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  • A AYAHUASCA COMO SISTEMA DE CUIDADOS

    Marcelo Bolshaw Gomes1

    1. Definio

    A medicina da Ayahuasca (ou do Ayahuasca, como seria mais correto) no

    apenas o consumo ritualstico de uma bebida - feita do cip do Jagube ou Mariri

    (Banisteriopsis caapi) e da folha da Rainha ou Chacrona (Psycotria viridis), mas

    contempla tambm todo um sistema completo de cuidados e de desenvolvimento

    pessoal. E a definio desse sistema implica no apenas no uso ritualstico da bebida

    com alguma periodicidade, mas tambm, simultaneamente, no consumo teraputico de

    outras substncias (rap de tabaco e pau pereira, o veneno da r Kamb, o colrio da

    Sananga, para citar os mais conhecidos) e em um conjunto de dietas alimentares, sociais

    e sexuais. A Ayahuasca enquanto medicina implica na adoo de uma srie de prticas

    pessoais, de mudanas de hbitos de consumo, que em seu conjunto formam um sistema

    complexo de cuidados, de tratamento e de desenvolvimento humano.

    Esta definio ampliada permite no apenas compreender a medicina da

    Ayahuasca dentro de um quadro de referncias xamnicas e antropolgicas mais

    abrangentes, como tambm entender a especificidade das religies e cultos que se

    organizaram em torno dela. O Santo Daime, a Unio do Vegetal e a Barquinha so

    leituras da medicina da Ayahuasca, interpretaes teolgicas e poticas de um sistema

    de prticas pessoais anterior.

    2. Histria

    Os registros mais antigos que conhecemos vm dos Incas. O uso da Ayahuasca

    como bebida sacramental era restrito a famlia imperial inca, descendente de Inti, o rei

    Sol. Conforme relatos histricos, o prncipe Atahualpa se rendeu aos invasores

    espanhis e acabou assassinado. Segundo a lenda, o prncipe seu irmo, Huascar, se

    refugiou na floresta amaznica. L divulgou a bebida, que recebeu o seu nome e se

    difundiu entre vrias tribos indgenas, como as dos Kampas e dos Kaxinaws, perto da

    fronteira com o Peru e a Bolvia. Ingerindo a bebida, os ndios tinham experincias

    psquicas incomuns: telepatia, acesso a vidas passadas, contatos com os mortos,

    prescincia e viso distncia. H relatos etnogrficos de xams usavam a bebida para

    descobrir qual era a doena de seus pacientes e saber como trat-la.

    1 Jornalista e cientista social.

  • O uso da Ayahuasca foi, durante sculos, utilizado por vrias tribos indgenas da

    regio. No incio do sculo XX, com o intercmbio cultural entre ndios e seringueiros,

    a Ayahuasca passou a ser conhecida e usada pelos nordestinos que colonizaram a

    Amaznia ocidental. Destes contatos surgiram vrios grupos sincretizaram o seu uso

    com o catolicismo popular, normatizando doutrinas de grande penetrao urbana.

    Raimundo Irineu Serra (1890/1971) foi um dos que realizou trabalhos com a

    Ayahuasca, criando uma estrutura ritual absolutamente brasileira, por ele rebatizada de

    "Santo Daime". Fundou, em 1930, o Centro de Iluminao Crist de Luz Universal

    (CICLU) em Rio Branco, Acre.

    Logo surgiram outras ramificaes, sendo a principal a comunidade denominada

    Centro da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS), fundada pelo

    Padrinho Sebastio Mota de Melo, responsvel pela expanso nacional e internacional

    da bebida e do culto.

    Outro culto ayahuasqueiro acreano importante o da Barquinha Fundada em

    1945, tambm em Rio Branco, por Daniel Pereira de Mattos, esta igreja mistura

    elementos da religio afro-brasileira Umbanda e do Santo Daime.

    A Unio do Vegetal foi fundada a 21 de Fevereiro de 1961, em Porto Velho

    Rondnia, por um seringueiro chamado Jos Gabriel da Costa. Quando trabalhava num

    seringal na Bolvia, Jos Gabriel conheceu ndios nativos que o apresentaram

    ayahuasca na prpria selva.

    O crescimento e difuso dos diversos grupos religiosos que utilizam a

    Ayahuasca geraram resistncias nos setores conservadores da sociedade, que

    pressionaram o Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) para embargar o

    funcionamento destas instituies nos grandes centros metropolitanos.

    No entanto, depois de acuradas investigaes, o Conselho decidiu liberar a

    utilizao do ch para fins religiosos em 1992. Ficaram estabelecidos vrios limites e

    critrios atravs do dilogo entre as entidades religiosas e os pesquisadores de vrias

    especialidades.

    E, finalmente, o Conselho Nacional de Polticas sobre Drogas (CONAD), rgo

    do Ministrio da Justia, publicou no Dirio Oficial da Unio do dia 25 de janeiro de

    2010, resoluo regulamentando o uso religioso da Ayahuasca. A resoluo estabeleceu

    regras para que a bebida no seja comercializada ou utilizada fora do contexto religioso.

  • LINHA DO TEMPO

    Sculo

    XIII O uso da bebida sacramental era restrito a famlia imperial inca, descendente de Inti, o rei Sol.

    1533 O prncipe inca Atahualpa se rende aos invasores espanhis e acaba morto. Seu irmo, Huascar se refugia na

    floresta amaznica e a Ayahuasca introduzida em as vrias tribos indgenas da regio.

    1616 O uso da Ayahuasca condenado pela Inquisio.

    1840 A Harmalina isolada da planta Peganum armala em laboratrio na Europa.

    1849

    1858

    O botnico Richard Spruce, o bilogo Alfred Russell Wallace e o naturalista Henry Walter Bates fazem os

    primeiros estudos sobre a bebida.

    1905 Zerda e Bayon chamam o alcaloide do "yaj" dos ndios de "telepatina".

    1917 O primeiro terreiro de Umbanda de Porto Velho, Rondnia, aberto por Chica Macaxeira, maranhense da

    tradio do Tambor de Mina. usada a Ayahuasca nos rituais.

    1920 Os irmos Antnio Costa e Andr Costa fundaram um centro chamado Crculo de Regenerao e F (CRF),

    em Brasilia, Acre.

    1930

    Fundao do Centro de Iluminao Crist de Luz Universal (CICLU) em Rio Branco, Acre, por Raimundo

    Irineu Serra (1890/1971) com a Ayahuasca, com uma estrutura ritual absolutamente nova, por ele rebatizada

    de 'Santo Daime'.

    1931 A DMT (Dimetiltriptamina) sintetizada e identificada como outro alcaloide da Ayahuasca.

    1945 Fundao da Barquinha, por Daniel Pereira de Mattos, em Rio Branco, Acre.

    1957 Hochstein e Paradies chamam de 'efeito ayahuasca' combinao de Harmina e a Harmalina com a DMT.

    1961 Fundao da Unio do Vegetal (UDV), por Jos Gabriel da Costa em Porto Velho, Rondnia.

    1972 O cientista Robert Gordon Wasson prope o termo "entegeno" substituto para alucingeno.

    1975 Fundao do Centro da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS), fundada pelo Padrinho

    Sebastio Mota de Melo, responsvel pela expanso nacional e internacional da bebida e do culto.

    1985

    1992

    O crescimento e difuso dos diversos grupos religiosos que utilizam a Ayahuasca geraram resistncias nos

    setores conservadores da sociedade, que pressionaram o Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN)

    para embargar o funcionamento destas instituies nos grandes centros urbanos. No entanto, depois de

    acuradas investigaes, o Conselho decidiu liberar a utilizao do ch para fins religiosos em 1992.

    2010 O CONAD regulamenta o uso religioso da Ayahuasca no Brasil

    Atualmente, com a expanso do Daime e da UDV para outros pases, surgiram

    questes jurdicas internacionais referentes utilizao e ao transporte da bebida. Mas, a

    globalizao da Ayahuasca passou a ser uma realidade, desencadeando vrios tipos de

    simbiose com outras culturas espiritualistas.

  • 3. A pesquisa transdisciplinar sobre Ayahuasca

    A Ayahuasca amplifica a capacidade psicossomtica de responder a gradaes mais sutis de estmulos alm de muitas vezes integrar as diversas

    faculdades sensoriais em processos sinestsicos. Esse efeito de aumentar a

    capacidade de experienciar, de avaliar e apreciar por si mesmo, central

    para a compreenso do seu significado. Esta amplificao, como uma lupa,

    permite uma (re)visitao intensiva e absorta dos contedos mentais -

    recordaes, ideias, fantasias, pensamentos, emoes, medos, esperanas,

    sensaes em gerais. (...) O grande valor da Ayahuasca, trazidos nossa

    ateno pelas sociedades indgenas, que ela dissolve os limites da mente

    inconsciente; ela d acessos aos contedos reprimidos e esquecidos. Ela

    possibilita o reconhecimento das configuraes universais da psique, os

    arqutipos de humanidade, junto com um leque mais abrangente de

    conhecimentos e maneiras de conscientizar, at eventualmente a vivncia dos

    diversos aspectos da unio mstica. Na medida em que o indivduo consegue

    ver as coisas de uma maneira no distorcida, vendo claramente no apenas

    o seu passado mais tambm a presuno e cegueira da sua prpria cultura e

    grupos de referencias, ele necessita, alm de tolerar a decepo e o

    sofrimento, superar sentimentos de desamparo. Nem sempre fcil ter de ver

    e aceitar que no somos assim to vtimas, mas sim responsveis pelas

    nossas vidas; aceitar ser capaz, reconhecer o seu potencial e a

    responsabilidade que isso requer implica coragem e determinao. (BARBIER, 2002)

    Os estudiosos da Ayahuasca tambm podem ser subdivididos em trs grupos:

    a) os pesquisadores que do nfase ao efeito da DMT (N, N-dimethyltryptamine

    ou C12H16N2) no crebro, geralmente pesquisadores da rea de sade

    orientados para o estudo do tratamento de dependncia qumica;

    b) os pesquisadores que do nfase aos sistemas de crenas, em geral,

    antroplogos, historiadores e psiclogos mais concentrados na questo do

    condicionamento social dos usos da bebida; e

    c) os pesquisadores que, considerando os dois aspectos, elaboram um novo

    sistema de crena, mais universal e objetivo.

    Vejamos cada um desses grupos de pesquisadores.

    Para os que do nfase DMT, como Ralph Miller (2000), por exemplo, o

    importante o papel psicoativo da bebida:

    A Pineal ir produzir DMT em grandes quantidades em pelo menos dois

    momentos das nossas vidas: no nascimento e na morte. Talvez ela prepare a

    chegada e a partida da alma. Pessoas que experimentam "situaes de quase

    morte" vendo luzes fortes, portais, cones religiosos relatam efeitos semelhantes aos das experincias com DMT. As molculas de DMT so

    similares s molculas da Serotonina e se encaixam nos mesmos receptores

    do crebro. Isto extraordinrio porque, assim como a Serotonina, a DMT

    uma chave especfica que naturalmente se encaixa nesta "trava" do crebro.

    Assim, voc tem a DMT se encaixando aos receptores do crebro, o que

    produz vises, enquanto as propriedades pr-Serotonina e pr-Dopamina do

    ch criam um estado de alerta e receptividade.

  • Strassman (2001) diz o corpo produz naturalmente DMT na hora da morte para

    favorecer a lembrana dos momentos marcantes da vida. A DMT permite a utilizao

    consciente da memria visual atravs do lado direito do crebro, em oposio nossa

    memria discursiva ordinria organizada atravs da fala. a fala que transforma a

    memria em narrativa, se simplesmente contarmos nossa estria, oscilaremos entre os

    papis de vtima e de heri. o hemisfrio esquerdo do crebro que acessa a memria e

    quer comunicar a lembrana resgatada a algum. Com a DMT, ao contrrio, feita em

    estado de silncio interior, sem interlocutor ou escuta analtica externa, as lembranas

    emergem objetivas, permitindo a reintegrao emocional dos momentos vividos com

    distanciamento, vistos de fora, como em um filme narrado por outra pessoa. E essa pode

    ser a principal aplicao teraputica da DMT em um futuro breve: fechar (reviver e

    superar) as feridas emocionais que jorram do inconsciente. O acesso consciente

    memria visual tambm pode ser colocada sob a forma de sonhos lcidos, isto , a

    ocorrncia de estado de funcionamento cerebral de alto desempenho - o sono REM

    (rapid eye moviment) que normalmente acontece enquanto o sujeito est dormindo,

    durante o estado de viglia.

    Para Strassman, h quatro estgios progressivos do efeito do DMT: o estado

    eufrico, o caleidoscpio colorido, o estado de dilogo com as entidades e a

    transcendncia do ego. Para isso, ele teria que trabalhar suas dosagens cada vez maiores

    de DMT. A experincia, no entanto, comprova que o mero aumento de dosagem

    qumica no basta para se alcanar estados de percepo mais profundos e intensos,

    preciso tambm ter treinamento em alguma tcnica ou ritual. Alis, quando maior a

    capacidade mental de alterao o estado de percepo, menor a dosagem necessria

    como pode ser comprovado pela maioria dos adeptos mais antigos dos cultos. E,

    certamente, as imagens psquicas, sejam elas arqutipos universais ou lixo

    subconsciente, pouco ajudam ou enriquecem a experincia da DMT. O importante

    compreender o contexto das relaes em que se est inserido. A ideia de mirao ou

    sonho lcido (e de diferentes estgios progressivos do transe quimicamente induzido)

    no pode ser desvinculada do sistema de crenas do sonhador2.

    2 O modelo de estgios progressivos de estados de conscincia de Strassman tem seu valor, mas preciso perceber que ele tambm se baseia em um sistema de crenas, mesmo que sejam crenas cientficas cticas. Eu, por exemplo, prefiro um modelo de quatro paradigmas diferentes sobrepostos e simultneos no trabalho espiritual com DMT: o paradigma da luta do bem contra o mal; o paradigma de ajuda aos sofredores; o paradigma de dilogo/conflito do Eu com o Outro; e, finalmente, o paradigma da Conscincia da Divindade.

  • H grandes diferenas entre as distores cognitivas provocadas por

    entorpecentes e o uso ritual de plantas de poder. Quando utilizado com finalidades de

    autoconhecimento, o uso de substncias psquicas chamado de entegeno em

    oposio ao termo alucingeno utilizado para caracterizar o efeito alienante e a

    distoro perceptiva. Mas, os argumentos de ambiente e inteno raramente so

    suficientes para convencer leigos (e cientistas fixados no fator neuroqumico) da grande

    diferena cognitiva entre a experincia entegena e a viagem alucingena.

    Atualmente, vrias pesquisas investigam a utilizao de medicamentos a base de

    DMT para tratamento qumico de depresso, neuroses, fobias, sndromes neurolgicas,

    bem como seu uso como potencializador da conscincia em processos teraputicos.

    Como dissemos antes, existem tambm pesquisas que do mais nfase ao

    contexto que ao aspecto psicoativo. Enquanto os pesquisadores das reas clnicas e

    biolgicas do um enfoque enquadrado particularmente aos efeitos qumicos da DMT

    no crebro, os pesquisadores das reas antropolgicas e psicolgicas estudam a

    mudana nos estados de conscincia e de percepo, distribuindo sua ateno em trs

    fatores: a bebida, o ambiente (setting) e a inteno (set). A hiptese, denominada em

    ingls de 'set and setting', formulada inicialmente por Timothy Leary com LSD nos anos

    60, afirma que o contedo de uma experincia com substancia psicoativa uma

    resultante da interao desses trs fatores bsicos.

    Charles S. Grob fez a mais ampla reviso bibliogrfica sobre a Ayahuasca na

    rea da psicologia clnica e neuro psiquiatria (METZNER, 2002, p. 195) e considera a

    hiper sugestionabilidade como um dos efeitos psico qumicos, detalhando o aspecto

    ambiental (setting) em vrios fatores (o papel do lder, do grupo, do local). Ele um dos

    pesquisadores que concluem que o contexto, o roteiro e o propsito so mais

    importantes do que os efeitos qumicos de substncias psicoativas (nos processos de

    cura e de autoconhecimento propiciados pela bebida).

    Em relao s caractersticas dos estados de conscincia quimicamente alterados

    pela Ayahuasca, Grob aponta:

    a) Diminuio ou expanso da conscincia reflexiva, com alteraes de

    pensamento, mudanas subjetivas na concentrao, na ateno, na memria e no

    julgamento podem ser induzidas voluntariamente em vrios nveis de uma

    mesma experincia.

  • b) Aumento da imaginao visual. Grob tambm identifica, dentre as

    experincias de milhares usurios entrevistados, vrias recorrncias psicolgicas

    durante o transe: medo de perder o controle; resistncia do ego (bad trip) e

    transcendncia para estados msticos (entrega); aumento da expresso emocional

    - tristeza, alegria, desespero, f; entre outras menos frequentes.

    Outra grande contribuio ao estudo psicolgico da Ayahuasca o trabalho de

    Benny Shanon, O Contedo das vises da Ayahuasca (2003), em que alm de trabalhar

    um levantamento das imagens das miraes e da hiptese de acelerao e desacelerao

    da percepo do tempo durante o transe, se discute tambm a pesquisa da mente atravs

    da Ayahuasca (e no mais o efeito da Ayahuasca na mente humana).

    Shanon j havia escrito sobre a Ayahuasca como instrumento de investigao da

    mente (in LABATE, 2002; pg. 631), atravs dos parmetros tericos da psicologia

    cognitiva. Para ele, h questes fenomenolgicas de primeira ordem (o que est sendo

    experimentado?) e de segundo ordem (H uma ordem e um sentido no que est sendo

    experimentado?). Em relao s questes fenomenolgicas de primeira ordem, Shanon

    distingue as questes de contedo das de domnio e de estrutura. Assim, felinos,

    pssaros e rpteis so as imagens mais recorrentes nos transes, seguidos de perto pelos

    palcios, tronos e imagens arquitetnicas celestiais. A pesquisa destaca que as imagens

    so universais da mente (semelhantes aos arqutipos de Jung), pois surgem em

    indivduos culturalmente diferentes.

    Esses contedos podem surgir de diferentes domnios e o encadeamento dessas

    formas com estes contedos forma estruturas narrativas paralelas aos rituais. E Shanon

    entrev, atravs deste sistema cognitivo de contedos/domnios, os parmetros

    estruturais da conscincia e destaca pelo menos quatro aspectos relevantes em relao

    ao efeito da Ayahuasca: a percepo do pensamento como uma cognio coletiva, a

    indistino entre o interior e o exterior, as experincias des-indentificao pessoal e de

    tempo no-linear. Sob o efeito da DMT os pensamentos no so individuais, mas sim

    recebidos em rede (a mente como um rdio); que no existe a distino entre o

    sensorial e o sensvel; podem se transformar em animais (jaguares e guias so

    frequentes) ou em outras pessoas; e finalmente percebem o transcorrer do tempo de

    forma desigual, em que alguns segundos demoram sculos e horas se sucedem

    rapidamente e em que alguns momentos se experimentam a simultaneidade (ou a

    sensao de eternidade) temporal.

  • Desses quatro aspectos relevantes o mais interessante o que trata de nossa

    percepo do tempo. Quando as pessoas bebem Ayahuasca, percebem que seus

    pensamentos no so individuais, mas sim recebidos em rede (a mente como um

    rdio); que no existe a distino entre o sensorial e o sensvel; podem se transformar

    em animais (jaguares e guias so frequentes) ou em outras pessoas; e finalmente

    percebem o transcorrer do tempo de forma desigual, em que alguns segundos demoram

    sculos e horas se sucedem rapidamente e em que alguns momentos se experimentam a

    simultaneidade (ou a sensao de eternidade) temporal. Quando baixamos arquivos no

    computador, pode-se perceber que alguns segundos demoram mais que outros, em

    funo do peso do arquivo e da acelerao da conexo da internet. O que Shanon

    suspeita que o mesmo acontece com a mente, mas s perceptvel sob o efeito da

    Ayahuasca. A DMT nos recoloca novamente dentro da simultaneidade.

    Com base nessas pesquisas pode-se dizer que a experincia de mirar ou ter

    sonhos lcidos se aproxima muito mais de uma super cognio (envolvendo os dois

    hemisfrios cerebrais simultaneamente) do que de uma alucinao ou de apenas iluses

    visuais. Super cognio que permite conscincia enraizada no presente ativar as

    memrias do passado com objetividade visual e prever (ou at mesmo influenciar)

    acontecimentos futuros, resolver problemas, conseguir reverter as relaes de

    conflito, submisso ou enaltecimento que se apresentem na prpria 'mirao'.

    4. Etnofarmacologia e sistema de cuidados

    Com Terence McKenna (1993, 1994, 1995 e 1996) a pesquisa sobre entegenos

    chega ao patamar da Etnofarmacologia, isto , ao estudo simultneo dos contextos

    culturais e das substncias qumicas em um novo quadro de referncias.

    McKenna estabelece uma associao estratgica entre duas hipteses diferentes

    at ento, que se tornaram os cnones do movimento entegeno: em primeiro lugar, a

    hiptese de que foi atravs da ingesto de substncias qumicas psicoativas que os

    macacos se tornaram conscientes de si, dando incio evoluo da espcie humana.

    Nesta hiptese, sugere-se que toda nossa experincia com o sagrado derivou

    originalmente do consumo de substncias qumicas. E depois, a hiptese de Gaia (James

    Lovelock e Lynn Margulis) segundo a qual a biosfera da Terra na verdade um

    organismo vivo. Para McKenna, mais do que dispositivos para o controle social (as

    drogas), as substncias psicoativas teriam como funo primordial a re-ligao dos

    homens com a conscincia do planeta.

  • Mas, o que realmente chama ateno nas ideias dos irmos McKenna a

    compreenso das plantas entegenas no contexto de uma grande simbiose. Nesta

    perspectiva, a simbiose entre as plantas e os animais na biosfera da terra no se limita

    troca de oxignio por gs carbnico ou produo recproca de alimento e proteo,

    mas, sobretudo, a um projeto maior, no qual as plantas entegenas cumprem um papel

    estratgico modificando o comportamento humano em relao ao meio ambiente.

    E esta questo que norteia a pesquisa de Metzner (2002). Para ele, a

    experincia emergente da espiritualidade da medicina da Ayahuasca transborda os

    limites de todas as tradies religiosas que a utilizam. Segundo Metzner, a Ayahuasca

    um veculo de uma mensagem do reino vegetal e a DMT, uma mensagem qumica da

    floresta para nosso crebro - para reverter o processo planetrio de autodestruio do

    homem e da vida orgnica.

    Tambm a partir da noo de Etnofarmacologia, nessa perspectiva de troca e

    comunicao com as plantas criada por McKenna e desenvolvida por Metzner, que

    possvel entrever um sistema de cuidados, um conjunto de prticas pessoais

    convergentes oriundas do xamanismo.

    A noo de sistema de cuidados uma categoria proveniente da enfermagem

    para explicar e prescrever um conjunto de prticas preventivas e teraputicas, que levem

    a uma otimizao crescente da sade (SOUZA, 2006). Um sistema pode ser definido

    como um complexo de elementos em interao mtua. No sistema de cuidados, os

    elementos so prticas pessoais, que se reforam e complementam, em uma agenda

    pessoal. A categoria pode ser utilizada de vrios modos: sistema de cuidados da sade

    da mulher, sistema de cuidados para recuperao de dependentes qumicos; e assim por

    diante. Aqui, a ideia utilizar essa categoria para descrever alguns aspectos da medicina

    da Ayahuasca, definida como um conjunto de prticas xamnicas de desenvolvimento.

    Se a Ayahuasca uma mensagem de vida para o crebro; possvel dizer que o

    veneno do Kamb uma mensagem de morte para diversos rgos do corpo, um alerta

    qumico que ativa a defesa de vrios sistemas vitais do organismo. E o uso conjugado

    da Ayahuasca com Kamb, em intervalos de tempo alternados, pode ser considerado os

    dois principais fatores dinmicos deste sistema de cuidados xamnicos, que foi se

    construindo a partir da experincia.

  • A r verde - Phyllomedusa bicolor, apelidada de sapo Kamb, a maior espcie

    do gnero da famlia Hylidae, encontrada no sul da Amaznia. Tambm se chama de

    Kamb a resina retirada dessa r e sua aplicao medicinal. Essa resina contm

    substncias peptdeas analgsicas (a dermorfina3 e a deltorfina

    4) e de fortalecimento do

    sistema imunolgico que provocam a destruio de microrganismos patognicos. As

    substncias da secreo tm propriedades antibiticas, de fortalecimento do sistema

    imunolgico atravs da produo de anticorpos pelo organismo contra o veneno.

    A reao da vacina dura cinco minutos. Nesse tempo, o corao dispara, o

    sangue corre acelerado nas veias, a presso cai ou sobe muito, a pessoa fica tonta ou

    nauseada. Algumas pessoas veem tudo branco, como se o mundo estivesse coberto por

    uma nvoa difusa, ou caem no cho, sem foras. H tambm relatos de sensao de

    correntes eltricas epidrmicas formigando pelo corpo. Muitos usurios incham, ficando

    com a aparncia semelhante a um sapo. Ento, de repente, o organismo reage ao mal-

    estar e pe tudo para fora. Vmito forte e diarreia so as respostas mais comuns. S

    ento, aos poucos, os sentidos voltam ao normal. A pessoa se sente leve, limpa,

    disposta, de bem com a vida. Depois de 30 minutos da aplicao, a pessoa j est apta

    para suas atividades normais.

    Porm, o principal efeito do Kamb que ele estabelece um choque de gesto

    na vida das pessoas, um marco de reorganizao orgnica e psicolgica a partir do qual

    a pessoa muda de atitude e altera seus padres futuros de sade. efeito ao mesmo

    tempo oposto e complementar ao uso da Ayahuasca, tendo sido concebido e elaborado,

    segundo as lendas a ele associado, no contexto da medicina da Ayahuasca justamente

    como uma forma de destravar os complexos processos de transformao pessoal

    desencadeados pela bebida.

    Tambm existem ainda vrias prticas profilticas agregadas a esse sistema de

    cuidados xamnicos, como o uso de rap de tabaco/pau pereira e do colrio de Sananga.

    O rap tem notveis efeitos ansioltico e antidepressivo, podendo apresentar tanto

    experincias prazerosas como desagradveis. O colrio previne o glaucoma, corrige

    miopias e hipermetropias e regenera o globo ocular. E extremamente doloroso.

    3 Dermorfina um opicio que atua como analgsico 300 vezes mais potente que a morfina. Alm do

    sapo phyllomedusa bicolor, essa substncia s encontrada na urina de crianas autistas.

    4 Deltorfina pode ser aplicada no tratamento da Isquemia - um tipo de falta de circulao sangunea e falta

    de oxignio, que pode causar derrames.

  • O consumo teraputico conjugado desses elementos (rap, Sananga e Kamb)

    implica em um significativo aumento no consumo de gua e, em funo disto, de

    sincronia (mesmo que involuntria) com os ciclos lunares e com as mars. E, no caso

    das mulheres, com o ciclo menstrual. Dessa forma, o praticamente do sistema de

    cuidados se torna mais integrado ao meio ambiente.

    Tais insumos tambm tm contrapartidas restritivas.

    Tome-se como exemplo a questo das dietas. Muitas pessoas pensam que a

    restrio s prticas sexuais, ao lcool e ao consumo de carne vermelha; trs dias antes e

    trs dias depois ao consumo da Ayahuasca uma exigncia moral dos grupos religiosos

    que trabalham com a bebida. A dieta sexual no consumo de Ayahuasca uma restrio

    praticamente universal no universo do xamanismo. No se trata de regras institucionais

    ou normas doutrinrias, mas sim um preceito extrado da experincia prtica de um

    sistema de cuidados.

    Para os usurios de longo prazo da Ayahuasca, essas restries pontuais vo se

    tornando cuidados sistemticos. No raro, que, nos seus processos de

    desenvolvimento, esses usurios intensifiquem e prologuem estes cuidados pessoais,

    modificando todo seu consumo alimentar e de bens simblicos. O uso do lcool e das

    atividades recreativas dele derivadas um excelente exemplo. A grande maioria dos

    usurios de longo prazo de Ayahuasca abstmia, tendo transformado uma restrio

    pontual em uma atitude permanente.

    O consumo de carne vermelha e de produtos industrializados tambm pode ser

    citado, uma vez que esses alimentos tm substncias incompatveis com a ingesto de

    enzimas MAO5, presentes na bebida.

    5 Para o uso oral de DMT necessrio uma quantidade equivalente de MAOIs, ou seja, inibidores de monoamina oxidase. No caso da Ayahuasca, o cip contem harmina e harmalina. O maior problema com a alimentao para quem usa Ayahuasca o consumo de alimentos que sejam ricos em tiramina. Com a MAO inibida, a tiramina presente em diversos alimentos alcana a corrente sangunea e pode causar srias crises de hipertenso, inclusive alguns tipos especficos de hemorragia, como hemorragia intracerebral.

    Segue uma lista de alimentos a serem evitados, com concentraes diversas de tiramina: Abacate, amendoim, azeite, refrigerantes, bebidas alcolicas, bebidas fermentadas, berinjela, cafena, carnes, casca de banana, castanha de caju, caviar, chocolate, ervilha, espinafre, favos, frutos-do-mar, ginseng, gro de bico, iogurte, molho de soja, noz-de-cco, passas, pats, peixes, pizza, queijos ( exceo de requeijo e ricota), repolho-azedo, salame, salsichas, suplementos proteicos, tmaras, tomate e vagem.

    H ainda os sulfitos (dixido de enxofre, bissulfitode sdio, metabissolfito de sdio e potssio) muitos usados na conservao de alimentos industrializados.

  • H tambm toda uma gama de medicamentos que no devem ser consumidos6,

    fazendo com que se busquem alternativas naturais de tratamento dentro do prprio

    sistema de cuidados etnofarmacolgico. No apenas de outros produtos medicinais

    amaznicos (copaba, andiroba, sangue de drago), mas tambm de chs de ervas,

    tinturas e leos de uso popular de outras regies, alternativos aos remdios laboratoriais.

    5. Concluso

    Segundo Calvia Saez (in LABATE & GUIMARES, 2008), quando os

    Yaminawa tentam explicar o que a Ayahuasca para eles, usam comparaes como o

    cinema do ndio, a televiso do ndio e at o avio do ndio. A Ayahuasca o que

    permite uma viso ao longe e media o modo de ver o universo em seu conjunto.

    Todavia, alm de ser uma tecnologia de transcendncia do tempo/espao, a Ayahuasca

    teve (ou tem) outra funo menos evidente: criar uma linguagem xamnica comum

    entre grupos tnicos diferentes.

    O que eram praticas xamnicas muito diferenciadas tem se transformado, talvez

    nos ltimos 100 anos, numa espcie de ecmene indgena organizada em volta do uso

    da ayahuasca e dos cantos que acompanham esse uso. O xamanismo dos Shipibo-

    Conibo, dos Kokama, dos Kaxinawa, dos Yaminawa, dos Kampa, no so mais

    xamanismos locais, tnicos, pertencentes a pequenos grupos etnolingsticos. H muito

    tempo que esse xamanismo se transformou numa linguagem comum, num mundo

    extremamente comunicado onde as canes da ayahuasca se transmitem de um grupo a

    outro. Enfim, a Ayahuasca tem contribudo de modo muito importante para dar forma a

    um xamanismo que, apesar pensarmos que extremamente antigo, provavelmente

    adquiriu a sua forma atual com a expanso, atravs da comunicao, da traduo

    facilitada pelo uso desse veculo, da Ayahuasca.

    E o mais importante: a medicina da Ayahuasca, como um sistema de cuidados

    que inclui outros procedimentos e restries universais, ainda est sendo construda

    nesse processo, incorporando diversas influncias.

    6 Remdios que inibem a recepo e o metabolismo da serotonina: a) Antidepressivos ISRS. b) Xaropes que contenham Dextrometorfano (DXM) ou Demerol; Antiasmticos; Anti-hipertensivos: Guanetidina; Metildopa; Reserpina, Buspirona, Levodopa Simpatico mimticos: Cocana e derivados. c) Anfetaminas; Metilfenidato; Metaraminol; Adrenalina; Noradrenalina; Efedrina; Fenilpropanolamina; Isoproterenol. d) Descongestionantes nasais, Medicao para febre do feno MDMA (Ecstasy), MDA e MDE. e) Inibidores de apetite e Opiceos: Herona, Morfina, pio, etc. O uso dessas substncias em conjunto com a Ayahuasca pode levar a perigosos nveis de serotonina no crebro, podendo resultar na sndrome de serotonina. Sintomas da sndrome de serotonina incluem nusea, desmaios, perda de memria, vmitos e aumento na presso sangunea e na frequncia cardaca.

  • Em primeiro lugar, apresentamos a definio da medicina da Ayahuasca como

    um sistema integrado de cuidados. Em seguida, procedemos a um breve resumo

    histrico do uso da bebida. Depois detalhamos os trs tipos de investigao a pesquisa

    da DMT; o debate sobre a relao mente/contexto; e, finalmente, a hiptese de simbiose

    orgnica do movimento entegeno. Tambm descrevemos algumas das prticas

    xamnicas associadas ao uso da Ayahuasca, bem como os fatores restritivos, derivados

    do seu consumo de longo prazo. Ao conjunto desses fatores dinmicos e restritivos, ou

    dessas prticas complementares recorrentes, chamamos de sistema de cuidados

    ressaltando que se trata de um sistema aberto, ainda em construo.

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