A Banalização Da Prescrição de Psicofármacos

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    Paidiaset-dez. 2010, Vol. 20, No. 47, 381-390

    Artigo

    A banalizao da prescrio de psicofrmacos em um ambulatrio de sade mental1Daniele de Andrade Ferrazza2

    Cristina Amlia LuzioLuiz Carlos da Rocha

    Raphael Rodrigues SanchesUniversidade Estadual Paulista Jlio Mesquita Filho, Assis-SP, Brasil

    Resumo: A conjuno do desenvolvimento dos psicofrmacos modernos com o amplo alcance que assumiu a nfase preventiva em sade mental na atualidade modificou as prticas da Psiquiatria, que deixou de ser um saber voltado exclusivamente ao tratamento da loucura para dedicar-se a medicar, atravs da prescrio de psicofrmacos, qualquer manifestao de sofrimento psquico. O presente trabalho problematiza esse processo atual de medicalizao generalizada da populao e apresenta dados de um estudo exploratrio amostral que objetivou conhecer, atravs do exame de registros de pronturios, a trajetria dos usurios da porta de entrada do Pronto Atendimento at a prescrio de psicofrmacos no mbito de um Ambulatrio de Sade Mental de uma pequena cidade do oeste paulista. Nossos dados mostram que a maioria (65%) dos usurios j chega ao servio sob prescrio prvia de psicofrmacos e que, encaminhados consulta psiquitrica, praticamente todos (99%) recebem prescrio de psicofrmacos.

    Palavras-chave: sade mental, sade pblica, farmacoterapia.

    Trivializing the prescription of psychopharmacologic drugs in a mental health service

    Abstract: The development of modern psychiatric medications coupled with the wide range currently gained by preventive emphasis in mental health changed the practices of psychiatry, which is no longer focused on treating insanity but is also dedicated to treat any psychiatric suffering through the prescription of psychopharmacos. This study discusses the current process in which medication has been generalized, and presents the results of an exploratory study aimed to examine the patients medical files, the trajectory of users since they enter the service to the prescription of psychiatric medication in the scope of a Mental Health Outpatient Clinic, in a town in the west of the So Paulo state, Brazil. Results revealed that most (65%) users already arrive at the service with previous prescription of psychiatric medications, and nearly all (99%) of them receive prescriptions of psychiatric medication once forwarded to psychiatric consultations.

    Keywords: mental health, public health, pharmacotherapy.

    La banalizacin de la prescripcin de psicofrmacos en un ambulatorio de salud mental

    Resumen: La conjuncin del desarrollo de los psicofrmacos modernos con el amplio alcance que asumi la nfasis preventiva en salud mental en la actualidad modific las prcticas de la psiquiatra, que dej de ser un saber vuelto exclusivamente al tratamiento de la locura para dedicarse la medicar cualquier manifestacin de sufrimiento psquico. El presente trabajo problematiza ese proceso actual de medicalizacin generalizada y presenta datos de un estudio de investigacin amostral que objetiv conocer, a travs del examen de registros de lista medica, la trayectoria de los usuarios de la puerta de entrada de la Lista Atencin hasta la prescripcin de psicofrmacos en el mbito de un Ambulatorio de Salud Mental de una pequea ciudad del oeste paulista. Nuestros datos muestran que la mayora (65%) de los usuarios ya llega al servicio bajo prescripcin previa de psicofrmacos y que, encaminados a la consulta psiquitrica, prcticamente todos (99%) reciben prescripcin de psicofrmacos.

    Palabras clave: salud mental, salud publica, farmacoterapia.

    1Apoio: FAPESP. Este trabalho derivado da Dissertao de Mestrado defendida pela primeira autora, sob a orientao da segunda, no Programa de Ps-graduao em Psicologia da Faculdade de Cincias e Letras UNESP/Assis da Universidade Estadual Paulista Jlio Mesquita Filho.

    2 Endereo para correspondncia:Daniele de Andrade Ferrazza. Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar. Avenida Dom Antnio, 2100. CEP: 19.806-900. Assis-SP. E-mail: [email protected]

    Com a descoberta dos psicofrmacos na dcada de 50 e com nfase preventiva que assumiu o atendimento psiqui-trico aps a II Guerra Mundial, a psiquiatria modificou suas

    prticas e deixou de ser um saber voltado exclusivamente ao tratamento da loucura para dedicar-se a medicar qualquer manifestao de sofrimento psquico, chegando mesmo a re-comendar a medicao de pessoas reconhecidamente porta-doras de perfeita sade mental (Gentil e cols., 2007).

    Atualmente, qualquer sinal de sofrimento psquico pode ser rotulado como uma patologia cujo tratamento ser a administrao de psicofrmacos (Amarante, 2007; Barros, 2008; Birman, 2000; Igncio & Nardi, 2007; Lamb, 2008). Essa tendncia tem-se ampliado de tal modo que se pode falar da ocorrncia de uma generalizada medicalizao do social (Birman, 2000). Sob esse prisma, os psicofrmacos

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    instituram-se como o recurso teraputico mais utilizado para tratar qualquer mal-estar das pessoas, em que se destaca a tristeza, o desamparo, a solido, a inquietude, o receio, a insegurana, ou at mesmo a ausncia de felicidade.

    Por certo, aqui no se pretende discutir a especfica adequao de diagnsticos ou particularidades tcnicas da teraputica medicamentosa, o que estaria fora de nossos ob-jetivos e condies tcnico-cientficas. Muito diferente dis-so, o objeto geral de estudo desta pesquisa pode ser definido como o prprio processo de medicalizar, neologismo de sig-nificado distinto de medicar e aqui compreendido como fazer de algo ou algum objeto do saber, da prtica, ou da tutela mdica que, na atualidade, apresenta o crescente processo de prescrio de psicofrmacos como uma de suas principais manifestaes. Bem por isso, escolhemos referenciar este es-tudo em compreenses crticas desse processo, amplamente presentes na bibliografia sobre o tema.

    A noo de medicalizao nos remete a um fenmeno complexo, polmico e multifacetado. Conforme o verbete elaborado por Hora (2006) para o glossrio do Grupo de Es-tudos e Pesquisas Histria, Sociedade e Educao no Brasil (HISTEDBR), medicalizao pode ser compreendido como:

    o processo pelo qual o modo de vida dos homens apropriado pela medicina e que interfere na cons-truo de conceitos, regras de higiene, normas de moral e costumes prescritos sexuais, alimentares, de habitao e de comportamentos sociais. Este processo est intimamente articulado idia de que no se pode separar o saber produzido cientifica-mente em uma estrutura social de suas propostas de interveno na sociedade, de suas proposies polticas implcitas. A medicalizao tem como ob-jetivo a interveno poltica no corpo social (s/p).

    No mesmo verbete, como uma variante da noo de medicalizao, a mesma autora situa a expresso medica-lizao do social como originria do estudo das sociedades disciplinares realizados por Foucault (1979; 2006), compre-endendo-a como:

    A forma pela qual a evoluo tecnolgica vem modi-ficando a prtica da medicina por meio de inovaes dos mtodos de diagnstico e teraputico, da indstria farmacutica e de equipamentos mdicos; por outro lado, pode ser usado numa referncia s conseqn-cias que acarreta para o jogo de interesses envolvidos na produo do ato mdico (Hora, 2006, s/p).

    O saber mdico, compreendido como o domnio de sa-ber que historicamente vem abarcando toda a amplitude dos problemas da sade humana, se materializa em prticas dis-cursivas especficas que tm definido o que normal, o que prprio, o que tratamento. Conforme a apreciao crtica de Cordeiro (1985), essa tendncia normativa da medicina

    vem exercendo sobre a populao uma particular forma de controle social que atinge todas as dimenses da vida do indivduo, ao legitimar e institucionalizar o papel do doente (p. 38). Esse desdobramento poltico da prtica mdica co-mentado por Frana (1994, p. 50):

    Nesse fato poltico de gerenciar a vida humana, a medicina adquire um papel normativo e pedaggi-co que autoriza a uma ao permanente no corpo social. Distribuir conselhos, reger relaes fsicas e morais do indivduo e da sociedade so tticas da racionalidade mdica para assegurar a insero de ambos a uma srie de modelos especficos de seu campo de ao.

    No mbito dessa medicalizao do social, o saber psi-quitrico vem definindo novas rotulaes diagnsticas e no-vas formas de tratamento do sofrimento psquico, cunhando termos e definies teraputicas que se tornaram parte da linguagem cotidiana. Observa-se, assim, um processo de psiquiatrizao da vida social, que vem transformando todo o mal-estar psquico em doena, fato correlato a uma grande valorizao da concepo biolgica do sofrimento psquico que, fundamentado na neurologia e na gentica, incentivam o tratamento baseado essencialmente em recursos qumicos. Essa reduo organicista da complexidade dos fatores envol-vidos na Sade Mental tem sido apresentada, pelos adeptos do determinismo biolgico, como o principal argumento de uma suposta cientificidade da psiquiatria contempornea:

    A euforia associada s neurocincias e biologia correlativa de uma marcante biologizao do ho-mem. Para os defensores mais radicais do biologi-cismo que se instalou no pensamento moderno, a natureza humana se reduz sua estrutura biolgica, o mal-estar que a afeta explicvel biologicamente, seu tratamento biolgico, e tudo isto j estaria de-finitivamente comprovado pela cincia (Bogochvol, 2001, p. 37).

    Conforme Birman (2000), o desenvolvimento da psi-cofarmacologia e da neurologia no sculo XX, marcada-mente com a descoberta da clorpromazina em 1952, teria alavancado a medicina psiquitrica a pleitear, finalmente, sua suposta legitimidade cientfica: a psiquiatria realizou seu sonho, perseguido desde o sculo XIX, de ser uma especia-lidade mdica, de fato e de direito. Alm disso, a psiquiatria ainda poderia se gabar de ter seus fundamentos no discurso rigoroso da cincia biolgica. (p. 241).

    Assim, atualizando os velhos sonhos organicistas mo-relianos j plantados na segunda metade do sculo XIX (Rocha, 1997), a psiquiatria se tornaria um saber fundado, essencialmente, na cincia biolgica e, com isso, passaria a definir um novo modo de funcionamento de sua clnica, onde os medicamentos psicofrmacos seriam o novo e o principal

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    Ferrazza, D. A., Luzio, C. A., Rocha, L. C., & Sanches, R. R. (2010). A banalizao da prescrio de psicofrmacos.

    dispositivo para o tratamento e cura dos agora chamados transtornos mentais (Aguiar, 2003).

    Essa tendncia prescritiva tem convertido os psicofr-macos, na expresso de Ferraz (2002), em verdadeiros best sellers do mercado farmacutico mundial. Na aliana entre indstria farmacutica e medicina ocorre um esforo para estabilizar na sociedade um discurso biolgico e o conceito das doenas, fazendo com que a populao aprenda a reco-nhecer em suas experincias de vida os critrios de diag-nstico... (Aguiar, 2003, p. 8). Essa circunstncia tem sido fortemente fomentada pela frentica corrida tecnolgica da indstria farmacutica, que constantemente oferece novas drogas de maior tecnologia e, supostamente, de melhor efi-ccia do que as anteriormente disponveis no mercado. Es-ses novos medicamentos serviriam, em alguns casos, para criar novas indicaes teraputicas ao organizar sintomas antes dispersos e inespecficos em novos quadros noso-grficos, para os quais o novo frmaco indicado como tratamento (Angel, 2007; Cordeiro, 1985). Na realidade, longe de representar uma forma de interveno tcnica, o novo medicamento substitui o dilogo do mdico com o paciente, garante o prestgio profissional e medicaliza pro-blemas vitais (Cordeiro, 1985, p. 72).

    A conjuno de interesses envolvidos na relao entre a indstria farmacutica e o profissional de medicina, muitas vezes, guarda pouca ou nenhuma relao com a sade do pa-ciente. O mdico ganha credibilidade ao prescrever medica-mentos de ltima gerao e, ainda, recompensado por sua fidelidade atravs de uma srie de vantagens cujo significado financeiro no nada desprezvel (Greenland, 2009). Em contrapartida, o laboratrio ganha um engajado representan-te. Nesse sentido, Telles (2000) apresenta elementos do que chama de esprio conluio formado entre a medicina e a indstria farmacutica:

    (...) a prestigiadssima New England Journal of Me-dicine confessou ter por vrias vezes cedido a essas presses [da indstria farmacutica], publicando artigos, favorveis a determinadas medicaes, es-critos por mdicos que tinham vnculos financeiros com os laboratrios que fabricavam tais medica-es. Isso mostra a que nveis podem chegar essa aliana, envolvendo o que seria o grupo de elite da medicina americana, estabelecendo esprios con-luios entre a indstria farmacutica e a academia, tudo sacramentado sob o ttulo de investigaes cientficas (s/p).

    Circunstanciado por esses fatores, a prescrio de me-dicamentos, esse procedimento exclusivo da medicina, vem constituindo-se em um avalizador importante do papel de ge-renciamento da Sade Mental exercido pela psiquiatria que, na grande maioria dos casos, tem apresentado a prescrio de me-dicamentos como a nica forma cientfica de tratamento, mes-mo que, para isso, seja necessrio passar por cima de qualquer questo que possa implicar uma outra explicao e/ou qualquer

    outro tipo de ateno que possa ser oferecido ao atendimento do sofrimento psquico (Amarante, 2007; Barbosa & Mendes, 2005; Barros, 2008; Igncio & Nardi, 2007; Lamb, 2008).

    Isto posto, tendo em vista a grande relevncia atual da prescrio de psicofrmacos no processo de medicalizao, realizamos um estudo exploratrio sobre a expanso da pres-crio de psicofrmacos na Rede Pblica de Sade, cujos parmetros e procedimentos sero apresentados a seguir.

    A cidade onde realizamos a pesquisa situa-se na VIII DRS (Departamento Regional de Sade), regio que com-preende 25 municpios do sudoeste paulista. Segundo Lamb (2008), essa regio apresentou, entre os anos de 2002 e 2006, um aumento de 280% na administrao de psicofrmacos dispensados populao pela Rede Pblica de Sade.

    Atentos a essa expanso da prescrio de psicofrma-cos na regio, o objetivo geral de nossa pesquisa foi o de conhecer, por meio do acompanhamento do registro de pron-turios, a trajetria percorrida pela populao de usurios do Ambulatrio de Sade Mental de um municpio de pequeno porte dessa regio paulista, desde sua condio de entrada no Pronto Atendimento at a definio do tipo de procedi-mento teraputico adotado, com especial ateno aos fatores determinantes da prescrio de psicofrmacos. Dentro desse objetivo geral, definimos nossos objetivos especficos como: a) examinar a distribuio percentual dos usurios que j chegam ao servio de Pronto Atendimento do Ambulatrio de Sade Mental sob prescrio e uso de psicofrmacos e investigar a procedncia dessa prescrio, b) verificar a dis-tribuio percentual dos encaminhamentos dados aos usu-rios pelos profissionais do atendimento de entrada do servio (somente acolhimento, encaminhamento psicoterapia, encaminhamento consulta psiquitrica, encaminhamento simultneo psicoterapia e consulta psiquitrica, e enca-minhamentos a outros mdicos da rede pblica de sade), c) investigar a relao entre a prescrio de medicamentos e o tipo de encaminhamento dispensado pelos profissionais do Pronto Atendimento, d) levantar a teraputica determina-da aos usurios encaminhados para tratamento psiquitrico no Ambulatrio e verificar sua relao com a condio de entrada, e) investigar a evoluo dos casos de usurios que receberam prescrio de psicofrmacos no atendimento psi-quitrico do Ambulatrio de Sade Mental.

    MtodoAmostra

    No total, foram examinados 345 pronturios, amostra aleatria estratificada por ano, obtida atravs de sorteio com o auxlio do programa Bioestat (Ayres, 2007), composta por 20% dos pronturios do total de usurios que deram entrada no PA no perodo.

    Consideraes ticasOs procedimentos desta pesquisa foram aprovados pelo

    Comit de tica da Faculdade de Cincias e Letras de Assis/UNESP (protocolo no 032/2007).

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    Procedimentos

    Coleta de dadosA trajetria dos usurios foi estudada a partir da anli-

    se das anotaes em pronturios dos usurios do servio de Pronto Atendimento (PA) do Ambulatrio de Sade Mental de uma cidade de pequeno porte do interior paulista no pero-do de 2005 a 2007. O recorte temporal deve-se ao fato de ter-se iniciado, em fins de 2004, o funcionamento de um Centro de Ateno Psicossocial (CAPS I) no municpio, servio no qual passaram a ser atendidos os usurios com quadros diag-nsticos considerados mais graves. O funcionamento desse servio, desde ento, estabeleceu o atual formato da rede de assistncia em Sade Mental naquele municpio.

    Anlise dos dadosDa amostra, foram definidos, conforme os dados dos

    pronturios, os grupos de usurios que: a) deram entrada ao PA j sob prescrio de psicofrmacos, b) deram entrada ao PA sem prescrio psicofarmacolgica prvia, c) PA encami-nhou psicoterapia, d) no receberam outro encaminhamento alm do PA, e) PA encaminhou consulta psiquitrica, f) PA encaminhou simultaneamente psicoterapia e consulta psi-quitrica, g) receberam prescrio de psicofrmacos quando encaminhados psiquiatria, h) no receberam prescrio de psicofrmacos quando encaminhados psiquiatria.

    O plano de anlise da pesquisa quantitativa consistiu na anlise exploratria descritiva dos grupos acima caracteriza-dos. Foram calculadas as freqncias percentuais relativas e realizados os cruzamentos e comparaes concernentes aos objetivos do estudo.

    Resultados

    Sobre a condio de entrada: apresentao de dados sobre o uso prvio de medicao pelos usurios que procuraram o servio de Pronto Atendimento (PA)

    Pesquisamos a condio de entrada, quanto ao uso pr-vio de medicao, dos sujeitos que foram atendidos no PA ao longo do perodo delimitado. Fizemos a distribuio dos usurios entre as categorias: usurios que procuraram o PA j com medicao prvia (CMP) e que procuraram o PA sem medicao prvia (SMP). Os resultados dessa distribuio esto apresentados na Tabela 1.

    Condio de entradaFrequncia

    N %CMP 224 65SMP 121 35Total 345 100

    Tabela 1Distribuio frequencial e percentual dos usurios que de-ram entrada ao PA, no perodo de 2005 a 2007, segundo sua condio de entrada

    CMP: usurios com medicao prviaSMP: usurios sem medicao prvia

    Como mostra a Tabela 1, do exame de 345 pronturios de usurios do ambulatrio, constatamos que quase dois ter-os dos usurios (65%) j deram entrada no PA sob prescri-o de psicofrmacos.

    Como a maioria dos usurios chega ao PA j sob pres-crio de psicofrmacos, investigamos a procedncia dessa prescrio prvia aos usurios que deram entrada no PA para saber se provinham, ou no, de prescrio psiquitrica. Ve-rificamos, ento, que apenas 38% dos usurios previamente medicados receberam sua prescrio psicofarmacolgica de mdicos psiquiatras. A maioria, 62% dos casos da amostra, recebeu a prescrio prvia de psicofrmacos de outras espe-cialidades mdicas, dentre as quais 30% de clnicos gerais, 20% de neurologistas, 5% de ginecologistas e 7% de outras especialidades.

    Sobre os encaminhamentos dispensados aos usurios pelos profissionais do PA

    Conforme os objetivos desta pesquisa, investigamos a proporo dos encaminhamentos dados aos usurios pelos profissionais do Pronto Atendimento (PA). Agrupamos os va-riados encaminhamentos em cinco categorias: somente PA; encaminhamento psicoterapia; encaminhamento consulta psiquitrica; encaminhamento simultneo psicoterapia e consulta psiquitrica; e encaminhamentos para outros mdi-cos da rede pblica de sade.

    Dos 345 usurios que deram entrada no PA, apenas seis no retornaram ao ambulatrio e, conseqentemente, no receberam qualquer encaminhamento. J excludos esses ca-sos, a Tabela 2 apresenta a distribuio dos usurios pelas categorias de encaminhamentos acima elencadas.

    Tabela 2Distribuio frequencial e percentual dos encaminhamentos dados aos usurios pelo PA, no perodo de 2005 a 2007

    EncaminhamentosFrequncia

    N %Psicoterapia 51 15Consulta psiquitrica 124 37Psiquiatria e Psicoterapia 117 34S Pronto Atendimento 30 9Outros encaminhamentos* 17 5Total 339 100

    *Outros encaminhamentos, no caso desta tabela, refere-se a usurios que foram encaminhados para outros mdicos especialistas da rede pblica de sade, no ano de 2007, perodo em que no havia psiquiatra no servio.

    Como mostra a Tabela 2, somados os usurios que fo-ram encaminhados somente consulta psiquitrica aos que foram encaminhados simultaneamente consulta psiquitri-ca e psicoterapia, temos que 71% dos usurios receberam encaminhamento psiquitrico. A porcentagem de encami-nhados psiquiatria se torna ainda maior se levarmos em considerao que os 5% dos usurios que receberam outros

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    encaminhamentos foram todos conduzidos a servios que substituam o atendimento psiquitrico provisoriamente fal-tante em parte do ano de 2007. Temos ento que, somadas to-das as formas de indicao psiquiatria, a expressiva maioria de 76% dos usurios do servio recebeu encaminhamento ao atendimento psiquitrico no perodo estudado. Observamos que o encaminhamento ao atendimento psiquitrico guarda forte relao com a condio de entrada dos usurios. Rea-lizamos, ento, a distribuio desses encaminhamentos con-forme a condio de entrada.

    Sobre os encaminhamentos dados aos usurios conforme sua condio de entrada

    Investigamos a relao entre a prescrio pr-via de medicamentos psicofarmacolgicos e o tipo de

    encaminhamento dado pelos profissionais do PA. Distri-bumos os encaminhamentos conforme a sua condio de entrada: com medicao prvia (CMP) e sem medicao prvia (SMP).

    Examinando a Tabela 3, percebemos que, no caso do grupo que j chegou sob medicao prvia (CMP), a soma dos atendimentos que compreenderam assistncia psiqui-trica, com ou sem o acompanhamento de psicoterapia, resulta em 89%. O percentual de encaminhamentos psi-quitricos chega a 94% se somarmos a categoria outros encaminhamentos, composta de usurios que sofreram en-caminhamentos substitutivos ao atendimento psiquitrico faltante no perodo. Temos ento que, do grupo de usurios previamente medicados, um nmero muito prximo da to-talidade, 94%, recebeu encaminhamento psiquitrico.

    Condio de entrada

    EncaminhamentosGrupo CMP 65% Grupo SMP 35% Total

    N % N % N %Psicoterapia 8 4 43 36 51 15Psiquiatria 107 49 17 14 124 37Psiquiatria e Psicoterapia 87 40 30 25 117 34S Pronto Atendimento 6 3 24 20 30 9Outros encaminhamentos* 11 5 6 5 17 5Total 219 100** 120 100 339 100

    Tabela 3Distribuio frequencial e percentual dos encaminhamentos dados pelo PA aos usurios segundo a condio de entrada, no perodo de 2005 a 2007

    *Outros encaminhamentos, usurios que foram encaminhados para outras especialidades mdicas da rede pblica de sade, no ano de 2007.** A soma das porcentagens, devido aos regulares critrios de aproximao, supera ligeiramente os 100%.

    J no grupo de usurios que se apresentaram sem me-dicao prvia (SMP), a distribuio dos encaminhamentos bem diferente: neles, a soma de todas as modalidades de encaminhamentos psiquiatria resulta em um total de 44%, percentual bem diverso dos 94% dos encaminhamentos psiquiatria do grupo previamente medicado.

    Examinamos, ento, o tratamento dado aos usurios en-caminhados psiquiatria, subdivididos conforme sua condi-o de entrada.

    Sobre o tratamento dado aos usurios que foram encaminhados psiquiatria

    Investigamos qual foi o tratamento determinado aos usurios que foram encaminhados consulta psiquitrica pelos profissionais do PA. Classificamos os tratamentos da-dos conforme as categorias: tratamento com prescrio de medicao e tratamento sem prescrio de psicofrmacos, subdividindo-os conforme a condio de entrada. Os dados, j descontados os 13 casos de usurios que no comparece-ram consulta agendada, esto apresentados na Tabela 4.

    Condio de entrada

    Grupo CMP 65% Grupo SMP 35% Total

    N % N % N %Medicamentoso 183 99 42 98 225 99No medicamentoso 2 1 1 2 3 1Total 185 100 43 100 228 100

    Tabela 4Distribuio freqencial e percentual dos usurios encaminhados psiquiatria conforme a natureza do tratamento oferecido (medicamentoso ou no medicamentoso), segundo a condio de entrada (CMP ou SMP), no perodo de 2005 a 2007

    *Dos 241 usurios encaminhados psiquitrica, 13 faltaram consulta.

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    Como indica a Tabela 4, dos usurios que compareceram consulta psiquitrica, a despeito das mais variadas queixas e sintomas registrados nos pronturios, praticamente todos (99%), salvo raras e precisas excees, receberam prescrio psicofarmacolgica. Investigamos o motivo especfico daque-les trs usurios no terem recebido prescrio psicofarma-colgica. Pudemos observar que eram casos extremamente excepcionais: uma mulher grvida que no poderia ser me-dicada com psicofrmacos, uma pessoa que apenas solicitava atestado mdico-psiquitrico para constar em requerimento de benefcio financeiro ao INSS e um usurio encaminhado pelo Hospital Geral local por tentativa de suicdio relacionada a especificidades da medicao, que foi mantido, ento, sob observao sem o uso de medicamentos.

    Procuramos, ento, investigar a evoluo dos casos dos usurios medicados pela psiquiatria.

    Sobre a evoluo dos casos de usurios medicados pela psiquiatria

    Evoluo dos casosFreqncia

    N %Alta no tratamento psiquitrico 3 1Continuao do tratamento psiquitrico 102 47Internao psiquitrica 7 3Encaminhamento ao CAPS para continuidade do tratamento 30 9Encaminhamento ao atendimento neurolgico 5 2Encaminhamento a outros mdicos da Rede pblica de sade 17 8Transferncia do tratamento psiquitrico para outra instituio* 4 2Abandono do tratamento psiquitrico 73 34Total 217 100

    Examinamos os registros de evoluo dos casos dos usurios que receberam prescrio de psicofrmacos no atendimento psiquitrico at outubro de 2008, quando foi re-alizada a coleta dos dados, de forma que compreendem um perodo varivel de dez a quarenta e seis meses, tomando por limites, respectivamente, os casos de final de 2007 e incio de 2005. Distribumos os dados sobre a evoluo dos casos nas seguintes categorias: alta no tratamento psiquitrico, conti-nuao do tratamento psiquitrico, internao psiquitrica, encaminhamento ao CAPS para continuidade do tratamento, encaminhamento para tratamento neurolgico, encaminha-mento a outras especialidades mdicas da rede pblica de sade, transferncia do tratamento psiquitrico para outra instituio e abandono do tratamento psiquitrico.

    Dos 225 pronturios de usurios medicados pela psi-quiatria, oito no continham anotaes referentes evoluo dos casos e, portanto, no constam da distribuio. Feita a distribuio dos 217 casos restantes pelas categorias acima elencadas, obtivemos a Tabela 5.

    Tabela 5Distribuio frequencial e percentual dos usurios medicados pela psiquiatria conforme a evoluo dos casos, no perodo de 2005 a 2007

    *Usurios que informaram que iriam transferir o tratamento psiquitrico para outra instituio devido mudana de cidade ou preferncia por mdico particular.

    Como mostra a Tabela 5, dentre os usurios que foram medicados pela psiquiatria, constatamos que apenas trs re-ceberam alta do tratamento psiquitrico. Procuramos colher mais informaes dessas excees e verificamos que em todos esses casos havia registro de alta por solicitao do prprio usurio. De forma que, salvo essas altas a pedido, no se encontra registro de nenhum caso de usurio que te-nha recebido alta do tratamento psiquitrico medicamentoso. A maioria relativa dos usurios, 47%, ainda estava sob tra-tamento psiquitrico medicamentoso quando da coleta dos dados e 33% dos usurios haviam abandonado o tratamento psiquitrico.

    Discusso

    A discusso dos nossos dados est apresentada em quatro eixos bsicos, conforme a seguinte especificao: a prescrio prvia de psicofrmacos, o encaminhamento dado aos usurios pelo servio de PA, o tratamento dispensado aos usurios encaminhados psiquiatria e a evoluo dos casos medicados pela psiquiatria.

    Sobre a prescrio prvia de psicofrmacosNossos dados mostram que uma maioria de 65% dos

    usurios j chega ao PA sob medicao psicofarmacolgica

  • Ferrazza, D. A., Luzio, C. A., Rocha, L. C., & Sanches, R. R. (2010). A banalizao da prescrio de psicofrmacos.

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    e que 62% desses pr-medicados receberam prescries de atendimento mdico no psiquitrico. Essa freqncia de prescries de psicofrmacos operada fora das especialida-des mdicas psiquitrica e neurolgica est em conformi-dade com a literatura sobre a questo (Almeida, Coutinho, & Pepe, 1994; Andrade, Andrade, & Santos, 2004; Falco, Monsanto, Nunes, Marau, & Falco, 2007; Mari & Jor-ge, 1997; Noto e cols., 2002). Ainda que se reconhea que medicaes psiquitricas podem ser usadas por outras mo-dalidades clnicas, a prtica generalista de prescrio de psi-cofrmacos tem sido associada, pela literatura especializada (Birman, 2000; Roudinesco, 2000), ao incremento da medi-calizao da populao em detrimento de atendimentos mais atentos s condies particulares da pessoa sob sofrimento psquico:

    Diante de qualquer angstia, tristeza ou desconfor-to psquico, os clnicos passaram a prescrever, sem pestanejar, os psicofrmacos mgicos, isto , os an-siolticos e antidepressivos. A escuta da existncia e da histria dos enfermos foi sendo progressivamen-te descartada e at mesmo, no limite, silenciada. En-fim, por essa via tecnolgica, a populao passou a ser ativamente medicalizada, numa escala sem pre-cedentes (Birman, 2000, p. 242).

    Sobre o encaminhamento dado aos usuriosOs dados colhidos so indicativos da existncia de uma

    tendncia dos profissionais do PA em encaminharem a ampla maioria dos usurios que do entrada no ambulatrio para a consulta psiquitrica, acompanhado ou no de outros proce-dimentos. Essa alta freqncia de encaminhamentos psi-quiatria fortemente sugestiva de subordinao do trabalho dos profissionais da equipe de sade a um paradigma emi-nentemente mdico de atendimento em Sade Mental (Yasui & Costa-Rosa, 2008; Luzio, 2003; Tenrio, 2000).

    Em nossos dados, a alta freqncia de encaminhados psiquiatria pelos profissionais do PA parece estar forte-mente influenciada pelo fato de grande parte dos usurios, 65%, j se apresentarem ao servio sob prescrio prvia de psicofrmacos. De fato, nesse subgrupo de pacientes pr-medicados a porcentagem de encaminhamentos psi-quiatria chega a quase totalidade (94%). A princpio, no h o que estranhar no fato do usurio previamente medicado ser encaminhado psiquiatria, posto que este encaminha-mento seria necessrio para avaliar a adequao da medi-cao e, conforme o caso, confirm-la, fazer as adequaes necessrias, ou suprimi-la. No entanto, esse cuidado apa-rentemente criterioso fortemente contraditado por nossos dados que mostram, como examinaremos a seguir, que pra-ticamente todos os usurios pr-medicados encaminhados psiquiatria recebem prescrio de psicofrmacos.

    Sobre o tratamento dispensado aos usurios encaminhados psiquiatria

    Nossos dados mostram que 99% dos usurios que che-gam ao servio de PA previamente medicados recebem uma reiterativa prescrio psiquitrica de psicofrmacos. No pudemos comparar qualitativamente as medicaes prvias com as prescritas pelo atendimento psiquitrico do Ambula-trio. Mas a verdade que a insero do usurio no uso de psicofrmacos iniciada por qualquer especialidade mdica sempre acompanhada pela prescrio de psicofrmacos por parte do servio psiquitrico. Dessa forma, ainda que a con-sistncia de cada prescrio especfica no tenha sido objeto do presente estudo, pode-se dizer que o atendimento psiqui-trico estudado nunca nega sua chancela, ainda que possa operar eventuais adequaes, prescrio de psicofrmacos generalizada entre outras especialidades mdicas.

    Nossos dados mostram tambm que, dentre os usu-rios encaminhados psiquiatria sem medicao prvia, 98% tambm no escapam da prescrio psicofarmacolgica. Isso quer dizer que, independentemente da condio de entrada, o encaminhamento psiquiatria sempre implica prescrio de psicofrmacos. verdade que encontramos, dentre os 228 usurios encaminhados psiquiatria, trs casos em que no houve prescrio de psicofrmaco. Mas, como j pudemos mostrar na apresentao dos dados, tratavam-se de casos especiais em que a medicao era absolutamente contra-indicada ou tratava-se de mera obteno burocrtica de um atestado mdico.

    Nesse sentido, nossos dados corroboram a existncia de uma tendncia generalizada da psiquiatria de prescrio de psicofrmacos que a literatura especializada j percebeu nas aes dos servios em sade mental (Bezerra, 1987; Yasui & Costa-Rosa, 2008; Lamb, 2008; Tenrio, 2000). Essa ten-dncia vem estabelecendo o psicofrmaco como principal, ou mesmo o nico, dispositivo da psiquiatria no tratamento de qualquer tipo de sofrimento psquico (Amarante, 2007; Bezerra, 1987; Birman, 2000; Guarido, 2007; Igncio & Nardi, 2007; Lamb, 2008; Rodrigues, 2003).

    Essa verdadeira compulso da psiquiatria em pres-crever psicofrmacos a qualquer paciente que se encontra sob seu mbito de ao, alm de trazer extraordinrias di-ficuldades para a construo de outras aes teraputicas (Luzio, 2003), expe o usurio a um contato com a droga psicofarmacolgica, com seus efeitos colaterais e de depen-dncia (Mendona & Carvalho, 2005), do qual nem sempre ter condies de se libertar. Nesse sentido, importante ob-servar como se desenvolve, em nossos dados, a evoluo dos casos medicados pela psiquiatria.

    Sobre a evoluo dos casos medicados pela psiquiatriaNossos dados sobre o desenvolvimento dos casos me-

    dicados pela psiquiatria mostram que, quando da coleta dos

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    dados, 47% dos usurios continuavam em tratamento psiqui-trico no prprio ambulatrio e a porcentagem dos encami-nhados para tratamento em outros servios, especificados na Tabela 5 de nossa apresentao dos dados, somavam 18% dos casos. As anotaes de abandono de tratamento perfize-ram 34% e os registros de alta, apenas 1% dos casos.

    Desses dados, destaca-se a baixssima freqncia de alta dos casos encaminhados psiquiatria, o que sugere uma tendncia preocupante. A despeito de a psiquiatria moder-na operar amplamente com a noo de transtorno, que no pode deixar de supor algo de transitoriedade, a verdade que nossos dados no registram a ocorrncia de altas no tra-tamento psiquitrico. Rigorosamente, encontramos trs epi-sdios de alta nos 217 casos acompanhados. No entanto, em todos os casos, foram altas concedidas a pedido do usurio, de forma que, num perodo que variou de dez a 46 meses de acompanhamento, nossa amostra no conseguiu encontrar nenhum caso de alta determinada pelo atendimento psiqui-trico a qualquer usurio que, por alguma vez, tivesse sido submetido a tratamento com drogas psicofarmacolgicas. Os usurios atendidos pela psiquiatria permanecem indeter-minadamente submetidos teraputica psicofarmacolgica, resguardados aqueles que abandonam o tratamento. Como no plausvel considerar o abandono de tratamento como cura, impossvel deixar de ver nessa inexistncia de alta uma tendncia a cronificao que tende a vincular o usurio ao psicofrmaco para todo o sempre, com todos os seus des-dobramentos relativos aos efeitos colaterais e dependncia qumica e psicolgica, sempre contrrios ao bem-estar e a autonomia do sujeito. Como uma pardia da internao ma-nicomial vitalcia de outros tempos, que as conquistas demo-crticas tornaram dificilmente defensvel (Amarante, 1995, 2007; Amarante & Torre, 2001; Basaglia, 1985; Costa-Rosa, Luzio, & Yasui, 2003; De Tilio, 2007; Lougon, 2006; Luzio, 2003; Yasui, 2006), estaramos sujeitos, hoje, a um tipo de manicomialismo qumico que tambm tende a se estender indeterminadamente.

    Consideraes finais

    Como j estabelecemos no incio deste artigo, o obje-tivo do presente trabalho foi problematizar o atual processo de medicalizao generalizada da populao e apresentar um estudo exploratrio sobre essa tendncia no mbito de um Ambulatrio de Sade Mental de uma pequena cidade do sudoeste paulista. Consideramos necessrio fazer registro de nossa clara conscincia dos limites das possibilidades de generalizao de nossas observaes para outros mbitos do servio de atendimento em Sade Mental. Sabemos que nos-so estudo foi realizado em uma pequena instituio desse sis-tema que, seguramente, apresenta grande heterogeneidade. No entanto, dado o municpio estudado ser de pequeno porte e apresentar um dos menores ndices de consumo de psico-frmacos da regio, consideramos que as observaes sus-citadas por esses dados no podem ser incomuns em outras

    unidades de Sade Mental e podem demonstrar algumas ca-ractersticas do fenmeno estudado em um mbito mais geral e, sem dvida, mais preocupante.

    Ainda que pesem essas reconhecidas limitaes, deve-mos registrar nestas consideraes finais que nossos dados so indicativos de que o dispositivo de sade mental estu-dado tem uma atuao fortemente promotora do processo de medicalizao psicofarmacolgica da populao de usurios daquela unidade, cujo perfil bastante comum nos servios de sade mental oferecidos populao em geral. As este-reotipias e limitaes desse modelo mdico-centrado, que parece guiar-se pelo lema psicofrmacos para todos e para sempre, se contrapem s orientaes mais modernas e so-cialmente atentas da atual Poltica Nacional de Sade Men-tal que, apoiada na lei 10.216/02, preconiza uma ateno psicossocial atenta s complexidades e especificidades do sujeito em sofrimento psquico. No se pode desconsiderar que limitaes e insuficincias na aplicao dessas diretrizes facilitem o desenvolvimento reducionista e pouco respons-vel que implementa a medicalizao sistemtica dos usu-rios desses servios. Bem a propsito, dados como os nossos sugerem que, a despeito do amplo espao discursivo dessas diretrizes entre os profissionais de sade mental, resistncias e insuficincias podem fazer com que os resultados efetivos mostrem-se mais prximos de um processo de medicalizao generalizada e crnica da populao do que da ampliao responsvel dos direitos sade mental coletiva que a atual Poltica Nacional de Sade Mental procura efetivar.

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    Daniele de Andrade Ferrazza doutoranda em Psicologia pelo Programa de Ps-graduao da Faculdade de Cincias e Letras UNESP/Assis da Universidade Estadual Paulista J-lio de Mesquita Filho, campus Assis-SP.Cristina Amlia Luzio Professora Assistente Doutora da Faculdade de Cincias e Letras UNESP/Assis da Univer-sidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, campus Assis-SP.Luiz Carlos da Rocha Professor Assistente Doutor da Fa-culdade de Cincias e Letras UNESP/Assis da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, campus Assis-SP.Raphael Rodrigues Sanches Mestre em Psicologia pelo Programa de Ps-graduao da Faculdade de Cincias e Le-tras UNESP/Assis da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, campus Assis-SP.

    Recebido: 13/08/20091 reviso: 11/02/2010

    Aceite final: 30/03/2010