A Astucia dos Cosmeticos. Kipnis

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o .<1: c> <I: I- Z w (I) w a: a... <I: JEFFREY KIPNIS A ASTÚCIA DOS COSMÉTICOS o escritório suíço de Herzog & de Meuron, fundado por Jacques Herzog e Pierre de Meuron em 1978, ganhou reconhecimento internacional nos anos 1990 com projetos como a fábrica e depósito da Ricola-Europe em Laufen, na Suíça (1989-91), e a Tate Modern em Londres (1998-2000). Em 2000, um ano antes que os dois arquitetos recebessem o prêmio Pritzker, um ensaio de Jeffrey Kipnis - arqui- teto, crítico e professor na Universidade de Ohio - apareceu numa edição da revista fi Croquis dedicada à obra do escritório. Em "A astúcia dos cosméticos'; uma "reflexão pessoal" com implicações mais amplas, Kipnis vê Herzog & de Meuron como uma ano- malia na vanguarda arquitetõnica contemporânea. As geometrias radicais e as incursões transdisciplinares praticadas pelos arquitetos "de ponta" do começo do século XXI têm pouco espaço na obra de Herzog & de Meuron, que se baseia em formas cartesianas, materiais convencionais (embora usados de maneiras não convencionais) e práticas ar- quitetõnicas estabelecidas. Mas o que Herzog & de Meuron fazem com esses elemen- tos aparentemente normativos desafia as expectativas normais, dando origem a uma arquitetura com "uma astuciosa inteligência urbana e um poder de atração intoxicante, quase erótico': Herzog & de Meuron costumam se concentrar na superfície do edifício, o que levou Kipnis a desenvolver o conceito de cosmético, em oposição ao conceito mais tradicional de ornamento. Os ornamentos se acrescentam a um corpo, mas continuam sendo objetos distintos; os cosméticos agem sobre a pele - existem apenas quando são aplicados sobre a pele - alterando sub-repticiamente sua aparência como uma espécie de véu, não como uma entidade separada. Em sentido literal, o cosmético é superficial. Seu efeito, porém, é muito pro.fundo. Tal como definido por Kipnis, o cosmético oferece uma abordagem alternativa para avivar a arquitetura. No momento em que a vanguarda arquitetõnica parece transgredir os limites previamente aceitos da disciplina, Herzog & de Meuron adotam uma atitude particular (latente na própria arquitetura, segundo Kipnis), que se envolve com um limite arquitetõnico bem definido: a fachada. Isso é o que diferencia Herzog & de Meuron, a saber, operações que partem das convenções da disciplina, interpretadas e empregadas com originalidade, para criar uma arquitetura elegante, sofisticada, estimulante, que Kipnis define como "simplesmente lal arquitetura mais cool que há por aí': Num campo dominado por fluxos de informação, performances e blobs, o cosmético não poderia ser a operação mais perspicaz de todas? 118 JEFFREY KIPNIS A astúcia dos cosméticos (uma reflexão pessoal sobre a arquitetura de Herzog & de Meuron) Durante os brindes celebrativos da inauguração da mostra Light Construction, a profunda tensão latente [...] irrompeu numa discussão áspera entre Herzoq e Koolhaas [...]. El Croquis, n. 79 Quanto tempo faz desde que soltei minhas primeiras farpas maliciosas contra o trabalho de Herzog & de Meuron [HDM]? Seis, oito anos? Claro, como o crítico que eu era, defensor da vanguarda arquitetõnica, apologista intelectual do ex- tremo, do exótico, do subversivo, não era de rigueur ridicularizar as propostas superficiais de HDM?Enquanto uma ala da vanguarda propunha a forma exótica como vetor de resistência arquitetõnica, HDM ofereciam volumes cartesianos flagrantemente simples. Enquanto outra ala cultivava a teoria dos eventos em técnicas programáticas sediciosas, HDMse entregavam com satisfação a um pla- nejamento prático e redutor. A fixação de HDMpelo cosmético, pelos detalhes minuciosos, materiais vistosos e fachadas deslumbrantes, parecia frívola compa- rada àqueles outros experimentos mais explicitamente radicais. E, pior, o aspecto geral de suas obras parecia conivente, se não francamente alinhado, com o gosto pelas confecções neomodernas que já tinham começado a surgir como marca re- gistrada da nova direita reacionária na Europa e em outros lugares. Sendo assim, a pergunta mais correta é: quando foi que comecei a me dei- xar seduzir pelo trabalho de HDM? Quando comecei a voltar às revistas para me extasiar secretamente, furtivamente, com a Goetz Gallery, a Signal Box [cabina de sinalização], a Ricola-Europe ou a sublime igreja ortodoxa grega, como um menino devorando com os olhos uma pornografia leve? Meu desejo pela obra cresceu com o tempo, ou fiquei fascinado desde o começo, minhas críticas tolas não passando de rejeições banais de alguém incomodado com as pulsações do desejo proibido? Seja como for, apenas em março de 1996 a profunda astúcia do projeto de HDMficou evidente para mim em toda a sua dimensão. Naquela época eujá tinha ~.._r· 119

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Uma critica ao trabalho dos arquitetos Herzog & Meuron. Importante para a critica da arquitetura.

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JEFFREY KIPNIS

A ASTÚCIA DOS COSMÉTICOS

o escritório suíço de Herzog & de Meuron, fundado por Jacques Herzog e

Pierre de Meuron em 1978, ganhou reconhecimento internacional nos anos

1990 com projetos como a fábrica e depósito da Ricola-Europe em Laufen, na

Suíça (1989-91), e aTate Modern em Londres (1998-2000). Em 2000, um ano antes que

os dois arquitetos recebessem o prêmio Pritzker, um ensaio de Jeffrey Kipnis - arqui-

teto, crítico e professor na Universidade de Ohio - apareceu numa edição da revista fi

Croquis dedicada à obra do escritório. Em "A astúcia dos cosméticos'; uma "reflexão

pessoal" com implicações mais amplas, Kipnis vê Herzog & de Meuron como uma ano-

malia na vanguarda arquitetõnica contemporânea. As geometrias radicais e as incursões

transdisciplinares praticadas pelos arquitetos "de ponta" do começo do século XXI têm

pouco espaço na obra de Herzog & de Meuron, que se baseia em formas cartesianas,

materiais convencionais (embora usados de maneiras não convencionais) e práticas ar-

quitetõnicas estabelecidas. Mas o que Herzog & de Meuron fazem com esses elemen-

tos aparentemente normativos desafia as expectativas normais, dando origem a uma

arquitetura com "uma astuciosa inteligência urbana e um poder de atração intoxicante,

quase erótico': Herzog & de Meuron costumam se concentrar na superfície do edifício,

o que levou Kipnis a desenvolver o conceito de cosmético, em oposição ao conceito

mais tradicional de ornamento. Os ornamentos se acrescentam a um corpo, mas

continuam sendo objetos distintos; os cosméticos agem sobre a pele - existem apenas

quando são aplicados sobre a pele - alterando sub-repticiamente sua aparência como

uma espécie de véu, não como uma entidade separada. Em sentido literal, o cosmético

é superficial. Seu efeito, porém, é muito pro.fundo.

Tal como definido por Kipnis, o cosmético oferece uma abordagem alternativa para

avivar a arquitetura. No momento em que a vanguarda arquitetõnica parece transgredir

os limites previamente aceitos da disciplina, Herzog & de Meuron adotam uma atitude

particular (latente na própria arquitetura, segundo Kipnis), que se envolve com um limite

arquitetõnico bem definido: a fachada. Isso é o que diferencia Herzog & de Meuron, a

saber, operações que partem das convenções da disciplina, interpretadas e empregadas

com originalidade, para criar uma arquitetura elegante, sofisticada, estimulante, que

Kipnis define como "simplesmente lal arquitetura mais cool que há por aí': Num campo

dominado por fluxos de informação, performances e blobs, o cosmético não poderia ser a

operação mais perspicaz de todas?

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JEFFREY KIPNIS

A astúcia dos cosméticos(uma reflexão pessoal sobre a arquitetura de Herzog & de Meuron)

Durante os brindes celebrativos da inauguração da mostra Light Construction, aprofundatensão latente [...] irrompeu numa discussão áspera entre Herzoq e Koolhaas [...].

El Croquis, n. 79

Quanto tempo faz desde que soltei minhas primeiras farpas maliciosas contra otrabalho de Herzog & de Meuron [HDM]?Seis, oito anos? Claro, como o críticoque eu era, defensor da vanguarda arquitetõnica, apologista intelectual do ex-tremo, do exótico, do subversivo, não era de rigueur ridicularizar as propostassuperficiais de HDM?Enquanto uma ala da vanguarda propunha a forma exóticacomo vetor de resistência arquitetõnica, HDM ofereciam volumes cartesianosflagrantemente simples. Enquanto outra ala cultivava a teoria dos eventos emtécnicas programáticas sediciosas, HDMse entregavam com satisfação a um pla-nejamento prático e redutor. A fixação de HDMpelo cosmético, pelos detalhesminuciosos, materiais vistosos e fachadas deslumbrantes, parecia frívola compa-rada àqueles outros experimentos mais explicitamente radicais. E, pior, o aspectogeral de suas obras parecia conivente, se não francamente alinhado, com o gostopelas confecções neomodernas que já tinham começado a surgir como marca re-gistrada da nova direita reacionária na Europa e em outros lugares.

Sendo assim, a pergunta mais correta é: quando foi que comecei a me dei-xar seduzir pelo trabalho de HDM?Quando comecei a voltar às revistas para meextasiar secretamente, furtivamente, com a Goetz Gallery, a Signal Box [cabinade sinalização], a Ricola-Europe ou a sublime igreja ortodoxa grega, como ummenino devorando com os olhos uma pornografia leve? Meu desejo pela obracresceu com o tempo, ou fiquei fascinado desde o começo, minhas críticas tolasnão passando de rejeições banais de alguém incomodado com as pulsações dodesejo proibido?

Seja como for, apenas em março de 1996 a profunda astúcia do projeto deHDMficou evidente para mim em toda a sua dimensão. Naquela época eujá tinha ~.._r·

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percebido que a capacidade de suas obras em se insinuar na minha psique eraum efeito poderoso que, quisesse ou não, devia ser levado a sério. Ainda maisquando percebi que o trabalho de HDM não se impôs a mim, por força de algumapolêmica, contra minha vontade; pelo contrário, como um vírus de computador,ele se instalou em minha consciência por meio da minha vontade, vencendotoda e qualquer resistência quando começou a reprogramar minhas ideias esentimentos arquitetônicos.

Em março de 1996, vi um número especial da revistaArch + sobre HDM. O queme levou a uma nova percepção não foi nenhum ensaio em particular, apesar deela conter vários textos excelentes.' Na verdade, o agente de minha epifania foi otítulo despretensioso na capa: Herzag et de Meuron: Minimalismus und OrnamentoPercebi logo que havia alguma coisa errada, muito errada; algo que eu podia sen-tir, mas não sabia dizer o que era.

Ao folhear a revista, vi que Nikolaus Kuhnert tinha dividido os trabalhos doescritório em duas partes, sem incluir comentário algum: Ornament trazia todosos projetos com superfícies impressas, e Minimalism, todo o resto - um gestobrutal de taxonomia obtusa. A fonte do desconforto gerado pelo título da capaficou evidente. Como um conjunto coerente de obras de uma mesma inteligênciaarquitetônica se prestaria a uma divisão tão fácil entre categorias tão antagônicascomo minimalismo e ornamento?

À primeira vista, a divisão parecia bastante sensata, mas, como era de esperar,não resistia a um exame mais detido. Por exemplo, Kuhnert pôs a Signal Box -obra-chave da produção de HDM - na seção minimalista, certamente devido àforma simples, à uniformidade monolítica resultante do sistema de fitas de cobree ao papel funcional atribuído a essa obra ..Por outro lado, aquele suntuoso campode fitas de cobre não caberia igualmente em alguma definição não trivial de or-namento em arquitetura, embora corroendo ao mesmo tempo o conceito de orna-mento, como veremos? Afinal, cada fita foi laboriosamente vergada para criar umgesto efêmero e hipnótico de luz, sombra e forma sobre uma extensa área epidér-

mica, muito maior do que o necessário para permitir a entrada de luz natural nospoucos espaços internos. E a racionalização funcional do sistema, como umaGaiola de Faraday, é simplesmente uma cortina de fumaça.? Meu objetivo, porém,não é contestar os detalhes da divisão de Kuhnert, é antes admirar a manobra in-sidiosa de uma arquitetura capaz de se infiltrar tão facilmente em categorias tãoirreconciliáveis, com isso começando a desmontá-Ias e reformá-Ias.

Já citei as características mais potentes da arquitetura de HDM: uma astuciosainteligência urbana e um poder de atração intoxicante, quase erótico. São essas

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I- \-b.

características que permitem a essa arquitetura ir a qualquer lugar e a todo lugar,implantar-se no terreno e na psique, mostrar-se sempre fascinante mas sempreinofensiva, mesmo quando lança mão de subterfúgios corrosivos e manobras ar-dilosas. E, embora essa constelação de temas e respectivas técnicas seja realmenteantiga," a definição mais exata da obra de HDM na arquitetura contemporânea éque se trata simplesI?ente da arquitetura mais coal que há por aí. Assim, o que nos

resta é observá-Ia em ação, especular um pouco sobre seus métodos e iniciar umexame de suas perdas e ganhos. Voltemos às Signal Boxes. Seria demais compará-

-Ias a sereias, a tentações que atraem os desavisados para um terreno arriscado?

As sereias da Odisseia, se bem me lembro, encantavam e atraíam os marinheirospara águas perigosas com a beleza pura de suas vozes, vozes que cantavam, masnão diziam nada, não significavam nada, não prometiam nada. Vocês não ouvemtambém a música da Signal Box? Não se sentem enfeitiçados por ela, atraídos paraum pátio ferroviário distante para sorvê-Ia com os olhos? E por que vão, se a únicacoisa certa é que ali não há nada para vocês, exceto, talvez, o perigo?

Em sua obsessão única pela Beleza Indizível, a série das Signal Boxes é para-digmática do projeto de HDM, em sua essência mais radical. Para atingir esse àla made extremo, HDM deixam de lado as Grandes Questões que normalmenteum projeto desses levantaria hoje em dia. HDM ignoram o fato de que o postoferroviário pertence a redes e infraestruturas interurbanas e, portanto, deveriater uma arquitetura concebida em termos de fluxos e intensidades, e não tantode sutilezas visuais que poderiam caracterizar uma viagem burguesa. E HÚM nãoconcedem sequer um minuto de reflexão à impropriedade do High Design dianteda realidade bruta e crua do lugar, embora o gritante understatement da SignalBox se mostre tão estiloso no seu entorno quanto um gângster vestido à cará-ter em South Central, Los Angeles. Desse ponto de vista, a Signal Box levanta

dúvidas sobre a fantasia sutilmente condescendente de um contexto tão brutal,tão implacavelmente-utilitário que nem mesmo é capaz de revelar as afetaçõesnauseantes do designo

Não se enganem: não são apenas interrogações hipotéticas, feitas em nomede infraestruturalistas e realistas desprezíveis. Nos comentários que publicousobre a obra de HDM, Rem Koolhaas cita inicialmente a beleza inegável das suas

fachadas. A seguir, ao preparar sua acusação final em forma de pergunta - "A ar-quitetura é terapia de reforço ou desempenha um papel no sentido de redefinir,minar, explodir, apagar ...?" [sic] -, ele começa a mostrar suas apreensões, per-guntando: "Será que toda situação tem uma arquitetura correta?", sem dúvidapensando na Signal Box+

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Para os proponentes de formas exóticas, a série do posto ferroviário teriasido uma oportunidade de outra espécie. Independente, em larga medida, dasexigências de um programa, sem o peso da tipologia histórica ou formal, deso-brigada de atender a uma linguagem contextual dominante quanto ao méritoarquitetõnico, o posto ferroviário oferecia um campo ideal para experiênciascom os limites da forma. Além disso, como seriam construídos vários postos, apesquisa morfológica poderia se estender à questão fascinante da serialização

, sem protótipos. Foi um anátema que HDM aderissem tão firmemente ao formatocaixa, e chegassem até a pensar em desenvolver um protótipo. Para esses arqui-tetos, o aparecimento de superfícies vergadas na segunda cabina certamente pa-recerá um reconhecimento tácito da futilidade da ambição prototípica originale da inadequação da caixa cartesiana. Como veremos, porém, nada poderia estartão longe da verdade.

Em suma, o projeto da Signal Box não mostra nenhuma preocupação comfluxos ou estruturas-evento, realismo ou novas formas. Sua arquitetura é umaquestão exclusivamente cosmética, uma rede hipnótica de sedução visual queemana inteiramente do sistema de fitas de cobre, sistema que, cabe dizer, na ver-dade não é a "pele" efetiva do edifício, o qual está sob as fitas; ele apenas posa depele do edifício.

A questão aqui, entretanto, não é minimizar a importância arquitetônica dasSignal Boxes, relegando-as à dimensão do cosmético, e sim aceitar sua atração ir-resistível, reconhecer sua vitalidade e, com isso, afirmar a capacidade transforma-dora do cosmético. É preciso algum cuidado, pois o cosmético não é apenas maisum membro da família dos acessórios arquitetõnicos decorativos, conhecidoscomo ornamentação. Seus efeitos são muito diferentes dos de seus parentes, e éexatamente nas diferenças que está a origem do projeto contemporâneo de HDM.

OSornamentos se prendem como entidades discretas ao corpo, como joiasreforçando a estrutura e a integridade do corpo como tal. Os cosméticos são in-discretos, sem nenhuma relação com o corpo a não ser torná-lo como dado. Oscosméticos são camuflagens eróticas; relacionam-se única e exclusivamentecom a pele, com regiões específicas dela. Profunda e intrincadamente materiais,mesmo assim eles ultrapassam a materialidade e se tornam alquimias moder-nas, transubstanciando a pele numa imagem desejável ou repulsiva. Enquanto osornamentos conservam sua identidade como entidades, os cosméticos operamcomo campos, como blush, sombra ou realce, como aura ou ar. A tenuidade, aaderência e a camada fina e difusa são fundamentais para o efeito cosmético, queé mais visceral do que intelectual, mais atmosférico do que estético. O virtuo-

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sismo na ornamentação requer equilíbrio, proporção, precisão; ovirtuosismo nacosmética requer algo mais, algo ameaçador: um controle, paranoico, um controledescontrolado, um esquizocontrole.

Embora o efeito cosmético não opere ao nível do corpo, mesmo assim eleexige um corpo - ou pelo menos um rosto - como veículo. Como a vitela parao saucier ou o rosto,esquelético e inexpressívo atualmente favorito entre osmaquiadores, o veículo ideal para o cosmeticista radical é um corpo, forma ourosto desprovido de capacidade de gerar afeto. Hoje, os efeitos da forma comotal são obtusos demais para serem cool. Se a atitude do cosmeticista em relaçãoao corpo é minimalista, ela é, no entanto, de uma espécie muito diferente da-quele minimalismo gerado pelo mundo da arte há mais de vinte anos. Apesar deambos partilharem o desejo de reduzir ao imediato o tempo do impacto de ~maobra, o anterior tentava atingir esse objetivo destilando a forma e o materialnuma essência que irradiava afeto (espiritual) por meio de uma presença semmediações, As reduções do minimalismo cosmético, por sua vez, são anoréxicas,uma compulsão para desnutrir o corpo até que ele se dissolva em puro afeto(erótico), feito uma Gata Inglesa no cio que sorri, como o de Alice no País dasMaravilhas. Basta ver a carga necrofílica do anêmico Rosetti Hospital Phar-macy, ou pensar nas razões pelas quais o bispo rejeitou a deslumbrante igrejaortodoxa grega de HDM. Terá sido porque percebeu a conversão de seu espaço,de espiritual em erótico?

Assim, a divisão bipartida de Kuhnert deixou passar a realização decisiva daobra de HDM até o momento: a sublimação da antítese entre ornamentalismoe minimalismo numa nova coerência. Até agora, o exemplo mais famoso dessasíntese é a Ricola-Europe, com seus famosos motivos vegetais, nas paredes comchapas translúcidas serigrafadas com imagens de folhas. Iluminadas por trás,como se vê internamente durante o dia, opadrão da folha adquire o fascínio vazio,entorpecedor e banal [camp] de um papel de parede de Warhol. Externamente,raramente se veem as imagens, que aparecem apenas fugidias como alucinações,quando a luz oblíqua atinge o ângulo exato. As fotos (na verdade, os fotógrafos)dessa obra tendem a exagerar a imagem da folha às raias do kitsch; sua presençano exterior é de fato muito menos frequente e mais efêmera. Em todo caso, esseartifício engenhoso e atraente dá uma falsa ideia da amplitude e profundidade datécnica utilizada por HDM para chegar à sofisticação cosmética da obra.

Como sempre, a forma é descarnada até reduzir-se a pele e ossos, esvaziada dequalquer vaidade que possa induzir à distração, na planta. Os painéis serigráficosrevestem asduas paredes longitudinais; começando pelo lado inferior da cobertura

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em balanço, o apainelamento em faixas reveste toda a parede. O efeito do revesti-mento é subverter a integridade dos dois elementos formais distintos do edifício,a fachada e o intradorso (a cobertura), fundindo-os num mesmo campo. Com isso,ironicamente, a faixa estreita de vidro claro que revela o treliçado das extremida-des da cobertura aparece como a única fachada efetiva.

Para distanciar ainda mais essa superfície delgada e leve da parede - mesmoque seja uma parede de vidro - os painéis são presos uns aos outros formandouma espécie de véu cortinado. Por isso as faixas longas e finas que resultam pa-recem fluir do topo ao chão, escorrendo tão delicadamente que a reduzida espes-sura do trilho superior das portas de vidro interrompe esse fluxo.

Essa ilusão de fluidez dos painéis dissolve os campos translúcidos frontaisnas paredes laterais de concreto. Aí, a água que desce da cobertura corre sobre oconcreto, fazendo-o brilhar como vidro, quando molhado, e criando um campode riscos verticais e paralelos como resíduo do fluxo d'água evaporado. Lançandomão do mesmo recurso do ateliê de Remy Zaugg, eco fantasmagórico da Ricola--Europe, o ferro usado na cobertura tinge a água da chuva, dando-lhe um tom deferrugem, e cria um efeito ainda mais dramático, ainda que um pouco descon-certante. Na Ricola- Europe, esses riscos resultantes do fluxo da água e o espa-çamento entre eles reiteram estranhamente a forma e as proporções do campoconstituído pelas junções e placas translúcidas.

Apesar de seu efeito impositivo, do uso ostensivo de imagens, do gosto pela ma-terialidade e da rudeza de suas formas, o que a Ricola-Europe tem de genial é que oedifício, em si e como tal, nunca está ali. Sua promessa de presença maciça se retraie deixa apenas um puro encantamento, um tour de force de cosmética arquitetônica.

Como em outras abordagens críticas da obra de HDM - por exemplo, as que aassociam ao neomodernismo ou à arte minimalista aplicada -, a questão da cos-mética, com todas suas alusões a maquiagens e perfumes, peles e corpos, teriaapenas a força de uma analogia, não fosse a questão da técnica em HDM.

No que diz respeito a forma, planejamento, estrutura e construção, e mesmomateriais, a técnica de HDM é quase fanaticamente arquitetônica. Em todo o con-junto de sua obra até o presente, não existe um único uso da forma, da estruturaou dos materiais que não pertença ao cânone mais estrito da arquitetura. Todoexperimento é um esforço para reanimar e atualizar esse cânone, nunca paraalargá-lo com novos registros, e certamente não com novas formas ou progra-mas - nem mesmo com novos materiais. Mesmo as manchas de água e as algas,líquens e mofos que crescem nas superfícies pertencem ao cânone da arquitetura,embora como elementos incômodos, há séculos.

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O que torna a produção do escritório tão interessante é que, ao contrário dasvanguardas, HDM extraem sua força crítica do pressuposto da adequação básica daarquitetura e do seu desembaraço com relação à polêmica proposição de que a ar-quitetura não tem nenhum outro projeto mais profundo, senão o de fabricar umanova sensibilidade com a sua própria paleta. Na medida em que seguem o novo, nãocomo questão ideológica ou condição de margínalidade, mas como afirmação direta eaté agressiva do centro, HDM exercem talvez a prática arquitetônica mais au courant.

Se o conceito de cosmético em HDM é mais sólido do que uma mera analogia,é porque o escritório não aplica cosméticos à arquitetura como teoria ou práticaemprestada de terceiros. HDM desencadeiam o poder desestabilizador do cos-mético como um momento e um movimento já presentes na ortodoxia da arqui-tetura. Com isso, muitas vezes obtém en passant efeitos adequados, que outraspráticas mais radicadas na teoria aplicada têm buscado, com menor êxito.

Ao trabalhar rigorosamente com os protocolos da materialidade arquitetô-nica, HDM realizam uma desmaterialização muito mais convincente e concretado que Peter Eisenman, que persegue essa ideia há mais de vinte anos. Imersonuma versão pós-estrutural da arquitetura como sistema interminável de refe-rências por meio de signos imateriais, Eisenman afirmou que a tradição da ma-terialidade em arquitetura era uma perversão, manifestada como fetichismo ounostalgia. Desse modo, ele procurou apresentar suas formas como puros signos,construindo-as como formas vazias de materiais indiferentes, por exemplo pai-néis de gesso ou chapas de isolamento térmico. Com isso, na maioria das vezesseus edifícios não conseguem se afirmar, e são facilmente descartados como ir-reais, cenários de teatro ou parques de diversões.f

Trabalhando inicialmente com materiais mais táteis e tradicionais comovidro, madeira ou concreto, manipulados de maneira não tradicional, HDM con-seguem afirmar a realidade do edifício, sem permitir que ele se assente comopresença persistente e inequívoca. Em outras palavras, eles não desrnateriali-zam uma forma concreta pela substituição do concreto: eles desmaterializam opróprio concreto.

Apróxima obra do escritório, o Kunst -Kiste Museum [Art BoxBonn] para a Cole-ção Grothe, provavelmente permitirá um estudo penetrante desse aspecto. Oprojetopromete ser um ensaio sobre o uso extremado do concreto, cuja rudeza material faráo famoso uso do material em Ando parecer a delicadeza encarnada, como certamentefará com as confecções adocicadas de Schultes e Peichl nas redondezas.

As proporções da laje vertical, mais pesadas na parte superior, fazem comque o Kunst -Kiste pareça prestes a cair, e a ameaça intensifica ainda mais o peso

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'.insistente do materiaL Mas a água da cobertura, agora destinada a manchar todaa superfície com suas estrias verticais de ferrugem e algas, transformará a apa-rência do cubo de concreto num aquário com líquido viscoso, imagem confirmadapelas janelas escuras que flutuam aleatoriamente como boias, Leve ou pesado?Sólido ou líquido? Presença concreta ou imagem ilusória?

Contudo, por mais intrigante que seja o projeto publicado, Jacques Herzog re-vela que seu escritório tinha ídeias ainda mais surpreendentes. A certa altura, elespensaram em imprimir no concreto imagens fotográficas em tamanho natural, emposições rigorosamente exatas, do interior das galerias. As superfícies fotografi-camente impressas fariam com que o concreto parecesse transparente! Como senão bastasse esse deslocamento fenomenal, a ideia também tinha uma conotaçãodesconstrutiva, talvez destrutiva, O fotógrafo seria um jovem artista conhecidode Berlirn, cuja presença nas superfícies do edifício iria marcar sua ausência

do acervo do museu e levantaria questões sobre a própria coleção ali abrigada.Por alguma razão, aparentemente a ideía foi posta de lado. Mesmo assim, era bri-lhante, e indica até que ponto HDM têm consciência da tremenda força de suastécnicas cosméticas.

["The Cunning of Cosmetícs", extraído deEI Croquis: Herzog & de Meuron 1981-2000,

n. 60 + 84, Madri, 2000, pp. 404-11. Cortesia do autor.]

Arch-Plus, n. 129-130, Aachen, dez. 1995. A publicação inclui também reedições do ex-

celente ensaio de Alejandro Zaera-Polo, "Between the Face and the Landscape", da pri-

meiraEI Croquis (n. 60,1993) sobre HDM, e do ensaio de Rem Koolhaas, "Architectures

of Herzog & de Meuron", reeditado em Arch-Plus com o título "New Discipline", além

de comentários penetrantes de Mark Taylor, Terry Riley e Hans Frei.

O equipamento eletrônico em todas as instalações, como as estações de distribuição, já

está devidamente protegido contra interferências. Assim, embora o sistema de fitas de

cobre realmente resulte, em termos técnicos, numa Gaiola de Faraday, está longe de seruma necessidade funcional.

Cf. Les Ruses de l'intellígence: La métis des Grecs, por Marcel Detienne e Jean-Pierre

Vernant; traduzido para o inglês como Cunning Intelligence Cedobras.: Métis. As astúciasda inteligência, trad. Filomena Yoshie Hirata. São Paulo: Odysseus, 2008].

4 Em Arch-Plus, n. 129-130, op. cito

Ver minhas observações na edição recente da El Croquis sobre Peter Eisenman (n. 83,1997).

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RESPOSTAS DE NORMAN FOSTER, JAN KAPLlCKV, IRICHARD ROGERS, KEN VEANG E THOMAS HERZOG

o.UESTIONÁRIO VERDE

N~s últimas décadas tem-se evidenciado cada vez mais a Importância da ali urte-

tura ~.erde. Segundo o Green Buildinq Council americano, "apenas nos &~{ados" . //Unidos os edifícios são responsáveis por 72% do consumo de eletrlcldade~~% do uso

de energia, 38%)'6 todas as emissões de dióxido de carbono (CO,I, 40% ~, uso de

matérias-primas, 300/:8,e produção de lixo (136 milhões de toneladas afol e 14% do

consumo de água potá:~:'" Esses números alarmantes, somados às~eocupações com

o aquecimento global, o es~~amento dos recursos naturais e outr~~spectos ligados

à destruição ambiental, justific~m o interesse cada vez maior ~e~qultetura verde. De~ '''". Ifato, o American Institute of ArcP;i~~ts atualizou recenteme~suas eXI.genclas com re a-

ção à formação profissional dos arqLj~etos e tornou obnga},~i{as as dls~IPlinas de projetos

sustentáveis.' Essa mudança reflete o's~nso de responsí6ilidade ecolóqica crescente

entre os arquitetos e os clientes, na med~a em que Ir'0jeto sustentável abrange todos

os aspectos relacionados ao projeto, à cons rução 'I operação diária de um edifício.

No "Questionário verde'; cinco arquitetos tl, estaque internacional - Norman Foster,

Jan Kaplicky, Richard Rogers, Ken Yeang e Th9: à: Herzoq - apresentam suas ideias

sobre arquitetura sustentável. A ênfase var"ái: Foste\se concentra nos problemas do alas-

tramento urbano; Kaplicky ressalta a imQ;rtância dos "ateriais; Rogers frisa o impacto

ambiental das edificações; Yeang exaina a interconecJ:vipade dos sistemas naturais;

Herzogcita a necessidade de energ ss renováveis. Questõ'6s estéticas surgem em

algumas respostas, enquanto a 'noloqia predomina em oJ'r-as. Um ponto de discussão

interessante se refere às mano Iras de utilizar a natureza como o~~ntação para o projeto

sustentável. Apesar das dif enças, as respostas dos arquitetos tê'r;nem comum um~ .

otimismo em relação ao uro - a esperança de que a arquitetura, C0m a mentalidade e. .. '\ dos i 'doa iniciativa adequadas -'ode servir como força positiva no mundo naturak de mo os me 1-

tos. As palavras.do 'rquitetos do "Questionário verde" são alentadoras: ii)as transmitem

a mensagem de, e a responsabilidade arquitetônica vai além do edifício ou~~ projeto,urbano individu lál- ela se estende ao ambiente como um todo. \,

U . Green Building Council, http://www,usgbc.org/DisplayPage.aspx?CMSPageID=1718. '.. \2 merican Institute of Architects, "Sustainable Design", http://www.aia.org/education/ceS1.\,,

AIAS076973. Essa mudança foi efetivada em 2009.

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