A Ausência de Obra - Uma Leitura Através Do Conceito de Pensamento Do Fora Em Foucault
-
Upload
jorgeluciodecampos -
Category
Documents
-
view
3 -
download
1
description
Transcript of A Ausência de Obra - Uma Leitura Através Do Conceito de Pensamento Do Fora Em Foucault
-
III Simpsio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
A AUSNCIA DE OBRA: UMA LEITURA ATRAVS DO CONCEITO
DE PENSAMENTO DO FORA EM MICHAEL FOUCAULT
Guilherme Augusto Souza Prado1
Como entrar em um labirinto sem se perder? Qui o prprio escopo dessa
entrada seja a perdio. No labirinto da literatura se aventuram aqueles que
seguem rumo perdio do eu e, destitudos da insgnia de sujeito, tomam por
destino, pelo menos em sua escrita, o dentro sem-fim da literatura, a loucura da
ausncia de obra.
Para Foucault (2001), ausncia de obra define a loucura em sua concretude,
no ponto irrevogvel em que se repele a produo da razo incompatvel com ela.
No entanto, define tambm a literatura, como desmaterializao dos contedos das
palavras, na medida em que ela subverte os significados cotidianos usuais das
palavras, rechaa a representatividade, fazendo que sua designao seja dada por
nada mais que ela mesma, palavra.
A palavra literria funciona por auto-implicao. Escrever seria atingir o
ponto no qual s a linguagem age, a afirmao do neutro que nos fala Blanchot, o
ponto em que no se diz mais eu, que substitudo pela impessoalidade do ele.
No que se morra efetivamente ao escrever, mas se padece dos tormentos
eternos do morrer. No h como ser eu quando a palavra toma as rdeas da
escrita, quando a mo que escreve e no o eu.
Com o esmaecimento da figura do autor, um ndice de controle discursivo
criado na modernidade para tolher os desdobramentos infinitos que se produziriam
entre o escrever e a escrita (PINTO, 2008), se esvai a literatura como expresso do
eu, ligado ao sujeito da verdade e conscincia. Pois de fato, entrar em contato
com o neutro abrir-se para a experincia com o fora. deixar-se levar pelo
Outro (LEVY, 2011, p. 45). Tendo isto em vista, consideramos que a condio de
existncia da palavra literria a busca daquele que l e daquele que escreve pela
diferena. Pois se escreve para no ser o mesmo, algo que podemos verificar na
fala de Virginia Woolf algum tem que morrer.
Foucault ressalta o carter intransitivo da literatura (apesar de considerar
seu comeo com Cervantes) moderna de no-representativo. Cervantes fala de
um personagem encantado com as histrias de cavalaria, e que mais adiante na
1 Mestrando em Psicologia Clnica e Subjetividade da Universidade Federal Fluminense; graduado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, UNESP Assis SP.
-
III Simpsio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
histria, comea a ser reconhecido pelos personagens da primeira parte como um
personagem. Pois a escrita est sempre tentando subverter, forando os limites de
suas regularidades, a linguagem literria transgride a literatura a cada fazer. O
no-lugar da escrita consiste em nada mais nada menos que a espessura da linha
da transgresso. Seu ser est contido a. Uma verdadeira experincia-limite.
Ao se isentar do eu, a experincia da escrita leva a um fora-de-si que se
articula com o fora-de-si de concepo psicolgica. A subsuno do sujeito uma
abertura ao campo do possvel, mais especificamente das possibilidades de ser
outro, de ser diferente. Assim, o fora-de-si da escrita enlouquecida subverte a
ordem subjetiva levando a escrita inflexo sob ela mesma, contrapondo uma
concepo interiorizada de sujeito, uma concepo ensimesmada por demais ligada
a conscincia.
O fora em Blanchot passa pela noo de imaginrio advindo da literatura e
conduz ao impessoal, ao neutro ao ele despersonalizado; em seu projeto
arqueolgico, Foucault diz sobre a fragmentao do sujeito, o desaparecimento do
eu do estatuto clssico, onde a existncia do sujeito condicionada ao
pensamento, mas a partir do (res)surgimento do ser da linguagem no bojo da
experincia, no seria o eu penso que conferiria existncia, mas o falo, ou
melhor ainda, o fala-se, o estatuto neutro indefinido que confere atributo
ontolgico. Na experincia do fora, o escrever no pertence mais a alada do eu.
Ela consiste na emergncia na superfcie do ser da linguagem que a pura
exterioridade, a literatura apenas pode ser reflexiva sobre ela mesma.
Antes da nossa era, a Modernidade, no existia a significao dos signos,
pois a linguagem estava sob a soberania da semelhana; Foucault (1999, p. 59)
sinaliza uma
imensa reorganizao da cultura de que a idade clssica foi a primeira etapa, a mais importante talvez, posto ser ela a responsvel pela nova disposio na qual estamos ainda presos posto ser ela que nos separa de uma cultura onde a significao dos signos no existia, por ser absorvida na soberania do Semelhante; mas onde seu ser enigmtico, montono, obstinado, primitivo, cintilava numa disperso infinita.
Foucault prossegue dizendo que talvez s tenhamos contato com o ser
infinito da palavra novamente na literatura. Esta, como se constituiu na
modernidade, propiciou o reaparecimento inesperado do ser da linguagem, mesmo
que de forma no direta, diagonal e alusiva.
Na Era Clssica, toda linguagem tinha valor de discurso, na medida em que
ela nada mais fazia que signos, redupliplicava as coisas nomeando-as, subjugando-
as sob mais nomes, mais signos secundrios imagem de imagem. A literatura
-
III Simpsio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
reata com o ser integral da linguagem, ela compensa a linguagem representativa e
no a confirma. Ela a forma da devoluo da experincia integral da linguagem
lngua que cedeu funo representativa, na episteme clssica, e funo
significativa, na modernidade; pois desde o sculo XV a linguagem no enuncia a
seu ser de outra maneira que pelas linhas literrias, as quais no podem ser lidas
pelo significado, o que se diz e se entende usualmente por ela, nem pelo
significante, o que ela diria por baixo de si segundo mtodos interpretativos
auxiliares provindos da lingstica ou da psicanlise.
No obstante, a literatura moderna se constituiu fora do sistema de
significaes que se fez com a Episteme Moderna, mas tambm fora das formas de
decifrao advinda do sistema binrio do sc. XVII, que seja, a lgica da
representao, do significante e do significado. E, uma vez que no h mais uma
palavra primeira pela qual incorria um esquema de significao infinita no
Renascimento a ltima vez que se fez ver o ser da linguagem na Modernidade
a linguagem vai crescer sem comeo, sem termo e sem promessa. o percurso
desse espao vo e fundamental que traa, dia a dia, o texto da literatura
(FOUCAULT, 1999, p. 61).
Desta maneira as palavras se desenrolam ao infinito, nisso consiste a
ausncia de obra, a criao um outro idioma dentro do idioma. A ausncia de obra
no o vazio, pois o vazio ainda presume estrutura, ela a prpria condio da
obra e sua consumao. Nas palavras de Blanchot (2010, p. 208), a Obra,
absoluto da voz e da escrita, se desfaz, antes mesmo de realizar-se, antes de
arruinar, ao realizar-se, a possibilidade da realizao; a literatura , pois,
irrealizvel e uma vez que ela no pode ser determinada, que no se restringe a
uma sublocao delimitada, ela no pode ser entendida sob a gide da
representao ou dos signos.
Entretanto, a obra no tende para o nada, seu rumo a origem, o ponto
onde no se comea, mas somente se recomea. Escrever um livro ler as linhas
invisveis na profunda superfcie da indefinio. A obra, pois, contm e no contm
a ausncia de obra, contm, na medida em que a mantm longe, mas no contm
em termos de englobamento, de estar dentro. A ausncia de obra no est, pois
contida na obra, mais correto seria dizer, que ela contida pela obra, esta faz
conteno daquela.
A ausncia de obra consiste naquilo que fala ao p de ouvido da obra, sendo
ela atingida ento pela impreciso, pelo murmrio, que emergem do silncio, do
silenciamento da linguagem enquanto experincia integral. O advento da filologia
no intercurso da modernidade anuncia a fragmentao da linguagem, esta no
-
III Simpsio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
podendo ser tomada integralmente, isola os preceitos do dbio, do ambguo, do
mltiplo, encarcerada que , ou que se torna, da noo de unidade.
Os mecanismos de controle atingiram seu pice na modernidade. As
mesmas luzes do Iluminismo que iluminam pelo conhecimento causam a cegueira
ao mltiplo, s mirades de significados, em prol do paradigma da unidade, do
sujeito, na fragmentao das experincias da linguagem e da loucura. E o que
outrora era a desrazo, encarada como aventura da razo, vai ser enclausurada no
bojo de uma concepo objetivada, passa a ser tida como indesejvel, ou mesmo
perigosa, e sob esta gide de subversiva, atenta contra a unidade constitutiva do
sujeito moderno.
A fragmentao das experincias (prticas que abarcam o visto e o dito, as
prticas e as teorias sobre algo) da linguagem e da loucura enquanto experincias
integrais parte do projeto da modernidade que dilui o poder soberano pelos
ramos capilares das disciplinas. O poder disciplinar, por sua vez, sobre-implica a
relao com tudo o que compromete a noo de unidade subjetiva, o ser da
linguagem e a experincia trgica da loucura (FOUCAULT, 1972) so calados,
postos em suspenso por essa ordem. A experiencia trgica da loucura era a
possibilidade de contra-crtica da razo. No por acaso, pelos meandros da lngua
enquanto linguagem e passvel da semiologia que se realizam a maior parte dos
diagnsticos psicolgicos.
O louco, na leitura hegeliana (MACHADO, 2000), aquele no qual a
particularidade se coloca acima do geral, e nesta confuso, reside ainda um rastro
de razo, sob o qual deve-se concentrar no intuito de retom-la nele. O louco passa
a ser ento no aquele no qual no reside a razo e a verdade para ser aquele que
no est em contato com a prpria verdade, desvinculado de si mesmo, um
alienado.
A partir do estabelecimento da loucura como doena mental, se perdeu o
dilogo, ora balbuciante, ora sem sintaxe fixa, que mediavam as trocas entre a
razo e a loucura, calando-a fora. Foucault (2001, p. 141) pondera que a
linguagem da psiquiatria, que o monlogo da razo sobre a loucura, s pode
estabelecer-se sobre um tal silncio e prossegue, em seguida, o autor, no quis
fazer a histria dessa linguagem; antes, a arqueologia desse silncio.
O silenciamento imposto loucura o silenciamento de uma experincia que
encarna o interdito de ao e de linguagem via gesto e palavra das sociedades.
Com as internaes pretendia tirar de circulao uma ampla gama de enunciaes
que incomodavam nas falas das pessoas, das bruxarias a Sade. A reforma de Pinel
o cale-se da palavra interdita, da linguagem excluda: das palavras sem
-
III Simpsio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
significao, os imbecis; das sacralizadas, os furiosos e violentos; ou das
significaes interditadas, proibidas, os libertinos ou obstinados.
Pois quando a linguagem se livra da representao e do sujeito ela emerge
como exteriorizao e diferenciao, fazendo aparecer uma linguagem neutra,
annima, a qual, por ser errtica, pode sempre questionar o que tenhamos por
verdade inconteste. Pensar o impensvel, funo do pensamento do fora, seria
tambm fazer ver o horizonte do possvel que h alm do que foi elegido, mais ou
menos aleatoriamente, como fator de importncia para a constituio do ser na
ordem (no discurso e dispositivos) vigente.
Neste contexto, a concepo de autoria, que ligada a um movimento
histrico de forte individualizao, serve para conferir autoridade a um dado ou
ainda como procedimento de controle do discurso do tipo quem disse o qu.
Propiciando assim, que tanto a literatura quanto a loucura se sejam submetidas
decifrao e ao esmiuamento semiolgico de significados velados. Ou seja, a
noo de autoria, assim como a de sujeito (ligado a uma essncia) corroboram para
o controle inerente que a sociedade, sob a insgnia de seu discurso e seus
dispositivos, exerce sob as possibilidades de transgresso da loucura e da
literatura. Acontece que o plural da palavra sobrepujado pela figura unificadora
do sujeito.
Foucault (1972) fala que mesmo a psicanlise no est apta a escutar as
vozes da desrazo, ela pode at desfazer algumas loucuras, mas no compreende
seu trabalho. Mas qual seria este trabalho? Ou o enlouquecimento da linguagem, a
prpria escrita literria seria ento uma outra maneira de enlouquecer?
Fomos buscar em Blanchot auxilio no para responder tal questo, no
almejaramos tanto, mas para problematizar junto a um autor que pensou a escrita
literria em sua radicalidade. Ele parte da desimportncia da biografia daquele que
escreve, o qual no fala de seus complexos, de seu ser ntimo, como diz e quer
fazer acreditar uma certa psicanlise. O poder da escrita abarca a capacidade de
afastar os tormentos mas tambm de traz-los nas noites em que se escreve,
rodeado pela angstia e pela insnia, ela no reconcilia ou apazigua o ser. A arte
, em primeiro lugar, a conscincia da infelicidade, no sua compensao
(BLANCHOT, 2011, p. 74).
Tampouco a escrita revela uma verdade ntima da interioridade profunda do
ser, um desvelamento por revelao como no s alguma psicanlise, mas alguma
semitica pretende. Seu jogo consiste justamente em manter o desconhecido longe
da alada do conhecvel e mais ainda da do representvel. A escrita passa pela obra
-
III Simpsio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
e a usa para se desvenciliar dela. O inacessvel da literatura o simulacro; sendo
que a escrita, em ltima instncia, experiencia a disperso e vertigem.
A prpria literatura presume a distncia, a distncia necessria criao. A
distncia do olhar de Orfeu, como diz Blanchot (2011) em O Espao Literrio. A
distncia entre Orfeu e Eurdice, que sempre se interpe entre os dois na medida
em que haja canto. Para que Orfeu cante, ele carece de tal distncia de sua musa,
lembremos que quando est com Eurdice em mos, ainda que no a possa fitar
nos olhos, ele tampouco canta. Quando ele no resiste tentao e olha para traz
a fim de ver sua musa, no to simples assim; Eurdice a cair pelo precipcio
antes de tudo, o que possibilita que Orfeu continue a cantar, a fazer sua obra.
Tal obrar caracterizado por ser impessoal. Aquele que produz a obra
desautorizado a dizer eu e mesmo de todo seu ser, no que se prescinda daquele
que escreve como materialmente necessrio obra. Por exemplo, no se pode
negar que foi Artaud que escreveu as obras que escreveu mesmo, mas ele no fala
por um eu ali, Artaud no fala por Artaud, fala por um outro, uma voz
despersonalizada e, a partir da violncia plstica e da carne, faz da sua empreitada
o combate da materialidade do pensamento contra o cogito do racionalismo, aquele
ao qual imprescindvel a representao, a mesma que ele mina com sua escrita.
Foucault vai falar que o sculo XX testemunhou a morte do grande autor,
enquanto figura que dizia pela prpria obra, antes mesmo de ser lida j se
encadeava a uma trama de significantes advindos desse nome, da figura disruptiva
do sujeito. E a assinatura dos livros, especialmente os de fico, no mais que
um nome que se faz presente, mas no representa ningum nem nada e a partir do
qual tampouco se pode decifrar algo.
A literatura no se faz por essa explorao de significantes segundo a qual
quanto mais soubssemos sobre um autor, sua vida, suas inquietaes, seus
complexos, mais estaramos aptos a entender sua obra; quanto mais
mergulhssemos na interioridade de seu eu, mais apreenderia da obra em sua
profundidade. Foucault vai empreender o desmanche das noes de sujeito e de
obra, ligadas que seriam a um esquema sujeito/objeto o qual limita a literatura e a
criao em seu cerne, o mltiplo, aquilo que Blanchot chama de reduplicao dos
sentidos.
No entanto, justamente pelo movimento contrrio que se faz literatura, o
desobramento que constitui o ser e elimina concomitantemente a categoria sujeito.
S se faz obra se desobrando, no sentido de que a obra o seu prprio canto do
cisne, seu esmaecimento e sua efetivao, algo anlogo a uma consumao, mas
sem a intemprie temporal de se deixar de existir. Pois como o devir, que no
-
III Simpsio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
vir a ser, mas vir a vir sendo, se efetiva concomitantemente sua dissipao, mas
o faz incessantemente e nunca se evanesce totalmente enquanto se realiza.
Peter Pl Pelbart (1989) assinala que o termo original em francs para
desobramento, desoeuvrement, remete a inao, ociosidade, passividade e talvez
at algo tedioso. Desobramento seria, assim, a atividade de uma passividade, mas
uma passividade que excede o ser, ou que o esgota que leva ao neutro, ao
impessoal. A literatura mesmo transgresso, o valor positivo que afirma o
limitado e o ilimitado do ser, o seu porte de finitude, mas tambm o horizonte do
inclassificvel, do inesgotvel que se lana em sua experincia ao impensvel e se
realiza em seu inacabamento.
Entretanto, se a lngua condiciona a vida social como um elemento de
partilha o que quer dizer que ela maior que a fala de um ou outro em particular
abarcando tambm suas diferenas , a linguagem da literatura aberta aos
signos, ela no comporta fundamento nem sequer fixao originria. Ou seja, cada
palavra diz o que diz porque parte de uma totalidade gramatical, a qual primeira,
fundamental e determinante a ela.
Retomando o comeo do livro As Palavras e as Coisas, a enciclopdia
chinesa da qual escreve Borges e que inspirou Foucault; ela uma categorizao
completamente incoerente para ns, nela esto categorias que se do por lgicas
distintas e mesmo contraditrias, ou ainda categorias coincidentes e outras que se
sobrepe, isso sem falar em uma meta-categoria discursiva, a dos animais que
esto includos naquele mesmo texto. O que Foucault nos mostra a a maneira a
qual procede nosso pensamento, pois formalizando pela organizao que se d a
estruturao do pensamento moderno (PORTOCARREIRO, 2011), seja na
linguagem ou no que designamos pretensamente como real.
Prosseguindo na mesma obra, no captulo seguinte, o autor empreende uma
anlise do quadro Las Nias de Diogo Velsquez; tudo representado em Las
Nias, at aquele que pinta, porque o mundo clssico acreditava piamente no poder
do vnculo representao/real na isonomia entre representao figurativa e a
representao verbal. Neste jogo, o espectador como um observador especular,
ele est fora do jogo porque o espelho da imagem afirmando a
representatividade e sua capacidade de enunciao do real. Contudo, o olhar do
espectador que objetifica o quadro, que o transforma em objeto de representao
de uma ausncia. Qui o quadro expressasse a ele mesmo, no a uma cena, no
fosse representado fora dele, nem representasse algo exterior a ele. Mas no
classicismo, a representao o real, ambos se fundem e se confundem.
-
III Simpsio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
Sobre os esquemas de objetificao da linguagem, Foucault assinala ainda
em As Palavras e as Coisas (1999, p. 409 e 410):
A passagem ontolgica que o verbo ser assegurava entre falar e pensar acha-se rompida; a linguagem, desde logo, adquire um ser prprio. E esse ser que detm as leis que o regem [] A ordem clssica da linguagem encerrou-se agora sobre si mesma. Perdeu sua transparncia e sua funo principal no domnio do saber. Nos sculos XVII e XVIII, ela era o desenrolar imediato e espontneo das representaes; era nela primeiramente que estas recebiam seus primeiros signos, recortavam e reagrupavam seus traos comuns, instauravam relaes de identidade ou de atribuio; a linguagem era um conhecimento, e o conhecimento era, de pleno direito, um discurso.
Conseqentemente, na Episteme Clssica, a possibilidade de se conhecer
passavanecessariamente pela linguagem, Entretanto,
a partir do sculo XIX, a linguagem se dobra sobre si mesma, adquire sua espessura prpria, desenvolve uma histria, leis e uma objetividade que s a ela pertencem. Tornou-se um objeto do conhecimento entre tantos outros: ao lado dos seres vivos, ao lado das riquezas e do valor, ao lado da histria dos acontecimentos e dos homens. Comporta, talvez, conceitos prprios, mas as anlises que incidem sobre ela so enraizadas no mesmo nvel que todas as que concernem aos conhecimentos empricos. Aquela relevncia que permitia gramtica geral ser ao mesmo tempo Lgica e com ela entrecruzar-se, est, doravante, reduzida. Conhecer a linguagem no mais aproximar-se o mais perto possvel do prprio conhecimento, to-somente aplicar os mtodos do saber em geral a um domnio singular da objetividade.
O que o autor nos quer dizer aqui que, partindo da linguagem postulada
como espelho do mundo e da cincia considerada a cpia da natureza, o
conhecimento clssico ligado mecnica e a uma organizao do espaamento
das coisas e, de Galileu a Descartes, buscava a origem das coisas se apoiando,
sobretudo, na representabilidade das palavras e gerando um quadro de
conhecimento espontneo sobre do mundo.
No entanto, entre a nsia de formalizar a linguagem ou a de interpretar, ou
seja, entre remet-la aos universais do discurso, deixando de lado seu sentido
concreto ou ento fend-la para dela retirar sentidos ocultos, cabe linguagem ao
final surgir em si mesma na escrita que designa o prprio ato de escrever.
A linguagem se entreabre mltipla no lastro deixado pela reflexo filosfico-
filolgica de Nietzsche, e precisa ento ser dominada em prol da figura unificadora
do sujeito. E as tentativas no mbito do apaziguamento do ser mltiplo da palavra
so inmeras, de uma formalizao universal do discurso a uma exegese integral,
existem muitos projetos de submisso da linguagem.
Posto isto, consideramos que o reaparecimento no sculo XIX das tcnicas
de exegese no acontece por acaso, elas reaparecem porque a linguagem
recuperou afinal a densidade que continha no Renascimento. Porm, a busca no
-
III Simpsio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
ser mais pela palavra primeira, mas sim pela inquietao das palavras que
falamos, trata-se de fazer rudo com a parte silenciada de cada discurso ou at
mesmo uma promover uma abertura ao som que se faa concomitante ao desdm
pela funo sinttica cotidiana.
Na modernidade, a literatura a contestao da filologia (de que , no
entanto, a figura gmea): ela reconduz a linguagem da gramtica ao desnudado
poder de falar, e l encontra o ser selvagem e imperioso das palavras (FOUCAULT,
1999, p. 415). Pois, mesmo com a substituio da gramtica geral, preocupada
com a representatividade de sua linguagem perante as cosias do mundo, por uma
cincia intrincada com os significados, a literatura escapa a objetivaes, pois tudo
nela conduz em relao ao ser da linguagem e ao simples ato de escrever.
Foucault ressalta ainda que se o ser da linguagem foi fragmentado, com
Nietzsche e Mallarm, a linguagem se encontra arrastada de volta a seu ser. E que
ao matar o homem e Deus simultaneamente, Nietzsche devolve a vida aos deuses
adormecidos, os quais foram a muito silenciados. Assim tambm a linguagem, livre
do homem e de Deus, despojado das categorias de autor e de obra e longe da
significao e da representao, se manifestaria em seu ser indomado e mltiplo.
Retomando, a literatura no seria o produto de uma ordem da interioridade,
mas, antes, a subverso dessa mesma ordem ao mesmo tempo em que a
contestao do pensamento representativo; e, ademais o fracionamento da
linguagem, quando esta reduzida objetividade da filologia, marca a passagem
da episteme clssica para modernidade, muito embora a linguagem tomada em sua
integralidade, sem a fragmentao imposta pela modernidade, desliza entre os
signos e os sentidos, se abrindo ao impensado que nos circunda e que, no deixa
de nos formar.
Pois o que fala na palavra a prpria palavra, em seu enigma e em sua
precariedade, sua indeterminao no-classificatria e seu inacabamento. Desta maneira, aquele que escreve presencia seu desvanecimento perante o ato de
escrever, pela sua prpria escrita, a qual no pertence a ele e do qual no passa de
mero executor.
A literatura consiste no afastamento da linguagem dela mesma,
distanciando-se dos signos e dos significados. Ela parte da morte do autor e da
subseqente subveno da narrativa lgica para se fazer no murmrio sob o qual a
linguagem se liberta. Foucault em Histria da Loucura nos fala que a loucura
tambm rompe o silncio por a, a obra de Goya e de Nietzsche, por exemplo,
materializam o grito que rompe o silenciamento. Um outro nvel de expressividade.
-
III Simpsio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
O fundamento da literatura a relao com o ser puro da linguagem, na
qual ela desvela um sujeito fragmentado, verborrgico e que ao invs de esgotar a
linguagem, a lana ao infinito. Ao escrever, lana-se mo de fenmenos de auto-
representao da linguagem que parecem ser da ordem do artifcio, mas que se
desdobram em um empreendimento que no se sabe onde vai chegar e acaba por
arrancar o sujeito de si mesmo.
A literatura excessiva, ela vai para o inabitual, almeja s experincias-
limites que se pem em relao com o fora. Porm, h que se atentar para no
tornar o fora um fora imaginado, voltando, a um s golpe, representao e
interioridade. Pois a linguagem reflexiva no remete ao dentro da interioridade, ela
leva extremidade, ao limite, ao silncio da pura exterioridade onde as palavras se
desdobram ao infinito. H que destituir o discurso no s daquilo que ele enuncia,
mas da prpria possibilidade de enunciar, releg-lo origem que, mais que
comeo, recomeo incessante.
A linguagem dizendo a si prpria rompe com o cogito, pois enquanto o eu
penso cartesiano afirmava a existncia de um sujeito (do sujeito tal qual concebido
pela episteme moderna), o eu falo remete dissoluo de qualquer de qualquer
forma de assujeitamento e sujeio. Se por um lado o pensamento do pensamento
leva a uma profunda interioridade, por outro, a fala da fala leva literatura, este
fora (absoluto?) onde, pelo aparecimento do ser da linguagem, desaparece o
sujeito da concepo nuclear interiorizada.
Assim, se a literatura uma possibilidade de transgresso, ela ,
conseqentemente, possibilidade de criao de uma vida diferente. prprio da
arte ser comprometida com a renovao do campo perceptivo, e se s podemos
ver, falar, sentir o que nos permitido, a arte, em seu cerne contestador, possa
nos abrir outras veredas como estratgia micropoltica de combate a dominao, a
explorao e a sujeio.
Desta maneira, a literatura anuncia-se como poder que emancipa, a fora
que afasta a opresso do mundo, esse mundo onde todas as coisas sentem a
garganta apertada, a passagem libertadora do Eu ao Ele, donde aquele que
escreve implode a unidade subjetiva, elevando-se acima de uma realidade mortal,
na direo do outro mundo, o da liberdade como diz Blanchot (2011, p. 72).
Finalizando, no h o que decifrar sob a linguagem e sob a loucura, no h
contedos a se desvelar. Trata-se apenas do fluir interminvel das palavras, donde
elas alcanam e se realizam como experincia do fora. Mario Pedrosa dizia que a
mesma mo que levava os loucos em seu caminho de loucura os trazia de volta.
-
III Simpsio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
Que a procedncia da diferena guie nossas intervenes e nossas leituras, e que
possamos ser outros perante qualquer entidade-idem que possa vir a nos subjugar.
Referncias Bibliogrficas:
BLANCHOT, M. A Conversa Infinita Volume 3: A Ausncia de Livro. So Paulo:
Escuta, 2010
______________ O Espao Literrio. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2011
FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas: Uma Arqueologia das Cincias Humanas.
So Paulo: Martins Fontes, 1999.
___________ Prefcio (Folie et draison) in In: ______. Ditos & Escritos 1:
Problematizao do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanlise. Rio de Janeiro:
Forense Universitria, 2001.
___________ Histria da Loucura. So Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
MACHADO, R. Foucault, a Filosofia e a Literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005.
PLBART, P. P. Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura. So Paulo: Brasiliense,
1989.
PINTO, L. A. Subjetividade e o Escrever, um ensaio sobre a experincia literria.
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 12, 2008
PORTOCARREIRO, V. As Cincias da Vida: Foucault e Canguilhem. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 2011.