A Atriz, o Padre e o a - Amoladores de Facas

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    A Atriz, 0Padre e a PsicanaHsta- os Amoladores de Facas

    Genocidio, s.m. Crime contra a humanidade, que consiste emcometer, com a intenciio de destruir, no todo au em parte, umgrupo nacional, etnica, racial ou religioso, qualquer dos se-guintes atos: I) matar membros do grupo; II) eausar-lheslesiio grave a integridade fisica ou mental; Ill) submeter 0grupo a condicoes de existencia capazes de destrui-lo fisiea-mente, no todo ou em parte f...].

    Aurelio Buarque de Holanda Ferreira,Novo Dicioruirio Aurelio.

    Coveiros bebados tentando sepultar 0corpo de uma mulher nocemiterio de Bongaba, Rio de Janeiro, acabaram por desenterrar umacabeca, ainda com bobes nos cabelos, de uma mulher sepultada semcaixao, Os acompanhantes do enterro viram passar urn cachorro coma mao de uma crianca na boca. Em Coqueiro Seco, Alagoas, 0corpodo vereador Renildo Jose dos Santos foi encontrado degolado. Renil-do foi assassinado por declarar-se homossexual. Travestis sao mortosno centro de Sao Paulo com tiros nos olhos. Nos ultimos tres meses,executaram quinze. A classe media paulistana profbe a instalacao deuma casa para criancas com AIDS. No colegio dos seus filhos, umamenina com essa enferrnidade e proibida de estudar. Senhoras e se-nhores educados, bem-vestidos, assistem com indiferenca ao massa-cre na penitenciaria do Carandiru. Na zona sul carioca, a juventudedourada, senhoras e senhores, expressam indignacao; justificando 0pagamento de impostos, clamam pela retirada dos negros e suburba-nos de suas praias. Alem da cabeca, outras partes do corpo do verea-dor foram amputadas. Os travestis recebem tiros na boca. Renildosabia que ia morrer e quem iria mata-lo. Alias, os travestis, os subur-banos, os negros, as criancas e adultos com AIDS, os mortos do mila-gre economico, os desaparecidos na ditadura e mortos de Bongaba,tambern.

    Nessas mutilacoes de corpos, 0Brasil fala sobre temas aindaatuais; fala sobre a miseria do pobre, a miseria da diferenca e de

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    outras mais. Convivemos lado a lado, por essas mutilacoes, corn a ex-pressao crua e seca da violencia contra a condicao humana. Por meiodos jornais, nossa historia e narrada nesses pedacos de corpos, quetrazem 0cotidiano brasileiro sem metaforas e sem veu, apresentandoa qualidade de vida que temos, a vida que nos e negada e os modosde viver que convivem com 0medo, corn a culpa e com as armas.o fio da faca que esquarteja, ou 0 tiro certeiro nos olhos, possuialguns aliados, agentes sem rostos que preparam 0 solo para essessinistros atos. Sem cara ou personalidade, podem ser encontrados emdiscursos, textos, falas, modos de viver, modos de pensar que circu-lam entre famflias, jomalistas, prefeitos, artistas, padres, psicanalistasetc. Destituidos de aparente crueldade, tais aliados amolam a faca eenfraquecem a vitima, reduzindo-a a pobre coitado, cumplice do ato,carente de cuidado, fraco e estranho a nos, estranho a uma condicaohumana plenamente viva. Os amoladores de facas, a semelhanca doscortadores de membros, fragmentam a violencia da cotidianidade,remetendo-a a particularidades, a casos individuais. Estranhamento eindividualidades sao alguns dos produtos desses agentes. Onde esta-rao os amoladores de facas?

    J a que invisiveis no dia-a-dia, a presenca desses aliados e dificilde detectar. A acao desse discurso e microscopica, complacente ecuidadosa. Nunca dizem nao, nao seguem as regras dos torturadores,que reprimem e usam a dor. A vidos por criar perguntas e responde-las, por criar problemas e soluciona-los, defendem urn humanismoque preencha 0 vazio de urn homem fraco e sem forca, urn homemangustiado e perplexo, necessitado de tutela. Ern momentos anterio-res da nossa historia, enquanto os negros apodreciam nas senzalas,teorias medicas enquadravam-nos em sub-raca. Histericas, frageis enervosas, eram assim definidas as mulheres por uma psiquiatria quesinalizava 0avanco publico da mulher. Fomentador da desordem,prorniscuo e perigoso era 0perfil do trabalhador, enquanto vilas ope-rarias eram construidas pelos patroes para urn maior controle e vigi-lancia dos seus atos. A perigosa vida fora das fabricas era cuidadapela policia e pela medicina patronal. Trazida da Europa, na decadade 1920, chega a Psicanalise no Brasil, retirando 0 homos sexual dadevassidao, colocando-o nas tramas do inconsciente. Sai 0degenera-do, 0 viciado e amoral e inaugura-se 0 perverso, a pequena criancavitima da fatalidade de Edipo. Nessa mesma epoca, a sexualidadeganha vital importancia para 0 conhecimento da natureza humana.46

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    Nada pode ser escondido, desreprimir e confessar sao as tecnicas pro-postas para 0born funcionamento psiquico. A sexualidade torna-semisterio, mistura-se a alma, e 0 olbar dos novos psicanalistas, defen-sores da eugenia, da melboria da raca, penetra vigilante nos pequenosatos do cotidiano. Enquanto isso, no Rio de Janeiro e Sao Paulo, osnegros e famintos proliferam nos hospicios.

    Esses exemplos de amoladores de facas nao pertencem a urnpassado banido pela razao e pela modernidade, muito ao contrario,foram seus porta-vozes, os fieis escudeiros da construcao de urnBra-sil culto, saudavel e modemo. Nossa hist6ria nos aponta nao para 0fim desses atos, mas para a reedicao e aperfeicoamento dessas mor-bidas estrategias. Aos negros, ainda lhes e oferecida uma "subsisten-cia", 0 cemiterio de Bongaba, a prefeitura de Coqueiro Seco, as ruasde Sao Paulo, as praias do Rio de Janeiro, sao espacos que estilhacamos espelhos de uma burguesia que deseja se ver asseptica, segura efeliz. Sao espacos que estilhacam uma etica que se diz universal, masque necessita da protecao da policia e das grades dos condominiosfechados para 0 seu born funcionamento. Voltando a pergunta ante-rior, onde estarao os conternporaneos amoladores de facas?

    Uma pista para 0 leitor: ligue a TV, leia os jomais, escute no radioos debates sobre temas do dia-a-dia. Perceba nas entrelinhas dasreportagens comprofissionais dopsiquismo, com religiosos e artistasfarnosos. Atente para as falas sobre 0 sexo, sobre identidades e pes-tes. Incorporadas em profissionais de prestigio, os amoladores defacas circulam dentro e fora da mfdia, produzindo a ingenua e eficazimpressao de uma fala individual e neutra. Algumas cenas podemilustrar suas intervencoes. Em urn programa para jovens cujo tema esexo, uma psicanalista e entrevistada por adolescentes. Uma garotapergunta-lhe sobre 0 homossexualismo. A psicanalista assinala queos adolescentes nao precisarn temer, porque tendo uma infancia sau-davel, urnborn relacionamento com 0papai e com a rnamae, 0ediposera resolvido, nada acontecera. A psicanalista afirma tambern que 0homossexualismo nao e uma doenca, e simurn sintoma, uma paradano desenvolvimento psicossexual, uma tentativa inconsciente de re-solve-lo. Os adolescentes escutam, series, a especialista falar sobreos misterios da alma. Ap6s os calorosos aplausos, os adolescentespaulistanos aprenderarn que 0homossexual e uma angustiada reedi-~ao de uma crianca que precisa do arnor do papai e da mamae. Noprograma juvenil, aprendemos a nao ser preconceituosos, aprende-

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    mos a compreender uma fragil e carente existencia, vftima de umatragica fatalidade narrada em uma historinha grega. 0 jovem da clas-se media podera agora alterar seu olhar sobre esse estranho persona-gem, fadado a viver na falta, no passado e na tragedia grega. Aprendeua compreender e a amolar facas ou canivetes.

    No program a dominical, uma artista famosa, apaixonada pelanatureza e pela poesia, afrrma que nao admitiria ter urn filho homos-sexual. lustificando nao ter preconceitos, ja que e atriz, afrrma seresse tipo de pessoa 0produto de urn relacionamento familiar que naofuncionou bern. Alguma coisa anda mal e seu filho esta fadado a serinfeliz. A atriz apaixonada pelos poetas e pela ecologia amolou sen-sivelmente uma faca.

    Finalizando a apresentacao do discurso dos aliados veiculadospor personalidades do nosso dia-a-dia, apresentamos urn texto certei-ro, urn depoimento de grande eficacia proferido por urn amoladorcompetente:

    Ja ouvi de urn jovem essa sentenca: "Deus sempre perdoa; oshomens, algumas vezes; a natureza, nunca". No caso da AIDS,trata-se de uma decorrencia da propria natureza que, profun-damente atingida, reage norrnalmente, sem que Deus se veja naobrigacao de alterar as suas leis por urn m:ilagre. E esse castigoindireto de Deus visa ao bern do homem, a volta a uma vidasaudavel. Sem diivida podemos dizer que tal castigo, no qual semanifesta a "ira de Deus" [foi 0 primeiro nome dado a AIDs],lembra Jesus empunhando 0 latego no templo que os mercadoresprofanavam. E poderemos acaso profanar impunemente 0 tem-plo do nosso corpo, que deve ser a habitacao do Espirito Santo?Deus perdoa sempre os que desejam perdao, mas castiga-os, senecessario, deixando agirem as pr6prias leis naturais [...J .o que tern em comum a psicanalista, 0padre e a atriz? Apontar

    o preconceito seria uma ingenua deducao, uma analise sem safda quejustifica e alimenta os autoritarios "pontos de vista", os relativismose a enfase na boa ou rna consciencia. 0 autoritarismo dos "pontos devista"funda-se no esvaziamento da implicacao coletiva e da constru-~ao historica e sociopolitica do olhar e do outro. 0 preconceito reme-tido a uma questao pessoal esvazia suas tramas com 0poder, sua eficaciapolftica na manutencao e na desqualificacao dos modos de existir.48

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    Configurado em questao pessoal, entra no reino da culpa ou da re-compensa, materializando-se em individualidades que necessitaraoda tutela dos pastores de diferentes procedencias, ou seja, pastores daalma, pastores da ciencia, pastores da culpa, pastores do medo etc.o que os amoladores de facas tern em comume a presenca camu-flada do ato genocida. Sao genocidas, porque retiram da vida 0 senti-do de experimentacao e de criacao coletiva. Retiram do ato de vivero carater pleno de luta politica e 0da afirmacao de modos singularesde existir. Sao genocidas porque entendem a Etica como questao dapolicia, do ressentimento e do medo. Nao acreditam em modos deviver, porque professam 0 credo da vida como fardo ou dadiva. Tra-zer para a discussao sobre a Etica a eficacia dos amoladores de facastalvez seja uma possibilidade de evitarmos a impunidade dos assassi-nos de Renildo Jose dos Santos, dos travestis de Sao Paulo, dos mortosde Bongaba, dos mortos da ditadura, dos pequenos e intensos assas-sinatos que acontecem microscopicamente no cotidiano brasileiro.

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