A Bomba de Turim: a formação da memória no pós-guerra

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Eu gostaria de comentar algumas das contradições encontradas ao se rememorar e esquecer a guerra, a Resistência, a libertação. Observarei tais lembranças a partir de dois momentos no tempo: os anos do imediato pós-guerra, quando a memória começa a tomar forma, de maneira relu- tante e contraditória; e em nossos tempos, nos quais nova atenção e nova ênfase dadas à memória e às lembranças parecem revelar outras contradi- ções e outros conflitos. Usarei, sobretudo, lembranças não institucionais, relatos de pessoas comuns que viveram a experiência da guerra e da liber- tação e trazem consigo essa memória. Tomarei como ponto de partida de narrativas que ilustram a distân- cia, a lacuna criada pelo fim da guerra e do fascismo. A libertação não foi uma experiência apenas política, mas também física e corporal, uma ques- tão sensorial relacionada ao ar que as pessoas respiravam, ao alimento que comiam, à forma dos corpos. Umberto Turco, que construiu os cenários para o clássico Roma Cidade Aberta, de Roberto Rossellini, usou seu olhar cinematográfico para descrever as cores de Roma sob a ocupação alemã. Na verdade, ele principiou pelo contraste entre o absoluto preto e bran- co de Rossellini com as cores de outro filme de 1973 sobre Roma ocupa- da, Rappresaglia – Massacre em Roma, de George Pan Cosmatos. * Professor da Universidade La Sapientia, Roma (Itália).

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  • A Bomba de Turim:

    a formao da memria no ps-guerra

    Alessandro Portelli*

    Traduo: Celina Portocarrero

    ARTIGOS

    1. Cores e sabores

    Eu gostaria de comentar algumas das contradies encontradas ao serememorar e esquecer a guerra, a Resistncia, a libertao. Observarei taislembranas a partir de dois momentos no tempo: os anos do imediatops-guerra, quando a memria comea a tomar forma, de maneira relu-tante e contraditria; e em nossos tempos, nos quais nova ateno e novanfase dadas memria e s lembranas parecem revelar outras contradi-es e outros conflitos. Usarei, sobretudo, lembranas no institucionais,relatos de pessoas comuns que viveram a experincia da guerra e da liber-tao e trazem consigo essa memria.

    Tomarei como ponto de partida de narrativas que ilustram a distn-cia, a lacuna criada pelo fim da guerra e do fascismo. A libertao no foiuma experincia apenas poltica, mas tambm fsica e corporal, uma ques-to sensorial relacionada ao ar que as pessoas respiravam, ao alimento quecomiam, forma dos corpos. Umberto Turco, que construiu os cenriospara o clssico Roma Cidade Aberta, de Roberto Rossellini, usou seu olharcinematogrfico para descrever as cores de Roma sob a ocupao alem.Na verdade, ele principiou pelo contraste entre o absoluto preto e bran-co de Rossellini com as cores de outro filme de 1973 sobre Roma ocupa-da, Rappresaglia Massacre em Roma, de George Pan Cosmatos.

    * Professor da Universidade La Sapientia, Roma (Itlia).

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    Rappresaglia estava todo errado. Estava todo errado porque foiconcebido como um espetculo e Roma, naqueles dias, no eraespetacular, era triste. Roma era lvida, Roma era uma cidade ondeo uniforme da SS ou dos traioeiros puxa-sacos fascistas era umanota destoante, voc sabe do que estou falando? Era destoante,porque todo o resto era cinza, tinha a cor da tristeza que se espa-lhava pelo ar, que voc podia respirar como se o prprio arestivesse encharcado de tristeza, sabe? Aquela reconstruo ameri-cana estava preocupada com as intrigas polticas que aconteciamnos bastidores que podem ou no ser reais, mas o que realmen-te contava era aquela Roma sofredora, faminta... Era uma Romana qual voc via gente se arrastando pelos cantos, magra, triste,sabe? At os prdios parecia que a luz tinha ido embora esseno um sentimento de hoje, uma coisa que senti naquela po-ca... E durante todo aquele tempo Roma ficou daquele jeito: umacidade de tristeza. Os sinos no batiam como antes... quero dizer,Roma uma cidade onde voc acorda e os sinos esto batendo, uma celebrao, no ? E os pssaros, todas as coisas... Aqueleinverno foi terrvel em Roma; e aquele filme no passou esse cli-ma. (Umberto Turco, n. 1928, cineasta)1

    Voc via gente se arrastando pelos cantos, magra, triste, diz Um-berto Turco. O prximo depoimento que quero transcrever comea comesses corpos marcados pela fome e pela represso. Enquanto UmbertoTurco, um cineasta, fala de cores, Virginia Calanca, uma doceira, fala desabor e de comida. O fim da guerra marca uma rpida troca da penriapara o excesso: comer no apenas acabar com a fome, mas tambm aca-bar com a represso na qual uma aparncia ossuda e faminta tantouma conseqncia quanto uma metfora.

    Durante a guerra, costumvamos fazer bolos de castanha, vegetina usvamos o que estivesse disponvel no momento, figos secos,tremoos em vez de amndoas. Ento, logo que samos da guerra,

    1 Todos os registros originais das entrevistas citadas foram conservadas no Arquivo Sonoro FrancoCoggiola do Crculo Gianni Bosio de Roma. Em parnteses, indica-se a data de nascimento e profissodo entrevistado; para a data da entrevista e nome dos entrevistadores, ver anexo ao final do artigo.

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    em torno de 1944-45, as pessoas eram como posso dizer, ma-gras, esquelticas, precisando de gordura; e ento fazamos o quechamamos de Bomba de Turim: um bolo que como uma balade canho de gordura, feita com manteiga de cacau, ovos, licorStrega muito, muito bom. E voc no faz idia do quanto ven-damos daquele bolo, toneladas a Bomba de Turim, a palavracerta, bomba. Hoje em dia, as pessoas no comeriam aquilo nemse voc lhes desse de presente, mas naquela poca todo mundocomia aqueles enormes bolos de gordura, porque basicamenteaquilo era pura manteiga. (Virginia Calanca, n. 1925, doceira)

    Cor e sabor andavam juntas na narrativa de Laura Grifoni, que erauma criana na poca. Era como se os sabores tivessem cores a cor dalvida cidade pintada por Umberto Turco: o gosto do po, o po era cinza...cascas de batata, elas eram como uma massa marrom escuro... e mesmoassim ns as comamos... E ento, depois da guerra, os pacotes dos aliadostrouxeram o alivio, farinha de ovos que usvamos para fazer maravilhosasomeletes... e o melhor de tudo, leite em p, gomas de mascar, acar. Eu nun-ca tinha provado doces antes: tudo o que me lembro eram os bolos de casta-nha que tnhamos durante a guerra (Laura Grifoni, n. 1940, professora).

    2. Gramtica da memria

    Os semilogos russos Jurij M. Lotman e Boris A. Uspenskij escreveramnum texto clssico:

    A cultura exclui sistematicamente alguns textos de sua esfera. Ahistria da destruio de textos, de sua excluso das reservas damemria coletiva desenrola-se em paralelo histria da criaode novos textos. [...] A cultura essencialmente dirigida contra oesquecimento; ela derrota o esquecimento transformando-o nummecanismo de reminiscncia.

    Podemos, portanto, imaginar que o volume de memria cole-tiva tem algumas limitaes que regulam a substituio de algunstextos por outros. Em alguns casos, entretanto, a eliminao dealguns textos torna-se uma condio necessria para a existncia

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    de outros textos, em virtude de sua incompatibilidade semntica.(Lotman e Uspenskij, 1973, p. 47)

    Lotman e Uspenskij concebem a memria cultural no como umdepsito de informaes e sim como um espao em constante evoluoe mudana, no qual o esquecimento se torna uma funo da lembrana.De um lado, temos o limitado volume da memria: precisamos esque-cer algumas coisas a fim de nos lembrarmos de algumas outras. Do ou-tro, temos um conflito de interesses: memrias mutuamente incompat-veis so filtradas e exterminadas para criar um espao de tempo quetenha pelo menos a aparncia de coerncia e significado.

    A necessria abstrao de Lotman e Uspenskij baseia-se numa dico-tomia: textos que so lembrados versus textos que so esquecidos; algunstextos so esquecidos a fim de que outros possam ser lembrados. Amemorizao da guerra, da resistncia, e das conseqncias da guerra,entretanto, complicam esse padro ao contemplar lembranas que so, aomesmo tempo, cruciais demais para serem esquecidas e ainda assim por de-mais traumticas e controversas para serem lembradas. Usando uma ex-presso de Toni Morrison em Amada (Beloved), algumas histrias no po-dem nem ser passadas adiante nem passadas adiante. Por um lado, elasso uma referncia importante para a identidade social e pessoal e, poroutro, suas contradies perturbam a construo de uma memria pac-fica e totalmente coerente. Lembrar e esquecer no mais se dividem comclareza em textos alternativos; melhor dizendo, esto to intimamenteenvolvidos nos mesmos textos que no podem mais ser separados.

    Estamos, ento, diante do que se poderia descrever como memriaparadoxal: uma recordao na qual o que lembrado e o que esquecidono se situam em textos separados, porm na qual o ato de lembrar e oato de esquecer so mutuamente funo e apoio um do outro, dentro domesmo texto. Lembrar pode ser uma forma de esquecer e no ato de es-quecer pode subsistir uma lembrana inesquecvel.

    3. Rememorao pela negao

    Voltemos a Virginia Calanca e sua histria da Bomba de Turim. A pr-pria palavra, bomba, diz ela, acrescentando que a Bomba de Turim era

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    uma bala de canho. O eco das bombas e balas de canho reais ainda es-tava no ar e j a prpria palavra havia passado de literal a metafrica. Aguerra tinha acabado, as pessoas recomeavam a viver e a aproveitar avida, uma bomba no era mais um instrumento de morte e destruio esim um smbolo de abundncia e poder mais uma vez, uma rpida mudan-a, de penria para excesso. No levaria muito tempo para que a palavraBiquini deixasse de evocar testes nucleares para designar uma imagematmica de nova sensualidade; na Itlia, uma explosiva onomatopia,boom, iria definir os anos de nova prosperidade econmica. Esse irni-co uso das palavras da guerra e da morte para designar paz, prosperidade,fartura e desejo inscreve-se numa estratificao de significados: por umlado, os novos significados apagam os antigos, por outro, nas freqnciasmais baixas, eles as evocam.

    Outro exemplo vem de Terni, a cidade industrial 60 milhas ao nortede Roma, que sofreu bombardeios pesados na Segunda Guerra Mundial.O narrador, Augusto Cuppini, metalrgico e msico, descreve uma expe-rincia comum e intensamente lembrada: o frenesi popular pela dana,conseqncia e metfora da liberao. Uma vez mais, o veculo da met-fora era o corpo; uma vez mais o tema foi a sbita troca do desespero peloexcesso e, novamente, na euforia do que o narrador chama de loucura,podemos discernir um lado sombrio.

    Depois da guerra, ficamos todos loucos, no foi? Todo mundodanando pelas plataformas, em vez de reconstruir os prdios...ficamos todos loucos. Eu tambm estava louco, porque ficavapor ali para brincar... mulheres, garotas uma carnificina! Da eudigo, estvamos perdendo a cabea, tudo de novo; depois da li-bertao, foi um trauma, quero dizer, sentimos que era querodizer: at que enfim! (Augusto Cuppini, n. 1911, operrio )

    Depois da libertao, foi um trauma, disse Cuppini. E acresentouuma carnificina macello em italiano, um termo genrico para desor-dem e desgoverno, mas tambm a palavra que usada todo o tempo, numsentido bastante especfico e literal, para descrever bombardeios e ataquesareos. A ligao percebida com bastante clareza no relato de um outrometalrgico de Terni, com outra metfora para exploso: Mesmo ali, nomeio de todo aquele entulho e runas, com os cadveres enterrados ali

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    embaixo, havia um boom de msica e dana (Ambrogio Filipponi, n.1930, gemetra).2

    Essa uma figura de profunda e extraordinria ambigidade. Porum lado, uma imagem do triunfo da vida sobre a morte (at que en-fim!), por outro, a imagem da negao total: a presena da morte embai-xo do renascimento da vida relegada s camadas mais baixas e profun-das da memria e da conscincia. E l permanece. Talvez, para recomeara viver, fosse necessrio enterrar a conscincia da morte; uma comunida-de no consegue enfrentar o futuro se estiver obcecada pelo passado. Anegao, entretanto, deixa marcas, um no articulado sentimento de cul-pa. E essa a razo pela qual somente aqueles que trazem a viso da mor-te em seus olhos, ou em duas roupas, so confrontados com uma barreirade indiferena e rejeio.

    De forma mais dramtica, eis a experincia de muitos sobreviventesdo Holocausto. Havia muitos, mesmo entre ns, judeus, diz PieroTerracina, que no queriam ouvir. No princpio eles perguntavam quaisas novidades e tudo, mas ento... Depois, houve um renascer de interes-se, uma vontade de saber e tudo mais. Mas acho que isso deve ter aconte-cido pelo menos dez anos depois (Piero Terracina, n. 1928, fazendeiro,sobrevivente de Auschwitz). Como sinalizou o historiador Enzo Colloti(2005), essa foi tambm a experincia de antigos prisioneiros de guerra edos exilados das fronteiras da stria e da Iugoslvia. O silncio que os cer-cava no era apenas ideolgico: A Itlia do ps-guerra no era surda ape-nas para a sua dor, escreve ele; a histria da sociedade italiana depoisdo fascismo fez-se com muitos silncios e muitas negaes.

    A recusa em ouvir o oposto do esquecimento: ela , muito mais,um exorcismo de uma lembrana que no pode ser encarada ou apagada.Como escreveu a lder comunista Nadia Spano (2005, p. 108-9) em suaautobiografia, as mulheres no queriam esquecer e, ainda que estivessemcansadas dos horrores, queriam olhar para trs, queriam criar uma vida

    2 Sobre o uso da expresso carnificina, ver por exemplo; Acontece que aquilo era uma carnificina.Todos mortos, minha filha, a rua Fanfulla da Lodi era uma tragdia, tudo por per terra, o medo, nose podia andar, para passar por onde andamos era preciso passar sobre os mortos (Diana Pasqualini,n. 1925); era a viso, a continuao daquela carnificina nas quais tnhamos posto as mos at quinzeminutos antes, tentando cuidar dos feridos na hospedaria (Rosario Bentivegna, n. 1922, mdico, re-sistente). Tambm sobre o emprego de carnificina vemos a passagem de um uso referencial para umuso metafrico.

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    diferente porm normal, uma vida que no fosse dominada pela ausn-cia, pela penria e pelo medo.

    por isso que a negao muitas vezes se reveste das ambivalentesroupagens da reminiscncia. Toda a cidade de Roma parecia identificar-se com as vtimas do massacre nazista nas Fosse Ardeatine, uma retalia-o a um ataque guerrilheiro; nos dias que se seguiram libertao da ci-dade, centenas de romanos acorreram ao lugar do massacre. Contudo,quando defrontada com a presena fsica dos sobreviventes enlutados, acidade desviou os olhos e se voltou para outro lugar, em busca de exor-cismo. Ada Pignotti, que tinha 23 anos e estava casada h seis meses quan-do seu marido foi morto, relembra: Naquela poca, quando aquilo acon-teceu, em 44 voc simplesmente no conseguia falar naquilo, voc noconseguia falar. Eu trabalhei durante 40 anos e, mesmo no escritrio, svezes, quando me perguntavam sobre aquilo, eu no dizia nada, porqueeles diriam, ora, culpe o guerrilheiro que atirou a bomba. Ada Pignotticompreende que a verso antiguerrilheira dos fatos ao redor do massacretinha motivaes que iam alm da ideologia: desviar o olhar e o tpico dodiscurso do prprio massacre para suas alegadas causas um modo deno encarar a materialidade do assassinato em massa para substitu-lo peloplano abstrato do discurso poltico, removendo assim a real presena dossobreviventes. Assim, Ada Pignotti e os outros sobreviventes a maioriamulheres so confrontados com uma lembrana que exorciza o massa-cre no prprio ato de relembr-lo. Em suas palavras:

    E ento, depois do acontecido nas Fosse Ardeatine, ningum fa-lava sobre aquilo; ningum falava sobre aquilo. Mas ainda assimeles foram mortos, 335 pessoas! Voc no fala naquilo porque pa-rece desnecessrio, porque voc sente que, depois de tudo, issono faria voc viver melhor. Isso s tornaria as coisas piores.

    Gabriella Polli tinha poucos meses de idade quando seu pai foi mor-to nas Fosse Ardeatine. Ela relembra outro cenrio, no qual a aparnciade respeito e simpatia mascarava uma rejeio da prpria presena dessessobreviventes da memria da perda e da tragdia da morte.

    Minha me ia ao armazm fazer compras isso depois que meupai foi morto. Um dia, ela precisou entrar na fila no armazm,

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    havia muita confuso; ela entrou e saiu na mesma hora, e disse:Viu como foi rpido? Assim que ele me viu, [o dono] me disse:Venha para frente, Sra. Polli, vou servi-la primeiro. Sabem porqu? Porque ele no a queria no armazm, porque ela era a mu-lher de uma vtima, de um antifascista. Ento minha av disse aela: Voc no est entendendo: graas a Deus eles pelo menosvenderam o po, porque aquele tratante poderia at ter se recusadoa servir voc. Eles no a queriam no armazm, ela fazia com quese sentissem desconfortveis. Quando minha me compreendeu oque tinha acontecido, ela chorou. E se recusou a voltar ao armazm.

    4. Depois da guerra, outra guerra

    Como demonstrou o historiador Claudio Pavone, o fim da guerra e a que-da do fascismo levantaram a questo da continuidade do Estado: na re-cm-democrtica Itlia, muita coisa muda mas muita coisa continua igual.Isso no acontece apenas no terreno das instituies: tambm parte daestrutura da memria, que requer mudanas e quebras a fim de transmitiro sentimento de passagem do tempo, mas tambm precisa de mudanase continuidades lentas e de longo prazo a fim de confirmar a unidade doassunto recordado. Assim, a libertao de sentidos, cores e sabores des-crita por Umberto Turco, Virginia Calanca e Laura Grifoni ocorreu emalguns nveis mas no em outros e se aplica a uma parte do povo, no sua totalidade. Para muitos romanos, o fim da guerra foi menos uma tro-ca da penria para a abundncia do que uma continuidade tornada aindamais insuportvel pela expectativa de mudana. Por um lado, a guerra aca-bara, sob outros aspectos, ela continuava. Eis uma conversa com trs ir-ms de classe operria, filhas de um exilado poltico:

    Portelli: E ento, depois da guerra?

    Liliana Menichetti: Outra guerra.

    Portelli: Por qu?

    Marisa Menichetti: Bem, levou muito tempo at que as coisas...a fome e a penria duraram pelo menos mais trs ou quatro anos.

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    Vivamos amontoados, as famlias espremidas em dois quartos euma cozinha. Olhe, ns vimos gente literalmente morrer de fome.Um priminho nosso, e aquela menina que vivia no nosso prdio,lembram-se dela? Uma menina bonita, ela morreu de fome. Atuberculose era comum. Sem falar das outras doenas infeccio-sas, sarna e outras.

    Anna Menichetti: E de qualquer modo, uma sensao de frio,por dentro e por fora... Eu me lembro disso porque sofri muito,fisicamente no tnhamos cobertores, no tnhamos casacos,usvamos qualquer coisa para ir escola... sapatos furados, sapa-tos dos outros, sapatos de menino... E outra vez aquele frio, afalta de tanta coisa... olhe, ns ramos uma famlia muito unida..., uma famlia grande, uma famlia pobre, mas ns tentvamosdividir tudo o que podamos... Mas havia momentos de frio pordentro, por fora, uma pobreza inacreditvel, de verdade, que noconseguamos explicar nem para ns mesmas porque ramos pe-quenas demais, entende? Mas no pedamos: porque de qualquerjeito ningum dava. Ento, a gente estava l, magra, esqueltica,coberta de feridas pela falta de vitaminas, subnutrida... [minhasirms] no cresceram direito... ela menstruou pela primeira vezcom 14...3

    H um nvel de experincia, ento, no qual o fim da guerra no fezimediatamente uma diferena tangvel: pobreza, fome, fraqueza, frio, vidaamontoada, tudo continuava no mesmo. Depois da guerra, outra guerra:, como eu disse, foram 4 ou 5 anos antes que pudssemos dizer estoucomendo, sabe o que isso... (Marisa Menichetti).

    Entretanto, havia mudanas. Se algumas condies materiais permane-ceram as mesmas, a atitude subjetiva era diferente. O sofrimento pode tersido aceito como inevitvel sob a opresso poltica do fascismo e durantea tragdia da guerra; agora, na nova atmosfera de liberdade, tornava-se insu-portvel. Assim, uma das razes pelas quais Roma tenta, simultaneamente,

    3 Ainda Laura Grifoni: Tivemos a experincia da guerra e do ps-guerra; logo que acabou a guerra,ramos pobres mesmo sendo muito pequenas falta de comida, fila no mercado, fila na fonte, eraassim em Roma, antes que tudo fosse reconstrudo

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    tempo tanto lembrar quanto esquecer, o fato de que a ambivalncia estancorada na contradio da experincia vivida, no contraste entre a novaexperincia de liberdade e na frustrada viso da mudana. Tal contradi-o determina, por um lado, um intenso conflito social (como era o casodas trs irms acima exposto, todas ativistas comunistas) e, por outro, umdesencanto e desapontamento que encontraram expresso poltica nomovimento poltico Uomo Qualunque (Homem Comum) e voz nas can-es e parodias do teatro de revista.

    Por exemplo, no palco de Ambra Jovinelli, o ator e cantor CecDoria cantou paz, querida paz, voc uma coisa to frgil... Colocan-do letras novas em canes populares, Doria convidava sua platia tantoa lembrar quanto a esquecer:

    Em 1922 havia um regime no me lembro qual

    havia uma marcha no e lembro onde

    e ela se chamava no me lembro como.

    E ento por 20 anos foi nosso destino

    com todas essas guerras no me lembro o qu

    e ento um dia fomos libertados

    por quem? No me lembro quem.

    A liberdade uma experincia nova, no facilmente compreendidae vivida nessa nova atmosfera de excessivas esperanas e excessivo desa-pontamento. Roma passa do fascismo e da guerra para a liberdade e a pazcom a mesma rapidez com a passou das sementes de tremoos para aBomba de Turim, sem ter tempo de se acostumar mudana, aprenderas regras, ser paciente. Isso se manifestou em episdios traumticos,como o linchamento de Donato Carretta, ex-diretor da priso ReginaCoeli, espancado at a morte, em 1945, por uma multido enfurecida. Eraum sinal da contradio entre a continuidade e a libertao: a raiva pelacontinuidade que nos confronta com as mesmas pessoas, os mesmos ros-tos de antes; a frustrao por ainda ser pobre, ter fome e frio; e o excesso,a urgncia, o frenesi de uma cidade que foi cruelmente reprimida e de re-pente se v livre e est bria de liberdade e desejo.

    Outra contradio gira em torno de outra crucial memria de guer-ra: os bombardeios aliados. Uma placa na rua num bairro operrio emRoma a expresso mxima dessa memria paradoxal:

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    Vtimas inocentes

    das armas de libertao

    6 de junho de 1944

    Cleofe Proietti

    Maddalena Proietti

    (Mogavero, 2003, p. 185)

    Cleofe e Maddalena Proietti so exemplos de um duplo paradoxo.Em primeiro lugar, a data de sua libertao tambm a data de sua morte um efeito colateral par a Histria com H maisculo, mas tambm da li-bertao total para eles assim como para todas as outras vtimas. Essa umalembrana comum e difcil: afinal de contas, os bombardeios aliados forama maior causa de mortes em Roma, entre julho de 1943 e junho de 1944.

    Essa no uma lembrana fcil de reter e de expressar publicamen-te. A contradio chega at mesmo a uma palavra aparentemente simplescomo inocentes: inocentes, em que sentido? Por um lado, os bombar-deios aliados so a resposta a uma agresso da qual a Itlia fazia parte. Poroutro lado, eles eram civis, no-combatentes. Fosse pela vontade deles,aquela guerra no teria acontecido (por outro lado, quem sabe, poderiamtambm ter sido infectados pela imperiosa propaganda fascista): assim,enquanto pessoalmente inocentes, so culpados enquanto italianos, aosolhos de seus libertadores, e pagam pela culpa de seu pas com uma penade morte sem julgamento.

    Essa contradio gera uma memria problemtica e internamentedividida. Mais do que Lotman e Uspenskij chamam de volume de me-mria, estamos lidando com um esquecimento que forado pela neces-sidade de consistncia: como conservar juntas a gratido aos libertadorese a lembrana do fato de que a arma que nos libertou foi tambm a armaque nos matou, que os libertadores tambm destruram o nosso bairro, anossa casa, a nossa famlia?

    Como diz um outro narrador, Luciano Pizzoli, funcionrio dostransportes coletivos urbanos: Quando eu tinha seis anos, achei que ti-nha uma guerra acontecendo e que a guerra tambm trazia aquelas con-seqncias essa minha lembrana da infncia. Os adultos diziam queaquilo era uma grande tragdia que o fascismo nos tinha trazido. Elelembra tambm que sua casa foi destruda no bombardeio de San Loren-zo, e comenta: O ataque areo sobre San Lorenzo, no ptio de manobras

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    da estrada de ferro, no foi um bombardeio de preciso, seu objetivo eraaterrorizar (Luciano Pizzoli, n. 1937, ferrovirio).

    Em outras palavras: as destruies da guerra eram causadas pelosnazistas e fascistas, mas eram perpetradas pelos aliados; muitas testemunhaslembram-se de desejar que eles causassem os maiores danos possveis aosalemes (Marcello Prasca), mas esto tambm cientes de que quem maissofreu foi a populao civil. onde entra o outro mecanismo descrito porLotman e Uspenskij: a supresso de algumas lembranas que so incom-patveis com outras, mais aceitveis e autorizadas. Isso pode ser feito devrias maneiras: simplesmente atribuindo a destruio e a morte guer-ra como uma categoria abstrata e fatalista na qual ningum respons-vel, ou passando dos efeitos para suas causas primordiais a agresso fas-cista desconsiderando a segunda causa, os bombardeios aliados.

    O mais surpreendente efeito da memria, entretanto, consiste emoutra operao lgica: se os nazistas e fascistas eram o mal absoluto, seeles eram nossos inimigos, se eram os culpados pelo nosso sofrimento,ento apenas lgico acreditar que eram eles, os nazistas e fascistas, quenos bombardeavam. Assim, a pergunta quem nos bombardeou? re-cebida, com mais freqncia do que se imagina, por contradies, afasia,silncio, erro: quem foi? foram os fascistas quero dizer, os aliados;sei l que fora area era... eram os alemes, eu acho; no sei, eles nosatacavam do alto, mas no sei quem estava nos bombardeando dos avi-es; ah! no eram os nossos rapazes (Irene Guidarelli, n. 1896, oper-ria txtil; Antonietta Mazzi, operria; Nadia Bertini, n. 1934, dona de casa;Raul Crostella, n. 1926, operrio).

    O historiador Antonio Parisella descreve com muita clareza essetipo de lembrana que esquece, em seu depoimento sobre os eventos emCisterna, a meio caminho entre Anzio e Roma. Para os moradores da ci-dade, escreve Antonio, a guerra significou a total destruio de sua cida-de pelos bombardeios, em 126 dias de vida em cavernas e, depois de 19de marco de 1944, em dois anos de vida em campos de refugiados.

    Embora fosse claro continua ele que os alemes eram os ocu-pantes e os opressores, eles me disseram que tiveram dificuldadespara reconhecer como libertadores os aliados, ou seja, aquelesque destruram sua cidade e que os privaram do que precisavampara viver. Antes que pudessem compreender inteiramente o

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    significado daqueles fatos, precisaram esperar at que a guerra aca-basse e que eles pudessem voltar para a cidade e reconstruir poucoa pouco seus lares e seu trabalho. Por algum tempo, sua conscin-cia foi uma espcie de terra de ningum. (Parisella, 1989, p. 38-9)

    Terra de ningum uma boa metfora para os sentimentos mis-tos de ambivalncia dessa lembrana. Para que sua experincia vivida fi-zesse sentido, o povo de Cisterna precisou fazer um inventrio de suaslembranas e sentimentos e separar os legtimos dos que ficavam melhoresquecidos luz do relato total da guerra. Para construir uma memriacoerente, ento, eles precisaram primeiro mutil-la. Suas lembranas s setornaram aceitveis depois que a lembrana do ressentimento foi relegada terra de ningum da vergonha e do inaceitvel.

    5. Memria da libertao: um fim ou um comeo?

    Os anos do ps-guerra so, portanto, o tempo no qual a memria come-a a tomar a forma de um paradoxo: uma lembrana que esquece, um es-quecimento que lembra. Tal atitude, entretanto, pode tambm ser encon-trada em formas diferentes mas igualmente contraditrias, na celebraocontempornea da guerra. Assim, eu gostaria de concluir com alguns pensa-mentos a respeito do uso poltico e ritual da memria em nossos tempos.

    Existe o que se chama de memria pblica como um ritual de auto-iseno. Sua funo delinear uma ntida separao entre o presente e opassado, a fim de declarar ser o passado um livro fechado do qual nospodemos lembrar mas que no tem relevncia para os acontecimentoscontemporneos. Afinal de contas, tudo fazia parte do passado. E h entoa memria como escndalo, uma memria que como William Faulknerum dia definiu nos lembra de que o passado no morreu, nem mesmopassou. A memria como ritual de auto-iseno insiste nos horrores dopassado para nos dizer que aquilo aconteceu, mas somos diferentes eaquilo no acontecer outra vez. A memria como escndalo nos adver-te, com Primo Levi, de que aquilo aconteceu, e por isso pode aconteceroutra vez. Na celebrao contempornea, essas duas formas de mem-ria esto muitas vezes contidas nas mesmas frmulas, nos mesmos ges-tos, nas mesmas comemoraes.

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    Muitas vezes, durante os rituais do dia da memria nacional 27 dejaneiro, aniversrio da libertao de Auschwitz ouvi a mesma frmulaconcisa e eloqente: nunca mais. Quanta verdade! Por outro lado, essafrmula contm na imperativa inteno de palavras como nunca emais tambm a possibilidade de buscar conforto no fato de que opassado passado aconteceu, temos conscincia disso, ficamos choca-dos e tudo, mas isso no mais problema nosso, no mais nossa res-ponsabilidade. A memria como um livro fechado sublinha a nossa dife-rena, a nossa distncia.

    Eu gostaria de explicar tal fato com alguns exemplos recentes, to-dos originados de novos itens relativos ao dia da memria, em janeiro de2005.

    Em 25 de janeiro de 2005, Domenico Gramazio um membro doconselho regional da Alleanza Nazionale, a antiga ala direita do partidofascista foi personagem de um pequeno drama em atos sobre lembrar eesquecer. Primeiro ato, quando ele escreveu trs vezes, no livro dos visi-tantes em Yad Vashen, em Jerusalm, a frmula cannica: nunca mais,nunca mais, nunca mais. No se poderia querer mais. E ainda assim, aprpria repetio parece sugerir que ele sentia que a frmula era inade-quada e que a repetiu trs vezes para se defender de alguma sensao deconstrangimento. O segundo ato, na verdade, ocorreu imediatamente de-pois, nos degraus externos de Yad Vashem, quando Gramazio se saiu comuma surpreendente declarao: Estou convencido de que a Direita Itali-ana no foi nem um pouco responsvel pelo extermnio em massa dosjudeus. A Itlia fascista no apoiou [as leis raciais fascistas] e [o antigo se-cretrio neofascista] Giorgio Almirante [ex-editor do jornal oficial racistado regime, La difesa della razza] foi na verdade um defensor e protetor dosjudeus. Finalmente, o terceiro ato: depois do protesto gerado por essainacreditvel declarao, Gramazio esperou dois dias inteiros antes de sedesculpar com a comunidade judaica de Roma.

    Essa pequena tragdia em trs atos parece-me um extraordinrioexemplo de uma memria que relembra e remove, condena os horroresdo passado e absolve seus herdeiros no presente. No apenas um casode falsificao da histria, e sim de uso poltico da retrica da confisso,to profundamente enraizada na Itlia catlica: reconhecendo o Holo-causto e negando a responsabilidade por ele um modo de encerrar ocaso e exonerar os cmplices e colaboradores dos nazistas; admitir com

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    atraso e relutncia que sua declarao era um erro uma forma de sedesculpar e encerrar novamente o caso. Do incio ao fim, parece no ha-ver razo pela qual o Holocausto devesse ser um assunto atual, nenhumarazo pela qual ele deveria nos obrigar a nos questionarmos agora.

    Outro exemplo. Em 28 de janeiro, as gravaes das entrevistas italia-nas da Histria Visual da Fundao do Holocausto foram entregues aoArquivo Nacional Italiano. Durante a cerimnia, o representante do go-verno secretrio encarregado da herana cultural, Antonio Martuscello,afirmou que a lio que deveramos aprender com o Holocausto queprecisamos proteger nossa identidade europia de transplantes artifici-ais de outras culturas, mas deveramos voltar a nossas origens judaico-crists. Mais uma vez, a memria que no se lembra: no ato de recordaro Holocausto, o representante do estado italiano se esquece de que oHolocausto na verdade parte integrante de nossa herana europia e quea proteo da pureza de nossa identidade em si mesma uma premissapara a repetio de episdios de discriminao e intolerncia. O secret-rio Martuscello nos convida a proteger nossa identidade judaico-cristcontra a contaminao islmica, exatamente como os fascistas, duas ge-raes atrs, nos convidaram a proteger nossa identidade crist contra acontaminao judaica. Sem falar que, em nossas razes judaico-crists,deveramos incluir dois mil anos de perseguio crist, discriminao emassacres de judeus por toda a Europa.

    Finalmente: no incio de fevereiro, durante um programa de rdioem que se discutia Auschwitz apenas para afirmar que era a mesma coisaque o Gulag sovitico, um ouvinte telefonou para lembrar os crimes deguerra italianos na frente oriental contra a populao eslava da Eslovniae da Crocia deportaes em massa, campos de concentrao, retalia-es na populao civil... O ncora do programa calou-o dizendo que taiscoisas no poderiam ter acontecido e que ele estava inventando tudo aqui-lo.4 Na verdade, fato que a histria dos crimes de guerra italianos, tantonos Blcs quanto nas guerras coloniais na Lbia e na Etipia, nunca somencionados, nem mesmo nos mais progressistas livros usados em nos-sas escolas.

    4 Numa transmisso posterior, o apresentador admitiu que sim, alguns episdios poderiam ter aconte-cido mas tinha sido coisa da Itlia fascista, portanto ns no tomamos parte neles.

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    A ironia que tudo isso aconteceu nas proximidades do dia da me-mria. Fazer de conta de que se lembra, a fim de esquecer. De volta aLotman e Uspenskij: sabemos que no h memria sem esquecimento,que o esquecimento torna possvel a memria. Na verdade, a prpria idiada memria inclui uma distncia, uma conscincia do tempo passado; deoutro modo, no haveria memria e sim obsesso. Entretanto, esquecer ehistoriar uma coisa; negar e apagar outra. O que esquecido desapa-rece porque no tem mais significado; o que negado e removido en-terrado e escondido porque seu significado grande demais e continuavoltando, sbito e apavorante como um espectro.

    Eis porque a ressurreio da memria dos crimes de guerra comu-nistas e guerrilheiros na frente oriental as assim chamadas foibe, fossasprofundas nas montanhas nas quais os guerrilheiros iugoslavos enterra-vam, s vezes vivos e muitas vezes em massa, milhares de italianos acusa-dos, com freqncia sem provas, de estarem envolvidos com a domina-o fascista da regio foi um choque to grande para a esquerda italiana.

    Na verdade, foram os historiadores antifascistas do Instituto para aHistria da Resistncia os primeiros a estudar e documentar tais eventos.Seu trabalho, entretanto, no foi reconhecido pela esquerda poltica, noteve reconhecimento pblico no campo antifascista. Assim, o que querque seja dito hoje a respeito das foibe, de sua ambientao histrica, doscrimes fascistas que os precederam, soa como uma desculpa e um libi,um exorcismo. Deveramos ter assumido essa memria como nossa des-de o incio, mas, ao ser ressuscitada por terceiros, ela nos encontra des-preparados, subordinados s lembranas parciais de terceiros. Assim, mes-mo os porta-vozes da esquerda repetiram as frmulas nacionalistas daitalianidade da stria, porque no tm idia do que era aquela compli-cada e multi-tnica regio limtrofe antes que o fascismo inaugurasse a erada limpeza tnica que continua nos dias atuais.

    Por outro lado, h boas razes para a relutncia da esquerda italianaem conectar a tragdia das foibe com os crimes de guerra italianos nosBlcs. A direita usa as foibe para contrabalanar as Fosse Ardeatine, ogulag para compensar Auschwitz de modo a invalidar e confundir tudonum espantoso par condicio no qual a histria nada mais do que uma s-rie de horrores, todos so culpados e com isso ningum responsvel. Amemria antifascista, por outro lado, recusa-se a usar os massacres ita-lianos e fascistas na Eslovnia e na Crocia, na Lbia e na Etipia, para

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    absolver os crimes iugoslavos e comunistas em stria e em Venezia Giulia.Como bem explica o historiador Guido Crainz em seu Il dolore e lesilio, astragdias e os crimes so distintos embora relacionados e cada um delesdeve ser lembrado pelo que em si mesmo, na totalidade de seu desenrolarhistrico, sem que desviemos o olhar do sofrimento de todas as vtimas.

    O que mantm unidos os episdios que mencionei o conselheiroex-fascista, o secretrio, o ncora do programa de rdio que todosocorreram nas proximidades do dia da memria. Exatamente como nahipcrita homenagem viva das Ardeatine, que era levada para o come-o da fila a fim de retir-la do campo de viso o mais depressa possvel,eles pretendiam celebrar a memria a fim de consumir seu apagamento.Dizemos nunca mais e viramos a pgina; dizemos que horror e vira-mos o rosto. Quanto mais alto elevamos a voz, quanto mais insistimos erepetimos, mais pobre fica a linguagem e menos ns dizemos: a nfaseexcessiva parece ser o equivalente lingstico da Bomba de Turim. Comacentuada nfase, o conselheiro Gramazio diz nunca mais trs vezes,como se uma no fosse o bastante; e acrescenta que o nazismo era algototalmente estranho a ns, seres humanos, e ainda mais estranho a ns,italianos. Mesmo quando o ex-secretrio da aliana fascista, GianfrancoFini, descreve o nazismo e o Holocausto como o mal absoluto, ele se-para essas mesmas realidades humanas e histricas da esfera da humani-dade e da histria. Sabemos que nada do que humano absoluto. ComoPrimo Levi nos lembra, o Holocausto e a guerra, os massacres, as bom-bas, os campos, a morte so atos humanos e como tais nos dizem res-peito, a ns como seres humanos, como o sinal de uma possibilidade queexiste dentro de ns e contra a qual devemos estar prevenidos.

    Recordo-me de um fazendeiro de Genzano, nas colinas romanas,que descreveu seu relato de memria como um vai-e-vem entre o tempolembrado e o tempo de lembrar. A memria se relaciona com o passado,mas acontece no presente; a memria como escndalo um vai-e-vemproblemtico que volta ao presente enriquecido e complicado pela lacu-na entre os tempos de guerra e os nossos tempos: quando falamos dememria parecemos falar apenas da guerra, da Resistncia, do Holo-causto. Isso bom, mas no devemos criar a impresso de que no hnada mais para recordar, que a memria pra em 1945, para que notransformemos essas lembranas num depsito de informaes distantee no relacionado com a experincia das jovens geraes atuais, como se

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    as comemoraes fossem uma forma de fossilizar o passado. Vim paraenterrar Csar, no para prante-lo, diz Marco Antonio; com muita fre-qncia, na memria paradoxal de nossos tempos, lamentar uma formade prantear.

    Isso envolve tambm uma questo de metodologia histrica: a ques-to da periodizao. No celebraramos a libertao do fascismo e o fimda guerra se no acreditssemos serem tais eventos memorveis, que en-cerraram uma era e deram incio a outra. Mesmo assim, muita coisa aca-bou com o fim da guerra, mas muitas outras continuaram. Para muita gen-te, a fome e o frio no terminaram com o fim da guerra; o silncio emtorno do campo de sobreviventes comeou a se desfazer apenas em mea-dos da dcada de 1950; o conflito social, enraizado na Resistncia, noacabou com o despertar da democracia, mas continuou os lideres dosmovimentos dos desabrigados nos anos 1950 em Roma, das lutas por ter-ras nas zonas rurais, so os mesmos homens e mulheres que lutaram naresistncia dos anos 1940. E, mais importante, a Resistncia e a liberta-o continuaram a ter o mesmo formato no estado democrtico italianoe na Constituio que encarna os princpios da resistncia.

    Entretanto, enquanto tais projetos histricos progridem, na celebra-o e no ensinamento da histria pare haver uma espcie de terra de nin-gum entre o tempo lembrado e o tempo de lembrar como se a mem-ria se encerrasse a 25 de abril de 1945 e os que vieram depois nadativessem a lembrar. O perigo que a libertao do fascismo seja percebi-da como uma concluso mais do que como um ponto de partida, como ofechar de um livro mais do que como o incio de uma nova memria dademocracia.

    Nossas instituies, nossas escolas, dificilmente oferecem s gera-es mais jovens alguma lembrana do que aconteceu entre 1945 e osnossos dias, entre abril de 1945 e abril de 2005. O que eles sabem hoje, oque lhes ensinamos, o que dizemos a respeito da histria de nossa de-mocracia os massacres dos camponeses sicilianos lutando por terra e li-berdade, a guerra fria, o Vietn, a rebelio antifascista de 1960, os movi-mentos estudantis, a rebelio dos operrios em 1969-70, o assassinato deCarlo Giuliani pela Policia em Genova em 2001? Essa terra de ningum o espao no qual florescem testemunhos falsos e manipulados o vazioque permitiu a Silvio Berlusconi afirmar que a Itlia foi governada peloscomunistas durante cinqenta anos, ou que nossa Constituio um do-

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    cumento bolchevique, que a histria do movimento operrio e da NovaEsquerda apenas uma srie de crimes e horrores. E dificilmente qual-quer voz se ergue para contradiz-lo.

    Para concluir, eu gostaria de comparar duas histrias que ouvi e re-gistrei no mesmo dia, no mesmo lugar, o escritrio da Associao deResistentes de Monterotondo, perto de Roma.

    A outra acusao era que ele no tinha ido trabalhar no 1o demaio [de 1929], por nenhuma razo justificada. Houve esse julga-mento, no qual [meu tio] foi obrigado a gritar, ou a cantar, Viva ilDuce, e a explicar que no tinha ido trabalhar naquele dia porquesua esposa estava doente, e foi absolvido. (Enrico Angelani, n.1927, funcionrio)

    Lembro-me que, logo que voltei da identificao, fui obrigado anegar os valores do antifascismo gritando Viva il Duce. No come-o, eu me recusei; mas ento, depois de ter sido encorajado comalguns socos e pontaps, consegui dizer aquelas palavras e entreina minha cela, e assim fizeram os outros depois de mim. (BrunoLupi, n. 1983, estudante)

    So dois relatos praticamente iguais; a diferena, entretanto, que aprimeira sobre 1929, enquanto a ltima sobre 2001 a brutalidade dapolcia durante os protestos em Genova contra a reunio do G8 em 2001.Se a memria um constante trabalho de conexo, uma construo m-tua de significado entre o passado e o presente, ento a memria tam-bm o trabalho de colocar juntas essas duas histrias. Dizem que quemno se lembra do passado est fadado a repeti-lo; na verdade, uma razopela qual precisamos reaver, preservar e fortalecer a memria e os valoresde democracia, trabalho e antifascismo, que tais coisas esto se repetin-do, e podem ser repetidas no futuro.

    Como colocado por Cec Doria, o irnico cantor do Ambra Jovi-nelli, lembramo-nos muito bem de quem precisamos ser libertados, quemnos libertou e quanto isso custou. A memria significa, ento, a continua-o do trabalho que foi iniciado, h sessenta anos, pelos homens e mu-lheres cuja resistncia, h sessenta anos, fundou nossa democracia e o queresta dela nos dias atuais.

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    Referncias bibliogrficas

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    SPANO, Nadia. Mabruk (memorie di uninguaribile ottimista). Roma: 2005. (No prelo)

    Entrevistas

    Ambrogio Filipponi, Terni, 11/5/1979.

    Antonietta Mazzi, Roma, 7/6/2001. Entrevista a Giusy Incalza.

    Augusto Cuppini, Terni, 30/12/1980.

    Diana Pasqualini, Roma Pigneto, 25/6/2001. Entrevista a Giusy Incalza.

    Enrico Angelani e Bruno Lupi (1983, estudante), Monterotondo (Roma), 24/11/2004.

    Irene Guidarelli, Terni, 16/7/1980.

    Laura Grifoni, 27/3/2001. Entrevista a Stefania Raspini.

    Luciano Pizzoli, Roma, 4/7/1997.

    Marcello Prasca, Roma, 7/1/2000.

    Nadia Bertini, Roma, 3/7/2001. Entrevista a Giusy Incalza.

    Piero Terracina, Roma, 8/2/1998.

    Raul Crostella, Terni 14/12/1983.

    Rosario Bentivegna, Roma, 11/9/1998.

    Umberto Turco, Roma, 12/11/1997.

    Virginia Calanca, Roma, 26/4/1998.

    Resumo: As memrias da guerra, da resistncia, e das conseqncias da guerracontemplam lembranas que so cruciais demais para serem esquecidas e pordemais traumticas e controversas para serem lembradas. Neste artigo, por meioda observao das lembranas de guerra, da resistncia, e dos anos do imediatops-guerra, verifica-se como a memria toma forma de maneira relutante e

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    contraditria. So analisados, assim, o significado das expresses e palavrasescolhidas nas narrativas, a articulao entre as lembranas e esquecimentos e ouso poltico e ritual da memria em nossos tempos.

    Palavras-chave: memria; narrativas de guerra; Itlia.

    The Turin Bomb: the formation of memory in post-war times

    Abstract: The remembering of war, resistance and wars consequences contem-plate memories that are too crucial to be forgotten, and yet too traumatic andcontroversial to be remembered. In this article, through the observation of warsand post-wars memories, we verify how memories take shape, reluctantly andcontradictorily. The meaning of chosen words and expressions, the articulationbetween remembering and forgetting, the political and ritual use of memory inour days are thus analyzed.

    Keywords: memory; war narratives; Italy.