A Ausência de Obra - Uma Leitura Através Do Conceito de Pensamento Do Fora Em Foucault

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III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE A AUSÊNCIA DE OBRA: UMA LEITURA ATRAVÉS DO CONCEITO DE PENSAMENTO DO FORA EM MICHAEL FOUCAULT Guilherme Augusto Souza Prado 1 Como entrar em um labirinto sem se perder? Quiçá o próprio escopo dessa entrada seja a perdição. No labirinto da literatura se aventuram aqueles que seguem rumo à perdição do eu e, destituídos da insígnia de sujeito, tomam por destino, pelo menos em sua escrita, o dentro sem-fim da literatura, a loucura da ausência de obra. Para Foucault (2001), ausência de obra define a loucura em sua concretude, no ponto irrevogável em que se repele a produção da razão incompatível com ela. No entanto, define também a literatura, como desmaterialização dos conteúdos das palavras, na medida em que ela subverte os significados cotidianos usuais das palavras, rechaça a representatividade, fazendo que sua designação seja dada por nada mais que ela mesma, palavra. A palavra literária funciona por auto-implicação. Escrever seria atingir o ponto no qual só a linguagem age, a afirmação do neutro que nos fala Blanchot, o ponto em que não se diz mais eu, que é substituído pela impessoalidade do ele. Não que se morra efetivamente ao escrever, mas se padece dos “tormentos eternos do morrer”. Não há como ser eu quando a palavra toma as rédeas da escrita, quando é a mão que escreve e não o eu. Com o esmaecimento da figura do autor, um índice de controle discursivo criado na modernidade para tolher os desdobramentos infinitos que se produziriam entre o escrever e a escrita (PINTO, 2008), se esvai a literatura como expressão do eu, ligado ao sujeito da verdade e à consciência. Pois de fato, “entrar em contato com o neutro é abrir-se para a experiência com o fora. É deixar-se levar pelo Outro” (LEVY, 2011, p. 45). Tendo isto em vista, consideramos que a condição de existência da palavra literária é a busca daquele que lê e daquele que escreve pela diferença. Pois se escreve para não ser o mesmo, algo que podemos verificar na fala de Virginia Woolf “alguém tem que morrer”. Foucault ressalta o caráter intransitivo da literatura (apesar de considerar seu começo com Cervantes) moderna – de não-representativo. Cervantes fala de um personagem encantado com as histórias de cavalaria, e que mais adiante na 1 Mestrando em Psicologia Clínica e Subjetividade da Universidade Federal Fluminense; graduado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, UNESP – Assis – SP.

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Boa introdução à filosofia da literatura foucaultiana.

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  • III Simpsio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

    A AUSNCIA DE OBRA: UMA LEITURA ATRAVS DO CONCEITO

    DE PENSAMENTO DO FORA EM MICHAEL FOUCAULT

    Guilherme Augusto Souza Prado1

    Como entrar em um labirinto sem se perder? Qui o prprio escopo dessa

    entrada seja a perdio. No labirinto da literatura se aventuram aqueles que

    seguem rumo perdio do eu e, destitudos da insgnia de sujeito, tomam por

    destino, pelo menos em sua escrita, o dentro sem-fim da literatura, a loucura da

    ausncia de obra.

    Para Foucault (2001), ausncia de obra define a loucura em sua concretude,

    no ponto irrevogvel em que se repele a produo da razo incompatvel com ela.

    No entanto, define tambm a literatura, como desmaterializao dos contedos das

    palavras, na medida em que ela subverte os significados cotidianos usuais das

    palavras, rechaa a representatividade, fazendo que sua designao seja dada por

    nada mais que ela mesma, palavra.

    A palavra literria funciona por auto-implicao. Escrever seria atingir o

    ponto no qual s a linguagem age, a afirmao do neutro que nos fala Blanchot, o

    ponto em que no se diz mais eu, que substitudo pela impessoalidade do ele.

    No que se morra efetivamente ao escrever, mas se padece dos tormentos

    eternos do morrer. No h como ser eu quando a palavra toma as rdeas da

    escrita, quando a mo que escreve e no o eu.

    Com o esmaecimento da figura do autor, um ndice de controle discursivo

    criado na modernidade para tolher os desdobramentos infinitos que se produziriam

    entre o escrever e a escrita (PINTO, 2008), se esvai a literatura como expresso do

    eu, ligado ao sujeito da verdade e conscincia. Pois de fato, entrar em contato

    com o neutro abrir-se para a experincia com o fora. deixar-se levar pelo

    Outro (LEVY, 2011, p. 45). Tendo isto em vista, consideramos que a condio de

    existncia da palavra literria a busca daquele que l e daquele que escreve pela

    diferena. Pois se escreve para no ser o mesmo, algo que podemos verificar na

    fala de Virginia Woolf algum tem que morrer.

    Foucault ressalta o carter intransitivo da literatura (apesar de considerar

    seu comeo com Cervantes) moderna de no-representativo. Cervantes fala de

    um personagem encantado com as histrias de cavalaria, e que mais adiante na

    1 Mestrando em Psicologia Clnica e Subjetividade da Universidade Federal Fluminense; graduado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, UNESP Assis SP.

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    histria, comea a ser reconhecido pelos personagens da primeira parte como um

    personagem. Pois a escrita est sempre tentando subverter, forando os limites de

    suas regularidades, a linguagem literria transgride a literatura a cada fazer. O

    no-lugar da escrita consiste em nada mais nada menos que a espessura da linha

    da transgresso. Seu ser est contido a. Uma verdadeira experincia-limite.

    Ao se isentar do eu, a experincia da escrita leva a um fora-de-si que se

    articula com o fora-de-si de concepo psicolgica. A subsuno do sujeito uma

    abertura ao campo do possvel, mais especificamente das possibilidades de ser

    outro, de ser diferente. Assim, o fora-de-si da escrita enlouquecida subverte a

    ordem subjetiva levando a escrita inflexo sob ela mesma, contrapondo uma

    concepo interiorizada de sujeito, uma concepo ensimesmada por demais ligada

    a conscincia.

    O fora em Blanchot passa pela noo de imaginrio advindo da literatura e

    conduz ao impessoal, ao neutro ao ele despersonalizado; em seu projeto

    arqueolgico, Foucault diz sobre a fragmentao do sujeito, o desaparecimento do

    eu do estatuto clssico, onde a existncia do sujeito condicionada ao

    pensamento, mas a partir do (res)surgimento do ser da linguagem no bojo da

    experincia, no seria o eu penso que conferiria existncia, mas o falo, ou

    melhor ainda, o fala-se, o estatuto neutro indefinido que confere atributo

    ontolgico. Na experincia do fora, o escrever no pertence mais a alada do eu.

    Ela consiste na emergncia na superfcie do ser da linguagem que a pura

    exterioridade, a literatura apenas pode ser reflexiva sobre ela mesma.

    Antes da nossa era, a Modernidade, no existia a significao dos signos,

    pois a linguagem estava sob a soberania da semelhana; Foucault (1999, p. 59)

    sinaliza uma

    imensa reorganizao da cultura de que a idade clssica foi a primeira etapa, a mais importante talvez, posto ser ela a responsvel pela nova disposio na qual estamos ainda presos posto ser ela que nos separa de uma cultura onde a significao dos signos no existia, por ser absorvida na soberania do Semelhante; mas onde seu ser enigmtico, montono, obstinado, primitivo, cintilava numa disperso infinita.

    Foucault prossegue dizendo que talvez s tenhamos contato com o ser

    infinito da palavra novamente na literatura. Esta, como se constituiu na

    modernidade, propiciou o reaparecimento inesperado do ser da linguagem, mesmo

    que de forma no direta, diagonal e alusiva.

    Na Era Clssica, toda linguagem tinha valor de discurso, na medida em que

    ela nada mais fazia que signos, redupliplicava as coisas nomeando-as, subjugando-

    as sob mais nomes, mais signos secundrios imagem de imagem. A literatura

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    reata com o ser integral da linguagem, ela compensa a linguagem representativa e

    no a confirma. Ela a forma da devoluo da experincia integral da linguagem

    lngua que cedeu funo representativa, na episteme clssica, e funo

    significativa, na modernidade; pois desde o sculo XV a linguagem no enuncia a

    seu ser de outra maneira que pelas linhas literrias, as quais no podem ser lidas

    pelo significado, o que se diz e se entende usualmente por ela, nem pelo

    significante, o que ela diria por baixo de si segundo mtodos interpretativos

    auxiliares provindos da lingstica ou da psicanlise.

    No obstante, a literatura moderna se constituiu fora do sistema de

    significaes que se fez com a Episteme Moderna, mas tambm fora das formas de

    decifrao advinda do sistema binrio do sc. XVII, que seja, a lgica da

    representao, do significante e do significado. E, uma vez que no h mais uma

    palavra primeira pela qual incorria um esquema de significao infinita no

    Renascimento a ltima vez que se fez ver o ser da linguagem na Modernidade

    a linguagem vai crescer sem comeo, sem termo e sem promessa. o percurso

    desse espao vo e fundamental que traa, dia a dia, o texto da literatura

    (FOUCAULT, 1999, p. 61).

    Desta maneira as palavras se desenrolam ao infinito, nisso consiste a

    ausncia de obra, a criao um outro idioma dentro do idioma. A ausncia de obra

    no o vazio, pois o vazio ainda presume estrutura, ela a prpria condio da

    obra e sua consumao. Nas palavras de Blanchot (2010, p. 208), a Obra,

    absoluto da voz e da escrita, se desfaz, antes mesmo de realizar-se, antes de

    arruinar, ao realizar-se, a possibilidade da realizao; a literatura , pois,

    irrealizvel e uma vez que ela no pode ser determinada, que no se restringe a

    uma sublocao delimitada, ela no pode ser entendida sob a gide da

    representao ou dos signos.

    Entretanto, a obra no tende para o nada, seu rumo a origem, o ponto

    onde no se comea, mas somente se recomea. Escrever um livro ler as linhas

    invisveis na profunda superfcie da indefinio. A obra, pois, contm e no contm

    a ausncia de obra, contm, na medida em que a mantm longe, mas no contm

    em termos de englobamento, de estar dentro. A ausncia de obra no est, pois

    contida na obra, mais correto seria dizer, que ela contida pela obra, esta faz

    conteno daquela.

    A ausncia de obra consiste naquilo que fala ao p de ouvido da obra, sendo

    ela atingida ento pela impreciso, pelo murmrio, que emergem do silncio, do

    silenciamento da linguagem enquanto experincia integral. O advento da filologia

    no intercurso da modernidade anuncia a fragmentao da linguagem, esta no

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    podendo ser tomada integralmente, isola os preceitos do dbio, do ambguo, do

    mltiplo, encarcerada que , ou que se torna, da noo de unidade.

    Os mecanismos de controle atingiram seu pice na modernidade. As

    mesmas luzes do Iluminismo que iluminam pelo conhecimento causam a cegueira

    ao mltiplo, s mirades de significados, em prol do paradigma da unidade, do

    sujeito, na fragmentao das experincias da linguagem e da loucura. E o que

    outrora era a desrazo, encarada como aventura da razo, vai ser enclausurada no

    bojo de uma concepo objetivada, passa a ser tida como indesejvel, ou mesmo

    perigosa, e sob esta gide de subversiva, atenta contra a unidade constitutiva do

    sujeito moderno.

    A fragmentao das experincias (prticas que abarcam o visto e o dito, as

    prticas e as teorias sobre algo) da linguagem e da loucura enquanto experincias

    integrais parte do projeto da modernidade que dilui o poder soberano pelos

    ramos capilares das disciplinas. O poder disciplinar, por sua vez, sobre-implica a

    relao com tudo o que compromete a noo de unidade subjetiva, o ser da

    linguagem e a experincia trgica da loucura (FOUCAULT, 1972) so calados,

    postos em suspenso por essa ordem. A experiencia trgica da loucura era a

    possibilidade de contra-crtica da razo. No por acaso, pelos meandros da lngua

    enquanto linguagem e passvel da semiologia que se realizam a maior parte dos

    diagnsticos psicolgicos.

    O louco, na leitura hegeliana (MACHADO, 2000), aquele no qual a

    particularidade se coloca acima do geral, e nesta confuso, reside ainda um rastro

    de razo, sob o qual deve-se concentrar no intuito de retom-la nele. O louco passa

    a ser ento no aquele no qual no reside a razo e a verdade para ser aquele que

    no est em contato com a prpria verdade, desvinculado de si mesmo, um

    alienado.

    A partir do estabelecimento da loucura como doena mental, se perdeu o

    dilogo, ora balbuciante, ora sem sintaxe fixa, que mediavam as trocas entre a

    razo e a loucura, calando-a fora. Foucault (2001, p. 141) pondera que a

    linguagem da psiquiatria, que o monlogo da razo sobre a loucura, s pode

    estabelecer-se sobre um tal silncio e prossegue, em seguida, o autor, no quis

    fazer a histria dessa linguagem; antes, a arqueologia desse silncio.

    O silenciamento imposto loucura o silenciamento de uma experincia que

    encarna o interdito de ao e de linguagem via gesto e palavra das sociedades.

    Com as internaes pretendia tirar de circulao uma ampla gama de enunciaes

    que incomodavam nas falas das pessoas, das bruxarias a Sade. A reforma de Pinel

    o cale-se da palavra interdita, da linguagem excluda: das palavras sem

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    significao, os imbecis; das sacralizadas, os furiosos e violentos; ou das

    significaes interditadas, proibidas, os libertinos ou obstinados.

    Pois quando a linguagem se livra da representao e do sujeito ela emerge

    como exteriorizao e diferenciao, fazendo aparecer uma linguagem neutra,

    annima, a qual, por ser errtica, pode sempre questionar o que tenhamos por

    verdade inconteste. Pensar o impensvel, funo do pensamento do fora, seria

    tambm fazer ver o horizonte do possvel que h alm do que foi elegido, mais ou

    menos aleatoriamente, como fator de importncia para a constituio do ser na

    ordem (no discurso e dispositivos) vigente.

    Neste contexto, a concepo de autoria, que ligada a um movimento

    histrico de forte individualizao, serve para conferir autoridade a um dado ou

    ainda como procedimento de controle do discurso do tipo quem disse o qu.

    Propiciando assim, que tanto a literatura quanto a loucura se sejam submetidas

    decifrao e ao esmiuamento semiolgico de significados velados. Ou seja, a

    noo de autoria, assim como a de sujeito (ligado a uma essncia) corroboram para

    o controle inerente que a sociedade, sob a insgnia de seu discurso e seus

    dispositivos, exerce sob as possibilidades de transgresso da loucura e da

    literatura. Acontece que o plural da palavra sobrepujado pela figura unificadora

    do sujeito.

    Foucault (1972) fala que mesmo a psicanlise no est apta a escutar as

    vozes da desrazo, ela pode at desfazer algumas loucuras, mas no compreende

    seu trabalho. Mas qual seria este trabalho? Ou o enlouquecimento da linguagem, a

    prpria escrita literria seria ento uma outra maneira de enlouquecer?

    Fomos buscar em Blanchot auxilio no para responder tal questo, no

    almejaramos tanto, mas para problematizar junto a um autor que pensou a escrita

    literria em sua radicalidade. Ele parte da desimportncia da biografia daquele que

    escreve, o qual no fala de seus complexos, de seu ser ntimo, como diz e quer

    fazer acreditar uma certa psicanlise. O poder da escrita abarca a capacidade de

    afastar os tormentos mas tambm de traz-los nas noites em que se escreve,

    rodeado pela angstia e pela insnia, ela no reconcilia ou apazigua o ser. A arte

    , em primeiro lugar, a conscincia da infelicidade, no sua compensao

    (BLANCHOT, 2011, p. 74).

    Tampouco a escrita revela uma verdade ntima da interioridade profunda do

    ser, um desvelamento por revelao como no s alguma psicanlise, mas alguma

    semitica pretende. Seu jogo consiste justamente em manter o desconhecido longe

    da alada do conhecvel e mais ainda da do representvel. A escrita passa pela obra

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    e a usa para se desvenciliar dela. O inacessvel da literatura o simulacro; sendo

    que a escrita, em ltima instncia, experiencia a disperso e vertigem.

    A prpria literatura presume a distncia, a distncia necessria criao. A

    distncia do olhar de Orfeu, como diz Blanchot (2011) em O Espao Literrio. A

    distncia entre Orfeu e Eurdice, que sempre se interpe entre os dois na medida

    em que haja canto. Para que Orfeu cante, ele carece de tal distncia de sua musa,

    lembremos que quando est com Eurdice em mos, ainda que no a possa fitar

    nos olhos, ele tampouco canta. Quando ele no resiste tentao e olha para traz

    a fim de ver sua musa, no to simples assim; Eurdice a cair pelo precipcio

    antes de tudo, o que possibilita que Orfeu continue a cantar, a fazer sua obra.

    Tal obrar caracterizado por ser impessoal. Aquele que produz a obra

    desautorizado a dizer eu e mesmo de todo seu ser, no que se prescinda daquele

    que escreve como materialmente necessrio obra. Por exemplo, no se pode

    negar que foi Artaud que escreveu as obras que escreveu mesmo, mas ele no fala

    por um eu ali, Artaud no fala por Artaud, fala por um outro, uma voz

    despersonalizada e, a partir da violncia plstica e da carne, faz da sua empreitada

    o combate da materialidade do pensamento contra o cogito do racionalismo, aquele

    ao qual imprescindvel a representao, a mesma que ele mina com sua escrita.

    Foucault vai falar que o sculo XX testemunhou a morte do grande autor,

    enquanto figura que dizia pela prpria obra, antes mesmo de ser lida j se

    encadeava a uma trama de significantes advindos desse nome, da figura disruptiva

    do sujeito. E a assinatura dos livros, especialmente os de fico, no mais que

    um nome que se faz presente, mas no representa ningum nem nada e a partir do

    qual tampouco se pode decifrar algo.

    A literatura no se faz por essa explorao de significantes segundo a qual

    quanto mais soubssemos sobre um autor, sua vida, suas inquietaes, seus

    complexos, mais estaramos aptos a entender sua obra; quanto mais

    mergulhssemos na interioridade de seu eu, mais apreenderia da obra em sua

    profundidade. Foucault vai empreender o desmanche das noes de sujeito e de

    obra, ligadas que seriam a um esquema sujeito/objeto o qual limita a literatura e a

    criao em seu cerne, o mltiplo, aquilo que Blanchot chama de reduplicao dos

    sentidos.

    No entanto, justamente pelo movimento contrrio que se faz literatura, o

    desobramento que constitui o ser e elimina concomitantemente a categoria sujeito.

    S se faz obra se desobrando, no sentido de que a obra o seu prprio canto do

    cisne, seu esmaecimento e sua efetivao, algo anlogo a uma consumao, mas

    sem a intemprie temporal de se deixar de existir. Pois como o devir, que no

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    vir a ser, mas vir a vir sendo, se efetiva concomitantemente sua dissipao, mas

    o faz incessantemente e nunca se evanesce totalmente enquanto se realiza.

    Peter Pl Pelbart (1989) assinala que o termo original em francs para

    desobramento, desoeuvrement, remete a inao, ociosidade, passividade e talvez

    at algo tedioso. Desobramento seria, assim, a atividade de uma passividade, mas

    uma passividade que excede o ser, ou que o esgota que leva ao neutro, ao

    impessoal. A literatura mesmo transgresso, o valor positivo que afirma o

    limitado e o ilimitado do ser, o seu porte de finitude, mas tambm o horizonte do

    inclassificvel, do inesgotvel que se lana em sua experincia ao impensvel e se

    realiza em seu inacabamento.

    Entretanto, se a lngua condiciona a vida social como um elemento de

    partilha o que quer dizer que ela maior que a fala de um ou outro em particular

    abarcando tambm suas diferenas , a linguagem da literatura aberta aos

    signos, ela no comporta fundamento nem sequer fixao originria. Ou seja, cada

    palavra diz o que diz porque parte de uma totalidade gramatical, a qual primeira,

    fundamental e determinante a ela.

    Retomando o comeo do livro As Palavras e as Coisas, a enciclopdia

    chinesa da qual escreve Borges e que inspirou Foucault; ela uma categorizao

    completamente incoerente para ns, nela esto categorias que se do por lgicas

    distintas e mesmo contraditrias, ou ainda categorias coincidentes e outras que se

    sobrepe, isso sem falar em uma meta-categoria discursiva, a dos animais que

    esto includos naquele mesmo texto. O que Foucault nos mostra a a maneira a

    qual procede nosso pensamento, pois formalizando pela organizao que se d a

    estruturao do pensamento moderno (PORTOCARREIRO, 2011), seja na

    linguagem ou no que designamos pretensamente como real.

    Prosseguindo na mesma obra, no captulo seguinte, o autor empreende uma

    anlise do quadro Las Nias de Diogo Velsquez; tudo representado em Las

    Nias, at aquele que pinta, porque o mundo clssico acreditava piamente no poder

    do vnculo representao/real na isonomia entre representao figurativa e a

    representao verbal. Neste jogo, o espectador como um observador especular,

    ele est fora do jogo porque o espelho da imagem afirmando a

    representatividade e sua capacidade de enunciao do real. Contudo, o olhar do

    espectador que objetifica o quadro, que o transforma em objeto de representao

    de uma ausncia. Qui o quadro expressasse a ele mesmo, no a uma cena, no

    fosse representado fora dele, nem representasse algo exterior a ele. Mas no

    classicismo, a representao o real, ambos se fundem e se confundem.

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    Sobre os esquemas de objetificao da linguagem, Foucault assinala ainda

    em As Palavras e as Coisas (1999, p. 409 e 410):

    A passagem ontolgica que o verbo ser assegurava entre falar e pensar acha-se rompida; a linguagem, desde logo, adquire um ser prprio. E esse ser que detm as leis que o regem [] A ordem clssica da linguagem encerrou-se agora sobre si mesma. Perdeu sua transparncia e sua funo principal no domnio do saber. Nos sculos XVII e XVIII, ela era o desenrolar imediato e espontneo das representaes; era nela primeiramente que estas recebiam seus primeiros signos, recortavam e reagrupavam seus traos comuns, instauravam relaes de identidade ou de atribuio; a linguagem era um conhecimento, e o conhecimento era, de pleno direito, um discurso.

    Conseqentemente, na Episteme Clssica, a possibilidade de se conhecer

    passavanecessariamente pela linguagem, Entretanto,

    a partir do sculo XIX, a linguagem se dobra sobre si mesma, adquire sua espessura prpria, desenvolve uma histria, leis e uma objetividade que s a ela pertencem. Tornou-se um objeto do conhecimento entre tantos outros: ao lado dos seres vivos, ao lado das riquezas e do valor, ao lado da histria dos acontecimentos e dos homens. Comporta, talvez, conceitos prprios, mas as anlises que incidem sobre ela so enraizadas no mesmo nvel que todas as que concernem aos conhecimentos empricos. Aquela relevncia que permitia gramtica geral ser ao mesmo tempo Lgica e com ela entrecruzar-se, est, doravante, reduzida. Conhecer a linguagem no mais aproximar-se o mais perto possvel do prprio conhecimento, to-somente aplicar os mtodos do saber em geral a um domnio singular da objetividade.

    O que o autor nos quer dizer aqui que, partindo da linguagem postulada

    como espelho do mundo e da cincia considerada a cpia da natureza, o

    conhecimento clssico ligado mecnica e a uma organizao do espaamento

    das coisas e, de Galileu a Descartes, buscava a origem das coisas se apoiando,

    sobretudo, na representabilidade das palavras e gerando um quadro de

    conhecimento espontneo sobre do mundo.

    No entanto, entre a nsia de formalizar a linguagem ou a de interpretar, ou

    seja, entre remet-la aos universais do discurso, deixando de lado seu sentido

    concreto ou ento fend-la para dela retirar sentidos ocultos, cabe linguagem ao

    final surgir em si mesma na escrita que designa o prprio ato de escrever.

    A linguagem se entreabre mltipla no lastro deixado pela reflexo filosfico-

    filolgica de Nietzsche, e precisa ento ser dominada em prol da figura unificadora

    do sujeito. E as tentativas no mbito do apaziguamento do ser mltiplo da palavra

    so inmeras, de uma formalizao universal do discurso a uma exegese integral,

    existem muitos projetos de submisso da linguagem.

    Posto isto, consideramos que o reaparecimento no sculo XIX das tcnicas

    de exegese no acontece por acaso, elas reaparecem porque a linguagem

    recuperou afinal a densidade que continha no Renascimento. Porm, a busca no

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    ser mais pela palavra primeira, mas sim pela inquietao das palavras que

    falamos, trata-se de fazer rudo com a parte silenciada de cada discurso ou at

    mesmo uma promover uma abertura ao som que se faa concomitante ao desdm

    pela funo sinttica cotidiana.

    Na modernidade, a literatura a contestao da filologia (de que , no

    entanto, a figura gmea): ela reconduz a linguagem da gramtica ao desnudado

    poder de falar, e l encontra o ser selvagem e imperioso das palavras (FOUCAULT,

    1999, p. 415). Pois, mesmo com a substituio da gramtica geral, preocupada

    com a representatividade de sua linguagem perante as cosias do mundo, por uma

    cincia intrincada com os significados, a literatura escapa a objetivaes, pois tudo

    nela conduz em relao ao ser da linguagem e ao simples ato de escrever.

    Foucault ressalta ainda que se o ser da linguagem foi fragmentado, com

    Nietzsche e Mallarm, a linguagem se encontra arrastada de volta a seu ser. E que

    ao matar o homem e Deus simultaneamente, Nietzsche devolve a vida aos deuses

    adormecidos, os quais foram a muito silenciados. Assim tambm a linguagem, livre

    do homem e de Deus, despojado das categorias de autor e de obra e longe da

    significao e da representao, se manifestaria em seu ser indomado e mltiplo.

    Retomando, a literatura no seria o produto de uma ordem da interioridade,

    mas, antes, a subverso dessa mesma ordem ao mesmo tempo em que a

    contestao do pensamento representativo; e, ademais o fracionamento da

    linguagem, quando esta reduzida objetividade da filologia, marca a passagem

    da episteme clssica para modernidade, muito embora a linguagem tomada em sua

    integralidade, sem a fragmentao imposta pela modernidade, desliza entre os

    signos e os sentidos, se abrindo ao impensado que nos circunda e que, no deixa

    de nos formar.

    Pois o que fala na palavra a prpria palavra, em seu enigma e em sua

    precariedade, sua indeterminao no-classificatria e seu inacabamento. Desta maneira, aquele que escreve presencia seu desvanecimento perante o ato de

    escrever, pela sua prpria escrita, a qual no pertence a ele e do qual no passa de

    mero executor.

    A literatura consiste no afastamento da linguagem dela mesma,

    distanciando-se dos signos e dos significados. Ela parte da morte do autor e da

    subseqente subveno da narrativa lgica para se fazer no murmrio sob o qual a

    linguagem se liberta. Foucault em Histria da Loucura nos fala que a loucura

    tambm rompe o silncio por a, a obra de Goya e de Nietzsche, por exemplo,

    materializam o grito que rompe o silenciamento. Um outro nvel de expressividade.

  • III Simpsio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

    O fundamento da literatura a relao com o ser puro da linguagem, na

    qual ela desvela um sujeito fragmentado, verborrgico e que ao invs de esgotar a

    linguagem, a lana ao infinito. Ao escrever, lana-se mo de fenmenos de auto-

    representao da linguagem que parecem ser da ordem do artifcio, mas que se

    desdobram em um empreendimento que no se sabe onde vai chegar e acaba por

    arrancar o sujeito de si mesmo.

    A literatura excessiva, ela vai para o inabitual, almeja s experincias-

    limites que se pem em relao com o fora. Porm, h que se atentar para no

    tornar o fora um fora imaginado, voltando, a um s golpe, representao e

    interioridade. Pois a linguagem reflexiva no remete ao dentro da interioridade, ela

    leva extremidade, ao limite, ao silncio da pura exterioridade onde as palavras se

    desdobram ao infinito. H que destituir o discurso no s daquilo que ele enuncia,

    mas da prpria possibilidade de enunciar, releg-lo origem que, mais que

    comeo, recomeo incessante.

    A linguagem dizendo a si prpria rompe com o cogito, pois enquanto o eu

    penso cartesiano afirmava a existncia de um sujeito (do sujeito tal qual concebido

    pela episteme moderna), o eu falo remete dissoluo de qualquer de qualquer

    forma de assujeitamento e sujeio. Se por um lado o pensamento do pensamento

    leva a uma profunda interioridade, por outro, a fala da fala leva literatura, este

    fora (absoluto?) onde, pelo aparecimento do ser da linguagem, desaparece o

    sujeito da concepo nuclear interiorizada.

    Assim, se a literatura uma possibilidade de transgresso, ela ,

    conseqentemente, possibilidade de criao de uma vida diferente. prprio da

    arte ser comprometida com a renovao do campo perceptivo, e se s podemos

    ver, falar, sentir o que nos permitido, a arte, em seu cerne contestador, possa

    nos abrir outras veredas como estratgia micropoltica de combate a dominao, a

    explorao e a sujeio.

    Desta maneira, a literatura anuncia-se como poder que emancipa, a fora

    que afasta a opresso do mundo, esse mundo onde todas as coisas sentem a

    garganta apertada, a passagem libertadora do Eu ao Ele, donde aquele que

    escreve implode a unidade subjetiva, elevando-se acima de uma realidade mortal,

    na direo do outro mundo, o da liberdade como diz Blanchot (2011, p. 72).

    Finalizando, no h o que decifrar sob a linguagem e sob a loucura, no h

    contedos a se desvelar. Trata-se apenas do fluir interminvel das palavras, donde

    elas alcanam e se realizam como experincia do fora. Mario Pedrosa dizia que a

    mesma mo que levava os loucos em seu caminho de loucura os trazia de volta.

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    Que a procedncia da diferena guie nossas intervenes e nossas leituras, e que

    possamos ser outros perante qualquer entidade-idem que possa vir a nos subjugar.

    Referncias Bibliogrficas:

    BLANCHOT, M. A Conversa Infinita Volume 3: A Ausncia de Livro. So Paulo:

    Escuta, 2010

    ______________ O Espao Literrio. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2011

    FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas: Uma Arqueologia das Cincias Humanas.

    So Paulo: Martins Fontes, 1999.

    ___________ Prefcio (Folie et draison) in In: ______. Ditos & Escritos 1:

    Problematizao do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanlise. Rio de Janeiro:

    Forense Universitria, 2001.

    ___________ Histria da Loucura. So Paulo: Editora Perspectiva, 1972.

    MACHADO, R. Foucault, a Filosofia e a Literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

    2005.

    PLBART, P. P. Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura. So Paulo: Brasiliense,

    1989.

    PINTO, L. A. Subjetividade e o Escrever, um ensaio sobre a experincia literria.

    Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 12, 2008

    PORTOCARREIRO, V. As Cincias da Vida: Foucault e Canguilhem. Rio de Janeiro:

    Editora Fiocruz, 2011.