A Autoestima Verdadeira

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tema do mês Setembro 2014 | Vida Consagrada | 283 Cuidar de nós mesmos. Autoestima verdadeira * Margarida Cordo Era ainda inverno quando come- cei a escrever este texto, na senda de uma noite de temporal prevista pela proteção civil. As notícias anunciavam ventos fortes, ondas de bastantes metros e perigos nas zonas ribeirinhas. Nós estávamos quentes e confortáveis em casa, a pensar a que horas iriamos deitar- -nos e a preparar-nos para iniciar uma nova semana com o desafio de darmos o melhor de nós, fazermos o maior bem de que fossemos capa- zes, cada um na missão que julga estar a cumprir por estas paragens. A minha casa tem uma boa inso- norização para o exterior e, por isso, não dá para perceber nada do que lá fora acontece. Ainda bem. Assim podemos viver mais tranqui- los e menos incomodados. Mas porque estarei a dizer tudo isto se o que tenho mesmo é de fa- lar de autoestima verdadeira? Que relação existe entre esta e o como- dismo que prefere ignorar os pro- blemas alheios do que conviver com eles? É só para nos situarmos. É que o comodismo/acomodação é, fre- quentemente, um «parente próxi- mo» da arrogância, e a autoestima também, para quem não sabe o que ela é verdadeiramente. Então queria convidar-vos para fazermos uma «dança de concei- tos», de modo a que todos, no fim desta intervenção, consigamos ficar despertos para cuidar melhor de nós sem descurar os outros; para nos li- bertarmos dos nossos medos de ser, por aprendermos a fazê-lo bem; para darmos sentido às nossas esco- lhas e aos chamamentos (que cada um entendeu que recebia) enquanto seres só completos se estivermos em relação com os que nos ro- deiam; enfim, para compreender- mos a importância que temos nos vários papéis para os quais somos desafiados ou nos desafiamos, sem temermos o que os outros podem mais ou melhor do que nós e sem deixarmos de escolher agir da me- lhor maneira que formos capazes. É de propósito que não vou falar de VC_setembro_2014:Layout 1 31-10-2014 11:34 Página 283

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artigo sobre a autoestima

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tema do mês

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CCuuiiddaarr ddee nnóóss mmeessmmooss..

AAuuttooeessttiimmaa vveerrddaaddeeiirraa**

Margarida Cordo

Era ainda inverno quando come-cei a escrever este texto, na sendade uma noite de temporal previstapela proteção civil. As notíciasanunciavam ventos fortes, ondas debastantes metros e perigos nas zonas ribeirinhas. Nós estávamosquentes e confortáveis em casa, apensar a que horas iriamos deitar--nos e a preparar-nos para iniciaruma nova semana com o desafio dedarmos o melhor de nós, fazermoso maior bem de que fossemos capa-zes, cada um na missão que julgaestar a cumprir por estas paragens.

A minha casa tem uma boa inso-norização para o exterior e, porisso, não dá para perceber nada doque lá fora acontece. Ainda bem.Assim podemos viver mais tranqui-los e menos incomodados.

Mas porque estarei a dizer tudoisto se o que tenho mesmo é de fa-lar de autoestima verdadeira? Querelação existe entre esta e o como-dismo que prefere ignorar os pro-blemas alheios do que convivercom eles?

É só para nos situarmos. É que ocomodismo/acomodação é, fre-quentemente, um «parente próxi-mo» da arrogância, e a autoestimatambém, para quem não sabe o queela é verdadeiramente.

Então queria convidar-vos parafazermos uma «dança de concei-tos», de modo a que todos, no fimdesta intervenção, consigamos ficardespertos para cuidar melhor de nóssem descurar os outros; para nos li-bertarmos dos nossos medos de ser,por aprendermos a fazê-lo bem;para darmos sentido às nossas esco-lhas e aos chamamentos (que cadaum entendeu que recebia) enquantoseres só completos se estivermosem relação com os que nos ro-deiam; enfim, para compreender-mos a importância que temos nosvários papéis para os quais somosdesafiados ou nos desafiamos, semtemermos o que os outros podemmais ou melhor do que nós e semdeixarmos de escolher agir da me-lhor maneira que formos capazes. Éde propósito que não vou falar de

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problemas de autoestima associa-dos a perturbações da personalida-de ou emocionais, nem a quadrosnosológicos de depressão e de an-siedade. Deixem-me estar aqui nummisto de técnica, mas também dequem gosta de ler, pensar e escre-ver. Além disto, não quero maçar--vos. Quero incitar-vos, e seria de-certo «pesado» sobrecarregar-voscom teorias que, certamente, mui-tos de vós conheceis.

Para não complicar, vale a penapercebermos que a autoestima, ape-sar de poder definir-se de diversasformas, não é mais nem menos doque o JULGAMENTO QUE FA-ZEMOS DE NÓS PRÓPRIOS.Talvez por causa disso, ela determi-ne o nosso sucesso ou fracasso en-quanto pessoas.

Ainda assim, apesar de que anossa autoestima se começa a cons-truir muito cedo na existência decada um, porque somos sempre pro-duto, mas não temos de ser vítimasda nossa história, todos podemosinvestir naquilo que a ajude a cres-cer e a desabrochar dentro de nós.De facto, nunca é tarde para isso.

Realmente a autoestima nãonasce connosco. Vai-se fazendocomo e com o nosso percurso poresta oportunidade que é a vida, e émuito mais importante do que pos-samos pensar. Recebemos elogiossinceros ou não; somos comentados

pelos nossos atos, justa ou injusta-mente; dizem-nos que falhamosnisto ou naquilo de uma formaconstrutiva ou de uma forma demo-lidora; mostram-nos, desde cedo,que somos dignos ou indignos deser amados e levam-nos, por isso, acrenças que vamos construindo so-bre nós mesmos. É que o amor é arazão maior para gostarmos de ser ede estar connosco e com quem nosrodeia.

(Vou apenas abrir um parêntesispara que não nos confundamos.Não desdizendo nada do que disse,é fundamental que compreendamosque podemos e devemos amar, massem sermos dependentes dos afetosque, vividos desadequadamente, in-vadem de «forma tóxica» tudo oque somos e damos de nós.)

Bom, para não nos dispersar-mos, e porque o tema é vasto, va-mos, a partir de alguns tópicos quediferenciam os que têm elevada ebaixa autoestima, refletir, de formaa que nos possamos rever e, dessemodo, olhar com coragem paraaquilo que, se mudarmos, nos tor-nará, decerto, melhores pessoas.

Alguém com boa autoestima:– Não é rígido. Tem convicções,

mas reconhece os seus erros;– Não teme que discordem de si,

agindo como julga ser mais justo;– Vive o presente como uma dá-

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diva, tendo aprendido com o passa-do e não se preocupando excessiva-mente com o futuro, embora levan-do-o, naturalmente, em conta;

– Confia nas suas competências//capacidades, mas, se precisar, temhumildade para pedir ajuda, reco-nhecendo esta como uma qualidadede carácter e nunca a confundindocom humilhação;

– Com naturalidade e genuina-mente não experimenta sentimentosde inferioridade nem de superiori-dade;

– Gosta de ser uma pessoa signi-ficativa para aqueles com os quaiscria laços;

– Ouve os outros, sem fazer deconta que não ouviu nada nem to-mando como suas as opiniõesalheias, tentando que ninguém per-ceba isso;

– Não é manipulável, emboracolabore com quem o rodeia;

– Percebe e reconhece-se comoalguém que pode ter sentimentos eemoções positivos e negativos, eque, apesar disso, não deixa de serquem é, porque ser assim é que énatural;

– Sabe alegrar-se.

Alguém com baixa autoestima:– Cada vez que erra tende a cri-

ticar-se, fazendo generalizações doerro cometido para o seu todo en-quanto pessoa;

– Sente-se facilmente ofendido,perante uma crítica que lhe é ou jul-ga ser-lhe dirigida;

– Tem dificuldade em tomar de-cisões;

– Precisa de aceitação dos que orodeiam, não fazendo desta um va-lor acrescentado, quando ocorre,mas uma necessidade;

– É condescendente, mesmo queessa atitude lhe pareça não ter fun-damento;

– Para evitar ser julgado, deixa--se levar pela vontade dos outros eé «agradador»;

– Tende a ser ou é perfecionista(por insegurança);

– Com frequência sente culpa (enão a desejável responsabilidade)pelos erros que comete;

– Chega a ser intolerante e ex-cessivamente reativo, quando nãose consegue conter;

– É também muito crítico dosque o rodeiam;

– Tem, geralmente, traços de-pressivos...

Depois desta pequena «lista»,vem uma história que, como semprefaço, conto na primeira pessoa, ten-tando exprimir o falar de um sentir.Imaginem que este alguém existe:

«Nasci quatro anos e meio antesda minha irmã e creio, ainda hoje,que vim fora de tempo. Não davajeito nenhum aos meus pais terem

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um filho naquela época das suas vi-das. Sei que trataram de mim com oesforço e dedicação que consegui-ram. Foi o que foi. Foi o que pude-ram. Trabalharam muito e a vida“finalmente endireitou-se”, comotantas vezes ouvi a minha mãe dizer.

Por isso mesmo, “mandaramvir” a minha irmã. Ela chegou, pla-neada, desejada, acolhida, amada...Ra pi damente se percebeu que tinhauma doença grave e foi hospitaliza-da poucos dias depois de ter entra-do em casa. A mim “encaixaram--me” imediatamente na residênciade uma tia onde já viviam muitos,e, por isso, a bem ou a mal, haviasempre lugar para mais um, embo-ra, na prática, esta expressão tenhaquerido dizer muito pouco. Nuncame faltou comida, nem calor no in-verno; nem teto, nem cama, nem hi-giene.

Aos meus pais pouco os via.Passavam o seu tempo no hospital.Eu andava para ali a ouvir dizer quea Joana não ia resistir; que a minhamãe não ia aguentar tanta dor; queo meu pai se ia fazer de forte, mas,depois, seria ele a cair...

E eu, com quase cinco anos, en-tretanto, não existia especialmentepara ninguém. Não havia quem ti-vesse paciência para brincar comi-go; não havia quem tivesse vontadede me abraçar; não havia quem ti-vesse amor para me oferecer; não

havia ninguém que risse nem que sealegrasse com a minha presença ecom a minha companhia... E eu sópensava: «Porquê?» Porque é queandava para ali; porque é que osmeus pais me tinham abandonado;porque é que os meus tios e avósquase não me olhavam para a cara –nem quando fazia as coisas bemfeitas; nem quando fazia asneiras?As zangas eram silenciosas. Nãoqueriam, decerto, tratar-me mal,mas eu era um empecilho no seudia a dia. Sentia que só dava traba-lho, incomodava e estava a mais.De facto, não fazia parte daquelafamília e as minhas primas acha-vam que eu as estorvava. Por minhacausa até tinham deixado de ter umquarto só para elas.

Aprendi a fazer tudo de repentee sozinha: vestir-me, tomar banho,comer, agradar, calar, ser bem com-portada e suficientemente silencio-sa para que não tivessem de me re-preender.

Na realidade, sinto agora quevivi esse tempo da minha vida a pe-dir licença para existir, sabendo quea melhor forma de o conseguir eranão me fazer notar, não fosse o casode se fartarem de mim e de memandarem embora, sabe Deus paraonde. Tinha medo, muito medo deser abandonada.

Julgo, hoje, ser uma mulher aquem foi retirada a oportunidade de

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ser criança. Mas, continuando a mi-nha história, largos meses depois aminha irmã morreu e não me disse-ram nada. Em dois ou três dias, osmeus pais reapareceram, vestidosde preto. Tristes, pegaram em mime levaram-me para casa, onde nãose podia rir nem fazer barulho. Qualsaca de batatas que chega à despen-sa. Não havia paciência. Tudo erafrio e desértico. Ainda por cima es-távamos no inverno.

Na realidade, sempre incomo-dei: nasci quando não devia; vivicom a sensação de que a minhavida teria sido trocada de bom gra-do pela da minha irmã; tive de ca-lar, de crescer subitamente e de metornar alguém que, apesar disso,não percebia nada do que por cá an-dava a fazer.

Um dia, quando tiver coragem,conto com detalhe mais algumacoisa de quem sou hoje, mas advir-to para o facto de que sempre andeideprimida; nunca percebi como éque as pessoas podem estar conten-tes e ser descontraídas; nunca mediverti como os da minha idade; nofundo, nunca me integrei nem acre-ditei que pudesse ser olhada, amadae valorizada. Sou invejosa de ale-gria, de protagonismo, de poder...Tudo o que consegui foi pelas ra-zões erradas – provar, provar e pro-var. Provar tudo. Provar que se en-ganaram quando acharam que eu

estava a mais; provar que vou sermelhor do que todos os da minhafamília; alcançar um estatuto queeles nunca tiveram na vida, nemnunca terão. No fundo, vingar-medo que me fizeram porque, por nãome terem sabido amar, acabarampor destruir em mim a possibilidadede ser feliz.»

As pessoas que fazem parte des-ta história (de ninguém e de mui-tos), por diferentes razões, acaba-ram por pedir ajuda e, no caminhocerto, da sanação das suas feridas,são hoje, basta dizer isto, apenasmais felizes e capazes de viabilizara felicidade de quem as rodeia, atra-vés de um equilíbrio psicológico al-cançado pelo facto de estarem aconseguir edificar uma boa relaçãoconsigo mesmas, com os outros ecom a vida.

Tenho muito claro e, por isso,quase sempre «invento históriasque subtraio a histórias reais» parafazer os meus textos, que as ima-gens que com elas se criam e queresultam do viver dos outros nos fa-zem perceber o nosso viver semmedos e sem vergonhas, e é justa-mente na libertação destes que va-mos encontrar ajuda.

Vou invocar excertos de um tex-to, entre muitos brilhantes, do padreJosé Tolentino Mendonça: «Muitasvezes, aproveitamos a dor para nos

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instalarmos nela. Preferi mos ficar aesgravatar na ferida, a comer diaria-mente o pão velho da própria mal-dade [...] Agarramo-nos à dor comose ela fosse um heroísmo e pomo-nos a expor feridas como quem exi-be condecorações. [...] Descobri -mos que há um prazer em listarachaques e traições, e, se a minhachaga puder ser maior do que a tua,tanto melhor. Isso reforça o meu es-tatuto. A verdade é que se não to-mamos atenção, a desgraça íntimatorna-se um escanzelado pódioonde nos blindamos [...].»

Fiquei muito impressionadaquando li esta crónica, pois há mui-to que venho falando de um concei-to que criei e vou consolidando des-de há cerca de sete anos, porquepercebi e percebo que existe ADI-ÇÃO AO SOFRIMENTO, enquan-to forma de adoecer de uma doençaainda não inserida nas classifica-ções internacionais, mas que não émais nem menos do que foi dito –ter de sofrer para viver, inventandoconexões persistentes com o quenão presta; criticando tudo e su-cumbindo à própria história comose ela não fosse uma oportunidadede libertação, mas um vaticínio ouuma nuvem preta que não permitevislumbrar o sol da vida.

É de libertação que falamosquando abordamos o tema da au-

toestima. É de crescimento e desa-fio de ser melhor. É de abertura àperceção de que só faremos ummundo onde se vive bem se o mun-do de cada um de nós também forbom. É de alimento do essencial,devendo este ser esclarecido e cla-ro, e nunca confundido com a rela-tivização do outro através do«pseudobem» solitário (ainda queexibido) de nós mesmos.

Uma maior autoestima é igual auma maior capacidade de lidar comos problemas da vida, e tambémpode trabalhar-se em psicoterapia.Umas vezes conseguimos superar--nos e crescer sem recorrer a estetipo de ajuda, outras vezes não tan-to. Mas, de facto, com frequência, épreciso aprender a reestruturar acriança que existe dentro de nós, afim de que esta deixe de representaruma fonte contínua de autopiedadee de justificação de uma incessanteexperiência de sofrimento que nãosomos capazes de largar.

Sabem porque é que a sociedadeé, por vezes, tão dolorosa para o ho-mem? Porque, não sendo assumido,vivemos tendencialmente de apa-rências e do que demonstramos.Não do que vem de dentro de nós.

Precisamos mesmo de ir lá den-tro; tomar consciência honesta dequem somos e de como nos fize-mos; aprender a distinguir corajosa-mente o bem do mal em nós e a

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identificar as reais consequênciasdos nossos comportamentos; acei-tar o que cada um não gosta de simesmo e se sente impotente paramodificar; reconhecer os seus me-dos e contá-los sob a forma de his-tória; largar os ressentimentos como passado e as angústias ou preo- cupações com o futuro, que só nopleno abandono se pode alcançar.

E porque ter uma baixa autoes-tima provém quase sempre de terfrequentado a «escola do desa-mor», vou contar um conto de con-fiança, cujo autor não consegui en-contrar.

DEUS NUNCA ERRA!!!

Um rei, que não acreditava nabondade de DEUS, tinha um servoque em todas as situações lhe dizia:

— Meu rei, não desanime, por-que tudo que Deus faz é perfeito.Ele não erra!

Um dia, eles saíram para caçare uma fera atacou o rei. O seu ser-vo conseguiu matar o animal, masnão pôde evitar que Sua Majestadeperdesse um dedo da mão.

Furioso e sem mostrar gratidãopor ter sido salvo, o nobre disse:

— Deus é bom? Se Ele fossebom, eu não teria sido atacado eperdido o meu dedo.

O servo apenas respondeu:— Meu rei, apesar de tudo isto,

só posso dizer-lhe que Deus é bom,e Ele sabe o porquê de todas as coi-

sas. O que Deus faz é perfeito. Elenunca erra!

Indignado com a resposta, o reimandou prender o seu servo.

Tempos depois, saiu para umaoutra caçada e foi capturado porselvagens que faziam sacrifícioshumanos. Já no altar, prontos parasacrificar o nobre, os selvagensperceberam que a vítima não tinhaum dos dedos e soltaram-no. Elenão era perfeito para ser oferecidoaos deuses.

Ao voltar para o palácio, man-dou soltar o seu servo e recebeu-omuito afetuosamente, dizendo-lhe:

— Meu caro, Deus foi realmen-te bom comigo! Escapei de ser sa-crificado pelos selvagens, justa-mente por não ter um dedo! Mastenho uma dúvida: se Deus é tãobom, porque permitiu que você,que tanto o defende, fosse preso?

— Meu rei, se eu tivesse idocom o senhor nessa caçada, teriasido sacrificado em seu lugar, poisnão me falta dedo algum. Por isso,lembre-se: tudo o que Deus faz éperfeito. Ele nunca erra!

Não podia deixar de fazer umareflexão sobre tudo isto, sem falardo estar em comunidades de vida,comunidades religiosas especifica-mente. De facto, a noção que tenhoda minha já larga experiência decontacto com estas, em Portugal eno estrangeiro, e também conside-rando muito do que tenho lido, é

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que estas se constroem no dia a dia.Nutrem-se de um alimento essen-cial, a comunicação (verbal e nãoverbal), e são edificadas com a for-ma de ser, presente de cada um queas integra. Também eu, tal como osacerdote chileno Luís Casalá, jul-go poder afirmar que não há comu-nidades vivas se nelas não existi-rem pessoas sólidas, com uma boaautoestima e uma identidade bemestruturada através do desempenhode papéis de cada um.

Tenho para mim, e peço perdãose considerarem que me estou apronunciar sobre o que não sei, queas comunidades religiosas devempromover a satisfação das necessi-dades dos seus membros, que se re-sumem em biológicas, psicológi-cas, sociais (inter-relacionais) eespirituais. É necessário descanso,trabalho, formação, oração, avalia-ção, partilha, dádiva aos outros...

Em meu entendimento, para osreligiosos o desafio de cuidarem desi mesmos é ainda maior. Se a nos-sa autoestima se fundamenta em al-guns pilares, de que podíamos des-tacar a confiança, a aceitação e oamor incondicional, tudo isto preci-sa de se edificar através de uma ca-pacidade genuína de colaboração ede ajuda sem sede de protago -nismos.

Nada disto parece muito difícil,se nos focarmos no essencial da

vida; se não nos ativermos ao que,parecendo que nos mobiliza, nosdestrói; se não nos deixarmos en-cantar pelo brilho artificial de quemsempre aparece como ser perfeito,mas que, um dia, «abrirá falência»por falta de alicerces; se abdicar-mos de ser assim porque, no funda-mental, isso não serve para nada, anão ser para sustentar um processosólido de persistente autoengano.

Como já refletimos, autoestimanão é arrogância, nem narcisismo,nem exibição de poder. É um bomjulgamento sobre nós, mesmoquando a vida nos parece injusta.Afinal, AUTOESTIMA, assim vis-ta, É O MAIOR ATO DE FÉ, DECONFIANÇA E DE ABANDONOde que alguém pode ser capaz, e de-veria ser considerada patrimónioimaterial da humanidade.

Para concluir, e sem ter a míni-ma ilusão de que haja receitas, voudeixar dicas práticas, seguindoLynda Field, para que cada um seinquiete a pô-las em prática na suavida, pelo menos enquanto não pe-dir ajuda, caso dela necessite. Sãoválidas para quem vive só, numafamília, numa comunidade religio-sa. Enfim, são um desafio para quetodos nos tornemos competentesnesta tarefa de cuidar bem de nósmesmos e, desse modo, estabele-

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cermos uma boa relação connosco,com os outros e com a própria vida:

1. Diga e pense coisas positivasacerca de si e dos outros;

2. Melhore a sua autoimagem,quando a vislumbra manifestamen-te pobre;

3. Não se deixe ficar perto depessoas mal-humoradas;

4. Seja o seu melhor amigo;5. Modifique as crenças negati-

vas acerca de si própria/o;6. Olhe para a frente e não para

trás;7. Não se vitimize;8. Deite fora os seus pertences

velhos ou excessivos, desprenda-se;9. Tire algum tempo só para si;10. Faça o que tem de fazer, não

adie;12. Alimente-se saudavelmente;13. Pergunte-se a si mesmo: isto

é realmente importante?14. «Limpe» a sua mente;15. Diga o que quer dizer;16. Sorria e verá o mundo sorrir

consigo;17. Não importa como está o

tempo;18. Corra riscos calculados;19. Diga às pessoas quanto as

aprecia;21. Una-se a pessoas bem-suce-

didas e com bom carácter;23. Procure ter novas experiên-

cias, vencendo as rotinas;24. Contacte com a natureza;

25. Organize o seu tempo;26. Procure libertar-se da preo-

cupação com o que os outros pen-sam de si;

27. Substitua a palavra «proble-ma» pela palavra «desafio»;

28. Faça alguma coisa aconte-cer, crie algo;

29. Olhe o espelho e sinta-segrato/a;

30. Procure começar a fazer al-gum exercício físico;

31. Sirva-se do perdão para per-doar realmente;

32. Espere o bem;33. Respire adequada e profun-

damente;35. Seja verdadeiro consigo

mesmo;36. Observe e organize a sua lin-

guagem corporal;37. Escreva o seu plano de ação;38. Fale bem dos outros;39. Diga «não» quando quiser,

desde que escolha uma forma ade-quada para o fazer;

40. Liberte-se da culpa;42. Procure o equilíbrio;43. Confie na sua intuição com

maturidade;44. Faça uma lista com as coisas

de que gosta;45. Aprenda a ser, sabendo que

cada um deve evoluir a partir do pa-tamar em que se encontra;

46. Centre-se nos seus pontosfortes;

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47. Liberte-se dos seus senti-mentos reprimidos;

48. Permita-se ir de férias;49. Comece hoje a realizar os

seus sonhos;50. Procure hoje mesmo o seu

sucesso;51. Lembre-se de que é um ser

único;52. Seja assertivo;53. Faça uma lista de afirmações

positivas;54. Quebre as rotinas; 55. E, sobretudo, sinta-se grato.

Todas estas práticas, para seremrealmente úteis, podem/devem servividas de forma natural e progres-siva, de modo a serem assimiladascom a naturalidade com que lida-mos com aquilo que de nós faz par-te integrante.

Nota* Conferência proferida na XXIX

Se mana de Estudos sobre a Vida Con -sa grada, em Fátima, a 3 de março de2014.

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