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Diversidade e Gestão 2(2): 76-89. 2018 Volume Especial: Conservação in situ e ex situ da Biodiversidade Brasileira e-ISSN: 2527-0044 76 A BAÍA DE GUANABARA É UM AMBIENTE IMPORTANTE PARA A CONSERVAÇÃO NEOTROPICAL? UMA ABORDAGEM ICTIOLOGICA Clara Velloso Teixeira Leite 1 , Adriano Paulo de Lima, Thaís Rodrigues Maciel, Sergio Ricardo Brito Santos & Marcelo Vianna Resumo - A Baía de Guanabara é um estuário icônico, dotado de grande importância histórica, econômica, ambiental, turística e paisagística. Contudo, por estar localizada em uma área metropolitana, a baía vem sofrendo ao longo dos anos com intenso impacto antrópico. O objetivo deste trabalho foi de avaliar se, mesmo com o elevado nível de degradação ambiental, ela pode ser considerada uma área prioritária para a conservação. Para isso foi realizado um levantamento dos registros históricos da ictiofauna da baía, sendo obtidas 202 espécies, das quais 107 tiveram dados informativos da distribuição ao longo do tempo e dentre estas, 17 foram selecionadas para uma discussão mais aprofundada, posto que apresentaram estar sob algum grau de ameaça. Analisando a biologia, a importância ecológica e econômica das espécies, além dos métodos de obtenção dos dados, nosso trabalho foi capaz de demonstrar as respostas distintas de cada espécie aos impactos antrópicos e ratificar, através das diretrizes estipuladas pela Comissão Nacional da Biodiversidade (CONABIO), a urgência de implementação de medidas para a preservação da baía. Sendo assim, nossos resultados confirmam que a conservação e recuperação ambiental desse estuário é extremamente relevante para a manutenção da biodiversidade neotropical, refletindo na saúde ecossistêmica e no bem estar social e econômico das populações humanas circunvizinhas. Palavras-chave: impactos ambientais; urbanização desordenada; poluição marinha; registro histórico; espécies em risco de extinção. Abstract - Guanabara Bay is an iconic estuary, with great historical, economic, environmental, touristic and scenic importance. However, because it is located in a metropolitan area, the bay has suffered over the years with intense anthropic impact. The objective of this work was to evaluate whether even with the high level of environmental degradation, it should still be considered a priority area for conservation. For this, the historical records of the ichthyofauna in the bay were surveyed, registering 202 species of which 107 had enough informative data of their distribution over time, and 17 of those species were selected for a deeper discussion, since they presented to be under some level of threat. Analyzing the biology, the ecological and economic importance of the species, as well as the methods of obtaining the data, it was possible to demonstrate the differential responses of each species due to anthropic impacts and affirm, through the CONABIO’s guidelines, the urgency of implementation of measures towards the preservation of the bay. Therefore, our results confirm that conservation and recuperation of this estuary is extremely relevant for the maintenance of the neotropical biodiversity, reflecting on the ecosystem health and on the social and economic wellness of the populations surrounding it. Keywords: environmental impacts; disorderly urbanization; marine pollution; historical record; species at risk of extinction. Introdução Os estuários são ambientes costeiros extremamente dinâmicos caracterizados por gradientes de salinidade, temperatura e ampla distribuição de nutrientes, de forma a produzir uma variedade de micro habitats (Wolanski & Elliott 2007). Considerados áreas de berçário e alimentação (Santos et al. 2015, Andrade et al. 2016, Corrêa & Vianna 2016, Mérigot et al. 2017, Gonçalves-Silva & Vianna 2018), os estuários são essenciais para a manutenção dos estoques marinhos. A Baía de Guanabara é o segundo maior estuário brasileiro, localizada na região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro Laboratório de Biologia e Tecnologia Pesqueira (BioTecPesca), Departamento de Biologia Marinha, Instituto de Biologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Avenida Carlos Chagas Filho, 373, Centro de Ciências da Saúde, Bloco A, Ilha do Fundão, CEP: 21941-902. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 1 Autor de correspondência: [email protected]

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Diversidade e Gestão 2(2): 76-89. 2018 Volume Especial: Conservação in situ e ex situ da Biodiversidade Brasileira

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A BAÍA DE GUANABARA É UM AMBIENTE IMPORTANTE PARA A CONSERVAÇÃO NEOTROPICAL? UMA ABORDAGEM ICTIOLOGICA

Clara Velloso Teixeira Leite1, Adriano Paulo de Lima, Thaís Rodrigues Maciel,

Sergio Ricardo Brito Santos & Marcelo Vianna

Resumo - A Baía de Guanabara é um estuário icônico, dotado de grande importância histórica, econômica, ambiental, turística e paisagística. Contudo, por estar localizada em uma área metropolitana, a baía vem sofrendo ao longo dos anos com intenso impacto antrópico. O objetivo deste trabalho foi de avaliar se, mesmo com o elevado nível de degradação ambiental, ela pode ser considerada uma área prioritária para a conservação. Para isso foi realizado um levantamento dos registros históricos da ictiofauna da baía, sendo obtidas 202 espécies, das quais 107 tiveram dados informativos da distribuição ao longo do tempo e dentre estas, 17 foram selecionadas para uma discussão mais aprofundada, posto que apresentaram estar sob algum grau de ameaça. Analisando a biologia, a importância ecológica e econômica das espécies, além dos métodos de obtenção dos dados, nosso trabalho foi capaz de demonstrar as respostas distintas de cada espécie aos impactos antrópicos e ratificar, através das diretrizes estipuladas pela Comissão Nacional da Biodiversidade (CONABIO), a urgência de implementação de medidas para a preservação da baía. Sendo assim, nossos resultados confirmam que a conservação e recuperação ambiental desse estuário é extremamente relevante para a manutenção da biodiversidade neotropical, refletindo na saúde ecossistêmica e no bem estar social e econômico das populações humanas circunvizinhas. Palavras-chave: impactos ambientais; urbanização desordenada; poluição marinha; registro histórico; espécies em risco de extinção. Abstract - Guanabara Bay is an iconic estuary, with great historical, economic, environmental, touristic and scenic importance. However, because it is located in a metropolitan area, the bay has suffered over the years with intense anthropic impact. The objective of this work was to evaluate whether even with the high level of environmental degradation, it should still be considered a priority area for conservation. For this, the historical records of the ichthyofauna in the bay were surveyed, registering 202 species of which 107 had enough informative data of their distribution over time, and 17 of those species were selected for a deeper discussion, since they presented to be under some level of threat. Analyzing the biology, the ecological and economic importance of the species, as well as the methods of obtaining the data, it was possible to demonstrate the differential responses of each species due to anthropic impacts and affirm, through the CONABIO’s guidelines, the urgency of implementation of measures towards the preservation of the bay. Therefore, our results confirm that conservation and recuperation of this estuary is extremely relevant for the maintenance of the neotropical biodiversity, reflecting on the ecosystem health and on the social and economic wellness of the populations surrounding it. Keywords: environmental impacts; disorderly urbanization; marine pollution; historical record; species at risk of extinction. Introdução

Os estuários são ambientes costeiros extremamente dinâmicos caracterizados por gradientes de salinidade, temperatura e ampla distribuição de nutrientes, de forma a produzir uma variedade de micro habitats (Wolanski & Elliott 2007). Considerados áreas de berçário e alimentação (Santos et al. 2015, Andrade et al. 2016, Corrêa & Vianna 2016, Mérigot et al. 2017, Gonçalves-Silva & Vianna 2018), os estuários são essenciais para a manutenção dos estoques marinhos. A Baía de Guanabara é o segundo maior estuário brasileiro, localizada na região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro                                                                                                                          Laboratório de Biologia e Tecnologia Pesqueira (BioTecPesca), Departamento de Biologia Marinha, Instituto de Biologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Avenida Carlos Chagas Filho, 373, Centro de Ciências da Saúde, Bloco A, Ilha do Fundão, CEP: 21941-902. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 1Autor de correspondência: [email protected]  

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(22°57’27’’-22°40’57’’S; 43°2’11’’W-43°2’11’’W), é circundada por sete municípios cujas populações somadas totalizam 9.734.743 habitantes (IBGE 2018). Esse ambiente icônico possui grande importância histórica, ambiental, cultural, turística e paisagística. Apresenta uma área de 384 km², um volume médio de água de 1,87 x 109m3, bacia de drenagem de 4.080 km² e profundidade máxima de 30m no canal central (Meniconi et al. 2012). Silva-Junior et al. (2016) dividiram esse estuário de acordo com gradientes biológicos e oceanográficos em três compartimentos: baixo estuário (área de transição com o oceano Atlântico, crucial para a circulação de água dentro da baía), médio estuário (área de transição) e alto estuário (região que recebe maior influência da drenagem continental), propensos a intensas variações ambientais bióticas e abióticas. Sendo um estuário neotropical, a Baía de Guanabara sofre grandes variações ao longo do ano: durante o período seco do inverno (junho a agosto) a coluna d´água é mais homogênea e a temperatura e salinidade não variam tanto. No período de chuvas (dezembro a março), esse ambiente torna-se claramente estratificado, além de apresentar ressurgência (Valentin et al. 1999, Silva-Junior et al. 2016).

Esse importante estuário fluminense apresenta uma grande diversidade de ambientes (Figura 1) e sofre historicamente com uma série de impactos antrópicos, através do grande aporte de resíduos sólidos, esgoto doméstico não tratado e poluentes persistentes, tais como metais pesados e hidrocarbonetos (e.g. Pereira et al. 2007, Rosenfelder et al. 2012, Silva-Junior et al. 2012, Silva-Junior et al. 2016). Monteiro et al. (2012) avaliaram o histórico de mudanças ambientais antropogênicas através do estudo do sedimento da baía. Seus resultados indicaram que antes da década de 1880 havia pouca ou baixa intervenção humana na Baía de Guanabara, panorama que começa a se alterar de 1880 até 1950, quando a concentração de metais pesados aumentou, coincidindo com a implantação de áreas urbanas e agrícolas ao longo da bacia de drenagem. Contudo, Monteiro et al. (2012) observaram no sedimento uma mudança realmente drástica após a década de 1950, quando ocorreu um grande crescimento da população do Rio de Janeiro. Esse é um indicativo de que nas últimas décadas, a influência antrópica sobre a Baía de Guanabara tem sido intensa, o que levanta preocupação em relação a sua conservação.

Entretanto, o quanto a Baía de Guanabara é importante para a conservação neotropical? Qual a relevância desse estuário? O Ministério do Meio Ambiente do Brasil (MMA) desenvolveu uma série de parâmetros para avaliar se uma área é considerada prioritária ou não para a conservação, sendo os critérios relevantes ao uso sustentável a (1) presença de espécies com importância econômica, medicinal ou fitoterápica; (2) áreas de beleza cênica; (3) áreas ou espécies importantes para as populações tradicionais; e (4) áreas com espécies bandeira, que motivem ações de conservação e uso sustentável (CONABIO 2005). A estratégia de identificar a relevância de uma área para a conservação baseado em determinados táxons já foi empregada por Pinheiro et al. (2018) que ressaltaram a importância da exploração sustentável de espécies bandeira, a estrela-do-mar (Oreaster reticulatus) e a gorgônia (Phyllogorgia dilatata) para a preservação de área prioritária de conservação marinha no estado do Espírito Santo.

Segundo os critérios do MMA, são postas em destaque áreas importantes para o desenvolvimento com base na conservação ambiental, bem como da diversidade cultural e social (CONABIO 2005). Contudo, a determinação de uma área como prioritária para conservação não leva em consideração apenas os quesitos acima, mas também os custos de implementação do plano de preservação do ambiente. Uma grande área com intenso impacto antrópico como a Baía de Guanabara requer extensos recursos

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humanos e financeiros, e a implantação de numerosas medidas para que seja efetivamente conservada.

Nesse sentido, nosso objetivo foi avaliar se a Baía de Guanabara pode ser considerada como área prioritária para a conservação, e se deve ser alvo de investimentos financeiros voltados para sua preservação e recuperação. Para tal, utilizamos a ictiofauna como instrumento de avaliação ambiental do estuário, levando em consideração sua riqueza, seu registro histórico e sua função social. Material e Métodos A fim de avaliar como a composição e distribuição espacial das espécies de peixes se comportou ao longo dos anos dentro da Baía de Guanabara, foi realizada uma análise cientométrica na base Web of Science segundo a metodologia de Lolis et al. (2009). Para que fosse possível identificar a existência de mudança temporal, foram considerados artigos, no período de 1945 até 31 de agosto de 2018, utilizando as palavras-chave “fish” – adicionando o operador booleano asterisco (*) cuja finalidade é abranger todas as derivações desta palavra – e “Guanabara Bay”.

Com o objetivo de compilar o máximo de informações possível, o levantamento de dados secundários também contou com as coletas experimentais realizadas pelo Laboratório de Biologia e Tecnologia Pesqueira (BioTecPesca), da Universidade Federal do Rio de Janeiro e com dados de desembarques pesqueiros comerciais monitorados pelo BioTecPesca, do ano 2013 até 2015. Também foram incluídos outros artigos científicos disponíveis, mesmo que não registrados na análise cientométrica, além de terem sido consultados os estudos de Lopes (1989) e Buckup et al. (2000).

Os resultados obtidos foram tabelados, sendo o local de registro das espécies plotado em quadrantes no mapa da Baia de Guanabara (Figura 2) e considerada a data em que esses registros ocorreram. Com essas informações, foi possível distinguir para quais espécies o conjunto de dados foi capaz de informar a distribuição espacial e a distribuição ao longo do tempo. Identificamos ainda o risco de extinção das espécies a fim de avaliar quais destas estão sob algum grau de ameaça. Para tal, a classificação do risco de extinção utilizou em escala global, a Lista Vermelha da União Internacional de Conservação da Natureza - IUCN (www.iucnredlist.org) que categoriza as espécies ameaçadas em: pouco preocupante (LC), quase ameaçada (NT), vulnerável (VU), Ameaçada (EN), criticamente ameaçada (CR), extinta na natureza (EW), extinta (EX) e dados insuficientes (DD). Nacionalmente, empregamos a classificação disponibilizada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), disponível no site do Ministério do Meio Ambiente (www.mma.gov.br) e, regionalmente (município do Rio de Janeiro), optamos por Buckup et al. (2000), que seguem o mesmo padrão de categorização que a IUCN.

Consideramos ameaçadas neste estudo as espécies classificadas como NT, VU, EN, CR, EW ou EX, em escala global ou nacional. Uma vez reconhecidos os padrões históricos de ocorrência e distribuição dessas espécies, foi possível determinar três categorias: (i) espécies de peixes com ocorrência para a Baía de Guanabara, mas que não foram mais registradas nos últimos 10 ou 20 anos; (ii) espécies cuja distribuição espacial sofreram alteração com o passar do tempo, sumindo ou aparecendo em determinadas áreas; (iii) espécies que mantiveram constância na distribuição espacial desde os primeiros registros até os atuais.

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Figura 1. Diversidade de ambientes encontrados na Baia de Guanabara, Rio de Janeiro, sudeste do Brasil. Onde: A – Manilha de águas pluviais, com esgoto clandestino; B – Costão rochoso na Urca; C – Ilha de Paquetá; D – Manguezal na APA de Guapimirim; E – Praia arenosa.

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Figura 2. Mapa esquemático da Baía de Guanabara, Rio de Janeiro, litoral sudeste do Brasil, dividido em quadrantes de 4 km² (2 km x 2 km). Resultados e Discussão

Foram registradas 202 espécies que fazem ou fizeram parte da ictiofauna da Baía de Guanabara. Dessas, 107 (53%) tiveram registros passíveis de fazer inferências sobre o histórico de sua distribuição. Dentro desses 53%, 43 (21% das 202) espécies de peixes encaixaram-se na categoria iii (mantiveram constância na distribuição desde os primeiros registros até os atuais), enquanto 64 (32% das 202) tiveram alteração na distribuição e foram classificadas nas categorias i ou ii (Figura 3).

Mesmo com a intensa interferência antrópica sofrida pela Baía de Guanabara, ao longo de várias décadas, esse ambiente continua sendo extremamente rico e diverso. Esse fato é atestado por Silva-Junior et al. (2016), que registraram 130 espécies de peixes no estuário através de coletas, sem considerar outras fontes. Esse grande número de espécies demonstra a alta resiliência da baía, uma vez que ela ainda possui uma

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biodiversidade extremamente relevante e que precisa ser preservada (Silva-Júnior et al. 2016). Essa resiliência pode ser, em parte, explicada pela redundância funcional, característica conhecida dos ambientes tropicais em geral (Dolbeth et al. 2016). De fato, a existência de mais de uma espécie capaz de realizar o mesmo serviço ecossistêmico fornece resiliência a um ambiente que se encontra em processo de perda de diversidade (Mouillot et al. 2014; Dolbeth et al. 2016). Entretanto, estudos têm demonstrado que mesmo ambientes com grande riqueza e abundância podem apresentar distúrbios subavaliados (e.g. Mouillot et al. 2013), pois a contribuição funcional das espécies para o ecossistema é desproporcional (Mouillot et al. 2014). Nesse sentido, diante da possibilidade de existir apenas algumas espécies contribuindo para a manutenção da grande resiliência do ambiente em estudo, a preservação da biodiversidade encontrada na Baía de Guanabara faz-se ainda mais necessária e urgente.

Figura 3: Porcentagem de espécies da ictiofauna (N=202) com informações sobre os históricos da distribuição, na Baía de Guanabara, Rio de Janeiro, litoral sudeste do Brasil.

Das 107 espécies registradas na primeira análise, que tiveram registros passíveis

de inferências sobre o histórico de sua distribuição, 17 (15,9%) apresentam algum risco de ameaça a sua conservação (Tabela 1, Figura 4). Entre as espécies da categoria i, estão os cavalos-marinhos, Hippocampus erectus (Perry, 1810) e Hippocampus reidi (Ginsburg, 1933), o linguado, Paralichthys patagonicus (Jordan, 1889), o peixe-serra, Pristis perotteti (Müller & Henle, 1841), os tubarões-martelo, Sphyrna zygaena (Linnaeus, 1758) e Sphyrna tiburo (Linnaeus, 1758) e a raia-bandolim, Zapteryx brevirostris (Müller & Henle, 1841) que não apresentam registro de captura há mais de 10 anos na Baía; além do farnanguaio, Hyporhamphus unifasciatus (Ranzani, 1841) e do vermelho, Lutjanus synagris (Linnaeus, 1758) que não são registradas a mais de 20 anos. Na categoria ii (alteração na distribuição) o xixarro, Trachurus lathami (Nichols, 1920) teria – segundo os registros – perdido habitat nas regiões mais internas da Baía, enquanto o bagre-branco, Genidens barbus (Lacépède, 1803) teria supostamente avançado recentemente para o baixo estuário, onde não são encontrados registros antigos dessa espécie. Por fim, encaixam-se na categoria iii (manutenção da distribuição) a raia-borboleta, Gymnura altavela (Linnaeus 1758), tainha, Mugil liza (Valenciennes, 1836), sardinha-verdadeira, Sardinella brasiliensis (Steindachner, 1879) e pampo, Trachinotus falcatus (Linnaeus, 1758), que distribuem-se por todo o estuário;

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além da perumbeba, Pogonias cromis (Linnaeus, 1766), registrado no alto e médio estuário, e da pescada-amarela, Cynoscion acoupa (Lacépède, 1801), com ocorrência no médio e baixo estuário.

Com relação às espécies classificadas na categoria i, quatro delas – H. erectus, P. perotteti, S. zyagaena e S. tiburo – foram registradas em Buckup et al. (2000), lista que compilou, principalmente, exemplares depositados nas coleções ictiológicas do Museu Nacional do Rio de Janeiro e na Coleção de Chondrichthyes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Infelizmente, as datas de coleta desses exemplares não são mencionadas no estudo, de forma que não foi possível verificar a quanto tempo esses animais não são registrados. Contudo, as três espécies de elasmobrânquios estão provavelmente extintas na Baía de Guanabara (Marcelo Vianna, observação pessoal).

Os estuários são extremamente importantes para os elasmobrânquios, uma vez que servem tanto como áreas de alimentação, quanto como berçário (Gonçalves-Silva & Vianna 2018, Plumee et al. 2018). Considerando que a Baía de Guanabara é o segundo maior estuário do Brasil, é possível que a degradação desse habitat tenha contribuído negativamente para a manutenção das populações dessas espécies ao longo da costa sudeste brasileira. Como já alertado para G. altavela por Gonçalves-Silva & Vianna (2018), o desaparecimento desses elasmobrânquios é extremamente preocupante para a conservação da diversidade, já que desempenham um importante papel ecossistêmico e esse grupo apresenta riscos de extinção maiores que a maioria dos vertebrados, existindo diversos casos bem documentados de declínio populacional (Moore 2018). Os elasmobrânquios são especialmente suscetíveis a sobreexplotação por apresentar crescimento lento, maturidade sexual tardia, longevidade alta e baixa fecundidade (Stevens et al. 2000, Moore 2018). Nesse sentido, uma vez ocorrido declínio populacional, são necessárias décadas para que as populações da maioria das espécies de raias e tubarões se recuperem (Stevens et al. 2000, Moore 2018). Dos elasmobrânquios encontrados na Baía de Guanabara, P. perotteti não foi avaliada pela IUCN e encontra-se Criticamente Ameaçado no Brasil; S. zyagaena foi classificada como Vulnerável tanto pela IUCN, quanto nacionalmente e S. tiburo encontra-se Extinta Regionalmente segundo os dados do ICMBio, apesar de ser considerada Pouco Preocupante para a IUCN.

Ainda na categoria i, H. reidi e P. patagonicus não tiveram registro recente nos últimos 10 anos. No caso do H. reidi, essa espécie de cavalo-marinho é classificada como Deficiente de Dados (DD) pela IUCN e Criticamente Ameaçada (CR) no Brasil, tendo sido registrada por Lopes (1989) no quadrante D4 (médio estuário), por Castro et al. (2005) no quadrante D7 (baixo estuário) e coletada pelo BioTecPesca, em 2005 e 2006, nos quadrantes D7 e E7 (baixo estuário), respectivamente (Figura 2). Mesmo que os dados indiquem o desaparecimento local da espécie, é necessário ressaltar que essa ausência é incerta, pois o cavalo-marinho não é desembarcado pela pesca comercial e as amostragens biológicas realizadas no âmbito do BioTecPesca, de 2013 a 2015, focaram apenas nos pontos C5 e D5, e em fundos não consolidados, não abrangendo as áreas onde essa espécie havia sido previamente registrada (Figura 2). Quanto ao linguado P. patagonicus, a falta de ocorrência pode não ser representativa, uma vez que foram registrados apenas três indivíduos durante todas as coletas anteriores. Considerando o uso funcional do estuário, essa espécie é classificada como Visitante Marinha (Silva-Junior et al. 2016), sendo assim provável que seja uma espécie ocasional na Baía de Guanabara, penetrando no estuário esporadicamente junto de massas d´águas frias e não represente um caso real de perda de habitat.

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Ainda considerando a categoria i, duas espécies não apresentam registro há mais de 20 anos: H. unifasciatus e L. synagris. O gênero Hyporhamphus abrange pequenos peixes marinhos de distribuição circuntropical que formam cardumes em áreas costeiras, habitando substrato de fundo vegetado marinho ou bancos de areia (Banford 2010). A dieta desses animais, quando juvenis, consiste preferencialmente em alimentos de origem vegetal, mas pode incluir também pequenos crustáceos e moluscos na fase adulta (Figueiredo & Menezes 1978). Nesse sentido, a necessidade de material vegetal é uma possível explicação para o desaparecimento da espécie na Baía de Guanabara, uma vez que o grande aporte de matéria orgânica aumenta a turbidez da água, o que diminui a incidência de luz até o substrato, prejudicando os poucos habitats de angiospermas marinhas e bancos de algas do estuário (Kaiser et al. 2005). De fato, problemas relacionados à eutrofização antrópica oriundos da aglomeração humana e das atividades agroindustriais são registrados neste estuário desde meados no século XX (Dias-da-Cruz 2016). Ao mesmo tempo que a eutrofização prejudica os fotossintetizantes de fundo, ela favorece a proliferação de cianobactérias na coluna d’água, que utilizam a matéria orgânica dissolvida como fonte de nutrientes (Cao et al. 2018). Essas cianobactérias podem ser produtoras de toxinas (Canto-de-Sá 2010) e se for esse o caso na Baía de Guanabara, a vegetação subaquática seria ainda mais prejudicada. O vermelho Lutjanus synagris também pode ocorrer em áreas de vegetação marinha e manguezais, mas habita principalmente recifes de coral com águas claras (Claro & Lindeman 2008). Dessa forma, essa espécie deveria estar presente próximo a APA de Guapimirim e ao redor da ilha de Paquetá (no interior da Baía de Guanabara). Considerando que essa é uma espécie encontrada geralmente em águas límpidas da plataforma continental (Claro & Lindeman 2008), uma possível causa para a falta de registro pode ser a diminuição da qualidade da água dos locais de substrato consolidado dentro da Baía de Guanabara. Além disso, o gênero Lutjanus apresenta grande importância comercial (Menezes & Figueiredo 1980) de forma que sua ausência nos dados de desembarque corrobora a hipótese que ela realmente não é mais encontrada no estuário fluminense.

A categoria ii, por sua vez, apresentou dois representantes. Segundo os registros recentes de T. lathami, a espécie sofreu uma perda de habitat na porção mais interna da baía, enquanto G. barbus teria avançado em sua distribuição. O caso do G. barbus chama atenção, uma vez que foi registrado pela coleta CENPES em 2005 nos quadrantes C3 e E5 (alto e médio estuário, respectivamente), em 2006 em C5 e E3 (médio e alto estuário) e em 2007 em D5 (interseção entre baixo e médio estuário). Esses dados apontam para uma distribuição majoritária no alto e no médio estuário. Contudo, dados de desembarque mais recentes (2013 e 2014) registram essa espécie em C4, C5, E7 e F2 (Figura 2). A inclusão do quadrante E7 (muito próximo da entrada da baía, no baixo estuário) parece indicar que o G. barbus avançou em sua distribuição, ocupando um habitat onde antes não ocorria. No entanto, o padrão observado pode ser explicado quando se considera a técnica de coleta e o ciclo de vida desses animais. Genidens barbus é uma espécie anádroma que habita estuários e a plataforma continental do Brasil até a Argentina (Avigliano et al. 2015a, Avigliano et al. 2018), sendo classificada como marinha estuarina-dependente (Silva-Junior et al. 2016). Dessa forma, é esperado que seus juvenis encontrem-se nas porções mais internas do estuário (Avigliano et al. 2015b), o que explica sua captura por rede de arrasto na década de 2000. Quanto aos indivíduos adultos, é esperado que sejam encontrados no baixo estuário, mais próximos ao oceano aberto (Avigliano et al. 2016). Nesse sentido, os adultos não seriam registrados pelas redes de arrasto, mas sim pelos dados de

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desembarque, uma vez que a espécie apresenta importância econômica local. Isso pode explicar porque G. barbus só foi registrado no baixo estuário recentemente, uma vez que os dados de desembarque disponíveis são da década de 2010. Tabela 1. Espécies de peixes da Baía de Guanabara obtidas no levantamento e seus estados de ameaça. Onde: (i) espécies que não tem registro recente; (ii) espécies cuja distribuição sofreu alteração ao longo do tempo; (iii) espécies que mantiveram sua distribuição na baía ao longo do tempo. Classificação segundo a IUCN e o ICMBio: LC- fora de perigo ou pouco preocupante; NT- quase ameaçado; VU- vulnerável; EN- ameaçado; CR- criticamente ameaçado; EX- extinto; DD- deficiente de dados. Na ultima coluna estão explicitados os tipos de Habitat em que essas espécies ocorrem, onde: SC- substrato consolidado; SN- substrato não consolidado; P- pelágico.

Espécies Categoria IUCN ICMBio Habitat Cynoscion acoupa iii LC NT SN Genidens barbus ii NE EN SN Gymnura altavela iii VU CR SN Hyppocampus erectus i VU CR SC Hippocampus reidi i DD CR SC Hyporhamphus unifasciatus i LC NT P Lutjanus synagris i NT NT SN+SC Mugil liza iii DD NT SN Paralichthys patagonicus i NE NT SN Pogonias cromis iii LC VU SN Pristis perotteti i NE CR SN Sardinella brasiliensis iii NE VU P Sphyrna zygaena i VU VU P Sphyrna tiburo i LC EX SN+SC Trachinotus falcatus iii LC EN SN Trachurus lathami ii LC EN SN Zapteryx brevirostris i VU VU SN

Com relação a T. lathami, é preciso levar em consideração que esta espécie é um Carangidae, conhecida pela sua importância econômica, possuindo carne de boa qualidade (Menezes & Figueiredo 1980), e que, nesse sentido, deveria ocorrer no desembarque. Na década de 2000, essa espécie foi registrada tanto no médio quanto no baixo estuário (em 2005 e 2006 nos quadrantes D5 do médio estuário e D7 e E7 do baixo estuário). Contudo, a partir da década de 2010, essa espécie foi registrada apenas em D7, bem próxima a entrada da baía. Esses dados são um indicativo importante de perda de habitat, pois T. lathami não tornou a ser registrada nas coletas que ocorreram em D5, de 2013 a 2015, e nem nos desembarques. Considerando que essa espécie encontra-se classificada como Vulnerável pelo ICMBio, essa alteração da distribuição representa um alerta de que medidas precisam ser tomadas para evitar que a população deixe efetivamente de ocorrer no estuário.

A categoria iii contemplou seis espécies, sendo cinco teleósteos de valor comercial e uma espécie de raia. Cynoscion acoupa e P. cromis são integrantes da família Scianidae que representa uma parcela importante das capturas comerciais do sudeste do Brasil, enquanto T. falcatus – assim como o T. lathami, discutido no parágrafo anterior – faz parte da família Carangidae cuja carne é considerada de boa qualidade (Menezes & Figueiredo 1980). A tainha (M. liza), por sua vez, é uma espécie

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de Mugilidae, encontrada em grande abundância em ambientes estuarinos e possuindo grande aceitação no mercado (Menezes & Figueiredo 1985). Já S. brasiliensis é um Clupeidae, conhecida por formar cardumes em ambientes costeiros, adentrando baías e estuários, além de ser fonte de alimento em várias regiões do mundo (Figueiredo & Menezes 1978). A sardinha-verdadeira é há bastante tempo a espécie com maior volume de produção pesqueira ao longo da costa do sudeste do Brasil (e.g. Cergole & Dias-Neto 2011). O fato dessas espécies economicamente relevantes estarem conseguindo manter seu habitat na Baía de Guanabara ressalta não somente a resiliência desse ambiente, discutida anteriormente, mas também o papel social e comercial do estuário. A Baía de Guanabara é uma área pesqueira histórica, de onde comunidades de pescadores artesanais retiram seu sustento, suportando a pescaria estuarina mais produtiva da região (Prestrelo & Vianna 2016). Nesse sentido, a conservação dessas espécies de valor comercial é extremamente importante para preservar o sustento e o estilo de vida dessas comunidades, bem como a manutenção dos estoques das águas costeiras adjacentes, passíveis de serem explotados por pescarias industriais.

A manutenção da distribuição de G. altavela (raia-borboleta) na Baía de Guanabara é extremamente relevante no âmbito da conservação uma vez que, como discutido anteriormente, os elasmobrânquios estão sob alto risco de extinção. Esta raia encontra-se na categoria Vulnerável segundo a IUCN e Criticamente Ameaçada no Brasil (ICMBio), sendo conhecidamente uma espécie relacionada a ambientes costeiros (Alkusairy et al. 2014, Silva-Junior et al. 2016, Gonçalves-Silva & Vianna 2018). Não somente, as baías e estuários são áreas de berçário comuns aos elasmobrânquios por serem locais com abundância de alimento e poucos predadores (Castro 1993). Considerando que Gonçalves-Silva & Vianna (2018) propuseram a Baía de Guanabara como uma possível área de berçário para essa espécie, a necessidade de conservação do estuário fluminense torna-se ainda maior. Nesse sentido, mesmo diante dos elevados níveis de contaminação por organoclorados das raias borboletas desse estuário (Rosenfelder et al. 2012), a perda de habitat dessa espécie na baía ainda representa um risco considerável a sua preservação.

Quanto aos critérios definidos pelo CONABIO (2005) para classificar uma área prioritária para conservação, a Baía de Guanabara atende à todos. A beleza cênica é inquestionável, a presença de espécies de peixes de importância econômica persiste, sendo muitas dessas capturadas pela pesca artesanal tradicional estuarina, e tanto a raia-borboleta (G. altavela) quanto os cavalos-marinhos (Hippocampus spp) são espécies-bandeira que motivam ações de conservação. Consequentemente, a abordagem ictiológica foi bem-sucedida e suficiente para definir a importância da Baía de Guanabara como um ambiente prioritário para a conservação neotropical. Conclusão Nosso trabalho demonstrou que as espécies de peixes presentes na Baía de Guanabara responderam, de forma distinta, aos impactos antrópicos aos quais o estuário está submetido. Em uma análise histórica, observamos indícios de redução de riqueza específica no estuário, incluindo perdas ecológicas relevantes (oito espécies foram classificadas como tendo ocorrência para a baía, porem não apresentado registro nos últimos 10 ou 20 anos). Parte dessas perdas podem ser relacionadas a uma queda de qualidade nos habitats (casos de H. unifasciatus e L. synagris) cuja provável causa é a intensificação da ação antrópica. Tal situação indica a urgência na implantação de medidas de conservação para a Baía de Guanabara, sob risco de que a continuação do

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quadro de redução de espécies atinja elos vitais para a manutenção da estrutura trófica, com o consequente colapso do ecossistema estuarino.

Figura 4. Espécies de peixes com risco de extinção, encontrados na Baia de Guanabara, Rio de Janeiro, sudeste do Brasil. A– Cynoscion acoupa; B– Hippocampus reidi; C– Gymnura altavela; D– Zapteryx brevirostris; E– Paralichthys patagonicus; G– Trachinotus falcatus; H– Genidens barbus; I– Pogonias cromis, J– Mugil liza; K– Sardinella brasiliensis.

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Outro indicativo de que a conservação do estuário fluminense é imprescindível são as espécies relevantes que ainda mantém sua distribuição, apesar do avanço antrópico. Todas as espécies, com exceção da G. altavela, que mantiveram uma constância em seu registro histórico espacial apresentam valor comercial, sendo muito comuns no desembarque pesqueiro. Mesmo que essas espécies estejam resistindo às condições ambientais atuais, não é possível garantir que elas sobreviveriam a um agravamento da redução de qualidade do habitat. Considerando que a tendência é a intensificação da industrialização, existe um risco de que essas populações sejam afetadas no futuro. Dessa forma, a ausência de estratégias de conservação efetivas para a Baía de Guanabara coloca em risco o papel econômico e social desse estuário, enquanto fonte de sustento para populações tipicamente marginalizadas de pescadores tradicionais. Além disso, a conservação da G. altavela transcende a discussão regional, pois essa espécie de raia encontra-se vulnerável globalmente e a perda de uma área de berçário tão ampla como a Baía de Guanabara pode afetar toda a população da costa sudeste do Brasil. Nesse sentido, mesmo que as grandes dimensões e as várias décadas de poluição, degradação e uso exploratório façam com que a Baía de Guanabara apresente um alto custo de conservação, a proteção desse estuário é fundamental para a manutenção da diversidade marinha brasileira. Dessa forma, é imprescindível que os órgãos competentes procedam com maior urgência na efetiva implantação de medidas que visem à preservação de sua diversidade e da melhoria da saúde dos ecossistemas associados, tendo em vista que a Baía de Guanabara se enquadra em todos os critérios definidos pelo Governo Federal, para ser seguramente classificada como área prioritária para conservação. Agradecimento

Essa pesquisa foi financiada pelo Programa Ecológico de Longa Duração-CNPq (PELD processo 403809/2012-6) e FAPERJ (processos E26/110.114/2013 e E26/ 112.636/2012). Agradecemos ao CNPq e FAPERJ pelas bolsas concedidas a MV e a todos os colegas do BioTecPesca-UFRJ e pescadores da Baía de Guanabara pela ajuda ao longo do trabalho. Referências Alkusairy H, Ali M, Saad A, Reynaud C, Capapé C (2014) Maturity, reproductive cycle, and fecundity

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Revisores:

Dra. Tatiana Pires Teixeira Neves Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Dr. Luís Felipe Skinner

Universidade do Estado do Rio de Janeiro