico se

levantou do meio da multidão:

- Tirou-se a vida! - gritou alguém do fundo. - Tirou-se! Disso

não há dúvida, capitão!

Era um timbre varonil, seco, que quase fez tremer o átrio do

mercado, deixando a multidão impressionada.

- Além disso - prosseguiu -, também sei o nome: frei

Alessandro Trivulzio, bibliotecário do convento de Santa Maria

delle Grazie! Deus acolha essa alma era Seu seio!

O desconhecido deu então um passo à frente, abrindo

caminho entre os curiosos. Adriano, ainda com a boca aberta,

permaneceu olhando-o. Tratava-se de um indivíduo extraordinário:

alto, robusto, impecavelmente vestido com uma camisa de algodão

que lhe caía até os pés e uma comprida cabeleira recolhida sob um

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gorro de lã. Acompanhava-o um rapazinho de aspecto tímido, que

não teria mais de doze ou treze anos e parecia impressionado pela

proximidade do morto.

- Vejam! Enfim um valente! E o senhor quem é, pode-se

saber? - interrogou Rho. - Como pode estar seguro do que diz?

O colosso procurou os olhos de Andrea Rho antes de

responder.

- É fácil, capitão. Se prestar atenção ao aspecto do corpo,

verá que não apresenta outros sinais de violência além da

dilaceração do pescoço. Se resistisse a morrer ou fosse atacado,

seu hábito estaria sujo, talvez rasgado ou ensanguentado. E não é

o caso. Esse frade aceitou seu fim de boa vontade. E se prestar

ainda mais atenção, embaixo verá ainda o barrilzinho que lhe

serviu de apoio para subir à viga e colocar a corda no pescoço.

- Sabe muito sobre mortos, senhor - disse, irônico.

- Vi-os mais do que imagina, e de perto! Seu estudo é uma de

minhas paixões. Até abri-lhes passagem para converter suas

entranhas em ciência. - O gigante ressaltou aquela frase, ciente de

que um murmúrio de horror se estenderia por toda a praça. - Se o

senhor tivesse ocasião de contemplar tantos enforcados como eu,

capitão, também perceberia outra coisa.

- Outra coisa?

- Que este corpo está pendurado aqui há várias horas.

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- Deveras?

- Sem dúvida - afirmou. - Basta se deter no exército de moscas

que esvoaçam ao seu redor. As dessa espécie, pequenas e

nervosas, demoram de duas a três horas para se aproximar de um

defunto. E olhe como revoam em busca de alimento!... Não é

extraordinário?

- O senhor ainda não me disse quem é!

- Chamo-me Leonardo, capitão. E sirvo ao duque como o

senhor.

- Nunca o vi antes.

- Os domínios do Mouro são extensos - disse, esboçando uma

risada imprópria para a circunstância. - Sou artista e trabalho em

vários projetos, um dos quais no convento de Santa Maria delle

Grazie; por isso conhecia bem este desgraçado. Sabe? Era um bom

amigo.

Enquanto fazia intenção de se benzer, o oficial estudou os

modo daquele estrangeiro. Acabou por aceitar a idéia de se

encontrar diante de um mestre da cidade. Como todos em Milão,

ouvira falar de um certo sábio chamado Leonardo e seus

extraordinários poderes. Tentava recordar o que diziam dele: que

não apenas era capaz de capturar a alma humana numa tela, ou de

fundir a maior estátua equestre vista em séculos para recordar o

defunto Francesco Sforza, mas que tinha conhecimentos médicos

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que raiavam o milagre. Aquele tipo se ajustava bem à idéia que

fizera dele.

- Diga-me então, mestre Leonardo. Segundo o senhor, por que

um frade do convento de Santa Maria delle Grazie quis se enforcar

aqui?

- Isso ignoro, capitão - respondeu mais amável. - Embora

possa interpretar com facilidade os signos externos, a vontade dos

homens é amiúde impossível de captar. No entanto, talvez a

resposta seja simples. Assim como venho seguidamente comprar

minhas telas e tintas neste lugar, ele poderia ter se aproximado em

busca de alguma outra mercadoria. Depois, algum pensamento

funesto passou por sua mente e decidiu que era um bom momento

para morrer... Não acredita?

- No domingo? - o capitão Rho suspeitou. - E com o funeral da

princesa Beatrice sendo celebrado em seu próprio convento? Não.

Não acredito.

O gigante encolheu os ombros:

- Só Deus sabe o que pode passar pela mente de um de seus

servos...

- Sim.

- Talvez se o soltasse e revistasse seu cadáver com cuidado

encontraria alguma pista sobre o que veio buscar no comércio. E

se o senhor achar oportuno, ponho a seu serviço a ciência médica

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que conheço e minha completa disposição para estabelecer a causa

e o momento de sua morte. Bastaria que enviasse o corpo ao meu

estúdio de...

O mestre não terminou a frase. Giberto, Andrea, Benedetto e

eu alcançamos o círculo de curiosos nesse preciso momento. O

caolho caminhava à frente, mudo, com esse olhar das feras antes

de atacar. Quando seu único olho distinguiu a túnica branca de

Leonardo junto ao corpo do irmão Alessandro, empalideceu.

- Nem ouse profanar o corpo de um servo de São Domingos,

Mestre Leonardo! - gritou antes de alcançá-lo.

O toscano virou a cabeça para onde estávamos. Um segundo

depois nos saudava com uma reverência e nos apresentava suas

desculpas:

- Sinto, padre Benedetto. Lamento esta morte tanto como o

senhor.

O caolho lançou um olhar ao rosto inerte de frei Alessandro,

reconhecendo-o de imediato. Parecia impressionado. Mas não tanto

como eu. Apalpei espantado suas mãos frias e rígidas, incapaz de

crer que estivesse morto. E o que pensar de Leonardo? Que fazia

ali o mestre pintor, mostrando tanta preocupação pelo

bibliotecário? Seria a confirmação definitiva de que frei Alessandro

e ele mantiveram estreito relacionamento? Benzi-me, jurando

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esclarecer o assunto, enquanto o toscano murmurava seus

pêsames:

- Que o Senhor o acolha em sua glória - disse.

- E o que mais deseja para ele? - frei Benedetto, furioso,

encarou o gigante com brio. - No fim das contas, não passou de um

inocente útil para o senhor, mestre! Admita-o agora, quando ainda

o tem de corpo presente.

- O senhor sempre o subestimou, padre.

- Não tanto como o senhor.

Uma leve agitação ameaçou a fortaleza do mestre.

- Além disso - prosseguiu Benedetto -, me surpreende que

emita, apreciação tão prematura sobre sua morte. É impróprio

para sua fama. Nosso bibliotecário amava a vida, porque haveria

de tirá-la?

Aguardei a resposta, mas o toscano não abriu a boca.

Provavelmente percebeu o jogo do caolho. Os frades de Santa

Maria tratariam de convencer a polícia de que nosso irmão caíra

numa emboscada. Aceitar a hipótese do suicídio seria desonrá-lo e,

ainda por cima, tornar inviável o sepultamento em solo sagrado.

Com cuidado, tiramos o cadáver de seu improvisado patíbulo,

bibliotecário conservava aquele curioso trejeito desenhado no

rosto; era um moço brincalhão, quase divertido, que contrastava

com seu olhar descomposto, cheio de terror. O toscano, num gesto

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piedoso que ninguém esperava, aproximou-se dele, baixou-lhe as

pálpebras e murmurou-lhe algo ao ouvido.

- Também fala com os mortos, Mestre Leonardo?

A cabeça de Andrea Rho, a um palmo da do pintor,

escarneceu gesto.

- Sim, capitão. Já lhe disse que éramos bons amigos.

E, dizendo aquilo, agarrou a mão do adolescente de cachos

louros e olhar transparente com quem viera e dirigiu os passos

para o beco do Galo.

23

Ainda não expliquei por que reagi assim. Ao ver o mestre

Leonardo se afastar entre a multidão, me lembrei do conselho de

frei Alessandro: "Em quem menos pensar terá uma solução para

seu enigma." E se a solução para a identidade do Augure a tivesse

seu maior inimigo?, pensei. Que poderia perder se o consultasse?

Acaso enfraqueceria minha investigação trocar um par de frases

com aquele gigante de túnica branca e olhos azuis?

Foi quando decidi tentar.

Deixei frei Benedetto, o irmão Giberto e Andrea arregaçando

o hábito e recolhendo os restos mortais de frei Alessandro.

Desculpei-me como pude e acelerei o passo para o mesmo beco por

onde acabara de entrar o mestre. Ao virar a esquina e não vê-lo,

decidi correr ladeira acima.

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- Dá-se muito trabalho para deter um pobre artista - o

vozeirão do mestre soou de repente em minhas costas. Deteve-se

para remexer numa barraca de verduras e eu passei ao largo sem

advertir sua presença.

Leonardo e seu efebo sorriram por sua vez, estirando os

lábios da mesma forma e entrecerrando os mesmos olhos claros em

uníssono.

- Vou averiguar - prosseguiu o gigante, enquanto sopesava

uns alhos.

- Manda o lacaio do prior, o frade de um único olho,

Benedetto, para perguntar-me se sei algo mais sobre a morte de

seu irmão. Engano-me?

- Engana-se, mestre - esclareci, enquanto recuava parte do

caminho - Não é o padre Benedetto quem me manda, e sim minha

própria curiosidade.

- Sua curiosidade?

Senti uma estranha sensação no estômago. De perto,

Leonardo era mais atraente do que me parecera na tribuna das

autoridades. Suas feições retas revelavam um homem de

princípios. Tinha mãos grandes e fortes, capazes de arrancar um

dente molar se fosse preciso... ou de dividir a uma parede com seus

desenhos mágicos. Quando me atravesso com seu olhar, tive a

impressão extraordinária de que não poderia mentir para ele.

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- Permita-me que me apresente - respirei de novo. - Na

realidade não pertenço à comunidade de Santa Maria. Sou apenas

um hóspede. Chamo-me Agustín Leyre. Padre Leyre.

- E então?

- Estou de passagem por Milão. Mas não queria perder a

ocasião de manifestar o quanto admiro seu trabalho no refeitório.

Desejaria vê-lo em circunstância mais propícia, mas Deus dispõe à

sua vontade.

- O refeitório, sim - o gigante desviou o olhar para o solo. - É

uma lástima que nem todos os frades de Santa Maria pensem como

o senhor Frei Alessandro também o admirava.

- Sei, irmão. Sei. O irmão bibliotecário me socorreu em

algumas etapas difíceis de meu trabalho.

- É a isso a que se referia o padre Benedetto quando disse que

lhe serviu de inocente útil?

Leonardo me observou com cuidado, como se estudasse que

palavras devia empregar com o homem que tinha diante de si.

Talvez não me identificasse como o inquisidor de que sem dúvida

os seus discípulos lhe teriam falado. Mas se identificou, fez com

que eu não me desse conta.

Talvez ainda não saiba, padre, mas frei Alessandro me foi de

grande ajuda para concluir um dos personagens mais importantes

de Cenacolo. E foi tão generoso, tão desprendido comigo, como

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para posar sem nada me pedir em troca e aceitar as dificuldades

que lhe surgiriam com seu gesto.

- Dificuldades? - lamentei não entender. - Que dificuldades?

Leonardo levantou as sobrancelhas ao perceber meu gesto de

assombro. Suponho que não concebia como me passava

despercebido um detalhe de tanto alcance. E, com aquele tom

sereno e magnífico, dignou-se a me ilustrar:

- O trabalho de um pintor é mais duro do que as pessoas

acreditam disse, muito sério. - Durante meses vagamos daqui para

ali em busca de um gesto, um perfil, um rosto adequado às nossas

idéias e que nos sirva de modelo. Para mim faltava um Judas. Um

homem que tivesse mal gravado no rosto; mas não um mal

qualquer: necessitava de lealdade inteligente e desperta, que

refletisse a luta interna de Judas para cumprir a missão confiada a

ele pelo próprio Deus. Concordará comigo que, sem a traição de

Judas, Cristo nunca consumaria seu destino.

- E o encontrou?

- Como? - o gigante se sobressaltou. - Ainda não entendeu?

Frei Alessandro foi meu modelo para Judas! Seu rosto tinha todas

as características que eu buscava. Era um homem inteligente mas

atormentada de expressão dura, adelgaçada, que quase ofendia

quando fitava alguém.

- E se deixou retratar como Judas? - perguntei espantado.

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- De bom grado, padre. E não foi o único. Outros padres da

comunidade posaram para este mural. Só escolhi aqueles de

expressão pura.

- Mas Judas... - protestei.

- Compreendo seu espanto, padre. Mas deve saber que frei

Alessandro sempre soube ao que se expunha. Estava consciente de

que ninguém em sua comunidade voltaria a olhá-lo da mesma

maneira depois de se prestar a algo assim.

- É compreensível, não acredita?

- Leonardo meditou um momento se devia continuar falando,

e, enquanto segurava de novo a mão da criança, acrescentou algo

que pareceu provir do mais profundo de seus pensamentos:

- O que não se podia prever e muito menos desejar -

sussurrou - que frei Alessandro fosse terminar seus dias como o

próprio Iscariotes enforcado e em solidão, longe de seus

companheiros e quase repudiado por todos. Por acaso, não reparou

também nessa estranha coincidência padre?

- Até agora, não.

- Nesta cidade, padre Leyre, logo aprenderá que nada ocorre

acaso. Todas as aparências enganam. A verdade está onde menos

se espera.

E, dizendo aquilo, sem me atrever a perguntar-lhe o que

falara com o frei Alessandro na noite anterior à sua morte, nem

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perguntar se alguma vez ouvira falar de um feroz inimigo seu que

alguns conhecíamos como Augure, o mestre esfumou-se ladeira

acima.

24

Luini desejou fugir dali com todas as forças, mas sua escassa

vontade lhe falhou mais uma vez. Embora a consciência lhe pedisse

a gritos que escapasse daquela jovem, seu corpo gozava já com os

embates rítmicos de donna Elena. "E que mais ordenava a

consciência?", pensou para se arrepender um instante depois. O

mestre nunca se vira numa situação semelhante. Uma das mulhe-

res mais desejáveis do ducado o levou pelos atalhos da paixão sem

que ele sequer abrisse a boca. A filha dos Crivelli era bela; sem

dúvida a Madalena de rosto mais angelical que jamais

contemplara. E, no entanto, Luini não podia evitar se sentir como

Adão arrastado à perdição pela mão de uma Eva luxuriosa. Ainda

sentia como mordia sua maçã envenenada e seu domínio o fazia

perder uma inocência guardada com tanto zelo até então. Por

estranho que pareça, o mestre Bernardino se contava entre os

poucos que ainda acreditavam que a verdadeira árvore da ciência

do bem e do mal foi oculta por Deus entre as pernas de uma

mulher e que comer dela, ainda que fosse uma única vez, equivalia

à condenação eterna.

- Miserere domine... - desesperou-se.

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Se donna Elena lhe desse então um segundo de descanso, o

pintor cairia no choro. Mas não: vermelho como o chapéu de um

cardeal, ele cedia a cada um dos pedidos da condessinha,

horrorizando-se quando ela brincando sobre sua virilidade,

perguntava de vez em quando pelas virtudes de Maria Madalena.

- Conte-me, conte-me tudo! - ofegava e ria com olhar de

desejo. - explique-me por que se interessa tanto por Madalena!

Antecipe-me o medo de Leonardo!

Luini, sufocado, com as calças abaixo dos joelhos e sentado

no mesmo divã que momentos antes era ocupado por donna

Lucrezia Crivelli fazia verdadeiros esforços para não gaguejar.

- Mas Elena - respondeu sem coragem -, assim não posso.

- Prometa-me que me contará!

Luini não respondeu.

- Prometa-me!

E aquele mestre pecador, extenuado, terminou prometendo

vezes por Cristo. Só Deus sabe por quê.

Quando tudo terminou e pôde recuperar o fôlego, o pintor se

sentou lentamente e se vestiu. Estava confuso. Perturbado. O titã

Leonardo já o advertira sobre o perigo das filhas da serpente e

como se entregar elas era faltar à suprema obrigação de todo

pintor, violando o sagrada preceito da criação solitária. "Só se você

se mantiver longe da mulher ou da amante poderá se dedicar de

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corpo e alma à suprema arte da criação - escreveu. - "Se, pelo

contrário, tem mulher, dividirá seus dons por dois. Por três se tem

um filho, e o perderá se trouxer duas ou mais criaturas ao mundo."

Aquelas censuras começaram a emergir do interior sua mente,

fazendo-o sentir-se fraco e indigno. Pecara. Em apenas alguns

minutos sua reputação de homem perfeito se arruinara, cedendo

lugar uma má paródia de si mesmo. E o mal era irreversível.

Donna Elena, ainda sem abrigo, no divã, olhava o pintor sem

compreender por que, de repente, ficara rígido.

- Você está bem? - perguntou com doçura.

O mestre continuou quieto.

- Por acaso não o agradei?

Luini, com os olhos úmidos e uma expressão contida, tentou;

focar o remorso que o angustiava. O que podia dizer àquela

criatura. Acaso ela entenderia sua sensação de fracasso, de

debilidade diante da tentação? E, o que era pior: não acabara de

prometer-lhe, invocar Jesus por testemunha, que revelaria o

segredo que tanto desejava conhecer ? E como faria? Não tinha ele

tanto desejo como ela própria; dando as costas à amante,

amaldiçoou sua fraqueza. Que ia fazer? Caira duas vezes, numa

mesma tarde, faltando à castidade primeiro e a palavra depois?

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- Você está triste, meu amor - sussurrou, acariciando-lhe os

ombros - O pintor fechou os olhos, ainda incapaz de articular

palavra.

- Em compensação, você me encheu de felicidade. Sente-se

culpado por me dar o que eu pedia aos gritos? Sente-se mal por

agradar uma dama?

A condessinha, lendo no silêncio as funestas idéias daquele

varão desfeito, tentou aliviar-lhe a consciência:

- Não deve me censurar nada, mestre Luini. Outros, como frei

Filippo Lippi, aproveitaram seu trabalho em conventos para

seduzir jovens noviças. E ele era um clérigo!

- O que está dizendo?

- Oh! - riu ao ver o amante sobressaltado. - Deveria conhecer

a história, mestre. O padre Lippi morreu há menos de trinta anos e

seguramente o seu Leonardo o conheceu em Florença. Era muito

conhecido.

- E você dizia que frei Filippo...

- Sem dúvida - brincou. - No convento de Santa Margarita, en-

quanto terminava uns quadros, seduziu uma tal de Lucrezia Buti e

até teve um filho com ela. Não sabia? Ora, vamos! Muitos

acreditam que a desonrada família Buti foi a que o enviou ao outro

mundo com uma boa dose de arsênico. Está vendo? Você não é

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culpado de nada. Não quebrou nenhum voto sagrado. Deu amor a

quem pediu!

O mestre duvidou. Ainda esfrangalhado, era capaz de sentir

que a bela Elena tentava ajudá-lo. Comovido, seus lábios

articularam por fim uma frase inteligível:

- Elena... Se ainda deseja, se ainda quer descobrir esse

mistério que tanto a intriga e inspira o retrato que estou pintando,

contarei o que sei do segredo de Maria Madalena.

A condessinha o observou com curiosidade. Luini parecia

extrair a dor de cada uma de suas palavras.

- Você é um homem de honra. Cumprirá sua promessa. Eu sei.

- Sim. Mas me prometa agora que nunca mais voltará a me

tocar, nem falará com ninguém sobre o que direi.

- E esse segredo, mestre, me fará conhecer a razão de sua

tristeza?

O pintor procurou o olhar transparente da condessinha, que

mal sustentava. Aquela insistente preocupação de Elena Crivelli

por seu bem-estar o desarmou. Recordou então o que ouvira dizer

da estirpe Madalenas: que seu olhar era capaz de amolecer o

coração de qualquer homem, graças ao seu poderoso feitiço de

amor. Os trovadores diziam a verdade. Como não mereceria aquela

criatura conhecer a verdade sobre sua origem? Seria tão

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desalmado para não lhe dizer onde estava o caminho que devia

percorrer para descobri-la?

E assim Bernardino Luini, forçando seu melhor sorriso,

assentiu por fim aos seus desejos.

25

O segredo de Maria Madalena segundo o mestre Luini.

- Espere, pois - disse. "Eu acabara de fazer treze anos quando

o mestre Leonardo me aceitou em sua bottega de Florença. Meu

pai, um soldado da fortuna que reunira certa quantidade de

dinheiro graças aos Visconti de Milão, achou conveniente me

instruir na arte da pintura antes de me consagrar à vida monástica

ou, pelo menos, a uma existência secular regida pelas leis de Deus.

Ele, então, enxergava com mais clareza do que eu: desejava me

afastar do fragor da guerra e me proteger sob o espesso manto da

Igreja. E como em Milão não existia nenhuma boa oficina de belas-

artes, fixou-me um dote anual e me enviou à suntuosa Florença,

ainda governada por Lorenzo, o Magnífico. "Ali começou tudo."

Mestre Leonardo da Vinci me instalou num casarão enorme e

descuidado. Por fora era preto. Assustava. Por dentro, em

compensação, era luminoso e quase desprovido de paredes. Seus

quartos foram desfeitos para dar lugar a uma sucessão de grandes

espaços invadidos pelos artefatos mais estranhos que alguém

possa imaginar. No andar térreo, junto ao saguão, dava-se o

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encontro de coleções inteiras de viveiros de plantas, vasos de barro

e gaiolas com cotovias, faisões e até falcões. Ao lado, empilhavam-

se moldes para fundir cabeças, patas de cavalo e corpos de tritão

feitos em bronze. Havia espelhos por toda parte. E velas também.

Para se chegar à cozinha se devia atravessar uma galeria de

madeira e hélices amedrontavam qualquer um; e só de pensar no

que o mestre ia esconder no desvão me enchia de pavor.

Na casa também viviam outros discípulos do mestre. Todos

eram mais velhos do que eu e, assim, depois das brincadeiras dos

primeiros, conquistei uma posição mais ou menos confortável e

pude começar a me aclimatar à nova vida. Creio que Leonardo

simpatizou comigo. Ensinou-me a ler e a escrever latim e grego

clássicos e me explicou sem essa preparação seria inútil me

mostrar outra forma de escrita qual chamava de 'ciência das

imagens'.

"Imagina, Elena? Meus conhecimentos se multiplicaram por

três inclusive coisas tão peculiares como botânica ou astrologia.

Naquele ano a divisa do mestre era lege, lege, relege, ora, labora

et invenies,* ["Leia, leia, releia, ore, trabalhe e encontrará."] e suas

leituras favoritas (e, portanto, também as nossas) eram as vidas de

santos de Jacopo da Varazze" Tommaso, Andrea e os demais

aprendizes odiavam aqueles escritos, mas para mim foram um

achado. Aprendi coisas incríveis com ele suas páginas me fizeram

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desfrutar dezenas de notícias curiosas, milagres e aventuras de

santos, discípulos e apóstolos que jamais teria imaginado que

existissem. Por exemplo, li ali que Tiago Menor era chamado de

'irmão do Senhor' porque se parecia com Ele como um floco de

neve com outro floco.

Quando Judas acertou com o sinédrio a encontrar-se e beijar

Nosso Senhor no monte das Oliveiras temia que os sicários

confundissem o verdadeiro Jesus com seu quase gêmeo Tiago.

"Disto, naturalmente, os evangelhos jamais disseram uma

palavra.

"Também me deleitei com as aventuras do apóstolo

Bartolome. Aquele discípulo com aspecto de gladiador manteve

aterrorizados os Doze graças à sua incrível capacidade de se

adiantar ao futuro. No entanto, tanta ciência lhe serviu de pouco:

não soube prever que o estraçalhariam vivo na Índia.

"Aquelas revelações se sedimentaram dentro de mim,

dotando-me de uma capacidade única de imaginar os rostos e o

caráter de pessoas tão importantes para nossa fé. Era o que

Leonardo queria: estimular nossa visão das histórias sagradas e

nos dotar desse dom especial para transferi-las às nossas telas.

Entregou-me então uma lista de virtudes apostólicas extraída de

Jacopo da Varazze que ainda conservo. Olhe: Bartolomeu de

Mirabilis, o prodigioso, por sua capacidade de se antecipar ao

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futuro. O irmão gêmeo de Jesus, João, foi chamado de Venustus, o

cheio de Graça..."

Elena, divertia-se ao perceber a veneração com que Luini

desdobrava aquele pedaço de papel guardado num bolsinho

costurado em sua camisola, arrancou-o das mãos e o leu sem

entendê-lo muito bem:

Bartolomeu Mirabilis, O prodigioso

Santiago Menor Venustus, O cheio de graça

André Temperator, O que previne

Judas Iscariote, Nefandus, O abominável

Pedro Exosus, O que odeia

João Mysticus, O que conhece o mistério

Tomé Litator, O que aplaca os deuses

Tiago Maior Oboediens, O que obedece

Filipe Sapiens, O amante das coisas elevadas

Mateus Navus, O diligente

Tadeu Occultator, O que oculta

Simão Confector, O que leva a termo

- E guardou isto por tantos anos? - disse enquanto brincava

com aquele papel sujo.

- Sim. Trata-se de uma das lições mais importantes do mestre

Leonardo.

- Pois já não o verá mais - riu.

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Luini não quis se dar por vencido. A provocadora Elena

levantava a lista por cima da cabeça, esperando que o pintor se

atirasse sobre ela. Não caiu na armadilha. Vira tantas vezes aquela

lista, estudara-a com tão intensa devoção tentando extrair de suas

qualidades os perfis dos Doze, que já não necessitava dela. Sabia-a

de cor.

- E a Madalena? - perguntou por fim a condessinha algo

decepcionada. - Ela não está entre estes nomes. Quando me falará

dela?

Luini, com o olhar perdido no crepitar da lareira, prosseguiu

seu relato:

- Como disse, estudar o livro de frei Jacopo da Varazze me

marcou. Mundo a fora. Com o tempo reconheço que, de todos seus

relatos o que mais me chamou a atenção foi o de Maria Madalena.

Por alguma razão, mestre Leonardo quis que eu o estudasse com

especial atenção. Foi o que fiz. Naquela época, as revelações com

que o mestre completou a lição do bispo de Gênova não me

chocaram em absoluto. Aos treze anos ainda não distinguia entre

ortodoxia e heterodoxia, entre o aceito pela Igreja e o inaceitável.

Talvez, por isso, a primeira coisa que me ficou gravada foi o

significado de seu nome: Maria Madalena queria dizer amar

amargo a iluminadora e também 'iluminada'. Sobre a primeira

expressão, o bispo escreveu que tinha a ver com a torrente de

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lágrimas que esta mulher derramou em vida. Amou com todo seu

coração o Filho de Deus, mas Ele viera ao mundo com uma missão

mais importante do que formar família com ela, e assim Madalena

teve de aprender a gostar dele de uma maneira diferente.

Leonardo me mostrou que o melhor símbolo para me lembrar as

virtudes desta mulher era o nó. Já no tempo dos egípcios os nós se

associou à magia da deusa Isis. Explicou-me que em seus mitos Isis

ajudou a ressuscitar Osíris e se valeu de sua destreza em desfazer

nós para conseguir seu objetivo. Madalena foi a única a ajudar

Cristo quando voltou à vida, e é justo pensar que também ela devia

ser hábil na ciência dos nós. Uma ciência, disse o mestre, não

isenta de amargura, pois quem não se angustia ao se deparar com

um laço bem amarrado no momento de desfazê-lo?

'"Quando se deparar com um nó pintado bem visível numa

tela lembre-se de que essa obra foi dedicada a Madalena', ensinou-

me.

"Quanto às outras duas acepções de seu nome, mais

profundas misteriosas, tinham a ver com um conceito caro ao

mestre Leonardo de que nos falava assiduamente: a luz. Segundo

ele, a luz é o único lugar em que Deus descansa. O Pai é luz. O céu

é luz. Tudo, no fundo, é luz. Por isso, repetia tantas vezes que se

os homens aprendessem a dominá-la seriam capazes de evocar o

Pai e falar com ele sempre que necessitasse!

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"O que então não sabia era que essa idéia da luz como

transmissor de nossos diálogos com Deus chegara à Europa graças

exatamente Madalena.

"Também vou explicar:

"Depois da morte de Jesus no Gólgota, Maria Madalena, José

Arimatéia, João o discípulo amado e um pequeno número de fiéis

seguidores do Messias fugiram para Alexandria para se proteger

da repressão que se abatera sobre eles. Alguns ficaram no Egito e

fundaram as primeiras e mais sábias comunidades cristãs que se

recordam, mas nunca a depositária dos grandes segredos de seu

amado, não se sentia assim tão perto de Jerusalém. Por isso,

acabou se ocultando na França, em cuja costa penetrou buscando

refúgio mais seguro."

- E que segredos eram esses?

A pergunta da condessinha tirou o mestre da concentração.

- Grandes segredos, Elena. Tão grandes que desde então só

poucos e seletos mortais tiveram acesso a eles.

A jovem abriu os olhos.

- São os segredos que Jesus revelou a ela depois de

ressuscitar?

Luini assentiu.

- São esses. Mas, ainda não me foram revelados.

Depois, o mestre retomou seu relato:

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- Maria Madalena, também chamada de Betânia, pisou na

terra ao sul da França num povoado que depois se chamou Les

Saintes-Maries de La Mer, porque foram várias as Marias que

chegaram com ela. Ali pregou a boa nova de Jesus e instruiu as

pessoas no "segredo da luz", aceito de imediato por hereges como

os albigenses (ou cátaros), e que acabou por se converter na nova

padroeira da França, Notre-Dame della Lumière.

"Mas a época de revelações pacíficas logo acabou. A Igreja

sentiu que essas idéias representavam um perigo para a

hegemonia de Roma e quis pôr fim à sua expansão. De seu ponto

de vista era lógico: como poderia algum papa aceitar a existência

de comunidades cristãs que dispensam uma cúria regular para se

dirigir a Deus? Poderia acaso o representante de Cristo na Terra

ficar em inferioridade - ou sequer igualdade - de condições em

relação à Madalena? E o que dizer de seus seguidores? Não era

idolatria reverenciar algo como a luz? A Igreja, pois, execrou de

imediato aquela mulher que amou Jesus e conheceu como nenhum

outro mortal sua condição humana.

"Deixe-me, querida Elena, explicar mais uma coisa: Um dia do

início de 1479, quando Florença ainda se recuperava do furioso

ataque contra nosso amado Lorenzo de Médicis*, o mestre

Leonardo recebeu uma estranha visita em sua bottega. Um homem

com seus cinquenta anos chegou ao nosso ateliê quando o Sol da

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manhã estava alto. Envaidecia-se da cabeleira loura e encaracolada

e se pavoneava sua parecença com os querubins que então

esboçávamos com lentidão em nossas telas. Aquele estranho tinha

um trato afável e estava impecavelmente vestido de preto. Chegou

sem se anunciar e vagueou pelos domínios do mestre como se

fossem seus. Tomou até a liberdade de olhar um por um os

trabalhos que estávamos fazendo. O meu por casualidade era o

retrato de uma Madalena que segurava com as mãos um recipiente

de alabastro, que pareceu agradar sobremaneira o visitante:

*[Luini se refere à célebre "conjuração dos Pazzi" que tentou

acabar com a vida de Lorenzo , o Magnífico, na catedral de

Florença. Lorenzo conseguiu escapar, mas não seu irmão Giuliano,

a quem atacaram com vinte e sete punhaladas. A representação

posterior deste crime foi uma das mais profundas do século XV. (N.

do editor espanhol)]

'"Vejo que Mestre Leonardo sabe ensiná-los!', aplaudiu. 'Seu

esboço tem grande possibilidade... Continue assim.'

"Senti-me lisonjeado.

"'Certamente', disse depois, "sabe qual é o significado do

frasco que sua Madalena está segurando?'

"Neguei com a cabeça.

'"Está no capítulo catorze do Evangelho de São Marcos,

rapaz, e a mulher ungiu Jesus quebrando, sobre sua cabeleira, o

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frasco com unguento, como uma sacerdotisa faria com um

verdadeiro rei... Um; mortal, de carne e osso.'

"O mestre chegou nesse momento. Para surpresa de todos,

não se ofendeu ao ver um intruso em sua bottega, mas seu rosto se

iluminou. Logo que se reconheceram se fundiram num abraço,

beijaram-se nas faces e começaram a falar ali mesmo sobre o

divino e o humano. Então escutei pela primeira vez algo que jamais

imaginaria sobre a verdadeira Maria Madalena:

'"Os trabalhos prosseguem em bom ritmo, querido Leonardo',

que se, ufanando , o querubim. 'Embora desde a morte de Cosme, o

Velho, tenho a impressão de que nossos esforços podem cair num

saco sem fundo a qualquer momento. A república de Florença,

estou certo, passara por provações terríveis em breve.'

"O mestre segurou as mãos do visitante e as apertou contra

as suas, grandes como as de um ferreiro.

'"Num saco sem fundo, você diz?', seu vozeirão sacudiu tudo.

A sua Academia é um templo do saber tão sólido como as pirâmide

Egito! Ou não é certo que em poucos anos se converteu em lugar

de peregrinação favorito de jovens que desejam saber mais coisas

sobre nossos brilhantes antepassados? Você traduziu com êxito

livros de plotino, Dionísio, Platão e até do próprio Hermes

Trismegisto, e verteu para o latim os segredos dos antigos faraós.

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Como vai entrar água em toda essa bagagem? Você é o pensador

mais notável de Florença, amigo velho!'

"O homem de burel preto enrubesceu.

"'Suas palavras são amáveis, amigo Leonardo. No entanto,

nossa luta para recuperar o saber que a Humanidade perdeu nos

míticos tempos da Idade de Ouro passa por seu momento mais

fraco. Por isso vim ver você.'

'"Você fala de fracasso? Você?'

'"Você sabe qual é minha obsessão desde que traduzi os livros

de Platão para o velho Cosme, não é verdade?'

'"Claro. A sua velha idéia da imortalidade da alma! Todo o

mundo honrará seu nome por esse achado! Posso visualizá-lo

esculpido em letras douradas sobre grandes arcos de triunfo:

Marsilio Ficino, herói que nos devolveu a dignidade. Até o papa

cumulará você de bênçãos!' "O querubim riu:

'"Sempre tão exagerado, Leonardo.' "

'É o que você acredita?'

'Na realidade o mérito é de Pitágoras, de Sócrates, de Platão

e até de Aristóteles. Não meu. Eu só os verti ao latim para que

todos pudessem ter acesso a esse saber.'

'Então, Marsilio, o que o preocupa?'

'Preocupa-me o papa, mestre. Há várias razões para acreditar

que foi ele quem mandou assassinar Lorenzo de Médicis na

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catedral. E estou seguro de que não foram apenas ambições

políticas que motivaram seu plano insensato, e sim religiosas.'

Leonardo arqueou suas grossas sobrancelhas, sem se atrever

a interrompê-lo.

Dura já vários meses esse maldito interdicto na cidade. Desde

o tratado dos Médicis a situação ficou insustentável. As igrejas não

podem celebrar os sacramentos ou atos de culto, e o pior é que

esta pressão continuará até que eu me renda...' Você?', o titã

respirou. 'E o que você tem a ver com isto?'

'"O papa quer que a Academia renuncie à posse de uma série

de textos e documentos antigos em que se afirmam coisas

contrárias à doutrina de Roma. A conjuração contra Lorenzo

buscava, entre outras coisas, apoderar-se deles pela força. Em

Roma estão especialmente interessados em nos arrebatar os

escritos apócrifos do apóstolo João que, como você sabe, estão em

nossas mãos há algum tempo.'

"'Entendo...'

"Meu mestre cofiou a barba como fazia sempre que meditava

alguma coisa.

"'E que informações você teme perder, Marsilio?', perguntou.

"'Esses escritos, cópias de cópias de linhas inéditas do

apóstolo amado, falam-nos do que aconteceu com os Doze depois

da morte de Jesus. Segundo ele, as rédeas da primeira Igreja, da

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original, nunca estiveram nas mãos de Pedro, e sim de Tiago. Você

imagina? A legitimidade do papa saltaria pelos ares!'

'"E você acredita que em Roma sabem da existência desses

papéis e que pretendem se apoderar deles a qualquer preço...'

"O querubim assentiu com a cabeça, acrescentando algo

mais:

"'Os textos de João não param aí.'

"'Ah, não?'

'"Dizem que além da Igreja de Tiago, entre os discípulos

nasceu outra dissidência liderada por Maria Madalena e seguida

pelo próprio João.

"O mestre conteve a expressão, enquanto o homem do burel

prosseguia:

'"Segundo João, Madalena sempre esteve bem perto de Jesus.

Tanto que muitos acreditavam que ela seria a continuadora de seus

ensinamentos, e não o bando de discípulos covardes que o

renegaram nos momentos de perigo...'

"'E por que você me conta tudo isto agora?'

'"Porque você, Leonardo, foi escolhido como depositário

desta: informação.'

"O querubim de olhar nobre respirou forte antes de

prosseguir: '"Sei como é perigoso conservar estes textos. Poderiam

levar qualquer um à fogueira. No entanto, antes de os destruir

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peço-lhe que estude, que aprenda o que possa sobre essa Igreja da

Madalena e de Jesus de que estou falando, e à medida que tenha

oportunidade vá deixando a essência destes novos Evangelhos em

suas obras. Assim se cumprirá o velho mandato bíblico: quem

tenha olhos para ver...' '...que veja.'

"Leonardo sorriu. Não pensou muito. Naquela mesma tarde

prometeu ao querubim se encarregar do legado. Sei até que

voltaram a se encontrar e que o homem do burel preto entregou ao

mestre livros e papéis que depois estudou com atenção. Mais

tarde, ante o rumo dos acontecimentos, a ascensão do frade

Savonarola ao poder e a queda da casa Médicis, nós nos mudamos

para Milão a serviço do duque e começamos a trabalhar nas mais

diversas tarefas. Da pintura passamos ao desenho e à construção

de máquinas de combate ou de engenhos para voar. Mas aquele

segredo, aquela estranha revelação que testemunhei na bottega de

Leonardo jamais me saiu da memória.

"Quer que a surpreenda com algo mais, Elena?

"O mestre não voltou a falar disso com nenhum de seus

aprendizes e creio que agora ele está justamente cumprindo a

promessa feita àquele Marsilio Ficino em Florença. Digo-lhe com o

coração na mão: não há dia em que visite seu trabalho no refeitório

dos dominicanos sem me lembrar das últimas palavras que ele

disse ao querubim naquela longíngua tarde de inverno...

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"'Quando você vir numa mesma pintura o rosto de João e o

seu próprio, amigo Marsilio, saberá que é aí, e não em outro lugar

qualquer, onde decidi esconder o segredo que me confiou.'

"E sabe? Já encontrei o rosto do querubim na Última ceia"

26

Enterramos o irmão bibliotecário no Claustro dos Mortos

pouco antes das vésperas de terça-feira, 17 de janeiro. Não

queriam que seu corpo começasse a se decompor na capela em que

foi velado e se decidiu enterrá-lo rapidamente. Dois noviços o

envolveram num lençol branco, que amarraram com correias, e o

desceram ao fundo de uma cavidade e que não tardou a se cobrir

de terra e neve. Foi uma cerimônia rápida, sem protocolo, uma

despedida apressada, apenas justificada pela nossa obrigação de

cear antes que escurecesse. E enquanto os frades sussurravam

sobre o arroz com legumes que os esperava ou os pasteizinhos de

mel que ainda sobravam do Natal, um estranho desgosto se

apoderava de mim. Por que motivo o prior e seu séquito -

tesoureiro, cozinheiro, Benedetto o caolho e o responsável pelo

scríptorium presidiram o segundo enterro em Santa Maria em

menos de uma semana como se fosse uma coisa corriqueira? Por

que se importavam tão pouco com o irmão Alessandro? Ninguém ia

derramar uma lágrima por ele?

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Só o padre Bandello teve, à sobremesa, um indício de

humanidade; em relação ao infeliz que jazia sob nossos pés. Em

seu breve sermão insinuou que tinha provas para demonstrar que

ele fora vítima de complô de algum demente que se instalara em

Milão naqueles dias. "Por isso, ninguém como ele merece sepultura

cristã neste lugar. Bandello, no entanto, nos instruiu seriamente:

"Não acreditem nas mentiras que já circulam pela cidade", disse

sem levantar a vista do caixão funerário, enquanto o via descer

pouco a pouco. "O irmão Trivulzio que Deus o tenha em sua glória,

morreu mártir nas mãos de um criminoso abominável que cedo ou

tarde será castigado. Eu próprio farei com que assim seja."

Crime ou suicídio, por mais que tratasse de aplacar minhas

suspeitas, não era fácil aceitar que dois enterros em tão pouco

tempo fossem coisa normal em Santa Maria. As últimas palavras

que o mestre Leonardo me dirigiu antes de se encaminhar para seu

ateliê me bateram na mente como o trovão que pressagia a

tempestade:

- Nessa cidade - disse antes de se despedir no beco do Galo -

nada acontece por acaso. Jamais esqueça.

Naquele dia não ceei.

Não pude.

O restante dos frades, menos escrupulosos do que este pobre

servo de Cristo, apressaram-se em encher o estômago num salão

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contíguo preparado como sala de jantar, dando conta das sobras do

ágape oferecido pelo duque no dia do enterro de sua mulher. Com

o refeitório fora de uso por causa dos andaimes e o cheiro do

verniz, os costumes dos frades estavam transtornados há anos e já

quase achavam normal subir ao primeiro andar para fazer as

refeições.

Entre tanta coisa provisória, não demorei a descobrir algo

bom: enquanto durasse a pintura, sabia que a peça da Última ceia

seria o esconderijo perfeito para me retirar e meditar, na hora da

comida. Nenhum frade perturbaria ali meus pensamentos; e

ninguém alheio ao convento bisbilhotaria num local em obras, frio

e poeirento como aquele.

E para ali, com a mente nos dias compartilhados com frei

Alessandro e na adivinhação interrompida que nos ocupou, dirigi

meus passos para rezar pelo descanso de sua alma.

A sala estava vazia. As últimas luzes da tarde mal iluminavam

a parte inferior do mural do toscano, destacando os pés de Nosso

Senhor, que apareciam cruzados, um sobre o outro. Era aquilo uma

antevisão do que Cristo estava a ponto de viver no Calvário? Ou o

mestre dispusera assim os pés por alguma outra obscura razão?

Benzi-me. A fina claridade filtrada pelas colunas irregulares do

pátio vizinho conferia uma impressão fantasmal à cena.

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Só então, ao olhar para os comensais da Santa Ceia, dei-me

conta.

Era certo. Judas tinha a cara do irmão Alessandro.

Como não percebi antes?

O mau apóstolo estava ali sentado, à direita do galileu,

admirando tudo sua serena beleza. De fato, salvo a expressão de

assombro de Tiago Maior e a animada discussão que pareciam

manter Mateus, Tadeu e Simão no outro extremo da mesa, o

restante dos apóstolos fechava os lábios em silêncio. Havia algo de

irônico pensar que naquele preciso momento a alma de frei

Alessandro poderia estar contemplando de verdade o rosto do Pai

Eterno.

Se, como Judas, o bibliotecário decidiu tirar a própria vida e

Bandello se enganava presumindo sua inocência, seu destino a

essa hora não seria a Glória e sim os tormentos perpétuos do

inferno.

Ao percorrer meu olhar pelo mural, um novo detalhe captou

minha atenção. Judas e Nosso Senhor pareciam disputar um

pedaço de pão, talvez uma fruta, que nenhum dos dois conseguia

alcançar. O traidor, que segurava com a direita a bolsa de moedas

da infâmia, estendia a mão esquerda até o exterior da mesa

tentando colher algo. O Senhor, alheio àquele gesto, estendia sua

direita na mesma direção. Que podia haver ali que interessasse a

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um e a outro? Que podia roubar Judas do Nazareno nesse instante,

quando o Filho de Deus já sabia que o atraiçoara e que sua sorte

estava lançada?

Estava mergulhado nessas reflexões quando uma visita

inesperada interrompeu meus pensamentos:

- Aposto dez contra um que nada entendeu, não é verdade?

Respirei fundo. Uma figura que não fui capaz de identificar

atravessou a penumbra, coberto com uma capa de seda granada e

se deteve a poucos passos de mim:

- O senhor é o padre Leyre, por acaso? - perguntou.

Minhas pupilas se dilataram ao distinguir o rosto de uma

mulher, doce e arredondado, sob um barrete violeta emplumado.

Aquela donzela estava disfarçada de varão, algo não apenas ilegal

mas perigoso, e me olhava com uma curiosidade nada dissimulada.

Teria mais ou menos minha altura, e suas formas de fêmea

estavam bem dissimuladas sob sua ampla roupagem. Enquanto

aguardava minha resposta, uma de suas luvas de pele acariciava a

empunhadura brilhante de um florete.

Creio que gaguejei ao lhe responder.

- Não se preocupe, padre - sorriu. - A espada é para protegê-

lo. Não lhe causará dano. Vim procurá-lo porque todas suas

dúvidas merecem resposta. E para conhecê-la meu senhor acredita

que deve permanecer vivo.

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Emudeci.

- Preciso que me acompanhe a um lugar mais discreto -

acrescentou. - Um assunto urgente reclama sua presença em outra

parte da cidade.

Seu convite não soou a ameaça, e sim a um pedido cortês. A

mulher de maneiras finas resplandecia sob sua capa, filtrando uma

força pouco habitual. Tinha um olhar desperto, felino, e uma

atitude firme de quem não aceitaria um não como resposta. E

embora as trevas já não se apossassem do local, a intrusa refez seu

caminho, arrastando-me pelo corredor que unia o refeitório à

igreja e por onde habitualmente só transitavam os frades. Como

podia conhecer tão bem esses aposentos? Quando desembocamos

na rua sem ter visto nem a sombra de um dominicano, a travestida

me intimou a apressar o passo.

Demoramos dez minutos para alcançar a igreja de Santo

Estêvão, quatro ou cinco quadras mais abaixo; então já era quase

noite. Rodeamos o templo pela direita e entramos numa ruazinha

que seria difícil de reparar sem um bom guia. A fachada de azulejo

de um importante palácio de dois andares, iluminada por duas

tochas recém-acesas, palpitava ao fundo do estreito passadiço.

Minha interlocutora, que não voltara a dizer palavra desde que

saímos de Santa Maria, apontou o caminho.

- Já chegamos? - perguntei.

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Um mordomo com gibão de lã apertado no corpo e coberto

por um capuz veio ao nosso encontro.

- Se vossa paternidade concorda - disse cerimonioso -, eu o

levarei até meu senhor. Está impaciente por recebê-lo.

- Seu senhor?

- Assim é - desfez-se numa exagerada reverência.

A espadachim sorriu.

A mansão era decorada com peças de extraordinário valor.

Velhas colunas romanas de mármore, estátuas extraídas da terra

há não muito tempo, telas e tapetes se amontoavam em patamares

de escada e muros por toda a casa. Aquele imóvel soberbo se

organizava ao redor de um pátio central, amplo, com um labirinto

de sebes ao centro, para onde nos dirigimos. Estranhei aquele

silêncio. E muito mais quando saímos a céu aberto e as ruas do

labirinto estavam cheias de rostos graves que pareciam aguardar

alguma fatalidade.

De fato: ao atravessar o pátio distingui um grupo de

serventes que não tiravam o olhos de dois indivíduos que se

olhavam com ferocidade. Estavam em mangas de camisa,

seguravam dois ferros desembainhados de lâmina estreita e,

apesar do frio, suavam copiosamente. Minha anfitriã se descobriu e

contemplou, extasiada, a cena.

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- Já começou - disse decepcionada. - Meu senhor queria que

visse isto.

- Isto? - me alarmei. - Um duelo?

Antes que pudesse replicar, o mais alto daqueles homens, um

varão corpulento, alto, de pouco cabelo e costas largas, lançou-se

sobre o mais jovem, descarregando nele toda a força de sua arma.

- Domine Jesus Christe - gritou o agredido enquanto detinha a

investida cruzando sua arma sobre o peito e abrindo os olhos de

puro terror.

- Rex Gloríael - respondeu o agressor.

Aquilo não era treinamento. A fúria do calvo crescia por

instantes, enquanto os metais se chocavam com dureza. Os golpes

eram rápidos, e duros. Clan, clan, clan. Cada impacto soava como

nota de uma melodia frenética e mortal.

- Mário Forzetta - voltou a me sussurrar a espadachim,

apontando para o jovem, que recuava agora para tomar ar - é um

aprendiz de pintor, de Ferrara. Quis enganar meu senhor num

negócio. O duelo é ao primeiro sangue, como na Espanha.

- Como na Espanha?

- Ganha o que ferir primeiro o adversário.

A luta recrudesceu. Um, dois, três, quatro novos golpes

ecoaram no pátio como canhonaços. O brilho metálico dos gumes

se projetava nas sacadas.

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- Não é sua juventude que salvará sua vida - gritou o calvo -, e

sim minha clemência!

- Ponha-a onde melhor caiba, Jacarandá!

O orgulho daquele Forzetta durou pouco. Três violentas

cutiladas minaram sua resistência, deixando-o de joelhos e

obrigando-o a apoiar as mãos contra o solo. Seu adversário sorriu

triunfalmente, enquanto os aplausos percorriam o pátio. O inimigo

do senhor da casa perdera a partida. Restava apenas cumprir o

ritual: e assim, com precisão de cirurgião, a espada do vencedor

fendeu o ar até roçar com sua ponta a face do jovem, que logo

soltou um líqüido vermelho intenso. Primeiro sangue.

- Viu? - rugiu satisfeito. - Deus fez justiça às suas mentiras.

Nunca mais ouse me enganar com falsas antigüidades. Nunca.

Então, dirigindo-se até onde eu me encontrava, satisfeito por

ver meu hábito branco e meu capuz preto entre os seus, fez uma

reverência e acrescentou algo mais para que todos ouvissem:

- Este rufião já tem sua justiça... - sentenciou. - Embora

acredito que ainda não se fez justiça a alguém tão extraordinário

como o senhor, não é verdade, padre Leyre?

Fiquei mudo. O diabólico brilho de seus olhos me fez recear.

Quem era aquele indivíduo que sabia meu nome? A que injustiça se

referia?

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Os pregadores são sempre bem-vindos a esta casa - disse. -

Embora eu o tenha mandado chamar porque desejo que juntos

reabilitemos o nome de um amigo comum.

- Temos um amigo comum? - balbuciei.

- Tivemos - precisou. - Ou acaso não se encontra entre

aqueles que acreditam que algo extraordinário se esconde por trás

da morte de nosso frei Alessandro Trivulzio?

O vencedor, que logo soube que se chamava Oliverio

Jacarandá, deixou a cena do duelo e se aproximou de mim, tocando

suavemente meu ombro em sinal de amizade. Depois se perdeu

dentro do palácio. Minha acompanhante me pediu que o

esperássemos. Pude ver assim o pequeno exército de servidores de

Jacarandá entrar em ação: em pouco mais de dez minutos

desmancharam o pódio sobre o qual se realizou o duelo, e

carregaram aquele Forzetta, ferido e manietado, até algum lugar

dos fundos do palácio. Quando passou por mim, pude ver que o

desgraçado era quase uma criança. Um jovem de rosto redondo e

olhos de esmeralda que, durante um instante fugaz, cravaram-se

nos meus implorando socorro.

- Os espanhóis são homens de honra - a mulher, que soltara a

cabeleira loura e pendurara o cinturão com seu florete, falou-me

com amabilidade. - Oliverio é de Valença, como o papa. Além disso,

é seu provedor favorito.

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- Seu provedor? Disse, na verdade. Embora - mudei a

expressão do rosto – duvide que me chamasse para me pôr ao

corrente de seus negócios. Ou me engano?

O dono do palácio deixou escapar um risinho cínico.

- Sei quem é, padre Leyre. Há alguns dias se apresentou

como inquisidor perante os funcionários do duque e apresentou

seus respeitos no funeral de donna Beatrice. Vem de Roma. Alojou-

se no convento de Santa Maria e passa a maior parte do tempo

resolvendo adivinhações em latim. Como vê, mal tem segredos

para mim, padre.

O antiquário bebeu daquele líqüido vermelho antes de

estabelecer uma nuance:

- Apenas...

- Não entendo.

- Permita-me que vá diretamente ao ponto. O senhor parece

ser um homem inteligente e talvez possa me ajudar a resolver um

problema que temos em comum. Trata-se de frei Alessandro

Trivulzio, padre.

Por fim entrou no assunto da morte do bibliotecário.

- Muito antes de que o senhor chegasse a Milão, ele e eu

éramos bons amigos. Até podíamos dizer que éramos sócios.

Trivulzio atuava como intermediário entre algumas famílias

importantes de Milão e meu negócio. Por intermédio dele, fazia

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chegar minhas ofertas de antiquário sem levantar suspeitas na

cúria, e frei Alessandro recebia certas compensações por isso.

- Dei um passo atrás.

- Estranha, padre Leyre? Outros frades em Bolonha, Ferrara

ou Siena me ajudam nesta espécie de tarefas. Não matamos

ninguém. Só passamos por cima de proibições e escrúpulos

absurdos que, estou seguro, um dia recordaremos como algo

risível, próprio de mentes antiquadas. Que há de errado em

recuperar fragmentos de nosso passado e entregá-los aos ricos

para seu deleite? Por acaso não brilha um obelisco egípcio na

praça de São Pedro, em Roma?

- Está se metendo na boca do lobo, senhor - respondi muito

sério.

- Lembro que faço parte dessa cúria que o senhor passa ao

largo.

- Sim, sim, mas me deixe continuar. Por desgraça, não é só

sua severa cúria que põe obstáculos ao nosso trabalho. Como pode

supor, vendo obras de arte e peças antigas a ricas senhoras da

corte, às escondidas de seus maridos, que tampouco aprovam esta

classe de negócios. Frei Alessandro foi peça-chave em algumas de

minhas operações mais importantes. Tinha a excelente habilidade

de se convidar a qualquer mansão de Milão com o pretexto de uma

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confissão, e depois era capaz de fechar um negócio nas próprias

barbas dos nobres lombardos.

- E o que obtinha em troca? Dinheiro?... Permita-me duvidar.

- Livros, padre Leyre. Recebia livros escritos a mão, ou

impressos, proporcionalmente ao valor da venda. Obras copiadas

com delicadeza ou fabricadas com pranchas modernas na França

ou no Império Germânico. Cobrava em espécie, se prefere chamar

assim. Sua obsessão era reunir volumes e mais volumes para a

biblioteca de Santa Maria. Mas, suponho que o senhor já sabia.

- O que não consigo entender é por que me conta isso. Se o

irmão Alessandro era seu amigo, por que mancha sua memória

com suas confidências?

- Nada mais longe de minha intenção - riu, nervoso. - Permita-

me explicar algo mais, padre: pouco antes de morrer, seu

bibliotecário participou de uma tarefa muito especial. Relacionava-

se com uma de minhas melhores clientes e, portanto, pus o assunto

em suas mãos sem hesitar um minuto. Na verdade, era a primeira

vez que alguém de alta linhagem não me pedia a estátua de algum

fauno para decorar uma casa de campo. Seu pedido, embora

pareça estranho, entusiasmou a nós dois.

Olhei para Jacarandá intrigado.

- Minha cliente só queria que solucionássemos um pequeno

enigma, quase doméstico. Como especialista em antigüidades,

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pensou que eu poderia identificar certo objeto precioso de que

possuía uma descrição exterior bem precisa.

- Uma jóia, talvez?

- Não. Nada disso. Era um livro.

- Um livro? Como os que o senhor utilizava para pagar a...?

- Esse nunca foi impresso - me interrompeu. - Ao que parece,

tratava-se de um antigo manuscrito de raridade e valor

excepcionais. Um exemplar único que chegou aos seus ouvidos por

fontes diversas, e que minha cliente ansiava possuir mais do que

qualquer outro tesouro no mundo.

- E que livro era esse?

- Eu nunca soube. Só me deu alguns detalhes de seu aspecto:

um livro de capa azul, de poucas páginas, com a cobertura rebitada

por quatro cravos de ouro e as folhas iluminadas com o mesmo

metal precioso. Uma pequena jóia com aspecto de breviário, sem

dúvida importada do Oriente.

- E pôs mãos à obra com a ajuda de frei Alessandro - intervim.

- Tínhamos duas valiosas pistas a seguir. A primeira era a

pessoa de quem minha cliente ouviu falar pela primeira vez

daquele livro: o mestre Leonardo da Vinci. Por sorte, o seu

bibliotecário o conhecia bem, e não lhe seria difícil chegar a ele e

averiguar se o pintor o tinha, ou não em seu poder.

- E a segunda?

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- Entregou-me um desenho exato do livro que devia descobrir.

- Sua cliente tinha um desenho do livro?

- Exatamente. Aparecia num jogo de naipes muito caro a ela.

Numa das cartas, a que mostrava o retrato de uma grande mulher,

aparecia representado esse livro. Não era grande coisa,

certamente, mas muitas vezes iniciei negócios com menos

informação. Na carta se identificava uma religiosa que segurava

esse livro nas mãos. Um livro fechado, sem título na capa nem

qualquer outro sinal identificativo.

"Um livro num jogo de cartas?", alarmei-me. "Não fora frei

Bandello quem me falou antes de algo parecido?"

- Posso perguntar quem é a sua cliente? - perguntei-lhe.

- Claro. Por isso exatamente convoquei-o para esta reunião: a

princesa Beatrice d'Este.

Meus olhos se escancararam.

- Beatrice d'Este? A mulher do Mouro? Está dizendo que frei

Alessandro e donna Beatrice se conheciam?

- E muito. Agora, como se vê, ambos estão mortos.

- O que insinua?

Jacarandá procurou assento por trás da escrivaninha,

satisfeito por ter captado toda minha atenção.

- Vejo que começa a entender minha preocupação, padre

Leyre. Diga-me: até que ponto conheceu Mestre Leonardo?

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- Só falei com ele uma vez. Esta manhã.

- Deve saber que se trata de uma pessoa estranha, a mais

extravagante e obscura que jamais veio a estas terras. Emprega

cada minuto do dia para trabalhar, ler, desenhar e pensar sobre os

assuntos mais absurdos que se possa imaginar. Ele inventa

receitas culinárias com que diverte o duque, modela em marzipã

máquinas de guerra de aspecto extravagante para seus banquetes.

Também é um homem desconfiado. Tem um grande zelo por suas

coisas, suas propriedades. Jamais deixa alguém bisbilhotar suas

anotações e muito menos farejar sua biblioteca, que como não é

difícil de imaginar, é grande e valiosa. Escreve até da direita para

a esquerda, como os judeus!

- Deveras?

- Não mentiria sobre algo assim. Se quiser ler algum de seus

cadernos deverá recorrer a um espelho. Só refletindo nele as

páginas conseguirá compreender o que escreveu nelas. Não é um

ardil demoníaco. Conhece alguém capaz de escrever invertido,

desta maneira? Esse homem, creia-me, esconde segredos terríveis.

- Continuo sem compreender por que está me contando isto -

insisti.

- Porque... - fez uma pausa teatral - estou seguro de que

acabarão com nosso amigo comum, padre Alessandro, por ordem

de Leonardo da Vinci. E creio que a culpa por tudo isso se deve à

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posse desse maldito livro, o mesmo que foi ambicionado pela

princesa e que também lhe custou a vida.

Devo ter empalidecido.

- É uma acusação muito grave!

- Comprove-a - desafiou-me. - O senhor é o único que pode.

Vive em Santa Maria delle Grazie, mas não está vendido ao duque

como os outros. O prior deseja que o mosteiro seja concluído com o

dinheiro do Mouro, e duvido que se atreva a arremeter contra seu

artista favorito, ameaçando as subvenções. Convido-o a resolver

este enigma comigo; consiga o livro e não apenas lançará luz sobre

as mortes da princesa e de frei Alessandro, mas, terá também,

provas para acusar Leonardo de assassínio.

- Não me agradam seus métodos, senhor Jacarandá.

- Meus métodos? - riu. - Observou bem o homem que derrotei

em duelo?

- Forzetta?

- Ele mesmo. Pois direi algo mais de meus métodos:

trabalhava para mim. Ordenei-lhe que apanhasse o "livro azul" da

bottega de Leonardo. Forzetta foi um antigo discípulo do toscano e

conhecia bem os lugares em que poderia estar escondido.

- Mandou roubar algo de Leonardo da Vinci?

- Queria resolver este assunto, padre. Mas reconheço meu

fracasso. Esse inútil pegou de seu ateliê um livro diferente: a Divini

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Platonis Opera Omnia. Um livro impresso há alguns anos em

Veneza, de pouquíssimo valor. E pretendia me enganar com ele,

vendendo como se fosse o incunábulo que eu procurava.

- Divini Platonis... - murmurei. - Conheço esse livro.

- Deveras?

Concordei:

- É a famosa tradução das obras completas de Platão feita por

Marsilio Ficino para Cosme, o Velho, de Florença.

- Pois o velhaco assegura que Leonardo o tinha em grande

apreço.

- Que ficou dias usando-o para dar forma a um dos apóstolos

do Cenacolo.

- O que me importa isso, com os diabos? Perdi um amigo por

culpa dele e quero saber por quê. Vai ajudar-me?

27

Porta Romana era o bairro elegante da cidade. Percorrido dia

e noite pelas carruagens mais esplêndidas da Lombardia, tinha a

vaidade de ser o único acesso monumental à Milão. Suas galerias

estavam sempre cheias de gente de boa presença e as damas

gostavam de passar por elas para tomar o pulso diário da cidade.

Núncios papais, embaixadores estrangeiros ou fidalgos, todos

procuravam se deixar ver ali, aspirando se sentir admirados. Sua

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situação junto ao principal canal da cidade até a Porta Romana era

uma exposição de vaidades sem igual.

Bem na metade da rua se erguia o Palazzo Vecchio. Era um

prédio público querido pelos milaneses, foro habitual de confrarias,

grêmios e até de juízes. Tinha três pisos, seis amplos salões e um

labirinto de escritórios que mudavam de dono com facilidade.

Pois bem, na noite que passei na casa de Oliverio Jacarandá

todas suas peças ferviam de expectativa. Mais de trezentas pessoas

faziam fila na rua para admirar a última obra do mestre Leonardo;

muitos dos homens probos da cidade aproveitaram o pretexto e

marcaram encontro para comentar os últimos acontecimentos da

corte. Não havia cidadão ou cidadã que não reivindicasse convite

para aquele ato.

O toscano organizou sua exposição às pressas, talvez a pedido

do próprio duque que, a apenas quarenta e oito horas do enterro

de sua mulher, já pensava em reativar a vida pública milanesa.

O mestre Luini chegou em companhia de uma radiante Elena

Crivelli. Insistiu tanto, que o jovem mestre concordou em levá-la

consigo. Ainda se envergonhava só de pensar no que ocorrera

entre eles há apenas um par de dias, e seu íntimo continuava

agitado como uma tormenta marítima. Para tornar a situação mais

difícil, a filha de donna Lucrezia escolheu um impressionante

aparato para a ocasião: um vestido azul provido de peles, corpete

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com decote quadrado, bordado com fios de ouro. O cabelo

recolhido numa redezinha de pedraria e o tom carmim dos lábios a

elevavam à categoria de deusa. Luini se esforçava para manter

distância, para sequer roçá-la.

- Mestre Bernardino! - O vozerio de Leonardo os deteve

quando iam subir para o segundo andar do Palazzo Vecchio. - Que

alegria vê-lo. E tão bem acompanhado! Diga-me, quem veio com

você?

Luini inclinou cerimonioso a cabeça, surpreendido pela

descarada curiosidade do mestre:

- É Elena Crivelli, Mestre - respondeu sem demora. - Uma

jovem que admira o senhor e que insistiu em me acompanhar à sua

exposição.

- Crivelli? Grande surpresa! É por acaso da família do pintor

Cario Crivelli?

- Sou sua sobrinha, senhor.

Os olhos claros de Elena despertaram certas recordações do

toscano. Leonardo parecia embriagado.

- É portanto filha de...

- De Lucrezia Crivelli, que o senhor conhece bem.

- Donna Lucrezia! Claro! - disse, olhando de novo para Luini. –

E veio com mestre Bernardino, a quem sem dúvida conheceu

durante suas sessões de pose. É sua nova Madalena!

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- É assim.

- Magnífico! Chegou num momento mais do que oportuno.

Leonardo examinou de novo a jovem, em busca dos traços

que tanto o impressionaram em sua mãe. Um olhar rápido bastou

para identificar uma mesma arquitetura frontal, nariz idêntico,

incluindo as maçãs do rosto e queixo geminados. O prodígio

geométrico do rosto de donna Lucrezia conseguiu uma nobre

continuação no de sua filha.

- Se dispuser de tempo, gostaria que me acompanhasse à sala

que preparei para mostrar meu retrato. Logo estará cheia de

convidados e já não teremos oportunidade de admirá-lo em

particular.

O mestre apontou para uma peça pequena, contígua ao

gigantesco maquinário na escada. A peça fora preparada com

carinho. Cada uma de suas paredes estava coberta com panos

pretos que deixavam só visível um pequeno quadro de 63 x 45

centímetros, emoldurado por uma madeira clara de pinho, lisa.

- Sabe? - prosseguiu Leonardo. - Pensei que esta era a melhor

ocasião de mostrá-lo. A morte de donna Beatrice nos entristeceu

tanto que precisamos de toda a beleza possível para recuperar o

ânimo. O mestre Luini talvez já tenha dito: necessito de alegria ao

meu redor.

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- Vida. E como sempre que tirei de meu ateliê algum quadro

tive tanta aceitação... Pensou que mostrar uma nova obra sua

poderia devolver as pessoas às ruas - aplaudiu Bernardino.

- Exato. E, apesar do frio, parece que conseguirei. E então? –

O toscano mudou de parede, apontando agora para sua

composição. – Que lhes parece?

Os três fixaram o olhar na parede assinalada. O óleo era

sensacional. Uma mulher jovem, com um vestido vermelho a que

Leonardo exprimira não só os tons do veludo, mas também, os

pontos do tecido da gola, olhava-os serena à mesma altura deles.

Tinha o cabelo recolhido numa longa trança e um fino diadema

cingia a testa com infinita ternura. Era um retrato incrível.

Outra obra do apogeu do mestre. Se em vez de uma moldura

estivesse rodeada por uma janela, ninguém poderia dizer que

aquela senhora não estava realmente ali, observando-os.*

*[Trata-se do quadro conhecido pelos críticos como La belle

Ferronière atualmente no Louvre.]

- Elena e Bernardino se olharam perplexos, sem saber o que

dizer.

- Acreditávamos... - balbuciou Luini. - Acreditávamos que ia

mostrar um retrato de donna Beatrice, mestre.

- E por que haveria de mostrar? - sorriu. - A princesa d'Este

nunca teve tempo de posar para mim.

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Os olhos de Elena se umedeceram de emoção.

- Mas é... é...

- É sua mãe, donna Lucrezia. Sim - disse o toscano,

enrugando seu enorme nariz. - Sem dúvida uma das mulheres mais

belas que conheci. E beleza, harmonia, é justamente o que

precisamos neste momento de luto, não lhe parece?

A jovem Elena não podia afastar o olhar do retrato.

- Jamais mostraria em público este trabalho se não fosse

necessário. Deve acreditar em mim.

- É?... - hesitou. - É acaso por sua teoria da luz? Bernardino

me explicou como é importante para o senhor.

- Deveras?

Um brilho de malícia faiscou nos olhos do toscano.

- Para o senhor, a luz é a essência do divino. Sua presença ou

sua ausência num quadro revela tudo sobre o objetivo final do

artista. Não é certo?

- Pode ser... Surpreende-me, Elena. E me diga: que espécie de

propósito oculto adivinha neste retrato?

A condessinha examinou a tela mais uma vez. O rosto

resplandecente de sua mãe só faltava falar.

- É um sinal, mestre.

- Um sinal?

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- Oh, sim. O senhor envia sinais em meio à obscuridade. Como

faria um farol na noite. Envia sinais aos homens de fé. Aos que

preferem a luz às sombras.

O mestre se sentiu embaraçado.

De repente sua surpresa se transformara em preocupação. E

Elena notou. Viu o mestre se certificar de que ninguém mais

escutava sua conversa e pediu à condessinha que lhes concedesse,

a Bernardino e a ele, um minuto para conversarem a sós. A dama,

solícita, afastou-se até uma das janelas grandes com vista para a

Porta Romana.

- Mas, pode-se saber o que fez, mestre Luini?

O sussurro de Leonardo se cravou como uma adaga nos

ouvidos de seu discípulo.

- Mestre, eu...

- Falou-lhe da luz! À uma criança!

- Mas...

- Nada de mas. Sabe também que a luz é um dos atributos de

sua família? O que mais revelou a ela, insensato?

Luini estava paralisado de terror. De repente compreendeu o

terrível equívoco que pressupunha o fato de que Elena o

acompanhou àquele ato. Sufocado, abaixou a cabeça sem saber o

que dizer.

- Já vi - prosseguiu Leonardo. - Agora compreendo tudo.

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- O que compreende, mestre?

Um nó apertou-lhe a garganta, como se fosse estrangulá-lo.

- Dormiu com ela. Não é certo?

- Dormi?

- Responda-me!

- Eu... Sinto, mestre.

- Sente? Não se dá conta do que fez?

Leonardo tentou abafar suas palavras para não chamar a

atenção da condessinha.

- Deitou-se com uma Madalena! Você! Um fiel da causa de

João!

O mestre engoliu saliva. Necessitava de tempo para pensar.

Sua mente tratava de absorver aquela situação da mesma maneira

como buscava que as peças de suas máquinas se ajustassem umas

às outras. Que outra coisa podia fazer? O gigante acabaria por

absorvê-la como um sinal a mais da Providência. Outra indicação

de que os tempos estavam mudando em grande velocidade, e de

que logo seu segredo lhe escaparia das mãos.

Como pudera ser tão ingênuo? Como não previra a

eventualidade de que o jovem discípulo encarregado de vigiar de

perto a filha de donna Lucrezia acabasse em seus braços?

Leonardo, que repudiava o amor carnal, devia se apressar. Creio

que foi nesse dia que o mestre decidiu a conveniência de iniciar

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Elena nos mistérios de seu apostolado, antes que outros amantes a

desviassem de seu caminho.

Sim. Foi então que exigiu a presença da condessinha a seu

lado e fez algo que ninguém lhe vira fazer antes: falou-lhe de suas

preocupações.

- Desculpe-me esta interrupção - desculpou-se. - Quero dizer

que sua visita não podia ser mais oportuna. Necessitava falar com

alguém de confiança. Creio que me espionam. Que vigiam meus

movimentos e os de meus ajudantes.

- O senhor, mestre? - Luini estremeceu.

- Você verá - prosseguiu. - Estou suspeitando há anos. Você

sabe, Bernardino, que sempre suspeitei das pessoas. Há anos que

escrevo em cifra toda minha correspondência, anoto minhas idéias

de maneira que poucos possam lê-las e desconfio daqueles que se

aproximam só para farejar minhas coisas. No entanto, domingo, dia

em que enterramos a princesa, esses velhos temores se

confirmaram de maneira dramática. Naquele dia, perto daqui,

morreram dois homens de Deus em estranhas circunstâncias.

Bernardino e Elena abanaram a cabeça incrédulos. Não

sabiam daquilo.

- Um apareceu enforcado na praça do Comércio. Estava com

uma carta que você, mestre Luini, conhece tão bem como eu.

Pertence a um baralho desenhado para os Visconti em meado do

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século, e mostra uma irmã franciscana com a cruz do Batista numa

mão e o Livro de João na outra.

- A Madalena!...

- É uma de suas muitas representações, de fato - prosseguiu.

– Os nós na corda que circunda seu ventre inchado evidenciam

isso. Mas são poucos, pouquíssimos, os que conhecem o código.

- Continue, por favor - insistiu Bernardino.

- Como você pode imaginar, Mestre Luini, interpretei o

achado da carta como um sinal. Um aviso de que alguém tratava de

me assediar. Tentei convencer os soldados do duque de que o frade

se suicidara. Queria ganhar tempo para fazer minhas averiguações,

mas a segunda morte confirmou meus temores.

- Que temores? - Elena não pestanejou.

- Você saberá, Elena. O outro também era um velho amigo

meu.

A condessinha estremeceu.

- O senhor o conhecia?

- Conhecia. Os dois. Giulio, a segunda vítima, morreu

sangrando diante da Maestà. Alguém atravessou seu coração com

uma espada. Não roubou dinheiro, nem qualquer pertence, a não

ser...

- A não ser?

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- ...a não ser a carta da franciscana que depois foi encontrada

junto ao frade. Tenho a desagradável sensação de que o assassino

queria que eu estivesse a par de seus crimes. No fim das contas, a

Maestà é uma obra minha e o frade enforcado pertencia ao

convento de Santa Maria.

Mesmo com receio de ser importuna, Elena falou de novo.

- Mestre, e isso se relaciona com seu desejo de mostrar agora

o trato de minha mãe? Tem algo a ver com estas horríveis notícias?

- Já compreenderá, Elena - respondeu o mestre. - Sua mãe

não posou para mim apenas para este retrato. Quando era mais

jovem, serviu de modelo para a Virgem da Maestà. Voltei a

recorrer a ela quando pintei de novo há apenas alguns meses.

Quando entreguei a encomenda, há dez dias, os franciscanos a

substituíram pela velha versão. Tudo foi tão rápido que não tive

tempo de avisar os Irmãos da substituição.

"Os Irmãos?" Desta vez Elena não o interrompeu.

- Vejo que o mestre Luini ainda não contou tudo - sussurrou

Leonardo. - Este quadro é como um evangelho para eles. Era seu

conforto espiritual, sobretudo depois que a Inquisição os despojou

de seus livros sagrados. Vinham vê-lo às dezenas. No entanto,

quando os franciscanos se deram conta e começaram a brigar

comigo me vi forçado a apresentar-lhes uma nova versão,

desprovida dos símbolos que a tornavam tão especial. Demorei dez

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anos para completar a encomenda, mas já não pude atrasá-la mais.

Por desgraça não avisei os Irmãos para que deixassem de ir a San

Francesco em busca de iluminação, e o último deles, meu querido

Giulio, pagou o desacerto com a vida. Alguém o esperava.

- Tem idéia de quem possa ser?

- Não, Bernardino. Mas, seu móbil foi o de sempre; o mesmo

que levou São Domingos a criar a Inquisição: acabar com os

últimos cristãos puros. Pretendem sufocar pela força o que não

conseguiram sufocar em Montségur aniquilando os albigenses.

- Então, Mestre, aonde irão agora os Irmãos para satisfazer

sua fé?

- Ao Cenacolo, naturalmente. Mas só acontecerá quando

estiver pronto. Por que acham que pinto na parede e não na

madeira? Pensam por acaso que é pelo tamanho? Nada disso -

levantou o indicador em sinal de negação. - É para que ninguém

possa arrancá-lo e me obrigar a refazê-lo. Só assim os Irmãos

encontrarão um local para seu consolo definitivo. Não ocorrerá a

ninguém procurar nas barbas dos inquisidores.

- É engenhoso, mestre... mas arriscado.

Leonardo sorriu de novo:

- Entre os cristãos de Roma e nós há uma grande diferença,

Bernardino. Eles necessitam de sacramentos palpáveis para se

sentir abençoados por Deus. Ingerem pão, ungem-se com azeites

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ou submergem em águas bentas. Porém, nossos sacramentos são

invisíveis. Sua força reside na abstração. Quem os nota dentro de

si percebe um golpe no peito e uma alegria que o inunda todo.

Alguém sabe que está salvo quando sente este paço. Minha Última

ceia os dispensará de semelhante obrigação. Por que acreditam

que Cristo não ostenta ali a hóstia dos romanos? Porque seu

sacramento é outro...

- Mestre - Luini o interrompeu. - O senhor fala diante de

Elena como se ela já conhecesse sua fé. E o certo é que ainda não

tem informação sobre o alcance do que o senhor está dizendo.

- E então?

- Espero que me faça uma concessão: que me permita levá-la

ao Cenacolo e iniciá-la ali em seu idioma. Em seus símbolos. Talvez

assim... - Bernardino duvidou, como se medisse as palavras - ambos

possamos nos purificar e merecer um novo lugar junto ao senhor.

Ela assim o deseja.

O toscano não pareceu muito surpreso.

- Isso está certo, Elena?

A jovem assentiu.

- Pois, deve saber, que a única maneira de conhecer minha

obra é participar dela. Você sabe melhor do que ninguém,

Bernardino - resmungou. - Eu sou o único Ômega a quem deverá

doravante se dirigir.

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- Se sua intenção é atraí-la, mestre, então por que não a toma

como modelo? A mãe dela serviu para seu evangelho da Maestà.

Por que a filha não serviria para o mural que está ultimando?

Leonardo titubeou.

- Para o Cenacolo?

- E por que não? - respondeu Luini. - Por acaso não necessita

um modelo para o apóstolo amado? Acredita que encontrará um

rosto mais angelical do que este para concluir o João?

Elena baixou o olhar, deleitada. Aquele asceta de roupa

branca acariciou pensativo as barbas espessas, enquanto

examinava de novo a jovem Crivelli. Depois soltou uma gargalhada

que ecoou por toda a sala.

- Sim - trovejou. - E por que não? No fim das contas, não

imagino ninguém melhor do que ela para esse destino.

28

- Oliverio Jacarandá? Uma expressão de desgosto se desenhou

no rosto do prior logo que pronunciou aquele nome. Frei Vicenzo

mandou me chamar quando soube que eu regressara ao convento.

Ao que parecia, a comunidade ficara horas em alerta por causa de

minha inesperada ausência. Alguns padres, armados com cajados e

tochas, saíram à minha procura ao cair da noite. Por isso, quando

Maria Jacarandá me devolveu à porta do convento, ileso embora

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com a mente algo perturbada, o prior se apressou a reclamar

minha presença junto a ele.

- E o senhor diz, irmão Leyre, que passou o serão em

companhia de Oliverio Jacarandá, na casa dele?

Seu tom era de franca preocupação.

- Vejo que o conhece, prior.

- Claro que sim.-respondeu. - Toda Milão sabe quem é esse

parasita. Comercializa objetos litúrgicos, compra e vende

igualmente retratos de santos e Vênus nuas, e manipula mais

dinheiro e recursos do que muitos nobres da casa do duque. O que

não entendo – acrescentou entrecerrando os olhos com uma

expressão astuta - é o que poderia querer do senhor.

- Desejava me falar sobre frei Alessandro, prior.

- Do padre Trivulzio?

Concordei. Bandello parecia perturbado.

- Ao que parece, ambos mantinham uma espécie de relação

comercial. Estavam, digamos assim, associados. Isso é uma

estupidez! Que poderia interessar o padre Trivulzio; descanse em

paz, num homem imoral e depravado como esse?

- Se o que o senhor Jacarandá me disse é certo, frei

Alessandro tinha a vida dupla. Diante do senhor era um homem

temente a Deus, amante das letras e do estudo; mas longe de seu

olhar protetor se converte num traficante de antigüidades.

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A mente de Bandello fervia como uma panela de sopa.

- Custa acreditar no senhor - resmungou. - Embora, olhando

talvez isso explique certas coisas...

- Certas coisas? A que se refere, prior?

- Falei com a polícia do Mouro sobre as circunstâncias da

morte de frei Alessandro. Há um ponto obscuro que não soubemos

interpretar. Uma contradição suprema, que nos mantém

desconcertados.

- Explique, peço-lhe.

Veja, a polícia não encontrou sinais de violência, ou

resistência no corpo do padre Trivulzio. No entanto, tudo indica

que não se enforcou sozinho. Alguém mais esteve com ele naquele

momento. Alguém deixou um estranho cartão de visita preso a um

dos pés descalços do bibliotecário.

O prior remexeu no bolso, estendendo-me um pedaço de

pergaminho cheio de garatujas e linhas de aspecto

incompreensível. Foram traçadas sobre uma espécie de cartão

oblongo, de bordas finas, muito deteriorado pelo uso.

- Olhe - disse, estendendo-me o cartão.

Minha expressão devia ser de espanto, porque o prior me

observou satisfeito por atrair toda minha atenção. Como não ia me

espantar? Parte daqueles traços correspondia à adivinhação que

me levara até ali. O fato: Óculos ejus dinumera, a estranha

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assinatura do Augure, ocupava o centro do cartão. Seus sete versos

foram escritos com letra trêmula davam a impressão de passar por

uma intensa investigação, como as anotações que os rodeavam

fizessem parte dos esforços de um ser para encontrar o sentido.

- É a minha adivinhação! - admiti.

- "Conte-lhe os olhos, mas não olhe para a cara. A cifra de um

nome e achará em suas costas..."

- Sim, eu sei. O senhor confiou-a a mim antes da morte de frei

Alessandro. Recorda-se?

- Mas, estas notas - descrevendo, com o dedo, um círculo ao

redor do escrito - não são minhas, padre Leyre.

A malícia brilhou em seus olhos.

- E isso não é tudo. Olhe.

O padre Bandello virou o cartão. A inconfundível estampa de

uma franciscana segurando na mão direita uma cruz e na esquerda

um livro me paralisou.

- Santo Cristo! - exclamei. - A carta... Sua carta!

- Não. A carta de Leonardo - corrigiu-me. - Ninguém sabe

quem colocou esta carta no corpo de frei Alessandro depois de

morto, mas é óbvio que significa algo. Lembro-lhe que o toscano

nos desafiou com esse mesmo desenho. E agora este aparece junto

à sua adivinhação, no pé do bibliotecário. Que pensa disto?

Respirei fundo.

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- Há algo que ainda não contei, prior.

Bandello enrugou a testa.

- Não sei como interpretar à luz de suas revelações, mas o

senhor Jacarandá e eu estivemos falando precisamente dessa carta.

Ou, para ser mais exato, do livro que essa mulher está segurando.

- O livro?

- Não é um livro qualquer, prior. Jacarandá quis encontrá-lo

para satisfazer uma importante encomenda, e confiou o trabalho a

frei Alessandro. Ao que consta, quem possui tão importante volume

é o mestre Leonardo, portanto, pensou que ao nosso bibliotecário

seria mais fácil do que qualquer outro chegar até ele e fazer-lhe

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uma oferta. Uma simples operação comercial que já custou a vida

de duas pessoas.

- Duas pessoas, está dizendo?

- Ainda não disse, prior, mas a cliente que desejava comprar

livro era Beatrice D'Este, que descanse em paz.

- Deus do céu.

O prior me convidou a prosseguir:

- Jacarandá não sabe por que motivo a condessa contratou

seus serviços para localizar o livro e não o pediu diretamente ao

mestre Leonardo. Mas, está convencido de que, de uma maneira ou

outra, Leonardo está implicado nestas mortes.

- E o senhor, o que pensa, padre Leyre?

- Resisto a acreditar. Leonardo é um artista, não um soldado.

Frei Vicenzo baixou a vista, preocupado.

- Concordo, por pensar igual, mas pelo que vejo as mortes se

acumulam de maneira insólita ao redor do mestre.

- O que deseja dizer?

- Ontem mesmo ocorreu algo estranho não muito longe daqui,

igreja de São Francisco foi profanada com o assassínio de um

peregrino.

- Um crime? - a notícia me sobressaltou. - Em solo sagrado?

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- Isso mesmo. Atravessaram o coração do infeliz justamente

diante do altar-mor, sob o novo retábulo de Leonardo, poucas

horas antes da morte de frei Alessandro. E quer saber mais?

O prior respirou fundo antes de prosseguir:

- A polícia encontrou entre seus haveres o baralho a que esta

pertencia. A pessoa que matou esse homem lhe roubou a carta,

anotou sua adivinhação no reverso e depois a depositou junto ao

corpo de nosso bibliotecário. O senhor deve me ajudar a encontrá-

lo. - Ou muito engano ou nosso assassino, seja quem for, também

está à procura do maldito livro de Leonardo.

29

- Necessito que me entreguem seu prisioneiro.

Maria Jacarandá me olhou estupefata. Já não vestia as roupas

masculinas da noite anterior e sim um vestido pouco ajustado, de

mangas branco-azuis e corpete listrado. A cabeleira loura estava

recolhida numa simpática redezinha, e seu aspecto era radiante.

Era evidente que a jovem Jacarandá não esperava voltar a me

ver tão rapidamente, e muito menos que regressasse ao seu

palácio por um motivo tão... peculiar. O que ignorava, no fundo,

era que não restava a este inquisidor outra escolha. Mário

Forzetta, o espadachim que seu pai derrotara em duelo era, ao que

se soubesse, a última pessoa que lidara com o "livro azul" da carta

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de Leonardo. E a única que ainda continuava com vida. Como não

ia querer falar com ele?

- Não creio que esta idéia agrade meu pai - disse sem escutar

minhas explicações desajeitadas.

- Nisso se equivoca, Maria. Estava presente quando dom

Oliverio me pediu que o ajudasse a encontrar o livro de Leonardo.

É, exatamente, por isso, que estou aqui.

- E o que pensa fazer com Mário?

- Primeiro, colocá-lo sob minha custódia, que é a do Santo

Ofício. E depois levá-lo para interrogatório.

A menção da Santa Inquisição foi o que minou as escassas

reticências da jovem. A bela Maria, impressionada pelo meu ar

sério, reprimiu seus receios e concordou em me acompanhar até o

sótão do palácio, para evitar um conflito com os dominicanos na

ausência de seu pai. Explicou-me que ele partiu em viagem logo

depois de nossa entrega e era previsível que não regressasse a

Milão por uma semana.

Enquanto estivesse fora, ela era responsável pelo bom

funcionamento da casa e a custódia de todas suas posses, entre

elas, naturalmente, jovem Forzetta.

- É violento? - perguntei.

- Oh, não. Nada disso. Creio que seria incapaz de matar uma

mosca. Mas é astuto. Tenha cuidado com ele.

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- Astuto?

- É uma qualidade que adquiriu com Leonardo - acrescentou

Maria.

- Todos os discípulos dele são astutos.

O rapaz fora recolhido a uma parte do palácio que

antigamente servira de cárcere. Paredes grossas e escadas

profundas davam acesso a um estranho mundo subterrâneo

impossível de imaginar se só se conhecia o jardim da superfície. A

indulgência de Jacarandá lançara o ousado servidor a uma das

prisões murus strictus, isto é, a uma cela de dimensões justas para

que pudesse se sentar, pôr-se de pé e dar um par de passos de uma

parede a outra. Sem janela, sem outra visão que a mais

impenetrável obscuridade, Mário Forzetta ainda assim podia se

sentir afortunado. A poucos metros dali Maria me mostrou as celas

murus strictissimi onde não se podia nem levantar nem deitar ao

comprido, e da qual todos saíam loucos ou mortos.

Quando me deixou em frente à porta de sua cela, uma

sensação de sufoco se apoderou de mim. Não queria que a filha de

Jacarandá me visse vacilar. Detestava visitar prisões. Os lugares

fechados me deixava doente. De fato, o único trabalho de

inquisidor que jamais recusara o administrativo. Preferia a

esmagadora carga dos dossiês àquele cheiro de umidade e o pingar

das goteiras sobre a pedra. Esse ambiente cortava minha

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respiração. Quando fiquei sozinho, segurando entre as mãos o

candeeiro e um molho de pesadas chaves de ferro, ainda demorei

algum tempo para articular palavra.

- Mário Forzetta?

Ninguém respondeu. Do outro lado da aldrava comida pelo

óxido só se poderia esperar a morte. Introduzi uma das chaves na

fechadura abri caminho em direção ao interior. Forzetta, de fato,

estava ali dentro de pé, apoiado numa das paredes, com o olhar

perdido. O pobre cobriu os olhos quando percebeu a presença da

lâmpada. Ainda vestia a casaca cheia de manchas de sangue. A

ferida da face adquirira um tom preocupante. A cabeleira estava

coberta de poeira e seu aspecto, apesar do pouco tempo de

reclusão, era deplorável.

- Então você é de Ferrara, como donna Beatrice... - eu disse

enquanto me sentava em seu estrado e lhe dava tempo de se

acostumar à luz. Ele concordou, confuso. Nunca ouvira minha voz,

nem sabia exatamente quem eu era.

- Que idade você tem, filho?

- Dezessete anos.

"Dezessete anos!", pensei. "Nem sequer é um homem." Mário

não deixava de olhar minhas vestes, e de se maravilhar por tão

estranha visita. Devo dizer, para ser sincero, que uma corrente de

simpatia se estabeleceu entre nós. Decidi tirar partido:

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- Está bem, Mário Forzetta. Direi a que vim. Tenho permissão

para tirar você daqui e deixá-lo em liberdade, se chegarmos a um

acordo - menti. - Só terá de me responder algumas perguntas. Se

responder com a verdade, poderá ir embora.

- Sempre digo a verdade, padre.

O jovem se afastou da parede e concordou em se sentar ao

meu lado. Visto de perto não parecia, de fato, um rapaz perigoso.

Algo doentio e de ombros largos, era evidente que era pouco

dotado para os trabalhos físicos. Não estranhei que Jacarandá o

abatesse com tanta facilidade.

- Sei que foi discípulo do mestre Leonardo, verdade? -

perguntei-lhe.

- Sim. É verdade.

- O que se passou? Por que deixou seu ateliê?

- Não fui digno dele. O mestre é muito exigente com seus

discípulos.

- O que deseja dizer?

- Que não superei as provas a que me submeteu. Só isso.

- Provas? Que tipo de provas?

Mário respirou fundo, enquanto contemplava as mãos presas

por grilhetas. À luz de minha lâmpada descobriu que tinha os

pulsos arroxeados.

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- Eram provas de inteligência. O mestre não se contenta com

que seus discípulos saibam misturar tintas ou esboçar o perfil

sobre um papelão. Exige mentes despertas...

- E as provas? - insisti.

- Um dia me levou para ver algumas de suas pinturas e me

pediu que as interpretasse. Estivemos no Cenacolo, quando quase

não começara a pintá-lo, mas também, no castelo do duque,

admirando alguns seus retratos. Suponho que interpretei mal,

porque pouco depois ele pediu que abandonasse o ateliê.

- Entendo. E, por isso, você decidiu se vingar e roubá-lo, não é

assim?

- Não! Nada disso - agitou-se. - Nunca roubaria o mestre. Ele

foi um pai para mim. Levava-nos a todas as partes para nos ensinar

a olhar e até nos dava comida. Quando o dinheiro escasseava,

lembro que nos reunia no refeitório dos dominicanos de Santa

Maria; sentavamo-nos como os apóstolos, ao redor de uma grande

mesa, e nos contemplava a uma certa distância enquanto

comíamos...

- Então você foi testemunha da evolução do Cenacolo.

- Claro. É a grande obra do mestre. Leva-se anos estudando

para poder completá-la.

- Estudando em livros como aquele que você roubou,

verdade?

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Mário voltou a protestar:

- Não roubei nada, padre! Foi dom Oliverio quem me pediu

que fosse à bottega e conseguisse de sua biblioteca um livro antigo

de capa azul.

- Isso é roubar.

- Não, não é. A última vez que estive no ateliê pedi-o ao

mestre. Quando lhe expliquei para que o queria, e lhe disse que era

para contar a meu novo senhor, entregou-me o volume que mais

tarde pus na estante de dom Oliverio. Foi como um presente. Algo

que me deu em reconhecimento dos velhos tempos. Disse-me que

já não precisava mais dele.

- E você quis vendê-lo ao senhor Jacarandá.

- Foi mestre Leonardo quem me ensinou que aos que vivem

do ouro se deve pedir-lhes. Por isso estabeleci um preço. Nada

mais. Dom Oliverio não escutou minhas súplicas. Fora de si,

entregou-me uma espada e me obrigou a defender a honra num

duelo. Depois me trancou aqui.

Aquele rapaz me pareceu sincero. Sem dúvida muito mais

Jacarandá, um ser mesquinho, capaz de traficar com frades e

adolescentes para conseguir uma antigüidade com que extrair uma

boa quantia dos ducados. E se eu pusesse Marco a meu serviço? E

se aproveitasse os conhecimentos daquele antigo aluno de

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Leonardo, mestre de adivinhações, e o tentasse com meus

problemas? Decidi experimentar a sorte:

- O que sabe de um baralho em que aparece uma mulher

vestida de franciscana, com um livro no colo?

Mário me olhou surpreso.

- Sabe do que estou falando? - insisti.

- Dom Oliverio me mostrou essa carta antes de me enviar

para buscar o livro do mestre.

- Continue.

- Quando fui pedi-lo a Mestre Leonardo, mostrei a carta e ele

riu. Disse que continha um grande enigma, e que a menos que eu

fosse capaz de decifrá-lo por mim mesmo, jamais me falaria dele.

Sempre age assim. Nunca revela nada, a menos que alguém

investigue antes.

- E disse a você como poderia investigar?

- O mestre educa todos os discípulos na arte da leitura oculta

das coisas. Foi ele quem nos doutrinou na Ars Memoriae dos

gregos, os códigos numéricos dos judeus, as letras que formam

figuras dos árabes, a matemática oculta de Pitágoras... Mas como

lhe disse, fui um aluno vil que não absorveu muitos ensinamentos

com perspicácia.

- Você trabalharia numa adivinhação para mim, se eu

pedisse?

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Mário titubeou um segundo, antes de assentir com a cabeça.

- É uma adivinhação digna de seu antigo mestre - expliquei

enquanto buscava um pedaço de papel com o que poderia me fazer

entender. - Contém o nome de uma pessoa a quem procuro. Olhe o

texto com cuidado e o estude. - disse, estendendo-o. - Faça por

mim. É um padecimento por um dom que hoje lhe concederei.

O rapaz se aproximou da luz da lâmpada para vê-lo melhor.

- “Óculos ejus dínumera"... Está em latim.

- Pois sim.

- Então me libertará?

- Depois de perguntar uma última coisa, Mário. Entendi que

você disse a dom Oliverio que Leonardo utilizou o livro para dar

forma a um discípulos do Cenacolo.

- É certo.

30

— Que discípulo era esse, Mário?

— O apóstolo Mateus.

— E sabe por que usou o livro para dar-lhe a forma?

— Creio que sim... Mateus foi o autor do evangelho mais

popular do Novo Testamento, e ele queria que o homem que lhe

emprestasse o rosto tivesse pelo menos sua mesma dignidade.

— E que homem era esse? Platão?

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— Não. Platão, não — sorriu. — É alguém vivo. Talvez o

senhor ouviu falar dele: traduziu a Diviri Platonis Opera Omnia e o

chamam de Marsilio Ficino. Uma vez ouvi o mestre dizer que,

quando o retratasse numa de suas obras, seria o sinal.

— Sinal? Que sinal?

Forzetta hesitou um instante antes de responder.

— Há muito não falo com o mestre, padre. Mas se o senhor

cumprir sua promessa e me libertar, investigarei. Tem minha

palavra. Da mesma maneira que essa adivinhação que me confiou.

Não falharei.

— Você deve saber que se compromete diante de um

inquisidor.

— Repito minha palavra. Dê-me a liberdade e serei fiel a ela.

O que podia perder? Naquela mesma tarde, antes da nona

hora Mário e eu abandonamos o palácio dos Jacarandá, ante o

olhar desconfiado de Maria. Do lado de fora, na rua, o rapaz de

cabelos pretos e cicatriz no rosto beijou minha mão, acariciou os

pulsos livres e deitou correr em direção ao centro da cidade. Foi

interessante: nunca me perguntei se tornaria a vê-lo. No fundo,

pouco me importava. Já sabia do Cenacolo do que muitos dos

frades que partilhavam o mesmo teto a primeira hora da manhã de

sexta-feira, 19 de janeiro, Matteo Bandelio, sobrinho adolescente

do prior, entrou com ímpeto no refeitório de Santa Maria delle

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Grazie. Tinha o olhar descomposto e os olhos úmidos. Chegou

arquejando, com a alma em suspenso e o demo estampado no

rosto. Necessitava falar com o tio. Encontrá-lo ali, diante do

enigmático mural de Leonardo, reconfortou-o e estremeceu-o em

doses iguais. Se o que lhe disseram na Praça do Comércio era

certo, permanecer muito tempo naquele lugar, observando os

progressos daquela obra diabólica, podia levá-los todos ao túmulo.

Matteo se aproximou com cautela, tentando não interromper

a conversa que o abade mantinha com seu inseparável secretário, o

padre Benedetto.

— Diga-me uma coisa, prior — escutou. — Quando mestre

Leonardo pintou os retratos de São Simão e São Tadeu no

refeitório, o senhor notou algo extraordinário em seu

comportamento?

— Extraordinário? O que entende por extraordinário, padre?

- Vamos, prior! Sabe exatamente o que desejo dizer! Viu se

ele consultou algum apontamento ou esboço para dotar esses

discípulos com suas feições características? Ou talvez se lembre se

foi visitado por alguma pessoa de quem pudesse receber instruções

para terminar os retratos?

- É uma pergunta estranha, padre Benedetto. Ignoro aonde

quer chegar.

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— Bem... — pigarreou o caolho. — O senhor me pediu para

averiguar tudo o que pudesse sobre a adivinhação que frei

Alessandro e o padre traziam nas mãos. E, na verdade, a falta de

notícia me distraiu averiguando o que fizeram ambos durante os

dias precedentes à morte do bibliotecário.

Matteo bateu os dentes de terror.

- O prior e seu secretário falavam do mesmo assunto que o

trouxera até ali.

- E então? - insistiu o tio, alheio ao seu espanto.

- O padre Leyre passava aqui suas horas mortas, graças à

chave que o senhor deu. - O normal. E frei Alessandro?

- Isso é o estranho, prior Bandello. O sacristão o surpreendeu

várias vezes falando com Marco d'Oggiono e Andrea Salaino, os

discípulos prediletos de Leonardo. Reuniam-se no Claustro dos

Mortos e conversavam durante muito tempo. Aqueles que

cruzaram por eles coincidem em tê-los ouvido falar da enorme

preocupação do toscano pelo retrato de São Simão.

- E isso despertou-lhes a atenção? - Matteo viu seu tio

grunhir, encolhendo o nariz e enrugando a testa, como fazia tantas

vezes. - O mestre é um doente do detalhe, do pormenor, do

minúsculo... O senhor deveria saber. Não conheço outro artista que

reveja tantas vezes o que produz.

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- É como diz, prior. No entanto, naqueles dias frei Alessandro

atendeu mais do que o costume os caprichos de Leonardo.

Procurou livros e gravuras para ele. Trabalhou fora de seu

expediente na biblioteca. Visitou até a fortaleza do duque para

garantir o transporte de um pacote pesado que ainda não descobri

o que era.

O prior encolheu os ombros:

- Talvez não seja tão extraordinário como parece, padre. Frei

Alessandro não posou para ele? E ele não o escolheu entre muitos

para lhe dar o rosto a Judas? Está claro que puderam desenvolver

uma amizade, e pode ter-lhe pedido que o ajudasse nos dias que

precederam sua morte.

- O senhor acredita em casualidade? Creio que o padre Leyre

falou-lhe já de suas suspeitas, não é?

- O padre Leyre, o padre Leyre - resmungou. - Esse homem

não esconde algum segredo. Posso ver na cara dele sempre que

falamos..

Matteo hesitava em interrompê-los. Quanto mais os escutava

divagar sobre o Cenacolo e seus segredos, mais se impacientava.

Ele sabia de algo importante daquele mural!

- Mas ele acredita que Leonardo poderia ter participado do

assassínio de frei Alessandro, não é verdade?

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- Engana-se. Isso foi o que disse Oliverio Jacarandá, velho

inimigo do mestre. O fato de Leonardo ser um homem

extravagante, de gostos insólitos, não ser visto muito na missa e

presumivelmente encerrou um mistério neste mural não o converte

num assassino.

- Humm... - o caolho vacilou. - Isso é verdade. Converte-o em

herege. Quem senão um homem de sua vaidade se retrataria na

Última ceia? E nada menos do que como Tadeu! É uma

ambiguidade interessante. Ele se pinta a si próprio como o Judas

(Tadeu) "bom", e a frei Alessandro como o Judas "mau".

- Com todo o respeito, prior: já percebeu como se colocou

Leonardo na Última ceia?

- Imediatamente - respondeu enquanto o localizava na parede.

- Está de costas para Nosso Senhor.

- Exato! Leonardo, ou o Tadeu, como desejar, conversa com

São Simão em vez de prestar atenção ao anúncio da traição que

Cristo acaba de fazer a eles. Por quê? Por que para Leonardo São

Simão é mais importante do que Nosso Senhor? E levando a dúvida

ainda mais longe: se sabemos que cada discípulo representa uma

pessoa significativa para o mestre, quem é concretamente esse

apóstolo?

- Não vejo para onde deseja me levar.

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- É fácil - respondeu Benedetto. - Se os personagens de A

última ceia não são o que parecem, e o próprio Mestre Leonardo

mostra mais sua predileção por São Simão do que pelo Messias,

esse São Simão tem, forçosamente, de ser alguém fundamental

para ele. E isso frei Alessandro sabia...

- São Simão... São Simão, o Cananeu...

O prior esfregou a testa como se tentasse encaixar no mural a

peça que frei Benedetto acabara de lhe presentear. Matteo, em

silêncio, impacientava-se. Sua mensagem era urgente!

- Agora que insiste, irmão, lembro que algo estranho

aconteceu quando Leonardo completou essa parte do Cenacolo -

disse por fim o tio, que continuava ignorando sua presença no

refeitório.

- Deveras?

O único olho de Benedetto se iluminou.

- Foi bastante peculiar. Leonardo levou três anos

entrevistando candidatos para encarnar os apóstolos. Fez-nos

todos posar, lembra-se? Depois mandou vir a guarda do duque, os

jardineiros, os ourives, pagens... De todos tirava algum proveito:

um gesto, um perfil, o dedo de uma mão, um braço. Mas quando

chegou a hora de pintar a ponta direita, Leonardo interrompeu

suas entrevistas e deixou de guiar por modelos humanos... O

caolho encolheu os ombros.

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- O que desejo explicar, padre Benedetto, é que para pintar

São Simão mestre Leonardo não usou nenhum daqueles indivíduos.

- Inventou-o, então?

- Não. Utilizou um busto. Uma escultura que mandou trazer

do castelo do Mouro.

- É mesmo! A caixa de frei Alessandro!

- Lembro bem do dia em que trouxeram aquela peça de

mármore ao convento - prosseguiu sem se mexer. - Fazia um Sol de

rachar e a dupla de cavalos fez um esforço memorável para subir

até aqui a caixa que protegia a peça. A verdade é que não sei por

que se empenhou tanto naquela manobra, mas quando já a

desciam chegou donna Beatrice.

- Donna Beatrice?

- Oh, sim! Estava radiante, com um daqueles trajes enfeitados

rendinhas que tanto lhe agradavam, e com as bochechas

avermelhadas de calor. Chegou escoltada, como sempre, mas

rompeu o protocolo ao se aproximar dos operários que manejavam

o busto. E sabe de uma coisa ? Gritou com eles.

- Gritou? A princesa deu uma ordem direta a alguns

carregadores?

- Mais do que isso, irmão. Perdeu sua compostura régia.

Insultou-os, humilhou-os com palavras rudes e ameaçou enforcá-los

se fizessem algum dano ao seu filósofo.

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- Ao seu... filósofo. Mas não era um busto de São Simão?

- Você me perguntou se eu me lembrava de algo

extraordinário não? Pois isso é o mais extraordinário de que

recordo.

- Perdoe-me, prior. Prossiga, peço-lhe.

- Leonardo instalou aquele busto perto da entrada do

refeitório sobre uma pilha de sacos de areia. Era um busto velho,

uma antigüidade. Movia-o de vez era quando para estudar como

influíam nele as aparentes luzes do dia, e quando memorizou tudo,

se apressou a desenhar sua expressão na parede. Sua técnica era

prodigiosa...

- E de onde surgiu esse busto?

- Isso é o mais curioso: segundo soube depois, donna Beatrice

o mandou trazer de Florença só para agradar o mestre.

Matteo já não podia mais. Necessitava interrompê-los, mas

continuava sem se atrever.

- Donna Beatrice sempre foi tão complacente com o mestre? -

perguntou o caolho.

- Sempre. Leonardo era seu artista favorito.

- E pode me esclarecer o porquê desse interesse de Leonardo

por um São Simão de Florença?

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- Também estranhei. Que fossem a Florença trazer um

Batista, que enfim é o padroeiro da cidade, teria certo sentido. Mas

um Simão...

- Esse não é Simão, tio! Não é!

Matteo, vermelho de desespero, surpreendeu os frades. Sabia

que não devia interromper as conversas dos mais velhos, mas não

foi capaz de morder a língua por mais tempo.

- Matteo! - O prior ficou atônito. Seu sobrinho de doze anos

estava plantado ali, balançando-se de um lado para outro, o rosto

manchado de lágrimas e o olhar descomposto. - O que aconteceu?

- Sei quem é esse apóstolo, tio - murmurou, enquanto tentava

dissimular seu tremor. Depois desmaiou.

31

Frei Benedetto e o prior Bandello demoraram um bocado para

reanimar Matteo. Ele despertou nervoso. Tinha dificuldade de

articular as palavras e, quando falava, o corpo estremecia de frio e

de medo. Toda sua obsessão era que saíssem do refeitório o quanto

antes. "É uma obra de Satanás", balbuciou entre soluços para

assombro de seu tio e do caolho. Como era impossível acalmá-lo,

aceitaram suas súplicas se refugiando na biblioteca. Ali, ao calor

da calefação, o menino foi voltando a si pouco a pouco.

No início não quis falar. Agarrava-se ao braço do prior com

toda força, e negava com a cabeça cada vez que lhe dirigiam a

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palavra. O menino não apresentava feridas nem hematomas

visíveis; embora sujo com a roupa manchada de barro, não parecia

ter sido agredido. E então Benedetto desceu à cozinha para buscar

um pouco de leite quente e alguma marzipã de Siena guardado

para ocasiões especiais. Com o estômago reconfortado e o calor de

volta ao corpo, Matteo foi soltando a língua. O que contou deixou-

os mudos de espanto. Como era seu costume, o noviço fora naquele

dia à praça do Comércio comprar alguns mantimentos para a

despensa do convento. Quinta-feira era o melhor dia para se

abastecer de grãos e verduras; portanto, apanhou algumas moedas

da bolsa de frei Guglielmo e se dispôs realizar sua missão o mais

rapidamente possível. Ao passar pela frente do palácio da Razão, o

solene imóvel de pedra e azulejo de três andares que preside a

praça do Comércio, esbarrou num ajuntamento enorme de pessoas.

Pareciam extasiadas. Escutavam sem pestanejar a um orador que

improvisara um palco sob o pórtico do palácio. No início, o palco

não lhe chamou muito a atenção. No entanto, quando estava

prestes a dar as costas à multidão, algo acabou por chamar a sua

atenção. Matteo conhecia aquele pregador.

- Aqui mesmo, neste passadio, deu a vida por Deus um

verdadeiro crente! - ouviu-o vociferar. - Um bonhomme que se

sacrificou por sua fé e por vocês! Como Cristo! E para quê? Para

nada! Vocês sequer se mexem quando o lembro! Não se dão conta

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que cada vez nos parecemos mais com os animais? Não vêem que

com sua atitude passiva estão dando as costas a Deus?

O prior e o caolho contiveram seu espanto. Sob aquele pórtico

que Matteo descrevia encontraram enforcado frei Alessandro.

Entre uma e outra golada de leite, o noviço continuou seu relato.

Quando revelou a identidade daquele orador, ficaram ainda mais

perplexos. Matteo titubeou. O homem que acusava os passantes de

perder a alma por não reconhecer os enviados do Altíssimo era frei

Giberto. O sacristão germano, o do cabelo cor de abóbora que

guardava as portas de Santa Maria, largou naquela mesma manhã

sua função para pregar bem onde o bibliotecário pôs fim a seus

dias. Por quê?

Porém o mais extraordinário de sua descrição ainda estava

por aparecer:

- Serão todos condenados senão renunciarem à Igreja de

Satanás e regressarem à autêntica religião! - clamava o sacristão,

fora de si. – Nada comam que proceda do coito! Repudiem a carne

de animais! Abominem os ovos e o leite! Preservem-se dos falsos

sacramentos. Não comunguem nem batizem em falso!

Desobedeçam a Roma e revisem sua fé se ainda querem ser salvos!

O caolho sacudiu a cabeça. "Frei Giberto disse isso?" O prior

animou-o a continuar. Matteo, mais calmo, contou-lhes que quando

o sacristão o descobriu entre a multidão baixou como um raio de

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seu improvisado altar e o agarrou pelo pescoço, mostrando-o a

todo mundo.

- Estão vendo bem? - disse, sacudindo-o como um saco. - É o

sobrinho do prior de Santa Maria delle Grazie. O que será dele se

agora que é uma criança ninguém o educa na verdadeira fé? Eu

direi - bufou.- Vai se converter em servidor de Satanás como seu

tio! Um verdadeiro renegado de Deus! E arrastará centenas de

cordeiros como vocês à condenação eterna!

O rosto do prior se enrugou, severo.

- Disse isso? Está seguro, filho?

O noviço assentiu.

- E logo me desnudou.

- Desnudou você?

- E me levantou e me agitou para que todo mundo pudesse me

ver.

- E por que, Matteo? Por quê?

Os olhos do menino se umedeceram ao recordar aquela parte.

- Não sei, tio. Eu... Só o ouvia gritar à multidão que não

acreditava que uma criança é pura só porque não perdeu sua

inocência. E que todos viemos a este mundo para purgar nossos

pecados e se não os purgarmos nesta existência regressaremos de

novo a este vale de lágrimas de matéria ruim para uma vida ainda

pior do que a primeira.

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- A reencarnação não é uma doutrina cristã! - protestou o

caolho.

- E sim albigense - interrompeu-o o prior. - Deixe-o continuar!

- irmão.

Matteo enxugou os olhos e prosseguiu:

- Logo... logo disse que embora os frades deste convento

vivam a Igreja de Satã e obedeçam a um papa que adora os deuses

antigos, prometeu que esta casa não tardará a se converter num

farol que guiará mundo até a salvação.

- Disse isso? - O caolho franziu o rosto. - E explicou por quê?

- Não o perturbe, irmão.

O noviço se agarrou outra vez ao tio.

- Não é certo, verdade? - choramingou. - Não é certo que

somente é a Igreja de Satã.

- Claro que não, Matteo. - Bandello acariciou-lhe a cabeça. -

que você diz isso?

- É que... é que frei Giberto se aborreceu muito quando eu

disse que isso não era verdade. Esbofeteou-me e gritou que só

quando os expuserem do Cenacolo e permitirem que este seja

contemplado por todo mundo, poderia voltar a brilhar a verdadeira

Igreja.

Uma sensação crescente de raiva invadiu o prior.

- Colocou a mão em você! - concluiu indignado.

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Matteo não fez caso.

- Frei Giberto dizia que quanto mais contemplarmos o

Cenacolo mais nos aproximaremos de sua Igreja. E que o mural do

mestre Leonardo escondia o segredo da salvação eterna. E por isso

tanto ele como frei Alessandro aceitaram que os retratasse junto

de Cristo.

- Disse isso?

- Sim... - conteve um soluço. - Pintados ali já haviam merecido

a glória.

O menino observou os sérios semblantes de seus dois

superiores. O caolho o tirou da dúvida: não fora apenas o

bibliotecário que posara para o Judas. Outros frades, como Giberto,

deixaram-se retratar por ele fazendo as vezes de apóstolos. O

alemão encarnou Filipe, mas também Bartolomeu, os dois Tiagos

ou André tinham rostos cedidos pelos monges. O próprio Benedetto

se prestou a se deixar retratar como Tomé.

- Estou de perfil para que não vejam o olho perdido - explicou.

O caolho afagou o impressionado Matteo. - Você é um rapaz

valente - disse. - Fez bem em nos tirar dali de dentro. O mal pode

nos fazer perder a razão, como a serpente de Eva.

Algo devia desconfiar sobre a verdadeira identidade dos

apóstolos, porque quase sem pensar na consequência, Benedetto

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interpelou Matteo com uma pergunta que surpreendeu até o

próprio prior.

- Há pouco você disse que sabia quem era de verdade o

apóstolo Simão. Ouviu o sacristão dizer?

O noviço desviou os olhos em direção às carteiras vazias do

scríptoríum e assentiu.

- Enquanto me detinha ali nu, pendurado para que todos me

vissem, contou a história de um homem que viveu antes de Cristo e

pregou sobre a imortalidade da alma.

- Deveras?

- Disse que esse homem aprendeu dos sábios mais antigos do

mundo. Também pregou coisas sobre o jejum, a oração e o frio.

- O que disse exatamente? - insistiu Benedetto.

- Que essas três coisas nos ajudam a abandonar o corpo, onde

vivem todos os pecados e ruindades, e a nos identificar só com a

alma... E também disse que no Cenacolo esse varão continua ainda

a distribuir seus ensinamentos vestido de branco imaculado.

- Só um dos treze se veste assim no mural - observou

Bandello. – E é Simão.

- E deu o nome do sábio tão grande? - insistiu o caolho.

- Sim. Chamou-o de Platão.

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- Platão! - Benedetto deu um salto. - Claro! O filósofo de

donna Beatrice. O busto que mandou trazer de Florença era o

seu!... *

*[Existe nos Uffizi de Florença um busto de Platão atribuído ao

escultor grego Silanião, que foi, ao que se sabe, o único que

retratou em vida o filósofo, por ordem do rei Mitrídates, em 325

a.C. É provável que o busto florentino a que se alude neste texto

seja esse ou uma cópia, já que apresenta uma assombrosa seme-

lhança com o apóstolo Simão da Última ceia.]

O prior esfregou a testa, perplexo:

- E por que haveria Leonardo de se retratar prestando

atenção em Platão em vez de Cristo?

- Como? Ainda não percebeu, padre? É claríssimo! Leonardo

nos indica em seu mural de onde vêm seus conhecimentos.

Leonardo, prior, como frei Giberto e frei Alessandro, é albigense. O

senhor já disse antes.

- E tinha razão. Platão, como os albigenses depois, afirmou

que o verdadeiro conhecimento humano é obtido diretamente do

mundo espiritual, sem mediadores, sem igrejas, nem missas.

Chamava isso de gnosis, prior, a pior das heresias possíveis.

- Como pode estar tão seguro? Um testemunho assim não

bastará para acusá-lo de heresia.

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- Ah, não? Não vê que Leonardo sempre se veste de branco,

como Simão no Cenacolo? Não sabe que se recusa a comer carne e

pratica o celibato? Por acaso conheceu alguma mulher dele?

- Nós também vestimos roupas claras e jejuamos, padre

Benedetto. Além disso, dizem que ele gosta de homens, que não é

tão celibatário como você afirma - assinalou frei Vicenzo diante do

desconcertado olhar do jovem Matteo.

- Dizem! E quem diz, prior?

- Não passam de falatórios. Leonardo é uma pessoa solitária.

Recusa a idéia de se unir como se fosse a peste.

- Aposto que é celibatário como os da heresia albigense...

Tudo se encaixa!

O prior não ocultou seu desprazer.

- Suponhamos que você esteja certo. Nesse caso, o que

devemos fazer?

- A primeira coisa - prosseguiu Benedetto - é convencer o

padre Leyre da heresia dele. Ele é inquisidor, está aqui quase por

milagre de Deus, e seguramente saberá mais sobre os albigenses

do que nós.

- E depois?

- Deter frei Gilberto e interrogá-lo, certamente - respondeu.

- Isso não é possível...

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Matteo sussurrou aquela frase temendo importunar. Embora

já se sentisse mais reconfortado, ainda não terminara de contar o

que vira na praça do Comércio.

- Como diz?

- Que já não poderão detê-lo.

- E por que, Matteo?

- Porque... - titubeou - depois de terminar o sermão, o irmão

Giberto tocou fogo na roupa e se queimou à vista de todos.

- Santo Deus! - o caolho tapou a boca horrorizado. - E então,

prior? Já não há dúvida. O sacristão preferiu se submeter à endura

do que ao nosso julgamento...

- A endura?

A dúvida do jovem Matteo ficou sem resposta, flutuando na

atmosfera rarefeita da biblioteca. Benedetto pediu permissão para

se retirar e meditar sobre aquilo e deixou o recinto às pressas.

Naquela manhã, impressionado pelas informações de Matteo, não

tardou a me contar que em Santa Maria delle Grazie viveram pelo

menos dois bonhommes, que era como os antigos albigenses se

chamavam a si mesmos.

Um inquisidor devia saber. Mas o caolho pôs a ênfase numa

segunda descoberta que acreditou mais de minha

responsabilidade: enfim conseguiu identificar o interlocutor do

mestre Leonardo na mesa pascal do Cenacolo. Já sabia quem era

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realmente o homem do manto branco e as mãos oferecidas com

que distraía a atenção de pelo menos dois discípulos de Cristo:

Platão. Esta oportuna confidência preencheu uma lacuna que eu

não conseguia compreender desde que me reuni com Oliverio

Jacarandá. A presença do filósofo no refeitório esclarecia por que o

mestre Da Vinci conservava em sua biblioteca as obras completas

do ateniense. Livros que, por certo, a esta hora deviam estar em

algum canto do palácio de Jacarandá sem que ninguém prestasse a

atenção que mereciam. O círculo, portanto, ia se fechando.

32

Roma, três dias depois

O guarda pontifício apontou para a frente, tenso como uma

balestra, mostrando ao mestre geral dos dominicanos o caminho

que devia percorrer. As medidas de segurança pareceram

exageradas até para o padre Torriani, a quem os homens do papa

conheciam de sobra. Mas suas ordens eram estritas: acabara de

morrer de indigestão o terceiro cardeal em apenas seis meses, e o

pontífice, a quem muitos responsabilizavam por aquelas mortes

repentinas, ordenara um simulacro de investigação que incluía o

rigoroso controle dos acessos ao palácio pontifício.

O ambiente não era bom. Roma tinha motivos suficientes para

tremer quando Alexandre VI nomeava cardeal algum homem probo

de sua comunidade. Todos sabiam que se o Santo Padre

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ambicionasse suas posses, tudo o que tinha a fazer era nomeá-lo

cardeal primeiro e assassiná-lo discretamente depois. As leis

garantiam-no: o papa era o único e legítimo herdeiro dos bens de

sua cúria. E com Sua Eminência o cardeal Michieli, riquíssimo

patriarca de Veneza cujo corpo já esfriava na antecâmara

pontifícia, a lei voltou a ser executada com absoluta precisão.

Torriani se submeteu às novas normas de acesso aos

aposentos do Bórgias sem reclamar. Ao cabo de uns minutos, logo

ao deixar para trás a porta de ouro da capela do Santo

Sacramento, divisou-os claramente: estavam na terceira sala, com

os olhos cravados no teto e um estranho gesto de triunfo

desenhado em seus rostos. Ali, junto às janelas da ala leste,

protegidos dos rigores do inverno romano, o mestre Annio de

Viterbo e Sua Santidade conversavam animadamente sob uns

afrescos que pareciam recém-acabados. De fato, ainda cheiravam a

verniz e resina.

O pontífice, barbeado e com o cabelo metade castanho

metade branco, dissimulava a barriga sob uma sotaina cor vinho

que o cobria da cabeça aos pés. Annio, ao contrário, tinha o

aspecto de uma doninha, rosto pontiagudo de onde saía um

montículo de pelinhos pretos eriçados e mãos grandes e ossudas,

quase de espantalho, com que fazia pomposos movimentos em

direção às pinturas.

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O verbo inflamado de Nanni, que era como todos chamavam

aquele sábio, ecoava como os trovões de uma tormenta de verão:

- A arte é mais necessária do que suas armas, Santo Padre!

Mantenha-a sempre ao seu serviço e dominará a cristandade!

Perca-a e fracassará em sua tarefa pastoral!

Torriani viu Alexandre VI concordar sem articular palavra,

enquanto notava como seu estômago se alterava pouco a pouco.

Escutara aquele discurso muitas vezes. Essa idéia peregrina

invadira Roma e, com ela, a flor e a nata das artes florentinas. O

papa em pessoa atraíra um verdadeiro exército de artistas de

Lorenzo de Médicis, o Magnífico, só para satisfazer os desejos

ocultos de Annio. E isso para não falar dos sofrimentos de Torriani

diante da irresistível promoção dos privilégios de pintores e

escultores, sempre em detrimento dos frades e cardeais. Inco-

modado, ciumento da influência que aquele pernicioso monge De

Viterbo exercia sobre o Santo Padre, o geral dos dominicanos se

fez de desatento e se dirigiu ao chefe da guarda para que

anunciasse sua chegada. O grande responsável pela Ordem de São

Domingos estava ali tal e como Alexandre VI solicitara. O papa

sorriu:

- Alegro-me de vê-lo enfim, querido Gioacchino! - exclamou

estendendo o anel ao visitante, que o beijou com respeito. - Chega

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no momento oportuno. Nanni e eu falávamos há pouco desse

assunto que tanto o preocupa...

O dominicano encarou o papa.

- O que... sabe disso?

- Oh, vamos, mestre Torriani! Não é necessária tanta

discrição comigo. Sei praticamente tudo: até que enviou um espião

em meu nome à Milão para comprovar certos rumores que falam

de uma heresia que toma conta da corte do Mouro.

- Eu... - o velho pregador titubeou. - Exatamente vinha para

colocá-lo em dia sobre o que nosso homem descobriu.

- Alegro-me - riu. - Sou todo ouvidos.

Annio de Viterbo e o Santo Padre abandonaram a

contemplação dos afrescos para se sentarem em duas grandes

cadeiras que os camareiros acabavam de dispor para eles. Torriani,

nervoso, preferiu permanecer de pé. Levava uma pasta sob o braço

em que guardava uma extensa carta que eu próprio escrevera ao

descobrir uma ramificação albigense no coração de Milão.

- Há alguns meses - começou a se explicar Torriani, ainda

impressionado por minhas averiguações - recebíamos informes que

insinuavam que o duque de Milão utiliza um célebre mestre

florentino, Leonardo da Vinci, para difundir idéias heréticas numa

obra majestosa que prepara sobre a Última Ceia de Cristo.

- Leonardo, está dizendo?

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O papa olhou para Nanni, aguardando algum de seus sábios

comentários.

- Leonardo, Santidade - repetiu Nanni. - Não se lembra dele?

- Vagamente.

- É natural - a doninha o desculpou. - Seu nome não figurava

na lista de artistas recomendados pela casa Médicis para

embelezar Roma quando o senhor era ainda cardeal. Pelo que

sabemos dele, trata-se de um homem orgulhoso, irascível e,

certamente, pouco amigo de nossa Santa Mãe Igreja. Os Médicis

sabiam disso e, com bom critério, evitaram recomendá-lo.

O papa suspirou:

- Outro homem problemático, não?

- Sem dúvida, Santidade. Leonardo se sentiu desmerecido por

não ter sido recomendado para trabalhar em Roma, e em 1482

abandonou Florença, deu as costas aos Médicis e se instalou em

Milão para trabalhar como inventor, cozinheiro e, se fosse possível,

não como pintor.

- Em Milão? E como acolheram um homem assim? - o gesto do

papa se tornou caricato, antes de prosseguir. - É isso. Já entendo...

Por isso, você dizia que o duque não me é fiel, não é, Nanni?

- Isso deve perguntar ao mestre dominicano, Santidade! -

respondeu secamente. - Ao que parece, traz as provas para

demonstrá-lo.

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Torriani, ainda de pé, protestou:

- Ainda não são provas; só indícios, Santidade. Leonardo,

guiado e protegido pelo Mouro, partiu para a elaboração de uma

obra de proporções colossais e tema cristão, mas cheia de

irregularidades que preocupam o prior de nosso convento de Santa

Maria delle Grazie.

- Irregularidades?

- Sim, Santidade. Trata-se de uma Última Ceia.

- E o que há de extraordinário numa obra assim?

- Verá, Santidade: sabemos que seus doze apóstolos não são

apóstolos, e sim retratos de personagens pagãos ou de fé duvidosa,

cuja secreta disposição parece querer transmitir uma informação

que não é cristã.

O papa e Nanni se olharam. Quando o sábio De Viterbo

requereu mais detalhes, o dominicano abriu sua pasta:

- Acabamos de receber o primeiro informe de nosso homem

na cidade - disse, esgrimindo minha carta. - É um erudito de

Betânia, um especialista em idiomas cifrados e códigos secretos,

que neste momento estuda tanto a obra como Mestre Leonardo.

Examinou retrato por retrato dessa Última Ceia e buscou uma

relação entre eles. Nosso especialista comprovou quase tudo:

desde a comparação de cada apóstolo com um signo do zodíaco até

a busca de equivalências entre a posição de suas mãos e as notas

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musicais. As conclusões não tardarão a chegar e o que hoje são

indícios, amanhã, talvez, sejam provas.

Nanni se exasperou.

- Mas descobriu ou não algo concreto?

- Sem dúvida, padre Annio. A verdadeira identidade de três

dos apóstolos foi totalmente revelada. Sabemos que o rosto de

Judas Iscariotes, por exemplo, corresponde ao de certo Alessandro

Trivulzio, um dominicano que morreu pouco depois do Dia de Reis,

enforcado no centro de Milão...

- Que coisa! Como o autêntico Judas - sussurrou o pontífice.

- Pois não, Santidade. Ainda não pudemos determinar se se

suicidou ou foi assassinado, mas nosso informante acredita que

pertencia a uma comunidade de albigenses infiltrada em nosso

convento.

- Albigenses?

O Santo Padre dilatou as pupilas de espanto.

- Albigenses, Santidade. Acreditam ser a verdadeira Igreja de

Deus, e aceitam o Pai-Nosso como oração e repudiam o sacerdócio,

ou a figura do Vigário de Cristo, como único representante de Deus

na Terra.

- Conheço os albigenses, mestre Torriani! - disse o papa,

colérico. - Mas acreditávamos que os últimos arderam em

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Carcassonne e Toulouse em 1325. O bispo de Pamiers não acabou

com eles?

Torriani conhecia aquela história. Nem todos pereceram.

Depois do triunfo da cruzada contra os albigenses do sul da França

e da queda de Montségur em 1244, produziu-se uma debandada de

famílias hereges para Aragão, Lombardia e Alemanha. Os que

cruzaram os Alpes se estabeleceram nas imediações de Milão, onde

forças mais frouxas, como as dos Visconti, deixaram-nos viver em

paz. Suas idéias extremistas, no entanto, foram caindo em desuso e

muitos acabaram por desaparecer, sem perpetuar seus ritos e

idéias heterodoxas.

- A situação pode ser grave, Santidade - prosseguiu Torriani,

muito sério. - Frei Alessandro Trivulzio não era o único suspeito de

professar a heresia albigense em nosso mosteiro milanês. Há três

dias, outro frade declarou, abertamente, sua heresia e depois se

suicidou.

- Endura? - os olhos da doninha faiscaram.

- É assim.

- Por todos os santos! - bramiu. - A endura foi uma das

práticas mais extremas dos albigenses. Há duzentos anos ninguém

recorria a ela.

O assessor olhou para o pontífice, que parecia não ter

entendido bem o que era essa coisa da endura. Annio lhe explicou.

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- Em sua versão passiva - disse -, consistia no voto solene de

não ingerir alimentos, nem nada que contaminasse o corpo do

albigense que aspirava à perfeição. Se morria puro, aquele

desgraçado acreditava que salvava sua alma e se integrava em

Deus. Mas existiu também uma versão ativa, a do suicídio pelo

fogo, que só se consumou durante o cerco de Montségur. Os

habitantes daquele último bastião militar albigense preferiram se

lançar numa grande pira de troncos à se entregar às tropas

pontifícias.

- Este frade de que falo se imolou pelo fogo, padre.

Nanni não saía de seu espanto.

- Custa-me acreditar que alguém ressuscitou essa velha

fórmula, mestre Torriani. Suponho que tem outras notícias que

fundamentam seu alarme.

- Desgraçadamente tenho. De fato, temos razões para pensar

que as provas da existência de uma comunidade albigense ativa em

Milão estão no mural A Última Ceia que Leonardo da Vinci está

acabando neste momento. Ele mesmo se retratou em sua obra

conversando com um apóstolo que na realidade mascara Platão. Já

sabe que é a referência antiga desses malditos hereges.

A doninha deu um pulo de sua cadeira dobrável.

- Platão? Está seguro do que diz?

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- Completamente. O pior, padre Annio, é que esse vínculo não

está isento de uma lógica perversa. Como sabe, Leonardo se

formou em Florença sob as ordens de Andrea del Verocchio, um

artista poderoso, bem considerado entre os Médicis e muito

próximo da Academia que Cosme, o Velho, instalou sob a direção

de certo Marsilio Ficino. E, como também sabe, essa Academia foi

criada para imitar a de Platão em Atenas.

- E então? - o assessor de Alexandre VI repuxou o rosto,

receando tanta erudição.

- Nossa conclusão não pode ser mais óbvia, padre: se os

albigenses têm em comum muitas de suas doutrinas mais

duvidosas, sendo que a Academia de Ficino ainda pratica costumes

albigenses como não ingerir carne de animal, o que nos impede de

pensar que Leonardo esteja utilizando sua obra para transmitir

doutrinas contrárias à Roma?

- O que nos pede? Que o excomunguemos?

- Ainda não. Necessitamos provar sem margem de dúvida que

Leonardo introduziu suas idéias nesse mural. Nosso homem em

Milão trabalha para reunir essas evidências. Depois agiremos.

- Mas mestre Torriani- cortou-o De Viterbo antes que seu

discurso se inflamasse-, muitos artistas como Botticelli ou

Pinturicchio se formaram na Academia e, no entanto, são

excelentes cristãos.

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- Só parecem, mestre Annio. Deve desconfiar. Os dominicanos

sempre são tão suspicazes! Olhe ao redor.

- Pinturicchio pintou estes afrescos maravilhosos para Sua

Santidade - respondeu, apontando para o teto. - Acaso vê neles

sombra de heresia? Vamos! Vê?

O dominicano conhecia bem aquela decoração. Betânia abrira

em segredo um expediente sobre ela que nunca chegou a

prosperar.

- Não convém se exaltar, mestre Annio. Sobretudo porque,

sem querer, está dando-me a razão. Examine bem a obra desse

Pinturicchio; deuses pagãos, ninfas, animais exóticos e cenas

jamais encontradas na Bíblia. Só um seguidor de Platão, imbuído

das doutrinas pagãs, pintaria, algo assim.

- É a história de Isis e Osíris! - protestou a doninha, quase

fora de si.

- Osíris, se não sabe, ressuscitou dentre os mortos como

Nosso Senhor. E sua lembrança, ainda que pagã na forma, renova

nossa esperança na salvação da carne. Osíris aparece aqui como

um touro, como touro é nosso Santo Pai. Nunca viu o brasão dos

Bórgias? Não é óbvia a relação entre essa figura mitológica,

símbolo de força e valor, e o soldado romano que brilha em seu

escudo de armas? Os símbolos não são heresias, mestre?

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Quando frei Gioacchino Torriani ia responder, a voz

aveludada e cansada do pontífice abreviou a discussão:

- O que não entendo bem - disse, arrastando as palavras,

como se aquela discussão o aborrecesse - é onde vê o pecado do

Mouro em tudo isto...

- É porque não examinou a obra de Leonardo, Santidade! –

garantiu Torriani. - O duque de Milão a financia totalmente e

protege o artista das recomendações de nossos frades. O prior de

Santa Maria há meses, tenta reconduzir o esquema do mural a uma

estética mais piedosa, mas é impossível. É o Mouro quem permitiu

a Leonardo que se retratasse a si próprio de costas para Cristo,

entregue a uma conversa com Platão.

- Já, já... - bocejou o pontífice. - Mencionou também Ficino,

não Torriani assentiu com a cabeça.

- E não é esse o homem de quem tantas vezes me falou, caro

Nanni.

- É assim, Santidade - concordou Nanni com um sorriso

forçado. - Trata-se de um personagem extraordinário. Único. Não

creio que um herege, como o mestre Torriani pretende pintar. É

cônego da catedral de Florença e agora deve andar pelos sessenta

e quatro, ou sessenta e cinco anos. Seu espírito iluminado o

encantaria.

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- Espírito iluminado? - o pontífice tossiu. - Seria outro conde

Savonarola? Ou acaso não são ambos cônegos da mesma catedral?

O papa piscou um olho para Torriani, que tremeu ao escutar o

nome do exaltado dominicano que pregava a chegada do fim da

Igreja rica.

- É verdade que dividem o templo, Santidade- desculpou-se

doninha, perturbado-mas, são varões de personalidades opostas.

Ficino é um estudioso que merece todo nosso respeito. Um sábio

que traduz para o latim incontáveis textos antigos, como os

tratados egípcios que serviram à Pinturicchio para decorar estes

tetos.

- Deveras?

- Antes de trabalhar nos afrescos, Pinturicchio leu as obras de

Hermes que Ficino acabara de traduzir do grego. Nelas se narram

estas belas cenas de amor entre Isis e Osíris...

- E Leonardo? - grunhiu o pontífice para Nanni. - Ele também

leu Ficino?

- E tratou com ele, Santidade. Pinturicchio sabe. Ambos foram

seus discípulos no ateliê de Verocchio e ambos ouviram suas

explicações sobre Platão; e sua crença na imortalidade da alma.

Pode haver algo mais profundamente cristão do que essa idéia?

Nanni pronunciou aquela última frase em desafio às críticas

do mestre Torriani. Sabia de sobra que a maioria dos dominicanos

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era tomista, defensora da teologia de Tomás de Aquino inspirada

em Aristóteles, e inimiga de tudo o que significasse resgatar Platão

do esquecimento. Meu mestre geral percebeu que só tinha a

perder contra aquele interlocutor porque, logo em seguida, baixou

o olhar e anunciou, submisso, sua despedida:

- Santidade. Venerável Annio - saudou-os cortesmente. - É

inútil que continuemos a especular sobre as fontes de inspiração

dessa Última Ceia, de Milão, enquanto, não concluirmos nossas

averiguações. Se me der sua bênção, a investigação prosseguirá

como até agora, e determinará a espécie de pecado que Leonardo

está cometendo contra nossa doutrina.

- Se estiver - contemporizou De Viterbo.

O papa devolveu a saudação à Torriani e, fazendo o sinal da

cruz no ar, acrescentou:

- Dou-lhe um conselho antes que se retire, padre Torriani: de

agora em diante, avalie bem o terreno em que pisa.

33

Nunca vi rostos tão compridos como os dos monges de Santa

Maria naquela manhã de domingo. Antes do toque de matinas, o

prior em pessoa percorreu o convento, cela por cela, despertando-

nos todos. Aos gritos ordenou que nos lavássemos o quanto antes

e que preparássemos nossas consciências para um capítulo

extraordinário na história da comunidade.

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Certamente ninguém resmungou. Não havia frade que não

soubesse que a morte do sacristão lhes seria cobrada, cedo ou

tarde. Talvez, isso explicasse por que todos começaram a

desconfiar de todos de um dia para o outro. Aos olhos de um

forasteiro como eu, a situação se tornou insustentável. Os frades se

juntavam em pequenos grupos de acordo com sua origem. Os do

sul de Milão não falavam com os do norte, que, por sua vez,

evitavam se relacionar com os dos lagos, como se tivessem algo a

ver com o desgraçado fim de frei Giberto. Santa Maria estava

dividida... e eu ignorava o porquê.

Nessa madrugada, depois de me lavar e me vestir na

penumbra, compreendi como a crise era profunda. Embora, fosse

certo, que não havia frade que não falasse mal de outro, todos

pareciam estar de acordo em algo: deviam me manter o mais

afastado possível de suas aflições, havia algo que os atormentasse

era que, em virtude de meus poderes como inquisidor, poderia

abrir um processo contra sua comunidade. O rumor de que frei

Giberto morrera pregando como um albigense os aterrorizava.

Ninguém por certo se atreveu a manifestá-lo abertamente.

Olhavam-me como se eu tivesse obrigado frei Alessandro a se

enforcar e conseguido que o sacristão perdesse o juízo. Tal era o

poder demoníaco que me atribuíam.

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Porém, o que mais me chamou a atenção, foi ver a maneira

como Vicenzo Bandello tirou proveito daqueles medos.

Depois de nos despertar, o prior nos conduziu a uma grande

mesa vazia, que ele mesmo preparou, num salão perto das

cavalariças. Fazia frio e o aposento era ainda pior iluminado do

que nossas celas. Mas, foi assim, quase às apalpadelas, que

Bandello nos tornou participantes do intenso programa que nos

reservou. Das matinas às completas, disse, nós nos entregaríamos

à exercícios espirituais, revisão dos pecados, atos de contrição e

confissão pública. E, quando acabasse o dia, um grupo de irmãos

designado por ele próprio se ocuparia de ir ao Claustro dos Mortos

e exumar os restos de frei Alessandro Trivulzio. Não só se arranca-

riam seus pobres despojos do abraço da terra, mas também, os

levariam para além dos muros da cidade para exorcizá-los. E, com

eles, também os ossos do irmão Giberto.

Bandello queria que seu mosteiro ficasse limpo de heresia

antes do anoitecer. Ele, que acreditara na inocência do irmão

bibliotecário e defendera até a existência de um complô contra sua

vida, sabia já que frei Alessandro vivera de costas para Cristo,

pondo em sério perigo a integridade moral de seu priorado.

Vi Mauro Sforza, o coveiro, benzer-se nervoso num extremo

da mesa.

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Deparamos com o padre Vicenzo mais sério e taciturno do

que nunca. Não dormira bem. As bolsas de seus olhos caíam como

chumbo sobre as maçãs do rosto, conferindo-lhe um aspecto

desolador. Em parte, a culpa por aquele deplorável estado era

minha. Na tarde anterior, enquanto o mestre Torriani e o papa

Alexandre se entrevistavam em Roma nas minhas costas, Bandello

e este humilde servo de Deus conversamos sobre o que implicava

ter dois albigenses infiltrados na comunidade.

- Milão - expliquei - estava sendo atacada pelas forças do mal

como nunca nos últimos cem anos. Todas as minhas fontes

confirmavam.

No começo, o prior me olhou incrédulo, como se duvidasse

que um recém-chegado pudesse compreender os problemas de sua

diocese, mas, à medida que expunha meus argumentos mudava de

atitude.

Argumentei acreditar que a estranha cadeia de mortes que

sofremos não obedecia à simples acasos. Até expliquei a ligação

dos dois peregrinos assassinados na igreja de São Francisco. A

própria polícia do Mouro me dava razão. Os oficiais concluíram que

também esses desgraçados morreram sem opor resistência, da

mesma maneira que frei Alessandro. Ainda mais: o local exato dos

crimes em São Francisco fora o altar-mor, bem abaixo de um

quadro do mestre Leonardo a que chamavam de Maestà. Esse

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detalhe, e mais o de que junto a seus pertences só se encontraram

um pedaço de pão e um maço de cartas ilustradas, fez-me recear.

Todos os mortos tinham sobre eles os mesmos objetos, como se

formassem parte de um obscuro ritual. Talvez, admiti, de um

cerimonial albigense até então desconhecido.

Era estranho. Leonardo, tal como sugeri ao prior, era uma

fonte singular de problemas. Frei Alessandro morrera depois de

posar como Judas Iscariotes e eu sabia que o sacristão também

estava entre os frades que mais simpatizavam com ele. E isso para

não falar de donna Beatrice: desapossada da vida depois de lhe ter

dado toda sua proteção. Como era possível não ver o fio sutil que

ligava aqueles acontecimentos? Não resultava evidente que

Leonardo da Vinci estava cercado de poderosos inimigos, talvez tão

desconfiados da heterodoxia dele como nós próprios, mas capazes

de chegar às armas para acabar com ele e os seus?

Foram as vítimas, e a ameaça de que a elas pudessem se

somar outras pessoas, as que me obrigaram a falar com Bandello

sobre o Augure. E creio que fiz bem.

Olhou-me incrédulo, no início, quando expliquei que Roma já

fora advertida sobre este acúmulo de desgraças. De fato, altas

instâncias políticas já há tempo recebiam notícias de um misterioso

informante que anunciara o que aconteceria com todos aqueles

que não detivessem os trabalhos do Cenacolo.

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- O perfil daquele homem - expliquei - era o de, um indivíduo

sagaz, inteligente, de provável formação dominicana, que, escondia

a identidade por temor de sofrer represálias do duque. Um homem

que, sem dúvida, atuava por despeito contra o mestre e cuja

obsessão parecia ser a de levá-lo à ruína e ao descrédito. Um

varão, em suma, que devia ser localizado, imediatamente, se

quiséssemos deter aquele incessante gotejamento de mortes e

chegar às claríssimas provas incriminatórias contra Leonardo que

ele garantia possuir.

- Se não me engano, padre, a passividade de Roma diante das

ameaças o obrigou a fazer justiça com as próprias mãos.

- E por que, padre Leyre? O que pode ter esse homem contra

os pintores? - perguntou o prior, espantado.

- Pensei muito nisso e, creia-me, só encontro uma explicação

possível - Bandello me olhou intrigado, convidando-me a

prosseguir. - Minha hipótese é que em algum momento do passado

recente o Augure foi cúmplice de Leonardo da Vinci, e até chegou

a comungar profundamente de suas crenças heterodoxas. Pode ser

que por alguma razão obscura, que deveremos determinar, nosso

homem se sinta defraudado pelo pintor, e decidiu delatá-lo.

Primeiro escreveu cartas obsessivas à Roma, informando-nos sobre

seus delitos contra a fé e as maldades que escondia no Cenacolo,

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mas diante de nosso ceticismo ficou desesperado e decidiu passar

à ação.

- À ação? Não entendo.

- Não posso reprová-lo, prior. Também não tenho todas as

chaves. No entanto, minha hipótese ganha sentido se concluirmos

que o Augure é tão albigense como Alessandro ou Giberto. Durante

um tempo, deveu-se acreditar herdeiro dos autênticos apóstolos de

Cristo e, como os albigenses, aguardou com paciência a chegada

do dia da Segunda Vinda do Messias. É o sonho de todo

bonhomme. Acreditam que nesse dia se confirmará sua "verdadeira

religião" aos olhos da cristandade - aproveitei a atenção do padre

Vicenzo para arrematar minha idéia em tom solene. - Acredito que

depois de longa e vã espera, alterado por algum sério contratempo,

o Augure perdeu a paciência, renegou seus votos de não-violência

e se dispôs a cobrar com sangue o tempo perdido com os "homens

puros".

- É uma acusação horrível, padre.

- Estudemos os fatos, prior - convidei. - Os albigenses

conhecem o Novo Testamento e quando o Augure matou frei

Alessandro, preparou tudo para que parecesse suicídio. Leonardo

se deu logo conta disso e embora tratasse de desviar a atenção da

polícia, naquele dia, deu-me uma pista fundamental: Alessandro

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morreu da mesma maneira como Judas Iscariotes depois de delatar

Jesus.

- E que importância isso pode ter?

- Muita, prior. O universo albigense se movimenta graças ao

poder dos símbolos. Se o Augure conseguisse fazer a comunidade

dos perfeitos acreditar que se reproduziam os acontecimentos que

precederam a morte de Jesus, poderia fazê-los ver que a Segunda

Vinda estava perto. Entende? O "suicídio" do bibliotecário lhes

anunciava que estavam a ponto de surgir tempos proféticos: Cristo

ia regressar à Terra em breve e sua fé ressurgiria triunfante por

entre as sombras.

- A Parúsia...

- Com efeito. Por isso Giberto, impressionado pela revelação,

deixou o medo para trás e saiu a pregar como albigense, dando a

vida sem temor, na certeza de que, quando o Senhor regressasse,

ressuscitaria salvo dentre os mortos. O Augure consuma sua

vingança com uma inteligência demoníaca.

- Parece seguro de sua hipótese.

- E estou - concordei. - Já disse antes que nosso informante

tem uma personalidade complexa: é brilhante e não deixa nada ao

acaso, nem mesmo o lugar que escolheu para enforcar Alessandro.

- Ah, não?

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- Pensei que se dera conta - sorri, cínico. - Quando visitei o

pórtico do palácio da Razão e inspecionei a viga onde nosso

bibliotecário estava pendurado, vi um baixo-relevo curioso.

Pertence a um certo Orlando de Tressano, antigo carrasco de

hereges a quem a inscrição descreve como "spada e tutore Della

fede per aver fatto bruciare como si doveva i catari".*["Espada e

mestre da fé por ter queimado os albigenses como mereciam."]

- Curiosa zombaria, não acredita?

Vicenzo Bandello estava surpreso. A peste da heresia

infectara seu convento além do imaginável.

- Diga-me, padre Leyre - perguntou consternado -, até que

ponto imagina que o Augure engana os seus?

- O suficiente para convencer esses peregrinos de São

Francisco abandonar seus esconderijos nas montanhas e se

apresentar na cidade em busca da salvação. Entregaram a vida

docilmente ante a aproximação da Parúsia. O Augure conseguiu

assim que a comunidade albigensse denuncie sozinha. E deve

acreditar que é apenas uma questão de tempo que o mestre

Leonardo dê um passo em falso.

- Então... - titubeou o prior - acredita que o Augure vive ainda

entre nós.

- Sim, estou convencido - sorri. - E se esconde porque sabe

que tarde para conseguir seu perdão. Não apenas pecou contra a

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doutrina da igreja, mas infringiu o quinto mandamento: não

matarás.

- Como o identificaremos?

- Por sorte cometeu um pequeno erro.

- Um erro?

- Nas primeiras cartas, quando ainda tinha esperança na

intervenção de Roma, deu-nos uma pista para que pudéssemos

localizá-lo.

A fronte enrugada do prior se retesou pela surpresa.

- Claro! - exclamou, levando as mãos à cabeça. - É essa sua

adivinhação! A assinatura do Augure! Por isso estava escrita na

carta que contramos junto com o bibliotecário!

- Frei Alessandro quis decifrar o mistério por sua conta.

Incauto, eu próprio lhe entreguei o texto e talvez foi a curiosidade

o que acelerou sua morte.

- Nesse caso, padre Leyre, já o temos. Basta decifrar o

hieróglifo para chegar a ele.

- Tomara que fosse tão fácil.

34

O bom prior não pregou o olho toda a noite. Mal o vi diante

dos monges, de pé, com os olhos avermelhados e olheiras, supus

que passara a noite dando voltas ao molesto Óculos ejus dinumera.

Quase lastimei tê-lo encarregado daquela nova responsabilidade. À

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sua obrigação de desmascarar aqueles que entre seus monges

professavam crenças heréticas, ou de determinar que espécie de

mensagem provocadora se escondia na decoração de seu próprio

refeitório, acrescenta-se nesse momento a de localizar o frade que

provocara já várias mortes, convencido de agir por uma causa

justa. Seus irmãos o olhavam desconcertados. O capítulo ia

começar:

- Irmãos - o prior abriu solene, de pé, com a voz dura e os

punhos apertados sobre a mesa -, há quase trinta anos vivemos

entre estas paredes e nunca, até agora, enfrentamos uma situação

como esta. Deus Nosso Senhor pôs à prova nossa temperança,

permitindo-nos ser testemunhas da morte de dois de nossos irmãos

mais queridos e revelando-nos que suas almas estavam

enegrecidas pelo fedor da heresia. Como acreditam que se sente o

Pai Eterno diante de nossa fraqueza? Com que disposição! Vamos

fazer súplicas se nós próprios, com nossa atitude, não fomos

capazes de perceber nossos erros e permitimos que morressem em

pecado? Os mortos que hoje repudiamos comiam nosso pão e

bebiam nosso vinho. Isso não nos torna cúmplices de suas faltas?

Bandello respirou fundo:

- Mas Deus, caros irmãos, não nos abandonou neste transe

terrível. Em sua infinita misericórdia, quis que esteja entre nós um

de seus mais sábios doutores.

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Um murmúrio percorreu os presentes, enquanto o prior me

apontava com seu indicador.

- Por isso ele está aqui - disse. - Pedi ao nosso ilustre padre

Agustín Levre, do Santo Ofício romano, que nos ajude a

compreender as tortuosas veredas que percorremos nestes

momentos de dor.

Levantei-me para que pudessem me ver, e saudei com uma

ligeira reverência. Em tom conciliador, o prior continuou o sermão,

fazendo verdadeiro esforço para não intimidar seus frades:

- Todos conviveram com frei Giberto e frei Alessandro - disse.

- Conheciam-nos bem. E, no entanto, ninguém percebeu

irregularidades em seu comportamento, nem soube ver sua funesta

submissão à heresia albigense. Dormíamos tranqüilos acreditando

que essa doutrina deixara de existir há mais de cinquenta anos, e

pecamos pela arrogância ao crer que nunca mais voltaríamos a

enfrentá-la. E não aconteceu assim. O mal, caros irmãos, é

renitente em desaparecer. Aproveita-se de nossa ignorância.

Nutre-se de nossa estupidez. Por isso, para nos prevenirmos de

novos ataques, pedi ao padre Leyre que nos ilumine sobre o mais

pérfido dos desvios cristãos. É provável que em suas palavras

identifiquem usos e costumes que talvez praticaram sem conhecer

a origem. Não temam: muitos se originam de famílias lombardas,

cujos antepassados tiveram algum contato com os hereges. Meu

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firme propósito é que antes de que o Sol se ponha, antes que

abandonem esta sala, abjurem de tudo isso e se reconciliem com a

Santa Igreja de Roma. Escutem nosso irmão, meditem sobre suas

palavras, arrependam-se e peçam confissão. Quero saber se nossos

defuntos irmãos foram os únicos infectados pela peste albigense e

tomar as providências oportunas.

O prior me cedeu a palavra, fazendo-me um gesto para que

me aproximasse da cabeceira da mesa. Ninguém pestanejou. Os

frades mais antigos, Luca, Jorge e Estêvão, velhos demais para

assumir alguma tarefa ativa no convento, espicharam os pescoços

para me escutar. Os demais escutaram minhas palavras com

autêntico pavor. Não tive mais que olhar em seus olhos.

- Estimados irmãos, hudetur Jesus Christus.

- Amém - responderam em coro.

- Ignoro, irmãos, até que ponto vocês têm presente a vida de

São Domingos de Guzmán - um murmúrio se propagou na platéia. –

Não importa. Hoje será um dia excelente para que juntos

relembremos sua obra.

Um suspiro de alívio percorreu a mesa.

- Deixem-me contar-lhes uma coisa. No início do ano de mil e

duzentos, os primeiros albigenses se estenderam por boa parte do

Mediterrâneo ocidental. Pregavam a pobreza, o retorno aos

costumes dos cristãos primitivos e advogavam uma religião simples

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que não requeria igrejas nem dízimos ou privilégios para os

ministros do Senhor. Seus seguidores repudiavam o culto aos

santos e à Virgem, como se fossem selvagens ou, pior ainda,

muçulmanos. Renegavam o batismo. E esses animais não

titubeavam em afirmar que o criador deste mundo não foi Deus e

sim Satã. Que perversão da doutrina! Podem imaginar? Para eles,

Javé, o Deus Pai do Antigo Testamento, foi na realidade um espírito

demoníaco que expulsou Adão e Eva do paraíso e destroçou

exércitos à passagem de Moisés. Em suas mãos, nós, os homens,

éramos apenas marionetes incapazes de diferenciar o bem do mal.

O povo simples acolheu aquelas calúnias com entusiasmo. Via

nelas uma fé que os perdoava do pecado e os fazia entender por

que havia tanto sofrimento num mundo criado pelo Maligno. Que

anátema! Situavam Deus e o Diabo, o bem e o mal, na mesma

altura, com incumbências e poderes idênticos!

"A Igreja", continuei, "quis corrigir aqueles bastardos do

púlpito, mas o remédio não funcionou. Seus, cada vez mais

numerosos, simpatizantes se deram conta da desproporção de sua

luta e a maioria acabou tendo piedade dos hereges, a quem muitos

consideravam vizinhos exemplares. Argumentavam que os

albigenses pregavam com o exemplo, dando mostras de humildade

e pobreza, enquanto os clérigos se revestiam de finas casulas e

ouro para condená-los de altares cobertos de adornos custosos.

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Assim, longe de desterrar a heresia, o que a Igreja conseguiu foi

espalhá-la como a peste. São Domingos foi o único a compreender

o erro e decidiu descer ao terreno dos 'puros', que significa

katharosi em grego, para pregar-lhes com a mesma pobreza

apostólica que admiravam. O Espírito Santo o tornou forte. Deu-lhe

coragem para entrar nos bastidores hereges da França, lá onde os

albigenses eram multidão, onde respondeu a eles um a um.

Domingos desmontou suas teses absurdas e proclamou Deus como

único Senhor da criação. Mas, até semelhante esforço foi inútil. O

mal estava muito espalhado."

Bandello me interrompeu: também ele estudara essa história

durante seus anos de preparação teológica e sabia que os

albigenses não ganharam adeptos entre camponeses e artesãos,

mas também, entre reis e nobres que os consideraram a fórmula

perfeita para evitar o pagamento de impostos e as cessões de

privilégios aos eclesiásticos.

- Isso é certo - admiti. - Não contribuir com o dízimo que a

Bíblia* estabeleceu para os sacerdotes era depreciar as leis de

Deus. Roma não podia ficar com os braços cruzados.

* [Gênisis 14, 20. Amos, 4, 4. Macabeus 3, 49.]

Levantei a vista até a mesa antes de continuar. Meu silêncio

devia intimidá-los.

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- Irmãos - prossegui -, aquela foi nossa primeira cruzada.

Parece incrível que ocorresse há menos de duzentos anos e tão

perto daqui. Então não duvidamos em levantar as espadas contra

nossas próprias famílias. Os exércitos ministraram a justiça das

armas, dividiram os "puros", acabaram com muitos de seus líderes

e obrigaram centenas de hereges a se exilarem longe das terras

que um dia dominaram.

- E foi assim, fugindo das tropas do Santo Padre, que os

últimos albigenses chegaram à Lombardia - acrescentou Bandello.

- Chegaram enfraquecidos à estas terras. E, embora tudo

apontasse para sua extinção, tiveram sorte: a situação política

favoreceu a reorganização dos hereges. Lembro que essa foi a

época de lutas entre guelfos e gibelinos. Os guelfos afirmavam que

o papa estava investido de uma autoridade superior à de qualquer

rei. Para eles, o Santo Padre era o representante de Deus na Terra

e, portanto, tinha direito a exército próprio e a grandes recursos

materiais. Os gibelinos, em compensação, com o capitão Matteo

Visconti à frente, repudiavam essa idéia e defendiam a separação

do poder temporal e o divino. Roma, diziam, devia se ocupar só do

espírito. O restante era tarefa dos reis. Por isso, ninguém

estranhou que os gibelinos acolhessem os últimos albigenses na

Lombardia. Era outra forma de desafiar o papa. Os Visconti os

apoiaram em segredo, e mais tarde os Sforza continuaram com

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essa política. É quase certo que Ludovico, o Mouro, ainda segue

essas diretrizes, e por isso, esta casa que hoje descansa sob sua

proteção se converteu em refúgio desses malditos.

Nicola di Piadena se levantou e pediu a palavra:

- Então, padre Leyre, acusa nosso duque de ser gibelino?

- Formalmente, não posso acusá-lo, irmão - respondi,

esquivando-me de sua pergunta venenosa. - Não sem provas.

Mesmo suspeitando que alguns de vocês as ocultam não hesitarei

em recorrer a um tribunal de ofício, ou ao tormento se for

necessário, para obtê-las. Estou decidido a ir às últimas

conseqüências.

- E como pensa demonstrar que existem "homens puros"

nesta comunidade? - perguntou frei Jorge, o encarregado das

esmolas, escudado em seus invejáveis oitenta anos. - Pensa

torturar o senhor mesmo a todos estes irmãos, padre Leyre?

- Explico como farei. Nosso amado Domingos ficou tão

preocupado com aquele desvio que decidiu pôr mãos à obra. Por

isso, fundou um grupo de pregadores para voltar a evangelizar

amplos territórios como o Languedoc francês. Hoje somos os

herdeiros dessa ordem e de sua divina missão. No entanto, com

sua morte, vendo que era impossível combater o mal só com a

palavra, o papa e as coroas fiéis à Roma decidiram pôr em marcha

uma repressão militar em grande escala que acabou com os

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amaldiçoados. Sangue e morte, cidades inteiras passadas a fogo e

espada, perseguição e dor sacudiram durante anos os alicerces do

povo de Deus. Quando as tropas do papa entravam numa cidade

em que se instalara a heresia, matavam todos sem distinguir entre

albigenses e cristãos. Deus, diziam, reconheceria os seus quando

chegassem ao céu.

Fiz um gesto para que Matteo, o sobrinho do prior,

aproximasse da mesa uma gaiola contendo um frango. Pedi-o

poucos minutos antes do início do capítulo. O animalzinho,

desconcertado, olhava para todos os lados.

- Como sabem, os albigenses não comem carne e se recusam

a matar qualquer ser vivo. Se você fosse um bonhomme e eu lhe

pedisse que o sacrificasse diante de mim, se negaria a matá-lo.

Jorge enrubesceu ao ver-me apanhar uma faca e levantá-la

sobre a ave.

- Se um de vocês se negar a matá-la saberá, que o reconheci.

Os albigenses acreditam que nos animais habitam as almas dos

humanos que morreram em pecado e regressam assim à vida para

purgá-los. Temem que ao sacrificá-los estejam tirando a vida de um

de seus companheiros.

Segurei o frango com força sobre a mesa, estirei o pescoço

para que todos pudessem vê-lo, e cedi a faca à Giuseppe Boltraffio,

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o monge que estava mais perto. A um gesto meu, o gume ceifou em

dois o pescoço do animal, salpicando de sangue nossos hábitos.

- Já se vê. Frei Giuseppe - sorri com ironia - está livre da

suspeita.

- E não conhece um método mais sutil de detectar um

albigense, padre Leyre? - protestou Jorge, horrorizado pelo

espetáculo.

- Claro que sim, irmão. Há muitas maneiras de identificá-los,

mas todas são menos convincentes. Por exemplo, se lhes mostrar

uma cruz, não a beijarão. Acreditam que só uma Igreja demoníaca

como a nossa é capaz de adotar o instrumento de tortura em que

pereceu Nosso Senhor. Também não veneram relíquias, nem

mentem, nem temem a morte. Embora, é claro, isso seja apenas

para o caso dos parfaits.

- Os parfaitâ - alguns frades repetiram a expressão francesa

com surpresa.

- Os perfeitos - esclareci. - São os que dirigem a vida

espiritual dos albigenses. Acreditam que imitam a vida dos

apóstolos como nenhum de nós. Rejeitam qualquer espécie de

propriedade, porque nem Cristo nem seus discípulos a tiveram.

São os encarregados de iniciar os aspirantes no melioramentum,

uma genuflexão que deve ser realizada cada vez que se encontrem

com um parfait. Só eles dirigem os apparellamentum, confissões

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gerais em que os pecados de cada herege são expostos, debatidos

e perdoados publicamente. E, como se fosse pouco, só eles podem

administrar o único sacramento que os albigenses reconhecem: o

consolamentum.

- Consolamentum? - voltaram os murmúrios.

- Servia ao mesmo tempo de batismo, comunhão e

extremunção - expliquei. - Administrava-se mediante a colocação

de um livro sagrado sobre a cabeça do neófito. Nunca era a Bíblia.

Esse ato era considerado um "batismo do espírito" e quem merecia

recebê-lo se convertia em "verdadeiro" cristão. Um consolado.

- E o que o fez pensar que o sacristão e o bibliotecário foram

consolados? - perguntou frei Stefano Petri, o risonho tesoureiro da

comunidade, sempre satisfeito por lidar com êxito sobre os

assuntos materiais de Santa Maria. - Se me permite a observação,

jamais os vi abjurar a cruz, nem creio que foram batizados

mediante a imposição de um livro sobre suas cabeças.

Alguns frades, ao redor, concordaram.

- Em compensação, irmão Stefano, você os viu fazer jejuns

extremos, não é verdade?

- Todos vimos. O jejum eleva o espírito.

- Não no caso deles. Para um albigense, os jejuns extremos

são um caminho para ganhar o consolamentum. Quanto à cruz,

convém não confundir. Aos albigenses basta limar as extremidades

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de qualquer crucifixo latino, tornando-o menos aguçado, para

poder carregá-lo no pescoço sem problema. Se a cruz é grega, ou

até com as extremidades largas, toleram-nas. Seguramente, irmão

Petri, também os viu rezar o Pater Noster com vocês. Pois bem: é a

única oração que admitem.

- Só dá argumentos circunstanciais, padre Leyre - respondeu

Stefano antes de se sentar.

- É possível. Estou disposto a admitir que frei Alessandro e

frei Giberto eram apenas simpatizantes à espera do batismo. Mas,

isso não os exime do pecado. Não esqueço também que o irmão

bibliotecário colaborou com o mestre Leonardo na sua Última ceia.

Quis ser retratado como Judas no centro de uma obra suspeita, e

acredito saber por quê.

- Diga - murmuraram.

- Porque para os albigenses Judas Iscariotes foi um servo do

plano de Deus. Acreditam que trabalhou bem. Delatou Jesus para

que se cumprisse a profecia e pudesse dar sua vida por nós.

- Então, sugere acaso que Leonardo também é um herege?

A nova pergunta de frei Nicola di Piadena fez sorrir de

satisfação o padre Benedetto, que pouco depois se ausentou da

mesa para esvaziar a bexiga no pátio.

- Julgue você mesmo, irmão: Leonardo se veste de branco,

não come carne, jamais mataria um animal, não se sabe de

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nenhuma relação carnal dele e, se ainda fosse pouco, no Cenacolo

omitiu o pão da comunhão e colocou uma adaga, uma arma, na

mão de São Pedro, indicando onde acredita que está a Igreja de

Satã. Para um albigense, só um servo do Maligno empunharia uma

arma branca na mesa pascal.

- Mas o mestre Da Vinci respeitou o vinho - observou o prior.

- Porque os albigenses bebem vinho! Mas, observe, padre

Bandello em lugar do cordeiro pascal que segundo os Evangelhos

era o alimento consumido naquele serão, o mestre pintou pescado.

E sabe por quê?

O prior negou com a cabeça. Dirigi-me a ele:

- Recorde o que o seu sobrinho escutou da boca do sacristão

antes de morrer: os albigenses não aceitam qualquer alimento que

proceda do coito. Para eles, os peixes não copulam e então podem

comê-los.

Um murmúrio de admiração se estendeu pela sala. Os

monges seguiam boquiabertos minhas explicações, espantados por

não ter detectado antes aquelas heresias na parede de seu futuro

refeitório.

- Agora, irmãos, necessito que um a um responda minha

pergunta - eu disse, mudando meu tom descritivo por outro mais

severo. - Façam um exame de consciência e respondam diante de

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sua comunidade: algum de vocês seguiu, por vontade própria ou

alheia, algum tipo de comportamento que acabei de descrever?

Percebi que os frades continham a respiração.

- A Santa Mãe Igreja será misericordiosa com aquele que

abjurar suas práticas antes de abandonar esta reunião. Depois, o

peso da justiça cairá sobre ele.

35

O Augure atuou com precisão prodigiosa. Se alguém tivesse a

má sorte de cruzar por ele concluiria que se movia como se

conhecesse até o último recanto do convento. Envolvido numa capa

preta que o cobria da cabeça aos pés, atravessou as fileiras vazias

de bancos da igreja, virou à esquerda rumo à capela da Madonna

delle Grazie e entrou na sacristia. Ninguém lhe interrompeu a

caminhada. Os frades estavam nessa hora reunidos no capítulo

extraordinário, alheios à chegada do intruso.

Satisfeito, abandonou o oratório atravessando o arco que dá

para o pequeno claustro do prior; rodeou-o com passo rápido e

uma vez dentro do Claustro dos Mortos deixou por trás o refeitório

para subir de três em três os degraus que davam para a biblioteca.

O Augure - homem ou espírito; anjo ou demônio, e o que mais

fosse - deslocou-se com aprumo. Depois de inspecionar com olho

profissional a sala do scriptoríum, dirigiu os passos até a carteira

de frei Alessandro. Não tinha tempo a perder. Sabia que Marco

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d'Oggiono e um pintor cúmplice do toscano a quem chamavam

Bernardino Luini, acabaram de abandonar a casa de Leonardo,

bem em frente ao convento de Santa Maria delle Grazie, e não

demorariam a chegar ao refeitório. Ignorava o que os trazia ali, e

muito menos que eram acompanhado por uma rapariguinha por

expresso desejo do toscano.

Com cuidado, o Augure depositou a capa na mesa do

bibliotecário e, tomando precaução para não fazer muito barulho,

bateu no lajeado solo. Encaixadas umas junto às outras, só duas

lajes se mexeram ao serem golpeadas. Era o que buscava.

Agachou-se para examiná-las e viu que não estavam unidas com

argamassa: tinham as beiradas polidas e o reverso limpo, sinal

inequívoco de uso freqüente. Ao levantá-las, reconheceu o conduto

da calefação a vapor. Observou-o satisfeito. O Augure sabia que

essa minúscula abertura de alvenaria percorria de lado a lado o

teto do refeitório e que, dali, um ouvido bem treinado nada

perderia de qualquer coisa que se falasse debaixo.

Com precaução, deitou-se o mais esticado possível para colar

o ouvido ao lajeado e fechou os olhos em busca de concentração.

Um minuto depois escutou um forte rangido. Era a aldrava do

refeitório. Os convidados de Leonardo estavam prestes a entrar na

sala da Última ceia.

- O que nos quis dizer o mestre com o ômega?

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A pergunta da bela Elena subiu diáfana pelo canal até o andar

de cima. O Augure se surpreendeu ao perceber o timbre de uma

mulher.

- A primeira vez que o ouvi falar disso foi na presença de

soror Verônica, no dia de sua morte - respondeu Marco d'Oggiono,

cuja voz reconheceu logo.

- Você esteve com soror Verônica da Binasco no dia em que se

cumpriu a profecia?

Elena não cabia em si de admiração.

Passara a última noite acordada, boquiaberta diante das

explicações de Leonardo e as brincadeiras de seus discípulos,

preparando-se para sua pose. Leonardo concordou em retratá-la

como o discípulo João se antes demonstrasse, com a ajuda de seus

acompanhantes, que era capaz de compreender a importância

daquele mural.

O mestre, seduzido pela beleza da primogênita dos Crivelli,

não podia tirá-la da cabeça desde que a conhecera no Palazzo

Vecchio. Era um "João" perfeito. Mas, não queria se precipitar.

Convidara-a num par de ocasiões, sempre com o mestre Luini ao

lado, aos seus célebres serões de música, poesia e trovadores com

que obsequiava seus hóspedes. Queria acompanhar de perto a

evolução daquele inesperado par. A jovem se sentia embriagada.

Ver-se freqüentando um círculo que só conhecia pela mãe era

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como entrar no mundo dos sonhos. E não queria acordar. Desde

que Lucrezia Crivelli iluminara suas noites infantis com contos de

Príncipes e menestréis, cerimônias cavalheirescas e reuniões de

magos, Elena quisera estar ali.

- Soror Verônica? Ai! A monja se irritava com facilidade –

recordou Marco, esfregando as mãos enquanto soprava nelas. O

refeitório estava frio. Chegara a hora de aguçar a inteligência.

- Deveras?

- Oh, sim. Sempre recriminava os gostos excêntricos do

mestre e criticava por conhecer melhor os livros dos filósofos

gregos do que a Sagrada Escritura. A verdade é que não

costumavam falar de arte e muito menos dos trabalhos do mestre,

mas, no dia em que morreu, a irmã Verônica perguntou por este

refeitório.

- E o que isso tem a ver com o ômega? - protestou Elena.

- Deixe-me contar. Naquele dia Leonardo se sentiu ofendido.

Soror Verônica o acusou de minimizar a importância de Cristo no

Cenacolo. O mestre se aborreceu. Respondeu que Jesus era o único

alfa desta composição.

- Disse isso? Que Jesus era o alfa do mural?

- Jesus, disse, é o princípio. O centro. O eixo deste trabalho.

- De fato - observou Luini, esforçando-se por atinar com a

silhueta de Cristo na penumbra -, é certo que Jesus ocupa o lugar

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dominante, mas, sabemos que o ponto de fuga da perspectiva de

toda a composição se encontra exatamente sobre sua orelha

esquerda, sob a cabeleira. Leonardo cravou seu compasso no

primeiro dia. Eu mesmo vi. E a par deste ponto sagrado traçou o

resto.

O Augure se surpreendeu ao escutar Luini. Era a primeira vez

que escutava. Sabia que partilhava a trama herética de Leonardo

pelos de seus quadros. Também ele pintava obsessivamente cenas

da vida de João. Seu encontro de menino com Jesus a caminho do

Egito, seu batismo no Jordão, ou sua cabeça servida numa bandeja

de prata à Salomé! repetiam em seus quadros uma e outra vez.

Todos os peregrinos que veneravam a Maestà de Leonardo o

conheciam bem. "Os lobos", deduziu inquieto ao confirmar sua

presença no sanctum sanctorium toscano, "sempre andam em

bandos."

- Sua observação é correta, mestre Bernardino - disse Marco

sem perder de vista sua bela acompanhante, que já começava a

distinguir as silhuetas dos apóstolos iluminadas pela claridade do

amanhecer. - Se você se fixar no corpo, assim, com os braços

estendidos para a freira verá que tem a forma de um "A" enorme.

Trata-se de um enorme que nasce no centro exato dos Doze.

Percebe?

- Estou vendo, mas e o ômega? - insistiu Elena.

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- Bem. Creio que o mestre disse isso porque se considera o

último de seus discípulos.

- Quem? Leonardo?

- Sim, Elena. Alfa e ômega, princípio e fim. Tem sentido, não?

Luini e a condessinha encolheram os ombros. O corpulento

aluno intuía, como Marco, que aquela parede ocultava mensagem

iniciática de grande proporção. Era evidente que se o mestre os

deixara chegar até ali sem lhes dar a chave para a leitura se devia

a que, de alguma maneira, estava pondo-os à prova. Estavam, pois,

diante do maior hieróglifo jamais desenhado pelo toscano, e de sua

habilidade para conseguir algum resultado ia depender do acesso a

segredos maiores. E, sobretudo, a salvação de sua alma.

- Talvez Marco esteja certo e o Cenacolo esconda uma espécie

de alfabeto visual.

Aquilo sobressaltou o Augure.

- Um alfabeto visual?

- Sei que o mestre estudou com os dominicanos de Florença a

"arte da memória". Seu mestre, Verocchio, também a praticou e a

ensinou a Leonardo quando ele era ainda criança.

- Nunca nos falou disso - disse Marco, algo decepcionado.

- Talvez não considerasse importante para sua formação.

Afinal de contas, trata-se apenas de artifícios mentais para

recordar grande quantidade de informação ou armazená-las em

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construções ou obras de arte. Esta informação fica à vista de todos,

mas é invisível aos olhos dos não iniciados em sua leitura.

- E onde está vendo aqui esse alfabeto? - insistiu, intrigado,

d'Oggiono.

- Você disse que o corpo de Jesus tem o aspecto de um "A" e

que para Leonardo é o alfa da composição. Se ele disse de si

próprio que é o ômega, conviria que não é despropositado procurar

no retrato de Tadeu o que lembre um "O".

Os três se olharam com cumplicidade e, sem interpor

palavras, aproximaram os pés da mesa pascal. A figura de Tadeu

era inconfundível.

Olhava para o lado oposto de onde se desenrolava a ação.

Inclinado para a frente, tinha os braços cruzados em forma de X,

com as palmas erguidas para o céu. Vestia uma túnica

avermelhada, sem fecho, e nada havia em sua figura que

permitisse imaginar um ômega.

- Alfa e ômega também podem ter a ver com São João e

Madalena - murmurou Bernardino, escondendo a decepção.

- O que você quer dizer?

- É simples, Marco. Você e eu sabemos que o mural é

secretamente consagrado à Maria Madalena.

- O nó! - recordou. - É certo! O nó corrediço na extremidade

do mantel. Creio que Leonardo quis nos despistar. O mestre levou

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tempo fazendo correr o boato de que o nó é sua particular maneira

de assinar a obra. Em língua românica, Vinci provém da palavra

latina vincoli, isto é, laço ou cadeia. No entanto, o significado

oculto não pode ser tão grosseiro. Obrigatoriamente, se relaciona

com a favorita de Jesus.

O Augure se mexeu incômodo em seu esconderijo.

- Um momento! - protestou Elena. - E o que isso tem a ver

com o alfa e o ômega?

- Está na Escritura. Lendo os evangelhos você verá que João

Batista desempenhou um papel fundamental no início da vida

pública do Messias. João batizou Jesus no Jordão. De fato, de

alguma maneira serviu de ponto de partida, de alfa, à sua missão

na Terra. Madalena, em compensacão, foi determinante no

momento oportuno. Estava presente quando ressuscitou do túmulo.

E, à sua maneira, também ela o batizou, ungindo-o poucos dias

antes da Última Ceia na presença dos discípulos. Ou não se lembra

de Maria Betânia no episódio em que lhe lava os pés? Ela atuou

nesse momento como um verdadeiro ômega.

*[Marcos 14, 3-9. Até o século XIX, a Igreja considerava boa a

interpretação identificava Maria Betânia como Madalena, e que,

portanto, tinha parentesco com Marta e Lázaro, protagonista do

episódio da ressurreição narrada por João em seu evangelho.]

- Madalena, ômega...

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A explicação ainda não convencera a rapariga. Em princípio

João e Tadeu não se relacionavam, a não ser pelo fato de que

nenhum dos dois olhava para Cristo. Elena demorou algum tempo

elaborando uma interpretação opcional para aquele "O" tão fora de

lugar. Olhava de um para outro do muro estucado, tentando

encontrar sentido para o enigma. Logo amanheceria e deveriam se

apressar se quisessem completar a prova antes da chegada dos

monges. Se havia, no Cenacolo, algo para "ler", deviam encontrar

com rapidez.

- Creio que vocês propõem interpretações rebuscadas - disse

por fim. - E o mestre, pelo pouco que conheço dele, é grande

amante da simplicidade.

Marco e Bernardino se voltaram para a condessinha.

- Se atou de forma tão evidente num dos extremos do mantel,

deixando o outro liso, é porque deseja chamar a atenção do

espectador para este recanto da mesa. Há algo ali, onde ele

próprio se retratou, que quer que vejamos.

Luini levantou o braço até o nó, acariciando-o com as pontas

dos dedos. Aquele laço estava desenhado com grande mestria.

Cada prega do tecido lhe conferia uma maravilhosa sensação de

realidade.

- Acho que Elena tem razão - admitiu.

- Razão? Que razão?

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- Olhe bem, Marco: a zona que marca o nó é a área em que a

luz da composição é mais forte do que no resto. Intensa. Observe

aqui as sombras no rosto dos apóstolo. Está vendo? São mais

duras. O perfil grego de d'Oggiono explorou longitudinalmente a

parede, comparando o amplo leque de claros-escuros nas roupas e

nos rostos dos Doze.

- Talvez tenha sentido - continuou Luini, como se pensasse em

voz alta. - Essa zona aparece mais iluminada do que as demais

porque para Leonardo o conhecimento parte de Platão. Ele é como

o Sol que ilumina a razão. E o discípulo mais brilhante de todo o

conjunto é São Simão, o que tem o rosto do grego e o único manto

branco da cena...

Aquela nuance devolveu à Luini uma recordação importante:

- E Mateus, o discípulo que está cotovelo a cotovelo com o

mestre é Marsilio Ficino... Claro! - exclamou em voz alta, de

repente. – Ficino confiou ao mestre os textos de João antes que

saíssemos de Florença. Aí está a chave!

Elena o olhou perplexa.

- A chave? Que chave?

- Agora entendo. Os antigos faziam a iniciação de seus

adeptos colocando um evangelho inédito de João sobre a cabeça

deles. Acreditavam que assim se transmitia pelo contato a essência

espiritual da obra à mente e ao coração do candidato a verdadeiro

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cristão. Esse livro de João continha grandes revelações sobre a

missão de Cristo na Terra e mostrava o caminho que devíamos

seguir para alcançar um lugar no céu. Leonardo... - Luini respirou

fundo - substituiu esse texto por uma obra pictórica que contivesse

seus símbolos fundamentais. Por isso, enviou você aqui para ser

iniciada, Elena! Para iniciar você com o segredo místico de João.

- E vocês podem me iniciar sem saber exatamente o que o

mestre inscreveu aqui?

O tom da jovem soou incrédulo.

- À falta de mais pistas, sim. Antigamente os noviços não

chegavam sequer a abrir o livro perdido de João. Muitos nem

sabiam ler. Por que não haverá o mural de atuar da mesma

maneira conosco? Além disso, olhem para Cristo. Está a uma altura

suficiente na parede para que se possa ficar debaixo, e receber sua

mística imposição de mãos, com uma palma protegendo a cabeça e

a outra invocando o céu.

A condessinha olhou de novo para o alfa. Bernardino tinha

razão. A cena do banquete estava colocada em altura suficiente

para receber uma pessoa de certa envergadura sob o mantel. Era

um bom lugar para se localizar e receber o espírito do quadro,

mas, contudo, a mente pragmática de Elena a forçava a buscar

uma interpretação mais racional.

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- Leonardo era um homem prático, pouco dado a velhas

lucubrações místicas.

- Pois eu acredito saber como podemos ler a mensagem do

Cenacolo...

Elena titubeou. Uma intuição súbita a iluminou e ela se pôs

sob a proteção do alfa.

- Lembram-se das atribuições que o mestre mandou-os

memorizar para quando chegasse o momento de retratar os Doze?

Bernardino concordou perplexo. As imagens do dia em que a

condensinha lhe arrebatou aquela lista ainda continuavam vivas

em sua memória. Enrubesceu.

- E sabem me dizer que virtude atribuía a Tadeu? - insistiu.

- A Tadeu?

- Sim, a Tadeu - exortou Elena, enquanto Luini procurava o

dado entre suas recordações.

- É Occultator. O que oculta.

- Exato - sorriu. - Um "O". Está vendo? Aqui temos de novo

nosso ômega. E isso não pode ser por acaso.

36

- Por todos os diabos! O júbilo de Bernardino Luini ressoou

nas quatro paredes do refeitório.

- Não pode ser tão fácil!

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Concentrado na descoberta da condessinha, o mestre

começou a repassar a distribuição dos apóstolos. Teve de

retroceder três passos para garantir uma visão panorâmica.

Somente se colocando a uns metros da parede norte era possível

avistá-los por inteiro, de Bartolomeu a João e de Tomé a Simão.

Estavam agrupados de três em três, todos com o rosto dirigido

para Cristo, menos o discípulo amado, Mateus e Tadeu, que

fechavam os olhos ou olhavam para outra parte.

Luini rasgou um dos papelões que Leonardo tinha espalhado

pelo chão e, com um carvão, começou a rabiscar os perfis da cena

no rever de Marco e Elena que seguiram seus movimentos com

curiosidade. Enquanto isso, o Augure, um andar acima,

impacientava-se por nada escutar.

- Já sei como ler a mensagem do Cenacolo - anunciou por fim.

Estava todo o tempo diante de nossos narizes e não soubemos vê-

la.

O pintor se colocou então numa das extremidades perto de

Bartolomeu, recordou-lhes sob a efígie encurvada e absorta, era

Mirabill, o prodigioso. Leonardo o retratara com o cabelo

encaracolado e vermelho, confirmando o que Jacopo da Varazze

escreveu sobre ele em sua Lenda dourada: era sírio e de índole

inflamada, como corresponde : peles-vermelhas. Luini anotou um

"M" no papelão, junto com sua silhueta. Depois fez o mesmo com

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Tiago Menor, o cheio de graça Venustus, aquele a quem amiúde

confundiam com o próprio Cristo que por suas obras mereceu esse

cognome. Um "V" se somou ao André, Temperator, o que previne,

retratado com as mãos para a frente como corresponde a tal

atributo, logo ficou reduzido a um simples "T".

- Estão vendo?

Marco, Elena e o jovem mestre sorriram. Aquilo começava a

ganhar sentido. "M-V-T" para o início de uma palavra. O frenesi

disparou ao comprovar que o grupo seguinte de apóstolos dava

lugar a outra sílaba pronunciável. Judas se converteu em "N" de

Nefandus, o abominável traidor de Cristo. Sua posição, no entanto,

era algo ambígua: embora Judas fosse a quarta cabeça a aparecer

a partir da esquerda, a peculiar posição de São Pedro - com o

braço armado nas costas do traidor, poderia dar lugar a um erro de

contabilidade. Em qualquer caso, Luini explicou que o "N"

continuava sendo válido já que Pedro foi o único dos Doze que

negou três vezes Cristo. "N", pois de Negado.

Elena protestou. O mais lógico era se guiar pela ordem das

cabeças dos personagens e pelos atributos da lição de Leonardo.

Nada mais.

Seguindo essa ordem, o seguinte era Pedro. Encurvado para o

centro da cena, merecia tanto o "E" de Eclesia como o de Exosus,

que o toscano lhe atribuiu. O primeiro agradaria Roma; o segundo,

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que significa "o que odeia", refletia o temperamento daquele

sujeito de cabelo branco e olhar ameaçador, disposto a executar

sua vingança armado com uma faca de folha larga. E João,

abstraído, com a cabeça inclinada e as mãos unidas como as damas

retratadas por Leonardo, fazia jus ao seu "M" de Mysticus. "N-E-

M", pois, era o desconcertante resultado do trio.

- Jesus é o "A" - lembrou Elena ao chegar ao centro do mural.

- Continuemos. - Tomé, com o dedo para cima, como que

assinalando qual dos presentes era o primeiro a merecer o

privilégio da vida eterna, passou para o esboço de Luini como o "L"

de Litator, o que aplaca os deuses. Seu atributo provocou uma

breve discussão. No Evangelho de João, foi Tomé quem pôs o dedo

na ferida de Cristo. E também quem caiu de joelhos gritando

"Senhor meu e Deus meu!" (João, 20, 28), aplacando assim a

possível ira do ressuscitado por não ser reconhecido de imediato.

- Além disso - insistiu Bernardino, enfatizando sua teoria -,

estamos diante do único retrato que confirma sua letra no perfil do

apóstolo.

- Você se esquece do alfa de Jesus - especificou a

condessinha. Só que nesta ocasião a letra não se esconde no corpo

de Tomé, mas nesse dedo levantado para o céu. Estão vendo? O

dedo indicador estirado forma, junto com a base do punho e o

polegar saliente, um claro "L" maiúsculo.

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Os acompanhantes de Luini concordaram maravilhados.

Contemplaram com cuidado Tiago Maior, mas foram incapazes de

encontrar nele algum indício que reproduzisse o "O" que o

representava.

- No entanto - esclareceu Bernardino -, quem estudou a vida

deste apóstolo concluirá que o "O" de Oboedíens, o obediente,

ajusta-se nele como uma luva.

De fato. Do filho de Zebedeu escreveu Jacopo da Varazze que

foi o irmão carnal de João e que "ambos pretendiam ocupar no

reino do céu os postos mais próximos ao Senhor e sentar-se, um

deles, à Sua direita e o outro à esquerda". Leonardo, portanto,

recriou no Cenacolo uma mesa divina, extraída do mundo da

perfeição habitado pelas almas puras. E João e Tiago Maior

ocupavam nela os lugares prometidos por Cristo.

Assim, junto à Filipe, Sapiens entre os Doze, o único que se

assinalava a si próprio, indicando-nos onde devemos buscar nossa

salvação, Luini conseguiu armar uma terceira e desconcertante

sílaba: "L-O-S".

O grupo restante de apóstolos se resolveu com idêntica

rapidez. Mateus, o discípulo cujo nome, segundo o bispo da

Varazze, significava: "dom da presteza", já previa desenlace rápido.

Luini sorriu ao recordar! como Leonardo o batizou de Navus, o

diligente. Sua letra e o ômega de Tadeu formavam já uma sílaba

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legível, "N-O". Ao acrescentar o "C" de Simão, por Confector, “o

que leva adiante”, o panorama resultante lhe pareceu promissor:

quatro grupos de três letras, com uma vogal ao centro, e um

enorme "A" presidindo a cena, deixavam-se ler como se fossem

uma estranha e esquecida fórmula mágica:

MUT NEM A LOS NOC

Bartolomeu Mirabilis O Prodigioso

Tiago Menor Venustus O cheio de graça

André Temperator O que previne

Judas Iscariotes Nefandus O abominável

Pedro Exosus O que odeia

João Mysticus O que conhece o

mistério

Tomé Litator O que aplaca

os deuses

Tiago Maior Oboediens O que obedece

Filipe Sapiens O amante das

coisas elevadas

Mateus Navus O diligente

Tadeu Occultator O que oculta

Simão Confector O que leva adiante

- E agora o quê? - Elena encolheu os ombros. - Significa algo?

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Os dois homens repassaram de novo a frase sem encontrar

outro sentido que uma sucessão de monossílabos pronunciáveis

com aspecto de velha litania. Tampouco os surpreendeu. Era

próprio do mestre que uma adivinhação conduzisse a outra maior.

Leonardo se divertia desenhando essa espécie de passatempo.

- Mut, Nem, A, Los, Noc...

Alguns metros acima de suas cabeças aqueles sons

percorreram a garganta do Augure. Murmurou-os várias vezes

antes de abandonar eufórico seu observatório clandestino. "Que

zombaria astuta", pensou. E, satisfeito, conjeturou como faria

chegar seu achado à Roma.

37

Roma, dias mais tarde

Devemos nos apressar. Logo serão doze horas. Giovanni

Annio de Viterbo jamais abandonava seu palacete da margem oeste

do Tiber sem seu coche e o fiel secretário Guglielmo Ponte. Era

mais um dos privilégios que a doninha merecera de Sua Santidade

Alexandre VI. No entanto, tamanha ostentação lhe nublava a razão.

Annio de Viterbo era incapaz de suspeitar que o jovem Guglielmo,

além de culto e refinado, era sobrinho do padre Torriani. E muito

menos que eram seus olhos que iluminavam a Betânia sobre as

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atividades de um dos personagens mais ambíguos e embusteiros

em séculos.

- As doze! - repetiu. - Você me ouviu? As doze!

- Não se preocupe - respondeu Guglielmo, cortês. -

Chegaremos a tempo. Seu cocheiro é muito rápido.

Nunca vira a doninha tão nervosa. A pressa era coisa rara em

alguém como ele. Desde que se estabelecera nas imediações da

mansão dos Bórgias, por expresso desejo de Sua Santidade, Annio

circulava em Roma como se a cidade fosse sua. Não devia

explicações a ninguém. Suas horas de entrada e saída não feriam

qualquer protocolo; tudo o que ele fazia era considerado bom. As

más línguas diziam que suas prerrogativas foram ganhas graças à

ânsia do pontífice de ilustrar sua antiquíssima, nobilíssima e

diviníssima estirpe familial com histórias que justificassem sua

grandeza. E era certo que Annio sabia inventar como nenhum

outro. Do papa valenciano chegou a inventar coisas incríveis.

Descobriu que era descendente do deus Osíris que visitou a Itália

na noite dos tempos para ensinar aos habitantes a cultivar suas

terras, a fabricar cerveja e até a podar as árvores. Sempre apoiava

suas mentiras em textos clássicos, e amiúde recitava passagens

inteiras de Diodoro de Sicília para justificar sua estranha obsessão

pela mitologia dos faraós.

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Nem Betânia, nem o Santo Ofício jamais puderam conter tais

fantasias. O papa adorava aquele charlatão. Partilhava até seu ódio

visceral contra o esplendor das cultas cortes de Florença ou Milão,

em cujas bibliotecas a doninha via séria ameaça às suas idéias

despropositadas. Sabia que as traduções de Marsilio Ficino de

textos atribuídos ao grande deus egípcio Hermes Trismegisto,

também conhecido como Tot, o deus da Sabedoria, jogavam por

terra a maior parte de suas invenções. Nem falavam da visita de

Osíris à Itália, nem vinculavam os montes Apeninos a Ápis, nem a

cidade de Osiricella a uma remotíssima visita desse deus aos

arredores de Treviso.

Até aquele dia Guglielmo imaginava que só a recordação de

Ficino era capaz de tirar o mestre Annio de seu juízo. Mas, era

evidente que estava enganado.

- Você viu a decoração dos apartamentos do papa?

Guglielmo negou com a cabeça. Estava há tempo absorto no

repique dos cascos dos cavalos nos paralelepípedos, tentando

imaginar aonde a doninha ia com tanta pressa.

- Vou mostrá-la a você - disse entusiasmado. - Hoje,

Guglielmo, você conhecerá o grande artífice dessas pinturas.

- Deveras?

- Acaso menti para você alguma vez? Se você visse as cenas

de que estou falando, entenderia como são importantes. Mostram o

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deus Ápis, o touro sagrado dos egípcios, como o ícone profético dos

tempos que vivemos. Ou você não percebeu que no escudo de

nosso papa também há um boi?

- Um touro.

- Qual a diferença? O importante é o símbolo, Guglielmo!

Junto com Ápis também está representada a deusa Isis. É solene

como a rainha católica da Espanha, e aparece sentada em seu

trono celeste com um livro aberto no colo, ensinando a Hermes e a

Moisés as leis e as ciências.

- Pode imaginar?

Guglielmo fechou os olhos, como se se concentrasse nas

palavras de seu mestre.

- O que dizem esses afrescos, caro, é que Moisés recebeu do

Egito todo seu saber, e que dele nós cristãos o herdamos.

Compreende a genialidade da arte? Entende agora o sublime

ensinamento do que estou dizendo? Nossa fé, caro Guglielmo,

procede dali, do remoto Egito. Da mesma forma que a família de

nosso papa. Até os evangelhos dizem que Jesus fugiu para lá, para

se livrar de Herodes. Não entende? Tudo procede do Nilo!

— E também a pessoa de quem está falando, mestre?

— Não. Ela não. Mas sabe muito do lugar. Conseguiu-me

muitas coisas desse paraíso de sabedoria.

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Annio emudeceu. Falar das origens egípcias do cristianismo

provocava-lhe sensações contraditórias. Por um lado, reconfortava-

o saber que cada dia havia mais sábios que, como aquele Leonardo

de Milão, conheciam o segredo e o plasmavam em obras como a

Maestà, que narrava um encontro plausível entre João e Jesus

durante a fuga para o país dos faraós; por outro, uma divulgação

imprudente dessas verdades poderia pôr em perigo a estabilidade

moral da Igreja e fazê-la perder alguns de seus privilégios. Como

reagiria o povo quando soubesse que Cristo não foi o único homem-

deus a voltar dentre os mortos? Acaso formulariam perguntas

incômodas ao saber das enormes simetrias entre sua vida e a de

Osíris? Interrogariam o papa com acusações incômodas, apontando

os padres da igreja como vulgares copiadores de uma história

sagrada que não lhes pertencia?

Nanni se mexeu no assento.

— Você sabe, Guglielmo? Toda a sabedoria oculta nos

afrescos do palácio nada é comparada com a que espero receber

hoje.

O assistente baixou o olhar, temendo que o mestre

descobrisse a curiosidade que suas palavras despertavam nele.

— Se me entregar o que espero, terei a chave de tudo o que

falei. Saberei tudo...

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Annio se calou ao notar que o coche perdia velocidade.

Lançou um olhar através da cortina e viu que estavam fora de

Roma, bem perto de sua destinação.

— Creio que estamos chegando, padre Annio — anunciou o

assistente. — Magnífico. Você percebe alguém nos esperando?

Guglielmo pôs a cabeça para fora do coche e examinou a

enorme fachada caiada de El Gigante Verde, uma pousada das

cercanias famosa por ser ponto de encontro tanto de peregrinos

como de fugitivos da Justiça. De fato, um cavaleiro solitário metido

numa capa marrom os saudava da porta do estabelecimento.

— Há um homem que parece tê-lo reconhecido — disse.

— Então deve ser ele. Oliverio Jacarandá. Passou-se muito

tempo desde a última vez que nos vimos.

— Jacarandá? — o jovem assistente titubeou. — O senhor o

conhece, mestre?

— Oh, sim. É um velho amigo. Você não precisa se preocupar.

— Com o devido respeito, mestre: este não é um lugar

especialmente seguro para alguém como o senhor. Se o

reconhecessem, poderíamos ser assaltados ou quem sabe

seqüestrados...

Annio sorriu divertido. Guglielmo ignorava quantas vezes

estivera fechando negócios nesse mesmo lugar. É que, muitos

antes de ocupar seu cargo protocolar junto a Alexandre VI, El

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Gigante Verde, fora um de seus “despachos” favoritos. Os donos o

conheciam e o respeitavam. Nada tinha a temer. Em suas mesas,

estátuas, pinturas, estrelas antigas, escritos, roupas, perfumes e

até paramentos funerários completos foram trocados por

suculentas bolsas de ouro dos tesouros pontifícios. Jacarandá era

um de seus melhores provedores. As peças que comprara dele o

fizeram escalar mais de um degrau em sua carreira. Por isso, se o

espanhol regressara a Roma e pedira para vê-lo com urgência era

porque tinha algo importante para oferecer.

Ao pôr o pé no chão, Annio tremeu de emoção: conseguiria

enfim o velho tesouro? Traria a peça final que tanto ambicionara?

A fértil imaginação do mestre se desencadeou. Enquanto

Guglielmo fechava atrás de si a porta do coche, a doninha se

regozijava pensando como estava perto do maior de seus êxitos.

Jacarandá chegava num momento mais do que oportuno. Na

tarde anterior, Nanni voltara a se reunir com o geral dos

dominicanos, o irritável Gioacchino Torriani, para ouvir de seus

lábios as últimas novidades sobre o assunto de A última ceia. Em

audiência privada com Sua Santidade, Alexandre VI admitiu ter

encontrado a mensagem oculta por trás daquele impressionante

mural. “Leonardo”, disse, “escondeu entre seus personagens uma

frase, uma invocação escrita numa linguagem estranha que agora

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nos propomos decifrar. Uma carta recebida de Milão nos resolveu

o mistério."

Torriani entoou aquela sentença diante do papa e da doninha.

Ninguém entendeu uma palavra. No entanto, para Nanni, a oração

escondida no Cenacolo era indiscutivelmente egípcia.

- Mut-nem-a-los-noc - sussurrou.

Acaso não era clara sua origem? Não citava porventura a

deusa Mut, mulher de Amon, rainha de Tebas? Não era

providencial que Oliverio Jacarandá, autêntico especialista em

hieróglifos, chegasse quase ao mesmo tempo que aquela

mensagem? Acaso não o mandara o próprio Deus para ajudá-lo a

resolver aquela adivinhação e ganhar assim o respeito eterno do

papa?

Sim. A providência, pensou, estava de seu lado.

Diante das cavalariças do El Gigante Verde, Jacarandá beijou

o anel de Annio e o convidou a entrar no estabelecimento. Falaram

do velho tesouro e do hieróglifo.

Guiado até o ventre da pousada, a doninha sentou-se num dos

pequenos reservados. Foi uma sorte inesperada para Betânia que

Guglielmo tivesse acesso ao que se falou ali dentro.

- Meu caro Nanni - disse o espanhol, já acomodado em seu

assento enquanto era servida uma generosa jarra de cerveja. -

Espero não tê-lo assustado com esta repentina visita.

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- Pelo contrário. Sabe que sempre as aguardo com

impaciência.

- Lástima que não faça mais por esta corte, onde é tanto

valorizado.

- É melhor assim.

- Melhor?

Oliverio decidiu eliminar os rodeios:

- Desta vez trago notícias que não o agradarão - disse.

- Sua visita já me agrada. Que mais posso pedir?

- O velho tesouro, naturalmente.

- E então?

- Resiste a cair em minhas mãos.

Annio forçou a expressão do rosto. Sabia que conseguir

aquele, não ia ser fácil. No final das contas, seu tesouro chegara à

Itália há mais de cem anos e circulara de mão em mão,

desaparecendo nos momentos mais inesperados. Não era jóia, nem

relíquia venerável, nem algo que satisfizesse os custosos gostos de

um rei. O tesouro era um livro. Um velho tratado oriental,

encadernado em marroquim e atado com tiras de couro, com que

esperava encontrar a verdade sobre a ressurreição do Messias e

seu vínculo com a poderosa e ancestral magia egípcia.* E Leonardo

era, ao que ambos sabiam, seu último possuidor. E a melhor prova

estava na misteriosa frase que o padre Torriani encontrara no

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Cenacolo. Uma invocação egípcia que não poderia proceder de

outra fonte.

*[ Javier Sierra levou anos investigando esta peculiar conexão

entre as ressurreições de Jesus e Osíris. Parte de seus achados

foram expostos em seu romance anterior, O segredo egípcio de

Napoleão. (N. do editor espanhol.)]

- Você me decepciona, Oliverio - bufou a doninha. - Se não o

traz consigo, para que me chamou?

- Vou explicar: o senhor não é o único que ambiciona esse

tesouro, mestre Annio. A princesa d'Este o desejou antes de perder

a vida.

- Isso é água passada! - protestou. - Sei que a muito ingênua

recorreu a você, mas agora está morta. O que o impede, então?

- Há alguém mais, mestre.

- Outro competidor? - a doninha se inflamou. O mercador

parecia amedrontado. - O que deseja, Jacarandá? Mais

dinheiro? É isso? Ofereceu-lhe mais dinheiro e você vem aumentar

seus honorários?

O espanhol sacudiu a cabeça. Seu rosto redondo e os olhos

arroxeados exprimiam uma gravidade raramente vista nele.

- Não. Não se trata de dinheiro.

- Então o quê?

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- Necessito saber quem estou enfrentando. Aquele que busca

o seu tesouro está disposto a matar para consegui-lo.

- A matar, está dizendo?

- Há quase dez dias acabou com a vida de um de meus

intermediários: o bibliotecário do mosteiro de Santa Maria delle

Grazie. Sabe mais?

- O mui bastardo continuou eliminando todos os que

mostraram interesse por sua obra. Por isso vim vê-lo: para que me

esclareça quem estou enfrentando.

- Um assassino... - a doninha fez um movimento violento com

o corpo.

- Não é um criminoso qualquer. É um homem que assina seus

crimes; zomba de nós. Na igreja de São Francisco acabou com a

vida de vários peregrinos e sempre deixou com o cadáver um

baralho de Taro Visconti-Sforza a que faltava uma única carta.

- Uma carta?

- A sacerdotisa. Entende agora?

Annio emudeceu.

- É assim, Nanni. O mesmo naipe que tanto donna Beatrice

como o senhor me entregaram para chegar até seu tesouro.

Oliverio bebeu um novo trago de sua cerveja, que desceu

veloz pela garganta, umedecendo-a. Logo prosseguiu:

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- Sabe o que penso? Que o assassino conhece nosso interesse

pelo livro da sacerdotisa. Creio que a escolha dessa carta não é

casual. Conhece-nos e nos eliminará também se atravessarmos seu

caminho.

- Está bem, está bem - a doninha parecia perturbada.

- Diga-me, Oliverio, esses peregrinos assassinados em São

Francisco também buscavam meu tesouro?

- Fiz algumas averiguações com a polícia do Mouro e posso

garantir que não eram peregrinos comuns.

- Ah, não?

- O último foi identificado como o irmão Giulio, um antigo

albigense perfeito. Soube antes de viajar, para encontrá-lo, a

polícia de Milão está desconcertada. Ao que parece, esse Giulio foi

reabilitado pelo Santo Ofício há alguns anos, depois de dirigir uma

importante comunidade de perfeitos em Concorezzo.

- Concorezzo? Está seguro?

Jacarandá assentiu.

O antiquário não percebeu o calafrio que percorreu a coluna

dorsal do velho mestre. O mercador ignorava que aquela aldeia

situada nos arredores de Milão, a nordeste da capital, fora um dos

principais redutos albigenses da Lombardia e o local em que,

segundo todas as fontes, guardara-se durante mais de duzentos

anos o livro que Annio ambicionava. Tudo se encaixava: as

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suspeitas de Torriani sobre a filiação albigense de Leonardo, os

perfeitos assassinados em Milão, a frase egípcia no Cenacolo. Se

não se enganava, a origem de tudo tinha de ser procurada naquele

tesouro: um texto de enorme valor teológico e mágico, prenhe de

referências ocultas aos ensinamentos que Cristo entregou a

Madalena depois da ressurreição. Um legado que evidenciava a

impressionante simetria entre Jesus e Osíris, que ressuscitou

graças à magia de sua consorte Isis , a única que esteve perto dele

no momento de seu retorno à vida.

O Santo Ofício investiu decênios investigando semelhante

tratado. O máximo que pôde determinar foi que uma cópia, talvez

até a única existente, saiu de Concorezzo e acabou nas mãos de

Cosme, o Velho, durante o Concílio de Florença em 1439. E jamais

regressou. De fato, só uma oportuna indiscrição de Isabella d'Este,

a irmã de donna Beatrice, durante as comemorações de coroação

do papa Alexandre em 1492, a fez saber que o livro estivera em

Florença em poder de Marsilio Ficino, tradutor oficial dos Médicis,

e que ele o deu de presente a Leonardo da Vinci pouco antes de

partir para Milão. Não era pois improvável que os concorezzanos

soubessem também dessas notícias e quisessem recuperar seu

livro.

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- Diga-me então, padre Annio - perguntou Jacarandá, tirando

o prelado de suas reflexões -, por que não me explica o que torna

esse livro tão perigoso?

Annio viu o desespero impresso nas rugas de seu velho amigo

e compreendeu que não tinha escolha.

- É uma obra extraordinária - disse por fim. - Recolhe o

diálogo mantido por João e Cristo no céu sobre a origem do mundo,

a queda dos anjos, a criação do homem e os caminhos dos mortais

para conseguir a salvação de nossa alma. Foi escrito logo depois da

última visão do discípulo amado antes de morrer. Dizem que é uma

narrativa lúcida, intensa, que mostra detalhes da vida além da

Terra e a ordem da criação a que nenhum outro mortal teve.

- E por que acredita que um livro assim interessou Leonardo?

Esse homem é pouco amigo da teologia...

A doninha levantou o dedo indicador para calar Jacarandá:

- O verdadeiro título do "livro azul", caro Oliverio, dirá tudo.

Só precisa me escutar. Há trezentos anos, Anselmo de Alexandria o

revelou em seus escritos: chamou-o Interrogado Johannis ou A

ceia secreta. E pelo que sabemos, Leonardo utilizou os mistérios

contidos nas primeiras páginas para ilustrar a parede do refeitório

dos dominicanos. Nem mais nem menos.

- E esse é o livro que aparece na carta da sacerdotisa?

Nanni concordou.

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- E seu segredo foi sintetizado por Leonardo numa única frase

que desejo que me traduza.

- Uma frase?

- Em egípcio antigo. Diz: Mut-nem-a-los-noc. Conhece-a? -

Oliverio sacudiu a cabeça.

- Não. Mas traduzirei para você. Fique tranqüilo.

38

De manhã à noite. Assim foram os interrogatórios do vigésimo

segundo dia de janeiro.

Lembro-me de que o prior Bandello, frei Benedetto e eu, nos

entrevistamos com os frades de Santa Maria delle Grazie um por

um, esforçando-nos por encontrar em suas palavras pistas que

resolvessem nossas adivinhações. Vivemos momentos

surpreendentes. Todos tinham algo a confessar. Tremendo,

suplicavam a absolvição de suas faltas e juravam que jamais

voltariam a duvidar da natureza divina de Cristo. Pobrezinhos.

Quase todas as revelações eram fruto de paupérrima educação

teológica: confundiam fatos não-substanciais com pecados

gravíssimos, e vice-versa. No entanto, foi assim, pouco a pouco, à

força de pacientes interrogatórios, que os padres, Alessandro e

Giberto, foram se alinhando como a ponta de lança de uma

peculiar tentativa de controlar, por dentro, o local onde ia

descansar o Cenacolo. Os quatro religiosos que apareceram como

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os mais implicados nos confessaram, em separado, a poderosa

razão que os movia: aquela gigantesca obra do toscano encerrava o

que definiram como "imagem talismânica". Isto é: um traçado

geométrico sutil, desenhado para seduzir as mentes desprevenidas

e gravar em sua memória uma informação que, por desgraça,

nenhum deles podia precisar com palavras. "É a terceira revelação

de Deus", atreveu-se a dizer um deles.

Aquilo me chamou a atenção.

Nossos quatro hereges procediam de pequenos povoados do

norte de Milão, da região dos lagos e ainda mais acima, que se

uniram aos dominicanos pouco depois da fundação do novo

convento. Fizeram-no quando conheceram as intenções do Mouro

de convertê-lo em seu mausoléu de família. É que, à diferença do

resto, eram homens de boa formação, admiradores da célebre

máxima de São Bernardo que diz "Deus é comprimento, largura,

altura e profundidade". Conheciam Pitágoras, leram Platão e o

estimavam mais do que Aristóteles, o inspirador de nosso sistema

teológico. Logo se destacou entre eles frei Guglielmo Arno, o

cozinheiro. Não só foi o único a se negar a confessar seus pecados

diante de nosso tribunal, mas também nos tratou com desdém por

militar na "Igreja falsa".

O pouco que, até então, sabia dele era a grande amizade que

o unia a Leonardo. Frei Alessandro foi o primeiro a me falar dele.

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Ambos eram tentados pelos mesmos prazeres: depreciavam entre

risadinhas as comidas excessivas do Mouro, opondo à carne assada

os brotos de couve, ameixas, rodelas de cenoura crua ou os pastéis

fermentados. Soube também que Guglielmo e ele alcançaram seu

momento de glória no Natal de 1495, quando inventaram um

biscoito com o formato da cúpula projetada por Bramante para

Santa Maria e o apresentaram no banquete ducal de 25 de

dezembro.* Foi um sucesso tal que até donna Beatrice implorou

que revelassem o segredo da massa para fazê-la crescer daquela

maneira. Frei Guglielmo fez caso omisso. A duquesa insistiu. E

muitos se lembram ainda do grosseiro atrevimento do frade, que

lhe valeu cinco semanas de prisão em sua própria cozinha e uma

severa admoestação da casa Sforza.

* [Hoje é célebre em todo o mundo o panettone, que alguns

acreditam ter sido invenção de Leonardo da Vinci naquela data. (N.

do editor espanhol.)]

Frei Guglielmo nada mudou desde então. Seu temperamento

excessivo e o encontro conosco demonstravam que preferia antes

morrer do que se retratar de seus atos. Bandello ordenou que o

encerrassem, enquanto murmurava entredentes o que pensava de

seu cozinheiro:

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- É incapaz de controlar seu mau gênio - disse. - Não tem

remédio. Quando posou de Tiago Maior para o Cenacolo até

Leonardo era incapaz de controlá-lo.

Sacudi a cabeça incrédulo.

- Oh! - exclamou. - Também não lhe disse? Talvez a cabeleira

comprida do apóstolo o distraiu, padre Leyre, mas se olhar bem

para os traços do cozinheiro o reconhecerá. Eu o autorizei a posar.

Leonardo pediu que lhe indicasse um varão temperamental que

gesticulasse como Tiago Maior na mesa, e pensei nele.

- E por que queria o mestre incluir alguém assim entre os

Doze?

- Perguntei isso mesmo ao mestre, e sabe o que me

respondeu? "Geometria", disse. "Tudo é geometria!" Explicou-me

que num nu, media a beleza, igualando a distância entre os

mamilos com a que separa o peito do umbigo, e por sua vez entre o

umbigo e as pernas. Quanto à ira, garantiu que era capaz de

representá-la só esboçando um olhar. Quando voltar ao Cenacolo,

contemple o olhar de Tiago. Evita o rosto de Cristo, baixando-o

com horror até a mesa, como se ali descobrisse algo terrível.

- Que um de seus companheiros vai trair o Messias - eu disse.

- Não! - O caolho rompeu seu silêncio, como se eu tivesse dito

algo inadequado. - Isso é o que quis nos fazer crer. Acaso nossos

frades não lhe disseram que estamos diante de um talismã? Numa

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peça assim os símbolos, ou a ausência deles, são fundamentais

para seu funcionamento. E neste caso, o que Tiago Maior olha

horrorizado é o gesto de Judas

- Iscariotes e Jesus competindo para conseguir o mesmo

pedaço de pão...

- Ou talvez a ausência do cálice de Cristo. O Graal.

Sua observação era oportuna.

- E pense em algo mais: Tiago Maior, o irascível, está no lado

do Cenacolo em que a luz é mais brilhante. Está junto dos justos.

Frei Benedetto nos explicou como assistiu a algumas

palestras do mestre sobre distribuição do espaço e da luz, no

claustro do hospital. Seus discursos eram ao mesmo tempo

estranhos e embriagadores. Ensinava como a matéria inerte,

distribuída de modo harmonioso, poderia ganhar vida própria.

Amiúde comparava esse prodígio com o que ocorria com as notas

de uma partitura: escritas sobre papel não eram mais do que uma

sucessão de rabiscos estáticos sem outro valor que o ideográfico.

No entanto, depuradas pela mente de um músico e transferidas

para seus dedos ou pulmões, seus riscos vibravam, enchiam o ar de

sensações novas e até alteravam nosso ânimo. Pode existir algo

mais vivo do que a música? Para Leonardo, não.

O magister pictorum via sua obra de modo semelhante. Na

aparência eram natureza morta, pouco mais do que estuques ou

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madeiras cobertas de pigmentos e cola. No entanto, interpretadas

por um observador iniciado ganhavam força desmedida.

- E como acredita que Leonardo possa dar vida a algo que não

tem?- perguntei.

- Mediante magia astral. Creio que já sabe que esse herege,

Leonardo, estudou os textos de Ficino, não é verdade?

A pergunta de frei Benedetto soou à armadilha. O caolho

devia conhecer minhas suspeitas graças ao padre Bandello e assim,

prudente, inclinei a cabeça em sinal de aprovação.

- Pois bem - continuou. - Ficino traduziu do grego antigo o

Asclepios, uma obra atribuída a Hermes Trismegisto, em que se

ensinava como os sacerdotes dos faraós davam vida às estátuas de

seus templos.

- Deveras?

- Dominavam o spiritus, uma ciência obscura mediante a qual

desenhavam sobre as imagens signos cósmicos que as conectavam

às estrelas. Signos astrológicos, para nos entendermos. E o mestre

aplicou essas técnicas no Cenacolo.*

* [O estudo mais recente e profundo sobre a equivalência entre os

signos do zodíaco e as figuras dos doze apóstolos é de Nicola

Sementovsky-Kurilo. Ele assegura que os discípulos do Cenacolo

estão distribuídos em quatro grupos de três para representar os

quatro elementos da Natureza, e até atribui a cada um deles um

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signo zodiacal específico. Assim, a Simão - que está na extrema

direita da mesa, corresponde o primeiro signo zodiacal, Áries. A

Tadeu, Touro. A Mateus, Gêmeos. O signo de Câncer é para Filipe;

Leã, para Tiago Maior; Virgem, para Tomé. E a balança da Libra,

para João, o que, para Sementovsky, tem uma leitura simbólica

importante, ao considerar o jovem João o elemento estabilizador da

futura Igreja. O restante dos signos são Escorpião, para Judas

Iscariotes; Sagitário, para Pedro; Capricórnio, para André;

Aquário, para Tiago Menor; e Peixes para Bartolomeu.]

O prior e eu nos olhamos perturbados.

- Não enxergam, irmãos? Doze apóstolos, doze signos do

zodíaco. Cada discípulo corresponde a uma constelação, e Jesus, no

centro, encarna o ideal de Sol. É uma pintura talismânica!

- Acalme-se, padre Benedetto. Isso não passa de suposição...

- Nada disso! Olhe bem o Cenacolo, porque ser um mural vivo

não é sua pior característica. Visto a partir de nosso conhecimento

das idéias albigenses, este mural recolhe com perfeição a mais

profunda das teses dos hereges. É uma espécie de "Bíblia negra". E

em nosso refeitório!

- A que idéia se refere, Benedetto? - interpelei-o.

- Ao dualismo, padre. Se o entendi bem esta manhã, todo o

sistema de crenças dos bonhommes se baseia na existência de um

combate permanente entre um Deus bom e um mau.

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- É assim.

- Então, quando retornar ao refeitório, olhe se a luta entre o

bem e o mal está ou não retratada no Cenacolo. Cristo figura no

centro, como o fiel de uma balança a meio caminho entre o mundo

do espírito e o da carne. À sua direita - que é nossa esquerda - está

a zona de sombra, do mal. Vá e olhe a parede de sua esquerda:

está escurecida, sem luz. Não é por acaso que nesse lado se

encontre Judas Iscariotes, mas também Pedro com a adaga. Com a

arma que, segundo o senhor, confere-lhe um caráter satânico.

O ancião mal-humorado respirou fundo antes de arrematar o

discurso:

- Ao contrário - acrescentou-, no lado oposto estão aqueles

que Leonardo considera a luz. É a zona iluminada da mesa, e nela

não só se retratou a si mesmo, mas também Platão, o antigo

inspirador de muitas das doutrinas heréticas dos albigenses.

De repente me lembrei de algo:

- E também os irmãos Guglielmo e Giberto, os dois albigenses

confessos - acrescentei. - Ou não foi você quem me disse que

Giberto posou para o perfil do apóstolo Filipe?

O caolho concordou.

- Certamente - argumentei, recordando a disposição

geométrica dos apóstolos-, também você está ali. Dando vida a São

Tomé.

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Benedetto resmungou alguma coisa, incomodado, e protestou

com energia depois.

- Deixemos de histórias. É bom que nos esforcemos para

interpretar o mural de Leonardo, mas o que de fato deveria

importar é decidir o que vamos fazer com ele. Direi uma única vez,

irmãos: ou cortamos pela raiz este assunto e emparedamos essa

pintura ou o conteúdo dele será um farol para os hereges que só

nos trará problemas.

39

- Não o entendo. Ficará aí parado, esperando que o

condenem?

O espanto de Bernardino Luini, em absoluto, não comoveu o

mestre Leonardo. Estava há tempo a céu descoberto, concentrado

no desenvolvimento de sua próxima máquina, e mal prestara

atenção ao regresso de seus discípulos. Para quê? No fundo

alimentava pouca esperança de que Elena, Marco e Luini

regressassem do Cenacolo iluminados pela sabedoria que tão

cuidadosamente imprimira ao local. O mestre estava cansado de

esperar. Aborrecia-o contemplar aquele ir e vir de seguidores

incapazes de entender sua maneira particular de elaborar sua arte.

Além disso, como de costume, seus pupilos só traziam

notícias desoladoras do convento. Diziam que Santa Maria estava

em pé de guerra. Que o padre Bandello decidira interrogar os

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frades em busca de hereges e ordenara o isolamento de seu caro

frei Guglielmo, o cozinheiro, acusando-o de conspiração contra a

Igreja.

O mestre escutou aquelas explicações com pesar, sem saber o

que dizer.

- Tampouco entendo o senhor, mestre - interveio d'Oggiono. -

Acaso fica satisfeito com o que acontece? Não teme pela sorte de

seu amigo? Está ficando tão insensível, Mestre?

Leonardo levantou o olhar azul da caixa de ferramentas,

fixando-se em seu caro Marco:

- Frei Guglielmo aguentará - disse por fim. - Ninguém poderá

romper o círculo que ele representa.

- Deixe de alegorias! Não vê o perigo? Não se dá conta de que

em breve virão pelo senhor?

- Do único que me dou conta, Marco, é que vocês não me

escutam... - respondeu com secura. - Ninguém me escuta.

- Um momento! - a jovem Elena, que até então permanecera

calada atrás de Luini e d'Oggiono, deu um passo à frente,

interpondo-se entre os três homens. - Já sei o que deseja nos

ensinar, mestre! Agora entendo. Tudo está no Cenacolo.

As espessas sobrancelhas de Leonardo se arquearam diante

daquela inesperada reação. A condessinha prosseguiu:

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- O senhor usou frei Guglielmo para representar Tiago Maior.

Disso não há dúvida. E no Cenacolo ele encarna a letra "O". O

ômega. Igual o senhor.

Luini encolheu os ombros, olhando o mestre com rubor. Afinal

de contas, fora ele quem desenhara aquilo para a rapariguinha dos

Crivelli.

- Isso só pode querer dizer uma coisa - acrescentou. - Frei

Guglielmo e o senhor são os únicos que estão de posse do segredo

que querem que encontremos. E também, que está tão seguro de

sua discrição, como ele da sua. Enfim, representam o mesmo

plano.

- Admirável - aplaudiu Leonardo. - Vejo que você é tão esperta

como sua mãe. E sabe também por que escolhi a letra "O"?

- Sim... Creio que sim – titubeou. - Porque o ômega é o fim, ao

contrário de alfa, que é o princípio -disse. - Desse modo, situou-os

no extremo final de um projeto que começou com Cristo, que é o

único "A" do mural.

- Admirável - repetiu o mestre. - Admirável.

- Claro! Frei Guglielmo e o senhor são aqueles que vão nos

revelar a Igreja de João! - pulou Luini.

- Esse é o segredo!

O sábio se inclinou de novo sobre a estranha máquina que

acabara de desenhar, negando com a cabeça.

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- Há mais, Bernardino. Há mais.

O que Leonardo tinha diante de si era um tremendo

mecanismo artificioso. Concentrara-se nele depois de fracassar em

seu intento de automatizar a cozinha da fortaleza dos Sforza. Seus

espetos automáticos, a máquina de picar carne, aqueles enormes

foles que avivavam uma onda gigantesca de água fervendo e a

cortadora de pão acionada por ar, causaram vários ferimentos e

resultaram ineficazes para satisfazer os bárbaros gostos

gastronômicos do Mouro. Mas, sua nova máquina ia ser diferente.

Se tudo corresse bem, o duque não voltaria a zombar de sua

colheitadeira gigante de rabanetes e a proporia como sua futura

arma de guerra contra os franceses. Era certo que seu primeiro

ensaio na herdade de Porta Vercellina custara três vítimas, mas

depois de alguns ajustes oportunos a máquina deixaria de ser letal.

- Mestre... - protestou Luino diante da dispersão do toscano. -

Demos um passo enorme na compreensão do seu Cenacolo, e o

senhor não parece se interessar por isso, em absoluto. Não

percebe que chegou a hora de transmitir o seu segredo? A

Inquisição está fechando o cerco em torno do senhor. Talvez

amanhã queira detê-lo e interrogá-lo. Se o detiverem, todo o seu

projeto se perderá.

- Escutei-os, Bernardino. E com atenção - disse sem desviar o

olhar do engenho.- E ainda que dê valor ao fato de que

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encontraram as letras ocultas no Cenacolo, também vejo que não

são capazes de interpretá-las. E se vocês, que sabem onde

procurar, parecem crianças que não aprenderam a ler, mais

estarão perdidos esses frades que dizem que me perseguem.

- Um livro. A chave está ali, não é verdade, mestre? É num

livro que o senhor aprendeu tudo.

O novo comentário de Luini soou a desafio.

- O que quer dizer com isso?

- Vamos, Mestre. O tempo das adivinhações passou. E o

senhor sabe. Vi no Cenacolo o rosto de seu velho amigo Ficino, o

tradutor. Não foi com ele que o senhor concordou que um retrato

assim assinalaria a chegada da Igreja de João? Ele não lhe

entregou um livro destinado a ser a nova Bíblia dessa Igreja?

Leonardo deixou cair as ferramentas junto à colheitadeira de

rabanetes, levantando uma poeirada no jardim.

- E o que sabe você disso! - protestou.

- O que o senhor me ensinou: que desde os tempos de Jesus

duas igrejas lutam pelo controle de nossas almas. Uma, a de Pedro,

foi pensada como Igreja temporal. Útil para ensinar aos homens o

caminho do despertar da consciência, mas é só a precursora de

outra construção mais gloriosa que alimentará nosso espírito

quando estivermos abertos para recebê-la. Pedro é a Igreja do

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passado, a que aplainou o caminho à que há de vir: a Igreja de

João. A sua.

O toscano quis intervir, mas seu antigo discípulo ainda não

terminara de falar:

- Esse homem, que o senhor pintou como Mateus no

Cenacolo, chamado Ficino, confiou-lhe um livro com textos de João,

para que o estudasse. Lembro-me bem. Eu estava presente no dia

em que o entregou eu era, então, criança. E se agora o senhor o

retrata, até para oferecer à outros, como nós, o acesso à sua obra,

é porque acredita que chegou o momento da mudança de guarda,

não é verdade? Isso é o que significa Cenacolo. Admita-o. O

anúncio da nova Igreja.

Marco e Elena sequer se atreveram a pestanejar. Leonardo

pediu silêncio à Luini com um gesto que usava amiúde: apontar

para o céu com o indicador levantado, como se pedisse

autorização à Deus para falar.

- Meu caro Bernardino - disse, tentando controlar o mau

gênio que se desencadeava no interior. - É certo que Ficino me fez

depositário, deu uns textos valiosíssimos, logo antes que eu me

mudasse para Milão. E também, são exatas suas apreciações sobre

as duas igrejas. Nada disso negarei. Há anos pinto João Batista em

meus quadros, esperando a chegada de um momento como este. E

creio que de fato já chegou.

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- O que o faz acreditar, mestre?

- O quê? - respondeu a Elena, muito mais tranqüila. - Não vê

em todo o mundo? O papa conduziu a Igreja temporal a um grau de

depravação difícil de igualar. Seus próprios clérigos, como esse

Savonarola, voltaram-se contra ele. Chegou o momento de que a

Igreja do espírito, do Batista, substitua a de Pedro e nos conduza à

salvação verdadeira.

- Mas, o Batista não está no Cenacolo, mestre.

- Batista, não. - Sorriu à Marco d'Oggiono, sempre atento aos

pequenos detalhes.- Mas, João sim.

- Não entendo...

- Quase tudo está nas Escrituras. Relendo os Evangelhos com

atenção verá que, Jesus não começou sua vida pública até que o

Batista o banhou nas águas do Jordão. Os quatro evangelistas

necessitaram justificar a missão de Jesus se referindo a ele como

parte de sua preparação como Messias. Por isso, sempre o pinto

com o dedo erguido para o céu é minha maneira de dizer que ele, o

Batista, chegou primeiro.

- Então por que adoramos Jesus e não João?

- Tudo era parte de um plano cuidadosamente elaborado. João

foi incapaz de transmitir àquele punhado de homens toscos e

incultos seus ensinamentos espirituais. Como fazer pescadores

entenderem que Deus está dentro de nós e não num templo? Jesus

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o ajudaria a doutrinar esses selvagens. Conceberam uma Igreja

temporal imitada da judaica, e outra espiritual, secreta, como

jamais se vira na Terra. E esses ensinamentos foram confiados a

uma mulher inteligente, Maria Madalena, e a um jovem sagaz a

quem também chamavam João... E esse João, caro Marco, está no

Cenacolo. - E Madalena também!

O toscano não pôde ocultar sua admiração por aquela jovem

impetuosa. Luini, ruborizado, viu-se forçado a esclarecer sua

reação: foi ele quem lhe ensinara que ali onde estava pintado um

nó grande e visível se encontraria uma obra vinculada à Madalena.

A Última Ceia tinha o nó.

- Deixem-me explicar algo mais - acrescentou o mestre, já um

tanto cansado. - João é mais do que um nome. Assim, foram

conhecidos em seu tempo, tanto o Batista, como o Evangelista.

João, de fato, é um título. Trata-se do nome mysticum atribuído à

todos os depositários da Igreja espiritual. Como a papisa Joana, a

das cartas dos Visconti.

- A papisa Joana? Não era um mito? Uma fábula para

ingênuos?

- E que fábula não esconde fatos reais, Bernardino?

- Então...

- Você precisa saber que o homem que desenhou essas cartas

foi Bonifácio Bembo, de Cremona. Um perfeito. Ele, vendo perigar

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o destino de nossos irmãos, decidiu esconder, nesse maço de

cartas para os Visconti, alguns símbolos fundamentais de nossa fé.

Como a crença de que somos descendência mística de Jesus Cristo.

E que melhor símbolo dessa certeza do que pintar uma papisa

grávida, segurando na mão a cruz do Batista, indicando, a quem

souber ler, que da velha Igreja nascerá logo a nova? Essa carta -

acrescentou o mestre em tom reverente - é a profecia exata do que

está por acontecer...

40

Não atino a razão pela qual o padre Bandello decidiu me

enviar para semelhante missão. Se tivesse o dom da profecia e

visse o que estava prestes a acontecer comigo é certo que me teria

retido ao seu lado. Mas, o destino é imprevisível, e Deus, naquele

dia de janeiro, lançou os dados de meu devir fiel ao seu insondável

proceder.

No início, confesso, deu-me asco.

Desenterrar, junto com Benedetto, o caolho; Mauro, o

coveiro; e frei Jorge, o embrulho funerário do padre Trivulzio,

revolveu-me as entranhas. Há mais de cinquenta anos o Santo

Ofício não exumava cadáver de réu para fazer a queima, e, embora

tivesse rogado ao prior que deixasse os mortos em paz, não pude

evitar que frei Alessandro voltasse a ver a luz do dia. O cadáver,

saponáceo e pálido, desprendia um fedor insuportável. Por mais

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que meus companheiros e eu tomássemos a precaução de envolvê-

lo em novo sudário e o atássemos como uma salsicha, o mau cheiro

não deixou de nos acompanhar durante toda a viagem. Por sorte

nem tudo era desagradável. Chamou-me a atenção que embora não

se pudesse respirar perto do corpo de frei Alessandro, não

acontecia a mesma coisa com o do sacristão. Frei Giberto não

cheirava a nada. A nada em absoluto. O coveiro atribuiu o

fenômeno, a que o fogo que o consumiu na praça do Comércio,

acabou com suas partes corruptíveis, conferindo-lhe esse estranho

dom. Mas, o caolho defendeu com veemência outra teoria. Para

ele, o fato de permanecer a céu aberto num pátio do hospital da

ordem, suportando temperatura de vários graus abaixo de zero,

evaporara os piores eflúvios do sacristão. Nunca soube em qual dos

dois acreditar.

- Com os animais acontece o mesmo - o caolho tentou me

convencer. - Ou fede a algo o corpo de um cavalo abandonado num

caminho coberto de neve?

Chegamos à planície de Santo Estêvão sem concluir nossa

discussão e quando faltava apenas uma hora e meia para às

vésperas. Atravessamos o controle militar da Porta Della Corte e,

deixamos para trás, a sede do Capitano di Giustizia sem dar muitas

explicações à guarda. A polícia sabia de nossa desventura e

concordava em que levássemos os hereges para longe da cidade. A

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carroça que conduzíamos, carregada de utensílios agrícolas e

cordas, passou em todas as vistorias. E assim, chegamos à Santo

Estêvão, uma clareira em meio ao bosque, solitária e silenciosa,

com solo de rocha firme, na qual não nos seria difícil empilhar os

fardos de lenha que transportamos e prender com eles nossos

defuntos.

Jorge, solícito, dirigiu os trabalhos.

Foi ele quem organizou a montanha de troncos que os

reduziria à cinzas, e quem nos ensinou a melhor maneira de erguer

uma pira sólida e calorífera. Para alguém como eu, que presenciara

tantos autos-de-fé, sem sequer, levantar um pedaço de madeira,

aquela foi uma sensação nova. Jorge nos mostrou como colocá-los

seguindo uma ordem inversa ao seu tamanho. Vira muitas vezes

como se fazia. Foi ele que nos ensinou que a madeira mais fina

devia ser posta na base, para que ao arder enredasse com eficácia

as peças mais grossas. Uma vez terminada a tarefa, nos obrigou a

estender uma grande corda ao redor da montanha, firmá-la e

levantar com uma das extremidades restantes os corpos de nossos

irmãos até o cume. Cumpriríamos assim, as ordens de nosso prior

e regressaríamos antes que a noite se fechasse e os soldados do

Mouro trancassem as portas de entrada do burgo.

- Sabe qual é a melhor parte deste trabalho? - ofegou frei

Benedetto, ao terminar de colocar o corpo de Giberto no cimo dos

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troncos. O caolho se encarapitara ao lado do coveiro até o alto para

assim puxar com força o fardo de frei Alessandro e depositá-lo em

seu lugar.

- E tem algo bom?

- O bom, irmão Mauro - ouvi frei Benedetto grunhir -, é que,

com um pouco de sorte, as cinzas destes desgraçados cairão sobre

os albigenses que se escondem nestas montanhas.

- Albigenses aqui? - protestou. - Você os vê em todos os

lugares, irmão.

- E, além disso, você supõe que eles são muito perspicazes -

intervim, do chão, enquanto ajustava a corda ao redor de frei

Alessandro. -Você acredita que são capazes de distinguir essas

cinzas das de suas próprias fogueiras? Permita-me duvidar.

O caolho não respondeu. Esperei que a corda se retesasse e

começasse a içar o bibliotecário, mas tampouco, adverti nada.

Mauro Sforza não aproveitou a ocasião para arrematar os sempre

amargos comentários do assistente do prior, e um incômodo e

prolongado silêncio se instalou de repente na clareira.

Surpreso, dei um passo atrás para ver o que acontecia no

alto. Frei Benedetto estava imóvel como uma estátua de sal, o rosto

voltado para trás e o olhar perdido em algum ponto do limite do

bosque; soltara a corda. Mauro não podia vê-lo; o máximo que

consegui discernir foi o ligeiro tremor de sua barbicha branca.

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Sorvia o ar com angústia, como faria um desses místicos diante de

suas visões em êxtase do céu. Não pestanejava, nem parecia capaz

de articular qualquer movimento. Logo compreendi: o caolho,

paralisado por alguma impressão, parecia querer me apontar algo

com a barbicha, alçando-a em espasmos irregulares e dando

pequenos golpes no ar com o nariz. Por isso, quando me voltei de

todo e olhei para o lugar em que ele olhava, quase caí de costas

com o choque.

Não estou exagerando.

Bem na entrada do bosque, a uns vinte metros de onde nos

encontrávamos, um grupo de quinze encapuzados observava em

silêncio nossos movimentos. Ninguém os vira antes. Vestiam-se de

preto da cabeça aos pés, tinham as mãos recolhidas dentro das

mangas e pareciam estar ali há tempo, vigiando a clareira de Santo

Estêvão. Não que parecessem hostis - de fato, não portavam armas,

nem bordões, nada com que pudessem nos agredir -, mas,

reconheço que sua atitude não nos tranqüilizou: olhavam-nos pela

abertura de seus capuzes, sem nada dizer, ou fazer, a intenção de

se aproximar. De onde saíram? Que soubéssemos não existia

convento, nem eremitério nos arredores, nem aquele era um dia

litúrgico que justificasse a presença de monges em campo aberto.

E então? O quer queriam? Acaso vieram presenciar a

execução post mortem de nossos hereges?

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Mauro Sforza foi o primeiro a descer da pira e se dirigir aos

encapuzados com os braços abertos, mas seu gesto foi recebido

com indiferença. Nenhum dos visitantes moveu um músculo.

- Santo Deus - conseguiu por fim exclamar o caolho. - Mas são

revestidos!

- Revestidos?

- Não está vendo, padre Leyre? - balbuciou, entre a

perplexidade e o mal-estar. - É o que eu dizia. Vão envolvidos em

hábitos pretos, sem cordas, nem ornamentos, como os albigenses

que aspiram pela perfeição.

- Albigenses?

- Não estão armados - acrescentou. - Sua fé os proíbe.

Mauro, que escutara aquilo, deu mais um passo em direção

aos desconhecidos.

- Adiante, irmão - animou-o o caolho. - Nada perderá se tocar

neles. Se não são capazes de matar um pinto, como pensarão em

lhe fazer dano?

- Laudetur Iesus Christus. Estão aqui por seus mortos! –

exclamou Jorge, que se agarrara ao meu hábito tremendo de medo

ao perceber o que se passava. - Querem que os devolvamos!

- E isso o amedronta? Não ouviu frei Benedetto? - sussurrei,

pedindo-lhe que se acalmasse. - Estas pessoas são incapazes de

usar a violência contra nós.

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Jamais fiquei sabendo se o irmão Giorgio chegou a me

responder, porque quando devia responder os intrusos entoaram

um plangente Pater Noster que estremeceu a clareira. Os timbres

enérgicos encheram Santo Estêvão, deixando-nos sem palavras.

Mas Jorge se equivocou. Os bonhommes não vieram resgatar o

corpo dos correligionários. Jamais fariam algo assim. Eles odiavam

os corpos. Consideravam-nos a prisão da alma, um obstáculo

diabólico que os distanciava da pureza do espírito. Se se

deslocaram até ali, arriscando-se a ser detidos e levados para a

prisão, era porque decidiram orar pelas almas dos correligionários

mortos.

- Sejam todos amaldiçoados! - imprecou frei Benedetto,

levantando os punhos do alto da pira. - Amaldiçoados uma e mil

vezes!

A reação do caolho nos surpreendeu. Frei Jorge e o irmão

Mauro ficaram imóveis ao vê-lo pular ao chão e sair correndo em

direção aos revestidos, como se estivesse fora de si. Estava

vermelho de ira, com o rosto a ponto de estalar e as veias do

pescoço inchadas. Benedetto investiu com violência contra o

primeiro encapuzado que atravessou seu caminho. O homem caiu

de bruços no chão. E o caolho, enlouquecido, caiu de joelhos sobre

ele, empunhando uma faca que tirou sabe Deus de onde.

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- Deveriam estar mortos! Todos! Não têm direito de estar

aqui! - gritou.

Antes que pudéssemos detê-lo, nosso irmão cravou a arma até

o cabo nas costas do revestido. Um alarido de dor estremeceu o

local.

- Vão para o inferno! - bramiu.

O que aconteceu depois ainda é confuso para mim.

Os encapuzados se olharam entre si antes de se jogar sobre

Benedetto. Separaram-no das costas feridas de seu irmão, cujo

sangue jorrava aos borbotões, e o subjugaram contra um dos

pinheiros. O caolho, que continuava proferindo maldições contra

seus captores, tinha seu único olho injetado de ira.

Quanto aos demais, é o que menos recordo. Jorge, o

octogenário, fugiu correndo para a cidade. Nunca pensei que

pudesse correr com tanta agilidade. Em compensação, perdi

Mauro de vista, enquanto um daqueles homens me aplicou um saco

na cabeça, atando-o ao meu pescoço com uma correia. Algo devia

conter naquele taleigo, porque logo depois que me caiu em cima,

notei que fui perdendo os sentidos lentamente. Em questão de

segundos deixei de ouvir os lamentos do encapuzado ferido, e uma

extraordinária sensação de leveza se apoderou de meus membros

de maneira inexorável.

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Antes de desfalecer, no entanto, ainda tive tempo de escutar uma

voz que murmurou algo que não consegui compreender:

- Agora, padre, por fim poderei esclarecer suas dúvidas.

Depois, aturdido e confuso, desmaiei.

41

Despertei com náusea e uma forte dor de cabeça, sem saber

quanto tempo permaneci inconsciente. Tudo girava ao meu redor e

minha mente estava mais confusa do que nunca. A culpa era

daquela pressão constante sobre a fronte. Era uma dor cíclica,

circular, que a cada tempo percorria meu crânio da esquerda para

a direita, perturbando meus sentidos. Eram tão fortes as pontadas,

que durante bom momento, sequer tentei abrir os olhos. Lembro-

me até que apalpei a cabeça buscando alguma ferida, mas fui

incapaz de encontrar algo. O dano era interno.

- Não se preocupe, padre. Está inteiro. Descanse. Logo se

recuperará.

Uma voz amável, a mesma que me falou antes de perder os

sentidos, sobressaltou-me antes que pudesse me reanimar

completamente. Voltou a se dirigir a mim em tom sereno, afetuoso,

como se me conhecesse há muito tempo.

- O efeito de nosso óleo durará só mais algumas horas. Depois

voltará a se sentir bem.

- O seu... óleo?

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Desorientado, fraco, com as pernas e os braços fortemente

apertados e estendido num chão irregular, consegui reunir forças

para começar a falar. Deduzi que me levaram para algum lugar

coberto, porque sentia a roupa seca e o frio não era tão intenso

como na clareira de Santo Estêvão.

- O pano que lhe colocamos em cima estava embebido num

óleo que provoca o sono, padre. É uma fórmula antiga. Um segredo

dos bruxos destes pagos.

- Veneno... - murmurei.

- Não exatamente - respondeu. - Trata-se de um unguento

extraído da cizânia, meimendro, cicuta e dormideira. Nunca falha.

Basta absorvê-lo em pequenas doses através da pele para que seu

efeito letárgico seja imediato. Mas, passará logo. Relaxe.

- Onde estou?

- A salvo.

- Dê-me de beber, peço-lhe.

- Em seguida, padre.

Às apalpadelas agarrei a vasilha que o desconhecido colocou

entre minhas mãos. Era vinho quente. Um caldo amargo, que

ajudou meu corpo maltratado a se recompor. Agarrei-me ao

recipiente com ânsia, juntando as forças antes de girar os olhos e

lançar uma olhadela ao meu redor.

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Meu instinto não errara. Já não estava em Santo Estêvão.

Fossem quem fossem meus captores, separaram-me de Jorge,

Mauro e Benedetto, e isolado numa peça fechada, sem janela, que

devia ser uma espécie de cela improvisada, em alguma remota

casa de campo. Supus que passara uma eternidade estendido sobre

aquela esteira de palha. Minha barba crescera, e alguém se

atrevera a me despir do hábito de São Domingos; em seu lugar, eu

vestia um burel tosco de lã. Mas, era impossível calcular quanto

tempo estava ali. E para onde foram levados meus irmãos? Quem

era o responsável por me levar a esse lugar? E para quê?

Uma sensação de angústia se apoderou de minha garganta.

- Onde... estou? - repeti.

- A salvo. Este lugar se chama Concorezzo, padre Leyre. E me

alegra vê-lo recuperado. Temos muito, muito do que falar. Lembra-

se de mim?

- Co... como? - titubeei.

Quis girar para procurar meu interlocutor, mas uma nova

pontada me deteve.

- Vamos, padre! Nosso óleo o adormeceu; mas, não apagou a

memória. Sou um homem que sempre disse a verdade, não se

lembra? Aquele que jurou resolver certa adivinhação que o

atormentava.

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Um estalo me sacudiu o cérebro. Era certo. Por Deus bendito.

Era certo que já escutara aquele timbre de voz em algum lugar.

Mas onde? Tive de fazer um grande esforço para terminar de me

recompor e achar o rosto de quem me falava. E, Santo Cristo, por

fim o vi. Estava bem nas minhas costas. Redondo e ruborizado

como sempre. Com aqueles olhos de esmeralda, claros e espertos.

Era Mário Forzetta. Não havia dúvida.

- Lembra-se de mim?

Concordei.

- Lamento ter recorrido a este método para trazê-lo aqui,

padre. Mas, acredite-me, era a única opção que tínhamos. Por bem

não nos teria acompanhado - sorriu.

Aquele plural me desconcertou.

- Quem tínhamos? Quem, Mário?

O rosto de Forzetta se iluminou ao me ouvir pronunciar seu

nome.

- Os homens puros de Concorezzo, padre. Nossa fé nos

impede de usar a violência, mas não o engenho.

- Bonhommes... Você?

- Ficará horrorizado, sei. Libertou um herege da prisão que

merecia. Mas, antes que forme opinião sobre o assunto, peço-lhe

que me escute. Tenho muito a dizer-lhe.

- E meus irmãos?

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- Nós os fizemos dormir em São Estêvão, como o senhor. A

estas horas, se não congelaram, já terão regressado à Milão e terão

sua mesma dor de cabeça.

Mário ostentava um aspecto razoavelmente bom. Notava-se

nele ainda a cicatriz que lhe dividira a cara dias atrás, mas deixara

crescer a barba e sua tez estava morena do Sol. Distara muito do

espectro que conversou comigo na prisão do palácio dos Jacarandá.

Ganhara peso e o rosto irradiava felicidade. Saber-se fora do

alcance de dom Oliverio lhe caíra bem. O que eu não conseguia

compreender, era por que decidira me reter. E porque,

precisamente eu, que lhe dei a liberdade.

- Meus irmãos e eu hesitamos muito antes de dar este passo -

explicou-se Mário, que se sentou ao meu lado, no chão. - Sei que o

senhor, padre, é inquisidor, e que sua ordem há mais de duzentos

anos persegue famílias que, como as nossas, têm outra maneira de

se aproximar de Deus.

- Mas...

- Mas, ao vê-lo ontem em Santo Estêvão compreendi que era

um sinal enviado por Deus. Apareceu ali bem quando eu já tinha as

respostas que jurei dar. Lembra-se? Acaso não é um milagre?

Convenci nosso prefeito para que o trouxéssemos aqui e eu

pudesse saldar minha dívida.

- Não há tal dívida.

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- Há sim, padre. Deus cruzou nossos caminhos por alguma

razão que só Ele sabe. Talvez não seja para que o ajude a resolver

suas adivinhações, e sim para que juntos enfrentemos o inimigo

que temos em comum.

Aquela afirmação me desconcertou.

- Como diz?

- Lembra-se da adivinhação que me confiou no dia em que me

libertou?

Concordei. Óculos ejus dinumera continuava desafiando

minha inteligência. Quase me esquecera que também Forzetta a

tinha em seu poder.

- Depois de me despedir do senhor, refugiei-me no ateliê de

Leonardo. Sabia que sua casa era o único lugar de Milão que me

daria abrigo, como aconteceu. E, naturalmente, falei com o mestre.

Contei-lhe meu encontro consigo, falei de sua infinita generosidade

e pedi que me auxiliasse. Não só queria que me protegesse da ira

de Jacarandá, mas desejava agradecer ao senhor o muito que fez

por mim ao tirar-me de sua prisão.

- Mas você já não era discípulo do mestre... não é verdade?

- Não era. Mas, na realidade nunca deixei de ser. Leonardo

sempre trata seus pupilos como filhos, e, apesar de que alguns de

nós não demonstramos estatura para seguir na pintura, sempre

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nos reserva seu afeto. Enfim, seus ensinamentos transcendem o

mero ofício de artista.

- Entendo. Assim você foi se refugiar sob a asa protetora de

mestre Leonardo. E o que ele disse?

- Entreguei-lhe sua adivinhação. Disse que continha o nome

de uma pessoa que o senhor buscava e o mestre o resolveu para

mim.

Aquilo me pareceu irônico. Leonardo decifrara a assinatura

de quem escreveu a Betânia para provocar sua ruína? Cheio de

curiosidade, tentei sobrepujar meu enjôo e peguei as mãos de

Mário para dar ênfase à minha pergunta:

- Diga-me, ele conseguiu?

- Sim, padre. Até posso confirmar que nome encerra.

Mário então depositou a carta da sacerdotisa no chão, bem

entre nossas pernas.

- Mestre estranhou muito quando lhe mostrei a sua

adivinhação - continuou. - De fato, disse-me que a conhecia bem.

Que um irmão de Santa Maria a mostrara algum tempo antes e que

já a resolvera para ele.

- Frei Alessandro!

A lembrança de Óculos ejus dinumera escrito atrás de uma

carta como aquela achada junto ao cadáver do bibliotecário me

provocou um estremecimento. De repente tudo fazia sentido: o

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Augure assassinou frei Alessandro ao se saber desmascarado por

ele, e teve então de urdir um plano para desacreditar Leonardo.

Assassinar um obscuro religioso era fácil, mas não acabar com o

pintor favorito da corte. Assim optou por tentar incriminá-lo por

heresia. Daí as cartas à Betânia.

Antes que minha imaginação disparasse, Mário prosseguiu:

- Sim, padre. Frei Alessandro. Lembro muito bem as palavras

do mestre: ambas as adivinhações, naipe e versos, estavam

intimamente unidas. Os versos eram incompreensíveis sem a carta

da sacerdotisa e, sem ela, não se podia encontrar a chave do nome

que o senhor procura. São como as duas faces de uma mesma

moeda.

Pedi a Mário que se explicasse melhor. O jovem apanhou

então a frase latina que estava escrita no mesmo papel que lhe

entreguei em Milão, e a colocou junto do arcano do Jogo dos

Visconti-Sforza. Mais uma vez, voltei a ter aquelas incômodas sete

linhas diante de mim:

Óculos èjus dinumera, sednoli voltum kdspicere.

In latere nomini

mei notam rin venies.

Contemplar et contemplata

aliis iradere.

Ventas

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- Na realidade, é uma simples adivinhação em três níveis -

disse. - O primeiro busca a identificação da carta que ajudará a

resolver o enigma. "Conte-lhe os olhos, mas não olhe para a cara."

Tem um significado muito simples. Olhando bem, nesta carta só

existe um olho possível fora do rosto da mulher.

- Um olho? Onde?

Mário parecia se divertir.

- Está no cinto, padre. Não está vendo? É o olho do nó por

onde passa a corda que ata a cintura da mulher. Trata-se de uma

metáfora utilizada com grande habilidade pelo seu homem.

Detalhe do "olho"no cinto.

- Mas isso não é tudo - prosseguiu. - Fixando bem, não

sabemos em que costa buscar a cifra do nome que o senhor busca.

"A cifra de meu nome achará em suas costas" deixa em aberto uma

grande incógnita. É no lado direito, ou no esquerdo, que devemos

buscar essa cifra? Já vou dizer: deve olhar na direita da mulher.

- Como pode estar tão seguro?

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- O mestre esbarrou na resposta graças a um detalhe

esteganográfico.

- Esteganográfico?

- Os gregos, padre, foram mestres na arte de ocultar

mensagens secretas em escritos ou obras que estavam à vista de

todos. No idioma deles steganos significa "escrita oculta" e aqui

salta à vista que há algo oculto. Uma errata nos dá a chave:

rinvenies se escreve sem "r". Um homem tão meticuloso como o

autor desta mensagem não podia passar por alto semelhante

detalhe, e, portanto, revisei com cuidado os versos e descobri que

além dos "r" existiam outras cinco letras marcadas. Desta feita com

um ponto. Elas passaram despercebidas, mas ali estão: ejus,

dinumera, sed, adspicere e tradere. Estranho que ninguém se

deteve diante delas.

Inclinei-me incrédulo sobre a assinatura do Augure para ver o

que Mário me mostrava e descobri, de fato, que as letras “e”, “d”,

“s”, “a” e “t” tinham esse ponto fora do lugar.

— Está vendo agora? — insistiu. — Com elas, mais o “r” fora

de lugar, pode-se compor a palavra “destra”. Direita. É o

esclarecimento que nos faltava.

Era admirável. Leonardo fizera o que a ninguém ocorreu

antes: cotejar a carta da sacerdotisa com a adivinhação das cartas

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à Roma. Intuição ou visão genial, o certo é que senti vertigem ao

saber que estava tão perto da solução.

— O resto é bem simples, padre. Segundo as lições da Ars

Meinoriae, são as mãos que dão sempre as cifras em qualquer

composição. E nesta carta, como o senhor verá, há duas mãos que

mostram diferentes números de dedos. Se o seu homem nos diz

que devemos escolher a mão direita é porque a cifra de seu nome é

um cinco.

— Ars Memoríae? Você também a conhece?

— É uma das disciplinas favoritas de Leonardo.

— Suponho então, que agora deveria procurar um frade,

cujas letras contenham esse número, não é verdade?

— Não é necessário — disse Mário mais orgulhoso do que

nunca. — Mestre Leonardo já o encontrou. Chama-se Benedetto.* É

o único em Santa Maria cujo nome tem este valor.

*[A numerologia desse nome se obtém com a soma entre si dos

valores numéricos das letras do alfabeto latino com as quais está

composto. Deve-se levar em conta a peculiaridade de que o

alfabeto latino carece de certas letras como J, U, W ou Z, e assim a

tábua de correspondência fica como se segue:

A E F G H 1 K L MN O P Q R S TV X

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21

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Desta forma, Benedetto soma 86, cifra que por sua vez se

reduz somando seus números entre si: 8 + 6 = 14. Por sua vez 1 +

4 = 5. Se for pouco, existe outro 14 (outro 5, portanto) na carta da

papisa. Está nas 14 voltas que somam os quatro nós que se

sobressaem no cinto. Um número atípico, pois nestes casos o

lógico seria 13, em correspondência com as treze feridas que

segundo a tradição o Salvador recebeu na cruz.]

- Benedetto?

Suponho que a revelação me transformou o rosto, por que

Mário ficou me olhando absorto.

- Benedetto? O homem de um olho só, como o olho do cinto da

sacerdotisa.

A ironia me desarmou.

Como não fui capaz de perceber? Como não me dei conta de

que o caolho, como homem de confiança do prior, tivera acesso à

todos os segredos do convento e era o único, suficientemente,

violento para arremeter contra Leonardo? Acaso essa revelação

não se ajustava como uma luva ao perfil que eu tinha do Augure,

que o situava como um discípulo renegado do toscano? Ou não

estava acaso seu rosto desenhado no Cenacolo, encarnando o

apóstolo Tomé, como prova irrefutável de sua antiga filiação à

organização do mestre?

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Abracei Mário sem saber ainda a quem perseguiria primeiro:

se o assassino de frei Alessandro, ou aquele reduto de cristãos

desviados.

42

Frei Benedetto, escarrou outra vez no urinol, novo coágulo de

sangue. Tinha um mau aspecto. Muito mau.

Desde que ficara seis horas a céu aberto na planície de Santo

Estêvão, deitado, sem sentidos e descalço sobre a neve, o caolho

não voltara a respirar com normalidade. Tossia. Seus pulmões

estavam encharcados e lhe era cada vez mais difícil se mover.

O prior determinou que o levassem ao hospital. Ali o deitaram

na cama e o isolaram do resto dos doentes, receitaram vapores

aromáticos, sangrias diárias e rezaram com fervor por sua

recuperação. Mas, Benedetto dormia mal. A febre subia de maneira

inexorável e temia-se por sua vida.

No último dia de janeiro, exausto, o mais carrancudo dos

frades de Santa Maria pediu que lhe administrassem a extrema-

unção. Passara a tarde delirando, proferindo frases ininteligíveis

em línguas estranhas e instigando os irmãos a botar fogo no

refeitório se ainda quisessem salvar a alma.

Frei Nicola Zessatti, deão com cinquenta anos de serviço na

comunidade, velho amigo de Benedetto, foi quem lhe impôs os

santos óleos. Antes lhe pediu que se confessasse, mas o caolho se

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negou. Não queria dizer uma só palavra do que acontecera em

Santo Estêvão. Todas as tentativas foram inúteis. Nem ele e nem o

prior puderam arrancar-lhe informação sobre meu paradeiro, e

menos ainda sobre os homens que nos assaltaram.

Sei que foram dias de incerteza. Por estranho que pareça,

tampouco frei Jorge serviu de grande ajuda. O encarregado das

contribuições, mal recordava aqueles estranhos monges de preto

que apareceram para nós.

Tinha vista fraca e a idade o traía. Por isso, quando contou

que o caolho atingira à facadas um deles, tomaram-no por louco.

Jorge ingressou no hospital de Santa Maria, na mesma ala de

Benedetto, com as mãos queimadas pelo gelo e um resfriado de

que se recuperou aos poucos por milagre.

Quanto ao meu terceiro irmão, frei Mauro, ficava dias inteiros

agulhado em mutismo. Sua juventude resistiu bem ao choque, mas,

desde seu retorno à Santa Maria ninguém o vira fora de sua cela,

quem o visitara ficara horrorizado ante seu olhar perdido. Mal

ingeria alimento e era incapaz de prestar atenção quando falavam

com ele. Perdera o juízo.

Foi frei Jorge quem alertou o prior sobre a piora do padre

Benedetto. Ocorreu em 31 de janeiro, terça-feira. O recolhedor de

contribuições encontrou Bandello no refeitório, revisando com

Leonardo os últimos traços no Cenacolo.

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Depois do enterro de donna Beatrice e de meu

desaparecimento, o toscano retomara com ímpeto desusado seu

trabalho. De repente, parecia ter pressa de concluir o mural. Sem

ir mais longe, naquele dia, acabara de dar as derradeiras

pinceladas no rosto adolescente de São João, mostrava orgulhoso

ao prior que olhava tudo com desconfiança.

O apóstolo ficara magnífico. Brilhava sua comprida cabeleira

que lhe caía nos ombros, um olhar lânguido, olhos semicerrados,

cabeça descaída para sua direita, em atitude de submissão. O rosto

prendia luz. Um brilho sobrenatural, mágico, que convidava à

contemplação e à vida mística.

- Disseram-me que usou uma rapariga como modelo para

rosto.

A recriminação do prior foi a primeira coisa que Jorge ouvi

entrar no refeitório. Da sua posição não viu o mestre sorrir.

- Os boatos voam - ironizou.

- E chegam mais longe do que seus pássaros de madeira.

- Está bem, prior. Não negarei. Mas, antes que se aborreça,

como deve saber, que só empreguei a rapariga para certos

retoques no discípulo amado.

Jorge reconheceu o humor ácido do mestre no ato.

- Então é certo.

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- João foi uma criatura doce, padre Bandello - prosseguiu. –

Sabe que era o mais moço dos discípulos, e Jesus gostava dele

como irmão. Ou melhor ainda: como filho. E também sabe, que não

fui capaz de encontrar entre seus frades alguém que me inspirasse

essa candidez com que ele é descrito nos evangelhos. Que

importância existe por ter recorrido a uma rapariguinha inocente

para completar seu retrato? Que vê de mau nele, em face do

resultado?

- E quem é essa donzela, pode-se saber?

- Claro que se pode saber. - Leonardo se inclinou cortês em

direção ao prior. - Mas, duvido que a conheça. Chama-se Elena

Crivelli. É de nobre família lombarda. Visitou minha bottega em

companhia do mestre Luini há poucos dias. Quando a vi pela

primeira vez soube que me fora enviada por Deus para me ajudar a

concluir o Cenacolo.

O prior olhou-o de soslaio.

- Ah, se a visse! - prosseguiu. - Sua beleza é sedutora, pura,

perfeita para o rosto de João. Ela me brindou essa aura de

beatitude que agora se desprende de nosso João.

- Mas, não havia donzelas na ceia pascal, mestre.

- E quem pode estar seguro? Além disso, de Elena só tomei as

mãos, o olhar, a expressão abandonada dos lábios e as maçãs do

rosto. Seus atributos mais inocentes. - Reverendo padre...

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A entrada de frei Jorge, que esperava impaciente uma pausa

na conversa, não deu oportunidade de resposta à Bandello. Depois

de uma genuflexão apressada, o monge aproximou-se de seu

ouvido e lhe transmitiu a má notícia sobre a saúde do caolho.

- Deve me acompanhar - sussurrou. - Os médicos dizem que já

não lhe resta muito tempo de vida.

- O que se passa com ele?

- Mal pode respirar, e a pele, às vezes, perde a cor, prior.

Leonardo observou com curiosidade as mãos atadas de Jorge,

e deduziu que devia se tratar de um dos frades assaltados dias

atrás fora dos muros de Milão.

- Se lhes interessar minha opinião - confidenciou -, creio que o

que aflige seu irmão é tuberculose. Uma doença mortal, sem cura.

- Como diz?

- Os sintomas descritos são os da tuberculose. Se desejarem,

irmãos, podem dispor de meus conhecimentos médicos para aliviar

seu sofrimento. Conheço, suficientemente, o corpo humano para

propor um tratamento eficaz.

- O senhor? - respondeu Bandello. - Pensei que o odiasse...

- Vamos, prior. Como vou desejar o mal a alguém com quem

estou em dívida? Recorde que frei Benedetto posou como São

Tomé no Cenacolo. Eu, por acaso, odiaria Elena, que me iluminou

ao pintar João? Ao bibliotecário, que emprestou seu rosto à Judas

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Iscariotes? Não. Ao seu irmão devo o rosto de um dos apóstolos

mais importantes do Cenacolo.

O prior agradeceu a cortesia inclinando a cabeça, sem

perceber a ironia daquelas palavras. Era certo que São Tomé

reunia todas as características de um frei Benedetto rejuvenescido.

O toscano se dera até o incômodo de pintá-lo de perfil para

esconder sua grave deformidade. Mas, não era menos certo, que

há algum tempo Benedetto e o mestre não se davam bem.

Com a bênção de Bandello, Leonardo recolheu às pressas

seus pincéis, fechou os frascos com as últimas misturas de cores e

se dirigiu com o passo rápido para o vizinho hospital. No caminho,

apanharam frei Nicola, que portava num recipiente a água benta,

uma vasilha com os santos óleos e um hissope de prata.

Encontraram frei Benedetto deitado num catre do segundo

andar, num dos limitados quartos independentes do recinto,

sozinho, coberto com um grande pano de linho que descia do teto.

Ao chegar à porta, o mestre pediu aos frades que o aguardassem

no jardim. Explicou-lhes que a primeira fase de seu tratamento

requeria certa intimidade, e que eram poucos os homens que,

como ele, estavam a salvo dos eflúvios mortais da tuberculose.

Quando Leonardo ficou sozinho diante da cama do caolho,

afastou o pano que os separava e contemplou o velho resmungão.

"Por que não inventara ainda uma máquina que o livrasse de seus

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inimigos?", pensou. Fazendo das tripas coração, o gigante se

esforçou por despertá-lo.

- O senhor?

Frei Benedetto se refez da surpresa.

- Mas, que diabos está fazendo aqui?

Leonardo observou o moribundo com curiosidade. O aspecto

era pior do que esperava. A sombra azulada que se instalara nas

maçãs do rosto nada de bom pressagiava.

- Disseram-me que foram atacados no monte, irmão. Lamento

deveras.

- Não seja fariseu, Mestre Leonardo! - Tossiu, expulsando um

novo escarro. - Sabe tão bem como eu o que aconteceu.

- Se é o que acredita...

- Foram os seus irmãos de Concorezzo, não é verdade? Esses

bastardos que negam Deus e renegam a natureza divina do Filho

do Homem... Saia daqui! Deixe-me morrer em paz!

- Vim apenas para saber de sua saúde, Benedetto. Creio que

está precipitando seu julgamento. Sempre agiu assim. Essas

pessoas a quem se refere não negam Deus. São cristãos puros, que

veneram o Salvador da mesma maneira que os primeiros apóstolos.

- Basta! Não quero escutar! Não me fales disso! Vá!

O caolho estava vermelho de ira.

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- Se meditasse por um momento, padre, perdoando-os, esses

"bastardos" demonstraram infinita misericórdia em relação ao

senhor. Sobretudo, sabendo que matou a sangue-frio vários dos

seus.

A ira do frade se transformou em espanto num piscar de

olhos.

- Como se atreve, Leonardo?

- Porque sei em que se converteu. E sei também que fez todo

o possível para me expulsar deste lugar e deixar na escuridão a fé

de todas essas pessoas. Primeiro matou frei Alessandro. Logo

atravessou o coração do irmão Giulio. Atordoou com suas histórias

os irmãos que estavam a caminho da pureza...

- Da heresia, melhor dito - graduou com seu único olho aberto

como uma lua.

- E mandou mensagens apocalípticas à Roma, anônimas,

assinadas como Augur dixit, unicamente, para provocar uma

investigação secreta contra mim, que o deixei à margem. Não é

certo?

- Maldito seja, Leonardo! - O peito do monge estalou num

novo estertor. - Seja maldito para sempre.

O pintor, impassível, desatou do cinto sua inseparável bolsa

de lona branca e a depositou sobre a cama. Parecia mais cheia do

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que de costume. O mestre a desabotoou cerimonioso e tirou dela

um pequeno livro de capa azul que deixou cair sobre o colchão.

- Reconhece? - sorriu, astuto. - Ainda que agora me

amaldiçoe, padre, vim perdoá-lo. E oferecer-lhe a salvação. Todos

somos almas de Deus e a merecemos.

A pupila do caolho se expandiu de excitação ao ver aquele

volume a dois palmos dele.

- Era isto o que buscava, não é verdade?

- "Inte... rrogatio Johan... nis" - decifrou Benedetto o título

gravado na lombada. - O testamento final de João! O livro com as

respostas que o Senhor deu ao discípulo amado em sua ceia

secreta, já no reino dos céus.

- A ceia secreta, é assim. Justamente o livro que decidi expor

ao mundo.

Benedetto espichou um de seus magros braços para tocar a

capa.

- Se o fizer vai acabar com a cristandade - disse, detendo-se

para respirar fundo. - Este livro é maldito. Ninguém neste mundo

merece lê-lo... E no outro mundo, ao lado do Pai Eterno, ninguém

necessita dele. Queime-o.

- E, no entanto, houve um tempo em que queria possuí-lo.

- Houve, sim - resmungou. - Mas, me dei conta do pecado da

soberba que ele implicava. Por isso, abandonei sua companhia. Por

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isso, deixei de trabalhar para o senhor. Encheu-me a cabeça de

pássaros, como os irmãos Alessandro e Giberto, mas me dei conta

a tempo de seu estratagema... - expirou agônico - ... e consegui

escapar.

O caolho, pálido, levou a mão ao peito antes de prosseguir

com voz desafiadora:

- Sei o que quer, Leonardo. Chegou à Milão católica cheio de

idéias extravagantes... Seus amigos, Botticelli, Rafaello, Ficino,

encheram sua cabeça de idéias vãs sobre Deus. E agora quer dar

ao mundo a fórmula para se comunicar diretamente com Deus, sem

necessidade de intermediários, nem da Igreja.

- Como João.

- Se o povo acreditasse neste livro, se soubesse que João falou

com o Senhor no Reino dos Céus e regressou dele para escrevê-lo,

por que alguém necessitaria dos ministros de Pedro?

- Vejo que compreendeu.

- E entendo que o Mouro o apoiou durante todo este tempo

por que... - tossiu - porque enfraquecendo Roma ele se tornará

mais forte. Quer mudar a fé dos bons cristãos com sua obra. É o

diabo. Um filho de Lúcifer.

O mestre sorriu. Aquele frade moribundo mal imaginava a

meticulosidade de seu plano: Leonardo levara meses permitindo

que artistas da França e Itália se aproximassem do Cenacolo para

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copiá-lo. Maravilhados por sua técnica e pela disposição inédita

das figuras, mestres como Andrea Solário, Giampietrino,

Bonsignori, Buganza e tantos outros, já duplicaram seu desenho e

começavam a difundi-lo por meia Europa. Além disso, sua técnica

discutível de pintura a secco, pouco durável, convertia o projeto de

copiar a obra em algo urgente. A maravilha do Cenacolo estava

destinada a desaparecer por desejo expresso do mestre, e só um

esforço continuado, meticuloso e planificado para reproduzi-lo e

difundi-lo em toda parte, conseguiria salvar o verdadeiro projeto...

E de passagem disseminar seu segredo, mais do que foi conseguido

por qualquer outra obra de arte na História.

Leonardo não respondeu. Por que ia responder?

Suas mãos ainda cheiravam a verniz e a solvente, o mesmo

que acabara de aplicar nos pincéis com que arrematara o rosto de

João; o homem que escrevera o Evangelho que agora jazia aberto

sobre o leito do caolho. O mesmo texto que os Visconti-Sforza,

duques de Milão, representaram apertado nas mãos da sacerdotisa

de seu baralho, o que aparece no regaço de Santa Maria delle

Fiore logo na entrada da catedral de Florença. Em suma, um livro

hermético que agora Leonardo pretendia revelar ao mundo.

Sem medir palavras, Leonardo pegou o volume e o abriu na

primeira página. Pediu a Benedetto que recordasse a cena da ceia

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do Senhor no refeitório e que se dispusesse a compreender seu

plano. Depois, solene, colocou o volume sob suas barbas e leu:

- Eu, João, que sou seu irmão e tenho parte na aflição para ter

acesso ao reino dos céus, enquanto repousava sobre o peito de

nosso Senhor Jesus Cristo, disse-lhe: "Senhor, quem é o que o

trairá?" "Aquele que põe a mão comigo no prato. Então, Satã

entrou nele, e ele já buscava a maneira de me entregar."

Benedetto se sobressaltou:

- Isso é o que pintou no Cenacolo... Deus bendito.

Leonardo assentiu.

- Maldita víbora! - tossiu Benedetto.

- Não se engane, padre. Meu mural é muito mais do que uma

cena deste Evangelho. João formulou nove perguntas ao Senhor.

Duas eram sobre Satã, três sobre a criação da matéria e o espírito,

mais três sobre o Batismo de João e uma última sobre os signos

que precederam o regresso de Cristo. Perguntas de luz e de

sombras, do bem e do mal, dos pólos opostos que movem o

mundo...

- E tudo isso contém um sortilégio, sei.

- Sabe?

A surpresa brilhou no rosto do mestre. Aquele ancião que se

recusava a morrer ainda tinha a inteligência desperta.

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- Sim... - ofegou. - Mut-nem-a-los-noc... E em Roma as pessoas

também sabem. Eu transmiti à eles. Pronto, Leonardo, cairão sobre

o senhor e destruirão tudo o que armou com tanta paciência. Nesse

dia, mestre, morrerei satisfeito.

43

Doze dias mais tarde

Milão, 22 de fevereiro de 1497

mut-nem-a-los-noc...

J. VJ.

Escutei pela primeira vez aquela estranha frase no dia da dig-

nidade do Sumo Pontífice. Passaram-se quase duas semanas, desde

que frei Benedetto entregou a alma a Deus no hospital de Santa

Maria, em meio a um daqueles terríveis ataques de tosse. Deus

castigou sua soberbia. O Augure não teve tempo de ver Roma

descarregando sua ira contra o mestre Leonardo e demolindo seu

projeto. Teve uma decadência física rápida. Os médicos que o

atendiam dia e noite se renderam quando o ancião perdeu a voz e

as pústulas se apossaram de seu corpo.

Benedetto faleceu no entardecer da Quarta-feira de Cinzas,

sozinho, febril, murmurando, obsessivamente, meu nome num

desesperado intento de me atrair à sua cabeceira e me jogar

contra o toscano. Por desgraça para ele, ainda demorei muitos dias

a retornar de minha reclusão entre os "homens puros".

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Agora acredito que Mário Forzetta aguardou aquele preciso

momento antes de me devolver à Milão. Nunca, nas semanas em

que permaneci em Concorezzo, Mário me 2falou da doença do

caolho; sequer me predispôs a atuar contra ele, ou que informasse

ao Santo Ofício de seus pecados contra o quinto mandamento, e

muito menos avivou o fogo do ódio contra ele. Sua atitude me

encantou. Seu conhecimento sobre os segredos da escritura oculta

conseguiram desmascarar o padre Benedetto e sua complexa

assinatura, mas uma estranha moral o impedia de cobrar vingança

pelo assassínio de seus correligionários. Que fé estranha era essa.

Cheguei a acreditar que os concorezzanos me reteriam para

sempre. Compreendi que seu respeito extremo pela vida os

impedia de acabar comigo, mas não ignorava que todos naquele

povoado estavam conscientes de que se me libertassem suas vidas

correriam perigo.

Esse debate se prolongou por dias inteiros. Um tempo que

aproveitei para me misturar a eles e aprender sobre seus costumes

de vida. Surpreendeu-me saber que jamais entravam numa igreja

para suas orações. Preferiam uma gruta ou o campo aberto.

Confirmei muitas das coisas que já sabia sobre eles como, por

exemplo, que renegavam a cruz ou repudiavam as relíquias, por 2 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

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considerá-las recordações impuras do corpo material, satânicas

portanto, que um dia acolheu a alma de grandes santos. Mas

descobri coisas que me encantaram. Por exemplo, sua alegria

diante da morte. A cada dia que passava, comemoravam que já

estavam mais perto do momento em que se desprenderiam de sua

envoltura carnal e se aproximariam do espírito luminoso de Deus.

Eles que, entre si, chamavam-se "verdadeiros cristãos", olhavam-

me misericordiosos e se esforçavam para me integrar aos seus

ritos.

Um belo dia, Mário entrou em meu quarto e me despertou

agitado; pediu-me que me vestisse depressa e me conduziu

montanha abaixo, até o caminho empedrado que levava à Porta

Vercellina. Eu estava atônito. O jovem perfeito tomara uma decisão

que comprometia toda sua comunidade: ia devolver ao mundo um

inquisidor que vira por dentro uma comunidade de albigenses,

presenciara suas orações e conhecia os pontos fracos dos últimos

"homens puros" da cristandade. E, apesar de tudo, arriscava-se a

me libertar. Por quê? E porque nesse dia, e tão depressa?

Ia logo descobrir.

Ao nos aproximarmos do caminho que me levaria aos

domínios do duque, Mário mudou o tom de sua conversação pela

primeira e última vez. Vestira-se de branco imaculado, com um

burel que o cobria até os joelhos e uma faixa na cabeça que

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segurava o cabelo eriçado. Parecia me conduzir a um último e

estranho ritual.

- Padre Leyre - disse solene -, já conheceu os verdadeiros

discípulos de Cristo. Viu com os próprios olhos que não

empunhamos armas nem ofendemos a natureza. Por esse mesmo

motivo, e porque os seguidores originais de Jesus jamais

aceitariam que os privássemos, da liberdade, não podemos retê-lo

por mais tempo. O senhor pertence a um mundo diferente. Um

lugar de ferro e ouro em que os homens vivem de costas a Deus...

Quis replicar, mas Mário não me deixou. Olhava-me com

tristeza, como se se despedisse de um amigo.

- A partir de agora - prosseguiu -, nosso destino está em suas

mãos. Os seus cruzados não teriam dito melhor: Deus Io volt!,

como dispôs o Pai. Ou nos perdoa e integra nossas fileiras

convertendo-se num parfait, ou nos delata e busca nossa morte e a

ruína de nossos filhos. Mas será o senhor, em liberdade, quem

elegerá o caminho. Nós, por desgraça, estamos acostumados a ser

perseguidos. É nosso destino.

- Está me libertando?

- Na realidade, padre, nunca esteve preso.

Olhei-o, sem saber o que dizer.

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- Só peço que reflita sobre uma coisa antes de nos entregar

ao Santo Ofício: não se esqueça que Jesus foi também um fugitivo

da Justiça.

Mário se atirou então em meus braços e me apertou contra

ele. Depois, observando a tépida claridade que pressagiava o

amanhecer, entregou-me um saquinho com pão e alguma fruta, e

me deixou sozinho no caminho de Milão.

- Vá ao refeitório - ordenou antes de se embrenhar no bosque.

– Ao seu refeitório. Durante sua permanência fora, aconteceram

muitas coisas que o afetam. Medite sobre elas e decida então seu

caminho. Tomara voltemos a nos ver algum dia e possamos olhar-

nos nos olhos, como irmãos da única fé.

Caminhei durante quatro horas antes de divisar no horizonte

a silhueta fortificada de Milão. Que estranha provação era aquela a

que a Divina Providência me submetia? Mário me devolvia à corte

do duque para que eliminasse seu inimigo, frei Benedetto, ou por

alguma outra obscura razão?

Ao me aproximar do posto da guarda me dei conta do muito

que o quarto de Concorezzo me mudara. Na entrada, o guarda do

duque sequer me saudou. Aos seus olhos eu já não era o

respeitável dominicano engolido pelo bosque de Santo Estêvão

quase um mês antes. Não pude recriminá-lo. A cidade acreditava

que esse homem morrera numa emboscada. Ninguém me

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esperava. Meu aspecto era vulgar, sujo, e me vestia como um

camponês. Tinha calções pretos e um tosco casaco de pele de

ovelha que me fazia parecer um pastor. Meu rosto estava coberto

por uma barba espessa e preta. E até minha tonsura se enchera de

novo, obscurecendo, definitivamente, minha filiação sacerdotal.

Cruzei o posto de guarda sem olhar para ninguém e

enveredei pelas ruelas que me levariam até o convento de Santa

Maria. Apesar de não ser um sábado ensolarado, respirava-se certo

ambiente festivo. As redondezas do mosteiro foram engalanadas

com bandeirinhas, vasos de flores e faixas de tecido, e havia muita

gente conversando na rua. Ao que parecia, o duque acabara de

passar por ali a caminho de alguma celebração importante.

Foi então que escutei dos lábios de uma mulher a razão de

tanto alvoroço:

- Leonardo concluíra o Cenacolo e Sua Excelência Ludovico, o

Mouro, se apressara a visitá-lo para o admirar em todo seu

esplendor.

- O Cenacolo.

A mulher me olhou divertida.

- Mas em que mundo vive? - riu. - Toda a cidade desfilará para

vê-lo. Toda! Dizem que é um milagre. Que parece real. Os frades

abrirão o convento durante um mês para que todos possam admirá-

lo.

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Uma estranha indisposição se apoderou de meu estômago. O

toscano concluíra um empreendimento que lhe custara mais de

três anos de trabalho, mas completara também o terrível programa

iconográfico que o Augure pretendia deter a qualquer preço? E o

prior? Sucumbira também ao feitiço daquela obra? Dera-se conta

da verdadeira identidade de seu secretário pessoal? E como me

apresentaria diante dele? O que diria de meus sequestradores?

Quando terminei a subida até o corso Magenta e consegui

evitar a enorme fila que rodeava o convento, fiquei imóvel. A casa

do duque colocara um enorme estrado no qual um esplêndido

duque de Milão, enfeitado com uma túnica preta de veludo e um

chapéu de aba baixa com uma faixa dourada, conversava com

alguns homens probos da cidade. Entre eles distingui Luca Pacioli,

o matemático, que se sobressaía com a expressão descansada.

Alguém disse que há poucos dias entregara ao Mouro seu livro De

divina proportione, no qual revelava os mistérios matemáticos da

Criação. Ou Antonio Billi, cronista da corte, que parecia

deslumbrado pela beleza que seus olhos acabavam de contemplar.

Localizei também o mestre Leonardo, retirado para um

segundo plano, comentando algo com um pequeno grupo de

admiradores. Todos estavam elegantemente enfeitados, mas

pareciam algo nervosos. Olhavam para um lado e outro, como se

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aguardassem a chegada de alguém ou soubessem que alguma

coisa naquela cerimônia não funcionava segundo o previsto.

Tão distraído estava, tentando ler nos lábios daquela comitiva

o que acontecia, que não percebi que alguém abria caminho por

entre a multidão e se dirigia diretamente a mim.

— Valha-me o céu! — exclamou quando chegou perto de mim

e conseguiu tocar-me o ombro. — Mas todos o davam por morto,

padre Leyre!

Aquele homem robusto, coberto por um barrete violeta com

pena de ganso, espada à cintura e botas de montaria, era Oliverio

Jacarandá. Seu sotaque estrangeiro o diferenciava entre tantos

lombardos.

— Nunca esqueço um rosto. E muito menos o seu!

— Dom Oliverio...

O espanhol me olhou de cima para baixo, sem compreender

por que eu não vestia o hábito branco e preto de São Domingos.

Acudira à Praça de Santa Maria para visitar a obra de Leonardo.

Sua condição de mercador de objetos preciosos garantia acesso

privilegiado ao recinto e permitia estar no centro do maior ato

social da cidade desde o enterro de donna Beatrice.

— Padre... — titubeou. — Explique-me o que aconteceu.

Parece enfraquecido. Por que está vestido assim?

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Tratei de compor uma explicação crível que não revelasse

minha singular situação. Não podia dizer-lhe que estivera mais de

duas semanas sob o mesmo teto de quem fora seu prisioneiro.

Consideraria uma deslealdade, e só Deus sabia como reagiria o

espanhol diante de tal revelação.

— Lembra-se de meu empenho em resolver enigmas em

latim?

Jacarandá assentiu.

— Vim à Milão resolver um deles, por encargo de meu

superior na ordem. Para conseguir, me vi obrigado a desaparecer

durante um tempo. Agora retorno incógnito para continuar minhas

indagações. Por isso lhe peço discrição.

— Ah, os frades! Sempre com seus segredos! — sorriu. —

Então fingiu desaparecer para continuar investigando os crimes de

San Francesco, o Grande, não é?

— E o que o faz pensar em semelhante coisa? — eu disse

assombrado -.

— Seu aspecto, naturalmente. Já lhe disse que são poucas as

coisas que me escapam nesta cidade. Essa sua indumentária me

lembra dois desgraçados que apareceram mortos sob a Maestà dos

franciscanos.

— Mas..

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— Nada de mas! — cortou. — Admiro seu método, padre.

Nunca me ocorreria me fazer passar por vítima para chegar ao

assassino...

Calei-me.

Imaginei tantas vezes que se o reencontrasse teríamos uma

conversa agradável que me surpreendeu vê-lo, de repente,

preocupar-se por mim. No fim das contas me imiscuí em seus

negócios, libertei um prisioneiro seu e não prestei atenção a suas

tentativas de culpar Leonardo da Vinci pelo assassínio de frei

Alessandro. Era óbvio que dom Oliverio tinha coisas mais

importantes para pensar. O antiquário me pareceu preocupado.

Quase nem comentou a fuga de Forzetta, que se apressou a

desculpar acreditando que era parte de minha estratégia para

investigar as mortes de frei Alessandro e os peregrinos de São

Francisco. Era como se meu aparato de parfait lhe chamasse mais

atenção do que o resto.

— Regressou a Milão há muito tempo? — quis desviar nossa

conversa.

— Uns dez dias. E, na verdade, estive procurando-o desde

então. Disseram-me que morreu numa emboscada...

— Alegra-me que não seja verdade.

— A mim também, padre.

— Diga-me, então, para que precisa de mim.

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— Preciso de sua ajuda — deixou escapar, lastimoso. —

Lembra-se do que eu disse do mestre Leonardo no dia em que nos

conhecemos?

— De Leonardo?

Olhei para trás, ali onde vira o toscano pela última vez. Não

gostaria que ele escutasse uma falsa acusação de assassínio como

a que Jacarandá estava a ponto de lembrar. Assenti logo.

— Bem. Já sabe que estive em Roma e ali um confidente

próximo do papa me entregou o segredo final que Da Vinci quis

esconder no Cenacolo.

- O segredo final?

A fronte larga do espanhol se enrugou ante minha

desconfiança.

- O segredo que o seu bibliotecário levou para o túmulo,

padre Leyre. Aquele que extraiu do "livro azul" que donna Beatrice

d'Este me encarregou de obter para ela, e que nunca pude

depositar em suas mãos. Lembra-se?

- Sim.

- Esse segredo, padre, talvez esteja em meu poder. E é outra

dessas adivinhações incômodas do toscano. Como é especialista em

resolver enigmas e, por sua posição, não é suspeito de

cumplicidade com alguém, pensei que me ajudaria a decifrá-lo.

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Oliverio disse aquilo com raiva contida. Ainda podia adivinhar

em sua voz o desejo de vingar seu amigo Alessandro. E ainda que

se enganasse de objetivo não deixava de me intrigar que revelação

recebera de seu confidente. Mal podia imaginar que Betânia

também dispusesse daquele segredo e também que fizera há dias o

impossível para me encontrar.

- Vai me mostrar o segredo, então?

- Só diante do Cenacolo, padre.

44

Que sensação estranha. Vestido com os trapos que foram

dados por Mário Forzetta antes de me devolver à Milão, cruzei o

umbral da igreja de Santa Maria sem que qualquer dos frades

encontrados me reconhecesse. O cheiro de incenso me fez hesitar.

Senti-me como se pusesse pela primeira vez os pés numa igreja.

Aquela profusão de motivos florais, losangos vermelhos e azuis e

desenhos geométricos que enfeitavam o teto, pareceram-me ex-

cesso impróprio na casa de Deus. Nunca reparara neles, mas

agora, de repente, incomodavam-me.

Oliverio não percebeu meu desgosto e me puxou até a abside,

obrigando-me a girar depois para a esquerda e passando à frente

da enorme fila de fiéis que rezavam e cantavam à espera da

permissão de acesso ao refeitório.

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Frei Adriano de Treviglio, com quem cruzara algumas vezes

durante minha estadia no convento, saudou o espanhol e se

mostrou satisfeito com a moeda que ele depositou em sua mão.

Embora me lançasse um olhar penetrante tampouco me

reconheceu. Melhor assim. Aquele refeitório que eu recordava

como frio e inerte fervia agora de atividade. Continuava desprovido

de móveis, como sempre, mas os frades o deixaram decente,

ventilado e limpo em profundidade. Não havia mais cheiro de

pintura, e o mural recém-terminado pelo mestre brilhava em todo

seu esplendor.

- A ceia secreta... - murmurei.

Oliverio não me escutou. Empurrou-me até o centro da sala,

e, quando se abriu caminho entre a multidão, disse algo, meio em

espanhol, meio em lombardo, que então eu não soube valorizar:

- O mistério deste lugar tem a ver com os antigos egípcios. Os

discípulos se distribuem de três em três como as tríades dos

deuses do Nilo. Está vendo? Mas seu autêntico segredo é que cada

personagem desta cena representa uma letra.

- Uma letra? - as velhas lições da Ars Memoriae voltaram à

minha mente. - Que tipo de letras?

- Só uma delas é clara, padre. Olhe bem o grande "A" formado

pela figura de Nosso Senhor. Essa é a primeira pista. Ela e as

outras, ocultas nos atributos dos Doze recolhidos por frei Jacopo da

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Varazze, formam um hino estranho, escrito em egípcio antigo, que

espero que o saiba decifrar...

- Um hino?

Oliverio assentiu, deleitado com meu espanto.

- É assim. Juntando as letras que Leonardo atribuiu a cada

discípulo, e que me foram mostradas em Roma, forma-se uma

frase: Mut-nem-a-los-noc.

- Mut. Nem. A. Los. Noc.

Repeti uma a uma aquelas sílabas, tratando de memorizá-las.

- E afirma que é um texto egípcio?

- E seria o quê? Mut é uma divindade dessa civilização,

esposa de Amon "o Oculto", o grande deus dos faraós.

Seguramente Leonardo ouviu falar dela por Marsilio Ficino. Ou não

se lembra que o mestre tinha os livros dele em sua bottega.

Como ia esquecer? Ficino, Platão, frei Alessandro, o caolho,

todos estavam ali mesmo! Diante de meus olhos! Olhando-se entre

si, como se confabulassem para preservar o mistério daqueles que

não merecessem penetrá-lo. Todos foram representados como

verdadeiros discípulos de Cristo. Bonhommes, em suma.

- E se o idioma desta frase não for egípcio?

Minha dúvida exasperou o espanhol. Aproximou-se de meu

ouvido e, tentando fazer-se entender entre a multidão de curiosos e

o rumor das orações, esforçou-se por me explicar o que aprendera

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daqueles homens reduzidos as letras pela mão de Annio de Viterbo.

Contemplei um por um aqueles discípulos tão vivos. Bartolomeu,

com as mãos apoiadas na mesa, observava a cena como uma

sentinela. Tiago Menor, tentava acalmar o ânimo de Pedro. André,

impressionado pela revelação de que havia um traidor entre eles,

mostrava as palmas das mãos em sinal de inocência. E Judas

Iscariotes. João. Tomé apontando para o céu. O maior dos Tiagos,

com os braços em cruz anunciando o futuro suplício do Messias.

Filipe, Mateus. Tadeu dando as costas a Cristo. E Simão, com as

mãos estendidas, como que convidando a contemplar a cena mais

uma vez, do seu canto na mesa.

Contemplá-la mais uma vez.

Cristo!

Foi como um relâmpago na noite.

Como se de repente uma daquelas línguas de fogo que

iluminaram os discípulos no dia de Pentecostes caísse sobre mim.

Santo Deus! Ali não havia enigma. Leonardo não pôs qualquer

segredo no Cenacolo. Absolutamente nada.

Uma emoção singular, como a que poucas vezes sentira em

meus anos de Betânia, golpeou com força minhas entranhas.

- Lembra-se do que me disse um dia sobre os usos peculiares

de escrita de Leonardo?

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Oliverio me olhou sem saber o que tinha a ver minha

pergunta com sua revelação.

- Refere-se à mania dele de escrever ao contrário?

- É outra de suas excentricidades. Os discípulos precisam de

um espelho para ler o que o maestro lhes escreve. Faz assim com

tudo: anotações, relações, recibos, cartas pessoais, até as listas de

compra!... É um louco.

- Talvez.

A ingenuidade de Oliverio me fez sorrir. Nem ele, nem Annio

de Viterbo se deram conta de algo, apesar de chegar tão perto da

resposta.

- Diga-me, Oliverio: por onde começou a ler sua ladainha

egípcia?

- Pela esquerda. O "M" é Bartolomeu, o "U" Tiago Menor, o

"T"...

De repente emudeceu.

Girou a cabeça até o extremo direito do mural e esbarrou em

Simão, que, com seus braços estendidos, parecia convidá-lo a

entrar na cena. Se fosse pouco, também ali estava o nó do mantel,

assinalando qual era o lado da mesa por onde se devia começar a

"ler".

- Santo Deus. Lê-se ao contrário!

- E o que lê, Oliverio?

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O espanhol, duvidando do que estava vendo e sem conseguir

compreender, pronunciou pela primeira vez o verdadeiro segredo

do Cenacolo. Bastou-lhe silabar sua ladainha, aquele misterioso

Mut-nem-a-los-noc, como o mestre Da Vinci fazia há três anos:

Con-sol-a-men-tum.

Post Scriptum:

Nota final do padre Leyre:

Aquela revelação mudou minha vida. Não foi algo brusco, mas

uma alteração pausada e não estancável, semelhante à que vive um

bosque quando se aproxima a primavera. No início não me dei

conta, e quando quis reagir já era tarde. Suponho que minhas

conversas tranquilas em Concorezzo e a confusão em que mer-

gulhei durante os primeiros dias em Milão operaram o milagre.

Aguardei que se passassem aqueles dias de portas abertas em

Santa Maria delle Grazie para retornar ao Cenacolo e me colocar

sob as mãos de Cristo. Desejava receber a bênção dessa obra viva,

que palpitava e eu vira se desenvolver quase imperceptivelmente.

Ainda não sei bem por que fiz isso. Nem por que não me apresentei

ao prior e lhe disse onde estivera e que coisas descobrira durante

meu cativeiro. Mas como disse, algo mudara dentro de mim. Algo

que acabaria enterrando para sempre aquele Agustín Leyre,

pregador e irmão da Secretaria de Chaves dos Estados pontifícios,

funcionário do Santo Ofício e teólogo.

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Iluminação? Chamado divino? Ou talvez loucura? É provável

que morra neste penhasco de Yabal al-Tarif sem saber como

chamar aquela atitude.

Agora pouco importa.

O certo é que a descoberta do núcleo de albigenses no centro

mesmo da casa dos dominicanos, dirigentes da Inquisição e

guardiões da ortodoxia da fé, teve um efeito ofuscante sobre minha

alma. Descobri que a verdade evangélica abrira caminho por entre

as trevas de nossa ordem, lançando âncora no refeitório como um

poderoso farol na noite. Era uma verdade diferente da que eu

acreditei durante quarenta e cinco anos: Jesus nunca, jamais,

instaurou a eucaristia como único caminho para nos comunicarmos

com Ele. Pelo contrário. Seu ensinamento a João e a Maria

Madalena foi mostrar como encontrar Deus em nosso interior, sem

necessidade de recorrer a artifícios exteriores. Ele era judeu.

Vivenciou o controle que os sacerdotes do templo faziam de Deus

ao encerrá-lo no tabernáculo. E lutou contra isso. Quinze séculos

mais tarde, Leonardo se convertera no secreto responsável por

essa revelação, e a confiou ao Cenacolo.

Talvez ficasse louco nesse instante, admito. Mas, tudo

aconteceu como foi relatado aqui.

Passaram-se já três decênios daqueles fatos e Abdul, que

subiu a ceia até minha gruta como de costume, trouxe também

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uma estranha notícia: um grupo de ermitões seguidores de Santo

Antônio chegou à sua aldeia com a intenção de se estabelecer por

aqui. Sondei as margens do Nilo tentando localizá-los, mas meus

olhos castigados não conseguiram distinguir o acampamento deles.

Poderiam ser minha última esperança. Se algum deles merecesse

minhas confidências nesta reta final da vida, depositaria em suas

mãos estes papéis e o faria compreender a importância de

conservá-los em lugar adequado até que chegasse o tempo de dá-

los a conhecer. Mas, minhas forças fraquejam e não sei se serei

sequer capaz de descer o penhasco e me aproximar deles.

Além disso, mesmo que descesse, tampouco seria fácil que

me entendessem.

Oliverio Jacarandá, por exemplo, jamais compreendeu o

segredo do Cenacolo apesar de tê-lo diante do nariz. Que os treze

protagonistas encarnassem as treze letras do Consolamentum, o

único sacramento admitido pelos homens puros de Concorezzo -

um sacramento espiritual, invisível, íntimo - não lhe dizia grande

coisa. Ignorava a ligação daquele símbolo ao seu desejado "livro

azul", que jamais chegaria a ter entre as mãos. E também, nunca

suspeitou de que seu servidor Mário Forzetta o traiu por culpa

daquele volume. Um livro que durante gerações fora utilizado em

cerimônias albigenses para mergulhar os neófitos na Igreja do

espírito, a de João, e iniciá-los na busca do Pai por conta própria.

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Sei que Oliverio regressou à Espanha, instalou-se perto das

ruínas de Tarraco e continuou tirando partido de seus negócios

com o papa Alexandre. Naquela época Leonardo confiou A ceia

secreta ao seu discípulo Bernardino Luini, que por sua vez a

confiou a um artista do Languedoc, que acabou por levá-la a

Carcassonne, onde foi interceptada pelo Santo Ofício gaulês, que

nunca soube interpretá-la. Luini jamais pintou uma hóstia, nem

Marco d'Oggiono, nem qualquer de seus caros discípulos.

Outro destino curioso foi o de Elena, a quem nunca conheci

pessoalmente. Depois de posar para o mestre, a inteligente

condessinha compreendeu que talvez a Igreja de João nunca

chegaria a se instaurar. Por isso, se afastou da bottega, deixou de

perseguir o infortunado Bernardino e ingressou num convento de

irmãs clarissas perto da fronteira com a França. Leonardo,

surpreendido por sua inteligência sagaz, acabou revelando-lhe o

grande segredo a que estava vinculada sua estirpe: Maria

Madalena, remota antepassada, viu Jesus ressuscitado, feito luz,

fora do túmulo que José de Arimatéia preparara para Ele. Durante

séculos, a Igreja se negou a escutar seu relato completo, coisa que

Leonardo fez. Afinal de contas, naquele remoto dia de há quinze

séculos Madalena viu Jesus vivo, mas não em corpo mortal. Seu

cadáver - inerte e frio - descansava ainda no túmulo quando ela

esbarrou em seu "corpo de luz". Impressionada, decidiu roubar os

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restos do galileu, ocultou-os em sua casa, onde os embalsamou

com esmero, e os levou à França quando começaram as

perseguições do sinédrio.

Esse, e não outro, era o segredo: Cristo não ressuscitou em

corpo mortal. Ressuscitou na luz, mostrando-nos o caminho para

nossa própria transmutação quando chegar nosso dia.

Soube que Elena, impressionada por esta revelação, ficou

com as clarissas só mais cinco anos, até que um bom dia

desapareceu da cela sem que não se voltasse a vê-la. Dizem que

acompanhou Leonardo em seu exílio na França, instalou-se na

corte de Francisco I, como dama de companhia da rainha e,

ocasionalmente, continuou posando para o mestre. Parece que o

toscano usou-a como modelo até o dia de sua morte e pediu

emprestados seu rosto e as mãos para retocar o retrato inacabado

de uma donzela que todos conheciam por Gioconda. De fato, os

que viram as duas obras dizem que as semelhanças entre o João do

Cenacolo e a mulher desta tela pequena são mais que eloquentes.

Eu, por desgraça, não pude julgar.

Mas, se Elena teve ou não mais acesso aos segredos dessa

Igreja de João e Madalena que Leonardo planejou restaurar, o

certo é que os levou para o túmulo. Pois, antes que eu viesse ao

Egito para viver meus últimos dias, Elena faleceu de febre.

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Só me resta, pois, explicar por que aportei aqui, no Egito,

para escrever estas linhas. E por que jamais denunciei a existência

de uma comunidade de perfeitos em Concorezzo, ligada ao mestre

Leonardo.

A culpa, mais uma vez, foi desse gigante de olhos azuis e

roupas brancas.

Não voltei a vê-lo após a apresentação do Cenacolo. Depois

de descobrir seu significado oculto, regressei a Roma e cruzei a

porta da Casa da Verdade, em Betânia, onde reassumi meu

trabalho sem que alguém fizesse muitas perguntas. Foi ali que

fiquei sabendo que Leonardo fugiu de Milão no ano seguinte,

enquanto as tropas francesas venceram as defesas do duque e

assumiram o controle da cidade. Refugiou-se em Mântua, depois

em Veneza e finalmente em Roma, onde trabalhou a serviço de

César Bórgias, o filho do papa Alexandre VI. Para Bórgias foi

architecto e ingegnere generale, desperdiçando suas outras

virtudes. Tampouco, essa ocupação durou muito, mas o suficiente

para se encontrar com o responsável pelo Palazzo Sacro, Annio de

Viterbo.

Annio ficou muito influenciado por aquele encontro. Seu

secretário, Guglielmo Ponte, informou regularmente Betânia sobre

a reunião que tiveram na primavera de 1502. Falaram da função

suprema da arte, de suas aplicações para preservar a memória e

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de sua todo-poderosa influência na mente do povo. Mas, foram

duas frases do toscano as que, segundo o próprio frei Guglielmo,

mais o impressionaram:

- Tudo o que descobri sobre a verdadeira mensagem de Jesus

não é nada em comparação com o que resta para ser revelado -

respondeu, solene, a uma pergunta da doninha. - E da mesma

maneira que para minha arte me abeberei em fontes egípcias, e

cheguei aos segredos geométricos traduzidos por Ficino ou Pacioli,

afirmo que à Igreja ainda resta muito para se abeberar nos

Evangelhos que ainda repousam nas margens do Nilo.

Giovanni Annio de Viterbo morreu cinco dias mais tarde,

provavelmente envenenado por César Bórgia.

Um mês depois, abalado e suspeitando que logo sofreria

represálias daqueles que temiam o retorno dessa Igreja de João,

abandonei Betânia para sempre em busca desses Evangelhos.

Sei que estão perto, mas ainda não os encontrei. Juro que os

buscarei até o fim de meus dias.

***

Em 1945, num lugar perto da aldeia egípcia de Nag

Hammadi, no Alto Nilo, apareceram treze evangelhos perdidos,

encadernados em couro. Estavam redigidos em copta e

apresentavam alguns ensinamentos de Jesus inéditos no Ocidente.

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Sua descoberta, muito mais importante do que a dos Manuscritos

do Mar Morto, em Qumran, demonstra a existência de uma

importante corrente de cristãos primitivos que esperavam o

advento de uma Igreja baseada na comunicação direta com Deus e

os valores do espírito. Hoje são conhecidos como Evangelhos

Gnósticos, e é certo que cópias deles chegaram à Europa no fim da

Alta Idade Média, influindo em certos ambientes intelectuais.

A gruta de Yabal el-Tarif onde morreu o padre Leyre em

agosto de 1526 estava a apenas trinta metros da cavidade onde se

encontraram estes livros.

http://groups-beta.google.com/group/Viciados_em_Livroshttp://groups-beta.google.com/group/digitalsource