A Cartografia Como Método de Pesquisa Intervenção. p. 17-31

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Nos anos 2005 a 2007, um grupo de professores e pesquisadoresse reuniu uma vez por mês no Departamento de Psicologiada Universidade Federal Fluminense e no Instituto de Psicologia daUniversidade Federal do Rio de Janeiro em seminários de pesquisacujo objetivo foi a elaboração das pistas do método da cartografi a.Unidos pela afi nidade teórica com o pensamento de Gilles Deleuzee Félix Guattari e por inquietações relativas à metodologia de pesquisa,Eduardo Passos, Virgínia Kastrup, Silvia Tedesco, André doEirado, Regina Benevides, Auterives Maciel, Liliana da Escóssia,Maria Helena Vasconcelos, Johnny Alvarez e Laura Pozzana, bemcomo diversos alunos de graduação e pós-graduação apresentarame discutiram ideias, criaram duplas de trabalho, escreveram textose, num ambiente de parceria, realizaram um fecundo exercício deconstrução coletiva do conhecimento. Defi nimos inicialmente quea cada encontro nos dedicaríamos a uma de dez pistas do método dacartografi a – o que chamávamos de “decálogo do método da cartografia”. Foram três anos de trabalho. Em 2005 realizamos a primeirarodada de discussão. A cada encontro uma dupla apresentava asideias disparadoras do debate, visando à coletivização do esforçode sistematização do método. Em 2006 cada dupla apresentou umtexto a ser discutido no grupo. Muitos comentários, críticas e ajustespropostos. Em 2007 houve nova rodada de discussão, agora játrabalhando com os textos revisados. As discussões versavam sobrequestões teórico-conceituais, buscavam a formulação adequada dosproblemas metodológicos, envolveram a eliminação e o acréscimode pistas e concorreram para o desenho fi nal que este livro assumiu1.

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  • PISTAS DO MTODO DA CARTOGRAFIA

    Pesquisa-interveno e produo de subjetividade

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  • Apoio:

    CONSELHO EDITORIAL do livro Pistas do mtodo da cartografia

    Maria Elizabeth Barros de Barros Universidade Federal do Esprito Santo, Departamento de Psicologia,

    Programa de Ps-Graduao em Psicologia Institucional.

    Maurcio MangueiraUniversidade Federal de Sergipe, Departamento de Psicologia,

    Programa de Ps-Graduao em Psicologia Social.

    Srgio CarvalhoUniversidade Estadual de Campinas, Departamento de Medicina Preventiva,

    Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva.

    Tania Galli FonsecaUniversidade Federal do Rio Grande do Sul,

    Programas de Ps-Graduao em Psicologia Social e Institucional e de Informtica na Educao.

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  • Orgs.Eduardo PassosVirgnia Kastrup

    Liliana da Escssia

    PISTAS DO MTODO DA CARTOGRAFIA

    Pesquisa-interveno e produo de subjetividade

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  • Autores, 2009

    Capa: Alexandre de Freitas, sobre litografia de Angelo MarzanoProjeto grfico: FOSFOROGRFICO/Clo Sbardelotto Editorao: Clo SbardelottoReviso: Gabriela KozaReviso grfica: Miriam Gress

    Editor: Luis Antnio Paim Gomes

    Setembro / 2015Impresso no Brasil / Printed in Brazil

    Todos os direitos desta edio reservados

    EDITORA MERIDIONAL LTDA.Av. Osvaldo Aranha, 440 conj. 101CEP: 90035-190 Porto Alegre RSTel.: (51) 3311-4082 Fax: (51) 3264-4194 [email protected]

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Bibliotecria responsvel: Denise Mari de Andrade Souza CRB 10/960

    P679 Pistas do mtodo da cartografia: Pesquisa-interveno e produo de subjetividade / orgs. Eduardo Passos, Virgnia Kastrup e Liliana da Escssia. Porto Alegre: Sulina, 2015. 207 p.

    ISBN: 978-85-205-0530-4

    1. Psicologia. 2. Psicanlise. 3. Filosofia. I. Passos, Eduardo. II. Kastrup, Virgnia. III. Escssia, Liliana da.

    CDD: 150 CDD: 101 159.9 159.964.2

    4 reimpresso

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  • SUMRIO

    Apresentao / 7Eduardo Passos, Virgnia Kastrup e Liliana da Escssia

    Pista 1 A cartografia como mtodo de pesquisa-interveno / 17Eduardo Passos e Regina Benevides de Barros

    Pista 2O funcionamento da ateno no trabalho do cartgrafo / 32Virgnia Kastrup

    Pista 3Cartografar acompanhar processos / 52Laura Pozzana de Barros e Virgnia Kastrup

    Pista 4Movimentos-funes do dispositivo na prtica da cartografia / 76Virgnia Kastrup e Regina Benevides de Barros

    Pista 5O coletivo de foras como plano de experincia cartogrfica / 92Liliana da Escssia e Silvia Tedesco

    Pista 6Cartografia como dissoluo do ponto de vista do observador / 109Eduardo Passos e Andr do Eirado

    Pista 7Cartografar habitar um territrio existencial / 131 Johnny Alvarez e Eduardo Passos

    Pista 8Por uma poltica da narratividade / 150Eduardo Passos e Regina Benevides de Barros

    Dirio de bordo de uma viagem-interveno / 172Regina Benevides de Barros e Eduardo Passos

    PosfcioSobre a formao do cartgrafo e o problema das polticas cognitivas / 201Eduardo Passos, Virgnia Kastrup e Liliana da Escssia

    Sobre os autores / 206

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  • 7APRESENTAO

    Nos anos 2005 a 2007, um grupo de professores e pesqui-sadores se reuniu uma vez por ms no Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense e no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro em seminrios de pesquisa cujo objetivo foi a elaborao das pistas do mtodo da cartografi a. Unidos pela afi nidade terica com o pensamento de Gilles Deleuze e Flix Guattari e por inquietaes relativas metodologia de pes-quisa, Eduardo Passos, Virgnia Kastrup, Silvia Tedesco, Andr do Eirado, Regina Benevides, Auterives Maciel, Liliana da Escssia, Maria Helena Vasconcelos, Johnny Alvarez e Laura Pozzana, bem como diversos alunos de graduao e ps-graduao apresentaram e discutiram ideias, criaram duplas de trabalho, escreveram textos e, num ambiente de parceria, realizaram um fecundo exerccio de construo coletiva do conhecimento. Defi nimos inicialmente que a cada encontro nos dedicaramos a uma de dez pistas do mtodo da cartografi a o que chamvamos de declogo do mtodo da carto-grafi a. Foram trs anos de trabalho. Em 2005 realizamos a primeira rodada de discusso. A cada encontro uma dupla apresentava as ideias disparadoras do debate, visando coletivizao do esforo de sistematizao do mtodo. Em 2006 cada dupla apresentou um texto a ser discutido no grupo. Muitos comentrios, crticas e ajus-tes propostos. Em 2007 houve nova rodada de discusso, agora j trabalhando com os textos revisados. As discusses versavam sobre questes terico-conceituais, buscavam a formulao adequada dos problemas metodolgicos, envolveram a eliminao e o acrscimo de pistas e concorreram para o desenho fi nal que este livro assumiu1.

    1 Uma primeira verso das pistas do mtodo da cartografi a foi apresentada no texto de Virgnia Kastrup: O mtodo da cartografi a e os quatro nveis da

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  • 8Investigando processos de produo de subjetividade, en-trvamos em um debate metodolgico que tradicionalmente se organiza prioritariamente a partir da oposio entre mtodos de pesquisa quantitativa e qualitativa. Os impasses metodolgicos so muitas vezes atribudos natureza da pesquisa qualitativa, que rene grande parte das investigaes no campo dos estudos da sub-jetividade. Argumenta-se que, se a pesquisa quantitativa se adqua bem a frames e scripts preexistentes, como testes e questionrios padronizados, alm de contar com mtodos estatsticos e softwares de ltima gerao que do a tranquilizadora imagem de sofi sticao e exatido cientfi ca, o mesmo no ocorre com a pesquisa qualitativa. Esta requer procedimentos mais abertos e ao mesmo tempo mais inventivos. Por outro lado, a distino entre pesquisa quantitativa e qualitativa, embora pertinente, surge ainda insufi ciente, j que os processos de produo da realidade se expressam de mltiplas maneiras, cabendo a incluso de dados quantitativos e qualitati- vos. Pesquisas quantitativas e qualitativas podem constituir prticas cartogrfi cas, desde que se proponham ao acompanhamento de pro-cessos. Para alm da distino quantitativa-qualitativa restam em aberto impasses relativos adequao entre a natureza do problema investigado e as exigncias do mtodo. A questo como investigar processos sem deix-los escapar por entre os dedos.

    Com esse desafi o frente, nos movamos inicialmente por entre questes disparadoras: como estudar processos acompanhan-do movimentos, mais do que apreendendo estruturas e estados de coisas? Investigando processos, como lanar mo de um mtodo igualmente processual? Como assegurar, no plano dos processos, a sintonia entre objeto e mtodo? Desde o incio estvamos cientes de que a elaborao do mtodo da cartografi a no poderia levar formulao de regras ou protocolos. Percebamos tambm que

    pesquisa-interveno, publicado em Lcia Rabello de Castro e Vera Besset (Orgs.), Pesquisa-interveno na infncia e juventude (Rio de Janeiro, Nau, 2008).

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  • 9nossas inquietaes estavam presentes na prtica diria de muitos de nossos colegas.

    Pesquisadores que investigam processos nas reas de sade, educao, cognio, clnica, grupos e instituies, dentre outros, enfrentam muitas vezes, na escrita de seus projetos, difi culdades em dar conta do item consagrado ao mtodo. Como nomear as es-tratgias empregadas na pesquisa, quando elas no se enquadram bem no modelo da cincia moderna, que recomenda mtodos de representao de objetos preexistentes? Como encontrar um m- todo de investigao que esteja em sintonia com o carter processual da investigao? No que concerne chamada coleta de dados, tal difi culdade muitas vezes contornada pelo apelo noo de observao participante e s entrevistas semiestruturadas. Embora em certa medida conveniente, o vocabulrio importado da pesquisa etnogrfi ca e das pesquisas qualitativas em psicologia e nas cincias humanas em geral parece, todavia, muito genrico e longe de ser satisfatrio.

    Buscamos referncias no conceito de cartografi a que apre-sentado por Gilles Deleuze e Flix Guattari na Introduo de Mil Plats (Paris: Minuit, 1980; Rio de Janeiro: Editora 34, 1995). Na abertura do livro, os autores defi nem o projeto desta escrita a dois: texto-agenciamento, livro-multiplicidade feito de diferentes datas e velocidades. Qual a coerncia do livro? Qual a sua unidade? H uma clara recusa organizao que prpria de um livro-raiz, livro que se estrutura como se fi zesse o decalque do que quer tratar; que se aprofunda para desvelar a essncia do que investiga; que trata da realidade de seu objeto como se s pudesse represent-la. Livro-raiz que se inocenta de qualquer compromisso com a gnese da realidade, com o libi de represent-la (ou re-apresent-la) de maneira clara e formal. Mil Plats no se quer como imagem do mundo. A diversidade que matria do pensamento e carne do texto descrita, ento, como linhas que se condensam em estratos mais os menos duros, mais ou menos segmentados e em constante rearranjo como os abalos ssmicos pela movimentao das placas

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    tectnicas que compem a Terra. Os mil plats se mantm lado a lado sem hierarquia e sem totalizao. Tal geologia fi losfi co-po- ltica convoca a uma deciso metodolgica, ou melhor, a uma atitude (ethos da pesquisa) que opera no por unifi cao/totalizao, mas por subtrao do nico, como na frmula do n-1. Menos o Uno. Menos o Todo, de tal maneira que a realidade se apresenta como plano de composio de elementos heterogneos e de funo hete-rogentica: plano de diferenas e plano do diferir frente ao qual o pensamento chamado menos a representar do que a acompanhar o engendramento daquilo que ele pensa. Eis, ento, o sentido da cartografi a: acompanhamento de percursos, implicao em processos de produo, conexo de redes ou rizomas.

    assim que Deleuze e Guattari designam sua Introduo: Rizoma. A cartografi a surge como um princpio do rizoma que atesta, no pensamento, sua fora performtica, sua pragmtica: princpio inteiramente voltado para uma experimentao ancorada no real (Deleuze e Guattari, 1995, p. 21). Nesse mapa, justamente porque nele nada se decalca, no h um nico sentido para a sua experimen-tao nem uma mesma entrada. So mltiplas as entradas em uma cartografi a. A realidade cartografada se apresenta como mapa mvel, de tal maneira que tudo aquilo que tem aparncia de o mesmo no passa de um concentrado de signifi cao, de saber e de poder, que pode por vezes ter a pretenso ilegtima de ser centro de organizao do rizoma. Entretanto, o rizoma no tem centro.

    Em um sistema acntrico, como conceber a direo meto- dolgica? A metodologia, quando se impe como palavra de ordem, defi ne-se por regras previamente estabelecidas. Da o sentido tradi-cional de metodologia que est impresso na prpria etimologia da palavra: met-hdos. Com essa direo, a pesquisa defi nida como um caminho (hdos) predeterminado pelas metas dadas de partida. Por sua vez, a cartografi a prope uma reverso metodolgica: trans-formar o met-hdos em hdos-met. Essa reverso consiste numa aposta na experimentao do pensamento um mtodo no para ser

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    aplicado, mas para ser experimentado e assumido como atitude. Com isso no se abre mo do rigor, mas esse ressignifi cado. O rigor do caminho, sua preciso, est mais prximo dos movimentos da vida ou da normatividade do vivo, de que fala Canguilhem. A preciso no tomada como exatido, mas como compromisso e interesse, como implicao na realidade, como interveno.

    Em 1982, Suely Rolnik agencia a vinda de Flix Guattari ao Brasil. Essa visita foi a ocasio para um importante exerccio cartogrfi co. Os dois cartgrafos apontaram diferentes linhas de composio da experincia macro e micropoltica brasileira. No indicaram apenas os impasses e perigos que vivamos naqueles anos de fi nalizao da ditadura e de anncio do processo de democrati-zao institucional, tendo como pano de fundo a onda neoliberal e a globalizao capitalstica. Privilegiaram, sobretudo, as linhas fl exveis e de fuga que indicavam germens potenciais para a mudana: os movimentos negro, feminista, gay, a Reforma Psiquiatra brasileira, as mdias alternativas, a autonomizao do partido dos trabalhado-res. O mapa que foi traado a partir das andanas de Guattari pelo Brasil indicava menos o que era do que o que estava em vias de ser. O mapa cartografava nossas movimentaes micropolticas e dava pistas de como acompanhar esses processos de ao minoritria. O livro-rizoma que da resultou (Micropoltica. Cartografi as do desejo. Petrpolis: Vozes, 1986) impactou verdadeiramente os que estavam ali participando da tecedura daquelas redes.

    tambm no fi m dos anos 1980 que Suely Rolnik apresenta 24 fi guras-tipo do feminino que do pistas ao cartgrafo que quer acompanhar as mutaes do capitalismo em sua relao com as po-lticas de subjetivao. Suely faz uma Cartografi a Sentimental do mundo em que vivemos, tomando as noivinhas como personagens conceituais que em sua deriva histrica dos anos 1950 aos 1980 expressam movimentos de mudana, alteraes dos regimes de afetabilidade, reconfi guraes micropolticas do desejo. O trabalho de Suely Rolnik junto a Peter Pelbart e Luiz Orlandi garantiram ao

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    Ncleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia da PUC/SP grande impor-tncia na formulao das direes do mtodo cartogrfi co.

    No sul do Brasil, a pesquisa cartogrfi ca encontra importante laboratrio. A condio de extremo sul deve ter favorecido as expe-rimentaes que desde o I Frum Social Mundial em Porto Alegre (2001) anunciaram o lema de uma nova esquerda internacional: T Frum. L tambm Tnia Galli tem conduzido a grupalizao de pesquisadores interessados no modo de fazer da cartografi a. O livro Cartografi a e devires. A construo do presente (Porto Alegre: UFRGS, 2003) afi rmou problemas cruciais para o campo da pes-quisa nas cincias humanas: a) impossibilidade da transparncia do olhar do pesquisador e afi rmao do perspectivismo; b) crtica da separao entre sujeito e objeto e articulao do conhecimento com o desejo e implicao; c) recusa da atitude demonstrativa em nome do construtivismo entendido como experimentao de conceitos e novos dispositivos de interveno.

    Em Campinas, no Departamento de Medicina Preventiva da UNICAMP, Srgio Carvalho e o grupo Conexes tm contribudo para a ampliao do debate cartogrfi co no campo de pesquisa das prticas de ateno e gesto em sade. O mesmo acontece em Sergipe, com o grupo Prosaico, do Departamento de Psicologia da UFS. O mtodo da cartografi a se apresenta, assim, como alternativa impor-tante para acompanhar o movimento da reforma sanitria brasileira e as lutas macro e micropolticas para a produo de polticas pblicas no Brasil. Outros cartgrafos tm estendido esta aposta metodolgica no campo da sade pblica.

    Na Universidade Federal Fluminense e na Universidade Fe- deral do Rio de Janeiro, o grupo de pesquisa Cognio e Subjetivi- dade tomou o tema da cartografi a como problema metodolgico, surgido frente aos impasses experimentados no campo dos estudos da cognio. Em nosso percurso, partimos do problema formulado no projeto de pesquisa A noo de subjetividade e a superao do

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    modelo da representao (CNPq, 95/96). Nesse momento, coloc-vamos em questo o pressuposto de que conhecer representar ou reconhecer a realidade. Confi gurava-se para ns a importncia do binmio cognio/criao, o que nos exigiu investigar com mais detalhe a dimenso temporal dos processos de produo de co-nhecimento. Chegamos defi nio do conceito de cognio como criao, autopoiese (Humberto Maturana & Francisco Varela) ou enao (Francisco Varela). De acordo com tal perspectiva, os polos da relao cognoscente (sujeito e objeto) so efeitos, e no condio da atividade cognitiva. Com o alargamento do conceito de cognio e sua inseparabilidade da ideia de criao, a produo de conheci-mento no encontra fundamentos num sujeito cognitivo prvio nem num suposto mundo dado, mas confi gura, de maneira pragmtica e recproca, o si e o domnio cognitivo. Destituda de fundamentos invariantes, a prtica cognitiva engendra concretamente subjetivi-dades e mundos. A investigao da cognio criadora coloca ento o problema do compromisso tico do ato cognitivo com a realidade criada. Produo de conhecimento, produo de subjetividade. Eis que surge o problema metodolgico. Como estudar esse plano de produo da realidade? Que mtodo nos permite acompanhar esses processos de produo?

    Em vez de regras para serem aplicadas, propusemos a ideia de pistas. Apresentamos pistas para nos guiar no trabalho da pesquisa, sabendo que para acompanhar processos no podemos ter predeterminada de antemo a totalidade dos procedimentos metodo-lgicos. As pistas que guiam o cartgrafo so como referncias que concorrem para a manuteno de uma atitude de abertura ao que vai se produzindo e de calibragem do caminhar no prprio percurso da pesquisa o hdos-met da pesquisa.

    Neste volume, enumeramos oito pistas para a prtica do mtodo da cartografi a. H trinta anos, Guattari (O inconsciente maqunico. Ensaios de esquizoanlise. Campinas: Papirus, 1988 [1979]) propunha os Oito princpios da esquizoanlise. Se o pri-

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    meiro princpio foi No impedir, isto , no atrapalhar os processos em curso, o ltimo recolocava as bases da enumerao proposta, dizendo: Toda ideia de princpio deve ser considerada suspeita. Era a ideia de princpio que se dissolvia na contundncia da aposta metodolgica de Guattari, fazendo com que no se pudesse esperar por uma garantia defi nitiva (tal como um fundamento) para o trabalho da anlise. Neste volume, enumeramos oito pistas para a prtica do mtodo da cartografi a. Como destacou Regina Benevides, podemos dizer que mais do que a sintonia do nmero 8, as pistas que propo-mos agora nortearam-se por uma atitude atenta ao que j em 1979 Guattari convocava.

    A apresentao das pistas no corresponde a uma ordem hierrquica. A leitura da primeira pista no pr-requisito para a leitura da segunda e assim sucessivamente. A organizao do livro corresponde a um rizoma. O leitor pode iniciar pela pista que julgar mais conveniente ou interessante e ler as outras na sequncia que lhe aprouver. Como no poderia deixar de ser, elas remetem umas s outras. Ainda como um rizoma, as pistas aqui apresentadas no formam uma totalidade, mas um conjunto de linhas em conexo e de referncias, cujo objetivo desenvolver e coletivizar a experincia do cartgrafo.

    A pista 1, A cartografi a como mtodo de pesquisa-interven-o, apresentada por Eduardo Passos e Regina Benevides. Baseada na contribuio da anlise institucional, discute a indissociabilidade entre o conhecimento e a transformao, tanto da realidade quanto do pesquisador.

    A pista 2 trabalhada por Virgnia Kastrup no texto O funcionamento da ateno no trabalho do cartgrafo. Criando uma interlocuo entre Freud, Bergson e a pragmtica fenomenolgica, so defi nidos os quatro gestos da ateno cartogrfi ca: o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento atento.

    Na pista 3, Laura Pozzana e Virgnia Kastrup discutem a ideia de que Cartografar acompanhar processos. Baseado numa pesquisa sobre ofi cinas de leitura com crianas, o texto analisa a

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    distino entre a proposta da cincia moderna de representar objetos e a proposta da cartografi a de acompanhar processos, alm de apre-sentar um exerccio da (re)inveno metodolgica nas entrevistas com crianas.

    A pista 4 vem apresentada no texto de Virgnia Kastrup e Regina Benevides: Movimentos-funes do dispositivo no mtodo da cartografi a. As ideias de Foucault e Deleuze surgem mescladas com exemplos concretos extrados do campo da clnica e da pesquisa com defi cientes visuais. So propostos trs movimentos-funes: de referncia, de explicitao e de produo e transformao da realidade.

    A pista 5 foi escrita por Liliana da Escssia e Silvia Tedesco. No texto O coletivo de foras como plano da experincia cartogr-fi ca, as autoras apontam, apoiadas sobretudo em Gilbert Simondon e Gilles Deleuze, que ao lado dos contornos estveis do que deno-minamos formas, objetos ou sujeitos, coexiste o plano coletivo das foras que os produzem, alm de defi nirem a cartografi a como prtica de construo desse plano.

    A pista 6 apresentada por Eduardo Passos e Andr do Eirado no texto Cartografi a como dissoluo do ponto de vista do observador. O texto revela a preocupao em apontar que a recusa do objetivismo positivista no deve conduzir afi rmao da parti-cipao de interesses, crenas e juzos do pesquisador, concluindo que objetivismo e subjetivismo so duas faces da mesma moeda.

    A pista 7, Cartografar habitar um territrio existencial, apresentada por Johnny Alvarez e Eduardo Passos. Por meio do relato de uma pesquisa sobre o aprendizado da capoeira, o texto traz cena a importncia da imerso do cartgrafo no territrio e seus signos.

    A pista 8 aborda o tema da escrita de textos de pesquisa. Eduardo Passos e Regina Benevides apresentam em Por uma poltica de narratividade a ideia de que a alterao metodolgica proposta pela cartografi a exige uma mudana das prticas de narrar.

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    Encerrando a coletnea, o texto Dirio de bordo de uma viagem-interveno de Regina Benevides e Eduardo Passos apre-senta um exemplo vivo da construo coletiva de uma pesquisa. Usando uma troca de correspondncia durante uma viagem de pesquisa-interveno, discutem a utilizao do hors-texte.

    Como um balano fi nal do livro, um Posfcio discute a for-mao do cartgrafo e as polticas cognitivas do pesquisador, alm de abrir novos problemas que continuam desafi ando o pensamento e atentam para o rigor da pesquisa cartogrfi ca.

    Eduardo Passos, Virgnia Kastrup

    e Liliana da Escssia

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    Pista 1

    A CARTOGRAFIA COMO MTODO DE PESQUISA-INTERVENO

    Eduardo Passos e Regina Benevides de Barros

    A cartografi a como mtodo de pesquisa-interveno pressu-pe uma orientao do trabalho do pesquisador que no se faz de modo prescritivo, por regras j prontas, nem com objetivos pre-viamente estabelecidos. No entanto, no se trata de uma ao sem direo, j que a cartografi a reverte o sentido tradicional de mtodo sem abrir mo da orientao do percurso da pesquisa. O desafi o o de realizar uma reverso do sentido tradicional de mtodo no mais um caminhar para alcanar metas prefi xadas (met-hdos), mas o primado do caminhar que traa, no percurso, suas metas1. A reverso, ento, afi rma um hdos-met. A diretriz cartogrfi ca se faz por pistas que orientam o percurso da pesquisa sempre considerando os efeitos do processo do pesquisar sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados.

    Das pistas do mtodo cartogrfi co queremos, neste texto, discutir a inseparabilidade entre conhecer e fazer, entre pesquisar e intervir: toda pesquisa interveno. Mas, se assim afi rmamos, pre-cisamos ainda dar outro passo, pois a interveno sempre se realiza por um mergulho na experincia que agencia sujeito e objeto, teoria e prtica, num mesmo plano de produo ou de coemergncia o

    1 Met (refl exo, raciocnio, verdade) + hdos (caminho, direo). Dicionrio Etimolgico http://www.prandiano.com.br/html/fr_dic.htm (acesso em janeiro/2009).

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    que podemos designar como plano da experincia. A cartografi a como mtodo de pesquisa o traado desse plano da experincia, acompanhando os efeitos (sobre o objeto, o pesquisador e a produo do conhecimento) do prprio percurso da investigao.

    Considerando que objeto, sujeito e conhecimento so efeitos coemergentes do processo de pesquisar, no se pode orientar a pes-quisa pelo que se suporia saber de antemo acerca da realidade: o know what da pesquisa. Mergulhados na experincia do pesquisar, no havendo nenhuma garantia ou ponto de referncia exterior a esse plano, apoiamos a investigao no seu modo de fazer: o know how da pesquisa. O ponto de apoio a experincia entendida como um saber-fazer, isto , um saber que vem, que emerge do fazer. Tal primado da experincia direciona o trabalho da pesquisa do saber- fazer ao fazer-saber, do saber na experincia experincia do saber. Eis a o caminho metodolgico.

    Essa tambm a direo indicada pelo movimento institu- cionalista quando afi rma que se trata de transformar para conhecer, e no de conhecer para transformar a realidade. O que tem primado o plano da experincia enquanto interveno, em que esto sempre encarnadas as ferramentas conceituais ou os operadores analticos com os quais se trabalha. O institucionalismo, tal como formulado na Frana, acentua a dimenso poltica da pesquisa, seja quando trata do tema da produo de conhecimento (as instituies da pesquisa, da escola, da cincia), seja quando se volta para a clnica (as instituies do manicmio, da psiquiatria, da psicanlise, do grupo). Ren Lourau e Felix Guattari dedicam-se, cada qual, a uma dessas infl exes institucionalistas, mantendo em comum a direo da interveno.

    Lourau e a interveno como mtodo

    Lourau, no texto Campo socioanaltico, primeiro captulo do livro Intervenes socioanalticas de 1996 (Lourau, 2004a), afi rma que a questo do mtodo coloca para a Anlise Institucional (AI)

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    os temas da interveno e do campo que por ela aberto: o campo da interveno. Pensar esse campo exige para o autor a defi nio do que ele designa de paradigma dos trs Is que, tal como os trs mosqueteiros, so quatro: Instituio, Institucionalizao, Implicao e o ltimo, Interveno, sendo este o dArtagnan, j que ele que delimita o campo de ao ou o plano da experincia, como preferimos.

    Lourau diz que campo um conceito metafrico tomado de emprstimo (Lourau, 2004b, p. 218) atravs do qual a AI vai defi nir suas prticas enquanto campo de interveno e campo de anlise. O primeiro diz respeito ao espao-tempo acessvel aos interventores em funo de uma encomenda inicial e as modifi caes deste espao- tempo face anlise da encomenda no processo de interveno. O trabalho da anlise vai modifi cando o campo, seguindo esta direo: da formulao de uma encomenda defi nio de uma demanda de anlise. Quem encomenda um trabalho de anlise institucional no necessariamente quem enuncia essa demanda. O trabalho vai mo-dulando o campo de interveno onde todos esto includos (quem encomenda, quem demanda, quem e o que analisa).

    Kurt Lewin designava de pesquisa-ao o trabalho de/sobre o campo onde todos estavam includos. Lourau segue esse curso de problematizao das prticas de pesquisa e produo de conheci-mento. O campo de anlise se distingue, mas no se separa do campo de interveno, sendo o sistema de referncia terico que se torna operatrio em uma pesquisa-ao e, consequentemente, sempre encarnado em uma situao social concreta. A anlise aqui se faz sem distanciamento, j que est mergulhada na experincia coletiva em que tudo e todos esto implicados. essa constatao que fora o institucionalismo a colocar em questo os ideais de objetividade, neutralidade, imparcialidade do conhecimento. Todo conhecimento se produz em um campo de implicaes cruzadas, estando neces-sariamente determinado neste jogo de foras: valores, interesses, expectativas, compromissos, desejos, crenas, etc.

    A interveno como mtodo indica o trabalho da anlise das implicaes coletivas, sempre locais e concretas. A anlise das im-

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    plicaes de todos que integram um campo de interveno permite acessar, nas instituies, os processos de institucionalizao. O que Lourau designa de implicao diz respeito menos vontade cons-ciente ou inteno dos indivduos do que s foras inconscientes (o inconsciente institucional) que se atravessam constituindo valores, interesses, expectativas, compromissos, desejos, crenas, isto , as formas que se instituem como dada realidade. A anlise , ento, o trabalho de quebra dessas formas institudas para dar expresso ao processo de institucionalizao.

    Se o mtodo o da interveno, orientando um trabalho de pesquisa que diremos pesquisa-interveno (j que insufi ciente para ns a noo lewiniana de pesquisa-ao), a direo de que se trata nesse mtodo aquela que busca aceder aos processos, ao que se passa entre os estados ou formas institudas, ao que est cheio de energia potencial. Logo, na direo do mtodo cartogrfi co, preferi-mos dizer que em um plano e no em um campo que a interveno se d (Passos e Benevides, 2000).

    O trabalho da anlise/interveno desestabiliza a prpria noo de campo, j que modula seus limites e confi guraes. Essa desestabilizao vai fi car mais evidente quando Lourau, na dcada de 90, se aproxima do pensamento de Gilbert Simondon, defi nindo o campo de interveno por sua metaestabilidade ou pelo modo como nele as oposies seja esta entre sujeito e objeto, entre local e global, entre eu e o outro, indivduo e o grupo, etc. se apresentam como uma dinmica transductiva, isto , uma dinmica de devir que potencializa resistncias atuais e atualiza existncias potenciais (Lourau, 2004b, p. 213).

    Ren Lourau, nesse momento, faz modular o pensamento da anlise institucional. Em especial, o conceito de implicao repensado em sua relao com o conceito de transduco proposto por Simondon. O conceito de implicao j tomara o lugar dos conceitos de transferncia e contratransferncia institucionais, radicalizando a crtica neutralidade analtica e ao objetivismo cientifi cista. No h neutralidade do conhecimento, pois toda pes-

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    quisa intervm sobre a realidade mais do que apenas a representa ou constata em um discurso cioso das evidncias. No processo de produo de conhecimento, h que se colocar em anlise os atraves-samentos que compem um campo de pesquisa. Estas foras que se atravessam foram inicialmente designadas pelo institucionalis-mo de transferncia e contratransferncia institucionais, sendo em seguida pensadas como implicaes. Como disse Lourau em 1973 (Lourau, 2004c, p. 85), o importante para o investigador no , essencialmente, o objeto que ele mesmo se d (segundo a frmula do idealismo matemtico), mas sim tudo o que lhe dado por sua posio nas relaes sociais, na rede institucional. O observador est sempre implicado no campo de observao, e a interveno mo-difi ca o objeto (Princpio de Heisenberg). No campo, a interveno no se d em um nico sentido. essa ampliao dos sentidos da interveno que vai aumentando quando se considera agora uma dinmica transductiva a partir da qual as existncias se atualizam, as instituies se organizam e as formas de resistncia se impem contra os regimes de assujeitamento e as paralisias sintomticas.

    na dcada de 50 que podemos acompanhar, em torno dos grupos do hospital St. Alban e da clnica La Borde, as condies de emergncia da virada do movimento institucionalista a partir da problematizao da dimenso inconsciente da instituio. Segundo Hess e Savoye (1993, p. 13), ento que se entra verdadeiramente na Anlise Institucional. A dinmica do processo primrio das instituies destacada. No mesmo perodo, aparecem na Frana os primeiros escritos que se autointitulam socioanalticos e que propem uma abordagem psicanaltica dos grupos. Em 1962, no Colquio de Royaumont, G. Lapassade redige o que seria o primeiro trabalho so-cioanaltico de uma tradio que toma em questo as instituies, os grupos e as organizaes visando os processos de autogesto. nessa tradio que Lourau vai imprimindo uma progressiva intensifi cao dessa dimenso inconsciente das instituies, chegando fi nalmente a ampli-la, na dcada de 90, com o conceito de transduco proposto por G. Simondon em sua tese de 1958.

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    Pistas metodolgicas entre Lourau e Simondon

    Gilbert Simondon (1989), em seu estudo sobre os processos de individuao, faz uma crtica tradio do pensamento fi losfi co que pressups um princpio de individuao anterior e orientador do processo de individuao. A forma de argumentao tradicional que esse autor denuncia a que toma como ponto de partida e d privilgio ontolgico ao indivduo constitudo, buscando suas con-dies de existncia, elas mesmas no menos individuais, o que fi ca evidente na noo de princpio. Como nos diz o autor:

    a noo de princpio de individuao advm, numa certa medida, de uma gnese a contrapelo de uma ontognese revertida: para dar conta da gnese do indivduo com seus caracteres defi nitivos preciso supor a existncia de um termo primeiro, princpio, que traz nele mesmo isso que explicar que o indivduo seja indivduo e dar conta de sua hecceidade (Simondon, 1989, p. 10).

    Simondon defende que a individuao no produz somente indivduo, o que nos obriga a ser cautelosos evitando passar de maneira rpida pelas etapas de individuao (princpio/opera-o de individuao/indivduo). preciso apreender a ontognese em sua realidade de maneira a conhecer o indivduo atravs da individuao antes que a individuao a partir do indivduo (p. 12). O indivduo , ento, uma fase do ser que supe uma realida-de pr-individual que o acompanha. O indivduo, mesmo aps a individuao, no existe s, j que seu processo de individuao no esgota os potenciais da realidade pr-individual, assim como a individuao no faz aparecer como seu efeito somente o indivduo, mas um par indivduo-meio.

    A individuao deve ser considerada como resoluo parcial e relativa que se manifesta em um sistema com- portando potenciais e guardando certa incompatibilidade

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    em relao a ele mesmo, incompatibilidade feita de foras de tenso, assim como da impossibilidade de uma intera-o de termos de dimenses extremas (p. 12).

    A ontognese , para Simondon, o processo a partir do qual o ser se torna uma realidade individuada num processo de devir do ser na dupla acepo desse do ser: devir que acontece ao ser e devir de que consiste o ser. O devir entendido como dimenso do ser ou a capacidade de se defasar por relao a ele mesmo, de se resolver em se defasando (p. 13). O que o autor nos faz entender que o ser em processo de individuao aquele no qual uma resolu-o aparece pela sua repartio em fases, isto , a partir de uma incompatibilidade inicial rica em potenciais.

    Mas, como pensar o primado da individuao ou uma indi-viduao sem princpio predefi nido? Segundo Simondon, foi ne-cessrio esperar por certos conceitos para que se pudesse entender o processo de individuao sem a petio de princpio pelo autor denunciada. o conceito de metaestabilidade, em contraste com aquele de equilbrio estvel, que garante esse avano. Enquanto o equilbrio que o mais baixo nvel de energia potencial exclui o devir, a metaestabilidade indica uma dinmica de devir que s se resolve em contnua transformao. Essa noo de metaestabilidade ganha um sentido especial quando tratamos de sistemas vivos nos quais o processo de individuao no culmina, mantendo o devir em constante processualidade. Segundo Simondon, o vivo con-serva nele uma atividade de individuao permanente, ele no s resultado de individuao como o cristal e a molcula, mas teatro de individuao (p. 16). Sempre comportando energias potenciais, o indivduo vivo , segundo a frmula do autor, menos e mais do que a unidade, j que se caracteriza por uma problemtica interior e por um jogo de ressonncias internas que o lana para problemticas mais vastas, sendo ele mesmo elemento em uma individuao futura a ele. nesse sentido que a individuao biolgica se resolve no no indivduo, mas numa outra individuao. A individuao psquica

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    advm quando a problemtica interior do vivo o obriga a posicio- nar-se como elemento do problema atravs de sua ao, sendo essa a condio que lhe confere a posio de sujeito. Mas, se o processo ininterrupto, o ser psquico no resolve, ele mesmo, a sua proble-mtica, sendo forado a ultrapassar os seus prprios limites, agora numa individuao do coletivo. O indivduo psquico se associa ao grupo pela realidade pr-individual que o habita. Individua-se agora uma unidade coletiva. Segundo o autor

    as duas individuaes psquica e coletiva so recpro-cas, uma por relao outra; elas permitem defi nir uma categoria do transindividual que tende a dar conta da unidade sistemtica da individuao interior (psquico) e da individuao exterior (coletivo). O mundo psicos-social do transindividual no nem o social bruto nem o interindividual; ele supe uma verdadeira operao de individuao a partir de uma realidade pr-individual... (p. 19).

    A obra de Simondon nos convoca a pensar qualquer realida- de individuada a partir desse fundo pr-individual em que se opera a criao. No vivo, no psquico e no coletivo, esse fundo permanece em latncia no indivduo, obrigado a resolver a sua problemtica existencial em individuaes sucessivas. H, portanto, um plano comum de imanncia que une, num mesmo phillum de individua-o, a realidade viva, psquica e coletiva. Para construir essa tese, o autor lana mo de um mtodo. Simondon indica trs caractersticas metodolgicas para a pesquisa do processo de individuao que nos ajudam a entender o mtodo da cartografi a: 1) tomar a relao como interna ao ser ou contempornea aos termos; 2) recusar os princ-pios do terceiro excludo e da identidade; 3) afi rmar a dinmica de individuao como transduco.

    Queremos aqui nos deter na terceira caracterstica meto- dolgica. A transduco a operao fsica, biolgica, mental ou social pela qual uma atividade se propaga de parte em parte, estru-

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    turando um domnio. A partir de um sistema em rede amplifi cante, um grmen se propaga em vrias direes, de tal maneira que cada camada constituda serve de base estruturante a uma camada em formao. Tal dinmica transductiva tomada por Lourau para re- pensar o conceito de implicao. O trabalho de pesquisa, assim como o trabalho de interveno socioanaltica, pressupe uma forma de relao entre os termos que a interagem (sujeito-objeto, analista- cliente, teoria-prtica). Os institucionalistas cada vez menos tomaro essa relao como o jogo interpessoal caracterstico da dinmica da transferncia e da contratransferncia.

    Sabemos que a anlise institucional toma de emprstimo, inicialmente, o conceito de contratransferncia para pensar uma dinmica coletiva-institucional na qual toda a realidade em que os atores esto imersos se coloca como vetores determinantes na cena de anlise: sexo, idade, raa, posio socioeconmica, signifi caes socioculturais que atravessam seja o analista, seja o analisando. Com o conceito de contratransferncia institucional toda uma rede de afeces ativada. No entanto, esse conceito ser abandonado quando Lourau prope em seu lugar o de implicao. Apenas uma troca de palavras? Na verdade identifi camos a um esforo de no somente se desvencilhar do subjetivismo inerente ao jogo transferen-cial, como tambm a necessidade de dar conta de uma dinmica de relao na qual posies bem localizadas no tm mais lugar. Se na dinmica da transferncia e da contratransferncia ainda a relao dual que toma o centro da cena, marcando a distino dos lugares do analista e do analisando, com o conceito de implicao o trans e o contra se dissolvem. O campo implicacional indica, ento, esse sentido mais entre foras do que entre formas, no qual a dinmica se faz no por projeo, deciso, propsito ou vontade de algum, mas por contgio ou propagao, como prefere Simondon. Interessa a Lourau exatamente essa dinmica que podemos chamar instituinte. Todo trabalho de interveno na socioanlise visa essa dimenso inconsciente das instituies de tal maneira que podemos afi rmar, no plano da experincia, uma inseparabilidade entre anlise das im-

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    plicaes e interveno. Intervir, ento, fazer esse mergulho no plano implicacional em que as posies de quem conhece e do que conhecido, de quem analisa e do que analisado se dissolvem na dinmica de propagao das foras instituintes caracterstica dos processos de institucionalizao.

    , portanto, no plano do concreto da experincia que estamos sempre implicados. O tema da implicao defi ne uma direo clni- co-poltica ao trabalho de pesquisa-interveno. A cartografi a deve ser entendida como um mtodo segundo o qual toda pesquisa tem uma direo clnico-poltica e toda a prtica clnica , por sua vez, interveno geradora de conhecimento. Esta relao que o mtodo cartogrfi co estabelece entre pesquisa, interveno, clnica e poltica j ganhava expresso nos conceitos da AI que, desde os anos 50, foravam um interessante hibridismo entre psicanlise e poltica, a anlise do sintoma e a das instituies, tomando o problema da implicao como pedra de toque para todo o trabalho de interveno.

    A interveno sempre clnico-poltica: a contribuio metodolgica de Flix Guattari

    Guattari em 1964, seguindo a mesma direo, prope o con-ceito de transversalidade para problematizar os limites do setting clnico, defi nindo esse conceito como um aumento dos quanta co-municacionais intra e intergrupos em uma instituio. Fazer anlise , cada vez mais, o trabalho de desestabilizao do que se apresen- ta tendo a unidade de uma forma ou de um campo: o institudo, o indivduo, o social. Do uno ao coletivo, esta a direo da anlise. Direo a qu? No ao agrupamento, ao conjunto de indivduos, nem unidade do diverso, mas ao coletivo como dinmica de contgio em um plano hiperconectivo ou de mxima comunicao.

    Na clnica, por exemplo, a operao de transversalizao se apresenta num duplo registro: (1) o que a clnica acolhe , por um lado, um sujeito com sua histria, sua forma identitria, suas verda-des e memria, mas no s isso. Acolhe tambm, por outro lado, um

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    processo de subjetivao em curso que vai se realizando pelas frestas das formas, l onde o intempestivo se apresenta, impulsionando criao. Nesse sentido, h sempre um quantum de transversalizao com que se pode contar, j que a forma defi nitiva (a identidade, a individualidade, a verdade, o fato histrico acabado) apenas uma idealidade ou meta a ser alcanada; (2) a clnica, por sua vez, ela mesma um caso de transversalizao, isto , seu trabalho se d justamente desta maneira. A interveno clnica deve ser entendida como uma operao de transversalizao que se realiza na zona de vizinhana ou de indefi nio entre dois processos os processos de subjetivao que se passam na relao analista-analisando e aqueles que se passam na relao ente a clnica e o no clnico: a clnica e a poltica, a clnica e a arte, a clnica e a fi losofi a, etc. (a transdisciplinaridade da clnica). Falar, portanto, de coefi cientes de transversalizao da clnica intensifi car/apostar mais, ou menos, nos devires que esto sempre presentes em diferentes graus de aber- tura e potncias variadas de criao.

    Com o conceito de transversalidade, Guattari prepara a defi - nio do mtodo cartogrfi co segundo o qual o trabalho da anlise a um s tempo o de descrever, intervir e criar efeitos-subjetividade. importante notar que o conceito de transversalidade se apresenta tambm tal qual o de implicao como uma amplifi cao per-turbadora do conceito de transferncia em Freud.

    Como j dissemos, a transferncia, tradicionalmente, des-creve a dinmica bidimensional ou intersubjetiva em que afetos e representaes atravessam de um polo subjetivo a outro, num mo-vimento de rebatimento. O movimento institucionalista prope um sentido coletivo ou institucional para o conceito de transferncia, descrevendo outra dinmica. Guattari, em suas intervenes clni- co-institucionais, identifi cou esta dinmica coletiva como a de um grupo sujeito cuja comunicao se d de modo multidimensional. Operar na transversalidade considerar esse plano em que a rea-lidade toda se comunica. A cartografi a o acompanhamento do traado desse plano ou das linhas que o compem. A tecedura desse

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    plano no se faz de maneira s vertical e horizontal, mas tambm transversalmente.

    O tema da transversalidade se desdobra no tema das redes que, neste primeiro momento, Guattari descrevia como redes co- municacionais. No entanto, pela importncia que assume esta dimenso reticular na experincia clnico-poltica que a defi nio do mtodo vai modulando. Guattari desdobra a anlise da dinmica comunicacional nas instituies colocando, lado a lado, o que distinto, tornando grupo sujeito e grupo sujeitado como dinmicas que diferem, mas no se separam. O que interessa o que se passa entre os grupos, nos grupos, no que est para alm e aqum da for-ma dos grupos, entre as formas ou no atravessamento delas. A rede conecta termos, dando consistncia ao espao intermedirio. Os grupos, as instituies e as organizaes so redes de inter-relaes, isto , relaes entre relaes. O mtodo , ento, a cartografi a do intermedirio.

    O mtodo da cartografi a tem como direo clnico-poltica o aumento do coefi ciente de transversalidade, garantindo uma comuni-cao que no se esgota nos dois eixos hegemnicos de organizao do socius: o eixo vertical que organiza a diferena hierarquicamente e o eixo horizontal que organiza os iguais de maneira corporativa. A natureza poltica do mtodo cartogrfi co diz respeito ao modo como se intervm sobre a operao de organizao da realidade a partir dos eixos vertical e horizontal. Grosso modo, podemos dizer que a operao de organizao hegemnica/majoritria do socius se d na forma da conexo entre variveis menores em oposio a variveis maiores. Por outro lado, h outra operao, dita operao transversal, que conecta devires minoritrios.

    Esses dois modos de operar (majoritrio e minoritrio) podem ser pensados a partir da distino entre um sistema de coordenadas que organizam a realidade segundo um metro-padro e uma operao de transversalizao que cria a diferenciao do socius.

    O diagrama a seguir nos ajuda a traar as duas operaes:

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    variveis maiores transversalizao operao de diferenciao ou devir minoritrio

    sistema de rebatimento para construo do metro-padro

    variveis menores

    A operao de organizao hegemnica do socius se faz pela oposio entre os eixos vertical e horizontal (coordenadas hege-mnicas), realizando o sistema de rebatimento ou de superposio das variveis maiores para a constituio de um metro-padro que equaliza a realidade. Assim, por essa operao, h uma equiva-lncia funcional entre homem, adulto, heterossexual, branco, rico, variveis maiores (dispostas no eixo vertical) que se rebatem umas sobre as outras, gerando uma existncia ideal em oposio a qual se defi ne mulher, criana, homossexual, negro, pobre, variveis menores (eixo horizontal). Nesse sistema de rebatimento, uma mesma operao que se realiza. Essa operao hierarquiza opondo as diferenas (homem x mulher, adulto x criana, branco x negro, heterossexual x homossexual, rico x pobre) e homogeneza, seja criando um ideal pelo rebatimento das variveis maiores entre si (homem-adulto-branco-heterossexual-rico), seja pela identifi cao e sujeio dos diferentes do ideal (mulher submetida ao homem, criana ao adulto, negro ao branco, homossexual ao heterossexual, pobre ao rico).

    Por outro lado, os fragmentos do socius (as variveis) podem se conectar gerando um desarranjo do sistema de organizao da realidade. Nesse caso, as variveis menores se tornam o meio (o me- dium) de um devir minoritrio dotado de potncia heterogentica ou de diferenciao (o que Simondon designou de energia potencial).

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    No lugar do rebatimento ou da equalizao, um dos fragmentos do socius se apresenta, na situao, como um vetor de caotizao que gera novos arranjos da realidade. Guattari chamou estes movimentos de caosmose: desarranjos e novos arranjos de produo da realidade.

    Essas duas operaes de rebatimento e de caotizao , no entanto, guardam algo em comum que o seu funcionamento em rede de conexes. Mas preciso distinguir as redes quentes das redes frias. A noo de rede nessa sua dupla inscrio no contempor-neo rede fria e rede quente nos fora a refl etir sobre a operao de uma rede fria, de cima para baixo, isto , rede que, apesar de funcionar por hiperconectividade e integrao, possui centro vazio identifi cado, seja ao capital enquanto regime de homogeneizao ou equivalncia universal, seja ao metro-padro resultante do jogo de rebatimento e de sujeio caracterstico da organizao hegemnica do socius (Passos & Benevides, 2004). Do ponto de vista clnico- poltico, a interveno s possvel nos momentos quentes da rede, quando o sistema de rebatimento se desarranja, permitindo devires minoritrios atravs das variveis menores.

    A interveno como caminho

    Defender que toda pesquisa interveno exige do cartgrafo um mergulho no plano da experincia, l onde conhecer e fazer se tornam inseparveis, impedindo qualquer pretenso neutralidade ou mesmo suposio de um sujeito e de um objeto cognoscentes prvios relao que os liga. Lanados num plano implicacional, os termos da relao de produo de conhecimento, mais do que articu-lados, a se constituem. Conhecer , portanto, fazer, criar uma reali-dade de si e do mundo, o que tem consequncias polticas. Quando j no nos contentamos com a mera representao do objeto, quando apostamos que todo conhecimento uma transformao da realidade, o processo de pesquisar ganha uma complexidade que nos obriga a forar os limites de nossos procedimentos metodolgicos. O mtodo, assim, reverte seu sentido, dando primado ao caminho que vai sendo

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    traado sem determinaes ou prescries de antemo dadas. Restam sempre pistas metodolgicas e a direo tico-poltica que avalia os efeitos da experincia (do conhecer, do pesquisar, do clinicar, etc.) para da extrair os desvios necessrios ao processo de criao.

    Tal processo se d por uma dinmica de propagao da fora potencial que certos fragmentos da realidade trazem consigo. Propa-gar ampliar a fora desses germens potenciais numa desestabiliza-o do padro. Nesse sentido, conhecer a realidade acompanhar seu processo de constituio2, o que no pode se realizar sem uma imerso no plano da experincia. Conhecer o caminho de constitui-o de dado objeto equivale a caminhar com esse objeto, constituir esse prprio caminho, constituir-se no caminho. Esse o caminho da pesquisa-interveno.

    Referncias

    HESS, H & SAVOYE, A. LAnalyse Institutionnelle. Paris: PUF, 1993.

    LOURAU, R. Campo socioanaltico. In: ALTO, S. (org.). Ren Lourau, Analista em tempo integral. Campinas: Hucitec, 2004a, p. 224-245.

    ______. Implicao-transduco. In: ALTO, S. (org.). Ren Lourau, Analista em tempo integral. Campinas: Hucitec, 2004b, p. 186-198.

    ______. Objeto e mtodo da Anlise Institucional. In: ALTO, S. (org.). Ren Lourau, Analista em tempo integral. Campinas: Hucitec, 2004c, p. 66-86.

    PASSOS, E & BENEVIDES, R. A construo do plano da clnica e o conceito de transdisciplinaridade. Psicologia: Teoria e Pesquisa. Jan-Abr 2000, vol. 16, n. 1, p. 71-79.

    ______. Clnica, poltica e as modulaes do capitalismo. Lugar Comum, n. 19-20, jan-jun, 2004, p. 159-171.

    SIMONDON, G. Lindividuation psychique et colletive. Paris: Aubier, 1989.

    2 Cf. L. Pozzana e V. Kastrup, Cartografar acompanhar processos, nesta coletnea.

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    Pista 2

    O FUNCIONAMENTO DA ATENO NO TRABALHO DO CARTGRAFO

    Virgnia Kastrup*

    A cartografi a um mtodo formulado por Gilles Deleuze e Flix Guattari (1995) que visa acompanhar um processo, e no re-presentar um objeto. Em linhas gerais, trata-se sempre de investigar um processo de produo. De sada, a ideia de desenvolver o mtodo cartogrfi co para utilizao em pesquisas de campo no estudo da subjetividade se afasta do objetivo de defi nir um conjunto de regras abstratas para serem aplicadas. No se busca estabelecer um caminho linear para atingir um fi m. A cartografi a sempre um mtodo ad hoc. Todavia, sua construo caso a caso no impede que se procurem estabelecer algumas pistas que tm em vista descrever, discutir e, sobretudo, coletivizar a experincia do cartgrafo.

    A pista que tomamos aqui diz respeito ao funcionamento da ateno durante o trabalho de campo. No se trata de buscar uma teoria geral da ateno. A ideia que, na base da construo de conhecimento atravs de um mtodo dessa natureza, h um tipo de funcionamento da ateno que foi em parte descrito por S. Freud (1912/1969) com o conceito de ateno fl utuante e por H. Bergson (1897/1990) com o conceito de reconhecimento atento. Atravs do recurso a esses conceitos, bem como a referncias extradas do

    * Agradeo aos companheiros do grupo de pesquisa Cognio e Subjetividade e em especial aos amigos Andr do Eirado e Eduardo Passos, pelas discusses e sugestes que acompanharam a elaborao deste texto. O texto resultado do projeto de pesquisa Ateno e inveno na produo coletiva de imagens, apoiado pelo CNPq.

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    campo das cincias cognitivas contemporneas, o objetivo analisar a etapa inicial de uma pesquisa, tradicionalmente denominada co-leta de dados. Ocorre que, do ponto de vista dos recentes estudos acerca da cognio numa perspectiva construtivista, no h coleta de dados, mas, desde o incio, uma produo dos dados da pesquisa. A formulao paradoxal de uma produo dos dados visa ressaltar que h uma real produo, mas do que, em alguma medida, j estava l de modo virtual1.

    H dois pontos a serem examinados. O primeiro diz respeito prpria funo da ateno, que no de simples seleo de infor-maes. Seu funcionamento no se identifi ca a atos de focalizao para preparar a representao das formas de objetos, mas se faz atravs da deteco de signos e foras circulantes, ou seja, de pontas do processo em curso. A deteco e a apreenso de material, em princpio desconexo e fragmentado, de cenas e discursos, requerem uma concentrao sem focalizao, indicada por Gilles Deleuze no seu Abcdaire atravs da ideia de uma ateno espreita, cujo funcionamento vamos procurar elucidar. O segundo ponto que a ateno, enquanto processo complexo, pode assumir diferentes fun-cionamentos: seletivo ou fl utuante, focado ou desfocado, concentrado ou disperso, voluntrio ou involuntrio, em vrias combinaes como seleo voluntria, fl utuao involuntria, concentrao desfocada, focalizao dispersa, etc. Embora as variedades atencionais coe-xistam de direito, elas ganham organizaes e propores distintas na confi gurao de diferentes polticas cognitivas (Kastrup, 2005).

    Chamamos de poltica cognitiva um tipo de atitude ou de rela-o encarnada, no sentido de que no consciente, que se estabelece com o conhecimento, com o mundo e consigo mesmo. Tomar o mun-

    1 O conceito de virtual empregado aqui no sentido que lhe confere H. Bergson (1897/1990; 1919/1990). O virtual se atualiza segundo um processo de cria-o e de diferenciao. Nesse sentido, distingue-se do possvel, que se realiza atravs de um processo de limitao e de semelhana. Para a distino deta-lhada entre virtual-atual e possvel-real cf. Deleuze (1966). Um bom exemplo da atualizao de uma virtualidade como produo de algo que j estava l a produo das mos de um pianista atravs de repetidos treinos.

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    do como fornecendo informaes prontas para serem apreendidas uma poltica cognitiva realista; tom-lo como uma inveno, como engendrado conjuntamente com o agente do conhecimento, um ou-tro tipo de poltica, que denominamos construtivista. Nesse sentido, realismo e construtivismo no so apenas posies epistemolgicas abstratas, mas constituem atitudes investigativas diversas, reveladas, conforme veremos, em diferentes atitudes atencionais. Trata-se aqui de ressaltar que a ateno cartogrfi ca ao mesmo tempo fl utuante, concentrada e aberta habitualmente inibida pela preponderncia da ateno seletiva. O problema do aprendizado da ateno do car-tgrafo tambm um caso de criao do que j estava l, tal como aparece na noo de aprendizado por cultivo, formulada por Depraz, Varela e Vermersch (2003).

    Nos estudos sobre ateno realizados por W. James (1890/1945), que so at hoje referncia nessa rea de investigao, a seleo considerada sua funo por excelncia. A seleo operada pela ateno movida pelo interesse e concorre para a ao efi caz. Esse modo de compreender a ateno, como possuindo uma funo seletiva orientada pelo interesse e aplicada na ao, foi assimilado pela grande maioria das abordagens psicolgicas, incidindo ainda hoje sobre os recentes estudos sobre o TDA Transtorno de Dfi cit de Ateno. Na atualidade, o exerccio da fora da vontade evoca-do para o tratamento de tais quadros cognitivos que, no contexto de certas tcnicas teraputicas e, aliado a medicamentos, confi gura o que vem sendo chamado de biologia moral da ateno (Caliman, 2006; Lima, 2004). Todavia, a questo da ateno do cartgrafo coloca um outro problema, que diz respeito a um funcionamento no recoberto pela funo seletiva. O prprio James reconheceu a fl utuao da cons-cincia e da ateno ao propor o conceito de fl uxo do pensamento. James comparou o fl uxo do pensamento ao voo de um pssaro que desenha o cu com seus movimentos contnuos, pousando de tempos em tempos em certo lugar. Voos e pousos diferem quanto veloci-dade da mudana que trazem consigo (James, 1890/1945, p. 231). O pouso no deve ser entendido como uma parada do movimento,

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    mas como uma parada no movimento. Voos e pousos conferem um ritmo ao pensamento, e a ateno desempenha a um papel essencial.

    A entrada do aprendiz de cartgrafo no campo da pesquisa coloca imediatamente a questo de onde pousar sua ateno. Em geral ele se pergunta como selecionar o elemento ao qual prestar ateno, dentre aqueles mltiplos e variados que lhe atingem os sentidos e o pensamento. A pergunta, que diz respeito ao momento que precede a seleo, seria melhor formulada se evidenciasse o problema da prpria confi gurao do territrio de observao, j que, conforme apontou M. Merleau-Ponty (1945/1999), a ateno no seleciona elementos num campo perceptivo dado, mas confi gura o prprio campo perceptivo. Uma outra questo diz respeito a como prossegue o funcionamento atencional aps o ato seletivo. As duas perguntas que incidem sobre o antes e o depois da seleo indicam a com-plexidade e a densidade da chamada coleta de dados, sublinhando a dimenso temporal da ateno do cartgrafo, a produo dos dados da pesquisa e o alcance de uma pesquisa construtivista.

    Dentre as contribuies tericas sobre variedades atencio- nais envolvidas no estudo da subjetividade, destaca-se a de S. Freud sobre a ateno fl utuante, apresentada no conjunto de seus estudos sobre tcnica. No texto Recomendaes aos mdicos que exercem a Psicanlise, Freud (1912/1969) aponta que a mais importante recomendao consiste em no dirigir a ateno para algo especfi co e em manter a ateno uniformemente suspensa. Freud argumenta que o grande perigo da escuta clnica a seleo do material trazido pelo paciente, operada com base em expectativas e inclinaes do analista, tanto de natureza pessoal quanto terica. Atravs da seleo, fi xa-se um ponto com clareza particular e negligenciam-se outros. A indesejvel seleo envolve uma ateno consciente e deliberada- mente concentrada. Mas Freud observa com preciso que ao efetuar a seleo e seguir suas expectativas, estar arriscado a nunca desco- brir nada alm do que j sabe; e, se seguir as inclinaes, certamente falsifi car o que possa perceber (Freud, 1912/1969, p. 150). Para Freud, a ateno consciente, voluntria e concentrada, o grande

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    obstculo descoberta. Por outro lado, recomenda a utilizao de uma ateno onde a seleo se encontra inicialmente suspensa, cuja defi nio prestar igual ateno a tudo. Essa ateno aberta, sem focalizao especfi ca, permite a captao no apenas dos elementos que formam um texto coerente e disposio da conscincia do ana-lista, mas tambm do material desconexo e em desordem catica.

    Em seu sentido mais conhecido, a ateno fl utuante a regra tcnica que, do lado do analista, corresponde regra de associao livre da parte do analisando, permitindo a comunicao de incons-ciente a inconsciente (Laplanche e Pontalis, 1976). O uso da ateno fl utuante signifi ca que, durante a sesso, a ateno do analista fi ca aparentemente adormecida, at que subitamente emerge no discurso do analisando a fala inusitada do inconsciente. Em seu carter des-conexo ou fragmentado, ela desperta a ateno do analista. Mesmo que no seja capaz de compreend-la, o analista lana tais fragmentos para sua prpria memria inconsciente at que, mais frente, eles possam vir a compor com outros e ganhar algum sentido. Falando de um inconsciente receptor, a nfase do texto freudiano recai na ateno auditiva.

    Fazendo um balano acerca da contribuio do conceito de ateno fl utuante para a discusso da ateno do cartgrafo, desta- ca-se a proximidade quanto nfase na suspenso de inclinaes e expectativas do eu, que operariam uma seleo prvia, levando a um predomnio da recognio e consequente obturao dos elementos de surpresa presentes no processo observado. Alm disso, a aten-o seletiva cede lugar a uma ateno fl utuante, que trabalha com fragmentos desconexos. Por outro lado, identifi ca-se um limite da formulao freudiana, que voltada unicamente para a ateno auditiva. A utilizao pelo cartgrafo de outras modalidades sen-soriais alm da audio, como o caso da viso, exigir explorar um desdobramento da contribuio freudiana. Outro limite diz respeito ao aprendizado da ateno fl utuante, que no recebe for-mulao especfi ca por parte de Freud e que se reveste de especial importncia para o avano do mtodo cartogrfi co.

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    O estudo da ateno desenvolvido no campo das cincias cognitivas contemporneas, mais especifi camente nos estudos da conscincia, tambm contribui para o entendimento da ateno do cartgrafo. Seguindo uma abordagem fenomenolgica, Pierre Ver-mersch (2002a; 2002b) destaca o carter de mobilidade da ateno, a qual defi nida como o fundo de fl utuao da cognio. no estudo da ateno que encontramos a possibilidade de pensar a modulao da intencionalidade. Segundo Vermersch, a ateno opera mutaes que modifi cam a estrutura intencional da conscincia. O conceito de intencionalidade est na base do entendimento da cognio como re-lao sujeito-objeto, mas o estudo da ateno revela uma nova faceta da conscincia, no como intencionalidade, mas como domnio de mutaes, inclusive da prpria intencionalidade. O interessante nessa formulao situar a fl utuao como uma caracterstica da ateno em geral, e no, como Freud, como um tipo especfi co de ateno a fl utuante. Pelo caminho das cincias cognitivas, a ateno, como fl utuao de base da cognio, pode explicar as duas modalidades anteriormente citadas a seletiva e a fl utuante. A partir de sua plas-ticidade e de sua capacidade de transformao atravs do exerccio, possvel abordar tambm o problema do aprendizado da ateno (Kastrup, 2004).

    O conceito de suspenso foi formulado por E. Husserl no contexto do mtodo da reduo fenomenolgica, que signifi ca a colocao entre parnteses dos juzos sobre o mundo. A suspenso constitui uma atitude de abandono, ainda que temporrio, da atitude recognitiva, dita natural pela fenomenologia. Trata-se de uma suspen-so da poltica cognitiva realista, onde o conhecimento se organiza a partir da relao sujeito-objeto.

    Depraz, Varela e Vermersch (2003) desenvolvem o que de- nominam de pragmtica fenomenolgica. Sublinham que Husserl formulou teoricamente o mtodo da reduo, sem, contudo, ter se colocado o problema de sua implementao concreta. Os autores argumentam que preciso desenvolver um verdadeiro mtodo de pesquisa da experincia e para isso descrevem e discutem algumas

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    prticas como a meditao budista, a entrevista de explicitao, a viso estereoscpica e a sesso de psicanlise. Comentando a ltima, observam que a suspenso um gesto cognitivo que refreia o fl uxo do pensamento do analista, para que este possa seguir o discurso do paciente. Realizada no incio da sesso, a suspenso no se mantm at o fi nal. Durante a sesso, refl exes ou emoes do analista emer-gem, atravessando o campo cognitivo, e devem ser reiteradamente colocadas de lado durante o processo de escuta. Outro elemento que interrompe a suspenso a polarizao dos pensamentos do analista por alguma formulao terica, que evocada pelo ma-terial trazido pelo analisando. Ressalta-se ento um movimento de vaivm, articulando os sucessivos gestos de suspenso e as interrup-es subsequentes. Apesar de tais difi culdades na prtica concreta, a ateno fl utuante fi ca colocada como um horizonte tcnico. Outro ponto destacado que a escuta clnica situada, e isso num duplo contexto: o microcontexto da sesso e o macrocontexto do processo analtico como um todo. No caso da pesquisa cartogrfi ca, pode-se situar o macrocontexto como a dinmica de transformao do pro-blema geral da pesquisa e os microcontextos como a autodefi nio de microproblemas ao longo das consecutivas visitas ao campo. Esses dois contextos funcionam de acordo com uma lgica recursiva, engendrando-se de modo recproco.

    Depraz, Varela e Vermersch apontam que o gesto de sus-penso desdobra-se em dois destinos da ateno. O primeiro indica uma mudana da direo da ateno. Habitualmente voltada para o exterior, ela se volta para o interior. O segundo destino implica uma mudana da qualidade ou da natureza da ateno, que deixa de buscar informaes para acolher o que lhe acomete. A ateno no busca algo defi nido, mas torna-se aberta ao encontro. Trata-se de um gesto de deixar vir (letting go). Tanto a ateno a si quanto o gesto atencional de abertura e acolhimento ocorrem a partir da suspenso. Sendo assim, a suspenso, a redireo e o deixar vir no constituem trs momentos sucessivos, mas se encadeiam, se conservando e se entrelaando.

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    No caso da cartografi a, a mera presena no campo da pesquisa expe o cartgrafo a inmeros elementos salientes, que parecem convocar a ateno. Muitos deles no passam, entretanto, de meros elementos de disperso, no sentido em que produzem um sucessivo deslocamento do foco atencional. Portanto, h que haver cuidado, pois, como afi rmou Freud, a suspenso deve garantir que, no princpio, tudo seja digno de ateno. Mas para Freud a ateno fl utuante segue com o ajuste fi no da sintonia inconsciente. So as manifestaes do inconsciente que despertam a ateno aberta do analista, suscitando o gesto de prestar ateno. A abertura da ateno do cartgrafo tambm no signifi ca que ele deva prestar ateno a tudo o que lhe acomete. A chamada redireo , nesse sentido, uma resistncia aos dispersores.

    Numa linguagem fenomenolgica, a suspenso o ato de desmontagem da atitude natural, que o regime cognitivo organizado no par sujeito-objeto e que confi gura a poltica cognitiva realista. importante sublinhar que, quando sob suspenso, a ateno que se volta para o interior acessa dados subjetivos, como interesses prvios e saberes acumulados, ela deve descart-los e entrar em sintonia com o problema que move a pesquisa. A ateno a si , nesse sentido, concentrao sem focalizao, abertura, confi gurando uma atitude que prepara para o acolhimento do inesperado. A ateno se desdobra na qualidade de encontro, de acolhimento. As experincias vo ento ocorrendo, muitas vezes fragmentadas e sem sentido imediato. Pontas de presente, movimentos emergentes, signos que indicam que algo acontece, que h uma processualidade em curso. Algumas concor-rem para modular o prprio problema, tornando-o mais concreto e bem colocado. Assim, surge um encaminhamento de soluo ou uma resposta ao problema; outras experincias se desdobram em microproblemas que exigiro tratamento em separado.

    Signos so acolhidos numa atitude atencional de ativa re-ceptividade. So especialmente interessantes quando expem um problema e foram a pensar. Nesse caso, constituindo o que F. Varela (1995) chamou de breakdown, eles exigem que a ateno se

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    detenha, produzindo uma desacelerao de seu movimento. A ateno tateia, explora cuidadosamente o que lhe afeta sem produzir compre-enso ou ao imediata. Tais exploraes mobilizam a memria e a imaginao, o passado e o futuro numa mistura difcil de discernir. Todos esses aspectos caracterizam o funcionamento da ateno do cartgrafo durante a produo dos dados numa pesquisa de campo. Um ponto no abordado por Depraz, Varela e Vermersch (2003), e que tambm no havia sido por Freud, diz respeito ao funciona-mento da ateno aps esse momento de acolhimento do elemento problemtico. Conforme veremos, no trabalho operado pela ateno que podemos identifi car mais incisivamente a produo de dados de uma pesquisa e a dimenso construtivista do conhecimento.

    Quatro variedades da ateno do cartgrafo: o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento atento

    Tomando como ponto de partida a ideia de uma concentrao sem focalizao, parece ser possvel defi nir quatro variedades do funcionamento atencional que fazem parte do trabalho do cartgra-fo. So eles o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento atento.

    O rastreio um gesto de varredura do campo. Pode-se dizer que a ateno que rastreia visa uma espcie de meta ou alvo mvel. Nesse sentido, praticar a cartografi a envolve uma habilidade para lidar com metas em variao contnua. Em realidade, entra-se em campo sem conhecer o alvo a ser perseguido; ele surgir de modo mais ou menos imprevisvel, sem que saibamos bem de onde. Para o cartgrafo, o importante a localizao de pistas, de signos de pro-cessualidade. Rastrear tambm acompanhar mudanas de posio, de velocidade, de acelerao, de ritmo. O rastreio no se identifi ca a uma busca de informao. A ateno do cartgrafo , em princpio, aberta e sem foco, e a concentrao se explica por uma sintonia fi na com o problema. Trata-se a de uma atitude de concentrao pelo problema e no problema. A tendncia a eliminao da intermedia-o do saber anterior e das inclinaes pessoais. O objetivo atingir

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    uma ateno movente, imediata e rente ao objeto-processo, cujas caractersticas se aproximam da percepo hptica.

    A percepo hptica foi estudada no domnio do tato por G. Revesz (1950). O tato uma modalidade sensorial cujos receptores esto espalhados por todo o corpo e que possui a qualidade de ser uma prximo-recepo, sendo seu campo perceptivo equivalente zona de contato. Diferente da percepo ttil passiva, em que a es-timulao limitada ao tamanho do estmulo, a percepo hptica formada por movimentos de explorao do campo perceptivo ttil, que visam construir um conhecimento dos objetos. A percepo hptica ento um bloco ttil-sinestsico que envolve uma construo a partir de fragmentos sequenciais. Ela mobiliza a ateno e requer uma ampla memria de trabalho para que, ao fi m da explorao, haja uma sntese, cujo resultado um conhecimento do objeto (Hatwell, Streri e Gentaz, 2000).

    Estendendo o alcance do conceito a outros domnios senso-riais, Deleuze distingue a percepo hptica da percepo tica. A percepo tica se caracteriza pela organizao do campo em fi gura e fundo. A segregao autctone faz com que a forma salte do fun-do e instala uma hierarquia, uma profundidade no campo. Alm do dualismo fi gura-fundo, faz parte da percepo tica a organizao cognitiva no dualismo sujeito-objeto, que confi gura uma viso dis-tanciada, caracterstica da representao. O tico no remete apenas ao domnio visual, mas este, em funo de suas caractersticas, a dominante. J a percepo hptica uma viso prxima, em que no vigora a organizao fi gura-fundo. Os componentes se conectam lado a lado, se localizando num mesmo plano igualmente prximo. O olho tateia, explora, rastreia, o mesmo podendo ocorrer com o ouvido ou outro rgo. De todo modo, a distino mais importante aqui entre percepo hptica e percepo tica, e no entre os diferentes sentidos, como a viso, a audio e o tato. Para Deleuze, o movimento da percepo hptica se aproxima mais da explorao de uma ameba do que do deslocamento de um corpo no espao. O movimento da ameba regido por sensaes diretas, por aes de

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    foras invisveis como presso, estiramento, dilatao e contrao. No o movimento que explica a sensao, mas, ao contrrio, a elasticidade da sensao que explica o movimento (Deleuze, 1981, p. 30). Como uma antena parablica, a ateno do cartgrafo realiza uma explorao assistemtica do terreno, com movimentos mais ou menos aleatrios de passe e repasse, sem grande preocupao com possveis redundncias. Tudo caminha at que a ateno, numa ati-tude de ativa receptividade, tocada por algo.

    O toque sentido como uma rpida sensao, um pequeno vislumbre, que aciona em primeira mo o processo de seleo. A ideia de uma seleo independente do interesse foi tematizada por E. Husserl no conceito de notar, que diz respeito ao contato leve com traos momentneos ou com partes mais elementares que um objeto e que possuem fora de afetao. O que notado pode tornar-se fonte de disperso, mas tambm de alerta2. Algo se destaca e ganha relevo no conjunto, em princpio homogneo, de elementos observados. O relevo no resulta da inclinao ou deliberao do cartgrafo, no sendo, portanto, de natureza subjetiva. Tambm no um mero es-tmulo distrator que convoca o foco e se traduz num reconhecimento automtico. Algo acontece e exige ateno. O ambiente perceptivo traz uma mudana, evidenciando uma incongruncia com a situao que percebida at ento como estvel. signo de que h um pro-cesso em curso, que requer uma ateno renovadamente concentrada. O que se destaca no propriamente uma fi gura, mas uma rugosida-de, um elemento heterogneo. Trata-se aqui de uma rugosidade de origem exgena, pois o elemento perturbador provm do ambiente. Segundo a distino estabelecida por Suely Rolnik (1999; 2006), a subjetividade do cartgrafo afetada pelo mundo em sua dimenso de matria-fora, e no na dimenso de matria-forma. A ateno tocada nesse nvel, havendo um acionamento no nvel das sensaes, e no no nvel das percepes ou representaes de objetos.

    2 Para a classifi cao dos gestos em Husserl, cf. Vermersch, 2002a e 2002b e E. Husserl, De la sinthse passive. Grenoble, Jrme Milon, 1998.

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    Numa linguagem anglo-saxnica, a psicologia cognitiva denomina mismatch o fenmeno de irrupo de algo no campo per-ceptivo que instala uma situao de decalagem em relao ao estado cognitivo anterior. A decalagem signifi ca um desnvel na percepo presente. o mismatch que est na origem da captura refl exa, ime- diata e irrefl etida, da ateno (Mialet, 1999). A ateno do cartgrafo capturada de modo involuntrio, quase refl exo, mas no se sabe ainda do que se trata. Tem lugar uma reao de orientao. Como observado nos animais, os receptores sensoriais se voltam para a fonte da mudana. preciso ver o que est acontecendo.

    O toque pode levar tempo para acontecer e pode ter diferen- tes graus de intensidade. Sua importncia no desenvolvimento de uma pesquisa de campo revela que esta possui mltiplas entradas e no segue um caminho unidirecional para chegar a um fi m determi-nado. Atravs da ateno ao toque, a cartografi a procura assegurar o rigor do mtodo sem abrir mo da imprevisibilidade do processo de produo do conhecimento, que constitui uma exigncia positiva do processo de investigao ad hoc.

    O gesto de pouso indica que a percepo, seja ela visual, au-ditiva ou outra, realiza uma parada e o campo se fecha, numa espcie de zoom. Um novo territrio se forma, o campo de observao se reconfi gura. A ateno muda de escala. Segundo Vermersch (2002a), mudamos de janela atencional. No mbito dos estudos da ateno, a noo de janela atencional serve para marcar que existe sempre um certo quadro de apreenso. H um gesto que delimita um centro mais pregnante, em torno do qual se organiza momentaneamente um campo, um horizonte, enfi m, uma periferia. A janela constitui uma referncia espacial, mas no se limita a isso. Signifi ca, antes de tudo, uma referncia ao problema dos limites e das fronteiras da mobilidade da ateno. A tnica do conceito a dinmica da ateno, visto que h mobilidade no seio de cada janela e tambm passagem de uma janela para outras, que coexistem com a primeira, embora com um modo diferente de presena. Vermersch enumera cinco janelas-tipo, pautadas em suportes historicamente relacionados a prticas cognitivas, tcnicas e culturais. So elas a joia, a pgina do

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    livro, a sala, o ptio e a paisagem. A primeira uma janela micro, que funciona na escala da atividade do joalheiro, da bordadeira e do leitor minucioso. uma ateno que se caracteriza por uma atividade eminentemente focal. Sem se distribuir e percorrer outros espaos alm daquele visado, ela aumenta a magnitude do enquadramento e inibe as bordas do campo perceptivo. Sua traduo comportamental a cessao dos movimentos. Um de seus traos caractersticos que ela capaz de produzir o fenmeno de cegueira atencional (Mack e Rock, 1998), que consiste na eliminao absoluta do entorno, ou seja, do que est fora do foco. A segunda a janela-pgina, atravs da qual se faz uma entrada no campo perceptivo, seguida de movi-mentos de orientao, comportando j indcios de distribuio da ateno. A terceira a janela-sala, que j permite a ateno dividida. Comporta focalizao, mas tambm assimila uma multiplicidade de partes com graus de nitidez diferenciados. Aparece como ponto novo o movimento da cabea e do prprio corpo no espao. A janela-ptio tpica das atividades de deslocamento e orientao. Envolve detec- o e preponderante na atividade do caador. A janela-paisagem uma janela panormica, capaz de detectar elementos prximos e distantes e conect-los atravs de movimentos rpidos.

    Cada janela cria um mundo e cada uma exclui momentanea- mente as outras, embora outros mundos continuem copresentes. Cada visada atravs de uma janela d lugar, em sua escala, aos di-versos gestos atencionais, possibilitando tambm mudanas de nvel. Cabe sublinhar ainda que o movimento que chamamos de zoom no deve ser confundido com um gesto de focalizao. Apenas a janela- micro uma janela eminentemente focal. Quando a ateno pousa em algo nessa escala, h um trabalho fi no e preciso, no sentido de um acrscimo na magnitude a na intensidade, o que concorre para a reduo do grau de ambiguidade da percepo. De todo modo, preciso ressaltar que em cada momento na dinmica atencional todo o territrio de observao que se reconfi gura.

    O reconhecimento atento o quarto gesto ou variedade atencional. O que fazemos quando somos atrados por algo que

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    obriga o pouso da ateno e exige a reconfi gurao do territrio da observao? Se perguntamos o que isto? samos da suspenso e retornamos ao regime da recognio. A atitude investigativa do cartgrafo seria mais adequadamente formulada como um vamos ver o que est acontecendo, pois o que est em jogo acompanhar um processo, e no representar um objeto. preciso ento calibrar novamente o funcionamento da ateno, repetindo mais uma vez o gesto de suspenso.

    O que visamos com esta parada e como fi ca o funcionamento da ateno neste momento? H. Bergson (1897/1990) colocou essa questo, quando de sua discusso sobre o estudo da ateno promo-vido por T. Ribot3. A ateno havia ento sido defi nida como um movimento de deteno, mas Bergson argumenta que isso no solu-ciona o problema de seu funcionamento, mas apenas o coloca, pois cabe ento explicar o trabalho do esprito correspondente, ou seja, como a ateno funciona quando ela se detm (Bergson, 1897/1990, p. 80). Nessa direo, prope a distino entre o reconhecimento automtico e o reconhecimento atento. O reconhecimento autom-tico tem como base e como alvo a ao. Reconhecer um objeto saber servir-se dele. Os movimentos prolongam a percepo para obter efeitos teis e nos afastam da prpria percepo do objeto. Um exemplo transitar por uma cidade que conhecemos, onde nos deslocamos com efi cincia sem prestar ateno ao caminho percor-rido. Ora, no caso do cartgrafo, ntido que no pode se tratar de reconhecimento automtico, pois o objetivo justamente cartografar um territrio que, em princpio, no se habitava. No se trata de se deslocar numa cidade conhecida, mas de produzir conhecimento ao longo de um percurso de pesquisa, o que envolve a ateno e, com ela, a prpria criao do territrio de observao.

    Bergson afi rma que o reconhecimento atento tem como carac-terstica nos reconduzir ao objeto para destacar seus contornos sin- gulares. A percepo lanada para imagens do passado conservadas

    3 Theodor Ribot La Psychologie de lattention. Paris: Alcan, 1889.

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    na memria, ao contrrio do que ocorre no reconhecimento autom-tico, em que ela lanada para a ao futura. Bergson comenta sobre o reconhecimento atento: enquanto no reconhecimento automtico nossos movimentos prolongam nossa percepo para obter efeitos teis e nos afastam assim do objeto percebido, aqui, ao contrrio, eles nos reconduzem ao objeto para sublinhar seus contornos. Da o papel preponderante, e no mais acessrio, que as lembranas-imagens adquirem (Bergson, 1897/1990, p. 78). Bergson afi rma que sempre que o equilbrio sensrio-motor perturbado, h uma exaltao da memria involuntria. Constantemente inibida pela conscincia prti-ca e til do momento presente, isto , pelo equilbrio sensrio-motor, essa memria aguarda simplesmente que uma fi ssura se manifeste entre a impresso atual e o movimento concomitante para fazer passar suas imagens (Bergson, 1897/1990, p. 75). O interessante que o conceito de reconhecimento atento desmonta a noo tradicional de reconhecimento, pautada na ideia do rebatimento da percepo numa imagem prvia ou esquema correspondente. A originalidade da anlise bergsoniana apontar que o processo de reconhecimento no se d de forma linear, como um trajeto nico ou uma marcha em linha reta. No se faz atravs do encadeamento de percepes ou de associao cumulativa de ideias. O reconhecimento atento ocorre na forma de circuitos.

    De modo geral o fenmeno do reconhecimento entendido como uma espcie de ponto de interseo entre a percepo e a me-mria. O presente vira passado, o conhecimento, reconhecimento. No caso do reconhecimento atento, a conexo sensrio-motora inibida. Memria e percepo passam ento a trabalhar em conjunto, numa referncia de mo dupla, sem a interferncia dos compromissos da ao. Para Bergson, a memria no conserva a percepo, mas a duplica. A cada experincia com um objeto se formam dois regis-tros: a imagem perceptiva e a imagem mnsica virtual. Quando do reconhecimento atento, a memria dirige percepo imagens que se assemelham a ela. Se essas no a recobrem totalmente, novo apelo lanado a regies mais afastadas da memria e a operao pode prosseguir indefi nidamente.

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    O grfi co do reconhecimento atento (Bergson, 1897/1990, p. 83) se articula em torno do objeto percebido e sua imagem-lem- brana, virtual e correspondente4. A partir desses dois pontos, so desenhados circuitos sucessivos, cada vez mais amplos, forjando uma ideia de irradiao progressiva da ateno. O circuito mais amplo corresponde ao sonho. Segundo Bergson, nos circuitos acionados no reconhecimento atento todos os elementos, inclusive o prprio objeto percebido, mantm-se em estado de tenso mtua como num circuito eltrico, de sorte que nenhum estmulo partido do objeto capaz de deter sua marcha nas profundezas do esprito: deve sempre retornar ao prprio objeto (Bergson, 1897/1990, p. 83). A percepo no segue um caminho associativo operando por adies sucessi- vas e lineares. Atravs da ateno, ela aciona circuitos, se afastando do presente em busca de imagens e sendo novamente relanada imagem atual, que progressivamente se transforma. O tecido da me-mria comporta um folheado, assim como o do objeto, que se refaz a cada instante. H mltiplos nveis ou planos que tem como efeito desmontar o esquema do reconhecimento baseado no princpio de correspondncia. Atiado pela perturbao que opera uma fi ssura no domnio sensrio-motor, o reconhecimento atento realiza um traba-lho de construo. Percorrendo mltiplos circuitos em sucessivos relances, sempre incompletos, realiza diferentes construes, cujo resultado um reconhecime