A ARTE RETÓRICA DE ARISTÓTELES: UMA CONCILIAÇÃO …

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ MOISÉS DO VALE DOS SANTOS A ARTE RETÓRICA DE ARISTÓTELES: UMA CONCILIAÇÃO ENTRE A CONCEPÇÃO RETÓRICA DE PLATÃO E A DOS SOFISTAS CURITIBA 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANAacute

MOISEacuteS DO VALE DOS SANTOS

A ARTE RETOacuteRICA DE ARISTOacuteTELES UMA CONCILIACcedilAtildeO ENTRE A

CONCEPCcedilAtildeO RETOacuteRICA DE PLATAtildeO E A DOS SOFISTAS

CURITIBA

2019

MOISEacuteS DO VALE DOS SANTOS

A ARTE RETOacuteRICA DE ARISTOacuteTELES UMA CONCILIACcedilAtildeO ENTRE A

CONCEPCcedilAtildeO RETOacuteRICA DE PLATAtildeO E A DOS SOFISTAS

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia do Setor de Ciecircncias Humanas da Universidade Federal do Paranaacute como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia Orientador Profordf Drordf Vivianne de Castilho Moreira

CURITIBA

2019

FICHA CATALOGRAacuteFICA ELABORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECASUFPR ndash BIBLIOTECA DE CIEcircNCIAS HUMANAS COM OS DADOS FORNECIDOS PELO AUTOR

Fernanda Emanoeacutela Nogueira ndash CRB 91607 Santos Moiseacutes do Vale dos A arte retoacuterica de Aristoacuteteles uma conciliaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo

retoacuterica de Platatildeo e dos Sofistas Moiseacutes do Vale dos Santos ndash Curitiba 2019

Tese (Doutorado em Filosofia) ndash Setor de Ciecircncias Humanas da

Universidade Federal do Paranaacute Orientadora Profordf Drordf Vivianne de Castilho Moreira

1 Aristoacuteteles ndash Criacutetica e interpretaccedilatildeo 2 Eacutetica - Filosofia 3 Loacutegica 4 Retoacuterica antiga 5 Dialeacutetica 6 Sofistas (Filosofia grega) I Tiacutetulo CDD ndash 184

Agraves minhas preciosas filhas Gabriela e Alice

AGRADECIMENTOS

Por meio dos agradecimentos que se seguem desejo manifestar minha terna e

sincera gratidatildeo a todos aqueles que em maior ou menor grau contribuiacuteram para a

realizaccedilatildeo da presente tese Primeiramente agradeccedilo a inspiradora e brilhante professora

Drordf Vivianne de Castilho Moreira que no decurso dos meses que se seguiram desde a

elaboraccedilatildeo do projeto de doutorado ateacute a conclusatildeo da tese mostrou-se sempre soliacutecita

confiante e comprometida com o objeto da minha pesquisa Estendo meu reconhecimento

agrave professora Drordf Inara Zanuzzi e ao professor Dr Bernardo Guadalupe dos Santos Lins

Brandatildeo pelas perspicazes orientaccedilotildees sem as quais dificilmente teria ecircxito no meu

trabalho de pesquisa Tambeacutem sou grato aos nobiliacutessimos amigos Luiz Francisco Garcia

Lavanholi Carlos Eduardo Contreras Villayzan e Viniacutecius Joseacute da Costa Leonard bem

como agraves dedicadas secretaacuterias do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia Aurea

Junglos e Marianne Nigro Reconheccedilo ainda o meacuterito do suporte acadecircmico que me foi

concedido pela Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES)

Agradeccedilo igualmente a todos os professores do Departamento de Filosofia da

Universidade Federal do Paranaacute (UFPR) cuja contribuiccedilatildeo agrave minha formaccedilatildeo intelectual

e moral tem produzido inestimaacuteveis frutos E por fim sou grato agrave minha famiacutelia pela

complacecircncia e apoio afetivo dispensados nos momentos mais cruciais da minha

caminhada

Que isto de meacutetodo sendo como eacute uma coisa indispensaacutevel Todavia eacute melhor tecirc-lo sem

gravata nem suspensoacuterios mas um pouco agrave fresca e agrave solta como quem natildeo se lhe daacute da

vizinha fronteira nem do inspetor de quarteiratildeo Eacute como a eloquecircncia que haacute uma

genuiacutena e vibrante de uma arte natural e feiticeira e outra tesa engomada e chocha

Machado de Assis

RESUMO

Esta tese procura demonstrar que no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles existe uma conciliaccedilatildeo entre duas concepccedilotildees antagocircnicas acerca da arte retoacuterica a de Platatildeo e a dos sofistas Sob a influecircncia de Platatildeo o Estagirita procura preservar a praacutetica retoacuterica do relativismo moral atribuindo agrave arte do discurso persuasivo um compromisso eacutetico-poliacutetico que consiste tanto na defesa da verdade e da justiccedila na cidade como no fortalecimento das virtudes eacuteticas dos cidadatildeos cuja finalidade eacute o bem viver em geral ou a felicidade A retoacuterica portanto deve ser um instrumento educacional eacutetico-poliacutetico e nisso consistiria sua legiacutetima funccedilatildeo social Todavia em relaccedilatildeo agrave aproximaccedilatildeo com os sofistas Aristoacuteteles sustenta que o compromisso eacutetico-poliacutetico da arte retoacuterica justificaria o emprego de todos os estratagemas retoacutericos disponiacuteveis para obter a persuasatildeo dos ouvintes como o apelo emocional e a ecircnfase na expressatildeo enunciativa porque eacute censuraacutevel que a verdade e a justiccedila sejam vencidas pelos seus opostos Poreacutem tais expedientes natildeo podem ser mais relevantes para a argumentaccedilatildeo que o uso do entimema ndash espeacutecie de silogismo que se fundamenta sobre probabilidades e sinais Ele ainda limita a atuaccedilatildeo da arte retoacuterica agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras para o consenso geral rejeita a identificaccedilatildeo pura e simples do discurso retoacuterico com a verdade cientiacutefica separa o domiacutenio da filosofia do domiacutenio da retoacuterica e pretere a demonstraccedilatildeo apodiacutectica pela verossimilhanccedila Esta no entanto natildeo designa qualquer opiniatildeo sem qualificaccedilatildeo como se todas as opiniotildees fossem igualmente vaacutelidas de modo que seja possiacutevel argumentar o proacute e o contra sobre qualquer tema proposto mas caracteriza os fatos que acontecem a maior parte das vezes e as crenccedilas e valores geralmente aceitos pelo consenso social que amiuacutede indicam uma aproximaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave verdade

Palavras-chave Arte retoacuterica Dialeacutetica Conhecimento cientiacutefico Eacutetica Verossimilhanccedila Poliacutetica Sofiacutestica Loacutegica Relativismo Persuasatildeo Silogismo Entimema

ABSTRACT

This thesis tries to demonstrate that in the rhetorical thought of Aristotle there is a conciliation between two antagonistic conceptions about rhetorical art that of Plato and that of the Sophists Under Platorsquos influence the Stagirite seeks to preserve the rhetorical practice from moral relativism by attributing to the art of persuasive discourse an ethical-political commitment which consists both in the defense of truth and justice in the city and in the strengthening of the ethical virtues of citizens whose purpose is to live well in general or happiness Rhetoric therefore must be an ethical-political educational instrument and in this would be its legitimate social function However in relation to the Sophists Aristotle maintains that the ethical-political commitment of rhetorical art would justify the use of all available rhetorical devices for persuading listeners such as emotional appeal and the emphasis on elocution because it is blameworthy that truth and justice be overcome by their opposites Nevertheless such means should not be more relevant to the argument than the use of the enthymeme ndash a kind of syllogism that is based on probabilities and signs He still limits the performance of rhetorical art to opinions which appear to be true to general consensus rejects the pure and simple identification of rhetorical discourse with scientific truth separates the domain of philosophy from the domain of rhetoric and precludes the apodictic demonstration by likelihood This however does not designate any opinion without qualification as if all opinions were equally valid so that it is possible to argue the pro and the contra on any proposed theme but characterize the facts that happen most of the times and the beliefs and values generally accepted by social consensus which often indicate an approximation to the truth

Keywords Rhetorical art Dialectic Scientific knowledge Ethics Likelihood Politics Sophistry Logic Relativism Persuasion Syllogism Enthymeme

LISTA DE ABREVIATURAS

Anal Ant = Analiacuteticos Anteriores

Ant= Antiacutedose

Apol Soacutec = Apologia de Soacutecrates

Arg Sof = Dos Argumentos Sofiacutesticos

Criacutet = Criacuteton

Contr Sof = Contra os Sofistas

Def Soacutec = Defesa de Soacutecrates

Disc Dup = Discursos Duplos

El Hel = Elogio de Helena

Eacutet Eud = Eacutetica a Eudemo

Eacutet Nic = Eacutetica a Nicocircmaco

Fed = Fedro

Goacuterg = Goacutergias

Hip Men = Hiacutepias Menor

Inst orat = Instituiccedilotildees oratoacuterias

Leis= Leis

Mem = Ditos e Feitos Memoraacuteveis de Soacutecrates

Met = Metafiacutesica

Nuv = As Nuvens

Part An = Partes dos Animais

Pol = Poliacutetica

Prot = Protaacutegoras

Rep = A Repuacuteblica

Ret = Retoacuterica

Seg Anal = Segundos Analiacuteticos

Sob alm = Sobre a alma

Sof = O Sofista

Teet = Teeteto

Toacutep = Toacutepicos

Vid doutr fil il = Vidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustres

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO12

1 Aspectos gerais da arte retoacuterica Aristoacuteteles25

11 Experiecircncia arte e o primeiro esboccedilo da retoacuterica dAristoacuteteles25

12 Breve anaacutelise dos trecircs livros da Retoacuterica34

2 A concepccedilatildeo de retoacuterica no diaacutelogo platocircnico Defesa de Soacutecrates52

21 O problema da fidedignidade do discurso judicial de Soacutecrates52

22 As caracteriacutesticas da retoacuterica de Soacutecrates58

3 A arte retoacuterica de Aristoacuteteles e o discurso judicial de Soacutecrates67

31 O compromisso eacutetico-poliacutetico da persuasatildeo retoacuterica67

32 A ineficaacutecia persuasiva do discurso judicial de Soacutecrates81

4 A concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo no diaacutelogo Fedro 91

41 A retoacuterica filosoacutefica de Platatildeo91

42 A retoacuterica e o meacutetodo dialeacutetico103

43 O desprezo de Platatildeo pela retoacuterica do verossiacutemil113

5 A retoacuterica de Aristoacuteteles e seu contraste com a retoacuterica de Platatildeo121

51 A distinccedilatildeo aristoteacutelica entre ciecircncia e arte retoacuterica121

52 Entimema o silogismo retoacuterico135

53 A relevacircncia persuasiva da opiniatildeo geral e da adaptaccedilatildeo agrave mentalidade do

auditoacuterio143

6 A concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas Goacutergias e Protaacutegoras162

61 Aspectos gerais do movimento sofista162

62 Goacutergias a retoacuterica como artiacutefice da persuasatildeo171

63 Protaacutegoras a teacutecnica dos argumentos opostos e o relativismo181

7 A funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da retoacuterica de Aristoacuteteles e a refutaccedilatildeo da sofiacutestica199

71 A retoacuterica de Aristoacuteteles e a dos sofistas199

72 A refutaccedilatildeo da retoacuterica gorgiana209

73 A refutaccedilatildeo da retoacuterica protagoacuterica235

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS253

REFEREcircNCIAS255

INTRODUCcedilAtildeO

Eacute manifesto que em sua vasta obra escrita Aristoacuteteles tratou praticamente de todos

os temas de pesquisa de sua eacutepoca mas poucos sabem que foi sobre o tema da retoacuterica

que ele iniciou-se como escritor Ele foi motivado por Platatildeo que lhe conferiu a

incumbecircncia de ministrar liccedilotildees sobre retoacuterica no interior da Academia Nesse periacuteodo

Aristoacuteteles compocircs e publicou o diaacutelogo exoteacuterico Grilos dedicado ao assunto No

diaacutelogo em apreccedilo ele discute se a retoacuterica eacute ou natildeo eacute uma arte donde conclui que a

retoacuterica de tipo gorgiano agrave qual se filiava tambeacutem o orador Isoacutecrates natildeo poderia ser

considerada uma genuiacutena arte A despeito das pouquiacutessimas informaccedilotildees doxograacuteficas

disponiacuteveis sobre o Grilos pode-se afirmar com certa seguranccedila que ele representa a

primeira fase do pensamento retoacuterico do Estagirita enquanto que o pensamento da sua

maturidade e da sua uacuteltima produccedilatildeo eacute expresso pelos trecircs livros da Retoacuterica

Nas uacuteltimas linhas da obra Dos Argumentos Sofiacutesticos Aristoacuteteles explicita o

procedimento utilizado para a composiccedilatildeo da Retoacuterica uma longa pesquisa sobre os

manuais de retoacuterica elaborados por seus predecessores a partir dos quais compocircs o seu

proacuteprio meacutetodo de persuasatildeo No decorrer da Retoacuterica ele menciona alguns autores de

manuais de retoacuterica e suas respectivas contribuiccedilotildees para o aprimoramento desta arte

dentre os quais eacute oportuno mencionar os eminentes sofistas Goacutergias de Leontini

Protaacutegoras de Abdera Trasiacutemaco de Calcedocircnia e Alcidamante de Eleacuteia Eacute inequiacutevoco

portanto que a arte retoacuterica de Aristoacuteteles em sua uacuteltima fase conteacutem muitos elementos

da concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas

Na hipoacutetese de assumirmos que houve no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles duas

diferentes fases quais sejam a fase juvenil intimamente ligada agrave filosofia de Platatildeo e a

fase que refletiria a maturidade do seu pensamento a qual teria recebido a inegaacutevel

influecircncia da sofiacutestica pode-se aventar que a arte retoacuterica de Aristoacuteteles situa-se

equidistante da posiccedilatildeo de Platatildeo e da posiccedilatildeo dos sofistas Aproximando-se do

pensamento de Platatildeo ele rejeita explicitamente na sofiacutestica o relativismo eacutetico porque

em sua visatildeo o orador bem-intencionado jamais deve persuadir seus ouvintes acerca do

que eacute imoral mesmo sendo capaz de fazecirc-lo Pelo contraacuterio deve ele comprometer-se

com a defesa da verdade e da justiccedila na cidade tendo por fim terminal a εὐπραξία que

significa o bem agir na vida puacuteblica e na vida privada E com o escopo de evitar os efeitos

danosos da sofiacutestica sobre a accedilatildeo poliacutetica tema que eacute longamente explorado por Platatildeo

do decorrer dos seus diaacutelogos o Estagirita atribui agrave arte retoacuterica uma funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica

No entanto eacute importante sublinhar que Aristoacuteteles natildeo subscreve todas as teses

platocircnicas acerca da arte retoacuterica jaacute que ele rejeita no pensamento de Platatildeo a

identificaccedilatildeo pura e simples do discurso retoacuterico com a veiculaccedilatildeo da verdade (ἀλήθεια)

substituindo-a pela verossimilhanccedila ou probabilidade (εἰκός) porquanto quem aspira se

tornar orador natildeo precisa forccedilosamente ser um filoacutesofo nem tem a obrigaccedilatildeo de conhecer

o que realmente eacute mas apenas o que aparenta ser verdadeiro agraves multidotildees Por falar nisso

a palavra grega ldquoεἰκόςrdquo pode ser traduzida tanto por ldquoverossiacutemilrdquo como por ldquoprovaacutevelrdquo

Por certo ambas as palavras seratildeo utilizadas neste trabalho mas com significados

diferentes a primeira designando uma concepccedilatildeo loacutegica ao passo que a segunda uma

concepccedilatildeo ontoloacutegica Isto posto um discurso eacute considerado verossiacutemil porque estaacute de

acordo com fatos que realmente acontecem a maior parte das vezes e com as crenccedilas

geralmente admitidas num determinado contexto social que neste caso recebe a

designaccedilatildeo de provaacutevel

No que tange agrave aproximaccedilatildeo com os sofistas Aristoacuteteles limita a atuaccedilatildeo da arte

retoacuterica agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras para o consenso geral porque os

argumentos retoacutericos devem ser formados de premissas comuns tendo em vista a

comunicaccedilatildeo com as multidotildees e natildeo com um auditoacuterio especializado Todavia em

oposiccedilatildeo aos sofistas para os quais tudo eacute relativo ele admite que existe uma ciecircncia

inteiramente exata (ἐπιστήμη) E assim como Platatildeo ele admite uma ciecircncia que por via

demonstrativa eacute capaz de alcanccedilar a verdade apodiacutectica mas ao mesmo tempo ele objeta

que a ciecircncia mais exata eacute relevante para persuadir certos auditoacuterios aos quais falta a

devida instruccedilatildeo filosoacutefica Por essa razatildeo no discurso retoacuterico natildeo eacute preciso comunicar

verdades filosoacuteficas ou cientiacuteficas ao inveacutes disso eacute preciso utilizar noccedilotildees que satildeo

acessiacuteveis aos ouvintes comuns Decerto a filosofia tem por finalidade descobrir a

verdade por isso Aristoacuteteles a designa com a expressatildeo ldquoἐπιστήμην τῆς ἀληθείαςrdquo que

traduzida significa ldquoa ciecircncia da verdaderdquo A retoacuterica por seu lado preocupa-se com

aquilo que pensam os homens em geral com as crenccedilas compartilhadas pelo consenso

social tendo como objetivo a persuasatildeo (πείθω)

Agrave vista disso o interesse de Aristoacuteteles pela retoacuterica leva-o a concebecirc-la sob duas

perspectivas que correspondem a dois compromissos distintos mas coexistentes no

interior do amplo campo das preocupaccedilotildees humanas de um lado a defesa da verdade e

da justiccedila na cidade e de outro a admissatildeo e veiculaccedilatildeo das crenccedilas geralmente aceitas

pelo conjunto dos cidadatildeos (ἔνδοξα) Esses dois compromissos se afiguram grosso modo

no nuacutecleo da conciliaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo e a dos sofistas Eacute

justamente em torno de tal nuacutecleo que a presente pesquisa gravitaraacute a fim de demonstrar

na medida do possiacutevel a maneira pela qual Aristoacuteteles concilia os elementos da filosofia

de Platatildeo mormente sua perspectiva retoacuterica com a concepccedilatildeo retoacuterica teorizada e

praticada pelos mais eminentes sofistas

Conforme veremos ulteriormente em pormenor a concepccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles

expressa nos trecircs livros da Retoacuterica se afasta substancialmente do pensamento retoacuterico de

Platatildeo notadamente em relaccedilatildeo ao periacuteodo em que aquele frequentava a Academia e

aproxima-se em muitos aspectos da retoacuterica praticada pelos sofistas Dessarte seraacute

preciso por um lado compreendermos as possiacuteveis razotildees pelas quais Aristoacuteteles teria se

afastado de Platatildeo e o que efetivamente caracteriza o seu meacutetodo retoacuterico e por outro

analisar em que medida a sofiacutestica influenciou o pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles uma

vez que este menciona os sofistas como os descobridores dos primeiros princiacutepios da arte

retoacuterica os quais teriam contribuiacutedo para o seu desenvolvimento

Com efeito a anaacutelise da concepccedilatildeo platocircnica acerca da arte retoacuterica assim como o

seu contraste em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo retoacuterica sustentada por Aristoacuteteles visa ainda

ressaltar algumas noccedilotildees que aproximam Aristoacuteteles dos sofistas sobretudo a noccedilatildeo de

que os argumentos retoacutericos devem ser formados das opiniotildees geralmente aceitas tendo

por alvo a persuasatildeo Todavia a anaacutelise da concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas mais

precisamente de Goacutergias e de Protaacutegoras e sua contraposiccedilatildeo relativamente a Aristoacuteteles

natildeo visa somente evidenciar a discordacircncia entre Aristoacuteteles e a sofiacutestica mas trazer agrave

tona em termos mais definidos os pontos nos quais o Estagirita se aproxima do seu

mestre mormente em relaccedilatildeo agrave funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da arte retoacuterica cujo corolaacuterio seraacute

a visatildeo de um quadro mais completo da tese que se tenciona demonstrar

A presente investigaccedilatildeo seraacute dividida de sorte a concretizar as tarefas sumarizadas

acima E para levaacute-las a cabo seraacute oportuno elucidar os termos as noccedilotildees e os conceitos

pertencentes agrave arte retoacuterica de Aristoacuteteles cuja compreensatildeo eacute requisito para

acompanharmos subsequentemente a argumentaccedilatildeo aristoteacutelica sobre o tema Eis por que

o primeiro capiacutetulo seraacute dedicado ao exame de concepccedilotildees como a de experiecircncia

(ἐμπειρία) e arte (τέχνη) a vinculaccedilatildeo da retoacuterica de Aristoacuteteles com a dialeacutetica

(διαλεκτικῇ) bem como a compreensatildeo desta as provas artiacutesticas (πίστεις ἔντεχνοι) que

residem de um lado nas provas loacutegicas isto eacute no entimema e no exemplo (λόγος) e de

outro nas provas psicoloacutegicas compostas pelo caraacuteter do orador (ἦθος) e o apelo

emocional (πάθος) os trecircs gecircneros de discursos retoacutericos o deliberativo

(συμβουλευτικός) o judicial (δικανικός) e o epidiacutectico (ἐπιδεικτικός) a anaacutelise e a

classificaccedilatildeo do caraacuteter dos ouvintes (ἦθος) que visam construir os argumentos mais

adequados a cada um deles dividindo-os em grupos segundo a idade e a condiccedilatildeo social

os lugares-comuns (τόποι κοινοί) que satildeo tipos de argumentos que podem ser facilmente

localizados pelo orador tendo em vista sua utilizaccedilatildeo em diversas situaccedilotildees a expressatildeo

enunciativa (λέξις) que diz respeito agrave maneira pela qual o conteuacutedo do discurso deve ser

apresentado ao auditoacuterio e finalmente o breve estudo das partes do discurso (τάξις)

Depois de cumprida essa primeira etapa de iacutendole propedecircutica o capiacutetulo 2 seraacute

reservado ao exame do diaacutelogo platocircnico Defesa de Soacutecrates cujo propoacutesito eacute elucidar

algumas noccedilotildees do assim chamado ldquoSoacutecrates histoacutericordquo e sua respectiva compreensatildeo sui

generis da arte retoacuterica Esta investigaccedilatildeo pode proporcionar em certa medida as

primeiras indicaccedilotildees para o oportuno discernimento das posiccedilotildees de Platatildeo e de

Aristoacuteteles a respeito da arte retoacuterica Ela tambeacutem eacute esclarecedora no que concerne agraves

razotildees pelas quais Aristoacuteteles teria se afastado da concepccedilatildeo retoacuterica defendida por

Platatildeo bem como na explicitaccedilatildeo do efeito que o movimento sofista teria exercido sobre

o pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles Pode-se desde jaacute adiantar que o discurso judicial de

Soacutecrates proferido em sua proacutepria defesa no diaacutelogo em apreccedilo natildeo corresponde

exatamente agravequilo que ele pronunciou mas existem fortes indiacutecios para sustentar a

hipoacutetese de que o Soacutecrates histoacuterico natildeo pronunciaria um discurso em sua defesa nos

moldes da teacutecnica retoacuterica empregada pelos oradores de sua eacutepoca que em grande parte

incluiacutea os sofistas A retoacuterica socraacutetica como eacute exposta na Defesa de Soacutecrates (e na

Apologia de Soacutecrates escrita por Xenofonte) natildeo se identifica simplesmente com uma

teacutecnica de discurso ou com uma arte mas com sua proacutepria vida E a fim de demonstrar

isso Soacutecrates decide comunicar o seu discurso numa linguagem ordinaacuteria que se

apresenta diretamente em sua alma em coerecircncia com o que acredita ser verdadeiro em

obediecircncia agrave sua divindade pessoal (δαιμόνιον) e se for o caso em prejuiacutezo da proacutepria

vida Ele ainda nega que seu discurso seja premeditado quer dizer previamente elaborado

ou arquitetado para que tenha eficaacutecia persuasiva

De fato a linguagem retoacuterica comum eacute dependente de certo nuacutemero de princiacutepios

regras e teacutecnicas mas a linguagem que eacute inerente ao tipo de retoacuterica defendida e praticada

por Soacutecrates caracteriza-se pela simplicidade estaacute em conformidade com o proacuteprio

movimento do pensamento que sem ornamento eacute adequada ao que se refere e eacute conforme

ao que pensa e acredita quem a emprega Ele tambeacutem associa por um lado a

artificialidade do discurso agrave persuasatildeo e agrave mentira e por outro associa o seu discurso

improvisado com a verdade e a justiccedila Por essa razatildeo ele natildeo produziu uma boa defesa

quando todos achavam que deveria por todos os meios disponiacuteveis persuadir os juiacutezes

nem preocupou-se em buscar subterfuacutegios (como desfilar com sua esposa e filhos) para

obter a benevolecircncia deles e por conseguinte livrar-se da condenaccedilatildeo A despeito disso

eacute inegaacutevel que Soacutecrates age no tribunal como um orador na medida em que procura

influenciar os seus ouvintes mas em vez de apresentar um discurso ornamentado e

agradaacutevel com a finalidade de obter a condescendecircncia dos ouvintes ele atrai para si a

sua ira pois exorta-os a cuidar de suas almas mesmo correndo o risco de ser derrotado

no tribunal Aleacutem disso ele busca persuadir acerca do que acredita ser verdadeiro em

contraste com os demais oradores que natildeo parecem comprometidos com a honestidade e

a boa-feacute nos seus discursos Tal atitude suscitou a indignaccedilatildeo dos juiacutezes e natildeo sua

benevolecircncia o que certamente contribuiu para a decisatildeo final que condenou o filoacutesofo agrave

morte

O capiacutetulo 3 daraacute prosseguimento ao exame da posiccedilatildeo retoacuterica atribuiacuteda a Soacutecrates

mas levando em consideraccedilatildeo o contraste com as teses aristoteacutelicas Pode-se adiantar que

a despeito de reconhecer a eficaacutecia persuasiva da teacutecnica retoacuterica Soacutecrates nem por isso

a emprega no seu discurso judicial o que lhe vale a objeccedilatildeo por parte de Aristoacuteteles de

que os recursos retoacutericos jamais devem ser negligenciados por qualquer orador judicial

bem-intencionado porque a praacutetica da arte retoacuterica com todos os seus ornamentos e

sutilezas natildeo contradiz necessariamente a justiccedila e a verdade Por exemplo ele apresenta

aos que pretendem ser bons oradores a maneira que considera eficaz para estimular nos

ouvintes o sentimento de piedade (ἔλεος) recurso utiliacutessimo para induzir os juiacutezos dos

ouvintes em direccedilatildeo agravequilo que conveacutem eticamente E diferente do que parece propor

Soacutecrates no proecircmio de seu discurso judicial ao estabelecer a oposiccedilatildeo entre a persuasatildeo

(πειθώ) e a verdade (ἀλήθεια) Aristoacuteteles assevera que a persuasatildeo ligada agrave teacutecnica

retoacuterica pode ser politicamente uacutetil razatildeo pela qual ela jamais deve ser negligenciada por

qualquer orador bem-intencionado Ademais a arte retoacuterica enquanto disciplina

subordinada agrave ciecircncia poliacutetica que eacute arquitetocircnica (αρχιτεκτονική) em relaccedilatildeo agraves demais

ciecircncias praacuteticas adquire a tarefa de auxiliar a atividade poliacutetica no nobre fomento do

bem comum o qual soacute eacute exequiacutevel pela consolidaccedilatildeo das virtudes eacuteticas Outrossim a

persuasatildeo retoacuterica pode ser uacutetil porque a verdade e a justiccedila satildeo por natureza mais fortes

que seus contraacuterios E o fato da verdade e da justiccedila possuiacuterem uma superioridade natural

sobre a falsidade e a injusticcedila implica que o bom uso da arte retoacuterica deve corroborar tal

superioridade Isto ocorre porque as decisotildees judiciais e poliacuteticas satildeo sempre susceptiacuteveis

de serem influenciadas por argumentos falaciosos Agrave vista disso a arte retoacuterica se

transfigura num poderoso instrumento para promover o bem da cidade jaacute que sua funccedilatildeo

eacutetico-poliacutetica consiste em trazer a verdade agrave luz identificar e expor os sofismas e

combater a perversatildeo da verdade e da justiccedila Pode-se concluir pois que segundo os

paracircmetros do meacutetodo retoacuterico desenvolvido pelo Estagirita Soacutecrates poderia ser

considerado (sob o ponto de vista moral) um orador judicial justo e veraz poreacutem foi

ineficiente em persuadir jaacute que natildeo estava interessado na teacutecnica retoacuterica nem agradar

os seus ouvintes tampouco apelar para suas emoccedilotildees mas restringia-se a tentar instruiacute-

los sobre os valores da sabedoria e das virtudes funccedilatildeo que aliaacutes eacute reservada ao ensino

e natildeo ao discurso puacuteblico

No capiacutetulo 4 analisar-se-aacute a perspectiva propriamente platocircnica acerca da arte

retoacuterica ou seja a do Platatildeo dos diaacutelogos da fase intermediaacuteria (387-367 aC) A anaacutelise

em questatildeo estaraacute focada sobretudo no diaacutelogo Fedro no qual Platatildeo sustenta a tese de

que aquele que pretende pronunciar determinado assunto deve conhecer cabalmente

aquilo do que vai falar pois a primeira e mais fundamental condiccedilatildeo para o bom discurso

eacute que o orador conheccedila a verdade sobre o assunto que tenciona discutir Desse modo o

orador que ignora a noccedilatildeo de justo ou injusto de mau ou de bom etc natildeo pode escapar

nunca agrave censura que merece ainda que a multidatildeo o estime Platatildeo tambeacutem rejeita a

concepccedilatildeo propalada pela maioria dos oradores de que a demonstraccedilatildeo baseada na

verossimilhanccedila deve ocupar o lugar da demonstraccedilatildeo baseada na verdade Ele rejeita a

verossimilhanccedila como fonte da argumentaccedilatildeo retoacuterica por consistir de opiniotildees e valores

conhecidos e aceitos pelo coletivo de modo que subscrevecirc-los transformaria o orador

num mero bajulador Aleacutem do mais o orador que desconhece o bem e o mal e ao se

apoiar somente no que aparenta ser bom para as multidotildees pode exaltar o mal como se

fosse o bem e a consequecircncia dessa atitude seraacute inevitavelmente prejudicial para a cidade

Ele ainda rejeita a pretensatildeo democraacutetica de fazer do discurso retoacuterico algo

universalmente partilhado Assim o criteacuterio de validade de um discurso natildeo deve

relacionar-se com uma regra majoritaacuteria qualquer porque a arte retoacuterica deve ser um

assunto que compete exclusivamente aos filoacutesofos E tendo em vista a exigecircncia

estabelecida por Platatildeo no Fedro segundo a qual o orador deve necessariamente ser um

filoacutesofo em conexatildeo com as caracteriacutesticas e a atuaccedilatildeo deste em sua cidade ideal exposta

no diaacutelogo A Repuacuteblica concluir-se-aacute que somente uma pequena classe de homens muito

esclarecidos estaraacute habilitada a exercer a arte retoacuterica pois quando se trata de discursos

Platatildeo assevera que existem especialistas assim como ocorre na construccedilatildeo de navios na

medicina ou em qualquer outra arte Nessa perspectiva apenas o filoacutesofo possuiria um

conhecimento no verdadeiro sentido dessa palavra que por meio da multiplicidade dos

fenocircmenos eacute capaz de contemplar a imagem universal e imutaacutevel das coisas ndash a Ideia A

partir da contemplaccedilatildeo da Ideia ele pode dizer o que eacute justo e belo por si enquanto que

as opiniotildees das multidotildees a respeito dessas coisas natildeo teriam nenhuma validade Decerto

a contemplaccedilatildeo das Ideias eacute a melhor de todas as ldquopossessotildees divinasrdquo um tipo de loucura

(μανίας) que se manifesta quando o filoacutesofo percebe a beleza sensiacutevel como a beleza dos

corpos e se recorda da beleza enquanto Ideia que eacute a verdadeira beleza E aquele que

domina a praacutetica filosoacutefica de procurar os princiacutepios mais gerais por detraacutes dos fenocircmenos

particulares ndash a dialeacutetica ndash conheceraacute a Ideia suprema de bem (ἀγαθός) que explica em

que consiste a bondade de tudo o mais Sem o conhecimento dessa Ideia natildeo se pode

pensar coerentemente sobre questotildees morais natildeo se pode planejar um padratildeo moral para

a vida humana nem proferir um verdadeiro discurso retoacuterico

No capiacutetulo 5 o objetivo seraacute mostrar que no seu tratado sobre a arte retoacuterica

Aristoacuteteles neutraliza o antagonismo entre a verdade e a verossimilhanccedila que caracteriza

a concepccedilatildeo platocircnica exposta no diaacutelogo Fedro por meio da separaccedilatildeo de dois domiacutenios

legitimamente autocircnomos ndash o domiacutenio da filosofia ou da ciecircncia que para o Estagirita

satildeo termos equivalentes e o domiacutenio da retoacuterica Para ele tanto a filosofia (cujo objeto eacute

a verdade) como a retoacuterica (cujo objeto eacute a verossimilhanccedila) adquirem legitimidade no

seu campo especiacutefico de atuaccedilatildeo sem que haja qualquer oposiccedilatildeo entre elas Todavia a

retoacuterica eacute uma arte situada abaixo da filosofia e das ciecircncias exatas que satildeo

demonstrativas ou apodiacutecticas e visam atingir verdades necessaacuterias A retoacuterica por seu

lado soacute pode alcanccedilar o verossiacutemil isto eacute aquilo que por ser compartilhado pela maioria

das pessoas afigura-se razoaacutevel ou provaacutevel E diferente da espeacutecie de silogismo ligada

agrave demonstraccedilatildeo cientiacutefica o silogismo retoacuterico eacute incompleto truncado jaacute que natildeo possui

tantas partes nem estas satildeo tatildeo distintas como no silogismo cientiacutefico Agrave vista disso a

retoacuterica de Aristoacuteteles estaacute longe de ser uma ciecircncia exata que partiria de axiomas e

princiacutepios cujas conclusotildees satildeo sempre necessaacuterias Pelo contraacuterio no acircmbito da arte

retoacuterica conveacutem contentar-se com a indicaccedilatildeo da verdade aproximadamente em linhas

gerais e falar de coisas que satildeo verdadeiras no mais das vezes (ὡς ἐπὶ τὸ πολύ) Em

contraste com a tese defendida por Platatildeo no Fedro segundo a qual o bom orador deve

conhecer a essecircncia do eacute que justo bom e belo o Estagirita aproxima-se das teses

sofiacutesticas ponderando que o conhecimento que o orador deve possuir para proferir um

bom discurso deve limitar-se agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras para as multidotildees

Tal procedimento se explica pelo fato de Aristoacuteteles sustentar que natildeo se deve exigir

precisatildeo em todos os raciociacutenios nem eacute necessaacuterio procurar o mesmo grau de rigor para

todas as ciecircncias e artes Ele tambeacutem assegura que se algueacutem atua com pretensotildees

filosoacuteficas precisa ter em vista a verdade mas os que atuam segundo a retoacuterica precisam

ter em vista natildeo mais a verdade mas a opiniatildeo geral Isto ocorre porque Aristoacuteteles

persiste no valor das ἔνδοξα ou seja das opiniotildees geralmente aceitas jaacute que na sua visatildeo

uma coisa que constitua objeto de crenccedila de todos os homens ou da maioria deles ou pelo

menos de todos os homens inteligentes ou da maioria deles eacute digna de confianccedila e

merece que se diga algo a seu favor Todavia as ἔνδοξα natildeo satildeo quaisquer opiniotildees mas

as autorizadas as importantes agraves quais se deve dar credibilidade por isso natildeo precisam

ser verdadeiras no sentido estrito do termo mas devem ser compartilhadas e aceitas pela

maioria Aleacutem disso o silogismo retoacuterico que recebe o nome de entimema (ἐνθύμημα)

consiste num tipo de raciociacutenio desenvolvido unicamente para o niacutevel da mentalidade do

puacuteblico tendo como ponto de partida suas proacuteprias crenccedilas e isto perante um puacuteblico

insipiente que natildeo recebeu um treinamento especiacutefico em loacutegica formal e que seria

incapaz de ver muitas coisas ao mesmo tempo ou de seguir uma longa cadeia de

raciociacutenios O orador portanto precisa adaptar o seu discurso agraves ideias dos ouvintes e

falar amiuacutede diante de homens inteiramente ignorantes de sorte que se estes natildeo forem

aliciados pelo prazer nem influenciados pelas emoccedilotildees natildeo seraacute possiacutevel persuadi-los

sobre aquilo mesmo que eacute justo e verdadeiro

Essas convicccedilotildees de Aristoacuteteles conduzem-nos naturalmente ao pensamento

atribuiacutedo aos sofistas que seraacute tema do capiacutetulo 6 Aiacute se buscaraacute reconstruir com base

nas doxografias e fragmentos disponiacuteveis a concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas Goacutergias de

Leontini e Protaacutegoras de Abdera Goacutergias por certo foi considerado um dos inventores

do discurso epidiacutectico para o qual criou uma prosa eloquente e com muacuteltiplas figuras de

linguagem que o transformaram numa composiccedilatildeo erudita e ritmada nos moldes da

poesia As melhores informaccedilotildees a este respeito se encontram numa obra de Goacutergias

escrita em forma de declamaccedilatildeo retoacuterica chamada Elogio de Helena (Ἑλένης ἐγκώμιον)

O propoacutesito desta obra consiste em libertar Helena da culpa por deixar seu lar sua filha

e seu marido para ir para Troia com Paacuteris Uma das explicaccedilotildees de Goacutergias para o

comportamento de Helena consiste no poder que eacute inerente ao discurso retoacuterico (λόγος)

Ele argumenta que se o discurso a persuadiu e sua alma enganou natildeo seria difiacutecil livraacute-

la da responsabilidade pois o λόγος seria um grande e soberano senhor capaz de operar

diviniacutessimas accedilotildees sendo possiacutevel atraveacutes dele suscitar o medo a calma a alegria afastar

a dor e estimular a compaixatildeo Dessarte Goacutergias define a arte retoacuterica como artiacutefice da

persuasatildeo (πειθοῦς δημιουργός) de modo que as palavras quando adequadamente

empregadas podem alterar tanto as emoccedilotildees como as opiniotildees dos ouvintes outorgando

ao orador um poder quase ilimitado Nessa perspectiva natildeo seria necessaacuterio o domiacutenio

de um conhecimento teacutecnico sobre um certo assunto porque o orador saberia como

produzir a persuasatildeo independente de qualquer conhecimento especializado Aliaacutes para

Goacutergias satildeo os oradores que sempre tecircm sucesso em persuadir a Assembleia a aprovar

as leis mais relevantes e natildeo os especialistas

No que tange ao sofista Protaacutegoras ver-se-aacute sua doutrina dos δισσοὶ λόγοι segundo

a qual em relaccedilatildeo a qualquer assunto eacute possiacutevel formular dois argumentos opostos isto

eacute que sustentam respectivamente duas afirmaccedilotildees contraditoacuterias e por via de

consequecircncia que eacute possiacutevel aprovar e refutar um mesmo tema proposto Ele queria dizer

com isso que se pode tomar qualquer lado de uma questatildeo e defendecirc-la com igual sucesso

Um fragmento conhecido como Discursos Duplos (Δισσοὶ λόγοι) atribuiacutedo a Protaacutegoras

e sua escola ilustra bem essa habilidade O fragmento eacute composto por uma seacuterie de

discursos de natureza antiloacutegica no qual o autor examina cinco toacutepicos propondo para

cada um deles discursos contraacuterios sobre o bom e o ruim sobre o bonito e o feio sobre

o justo e o injusto sobre o falso e o verdadeiro e sobre a sabedoria e a virtude Protaacutegoras

tambeacutem teria declarado que ldquoo homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo

enquanto satildeo das que natildeo satildeo enquanto natildeo satildeordquo Tal declaraccedilatildeo significa que a medida

(μέτρον) de todas as coisas seria cada homem (ἄνθρωπος) considerado individualmente

enquanto que o que eacute medido nas coisas natildeo seria sua existecircncia e sua natildeo-existecircncia

mas o modo como satildeo e o modo como natildeo satildeo percebidas Decerto a declaraccedilatildeo em

apreccedilo reflete o mais absoluto relativismo segundo o qual natildeo haveria qualquer verdade

absoluta nem universalmente vaacutelida mas ela seria relativa ao sujeito que conhece e julga

Protaacutegoras natildeo tem a pretensatildeo de alcanccedilar uma verdade objetiva e vaacutelida para todos pois

se o homem eacute a medida de todas as coisas natildeo existiria um criteacuterio de verdade extriacutenseco

a ele ndash as percepccedilotildees sensiacuteveis as leis as regras morais os valores a cultura e tudo o

mais soacute poderiam ser definidos subjetivamente De acordo com a doutrina do homem-

medida se uma coisa parece bela a um e feia a outro fria a um e quente a outro etc

inevitavelmente seraacute as duas coisas simultaneamente de sorte que natildeo haveria mais

qualquer objetividade nem mesmo o princiacutepio loacutegico da natildeo-contradiccedilatildeo teria validade

Mas se natildeo existe um discurso mais verdadeiro que outro certamente existe um discurso

que seja convenientemente mais uacutetil Nesse sentido a verdadeira sabedoria para

Protaacutegoras consiste em reconhecer aquilo que eacute nocivo e uacutetil agrave conveniecircncia eacutetica e

poliacutetica dos cidadatildeos e fazer prevalecer pela persuasatildeo o melhor discurso No entanto o

melhor discurso tem uma validade provisoacuteria ou seja ele perdura ateacute que natildeo apareccedila e

se afirme outro discurso ainda melhor Portanto o que realmente existe e importa para

Protaacutegoras natildeo eacute a verdade ou algo mais veriacutedico mas os expedientes que possibilitam

ao orador impor-se sobre os demais cidadatildeos cuja faculdade ele atribui agrave arte retoacuterica

No uacuteltimo capiacutetulo iremos discorrer sobre o compromisso eacutetico-poliacutetico da arte

retoacuterica de Aristoacuteteles bem como o seu contraste com a retoacuterica eriacutestica e relativista

praticada pelos sofistas Decerto a perspectiva epistecircmica assumida pela maioria dos

sofistas pressupotildee que o mundo estaacute destituiacutedo de verdade objetiva por isso o discurso

retoacuterico natildeo teria um referente extriacutenseco ao sujeito ou seja natildeo existiria outro criteacuterio

de verdade senatildeo o proacuteprio sujeito que mediante o triunfo da palavra eacute capaz de persuadir

qualquer um sobre qualquer assunto Entretanto numa expliacutecita alusatildeo a Goacutergias o

Estagirita declara que o bom orador natildeo eacute aquele que promete a vitoacuteria a qualquer custo

mas eacute aquele que encontra para a sua causa todas as chances de obter a vitoacuteria Ele deve

estar apto a descobrir os meios disponiacuteveis para persuadir mas ele jamais teraacute o poder de

persuadir todo e qualquer ouvinte

E no que poderiacuteamos divisar como uma expliacutecita afinidade em relaccedilatildeo agraves teses

platocircnicas Aristoacuteteles sustenta que o orador deve esforccedilar-se por implantar a justiccedila na

alma dos seus concidadatildeos e eliminar os viacutecios Nesse ponto de vista ele subscreve a

funccedilatildeo psicagoacutegica da arte retoacuterica defendida por Platatildeo ndash guiar a alma dos ouvintes para

a praacutetica das virtudes A arte retoacuterica deve pois ser um instrumento educacional eacutetico-

poliacutetico e nisso consistiria a atividade terminal agrave qual se subordina quer dizer a

finalidade uacuteltima para a qual afigura-se como meio razatildeo pela qual Aristoacuteteles censura o

uso leviano que os sofistas faziam das palavras que incorria tanto no mal moral quanto

no erro epistecircmico Desse modo a persuasatildeo natildeo possuiria um fim em si mesmo

conforme propalavam os sofistas porque na condiccedilatildeo de instrumento eacutetico-poliacutetico a

retoacuterica submete-se a uma finalidade mais sublime a qual precisa ser buscada em virtude

de si mesma qual seja a felicidade (εὐδαιμονία) Com efeito para que se possa fazer a

distinccedilatildeo entre o orador e o sofista seraacute preciso a seus olhos identificar aquele natildeo

somente pela teacutecnica retoacuterica que por natureza eacute neutra (como a medicina a estrateacutegia

militar e demais artes) mas fundamentalmente por sua disposiccedilatildeo moral Portanto o bom

orador distinguir-se-ia do sofista pelo fato de empregar a teacutecnica retoacuterica para o triunfo

natural do verdadeiro e do justo e tambeacutem por ser capaz de separar o argumento aparente

do argumento verdadeiro

Aristoacuteteles reafirma o engajamento eacutetico de sua retoacuterica ao criticar o uso que

Goacutergias e os sofistas faziam do discurso epidiacutectico este precisaria manifestar a grandeza

de uma virtude efetivamente existente e reconhecida pelo consenso geral e nunca

transformar uma accedilatildeo perversa numa accedilatildeo virtuosa Porquanto existem accedilotildees que por

serem perversas de maneira absoluta tornam-se indefensaacuteveis a exemplo do adulteacuterio

(μοιχεία) E ao mesmo tempo em que Aristoacuteteles defendia uma retoacuterica racional com

base na demonstraccedilatildeo teacutecnica do verossiacutemil Goacutergias teorizava e praticava uma retoacuterica

elocutiva e emocional Goacutergias desenvolveu para a retoacuterica uma expressatildeo linguiacutestica

eloquente transformando-a numa composiccedilatildeo erudita e ritmada no niacutevel esteacutetico da

poesia Por certo a principal razatildeo pela qual ele optou pela linguagem poeacutetica e natildeo pela

linguagem corrente eacute que aquela possui mais eficazmente a capacidade de apelar para os

desejos irracionais da alma humana Entretanto Aristoacuteteles argumenta que aqueles que

se expressam poeticamente de forma inapropriada introduzem no discurso retoacuterico o

ridiacuteculo e o friacutevolo e em virtude da esterilidade dessa forma de expressatildeo erram por falta

de clareza (σαφής) Sendo assim a virtude suprema da expressatildeo enunciativa seria a

clareza porque se no discurso retoacuterico natildeo se comunicar algo com nitidez e

inteligibilidade natildeo seraacute possiacutevel cumprir a sua respectiva funccedilatildeo ndash persuadir atraveacutes de

argumentos racionais Aliaacutes natildeo foi o mero emprego da retoacuterica afetiva que Aristoacuteteles

censurou em Goacutergias mas o seu emprego exagerado associado com o desprezo da

demonstraccedilatildeo loacutegica na forma do entimema e do exemplo

Veremos tambeacutem que os sofistas mereceram de Aristoacuteteles a reprovaccedilatildeo por

desconsiderar o fundamento de todo e qualquer discurso racional ndash o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo Este princiacutepio que ele considera o mais firme de todos (βέβαιος) expressa

que eacute impossiacutevel que a mesma coisa ao mesmo tempo pertenccedila e natildeo pertenccedila a uma

mesma coisa segundo o mesmo aspecto Protaacutegoras nega este princiacutepio loacutegico ao

sustentar que cada indiviacuteduo possui sua proacutepria verdade e que todos os pontos de vista

satildeo ao mesmo tempo verdadeiros Todavia para Aristoacuteteles pode-se demonstrar tal

princiacutepio por meio da refutaccedilatildeo desde que o adversaacuterio signifique algo para si e para

outro pois com esta simples atitude ele jaacute pressuporia o princiacutepio Ele ainda o pressuporia

por suas accedilotildees porque ele natildeo se deixa cair num poccedilo quando este eacute percebido nem

afirma que cair ali eacute coisa natildeo-boa e boa E visto que para Protaacutegoras o calor e o frio ou

o doce e o amargo natildeo existem efetivamente na natureza mas dependem da percepccedilatildeo de

cada indiviacuteduo em particular a justiccedila e a injusticcedila ou o certo e o errado tambeacutem

possuiriam uma existecircncia igualmente subjetiva A despeito disso ele concedia um certo

espaccedilo agraves opiniotildees convencionais sobre a verdade e a moral mas nenhuma delas seria

mais verdadeira do que outra Aproximando-se de Protaacutegoras o Estagirita propotildee que o

orador deve ser capaz de argumentar persuasivamente sobre coisas contraacuterias poreacutem ele

nunca deve fazer uma e outra coisa posto que o orador jamais deve persuadir as pessoas

a praticar um ato imoral Do mesmo modo Aristoacuteteles atribui um espaccedilo consideraacutevel agraves

opiniotildees convencionais sobre a verdade e a moral mas diferente de Protaacutegoras ele natildeo

estaacute disposto a subscrever a concepccedilatildeo de que as opiniotildees satildeo igualmente vaacutelidas pelo

contraacuterio eacute necessaacuterio que o orador procure nas opiniotildees geralmente aceitas a verdade

da melhor maneira possiacutevel Porquanto ainda que natildeo seja possiacutevel obter sobre os

assuntos eacutetico-poliacuteticos uma verdade absoluta certamente eacute possiacutevel obter algo mais

seguro e mais veriacutedico perspectiva que refutaria o relativismo protagoacuterico Aliaacutes a noccedilatildeo

aristoteacutelica de lei comum implica que efetivamente existe um conceito natural e universal

de certo e errado que todos os homens de algum modo reconheceriam independente de

um julgamento eacutetico situacional que varia conforme os indiviacuteduos e as circunstacircncias

Aristoacuteteles prossegue em sua condenaccedilatildeo do relativismo ao identificar a doutrina de

Protaacutegoras (de que eacute possiacutevel tornar o argumento mais fraco no argumento mais forte)

com uma argumentaccedilatildeo falaciosa chamada de entimema aparente (φαινόμενον

ἐνθύμημα) que constitui um logro e uma verossimilhanccedila natildeo verdadeira Os raciociacutenios

que visam tornar o argumento mais fraco no argumento mais forte ndash que o reacuteu forte eacute

inocente porque pareceria altamente provaacutevel que fosse o agressor ndash parecem raciocinar

a partir de opiniotildees que parecem ser geralmente aceitas mas em realidade natildeo satildeo por

isso satildeo simplesmente falsos e sobretudo inuacuteteis jaacute que natildeo refletiria a regularidade

proacutepria do mundo das accedilotildees humanas Nessa perspectiva se o relativismo for

disseminado poderaacute fomentar consequecircncias danosas para a cidade haja vista que a

justiccedila e a injusticcedila poderatildeo ser defendidas indiferentemente opondo-se agrave funccedilatildeo eacutetico-

poliacutetica da arte retoacuterica que consiste justamente em fortalecer as virtudes dos cidadatildeos

Sendo assim para o Estagirita a verdadeira cidade quer dizer aquela que natildeo o eacute

somente de nome deve estimar acima de tudo as virtudes de seus cidadatildeos porque eacute

impossiacutevel que uma cidade seja feliz se dela a moralidade for abolida

1 Aspectos gerais da retoacuterica de Aristoacuteteles

11 Experiecircncia arte e o primeiro esboccedilo da retoacuterica de Aristoacuteteles

De acordo com o registro histoacuterico de Dioacutegenes Laeacutercio o filoacutesofo Aristoacuteteles tinha

cerca de dezessete anos de idade quando se dirigiu para Atenas com o intuito de

aperfeiccediloar a sua formaccedilatildeo intelectual e imediatamente ingressou na Academia de Platatildeo

Na Academia ele amadureceu e consolidou sua vocaccedilatildeo filosoacutefica de maneira definitiva

permanecendo na escola de Platatildeo por cerca de vinte anos (Vid doutr fil il V 1 9)

Laeacutercio tambeacutem assevera que nesse periacuteodo o Estagirita ensinava seus disciacutepulos a se

exercitarem sobre um tema proposto ao mesmo tempo que os preparava para o exerciacutecio

da arte retoacuterica (Ibid V 1 3) Aleacutem de ministrar liccedilotildees de retoacuterica Aristoacuteteles teria sido

o primeiro a compor em sua proacutepria defesa um discurso judicial quando Eurimedon

hierofante dos misteacuterios de Deoacute o acusou de impiedade (Ibid V 1 8)

Outrossim foram fundamentais suas contribuiccedilotildees nas numerosas discussotildees em

torno dos temas que mormente ocupavam a Academia Decerto no decorrer dos anos

passados na Academia Aristoacuteteles absorveu os princiacutepios platocircnicos e fez defesa deles

em alguns escritos ao mesmo tempo em que submeteu-os a rigorosas criacuteticas A despeito

disso Dioacutegenes Laeacutercio sustenta que o Estagirita foi o mais genuiacuteno (γνήσιος) disciacutepulo

de Platatildeo (Ibid V 1 1) E conforme sublinha Giovanni Reale eacute exato o juiacutezo de Laeacutercio

de que Aristoacuteteles foi o disciacutepulo mais genuiacuteno de Platatildeo mas para ele conveacutem dar a

ldquodisciacutepulordquo e ldquogenuiacutenordquo um significado correto o genuiacuteno disciacutepulo de um grande mestre

natildeo eacute aquele que simplesmente o repete restringindo-se a conservar intacta a sua doutrina

mas eacute aquele que partindo das aporias do mestre procura superaacute-las Aristoacuteteles portanto

revela-se como o disciacutepulo que repensa e ao inveacutes de meramente repetir o mestre

esforccedila-se para ir muito aleacutem dele (REALE 2015 10)

Dioacutegenes Laeacutercio exara que quando Aristoacuteteles tomou a decisatildeo de se afastar da

Academia Platatildeo teria declarado o seguinte ldquoAristoacuteteles deu-me um pontapeacute como

fazem os potros com a matildee que os gerourdquo (Vid doutr fil il V 1 2) Todavia ao referir-

se agraves teorias de Platatildeo na Eacutetica a Nicocircmaco o Estagirita assegura que eacute preferiacutevel e

mesmo a obrigaccedilatildeo de todo o filoacutesofo enquanto amante da sabedoria preterir os laccedilos

mais iacutentimos quando eles rivalizam com a preservaccedilatildeo da verdade Embora ambos sejam

preciosos seria necessaacuterio amar mais a verdade do que os amigos (Eacutet Nic 1096a 14-

17)

E contudo parece ser melhor ateacute talvez um dever que pela salvaccedilatildeo da verdade se destruam os laccedilos que temos com os que nos estatildeo proacuteximos sobretudo se formos filoacutesofos Sendo ambos queridos para noacutes eacute mais de acordo com a lei divina preferir a verdade

Aristoacuteteles afirma que a pesquisa pela verdade eacute difiacutecil mas sob outro aspecto eacute

faacutecil eacute impossiacutevel a um homem apreender adequadamente a verdade e igualmente

impossiacutevel natildeo a apreender de maneira nenhuma Para ele qualquer um pode dizer algo

sobre a realidade mas individualmente essa contribuiccedilatildeo pouco acrescenta ao

conhecimento da verdade Seria a uniatildeo de todas as contribuiccedilotildees individuais o que

produz um resultado consideraacutevel Eacute necessaacuterio pois que o filoacutesofo seja grato a todos

aqueles que compartilham de suas opiniotildees mas tambeacutem com aqueles que expressaram

opiniotildees ateacute mesmo superficiais pois tambeacutem eles deram alguma contribuiccedilatildeo agrave pesquisa

filosoacutefica (Met 993a 30-993b 15)

Aristoacuteteles com efeito natildeo quer transmitir a impressatildeo de que eacute com ele que a

pesquisa filosoacutefica acontece pela primeira vez de modo fundamental pelo contraacuterio ele

dedica agraves opiniotildees doutrinais (δόξαι) anteriores um espaccedilo consideraacutevel A metodologia

que ele emprega no Liceu com o seu respeito ao cabedal de conhecimento proporcionado

pelos saacutebios do passado em qualquer campo do conhecimento necessitava mais do que

qualquer outra escola filosoacutefica de uma biblioteca como ferramenta de trabalho

indispensaacutevel De modo geral as pesquisas de Aristoacuteteles incluiacuteam um abrangente

programa de leitura Sabe-se que ele estudava com tamanha dedicaccedilatildeo a ponto de sua casa

ser chamada de ldquoa casa do leitorrdquo Ele tinha uma grande biblioteca em funccedilatildeo disso teria

sido o primeiro homem a ter reunido livros cujo exemplo teria inspirado o reis do Egito

a montar uma biblioteca (BARNES 2005 30) Em contraste com Platatildeo que natildeo

acreditava na possibilidade de expressar de maneira escrita a verdade filosoacutefica (Fed

275a-276a) o Estagirita compreendera desde os tempos em que frequentou a Academia

a importacircncia do contato contiacutenuo com o pensamento reflexivo do passado que somente

o estudo de sua heranccedila escrita poderia proporcionar

A dedicaccedilatildeo de Aristoacuteteles agraves opiniotildees doutrinais anteriores tambeacutem leva em

consideraccedilatildeo a natureza da legislaccedilatildeo que eacute um componente da arte legisladora

(νομοθετικέ) a qual por sua vez constitui um dos ramos da ciecircncia poliacutetica Para tanto

ele sustenta que eacute necessaacuterio percorrer tudo o que particularmente foi dito com relevacircncia

pelos investigadores do passado sobre a mateacuteria em questatildeo Ele ainda enfatiza que eacute

preciso analisar teoricamente a partir das compilaccedilotildees de constituiccedilotildees quais delas

conservam as suas cidades-Estados e quais delas as destruiacuteram quais os diferentes tipos

de constituiccedilatildeo particular e quais os motivos pelos quais umas governam corretamente e

outras procedem de maneira contraacuteria Ao abordar cada um desses assuntos o Estagirita

supotildee obter uma melhor compreensatildeo de qual eacute a melhor constituiccedilatildeo de todas que tipo

de ordem traz cada constituiccedilatildeo e de que tipo de leis e costumes se serve (Eacutet Nic 1181b

13-25) Praticamente natildeo existe nenhuma obra na qual ele natildeo venha a falar dos seus

predecessores e tal procedimento que apropriadamente pode receber o nome de ldquomeacutetodo

doxaacutesticordquo natildeo diz respeito somente ao estudo da filosofia ou da ciecircncia poliacutetica mas

tambeacutem ao estudo da arte retoacuterica

Na obra Dos Argumentos Sofiacutesticos Aristoacuteteles assegura que fizera uma longa

pesquisa sobre os manuais de retoacuterica elaborados por seus predecessores a partir dos

quais desenvolveu o seu proacuteprio meacutetodo retoacuterico Para ele em todos os casos os

descobrimentos filosoacuteficos resultaram do trabalho daqueles que se debruccedilaram e

reelaboraram os trabalhos jaacute iniciados por seus predecessores O mesmo sucedeu tambeacutem

no campo da arte retoacuterica e praticamente no de todas as demais artes Desse modo os que

descobriram os primeiros princiacutepios da arte retoacuterica os fizeram avanccedilar apenas um pouco

enquanto que os renomados oradores do seu tempo seriam os herdeiros de uma longa

sucessatildeo de homens que os fizeram avanccedilar gradualmente e os desenvolveram ateacute que

alcanccedilassem a sua forma atual Sucedendo-se Tiacutesias aos primeiros fundadores e

Trasiacutemaco a Tiacutesias e a seguir Teodoro e vaacuterios outros oradores que fizeram as suas

diversas contribuiccedilotildees a arte retoacuterica pocircde atingir dimensotildees consideraacuteveis (Arg Sof

182b 20-35)

Eacute bem possiacutevel que em todas as coisas como diz o refratildeo popular o primeiro passo seja o mais importante e por essa mesma razatildeo tambeacutem o mais difiacutecil pois quanto mais poderosa se destina a ser a sua influecircncia mais pequenas satildeo as suas proporccedilotildees e portanto mais difiacuteceis de perceber mas depois que foi descoberto o primeiro comeccedilo eacute mais faacutecil fazer-lhe acreacutescimos e desenvolver o resto Isso tem acontecido no campo da retoacuterica e praticamente no de todas as demais artes pois os que descobriram os seus primeiros princiacutepios os fizeram avanccedilar um pouquinho apenas enquanto as celebridades de hoje satildeo os herdeiros (por assim dizer) de uma longa sucessatildeo de homens que os fizeram avanccedilar polegada por polegada e os desenvolveram ateacute que alcanccedilassem a sua forma presente sucedendo-se Tiacutesias aos primeiros fundadores e Trasiacutemaco a Tiacutesias

e a seguir Teodoro enquanto vaacuterias pessoas faziam as suas diversas contribuiccedilotildees e assim natildeo eacute de surpreender que a arte tenha atingido dimensotildees consideraacuteveis

Outrossim no decorrer da Retoacuterica Aristoacuteteles faz referecircncias a alguns autores de

manuais de retoacuterica e suas respectivas contribuiccedilotildees Dentre esses autores eacute oportuno

mencionar Goacutergias de Leontini Pacircnfilo Isoacutecrates e seu disciacutepulo Calipo Empeacutedocles

Protaacutegoras de Abdera Alcidamante Poliacutecrates Liacutecofron Liciacutemnio de Quios Trasiacutemaco

de Calcedocircnia Hermaacutegoras de Temnos Eacutesquines de Samos Eutidemo de Quios

Andoacutecion Esiacuteon Cefisoacutedoto Glaacuteucon de Teo Coacuterax e Tiacutesias A propoacutesito Aristoacuteteles

teria feito uma coletacircnea de tratados de retoacuterica que circulavam em seu tempo que recebia

o nome de Coletacircnea das Artes a qual teria exposto o tratado do orador Teoacutedotos

chamado de A arte de Teoacutedotos E como se evidencia por estes tiacutetulos e tambeacutem por seu

proacuteprio tratado intitulado de Τέχνη ρητορική Aristoacuteteles utilizava o termo ldquoarterdquo para

designar natildeo somente a atividade praticada pelos oradores mas tambeacutem o seu ensino

(BERTI 1998 170)

Conforme a definiccedilatildeo formulada por Aristoacuteteles a retoacuterica consiste na capacidade

(δύναμις) de descobrir o que eacute adequado a cada caso quando se tem por finalidade

persuadir (Ret 1355b 32-42) Os oradores haacutebeis por conseguinte devem desenvolver

a capacidade de persuadir no mais elevado grau Outrossim a retoacuterica deve estudar e

ensinar de maneira sistemaacutetica essa capacidade pois a retoacuterica soacute poderaacute ser efetivamente

considerada uma arte (τέχνη)1 se atingir tais objetivos Embora a argumentaccedilatildeo de

Aristoacuteteles seja sucinta e objetiva ao sustentar que a retoacuterica eacute uma arte porque eacute possiacutevel

descobrir a razatildeo pela qual satildeo bem-sucedidos os oradores na sua praacutetica discursiva sua

posiccedilatildeo eacute peremptoacuteria segundo ele a retoacuterica eacute uma arte (Ibid 1354a 8-15)

Simplesmente na sua maioria umas pessoas fazem-no ao acaso e outras mediante a praacutetica que resulta do haacutebito E porque os dois modos satildeo possiacuteveis eacute oacutebvio que seria tambeacutem possiacutevel fazer a mesma coisa seguindo um meacutetodo Pois eacute possiacutevel estudar a razatildeo pela qual tanto satildeo bem-sucedidos os que agem por haacutebito como os que agem espontaneamente e todos facilmente concordaratildeo que tal estudo eacute tarefa de uma arte

Na qualidade de uma τέχνη a retoacuterica constituiria para Aristoacuteteles um corpo de

regras e princiacutepios gerais que a razatildeo pode conhecer ou seja uma forma de conhecimento

1 O sentido geral de ldquoarterdquo parece coincidir com o sentido geral de ldquoteacutecnicardquo quer dizer o conjunto de regras aptas a dirigir eficazmente uma atividade humana qualquer por isso ambas as palavras seratildeo oportunamente empregadas como sinocircnimas

que ultrapassa a mera experiecircncia de tal modo que a retoacuterica estaria num grau

intermediaacuterio entre a simples experiecircncia praacutetica e o conhecimento cientiacutefico Essa

caracterizaccedilatildeo da retoacuterica pode ser compreendida agrave luz da Metafiacutesica onde Aristoacuteteles

apresenta uma descriccedilatildeo de graus consecutivos de conhecimento O primeiro grau de

conhecimento se identifica com a percepccedilatildeo (αἴσθησις) de um objeto sensiacutevel O segundo

grau consiste na memoacuteria (μνήμη) O terceiro grau consiste na experiecircncia (ἐμπειρία) E

o quarto grau do saber eacute constituiacutedo pela arte (τέχνη) e pela ciecircncia (ἐπιστήμη) o qual diz

respeito ao conhecimento pela causa (αἰτία) e a pessoa detentora desse grau de saber eacute

considerada mais saacutebia do que aquele que possui simplesmente uma experiecircncia (Met

980a 25-980b 10) Pode-se assegurar entatildeo que o caminho pelo qual o intelecto apreende

qualquer conhecimento eacute a induccedilatildeo (ἐπαγωγή) a qual comeccedila com a percepccedilatildeo de objetos

particulares o que leva agrave retenccedilatildeo de conteuacutedo perceptivo na memoacuteria e depois que

muitos desses conteuacutedos foram retidos a uma experiecircncia e depois desta surge o

conhecimento da arte e da ciecircncia quando de muitos objetos inteligiacuteveis que derivam da

experiecircncia uma suposiccedilatildeo universal sobre objetos similares eacute produzida Sendo assim

o conhecimento da arte e da ciecircncia se produz quando de muitas observaccedilotildees da

experiecircncia forma-se um juiacutezo geral e uacutenico passiacutevel de ser referido a todos os casos

semelhantes (Ibid 981a 1-5 )

Com efeito do ponto de vista do conhecimento natildeo haveria uma diferenccedila

substancial entre a arte e a ciecircncia considerando-se que ambas procuram conhecer pela

causa A uacutenica diferenccedila entre elas eacute que a primeira se ocupa de realidades contingentes

as quais se relacionam com as accedilotildees humanas ao passo que a segunda se ocupa daquilo

que eacute das realidades necessaacuterias as quais seriam independentes dos seres humanos (Seg

Anal 100a 4-7) Todavia eacute importante observar que a palavra ldquocausardquo deve ser

compreendida num sentido mais abrangente pois o termo grego ldquoαἰτίαrdquo traduzido

normalmente por ldquocausardquo tambeacutem designa o que nomeamos por ldquoexplicaccedilatildeordquo Assim

explicar alguma coisa eacute demonstrar por que ela eacute assim e demonstrar por que alguma

coisa eacute assim eacute expor a sua causa (BARNES 2005 58) Dessarte a retoacuterica se identifica

com uma legiacutetima arte porque eacute possiacutevel explicar a razatildeo pela qual satildeo bem sucedidos os

oradores na sua praacutetica discursiva e por conseguinte produzir um corpo de regras e

princiacutepios gerais que podem ser conhecidos e aplicados por qualquer indiviacuteduo dotado de

razatildeo

Os oradores que satildeo o alvo da criacutetica de Aristoacuteteles na Retoacuterica possuiacuteam segundo

ele somente uma ἐμπειρία e natildeo uma τέχνη (Ret 1354a 16-26) De acordo com a

exposiccedilatildeo de Aristoacuteteles na Metafiacutesica jaacute aludida precedentemente a palavra grega

ldquoἐμπειρίαrdquo se relaciona com as sensaccedilotildees a memoacuteria e o haacutebito ao passo que como jaacute

dito a palavra ldquoτέχνηrdquo reporta-se ao conhecimento das causas A sensaccedilatildeo eacute o sinal

comum entre os homens e os animais A repeticcedilatildeo das sensaccedilotildees uma apoacutes a outra eacute

organizada na alma pela faculdade da memoacuteria e a esta ordem estabelecida pela memoacuteria

nas sensaccedilotildees Aristoacuteteles denomina de ἐμπειρία que eacute o termo grego que designa a

experiecircncia A ἐμπειρία entatildeo designa a ordem que a memoacuteria estabelece nas sensaccedilotildees

passageiras constituindo-se um modo imperfeito de conhecer haja vista que eacute comum ao

homem e ao animal2 Pois enquanto os animais vivem de imagens sensiacuteveis e com

recordaccedilotildees e pouco participam da experiecircncia o ser humano vive da arte e de

raciociacutenios (Met 980a 5-980b 7)

Outrossim existe mais conhecimento na τέχνη do que na ἐμπειρία de modo que

os homens de arte satildeo mais saacutebios do que os empiacutericos Isto ocorre porque estes conhecem

o ldquoquerdquo mas natildeo conhecem o ldquoporquecircrdquo das coisas Assim aquele que tem a direccedilatildeo nas

diferentes artes (ἀρχιτέκτων) eacute superior ao trabalhador manual (χειροτέχνης) pelo fato de

conhecer as causas do que se faz podendo transmitir por demonstraccedilatildeo o seu

conhecimento ao passo que o trabalhador manual age simplesmente por haacutebito (ἔθος)

ignorando o que faz Aristoacuteteles considera o ἀρχιτέκτων mais digno de honra e possuidor

de maior conhecimento do que o χειροτέχνης na medida em que aquele conhece as causas

das coisas que satildeo feitas ao contraacuterio deste que age sem saber o que faz Aliaacutes o

trabalhador manual age como alguns dos seres inanimados a exemplo do fogo quando

queima pois cada um dos seres inanimados age por certo impulso natural enquanto que

o trabalhador manual age por haacutebito Agrave vista disso o Estagirita considera o primeiro mais

saacutebio natildeo porque eacute capaz de produzir alguma coisa mas porque eacute conhecedor das causas

Aleacutem do mais ele sustenta que a diferenccedila entre quem sabe e quem natildeo sabe consiste na

2 Apesar da experiecircncia constituir um modo imperfeito de conhecer Aristoacuteteles sustenta que as pessoas que possuem um saber empiacuterico em determinadas aacutereas satildeo mais praacuteticas do que aquelas que possuem um saber cientiacutefico Por exemplo aquele que possui o conhecimento geral de que carnes leves satildeo digeriacuteveis e saudaacuteveis mas natildeo sabe que tipos de carne satildeo leves natildeo seraacute capaz de produzir sauacutede ao passo que aquele que sabe quais tipos de carnes de aves satildeo saudaacuteveis certamente produziraacute sauacutede Por essa razatildeo natildeo se deve possuir um conhecimento (cientiacutefico) em detrimento do outro (empiacuterico) mas ambos os tipos de conhecimento (Eacutet Nic 1141b 18-23) ldquoDe resto os mais sensatos a respeito da accedilatildeo satildeo tambeacutem os mais experimentados nas circunstacircncias particulares em que de cada vez nos podemos encontrar Por exemplo se algueacutem souber que as carnes leves satildeo de mais faacutecil digestatildeo e por isso mais saudaacuteveis mas desconhecer quais satildeo os animais com carne mais leve natildeo conseguiraacute restabelecer sua proacutepria sauacutede Contudo quem souber que as aves satildeo animais leves e portanto que tecircm carne mais leve restabelececirc-la-aacute mais facilmente A sensatez eacute uma disposiccedilatildeo atuante sobre o horizonte praacutetico de tal forma que se deve possuir ambas as formas de saber (o universal e o particular)rdquo

capacidade de ensinar pois o que possui a arte eacute capaz de ensinar enquanto o que possui

a experiecircncia natildeo o eacute (Ibid 981a 30-981b 1-9)

Aristoacuteteles daiacute conclui que os oradores que distribuiacuteam discursos para serem

aprendidos de memoacuteria ou sob a forma de perguntas e respostas que ensinavam as regras

sobre a melhor maneira de transmiti-los em partes e as estrateacutegias para criar no juiz certa

disposiccedilatildeo emocional natildeo estariam transmitindo atraveacutes de seus manuais uma verdadeira

τέχνη com um meacutetodo e preceitos mas unicamente uma ἐμπειρία3 (Ret 1354b 21-30)

E se o que dizemos eacute exato natildeo resta a menor duacutevida de que mateacuterias externas ao assunto satildeo descritas como artes por aqueles que definem outras coisas por exemplo o que devem conter o proecircmio ou a narraccedilatildeo e cada uma das partes do discurso pois ao se ocuparem destas questotildees nada mais os preocupa senatildeo o modo como poderatildeo criar no juiz uma certa disposiccedilatildeo Mas sobre as provas propriamente artiacutesticas nenhuma indicaccedilatildeo avanccedilam isto eacute sobre aquilo que afinal torna o leitor haacutebil no uso do entimema

Na obra Dos Argumentos Sofiacutesticos Aristoacuteteles assegura que o treinamento

proporcionado pelos professores remunerados para ensinar a produzir argumentos

sofiacutesticos era similar agrave maneira como Goacutergias tratou do asssunto porquanto o que eles

faziam era distribuir discursos para serem aprendidos de memoacuteria alguns deles retoacutericos

e outros na forma de perguntas e respostas na suposiccedilatildeo de que os argumentos de cada

uma das partes estivessem todos de modo geral incluiacutedos ali (Arg Sof 183b 35-184a

1) Assim o ensino que eles transmitiam aos seus alunos era raacutepido mas rudimentar e

imaginavam adestrar as pessoas transmitindo-lhes natildeo a arte stricto sensu mas

simplesmente os seus produtos Aristoacuteteles ilustra esse diagnoacutestico afirmando que a arte

retoacuterica praticada por seus predecessores era como se um homem que pretendesse ser

capaz de transmitir o conhecimento de como evitar as dores nos peacutes natildeo ensinasse a seu

aluno a arte do sapateiro nem indicasse as fontes onde poderia adquiri-la mas

apresentasse calccedilados de todos tipos Tal homem o teria ajudado a satisfazer a sua

necessidade poreacutem jamais teria transmitido uma autecircntica arte (Ibid 184a 1-10)

3 No diaacutelogo Goacutergias Platatildeo tambeacutem critica a retoacuterica praticada por seus contemporacircneos por natildeo ser uma τέχνη mas simplesmente uma ἐμπειρία uma vez que ela natildeo possuiria nenhuma compreensatildeo racional da natureza daquilo a que se aplica ou daquilo que aplica e por conseguinte natildeo teria nada a dizer sobre o conhecimento das causas (Goacuterg 465a) ldquoIsso eu chamo de adulaccedilatildeo e afirmo que coisa desse tipo eacute vergonhosa Polo ndash e isto eu digo a ti ndash porque visa o prazer a despeito do supremo bem Natildeo afirmo que ela eacute arte mas experiecircncia porque natildeo possui nenhuma compreensatildeo racional da natureza daquilo a que se aplica e consequentemente natildeo tem nada a dizer sobre a causa de cada um deles Eu natildeo denomino arte algo que seja irracional mas se tiveres algum ponto a contestar desejo colocar agrave prova o argumentordquo

Enquanto praacutetica retoacuterica conveacutem levar em consideraccedilatildeo a anaacutelise de E M Cope

acerca do significado da ἐμπειρία Para ele a ἐμπειρία constitui um procedimento

irracional Eacute irracional porque manifesta-se num modo de operaccedilatildeo meramente mecacircnico

exibindo uma habilidade que natildeo resulta de nada aleacutem do haacutebito e eacute adquirida pela simples

repeticcedilatildeo E seria assim porque a ἐμπειρία trata apenas de casos individuais em

detrimento de concepccedilotildees ou regras gerais E ainda que ocasionalmente seja capaz de

elaborar alguma noccedilatildeo geral ela nunca estaacute separada dos objetos particulares nem eacute

definida com precisatildeo Desse modo a ἐμπειρία torna-se incapaz de transmitir o

conhecimento de uma verdadeira arte Esta por conseguinte pode ser definida como um

corpo de regras gerais visando um resultado praacutetico cuja aplicaccedilatildeo assegura a previsatildeo

de um certo resultado (COPE 1867 22-23)

Os estudiosos de Aristoacuteteles normalmente dividem seus escritos em dois grandes

grupos os escritos exoteacutericos que eram compostos na sua maioria em forma dialoacutegica e

destinados a um puacuteblico mais amplo E os escritos esoteacutericos que eram destinados

somente ao ciacuterculo iacutentimo de disciacutepulos O primeiro grupo de escritos perdeu-se

completamente e o que resta deles satildeo alguns fragmentos e tiacutetulos vazios Todavia

estima-se que o primeiro escrito exoteacuterico tenha sido o diaacutelogo juvenil chamado Grilos

ou Da Retoacuterica no qual Aristoacuteteles defende a posiccedilatildeo de Platatildeo acerca da retoacuterica em

detrimento da posiccedilatildeo de Isoacutecrates (REALE 2015 9) Aleacutem do mais segundo o registro

de Dioacutegenes Laeacutercio Aristoacuteteles teria escrito outras obras sobre temas especiacuteficos ligados

agrave arte retoacuterica as quais tambeacutem foram perdidas tais como Prefaacutecio aos Lugares-Comuns

Das Paixotildees Entimemas Retoacutericos Divisotildees dos Entimemas e Da Dicccedilatildeo (Vid doutr fil

il V 1 22 24)

Com efeito foi justamente sobre temas de retoacuterica que Aristoacuteteles lanccedilou-se como

escritor compondo e publicando o Grilos redigido em torno de 360 aC a propoacutesito dos

elogios retoacutericos compostos por vaacuterios oradores em virtude da morte de Grilos que era

filho de Xenofonte no ano de 362 aC 4 Tal motivaccedilatildeo viria de Platatildeo que lhe incumbiu

4 Dioacutegenes Laeacutercio refere-se agrave morte de Grilos nos seguintes termos (Vid doutr fil il II 6 54-55) ldquoDe acordo com Dioacutecles em suas Vidas dos Filoacutesofos eles se educaram na proacutepria Esparta Diocircdoros sobreviveu agrave batalha sem fazer nada de extraordinaacuterio (ele tinha um filho com o mesmo nome que o irmatildeo) Grilos ao contraacuterio servia na cavalaria e na batalha travada nas proximidades de Mantinea combateu bravamente e tombou segundo o relato de Eacuteforos no vigeacutessimo quinto livro de sua obra Cefisocircdoros era o comandante da cavalaria e Hegesiacutelaos o comandante-em-chefe Nessa batalha tambeacutem morreu Epamecircinondas Dizem que na ocasiatildeo Xenofon estava realizando um sacrifiacutecio com uma coroa na cabeccedila e a removeu ao receber a notiacutecia da morte de seu filho Mais tarde tendo sabido que ele tombara gloriosamente repocircs a coroa na cabeccedila Alguns altores dizem que Xenofon natildeo derramou uma laacutegrima sequer mas exclamou lsquoeu sabia que ele nasceu mortalrsquo Aristoacuteteles menciona que incontaacuteveis autores de

de ministrar liccedilotildees sobre essa disciplina na Academia5 No diaacutelogo em apreccedilo Aristoacuteteles

toma posiccedilatildeo contra Isoacutecrates ao defender o ideal filosoacutefico da paideia platocircnica e parece

acolher a perspectiva que o proacuteprio Platatildeo defendera sobre a retoacuterica sobretudo no

diaacutelogo Fedro (REALE 2015 163) A Academia de Platatildeo reservava um espaccedilo

consideraacutevel agrave retoacuterica e foi por tratar deste toacutepico no diaacutelogo Grilos que o Estagirita

comeccedilou a criar o seu renome como filoacutesofo no qual ele atacava as concepccedilotildees de

Isoacutecrates que era respeitado orador educador e especialista profissional Um dos

disciacutepulos de Isoacutecrates chamado Cefisoacutedoro elaborou uma longa reacuteplica a primeira de

muitas polecircmicas em que Aristoacuteteles esteve envolvido Aliaacutes anos depois em seu

Protreacuteptico Aristoacuteteles defendeu o ideal da Academia platocircnica contra as noccedilotildees mais

pragmaacuteticas da escola isocraacutetica tendo o proacuteprio Isoacutecrates dado uma resposta a ela em

sua obra Antiacutedose (BARNES 2005 37-38) E conforme o exame de George A Kennedy

a afinidade dos pontos de vista de Platatildeo e do jovem Aristoacuteteles sobre o tema da retoacuterica

estaria indicada pelo ataque de Cefisoacutedoro a ambos os filoacutesofos Cefisoacutedoro era um

disciacutepulo de Isoacutecrates que viu no Grilos uma invectiva tanto ao seu trabalho quanto ao

trabalho do seu mestre Kennedy ainda salienta que a polecircmica sobre a natureza da

retoacuterica envolvendo de um lado Isoacutecrates e Cefisoacutedoro e de outro Platatildeo e Aristoacuteteles

teria surgido em virtude do sucesso da escola de retoacuterica fundada por Isoacutecrates

(KENNEDY 1963 83-84)

Outrossim os primeiros esboccedilos da Retoacuterica que ao contraacuterio do Grilos e do

Protreacuteptico ainda permanece intacto podem muito bem remontar aos primeiros anos da

Academia ao passo que os retoques finais desse trabalho soacute foram dados no uacuteltimo

periacuteodo da vida de Aristoacuteteles Aliaacutes a retoacuterica e o estudo da literatura se acham

estreitamente ligados Aristoacuteteles escreveu um livro histoacuterico-criacutetico Sobre os poetas e

uma coletacircnea de Problemas homeacutericos os quais podem ter sido escritos no interior da

Academia Estes estudos mostraram que o Estagirita era um seacuterio estudioso de filologia

e de criacutetica literaacuteria tendo constituiacutedo parte do trabalho preparatoacuterio para a Poeacutetica (onde

ele esboccedilou seu celebrado relato sobre a trageacutedia) assim como para o terceiro livro da

epitaacutefios e elogios escreveram a propoacutesito de Grilos em parte para serem agradaacuteveis ao pai Em sua obra Vida dos filoacutesofos Hecircrmipos tambeacutem afirma que o proacuteprio Isocrates escreveu um elogio de Grilosrdquo 5 Existe um documento escrito pelo epicurista Filodemo que enfatiza o interesse de Aristoacuteteles pela retoacuterica desde os primeiros anos na Academia de Platatildeo Segundo tal documento Aristoacuteteles teria ministrado um curso de retoacuterica durante o qual havia estabelecido um viacutenculo estreito entre a retoacuterica e a poliacutetica Aliaacutes Aristoacuteteles consideraria a retoacuterica uma verdadeira arte digna de ser ensinada mas ao mesmo tempo rejeitava aquele de tipo gorgiano ensinada tambeacutem por Isoacutecrates substituindo-a pelo tipo desejado por Platatildeo no Fedro qual seja uma retoacuterica baseada na dialeacutetica e articulada com a poliacutetica (BERTI 1998169-170)

Retoacuterica o qual versa sobre a linguagem e o estilo A retoacuterica de Aristoacuteteles ainda

manteacutem laccedilos com a loacutegica de modo que uma das principais alegaccedilotildees de Aristoacuteteles no

Grilos foi que a retoacuterica natildeo deveria apelar para as emoccedilotildees com uma linguagem

elaborada devendo antes persuadir os ouvintes mediante argumentos racionais

(BARNES 2005 38) E apesar das parcas informaccedilotildees disponiacuteveis sobre o diaacutelogo

Grilos pode-se concluir com muita probabilidade que ele representa a primeira fase do

pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles enquanto que o pensamento da sua maturidade e da

sua uacuteltima produccedilatildeo eacute expresso pelos trecircs livros da Retoacuterica os quais seratildeo examinados

a seguir nos seus aspectos gerais

12 Breve anaacutelise do trecircs livros da Retoacuterica

A teoria mais aceita sobre a composiccedilatildeo dos trecircs livros da Retoacuterica eacute que satildeo notas

das aulas do proacuteprio Aristoacuteteles muitas das quais escritas durante sua primeira estadia na

cidade de Atenas que teriam sido revisadas vaacuterias vezes durante os anos em que lecionou

Muito provavelmente as aulas foram publicadas e editadas depois de sua morte pelos

membros da Escola Peripateacutetica fundada por Aristoacuteteles (em 335 aC) Com base nas

sucessivas revisotildees os conceitos tomados de Platatildeo e dos sofistas chegaram a constituir

um todo novo e coerente Isto posto tal como chegou aos leitores de Aristoacuteteles a

Retoacuterica estaria perfeitamente estruturada e entre suas partes haveria uma genuiacutena

unidade passando de um tema a outro com naturalidade e cuidado Eacute certo que algumas

dessas divisotildees poderiam ter sido obra dos editores a divisatildeo do Livro I e do Livro II

por exemplo poderia ter sido realizada por pura conveniecircncia na confecccedilatildeo dos rolos

Natildeo obstante o conjunto da obra eacute muito completo e muitas passagens remetem-se

explicitamente a outras partes do tratado (MURPHY 1989 35-36)

No iniacutecio do primeiro livro da Retoacuterica o Estagirita afirma que a arte retoacuterica eacute uma

forma de argumentaccedilatildeo comparaacutevel agrave dialeacutetica ndash ἡ ῥητορική ἐστιν ἀντίστροφος τῇ

διαλεκτικῇ Isso porque ambas se ocupam de questotildees mais ou menos ligadas ao

conhecimento comum e natildeo se relacionam a nenhuma ciecircncia em particular Conforme

observa Barbara Cassin a retoacuterica seria ἀντιστροφή da dialeacutetica porque elas guardariam

uma relaccedilatildeo de analogia a retoacuterica seria o anaacutelogo no campo do persuasivo da dialeacutetica

no campo do demonstrativo A analogia entre as duas disciplinas seria ainda indicada pelo

caraacuteter comum de universalidade ao fato de que suas premissas satildeo provaacuteveis e apenas

provaacuteveis e ao fato de que ambas tecircm a capacidade de argumentar os contraacuterios

(CASSIN 2005 161-162) Aristoacuteteles declara que todas as pessoas praticam de alguma

forma ambas as disciplinas porque elas procuram eventualmente questionar e sustentar

um argumento defender ou acusar Ademais a retoacuterica e a dialeacutetica natildeo seriam ciecircncias

(ἐπιστῆμαι) mas faculdades (δυνάμεις) mentais as quais se relacionam somente a

discursos (λόγοι) e natildeo a determinadas mateacuterias estabelecidas (Ret 1354a 1-7 1359b15-

20)

A retoacuterica eacute a outra face da dialeacutetica pois ambas se ocupam de questotildees mais ou menos ligadas ao conhecimento comum e natildeo correspondem a nenhuma ciecircncia em particular De fato todas as pessoas de alguma maneira participam de uma e de outra pois todas elas tentam em certa medida questionar e sustentar um argumento defender-se ou acusar [] E quanto mais se tentaram imaginar a dialeacutetica ou a retoacuterica natildeo apenas como faculdades mentais mas como ciecircncias tanto mais se estaraacute inadvertidamente obscurecendo a sua real natureza passando-se com isso a construir ciecircncias relativas a determinadas mateacuterias estabelecidas e natildeo soacute a discursos

Segundo o exame de E M Cope a caracteriacutestica mais distintiva e peculiar da

retoacuterica de Aristoacuteteles eacute a sua vinculaccedilatildeo com a dialeacutetica Seria a ligaccedilatildeo da retoacuterica com

a dialeacutetica que habilitaria a primeira propiciar uma exposiccedilatildeo sistemaacutetica e cientiacutefica de

seus conteuacutedos podendo por conseguinte ser classificada como um tipo especial de

raciociacutenio e modo de prova (COPE 1867 6) Aleacutem do mais ele considera a retoacuterica e a

dialeacutetica como espeacutecies de um mesmo gecircnero como artes irmatildes as quais possuiriam

diferenccedilas especiacuteficas e semelhanccedilas gerais As diferenccedilas especiacuteficas consistiriam em

duas maneiras diferentes de provar seus raciociacutenios ao passo que a dialeacutetica concluiria

suas proposiccedilotildees mediante o silogismo formal e pela induccedilatildeo regular a retoacuterica por sua

vez realizaria suas inferecircncias a partir dos entimemas os quais satildeo argumentos

abreviados imperfeitos e nunca formalmente completos e atraveacutes do exemplo que eacute o

equivalente a um argumento por analogia (Id 2006 2) No que diz respeito agrave

compreensatildeo das semelhanccedilas gerais entre a retoacuterica e a dialeacutetica conveacutem salientar o que

o proacuteprio Aristoacuteteles expocircs acerca das duas disciplinas

Ambas satildeo capazes de provar uma tese bem como a tese que lhe eacute contraacuteria

poreacutem isto natildeo deve implicar na equivalecircncia entre elas equivalecircncia que redundaria na

doutrina dos dissoi logoi (δισσοὶ λόγοι) atribuiacuteda a Protaacutegoras e aos sofistas em geral

segundo a qual eacute possiacutevel tomar qualquer lado de uma questatildeo e defendecirc-la com igual

sucesso Antes o que Aristoacuteteles parece pretender assinalar eacute que atraveacutes da retoacuterica e da

dialeacutetica eacute possiacutevel argumentar em favor de uma tese fraca (Ret 1355a 39-45) Essas

disciplinas natildeo pertencem a nenhum gecircnero particular definido satildeo faculdades universais

pela caracteriacutestica de natildeo implicarem nenhuma especializaccedilatildeo e possibilitarem a

discussatildeo de tudo quanto eacute controverso (Ibid 1355b 11-12) Ambas podem ser praticadas

tanto por haacutebito como por acaso mas tambeacutem podem ser ensinadas de acordo com um

meacutetodo por isso ambas satildeo consideradas artes (Ibid 1354a 1-4) E finalmente ambas

as disciplinas se utilizam de dois tipos de argumentaccedilatildeo (Ibid 1356b 1-5) induccedilatildeo

(ἐπαγωγή) e silogismo (συλλογισμός)

No iniacutecio dos Toacutepicos Aristoacuteteles define a dialeacutetica como um meacutetodo de

investigaccedilatildeo a partir do qual eacute possiacutevel raciocinar partindo de opiniotildees geralmente

aceitas sobre qualquer tipo de problema (Toacutep 100a 18-20) Com efeito ao discorrer

sobre a dialeacutetica Aristoacuteteles faz referecircncia a uma situaccedilatildeo concreta de discussatildeo entre dois

interlocutores na qual um sustenta determinada tese enquanto que o outro esforccedila-se por

contestaacute-la O instrumento que se usa em tal discussatildeo eacute a argumentaccedilatildeo por silogismo e

induccedilatildeo O objeto ao qual tal argumentaccedilatildeo se aplica eacute o problema (πρόβλημα) que

consiste numa alternativa de tipo interrogativo entre duas proposiccedilotildees contraacuterias A

discussatildeo tem iniacutecio com a formulaccedilatildeo de uma pergunta que estaacute aberta agrave possibilidade

de duas respostas entre si contraditoacuterias por exemplo ldquoeacute lsquoanimal que caminha com dois

peacutesrsquo a definiccedilatildeo de homem ou natildeo eacuterdquo (Ibid 101b 30-35) Agrave pergunta inicial um dos dois

interlocutores deve sustentar uma determinada tese ao passo que o outro tem a

incumbecircncia de contestar a tese defendida O interlocutor encarregado de contestar faraacute

uma seacuterie de perguntas a fim de obter do proponente da tese as premissas com as quais

esteja de acordo atraveacutes das quais seraacute possiacutevel levaacute-lo agrave contradiccedilatildeo consigo mesmo

Todavia aquele que responde deve evitar ao maacuteximo ser conduzido agrave contradiccedilatildeo consigo

mesmo A argumentaccedilatildeo que conclui numa contradiccedilatildeo eacute denominada por Aristoacuteteles de

refutaccedilatildeo (ἔλεγχος) Outrossim a discussatildeo dialeacutetica supotildee que os dois interlocutores

discutam na presenccedila de um puacuteblico que decidiraacute qual dos dois teve sucesso ndash conseguir

refutar o outro ou natildeo fazer-se refutar pelo outro As premissas utilizadas pelos

interlocutores satildeo as opiniotildees geralmente aceitas (ἔνδοξα) as quais satildeo partilhadas por

todos os ouvintes e servem de ponto de referecircncia comum para a discussatildeo Tambeacutem eacute

partilhada pelos ouvintes a regra segundo a qual a contradiccedilatildeo eacute o equivalente de falsidade

de uma tese de modo que aquele que nela incorre deve ser considerado o perdedor da

discussatildeo dialeacutetica E para este meacutetodo de investigaccedilatildeo Aristoacuteteles destaca trecircs fins uacuteteis

o adestramento do intelecto as disputas casuais e as ciecircncias filosoacuteficas (Ibid 101a 25-

26) Vejamos separadamente cada uma dessas trecircs utilidades

A primeira utilidade da dialeacutetica consiste no seu mero exerciacutecio ou treino intelectual

(πρὸς γυμνασίαν) porquanto o domiacutenio do seu meacutetodo capacita a argumentar o proacute e o

contra sobre qualquer tema proposto Este primeiro uso tem caraacuteter pessoal ou privado

ou seja de estudo de preparo de aprimoramento de uma praacutetica largamente disseminada

mas natildeo adequadamente disciplinada a fim de que se a pratique mais eficazmente Nas

disputas dialeacuteticas argumenta-se para avaliar as forccedilas com o propoacutesito de exercitar-se e

provar-se natildeo simplesmente para instruir-se E se dessa atividade natildeo for possiacutevel extrair

qualquer verdade pelo menos obter-se-aacute um treinamento intelectual um adestramento no

uso da linguagem que possibilite argumentar sobre qualquer tipo de assunto (Ibid101a

28-30)

A segunda utilidade da dialeacutetica refere-se aos encontros casuais (πρὸς τὰς

ἐντεύξεις) pois ao fornecer uma lista de opiniotildees geralmente aceitas facilita a persuasatildeo

ao discutir a partir das teses do proacuteprio oponente Trata-se natildeo mais do uso privado da

dialeacutetica mas sim do seu uso puacuteblico o qual eacute mais proacuteprio a ela no qual entram as

discussotildees poliacuteticas desenvolvidas nas assembleias deliberativas e consultivas e os

debates judiciaacuterios que ocorrem nos tribunais Todavia os argumentos utilizados para

este propoacutesito natildeo devem ser extraiacutedos das opiniotildees alheias mas das opiniotildees defendidas

pela maioria das pessoas (Ibid 101a 31-34)

No que tange ao estudo das ciecircncias filosoacuteficas (πρὸς τὰς κατὰ φιλοσοφίαν

ἐπιστήμας) a dialeacutetica eacute uacutetil porque a capacidade de suscitar dificuldades significativas

sobre ambos os aspectos de um assunto permite ao dialeacutetico detectar mais facilmente a

verdade e o erro nos diversos pontos e questotildees que surgirem (Ibid 101a 35-40)

Outrossim ela serve como um processo de criacutetica onde se encontra o caminho que conduz

aos princiacutepios de todas as investigaccedilotildees (Ibid 101b 3-12) E os assuntos investigados

pela dialeacutetica podem ser problemas loacutegicos fiacutesicos ou eacuteticos (Ibid 105b 20-25)

Das proposiccedilotildees e problemas mdash encarando-se a questatildeo em linhas gerais mdash existem trecircs grupos algumas satildeo proposiccedilotildees eacuteticas outras versam sobre a filosofia natural e outras enfim satildeo loacutegicas Proposiccedilotildees como a seguinte satildeo eacuteticas deve um homem obedecer antes aos seus genitores ou agraves leis quando estatildeo em desacordo um exemplo de proposiccedilatildeo loacutegica eacute o conhecimento dos opostos eacute ou natildeo eacute o mesmo enquanto proposiccedilotildees como esta dizem respeito agrave filosofia natural eacute ou natildeo eacute eterno o universo E do mesmo modo no

que tange aos problemas A natureza de cada uma das supraditas espeacutecies de proposiccedilatildeo natildeo se expressa facilmente numa definiccedilatildeo mas devemos esforccedilar-nos por reconhecer cada uma delas graccedilas a uma familiaridade conquistada atraveacutes da induccedilatildeo examinando-as agrave luz dos exemplos dados acima

Pode-se depreender dessa sumaacuteria anaacutelise que a dialeacutetica eacute reduzida por Aristoacuteteles

agrave condiccedilatildeo de exerciacutecio intelectual que se ocupa natildeo com as proacuteprias coisas mas com as

opiniotildees geralmente aceitas sobre as coisas que natildeo podendo atingir pelo seu meacutetodo a

verdade cientiacutefica permanece no acircmbito da probabilidade Sua abordagem eacute uacutetil quer

para o livre exerciacutecio na arte de argumentar quer para se ter sucesso em qualquer tipo de

discussatildeo puacuteblica quer para conhecer a verdade ou a falsidade de uma certa proposiccedilatildeo

Sendo a dialeacutetica uma praacutetica interrogativa ou examinativa ela tambeacutem desempenharia

um papel epistecircmico por permitir estabelecer atraveacutes de um exame contraditoacuterio os

primeiros princiacutepios de cada ciecircncia e os primeiros princiacutepios comuns agraves ciecircncias em

geral E posto que todas as ciecircncias em que se articula a filosofia aristoteacutelica satildeo

substancialmente pesquisas de princiacutepios e de causas ela se utiliza da dialeacutetica a qual

natildeo garante o conhecimento seguro dos princiacutepios da ciecircncia porque natildeo eacute uma ciecircncia

mas certamente facilita a busca e a posse destes princiacutepios Ela natildeo eacute por si mesma tal

conhecimento mas constitui a investigaccedilatildeo o caminho que se realiza para chegar a ele

Portanto em certos casos a dialeacutetica pode fazer conhecer ou seja pode ser um

instrumento ou meacutetodo da ciecircncia

No entanto a dialeacutetica de Aristoacuteteles natildeo deve ser confundida com a dialeacutetica no

sentido platocircnico cujo escopo consiste em apreender os fundamentos da realidade como

um todo Pelo contraacuterio conforme frisa Otfried Houmlffe o Estagirita teria expandido o

domiacutenio de aplicaccedilatildeo da dialeacutetica e ao mesmo tempo nivelado para baixo o seu estatuto

epistecircmico Desse modo a dialeacutetica aristoteacutelica se ocuparia de um determinado tipo de

debates intelectuais natildeo sendo competente nem para conduzir a uma verdade de niacutevel

supremo nem para a filosofia Por outro lado ela seria seguramente proveitosa para a arte

para atacar a tese de um oponente ou para defender as proacuteprias teses Para a filosofia ela

seria importante e uacutetil mas somente como um tipo de ciecircncia auxiliar E tal como a

demonstraccedilatildeo cientiacutefica (ἀπόδειξις) a dialeacutetica tambeacutem se serve do silogismo A

diferenccedila no uso do silogismo em um caso e em outro natildeo reside no caraacuteter loacutegico-formal

estrito mas no estatuto epistecircmico das premissas ndash a demonstraccedilatildeo cientiacutefica repousa em

proposiccedilotildees verdadeiras e primeiras enquanto que as demonstraccedilotildees dialeacuteticas nas

chamadas ἔνδοξα Por essas Aristoacuteteles entende proposiccedilotildees que diferentemente dos

princiacutepios de uma ciecircncia natildeo satildeo criacuteveis por si mesmas e consistem em parte (como na

arte retoacuterica) de opiniotildees comuns de concepccedilotildees da maioria de opiniotildees qualificadas

bem-fundamentadas (HOumlFFE 2008 56)

De sua longa pesquisa sobre os manuais de retoacuterica existentes em sua eacutepoca

Aristoacuteteles conclui que todos eles satildeo incompletos porque amiuacutede negligenciam a

argumentaccedilatildeo loacutegica enfatizando a retoacuterica judicial (Ret 1354a 16-23) A maioria dos

autores de manuais censurados por Aristoacuteteles se esforccedilava por elaborar a arte do discurso

judicial (δικανικός) em detrimento de outros gecircneros de discurso como o deliberativo

(συμβουλευτικός) e o epidiacutectico (ἐπιδεικτικός) porque seria mais uacutetil pronunciar algo

exterior ao assunto nos discursos judiciais bem como criar no juiz uma certa disposiccedilatildeo

emocional (Ibid 1354b 31-49) Agrave vista disso o orador precisaria compreender a estrutura

loacutegica do argumento retoacuterico constituiacuteda pelo entimema (ἐνθύμημα) e pelo exemplo

(παράδειγμα) Estes seriam entatildeo os dispositivos fundamentais para o exerciacutecio da arte

retoacuterica

De acordo com Aristoacuteteles o entimema eacute uma espeacutecie de silogismo que se

fundamenta sobre probabilidades e sinais (τὰ δ᾽ ἐνθυμήματα ἐξ εἰκότων καὶ ἐκ σημείων)

e natildeo propriamente sobre o verdadeiro e imediato Para ele a probabilidade eacute o que

geralmente acontece mas natildeo absolutamente antes diz respeito a coisas que podem ser

de uma maneira ou de outra e relaciona-se no que concerne ao provaacutevel (Ibid 1357a 44-

47) O sinal (σημείων) por sua vez eacute um indicativo de que algo aconteceu ou existe e

supotildee a relaccedilatildeo entre dois fatos Se a relaccedilatildeo entre os fatos for julgada necessaacuteria o sinal

recebe o nome de tecmeacuterion (τεκμήριον) do contraacuterio limita-se a uma simples

possibilidade O entimema eacute um raciociacutenio eficaz com respeito a homens incultos

porquanto visa produzir a persuasatildeo e natildeo uma demonstraccedilatildeo de natureza cientiacutefica Em

vista disso conveacutem considerar outra caracteriacutestica do entimema a premissa maior a

premissa menor ou ateacute ambas podem estar pressupostas na argumentaccedilatildeo retoacuterica Eacute

necessaacuterio pois que o entimema se ocupe de coisas que podem ser para a maior parte de

outro modo e seja formado de poucas premissas e em geral menos do que as do silogismo

primaacuterio e caso alguma dessas premissas for bem conhecida natildeo eacute necessaacuterio comunicaacute-

la pois o proacuteprio ouvinte a supre (Ibid 1357a 18-24) Aleacutem do mais existem duas

espeacutecies de entimemas quais sejam os entimemas demonstrativos de algo que eacute ou natildeo

eacute e os entimemas refutativos A diferenccedila eacute igual agrave que existe na dialeacutetica entre refutaccedilatildeo

e silogismo O entimema demonstrativo eacute aquele em que se obteacutem a conclusatildeo com base

nas premissas com as quais se estaacute de acordo ao passo que o refutativo conduz a

conclusotildees que o adversaacuterio natildeo aceita (Ibid 1396b 30-35)

Para Aristoacuteteles a demonstraccedilatildeo de alguma coisa com base em muitos casos

semelhantes chama-se na dialeacutetica induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e na arte retoacuterica chama-se

exemplo (παράδειγμα) Pode-se assegurar entatildeo que o exemplo eacute um tipo particular de

induccedilatildeo (Ibid 1356b 3-6) No entanto diferentemente do argumento indutivo o exemplo

retoacuterico natildeo procede dos casos particulares ndash sejam todos sejam muitos ndash para o conceito

universal mas parte do particular e conclui algo particular (Ibid 1357b 35-38) Dessarte

o exemplo eacute uma espeacutecie de correspondente indutivo do entimema enquanto propotildee

generalizaccedilotildees que satildeo persuasivas por si mesmas ou satildeo premissas plausiacuteveis de um

silogismo Aliaacutes existem dois tipos distintos de exemplos O primeiro consiste em aludir

a fatos histoacutericos anteriores como quando se afirma que Dioniacutesio procura adquirir a

tirania porque solicita uma guarda pois tambeacutem antes Pisiacutestrato ao intentaacute-la pediu uma

guarda e se transformou em tirano mal a conseguiu assim como Teaacutegenes em Meacutegara

Estes e outros fatos semelhantes servem de exemplo para Dioniacutesio de quem ainda natildeo se

sabe se eacute essa a razatildeo pela qual a pede Estes casos particulares se enquadram na mesma

noccedilatildeo geral de que quem aspira agrave tirania solicita uma guarda pessoal (Ibid 1357b 40-

48) O segundo tipo de exemplo consiste em invenccedilotildees mobilizadas pelo orador que

podem ser uma paraacutebola ou uma faacutebula (Ibid 1393a 37-40) A paraacutebola eacute um exemplo

inventado e implica uma comparaccedilatildeo com alguma coisa com que tenha semelhanccedila e da

qual sirva de ilustraccedilatildeo como quando Soacutecrates afirma que os governantes natildeo devem ser

escolhidos por um sorteio assim como natildeo satildeo escolhidos por sorteio os atletas para uma

competiccedilatildeo (Ibid 1393b 8-15) A faacutebula por sua vez consiste de narrativa curta e

imaginaacuteria com um objetivo pedagoacutegico e moral geralmente protagonizada por animais

a exemplo da faacutebula de Estesiacutecoro apresentada por Aristoacuteteles6

6 Aristoacuteteles escreve a respeito da faacutebula de Estesiacutecoro nos seguintes termos (Ret 1393b 17-33) ldquoUm exemplo de faacutebula eacute a que se refere Estesiacutecoro a respeito de Faacutelaris e a de Esopo a favor de um demagogo Tendo os cidadatildeos de Hiacutemera escolhido Faacutelaris como estratego com plenos poderes a ponto de lhe atribuir uma escolta pessoal Estesiacutecoro entre outras consideraccedilotildees contou-lhes a faacutebula seguinte um cavalo tinha um prado soacute para si mas chegou um veado e estragou-lhe o pasto o cavalo entatildeo querendo vingar-se do veado perguntou a um homem se o podia ajudar a punir o veado O homem consentiu com a condiccedilatildeo de lhe pocircr um freio e o montar armado com dardos Feito o acordo o homem montou o cavalo e este em vez de se vingar tornou-se escravo do homem lsquoAssim tambeacutem voacutesrsquo disse ele lsquoacautelai-vos natildeo vaacute acontecer que querendo vingar os vossos inimigos venhais a sofrer a sorte do cavalo jaacute tendes o freio ao eleger um estratego pleno de poderes se lhe dais uma guarda pessoal e permitis que vos monte entatildeo sereis escravos de Faacutelarisrsquordquo

Segundo Aristoacuteteles o estudo da arte retoacuterica deve levar em consideraccedilatildeo trecircs

componentes quais sejam o orador o assunto que eacute tratado no discurso e o ouvinte a

quem o discurso eacute endereccedilado (Ibid 1358a 47-51) Trecircs tambeacutem satildeo os tipos de provas

artiacutesticas (πίστεις ἔντεχνοι) que objetivam a persuasatildeo Assim as provas artiacutesticas da

persuasatildeo retoacuterica (Ibid 1356a 1-5) residem de um lado nas provas loacutegicas isto eacute no

entimema e no exemplo (λόγος)7 e de outro nas provas psicoloacutegicas compostas pelo

caraacuteter do orador (ἦθος) e o apelo emocional (πάθος) Com efeito as provas artiacutesticas

da persuasatildeo retoacuterica devem ser fornecidas pelo proacuteprio orador enquanto que os

elementos que estatildeo disponiacuteveis preacutevia e independentemente do orador a saber os

juramentos as leis as testemunhas os documentos e as confissotildees por tortura pertencem

agraves provas inartiacutesticas (πίστεις ἄτεχνοί) uma vez que natildeo podem ser elaboradas pelo

orador Escreve Aristoacuteteles a respeito (Ibid 1355b 36-42)

Das provas de persuasatildeo umas satildeo proacuteprias da arte retoacuterica e outras natildeo Chamo provas inartiacutesticas a todas as que natildeo satildeo produzidas por noacutes antes jaacute existem provas como testemunhos confissotildees sob tortura documentos escritos e outras semelhantes e provas artiacutesticas todas as que se podem preparar pelo meacutetodo e por noacutes proacuteprios De sorte que eacute preciso utilizar as primeiras mas inventar as segundas

Outro relevante assunto que eacute abordado por Aristoacuteteles no livro I da Retoacuterica (Ibid

1358a 45-1359a 33) diz respeito aos trecircs gecircneros de discursos o deliberativo o judicial

e o epidiacutectico Esta triacuteplice divisatildeo dos gecircneros de discursos que era corrente no seacuteculo

V aC foi tomada dos sofistas sem qualquer modificaccedilatildeo Todavia Aristoacuteteles oferece

uma justificativa teoacuterica para dividir os discursos em trecircs partes os possiacuteveis tipos de

ouvintes e os momentos possiacuteveis para tomar decisotildees

No discurso deliberativo existe tanto o conselho quanto a dissuasatildeo porque os que

procuram persuadir seja em puacuteblico ou em privado sempre fazem uma destas duas

coisas Para o que delibera o fim diz respeito ao conveniente e o prejudicial pois aquele

que aconselha recomenda-o como o melhor e aquele que desaconselha dissuade dele

como o pior O tempo para aquele que delibera eacute o futuro porquanto aconselha sobre

eventos futuros ora persuadindo ora dissuadindo Ademais o discurso deliberativo

7 Aristoacuteteles natildeo emprega diretamente o termo ldquoλόγοςrdquo para designar as provas loacutegicas (entimema e exemplo) mas eacute frequentemente utilizado pelos estudiosos da arte retoacuterica com o intuito de simplificar

dirige-se a um puacuteblico menos esclarecido para tanto o orador deve utilizar

preferencialmente argumentos pelo exemplo

No discurso judicial existe tanto a acusaccedilatildeo quanto a defesa porque eacute necessaacuterio

que os que pleiteiam faccedilam uma destas duas coisas Para os que falam no tribunal o fim

diz respeito ao justo e o injusto O tempo para aquele que acusa ou defende eacute o passado

pois eacute sempre sobre atos acontecidos que um acusa e outro defende Outrossim o discurso

judicial que dispotildee de leis e se dirige a um auditoacuterio mais especializado exige que o

orador empregue o entimema que eacute proacuteprio para esclarecer uma questatildeo judicial

No discurso epidiacutectico existe tanto o elogio quanto a censura Para os que elogiam

ou censuram o fim eacute o belo e o feio O tempo principal eacute o presente visto que todos

louvam ou censuram eventos atuais embora seja possiacutevel evocar o passado e conjecturar

sobre o futuro E quanto ao principal argumento a ser utilizado o gecircnero epidiacutectico

recorre principalmente agrave amplificaccedilatildeo (αὐξητικός) porque os fatos satildeo conhecidos pelo

auditoacuterio e conveacutem ao orador dar-lhes valor mostrando sua importacircncia e nobreza (Ibid

1367a 37-46)

Apoacutes ter discorrido no livro I sobre o bloco das provas loacutegicas (entimema e

exemplo) isto eacute aquelas destinadas a persuadir atraveacutes de argumentos racionais

Aristoacuteteles analisa no livro II o bloco das provas psicoloacutegicas que satildeo aquelas cujo vigor

persuasivo natildeo depende diretamente da razatildeo mas do apelo emocional O ἦθος que

consiste no caraacuteter do orador e o πάθος que designa o apelo agraves emoccedilotildees formam o bloco

de provas que natildeo satildeo demonstrativas mas psicoloacutegicas Isso porque os meios de

persuasatildeo de que se valem estatildeo fora do assunto a ser tratado no discurso isto eacute natildeo se

relacionam com os conteuacutedos da argumentaccedilatildeo propriamente dita Isto posto no livro II

da Retoacuterica o Estagirita procura explanar como os elementos da argumentaccedilatildeo

psicoloacutegica podem ser utilizados como parte da argumentaccedilatildeo entimemaacutetica

Com efeito a arte retoacuterica tem como objetivo fundamental encontrar teoricamente

os modos pelos quais se efetiva a persuasatildeo e por conseguinte produzir na alma dos

ouvintes um juiacutezo favoraacutevel ao conteuacutedo do discurso Dessarte precisam ser levados em

consideraccedilatildeo natildeo somente os efeitos intelectuais do discurso mas tambeacutem a imagem que

o orador exibe e a maneira pela qual a audiecircncia poderaacute inclinar-se emocionalmente em

favor do que foi veiculado (Ibid 1377b 29-32) E ao ponderar sobre a importacircncia do

caraacuteter do orador e do apelo agraves emoccedilotildees dos ouvintes o Estagirita introduz no seu meacutetodo

retoacuterico ao lado de uma retoacuterica demonstrativa ainda outra que pode ser cognominada

de retoacuterica afetiva porquanto no discurso retoacuterico natildeo basta observar abstratas regras

loacutegicas e racionais para obter a persuasatildeo mas eacute preciso envolver tambeacutem os sentimentos

os afetos a emotividade

No que concerne ao caraacuteter moral do orador a persuasatildeo se efetiva quando o

discurso eacute proferido por um orador que goze de prestiacutegio (Ibid 1356a 6-8) pois se

orador parecer confiaacutevel o puacuteblico iraacute formar o juiacutezo de que as proposiccedilotildees apresentadas

satildeo igualmente confiaacuteveis Noutros termos o puacuteblico se sentiraacute inclinado a transferir para

o conteuacutedo do discurso a credibilidade que confere ao caraacuteter do orador e isto ocorre

muito frequentemente nos casos em que natildeo haacute um conhecimento certo e definitivo sobre

determinado assunto mas margem para duacutevidas Natildeo obstante o ἦθος do orador por si

soacute natildeo eacute suficiente para efetivar a persuasatildeo pois eacute necessaacuterio que a confianccedila no discurso

seja fundamentalmente o resultado da argumentaccedilatildeo entimemaacutetica e natildeo de uma opiniatildeo

a priori acerca do caraacuteter do orador (Ibid 1356a 8-13) Aleacutem do mais Aristoacuteteles afirma

existir trecircs causas que tornam os oradores persuasivos sem a necessidade de

demonstraccedilotildees entimemaacuteticas (Ibid 1378a 9-22) Assim para que o orador obtenha a

credibilidade diante do seu puacuteblico deve aparentar possuir a prudecircncia (φρόνησις) a

virtude (ἀρετὴ) e a benevolecircncia (εὔνοια)

Para Aristoacuteteles a consideraccedilatildeo do πάθος eacute relevante para a investigaccedilatildeo das

condiccedilotildees de persuasatildeo porque as emoccedilotildees podem mover as pessoas em direccedilatildeo de um

determinado juiacutezo ou mesmo alterar o seu rigor Isto ocorre porque os fatos natildeo se

apresentam sob a mesma perspectiva a quem ama e a quem odeia nem satildeo iguais para o

homem que estaacute irado ou para o calmo Quem ama acha que o juiacutezo que deve emitir sobre

quem eacute julgado eacute de natildeo culpabilidade ou de pouca culpabilidade e quem odeia amiuacutede

pensa o contraacuterio (Ibid 1377b 40-1378a 4) Pode-se assegurar entatildeo que a influecircncia

das emoccedilotildees sobre os ouvintes de um discurso pode determinar de um lado a natureza

de um juiacutezo e de outro o grau de sua severidade

A maneira pela qual o orador torna-se apto a suscitar certas emoccedilotildees nos seus

ouvintes depende basicamente do conhecimento circunstanciado de cada emoccedilatildeo em

particular ndash vale dizer o conhecimento da definiccedilatildeo que expressa sua natureza ndash e dos

padrotildees de estiacutemulos que acompanham cada situaccedilatildeo afetiva ndash o que requer a explanaccedilatildeo

desses padrotildees Eacute a partir dessas noccedilotildees que o orador pode elaborar seus argumentos com

o intuito de persuadir seu auditoacuterio de acordo com sua conveniecircncia (Ibid 1378a 34-

43) Desse modo para conquistar este relevante efeito no pensamento e na postura

assumida pelos ouvintes Aristoacuteteles descreve (nos capiacutetulos 2 a 11 de Retoacuterica II) treze

emoccedilotildees na seguinte ordem ira (ὀργή) calma (πραότης) amizade (φίλος) inimizade

(μῖσος) temor (φόβος) confianccedila (θαρσαλέος) vergonha (αἰσχύνη) desvergonha

(ἀναισχυντία) amabilidade (χάρις) piedade (ἔλεος) indignaccedilatildeo (νέμεσις) inveja

(φθόνος) e emulaccedilatildeo (ζῆλος)

Dos capiacutetulos 12 a 17 do mesmo livro Aristoacuteteles empreende uma anaacutelise do caraacuteter

dos ouvintes (ἦθος) dividindo-os em grupos segundo a idade e a condiccedilatildeo social o caraacuteter

do jovem (νέος) o caraacuteter do idoso (πρέσβυς) o caraacuteter dos que estatildeo no auge da vida

(ἀκμάζοντες) o caraacuteter do nobre (εὐγενής) o caraacuteter do rico (πλοῦτος) e o caraacuteter dos

poderosos (δυνάμεως) Esta parte do seu tratado supotildee um esforccedilo de Aristoacuteteles por levar

a cabo o desejo manifestado por Platatildeo8 de chegar a uma classificaccedilatildeo do caraacuteter dos

ouvintes com o intuito de construir os argumentos mais adequados a cada um deles9 No

entanto as observaccedilotildees de Aristoacuteteles que subsequentemente seratildeo resumidas natildeo

possuem um cunho eminentemente cientiacutefico visto que limitam-se a subscrever o que

propala o senso comum ou a sabedoria convencional

Para Aristoacuteteles os jovens satildeo propensos aos desejos passionais e inclinados a

fazer o que desejam Satildeo impulsivos irritadiccedilos e deixam-se arrastar pela ira Satildeo

confiantes e otimistas porque ainda natildeo foram muitas vezes enganados nem sofreram

muitas decepccedilotildees na vida Satildeo magnacircnimos porque ainda natildeo foram feridos pela vida e

satildeo inexperientes acerca das necessidades materiais Eles em tudo pecam por excesso e

violecircncia Acham que sabem de tudo e satildeo obstinados Preferem o belo em detrimento do

que eacute uacutetil Mais do que todas as idades amam os amigos e companheiros porque gostam

de conviver com os outros Tambeacutem gostam de rir e fazer gracejos No que tange aos

idosos ele destaca que em tudo avanccedilam com cautela e em tudo dizem menos do que

conveacutem Preferem o uacutetil em detrimento do que eacute belo Tambeacutem tecircm mau caraacuteter pois ter

mau caraacuteter consiste em supor sempre o pior em tudo Satildeo de espiacuterito mesquinho por

8 Escreve Platatildeo a respeito da classificaccedilatildeo do caraacuteter dos ouvintes (Fed 271d) ldquoVisto que eacute funccedilatildeo do discurso conduzir as almas quem deseja vir a ser orador necessita conhecer quantas formas tem a alma Ora haacute tantas e tais que tornam uns homens de determinada natureza e outros de natureza diferente Entatildeo uma vez definidas essas o nuacutemero de espeacutecies de discursos eacute o mesmo e cada um com caracteriacutesticas especiacuteficas Por isso uns homens sob a acccedilatildeo de determinados discursos e por determinado motivo tornam-se obedientes a certas convicccedilotildees outros poreacutem com natureza diferente natildeo de deixam persuadir pelas mesmas razotildeesrdquo 9 Segundo Armando Plebe a faculdade de encontrar os diversos modos de expressatildeo convenientes a cada tipo de ouvinte a qual recebe a designaccedilatildeo de polytropiacutea (πολυτροπία) teria sua origem na vertente retoacuterica do primeiro pitagorismo (PLEBE 1978 3-4)

terem sido maltratados pela vida razatildeo pela qual natildeo aspiram a nada de grande nem de

extraordinaacuterio mas somente ao que eacute indispensaacutevel agrave vida Ademais satildeo mais egoiacutestas

do que o necessaacuterio satildeo pessimistas em razatildeo da sua experiecircncia mas tambeacutem devido agrave

sua covardia satildeo faladores pois vivem a falar de coisas passadas estatildeo sempre se

queixando e natildeo gostam de brincadeiras nem de rir E sobre os que estatildeo no auge (ακμή)

da vida (dos 30 aos 35 anos) ele sustenta que mantecircm a justa medida em todas as

situaccedilotildees Nem confiantes em tudo nem totalmente desconfiados Natildeo vivem para o belo

nem para o uacutetil mas para as duas coisas Enfim tudo o que de uacutetil estaacute repartido entre a

juventude e a velhice encontra-se reunido no auge da vida

Tendo em conta a anaacutelise das classes sociais o Estagirita sublinha que o caraacuteter

proacuteprio da nobreza eacute tornar mais ambicioso aquele que a possui Os nobres que possuem

uma dignidade transmitida pelos antepassados tecircm uma tendecircncia para o desprezo

mesmo em relaccedilatildeo aqueles que satildeo semelhantes aos seus antepassados Ele entende por

nobre aquele cujas virtudes satildeo inerentes a uma estirpe e natildeo perde suas qualidades

naturais Todavia existem indiviacuteduos de boa linhagem que se degeneram e adquirem um

caraacuteter vil a exemplo dos descendentes de Peacutericles e Soacutecrates Os ricos por sua vez satildeo

descritos como soberbos e orgulhosos porque estatildeo afetados pelas riquezas Satildeo

efeminados e petulantes Efeminados porque vivem do luxo e fazem ostentaccedilatildeo da sua

felicidade Petulantes porque estatildeo acostumados a que toda gente se ocupe dos seus

desejos e os admire E quando eles cometem injusticcedila natildeo o fazem por maldade mas

por insolecircncia ou intemperanccedila Enfim os poderosos que na visatildeo de Aristoacuteteles satildeo por

temperamento mais ambiciosos e mais viris que os ricos pois ambicionam realizar atos

que podem cumprir devido ao poder de que dispotildeem Eles satildeo mais diligentes porque

tecircm responsabilidades obrigando-se a velar por tudo que se relaciona ao seu poder Satildeo

mais dignos do que graves porque a sua dignidade lhes confere mais respeito E se

porventura cometem injusticcedilas essas injusticcedilas natildeo alvejam as pessoas pequenas mas

sim para as grandes

Tambeacutem satildeo analisados no presente livro os lugares-comuns (κοινοί τόποι)

Aristoacuteteles natildeo oferece uma definiccedilatildeo expliacutecita dos κοινοί τόποι mas pode-se assegurar

que satildeo fontes de argumentaccedilatildeo que podem ser facilmente localizados uma vez que

foram devidamente memorizados pelo orador tendo em vista sua utilizaccedilatildeo em diversas

situaccedilotildees Os lugares-comuns podem ser aplicados em questotildees de direito de fiacutesica de

poliacutetica e demais disciplinas que diferem em espeacutecie (Ret 1358a 15-18) Dentre os 28

tipos de lugares-comuns expostos no capiacutetulo 23 os quais tambeacutem satildeo abordados nos

Toacutepicos conveacutem a exposiccedilatildeo de alguns deles Vejamos primeiramente o lugar do mais e

o do menos Na hipoacutetese de que um atributo natildeo se aplica ao que eacute mais aplicaacutevel tambeacutem

natildeo se aplica ao que eacute menos aplicaacutevel de modo que se nem os deuses sabem de tudo

menos ainda os homens Ou ainda o argumento de que uma pessoa que agride os vizinhos

tambeacutem agride o pai visto que se assenta no raciociacutenio de que se haacute o menos tambeacutem haacute

o mais pois amiuacutede se agride menos os pais do que os vizinhos Uma variaccedilatildeo deste lugar

consiste no argumento de que se os demais artistas natildeo satildeo despreziacuteveis certamente os

filoacutesofos tambeacutem natildeo satildeo (Ibid 1397b 16-23 36-37) Outro lugar consiste em apropriar-

se das palavras pronunciadas contra o orador e voltaacute-las contra o adversaacuterio Este

argumento tem por objetivo desacreditar o adversaacuterio atribuindo-lhe tudo aquilo que foi

recriminado no orador (Ibid 1398a 7-24) Existe tambeacutem o lugar-comum referente agrave

induccedilatildeo por exemplo natildeo se pode confiar os proacuteprios cavalos agravequeles que cuidam mal

dos cavalos dos outros e natildeo se pode confiar os proacuteprios navios aos que fizeram afundar

os navios alheios Disso conclui-se que a quem zela mal pela seguranccedila alheia natildeo eacute

proveitoso confiar-lhe a proacutepria (Ibid 1398b 7-13)

No livro III da Retoacuterica o Estagirita expotildee outro motivo pelo qual eacute necessaacuterio levar

em consideraccedilatildeo o πάθος na praacutetica retoacuterica qual seja a atenccedilatildeo que deve ser

necessariamente conferida agrave expressatildeo enunciativa10 (λέξις)11 A λέξις diz respeito agrave

maneira pela qual o conteuacutedo do discurso deve ser apresentado ao auditoacuterio uma vez que

natildeo basta ter domiacutenio o teoacuterico do assunto mas tambeacutem eacute necessaacuterio expocirc-lo de forma

conveniente (Ibid 1403b 17-20) Aleacutem disso trecircs aspectos gerais precisam ser

observados a fim de que a expressatildeo enunciativa possa ser empregada de maneira

eficiente a saber o volume (μέγεθος) a harmonia (ἁρμονία) e o ritmo (ῥυθμός) Por isso

aqueles que entre os competidores de recitaccedilatildeo de poesias empregavam estes trecircs

aspectos tendiam a conquistar quase todos os precircmios e assim como os atores possuiacuteam

mais influecircncia nas competiccedilotildees poeacuteticas do que os proacuteprios autores o mesmo ocorreria

10 Para E M Cope o uso da expressatildeo enunciativa se justificaria em certa medida pelo julgamento depravado e pelo gosto de um puacuteblico comum que demandaria algum tipo de ldquolisonjardquo (COPE 1867 5) ldquoBut besides this scientific use of them there is another reason for not excluding appeals to the feelings from the practice of rhetoric they are justified to a cert extent like the attention which must necessarily be paid to composition and language harmony and rhythm of the speech (III15) the depraved judgment and taste of an ordinary audience requires this kind of lsquoflatteryrsquo as Plato calls it and the speaker is therefore obliged to give away to relax the rigorous observance of the rules of his art and humor their perverted inclinationsrdquo

11 Alguns autores optam por traduzir a palavra grega ldquoλέξιςrdquo por ldquoestilordquo ou ldquoelocuccedilatildeordquo

nos debates retoacutericos (Ibid 1403b 38-44)

Com efeito a expressatildeo enunciativa quando eacute empregada corretamente abrangendo

os trecircs aspectos jaacute considerados estaraacute inserida no plano da representaccedilatildeo teatral cuja

inserccedilatildeo ocorre em virtude da pronunciaccedilatildeo (ὑπόκρισις) Esta refere-se propriamente ao

ato de pronunciar um discurso em puacuteblico incluindo um cabedal de teacutecnicas que vatildeo

desde a projeccedilatildeo da voz ao proacuteprio movimento corporal do orador A pronunciaccedilatildeo que

identifica-se com a arte do ator eacute um elemento indispensaacutevel na praacutetica retoacuterica porque

uma boa pronunciaccedilatildeo pode suscitar o mesmo efeito nos ouvintes de um discurso que a

representaccedilatildeo teatral causaria numa plateia (Ibid 1404a 17-18) Nos concursos de

poesias a maioria dos precircmios era conquistada por aqueles que empregavam eficazmente

a pronunciaccedilatildeo razatildeo pela qual alguns poetas embora proferindo coisas fuacuteteis

adquiriram renome em decorrecircncia da vivacidade com que expressavam o seu conteuacutedo

(Ibid 1404a 25-36)

Na verdade haacute discursos escritos que obtecircm muito mais efeito pelo enunciado do que pelas ideias Os poetas foram os primeiros como seria natural a dar um impulso a este aspecto Efetivamente palavras satildeo imitaccedilotildees e a voz eacute de todos os nossos oacutergatildeos o mais apropriado agrave imitaccedilatildeo Por isso as artes entatildeo estabelecidas foram a rapsoacutedia e a representaccedilatildeo teatral aleacutem de outras mais E uma vez que os poetas embora dizendo coisas fuacuteteis pareciam obter renome graccedilas agrave sua expressatildeo por esta mesma razatildeo foi um tipo de expressatildeo poeacutetica o primeiro a surgir como a de Goacutergias

Na visatildeo de Aristoacuteteles assim como alguns poetas conquistaram a fama atraveacutes de

sua performance teatral os bons oradores tambeacutem deveriam buscar a adesatildeo de seus

ouvintes atraveacutes da boa pronunciaccedilatildeo posto que os discursos tornam-se persuasivos natildeo

somente pelas ideias que veiculam mas pela forma como satildeo pronunciados Todavia

todos os esforccedilos do Estagirita no estudo da expressatildeo enunciativa vatildeo no sentido de

mostrar sua relevacircncia para o ultrapassamento das dificuldades que obstam o bom

esclarecimento do ouvinte que amiuacutede eacute de baixo niacutevel intelectual (Ibid 1404a 9) a fim

de que o exerciacutecio de julgamento possa ocorrer em condiccedilotildees favoraacuteveis agrave vitoacuteria da

verdade e da justiccedila

Por fim Aristoacuteteles dedica os uacuteltimos sete capiacutetulos da Retoacuterica ao estudo das

partes do discurso (τάξις) O objetivo de dividir o discurso em partes eacute possibilitar a

demonstraccedilatildeo entimemaacutetica jaacute que de outra forma seria difiacutecil recordar num momento

tudo o que se disse a respeito de um tema ao passo que em partes eacute mais faacutecil A

disposiccedilatildeo do discurso em partes tambeacutem possui uma funccedilatildeo econocircmica pois facilita a

tarefa do orador de nada omitir sem fazer qualquer repeticcedilatildeo Aliaacutes pela divisatildeo do

discurso o orador faz o auditoacuterio encaminhar-se pelas vias e pelas etapas que escolheu

conduzindo-o para o objetivo proposto Para tanto Aristoacuteteles segue a divisatildeo claacutessica do

discurso jaacute presente na concepccedilatildeo retoacuterica de Isoacutecrates a saber o proecircmio (προοίμιον)12

a exposiccedilatildeo (πρόθεσις) as provas (πίστεις) e o epiacutelogo (ἐπίλογος)

O προοίμιον equivale ao comeccedilo do discurso e serve como preparaccedilatildeo do caminho

que se segue depois Sua funccedilatildeo eacute essencialmente faacutetica tornar o auditoacuterio doacutecil

benevolente e atencioso pois tanto mais interesse existiraacute pelo discurso quanto mais ele

for relevante causar surpresas despertar admiraccedilatildeo e soar agradaacutevel Desse modo no

proecircmio o papel do ἦθος assume toda sua importacircncia pois o escopo principal desta

etapa eacute seduzir os ouvintes e conquistar imediatamente sua simpatia Enfim a funccedilatildeo do

proecircmio consiste em apresentar o orador como uma pessoa respeitaacutevel (Ibid 1415a 48-

51)

Para Aristoacuteteles ficariam sem efeito tanto o discurso que expotildee algo sem fazer uma

demonstraccedilatildeo quanto o discurso que demonstra algo sem ter previamente exposto o

assunto Por isso eacute imprescindiacutevel a πρόθεσις ou seja a exposiccedilatildeo ou comunicaccedilatildeo do

assunto a ser desenvolvido na parte subsequente do discurso a qual se refere agraves πίστεις

Eacute necessaacuterio para Aristoacuteteles que as πίστεις sejam demonstrativas (Ibid 1417b 29) razatildeo

pela qual precisam estar pautadas no emprego do entimema e do exemplo O entimema

conforme jaacute examinado eacute uma espeacutecie de silogismo que se fundamenta sobre

probabilidades e sinais ao passo que o exemplo consiste na demonstraccedilatildeo de alguma tese

particular com base na consideraccedilatildeo de muitos casos semelhantes Nas πίστεις satildeo os

fatos que entram em causa os quais satildeo concebidos unicamente sob o ponto de vista das

provas loacutegicas (λόγος) No entanto a ecircnfase que deve ser dada ao λόγος natildeo exclui nesta

etapa do discurso o emprego do πάθος ou seja o apelo emocional conquanto natildeo se

demore muito neste tipo de prova Assim ainda que o ἦθος e o πάθος tenham

respectivamente seu assento proacuteprio no proecircmio e no epiacutelogo onde satildeo mais comuns

possuem tambeacutem lugar nas demais partes do discurso

A uacuteltima parte do discurso consiste no ἐπίλογος que basicamente deve encerrar

12 Alguns autores preferem empregar o termo ldquoexoacuterdiordquo em vez de ldquoproecircmiordquo para referir-se ao iniacutecio do discurso

quatro caracteriacutesticas (Ibid 1419b 14-1420a 10) 1) tornar o ouvinte favoraacutevel agrave causa

do orador e desfavoraacutevel para agrave causa do adversaacuterio o que o orador busca por um lado

apresentando-se como homem de bem diante dos ouvintes e por outro apresentando o

adversaacuterio como perverso 2) amplificar ou minimizar 3) trazer agrave memoacuteria o que foi

exposto pelo discurso isto eacute retomar o que foi dito resumir e finalmente 4) provocar

determinadas emoccedilotildees como a piedade a ira o oacutedio a inveja a emulaccedilatildeo entre outras

Embora o apelo agraves emoccedilotildees seja predominante no epiacutelogo este natildeo exclui a argumentaccedilatildeo

entimemaacutetica pelo contraacuterio eacute a uniatildeo das provas loacutegicas com as provas psicoloacutegicas que

caracteriza a etapa final do discurso pois eacute o momento por excelecircncia em que a

afetividade se une com a argumentaccedilatildeo (REBOUL 2004 60)

Ateacute aqui foi possiacutevel constatar duas redaccedilotildees distintas pertencentes a dois periacuteodos

diferentes do pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles Uma primeira que pode ser designada

por ldquoretoacuterica antigardquo intimamente ligada ao pensamento de Platatildeo a qual eacute expressa

atraveacutes do diaacutelogo exoteacuterico Grilos e demais textos que natildeo foram conservados dos quais

soacute restaram poucas doxografias A segunda por contraste com a anterior poderia ser

denominada ldquoretoacuterica recenterdquo Esta que eacute expressa nos trecircs livros da Retoacuterica se afasta

substancialmente do pensamento de Platatildeo e aproxima-se em muitos aspectos da sofiacutestica

Isto posto conveacutem adiante compreendermos as possiacuteveis razotildees desse afastamento e o

que distingue a retoacuterica de Platatildeo da retoacuterica de Aristoacuteteles Outrossim seraacute necessaacuterio

analisar em que medida a sofiacutestica influenciou o pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles uma

vez que o filoacutesofo menciona uma seacuterie de sofistas como os descobridores dos primeiros

princiacutepios da arte retoacuterica os quais teriam contribuiacutedo para o seu progresso enquanto que

o proacuteprio Aristoacuteteles se posiciona como um simples herdeiro dessa longa sucessatildeo de

homens Considerando-se pois que houve no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles duas

fases distintas uma fase juvenil intimamente ligada agrave filosofia de Platatildeo e uma fase que

representaria a maturidade do seu pensamento a qual teria recebido forte atuaccedilatildeo do

movimento sofista pode-se sustentar com plausibilidade que a arte retoacuterica de Aristoacuteteles

situa-se equidistante tanto em relaccedilatildeo agrave posiccedilatildeo de Platatildeo quanto agrave posiccedilatildeo dos sofistas

Esta perspectiva eacute endossada por Barbara Cassin a qual aventa que a retoacuterica

recente de Aristoacuteteles apareceria como uma espeacutecie de conciliaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo

retoacuterica de Platatildeo e a dos sofistas No entanto com o intuito de preservar a retoacuterica da

sofiacutestica que eacute sempre alvo de suas objeccedilotildees e para que a poliacutetica seja devidamente

resguardada do relativismo o Estagirita teria atribuiacutedo agrave arte retoacuterica uma funccedilatildeo eacutetico-

poliacutetica que consistiria no triunfo natural do verdadeiro e do justo Para Cassin

Aristoacuteteles define a linguagem de forma a que a sofiacutestica seja definitivamente privada de

palavra de filosofia e ateacute de humanidade Ao mesmo tempo o sistema e as doutrinas

aristoteacutelicas apareceriam como o resultado de uma difiacutecil negociaccedilatildeo entre Platatildeo e a

sofiacutestica que permite por exemplo a exclusatildeo bem-sucedida da sofiacutestica para a literatura

mas que o obriga a compartilhar teses com ela principalmente sobre o valor atribuiacutedo ao

consenso dos cidadatildeos (CASSIN 1999 14) Assim o pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles

aproximar-se-ia da sofiacutestica e deliberadamente seria antiplatocircnico por duas razotildees

principais pela escolha do λόγος como traccedilo dominante da condiccedilatildeo poliacutetica do homem

e pela maneira de articular a pluralidade das diferenccedilas dos pontos de vista e de fala na

unidade plural da cidade No entanto o pensamento de Aristoacuteteles eacute antisofista em sua

interpretaccedilatildeo do λόγος e no que se pode designar de autosubordinaccedilatildeo do retoacuterico ao

poliacutetico do linguageiro e do discursivo ao loacutegico e ao racional (Ibid 1999 48) Aleacutem

disso Cassin sustenta que para Aristoacuteteles o sofista que falaria simplesmente pelo prazer

de falar seria e natildeo seria um homem pois se ele persevera deveria ser comparado com

uma planta jaacute que seria necessaacuterio ao Estagirita natildeo soacute decidir de uma vez por todas que

falar eacute significar mas ainda fazer no λόγος um enxerto eacutetico ndash a introduccedilatildeo na arte retoacuterica

de um suplemento de boa intenccedilatildeo a fim de que a retoacuterica escape agrave sofiacutestica e para que a

poliacutetica seja preservada do relativismo (Ibid 199916)

Pode-se concluir que a envergadura eacutetico-poliacutetica da retoacuterica de Aristoacuteteles que

consiste na defesa da verdade e da justiccedila na cidade e na admissatildeo das crenccedilas geralmente

aceitas pelos cidadatildeos se afigura no nuacutecleo da conciliaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo retoacuterica de

Platatildeo e a dos sofistas Este nuacutecleo obviamente teraacute de ser analisado em toda a sua

complexidade que implica na investigaccedilatildeo meticulosa das noccedilotildees que o compotildee tanto a

partir dos textos de Platatildeo como daqueles que satildeo atribuiacutedos aos principais sofistas a fim

de demonstrar sua articulaccedilatildeo no tecido da teoria retoacuterica de Aristoacuteteles Para tanto o

discurso que Soacutecrates profere em sua proacutepria defesa diante do tribunal de Atenas em 399

a C e ao qual Platatildeo dedica a obra Defesa de Soacutecrates nos pode fornecer em certa

medida as primeiras indicaccedilotildees para oportunamente compreendermos tanto a posiccedilatildeo de

Platatildeo quanto a posiccedilatildeo de Aristoacuteteles acerca da arte retoacuterica Ele tambeacutem eacute elucidativo

no que concerne agraves razotildees pelas quais Aristoacuteteles teria se afastado da concepccedilatildeo retoacuterica

defendida por Platatildeo bem como na explicitaccedilatildeo do efeito que o movimento sofista teria

exercido sobre o pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles

2 A concepccedilatildeo de retoacuterica no diaacutelogo platocircnico Defesa de Soacutecrates

21 O problema da fidedignidade do discurso judicial de Soacutecrates

O processo judicial contra Soacutecrates ocorreu na cidade de Atenas no ano de 399 aC

com a peculiaridade de que diferentemente de uma acusaccedilatildeo privada feita pela parte

lesada ou por seu representante Soacutecrates foi constrangido a responder a uma acusaccedilatildeo

puacuteblica que era prerrogativa de qualquer cidadatildeo honesto Todavia com base no conjunto

das acusaccedilotildees contra Soacutecrates conforme satildeo relatadas por Platatildeo e Xenofonte pode-se

identificar trecircs momentos sucessivos de acusaccedilotildees que se escalonaratildeo por trinta anos Os

ataques presentes na comeacutedia As Nuvens de Aristoacutefanes (Nuv 423) contados por Platatildeo

expressamente entre os ldquoprimeiros acusadoresrdquo de Soacutecrates (Def Soacutec 18b) Na comeacutedia

em apreccedilo Aristoacutefanes oferece uma caricatura de Soacutecrates a qual o associa a alguns

aspectos importantes da vida intelectual de sua eacutepoca (agrave sofiacutestica e agrave filosofia da natureza)

e eacute altamente provaacutevel que tenha contribuiacutedo significativamente para o clima de

desconfianccedila e hostilidade que finalmente levou agrave sua condenaccedilatildeo e morte O ato oficial

de acusaccedilatildeo deposto por Meleto Acircnito e Liacutecon que adiante seraacute examinado E as

acusaccedilotildees de caraacuteter poliacutetico expressas pelo orador e sofista Poliacutecrates depois de 394 aC

Este teria escrito um relato hostil contra Soacutecrates num panfleto hoje perdido chamado

Κατηγορία Σωκράτους ou Acusaccedilatildeo de Soacutecrates (TAYLOR 2010 35) Isto posto aos

setenta anos de idade Soacutecrates foi levado a julgamento por supostamente corromper a

juventude e natildeo acreditar nos deuses da cidade de Atenas13 (Def Soacutec 24b-c)

Nada mais preciso dizer para defender-me diante de voacutes das mentiras de meus primeiros acusadores Tentarei em seguida defender-me de Meleto esse honrado e prestante cidadatildeo como se proclama e dos acusadores recentes Novamente jaacute que se trata de outros acusadores tomemos tambeacutem o texto de sua acusaccedilatildeo Reza ele mais

13 Em sua obra Ditos e Feitos Memoraacuteveis de Soacutecrates (conhecida tambeacutem como ldquoMemorabiliardquo) Xenofonte defende Soacutecrates da acusaccedilatildeo de natildeo venerar os deuses cultuados por Atenas nos seguintes termos (Mem I I 1-3) ldquoA que testemunha afinal recorreram para provar que ele natildeo honrava os deuses do Estado se fazia sacrifiacutecios frequumlentes agraves abertas ora em sua casa ora nos altares puacuteblicos se praceiramente recorria agrave arte divinatoacuteria Corria a voz ateada pelo proacuteprio Soacutecrates de que o inspirava um democircnio eis sem duacutevida por que o criminaram de introduzir extravagacircncias demoniacuteacas No entanto natildeo introduzia ele mais novidades do que todos aqueles que crecircem na adivinhaccedilatildeo e interrogam o vocirco das aves as vozes os signos e as entranhas das viacutetimas natildeo supotildeem nas aves nem naqueles com que se encontram o conhecimento do que buscam mas acreditam que por seu intermeacutedio lho revelam os deuses Soacutecrates tambeacutem pensava o mesmordquo

ou menos assim ldquoSoacutecrates eacute reacuteu de corromper a juventude e de natildeo crer nos deuses em que o povo crecirc e sim em outras divindades novasrdquo

O principal acusador de Soacutecrates foi Meleto seguido por Acircnito e Liacutecon Segundo a

afirmaccedilatildeo de Soacutecrates Meleto tomou as dores dos poetas Acircnito as dores dos artesatildeos e

dos poliacuteticos e Liacutecon a dos oradores (Def Soacutec 24a) Nominalmente o principal

acusador foi Meleto de quem pouco se sabe o acusador secundaacuterio era o igualmente

ignoto Liacutecon Acircnito por sua vez era um prestigiado cidadatildeo de Atenas que entre 403 e

397 aC foi estratego uma funccedilatildeo de elevada responsabilidade na cidade (MARTENS

2013 116)

C C W Taylor sustenta que o primeiro item da peccedila acusatoacuteria contra Soacutecrates

fundamenta-se na suposta influecircncia poliacutetica do filoacutesofo sobre aqueles de seus disciacutepulos

que haviam se tornado famosos por condutas antiatenienses ou antidemocraacuteticas Em

virtude da maacute fama de Alcibiacuteades Criacutetias Caacutermides e outros disciacutepulos conhecidos de

Soacutecrates como Fedro e Erixiacutemaco (ambos implicados juntamente com outros do ciacuterculo

socraacutetico em um ceacutelebre escacircndalo religioso em 415 aC) seria muito plausiacutevel que a

acusaccedilatildeo de Meleto Acircnito e Liacutecon mencionasse os crimes deles para difamar Soacutecrates

imputando-lhe a corrupccedilatildeo da juventude No ano de 403 aC foi aprovada uma lei

proibindo que pessoas fossem acusadas de crimes cometidos anteriormente mas isto natildeo

impedia a menccedilatildeo de eventos passados a fim de exemplificar o caraacuteter do reacuteu Dessarte

eacute praticamente certo que a acusaccedilatildeo de corromper a juventude possuiacutea no caso de Soacutecrates

uma dimensatildeo poliacutetica No entanto isso natildeo permitiria concluir que as acusaccedilotildees

especificamente religiosas natildeo fossem tambeacutem plausiacuteveis ou que a suposta corrupccedilatildeo da

juventude natildeo tivesse em si mesma um aspecto religioso (TAYLOR 2010 23-24)

Por volta de 432 aC foi sancionada na Assembleia popular (ἐκκλησία) sob a

proposta do adivinho profissional Dioacutepeites a lei que condena a impiedade (ἀσέβεια) de

acordo com a qual constitui crime grave divulgar doutrinas puramente fiacutesicas sobre a

natureza dos astros ldquodivinosrdquo e negar a existecircncia dos deuses Agrave vista disso duvidar do

sobrenatural e ensinar a astronomia eram crimes passiacuteveis de perseguiccedilatildeo penal O

filoacutesofo Anaxaacutegoras e o sofista Protaacutegoras foram conhecidas viacutetimas dessa lei Nos

tempos inquietos apoacutes a Guerra do Peloponeso a filosofia da natureza de Anaxaacutegoras e

a retoacuterica dos sofistas pareceram a muitos atenienses corromper as convicccedilotildees

fundamentais que sustentavam a comunidade poliacutetica e uma vez que os processos de

ἀσέβεια eram levados muito a seacuterio tanto Anaxaacutegoras quanto Protaacutegoras soacute puderam ser

salvos mediante a fuga De fato a atividade filosoacutefica de Soacutecrates oferecia motivos para

a associaccedilatildeo do seu pensamento com o movimento sofista de sua eacutepoca Ele tambeacutem

havia se aproximado do partido oligarca proacute-espartanos Seus acusadores por

conseguinte possivelmente ligaram ambas as coisas entre si e consideraram a atividade

ldquoiacutempiardquo de Soacutecrates como responsaacutevel pela decadecircncia de Atenas e pela vitoacuteria da

oligarquia proacute-espartanos A despeito disso ele permaneceu fiel agraves suas convicccedilotildees

filosoacuteficas e natildeo se deixou desviar em virtude de um erro judicial (MARTENS 2013

119-122)

Com efeito as acusaccedilotildees relativas a crimes religiosos ou capitais eram da

competecircncia do ldquoarconte basileurdquo um alto magistrado que na condiccedilatildeo de βασιλεύς

assumiu na Atenas democraacutetica as funccedilotildees da antiga realeza A audiecircncia principal

acontecia diante de um tribunal de justiccedila (δικαστήριον) composto de 501 jurados os

quais eram definidos por sorteio com base numa lista de 6 mil voluntaacuterios todos cidadatildeos

atenienses escolhidos pela Assembleia popular (Ibid 2013 117) Na primeira votaccedilatildeo

dos jurados Soacutecrates foi considerado culpado pela estreita maioria faltando-lhe somente

30 votos para ser absolvido (Def Soacutec 36a) na votaccedilatildeo decisiva sobre a pena de morte

proposta pelos acusadores Soacutecrates mais uma vez eacute condenado pela maioria dos jurados

provocados provavelmente por sua contraproposta que estipulava uma pena de apenas de

30 minas de prata (Ibid 38b) Aliaacutes a execuccedilatildeo de Soacutecrates soacute ocorreu um bom tempo

depois de sua condenaccedilatildeo pois era preciso esperar pelo retorno do navio enviado todo

ano agrave ilha de Delos para agradecer a Apolo sua ajuda a Teseu na salvaccedilatildeo dos refeacutens

atenienses para fora do labirinto do Minotauro E durante a missatildeo festiva natildeo era liacutecito

que a cidade de Atenas fosse conspurcada por qualquer execuccedilatildeo

Antes de passar agrave anaacutelise do discurso judicial de Soacutecrates conveacutem lembrar as

duacutevidas levantadas por muitos estudiosos dos diaacutelogos platocircnicos quanto agrave fidedignidade

da defesa de Soacutecrates tal como apresentada por Platatildeo no opuacutesculo homocircnimo Como eacute

sabido paira sobre esse diaacutelogo a suspeita de que antes que restringir-se a reproduzir o

discurso proferido pelo Soacutecrates histoacuterico ele encerraria tambeacutem e talvez

fundamentalmente formulaccedilotildees e argumentos de autoria do proacuteprio Platatildeo De acordo

com o exame de Ekkehard Martens surgiram trecircs posicionamentos distintos que

procuraram oferecer uma resposta satisfatoacuteria para o problema em consideraccedilatildeo Num

extremo haveria a hipoacutetese de que todos os diaacutelogos platocircnicos satildeo o produto da invenccedilatildeo

de Platatildeo de tal modo que o Soacutecrates histoacuterico seria insignificante No outro extremo

haveria a hipoacutetese de que o Soacutecrates de Platatildeo seria sem qualquer restriccedilatildeo o Soacutecrates

histoacuterico Finalmente entre os dois extremos haveria a hipoacutetese que sustenta tanto a

existecircncia de diaacutelogos socraacuteticos quanto a existecircncia de diaacutelogos platocircnicos Desse modo

conforme esta uacuteltima hipoacutetese os diaacutelogos de Platatildeo estariam divididos em dois grupos

distintos os diaacutelogos da fase inicial e os diaacutelogos da fase intermediaacuteria e tardia

(MARTENS 2013 27-28)

R M Hare subscreve esta uacuteltima hipoacutetese e assegura que o primeiro grupo reuniria

os diaacutelogos propriamente socraacuteticos Estes teriam sido escritos nos anos que se seguiram

agrave morte de Soacutecrates e apresentariam amiuacutede um caraacuteter aporeacutetico ou seja sua conclusatildeo

seria um enigma (ἀπορία) Satildeo eles Defesa de Soacutecrates Criacuteton Eutiacutefron A Repuacuteblica

(Livro I) Laques Liacutesis Caacutermides Teages Hiacutepias Menor Hiacutepias Maior Iacuteon e

Alcebiacuteades Maior No diaacutelogo Defesa de Soacutecrates que nos interessa mais de perto

Soacutecrates apresenta enigmas em especial sobre virtudes e boas qualidades particulares e

sobre as relaccedilotildees destas entre si e com o conhecimento e os enigmas nunca satildeo

resolvidos14 O segundo grupo pertenceria aos diaacutelogos mais longos de Platatildeo os quais

se caracterizariam pela exposiccedilatildeo de doutrinas positivas e substantivas sobre a

moralidade a educaccedilatildeo a retoacuterica a poliacutetica etc Seriam eles Protaacutegoras Mecircnon

Goacutergias O Banquete Feacutedon os restantes livros de A Repuacuteblica Craacutetilo Leis

Parmecircnides O Sofista O Poliacutetico Teeteto Filebo Fedro e Timeu (HARE 2000 35-36)

E com o intuito de solucionar a tensatildeo que opotildee o Soacutecrates questionador e

ignorante dos diaacutelogos da fase inicial ao Soacutecrates saacutebio e metafiacutesico dos diaacutelogos da fase

madura de Platatildeo Gregory Vlastos reforccedila a distinccedilatildeo entre um Soacutecrates anterior que

seria histoacuterico e um Soacutecrates posterior que seria o produto da imaginaccedilatildeo de Platatildeo Para

Vlastos o filoacutesofo Soacutecrates da primeira fase seria moral e ironista enquanto que o

filoacutesofo Soacutecrates da fase posterior seria dogmaacutetico e proponente de doutrinas metafiacutesicas

a exemplo da doutrina dos dois mundos Em sua obra Socrates Ironist and Moral

Philosopher ele procura analisar os diaacutelogos de Platatildeo a partir da visatildeo criacutetica de

Aristoacuteteles o qual atribui ao filoacutesofo Soacutecrates uma posiccedilatildeo toda proacutepria autocircnoma

Sendo assim o Soacutecrates ironista e moralista dos diaacutelogos platocircnicos da fase inicial seria

positivamente histoacuterico enquanto que nos diaacutelogos da fase intermediaacuteria e tardia ele seria

14 Um dos enigmas expostos por Soacutecrates diz respeito ao destino da alma humana depois da morte Ele afirma que morrer eacute uma de duas coisas ou a morte eacute igual a nada e natildeo sente nenhuma sensaccedilatildeo de coisa alguma como um sono em que o adormecido nada vecirc nem sonha ou trata-se de uma mudanccedila uma emigraccedilatildeo da alma para o Hades Em face deste enigma Soacutecrates declara que independente do destino de sua alma depois da morte eacute certo que para o homem bom natildeo haacute nenhum mal (Def Soacutec 40c-41a 41c)

apenas o porta-voz das doutrinas metafiacutesicas de Platatildeo (VLASTOS 1991 47-49) E haja

vista a hipoacutetese segundo a qual eacute possiacutevel atribuir ao Soacutecrates dos diaacutelogos da fase inicial

de Platatildeo certas posiccedilotildees autocircnomas levemos a cabo a anaacutelise do diaacutelogo Defesa de

Soacutecrates a fim de compreendermos as concepccedilotildees de Soacutecrates especificamente sobre a

arte retoacuterica

Em sua introduccedilatildeo ao diaacutelogo Defesa de Soacutecrates W R M Lamb15 aventa a

elevada probabilidade de que o conteuacutedo essencial do discurso de Soacutecrates tenha sido

pronunciado por este embora natildeo fosse originalmente tatildeo sofisticado quanto o registro

elaborado por Platatildeo Para corroborar o seu ponto de vista Lamb propotildee os seguintes

argumentos os quais seratildeo suficientes como preparaccedilatildeo para o assunto que

fundamentalmente nos interessa 1) o procedimento socraacutetico na Defesa de Soacutecrates

corresponde agrave maneira usual de Soacutecrates se expressar conforme se depreende dos

diversos relatos de Platatildeo e de Xenofonte 2) natildeo existe nada de inconsistente no discurso

de Soacutecrates com o que se conhece do seu pensamento sobretudo em relaccedilatildeo agrave doutrina

de Platatildeo 3) finalmente o registro da defesa de Soacutecrates refletiria o propoacutesito de

apresentaacute-lo sob uma luz verdadeira e favoraacutevel para a posteridade e isto dificilmente

poderia ser obtido atraveacutes da publicaccedilatildeo de uma ficccedilatildeo aliaacutes muitos atenienses

lembravam-se do que ocorrera com Soacutecrates no tempo da publicaccedilatildeo do diaacutelogo o qual

possivelmente natildeo estava muito distante do julgamento do filoacutesofo

Em consonacircncia com os argumentos acima Ekkehard Martens sustenta que Platatildeo

teria escrito o diaacutelogo Defesa de Soacutecrates para que seu mestre natildeo caiacutesse no

esquecimento A defesa filosoacutefica de Soacutecrates natildeo exclui que ele tambeacutem quisesse

defender objetivamente Soacutecrates das acusaccedilotildees apresentadas Dessarte Platatildeo buscaria

oferecer provas de que Soacutecrates natildeo tinha nada a ver nem com a nova filosofia da natureza

nem com a praacutetica docente sofiacutestica Aleacutem disso ele queria demonstrar que Soacutecrates natildeo

havia sido partidaacuterio dos oligarcas mas tentara estabelecer sobre uma nova base toda a

poliacutetica cotidiana inclusive a democracia Desse modo a criacutetica de Soacutecrates agrave democracia

no Livro VIII de A Repuacuteblica natildeo deveria ser atribuiacuteda ao Soacutecrates histoacuterico e sim

entendida como uma concepccedilatildeo exclusiva de Platatildeo No entanto se o Soacutecrates histoacuterico

de fato se defendeu da maneira peculiar apresentada por Platatildeo isto natildeo poderia ser

15 PLATO The Apology pp 64-65

verificado mas certamente este teria reproduzido o conteuacutedo essencial do discurso

daquele (MARTENS 2013 122-123)

Outrossim conforme frisa George A Kennedy a Defesa de Soacutecrates natildeo

corresponde exatamente agravequilo que Soacutecrates pronunciou e os criacuteticos tecircm variado

grandemente quanto a seu parecer sobre o grau de invenccedilatildeo que se deve atribuir a Platatildeo

Mesmo assim satildeo consideraacuteveis os indiacutecios para sustentar a hipoacutetese de que o Soacutecrates

histoacuterico natildeo pronunciaria um discurso em sua defesa nos moldes da teacutecnica retoacuterica

empregada pelos oradores do seu tempo Kennedy menciona o registro de Xenofonte em

sua Apologia de Soacutecrates segundo o qual em virtude da influecircncia do deus (δαιμόνιον)

Soacutecrates teria se dirigido para o tribunal ateniense sem preocupar-se minimamente com a

preparaccedilatildeo de sua defesa afirmaccedilatildeo que se harmoniza perfeitamente com a de Platatildeo

Kennedy tambeacutem enfatiza que Xenofonte percebe que Soacutecrates poderia ter defendido a

si mesmo de tal modo a persuadir efetivamente os juiacutezes mas por convicccedilotildees morais natildeo

o teria feito Aliaacutes um grande nuacutemero de defesas publicadas a respeito de Soacutecrates depois

de sua morte bem como as tentativas de Platatildeo no Menexeno e no Fedro revelam que

Soacutecrates poderia construir um bom discurso retoacuterico se de fato o desejasse (KENNEDY

1963 149-150)

Nickolas Pappas salienta que os tribunais de Atenas natildeo tinham juiacutezes para instruir

o processo e nenhum advogado profissional que representasse clientes Primeiramente

aquele que trazia a acusaccedilatildeo falava perante o juacuteri identificando a lei que o reacuteu havia

supostamente transgredido e apresentando testemunhas para sustentar o seu caso O reacuteu

por sua vez respondia com seu proacuteprio discurso e suas testemunhas E ambos os lados

falava com restriccedilotildees de tempo Depois disso o juacuteri votava seu veredicto e quando o reacuteu

era considerado culpado votava uma segunda vez para determinar a sentenccedila Isto posto

tanto no tribunal como na Assembleia a habilidade de falar persuasivamente poderia

significar a diferenccedila entre a vitoacuteria e a derrota ou entre a vida e a morte Daiacute a

importacircncia de especialistas em retoacuterica Em Atenas os filhos das pessoas abastadas e

poderosas estudavam a teacutecnica retoacuterica com os sofistas a fim de tornarem-se oradores

persuasivos E o que estes faziam de um certo modo natildeo era verdadeiro nem honesto

mas mesmo assim funcionava (PAPPAS 2017 26-27)

Dioacutegenes Laeacutercio destaca na atitude de Soacutecrates em face do seu julgamento o

desprezo agrave teacutecnica retoacuterica com vistas agrave persuasatildeo da audiecircncia noccedilatildeo que seraacute capital

para a anaacutelise subsequente de seu discurso judicial Conforme Laeacutercio Liacutesias teria

redigido uma excelente defesa para o julgamento de Soacutecrates nos moldes da teacutecnica

retoacuterica praticada pelos oradores mais haacutebeis Liacutesias seguia aqui a praacutetica corrente naquele

contexto em que desprovidos de advogados os acusados recorriam para se defenderem

aos logoacutegrafos (λογογράφος) isto eacute indiviacuteduos pagos para redigir a defesa que teria de

ser pronunciada diante do tribunal No caso presente depois de ler toda a defesa elaborada

por Liacutesias Soacutecrates teria declinado ponderando que a despeito da beleza do discurso

este natildeo seria adequado a seu caso Para Laeacutercio a composiccedilatildeo de Liacutesias era

evidentemente mais judicial do que filosoacutefica e por essa razatildeo Soacutecrates a teria rejeitado

A composiccedilatildeo em apreccedilo que provavelmente obedecia com esmero os princiacutepios

usualmente empregados pelos oradores com o intuito de obter a persuasatildeo do auditoacuterio

seria incongruente com o modo de vida do filoacutesofo Escreve Laeacutercio sobre este assunto

(Vid doutr fil il II 5 40)

A declaraccedilatildeo jurada que ainda se conserva tinha o seguinte teor de conformidade com Favorinos em sua obra Metrocircon ldquoEsta acusaccedilatildeo e declaraccedilatildeo eacute jurada por Mecircletos filho de Mecircletos de Pitos contra Soacutecrates filho de Sofroniscos de Alopece Soacutecrates eacute culpado de recusar-se a reconhececer os deuses reconhecidos pelo Estado e de introduzir divindades novas e eacute tambeacutem culpado de corromper a juventude Pena pedida a morterdquo Depois de ter lido toda a sua defesa escrita por Liacutesias o filoacutesofo declarou ldquoUm belo discurso Liacutesias mas natildeo eacute adequado ao meu casordquo Com efeito a composiccedilatildeo de Liacutesias era evidentemente mais forense que filosoacutefica Liacutesias retrucou ldquoSe se trata de um belo discurso como pode faltar-lhe adequaccedilatildeo ao teu casordquo Soacutecrates replicou ldquoOra belos mantos e calccedilados natildeo me seriam tambeacutem inadequadosrdquo

Aleacutem das fontes ateacute aqui apresentadas existe outro indiacutecio que corrobora a

hipoacutetese em consideraccedilatildeo um fragmento de papiro anocircnimo preservado na cidade de

Colocircnia que conteacutem parte de um diaacutelogo entre Soacutecrates e uma pessoa sem nome na cela

de Soacutecrates apoacutes sua condenaccedilatildeo onde se pergunta ao filoacutesofo a razatildeo pela qual ele teria

rejeitado todos os artifiacutecios retoacutericos no seu discurso de defesa (TAYLOR 2010 36)

22 As caracteriacutesticas da retoacuterica de Soacutecrates

Para o estudo da retoacuterica assim como para muitos outros importantes temas da obra

de Platatildeo o diaacutelogo Defesa de Soacutecrates oferece um ponto de partida fundamental O

discurso de defesa comeccedila com as afirmaccedilotildees de Soacutecrates sobre os problemas envolvendo

a retoacuterica As pessoas com o domiacutenio na arte da retoacuterica satildeo descritas por ele como

terrivelmente engenhosas na fala e os acusadores de Soacutecrates assim o caracterizaram em

seu discurso diante o corpo judicial ateniense composto com cerca de 500 cidadatildeos Ele

nega a acusaccedilatildeo e a descreve como a mais vergonhosa das acusaccedilotildees feita por seus

adversaacuterios por isso eles seratildeo refutados por seu proacuteprio discurso judicial Desse modo

em seu uacutenico discurso dirigido agrave multidatildeo poliacutetica da cidade de Atenas de que se tem

registro Soacutecrates comeccedila com uma reflexatildeo a respeito da relaccedilatildeo entre a persuasatildeo e a

verdade e chama a atenccedilatildeo de maneira enfaacutetica para a sua visatildeo sui generis da retoacuterica

No proecircmio de sua defesa (Def Soacutec 17a-18a) isto eacute na introduccedilatildeo de seu discurso

judicial Soacutecrates caracteriza seus adversaacuterios como aqueles que jamais proferiram a

verdade mas somente coisas falsas E apesar desses indiviacuteduos nunca terem proferido a

verdade Soacutecrates reconhece neles um talento a saber a capacidade de falar

persuasivamente Soacutecrates tambeacutem declara que seus adversaacuterios satildeo tatildeo haacutebeis na

capacidade de persuadir seus ouvintes que estatildeo a ponto de persuadi-lo uma vez que natildeo

eacute mais capaz de saber quem realmente eacute poreacutem eles natildeo teriam proferido nenhuma

verdade (Ibid17a)

Com efeito a mentira persuasiva que Soacutecrates atribui a seus adversaacuterios que

mesmo nunca tendo dito a verdade conseguiram convencer seus ouvintes e quase o

proacuteprio Soacutecrates consistia em fazer crer que este era formidaacutevel (δεῖνος) na arte de falar

Ele declara que iraacute desmentir com fatos que efetivamente natildeo eacute um formidaacutevel orador

salvo se seus acusadores chamam de formidaacutevel a quem diz somente a verdade E eacute

contra essa falsa imagem elaborada por seus adversaacuterios os quais seriam mestres na arte

de persuadir que Soacutecrates vai se opor como aquele que diz a verdade prescindindo de

qualquer habilidade persuasiva Desse modo ele se posiciona diante dos seus adversaacuterios

como sendo justamente aquele que diz a verdade e a diz fora da arte da persuasatildeo que eacute

conhecida e praticada por aqueles que o acusam Soacutecrates entatildeo se apresenta como

aquele que estaacute incumbido de expressar unicamente a realidade em total desprezo a toda

teacutecnica retoacuterica (Ibid 17b)

Com efeito natildeo corarem de me haver eu de desmentir prontamente com os fatos ao mostrar-me um orador nada formidaacutevel eis o que me pareceu o maior dos seus descaramentos salvo se essa gente chama formidaacutevel a quem diz a verdade se eacute o que entendem eu caacute admitiria que em contraste com eles sou um orador Seja como for repito-o verdade eles natildeo proferiram nenhuma ou quase nenhuma de mim poreacutem voacutes ides ouvir a verdade inteira Mas natildeo por Zeus Atenienses natildeo ouvireis discursos como os deles aprimorados em nomes e verbos em estilo florido

Prosseguindo em seu discurso Soacutecrates declara que possui setenta anos de idade

que jamais foi citado diante de um tribunal que jamais foi acusado e que tampouco foi

o acusador Com isso ao afirmar que nunca compareceu diante de um tribunal insinua

que o discurso que proferiraacute em sua defesa natildeo pertence agraves formas retoacutericas comumente

praticadas diante das assembleias e dos tribunais E com o intuito de explicar mais

claramente sua posiccedilatildeo Soacutecrates se utiliza da metaacutefora do ldquoestrangeirordquo (ξένος) para

distinguir o seu discurso daquele de seus adversaacuterios (Ibid 17d)

Acontece que venho ao tribunal pela primeira vez aos setenta anos de idade sinto-me assim completamente estrangeiro sem duacutevida me desculpariacuteeis o sotaque e a linguagem de minha criaccedilatildeo

Soacutecrates afirma que nunca esteve acostumado com o gecircnero de eloquecircncia dos

mais haacutebeis oradores uma vez que nunca esteve num local poliacutetico e judicial das

assembleias e dos tribunais sendo um ξένος em relaccedilatildeo a estes ambientes Aleacutem disso

pode-se assegurar que o discurso de Soacutecrates representa o de um ldquoestrangeirordquo em virtude

de certas atitudes que o distinguem dos demais oradores quando se trata de pronunciar

um discurso

Soacutecrates diz que a sua linguagem eacute a mesma que utiliza nas praccedilas puacuteblicas nos

comeacutercios ou em qualquer outro local Desse modo a linguagem de Soacutecrates natildeo estaria

em descontinuidade (de vocabulaacuterio e de forma de construccedilatildeo) com a linguagem que se

emprega cotidianamente e esta caracteriacutestica constitui a primeira diferenccedila entre sua

linguagem e a dos demais oradores (Ibid 17c)

Faccedilo-vos no entanto um pedido Atenienses uma suacuteplica premente se ouvirdes na minha defesa a mesma linguagem que habitualmente emprego na praccedila junto das bancas onde tantos dentre voacutes me tendes escutado e noutros lugares natildeo a estranheis nem vos amotineis por isso

Soacutecrates tambeacutem declara que a linguagem que utiliza eacute tal que nada mais eacute que a

seacuterie de palavras e sentenccedilas que se apresentam agrave sua alma por isso ele procura falar de

acordo com as expressotildees que surgem espontaneamente A linguagem de Soacutecrates natildeo

faria portanto mais do que traduzir prontamente e sem nenhuma reconstruccedilatildeo nem

artifiacutecio retoacuterico o movimento natural do pensamento Ela seria uma expressatildeo

espontacircnea do que lhe vai na alma nos termos que lhe ocorrem (Ibid 17b-c)

Outra caracteriacutestica que Soacutecrates sustenta distingui-lo dos demais oradores consiste

em se utilizar de uma linguagem que procura exprimir com toda fidedignidade

exatamente aquilo que quem a profere acredita ser verdadeiro Soacutecrates sustenta existir

em suas palavras uma exata correspondecircncia com o que ele supotildee ser correto por isso

pode depositar confianccedila na justiccedila do que enuncia (Ibid 17c) Tal atitude pode ser

definida simplesmente como boa-feacute que eacute tanto um fato psicoloacutegico como uma virtude

moral Como fato psicoloacutegico eacute a conformidade dos atos e das palavras com a vida

interior e como virtude moral consiste no amor agrave verdade em detrimento do amor-

proacuteprio Pode-se assegurar entatildeo que a boa-feacute representa uma crenccedila fiel e uma

fidelidade no que se acredita Isto significa que Soacutecrates jamais pronunciaria um discurso

cujo conteuacutedo fosse contraacuterio agraves suas crenccedilas pessoais somente para agradar seu auditoacuterio

para natildeo o ofender ou ainda para obter eficaacutecia persuasiva por isso depois de ler toda a

defesa elaborada por Liacutesias ele simplesmente a descartou Ele se recusa a enganar a

dissimular a enfeitar ou a utilizar artifiacutecios retoacutericos Trata-se pois de amar a verdade

mais do que a si mesmo o que implica na coragem de pensar e de dizer tudo aquilo que

eacute tido por verdadeiro

Tendo em vista o proecircmio de Soacutecrates momento em que este expotildee a maneira como

pronunciaraacute sua defesa eacute possiacutevel sustentar que a retoacuterica socraacutetica possui trecircs

caracteriacutesticas essenciais a linguagem cotidiana comum vulgar a linguagem da maneira

que se apresenta diretamente na alma e a linguagem em coerecircncia com o que se acredita

ser verdadeiro Sendo assim utilizar-se da linguagem de todos os dias sem floreios

retoacutericos proferir todas as ideias que emergem na alma e somente afirmar o que se

acredita ser verdadeiro satildeo os componentes indissociaacuteveis da retoacuterica socraacutetica

Soacutecrates sustenta que a linguagem tipicamente retoacuterica eacute arquitetada elaborada e

escolhida cuidadosamente para atingir uma finalidade muito especiacutefica a saber a

persuasatildeo dos ouvintes Ademais a linguagem retoacuterica comum eacute dependente de certo

nuacutemero de princiacutepios regras e teacutecnicas Todavia a linguagem que eacute inerente ao tipo de

retoacuterica defendida por Soacutecrates caracteriza-se pela simplicidade em conformidade com

o proacuteprio movimento do pensamento que sem ornamento eacute adequada ao que se refere e

eacute conforme ao que pensa e acredita quem a emprega Essa linguagem portanto ao se

dirigir agrave alma dos ouvintes natildeo emprega nenhuma teacutecnica de persuasatildeo

Na sequecircncia do seu discurso judicial Soacutecrates confessa que a razatildeo pela qual

jamais se apresentou anteriormente agrave Assembleia como orador para aconselhar seus

concidadatildeos e lhes oferecer suas opiniotildees foi que recebeu ordens para natildeo o fazer E quem

lhe deu a ordem ou mais precisamente a ordem para que natildeo se envolvesse em assuntos

poliacuteticos foi o δαιμόνιον isto eacute sua divindade pessoal (Ibid 31d)

A razatildeo disso em muitos lugares e ocasiotildees ouvistes em minhas conversas uma inspiraccedilatildeo que vem de um deus ou de um gecircnio da qual Meleto fez caccediloada na denuacutencia Isso comeccedilou na minha infacircncia eacute uma voz que se produz e quando se produz sempre me desvia do que vou fazer nunca me incita Ela eacute que me barra a atividade poliacutetica

Fora precisamente o δαιμόνιον diz Soacutecrates quem o advertiu para natildeo tentar dizer

a verdade direta e imediatamente no acircmbito da poliacutetica ateniense Natildeo obstante ele natildeo

pocircde seguir agrave risca o conselho por ter sido obrigado a exercer em nome de sua tribo a

Antioacutequida uma funccedilatildeo de priacutetane que natildeo eacute uma funccedilatildeo que algueacutem postule ou requeira

mas que eacute outorgada por sorteio e por rodiacutezio das funccedilotildees entre as diferentes tribos E

depois da aboliccedilatildeo temporaacuteria da democracia durante a ditadura dos Trinta Soacutecrates

tambeacutem foi incumbido de exercer uma funccedilatildeo poliacutetica Em ambos os postos ele insurgiu-

se contra o que se pretendia constrangecirc-lo a fazer Assim eacute que quando priacutetane natildeo se

importou com a opiniatildeo hegemocircnica no Conselho que queria que fossem julgados

coletivamente os capitatildees que depois da batalha das Arginusas natildeo haviam recolhido os

cadaacuteveres dos soldados mortos Soacutecrates natildeo quis aceitar essa medida que considerou

uma ilegalidade defendendo que os capitatildees deveriam ser julgados individualmente E

quando em Salamina os Trinta lhe ordenaram que prendesse Leatildeo Salamiacutenio recusou-

se preferiu simplesmente ir para a casa a executar uma ordem que reputava ilegal

Conveacutem sublinhar que em ambos os casos Soacutecrates declara-se ciente do risco de

ser morto em decorrecircncia de suas convicccedilotildees Na condiccedilatildeo de priacutetane sustenta ele deve

enfrentar o perigo ao lado da lei e da justiccedila em vez de se colocar ao lado do Conselho

por medo da prisatildeo ou da morte (Ibid 32b-c)

Com efeito Atenienses jamais exerci um cargo puacuteblico apenas fiz parte do Conselho Calhou que a pritania coube agrave minha tribo a Antioacutequida quando do processo dos dez capitatildees que deixaram de recolher os mortos da batalha naval voacutes os queriacuteeis julgar em bloco o que era ilegal como todos reconhecestes depois Naquela ocasiatildeo fui o uacutenico dos priacutetanes que me opus a qualquer accedilatildeo ilegal vossa votando contra os oradores estavam prontos a processar-me a mandar-me prender voacutes os incitaacuteveis a isso aos brados Embora Achei de meu dever correr perigo ao lado da lei e da justiccedila em vez de estar convosco numa decisatildeo injusta por medo da prisatildeo ou da morte

E no que tange agrave ordem dos tiranos Soacutecrates declara que mostrou natildeo com palavras

mas por atos que prefere a justiccedila e a verdade agrave sua proacutepria vida (Ibid 32d)

Nessa ocasiatildeo de novo por atos natildeo por palavras demonstrei que agrave morte ndash desculpai a rudeza da expressatildeo ndash natildeo ligo mais importacircncia que a um figo podre mas a natildeo cometer nenhuma injusticcedila ou impiedade a isso sim dou o maacuteximo valor A mim aquele governo poderoso como era natildeo conseguiu forccedilar-me a uma injusticcedila ao deixarmos a rotunda os quatro seguiram para Salamina e trouxeram Leatildeo mas eu voltei para casa

Pode-se assegurar entatildeo que para Soacutecrates a retoacuterica natildeo se identifica

simplesmente com uma teacutecnica de discurso ou com uma arte mas com a proacutepria vida

Em sua defesa ele propotildee comunicar o seu discurso numa linguagem ordinaacuteria que se

apresenta diretamente em sua alma em coerecircncia com o que acredita ser verdadeiro e se

for o caso em prejuiacutezo da proacutepria vida A propoacutesito a tarefa em apreccedilo natildeo foi confiada

a Soacutecrates pelo δαιμόνιον o qual se limita a dar ordens negativas mas pelo deus de Delfos

em relaccedilatildeo agrave qual ele ligou sua existecircncia e pela qual recusa todo tipo de pagamento16

(Ibid 21a-23b) Desse modo eacute por ordem do proacuteprio deus que Soacutecrates vai exortar (tanto

na cidade quanto no tribunal) os seus ouvintes a natildeo se preocuparem com as honras com

as riquezas ou com a gloacuteria mas a se ocuparem de si mesmos (Ibid 30b) Eacute inegaacutevel que

Soacutecrates age como um retoacuterico na medida em que procura influenciar os seus ouvintes

mas em vez de agradar e tentar obter a aprovaccedilatildeo deles ele abertamente procura exortaacute-

los a cuidar de suas almas Assim o principal alvo do discurso de Soacutecrates natildeo consiste

em persuadir seus ouvintes mas sim em encorajaacute-los a se tornarem pessoas mais

virtuosas Enfim Soacutecrates faz do seu processo judicial um processo filosoacutefico pois

entendia a si mesmo como um filoacutesofo incumbido de despertar a cidade de Atenas para o

16 De acordo com o relato de Xenofonte Soacutecrates natildeo aceitava dinheiro por seus ensinamentos porque ao aceitaacute-lo ele se privaria de sua proacutepria liberdade De outra forma ele estaria obrigado a conversar com todos os que podiam pagar pelos honoraacuterios de modo que preferia ficar livre para gozar da companhia de qualquer pessoa que escolhesse Soacutecrates tambeacutem chegou a declarar que cobrar para ensinar seria o equivalente agrave prostituiccedilatildeo porquanto vender a mente natildeo era algo melhor que vender o corpo Sendo assim a sabedoria era algo que devia ser partilhada gratuitamente entre os amigos e as pessoas amadas (Mem I II 6 I VI 13) ldquoCria com esta abstenccedilatildeo melhor resguardar a proacutepria liberdade chamando de escravizadores de si mesmos os que reclamam salaacuterios por suas palestras visto se imporem a obrigaccedilatildeo de conversar com os que lhes pagam [] Quem chatina com a beleza com que lha queira pagar se chama prostituiacutedo Mas aquele que conhecendo um homem amante da virtude procura fazer-se seu amigo consideram-no sensato O mesmo sucede em relaccedilatildeo agrave sabedoria os que com ela traficam com quem lha queira pagar se chamam sofistas ou prostituiacutedos Aquele poreacutem que reconhecendo em outrem um bom caraacuteter lhe ensina tudo o que sabe de bem e se faz seu amigo reputam-no fiel aos deveres do bom cidadatildeordquo

conhecimento de si e para o exerciacutecio das virtudes agrave maneira de um inseto que procura

picar um cavalo grande e de raccedila mas um pouco lerdo (Ibid 30e)

Conforme jaacute verificamos Soacutecrates nega que seu discurso seja premeditado isto eacute

previamente elaborado ou arquitetado para que tenha eficaacutecia retoacuterica Ele tambeacutem

associa por um lado a artificialidade do discurso agrave persuasatildeo e agrave mentira e por outro

associa o seu discurso extemporacircneo com a verdade e a justiccedila Sendo assim a persuasatildeo

(tiacutepica dos oradores) e a verdade satildeo colocadas em contraste pois Soacutecrates assegura que

falar a verdade natildeo significa que o juacuteri seraacute convencido e que a habilidade da retoacuterica

persuasiva com todos os seus ornamentos pode ateacute mesmo conduzir o juacuteri a acreditar em

mentiras injustas Soacutecrates conclui a principal parte do seu discurso dizendo que natildeo

desfilaraacute com sua famiacutelia para obter a piedade dos jurados mas confiaraacute na justiccedila do que

diz para receber sua absolviccedilatildeo E termina seu pleito afirmando acreditar nos deuses como

nenhum dos seus acusadores17 (Ibid 34c-35d) Mesmo assim a comissatildeo encarregada

de examinar o meacuterito da questatildeo vota por sua condenaccedilatildeo Deveras o proacuteprio Soacutecrates

julgava que seria condenado razatildeo pela qual a condenaccedilatildeo natildeo lhe causou surpresa O

que o surpreendeu foi o fato de que muitos votaram a favor de sua absolviccedilatildeo Ele ateacute

observou que com a mudanccedila de apenas 30 votos estaria absolvido (Ibid 36a-b) Se este

eacute o caso entatildeo a divisatildeo do juri em 500 membros foi a seguinte 280 votos a favor da

condenaccedilatildeo e 220 a favor da absolviccedilatildeo Sendo assim se os 30 jurados que votaram a

favor da condenaccedilatildeo tivessem se pronunciado pela absolviccedilatildeo Soacutecrates teria o

equivalente a 250 votos de cada lado e em Atenas em caso de empate o acusado era

automaticamente inocentado (STONE 2005 217)

Aleacutem da defesa de Soacutecrates registrada por Platatildeo existe a de Xenofonte que

tambeacutem era disciacutepulo de Soacutecrates Eacute importante trazer agrave baila a versatildeo de Xenofonte sobre

o discurso judicial de Soacutecrates porque existem nela alguns elementos que corroboram

17 Marina McCoy enfatiza que a defesa de Soacutecrates contra a acusaccedilatildeo de descrenccedila nos deuses poderia ter sido expressa em termos poliacuteticos e religiosos Se ele houvesse argumentado que eacute um homem devoto demonstrando sua participaccedilatildeo nos festivais ciacutevico-religiosos poderia ter facilmente persuadido os jurados que natildeo era uma ameaccedila agrave cidade Em vez disso ele recorreu a uma estrateacutegia inusitada ndash invocou exclusivamente ao oraacuteculo de Delfos jaacute que seu principal objetivo natildeo era mostrar que era um devoto de acordo com o padratildeo ateniense o que poderia garantir sua absolviccedilatildeo mas sim remodelar o conceito do que significa ser religioso Esta estrateacutegia foi arriscada porque ela exigia que os jurados entendessem a devoccedilatildeo de Soacutecrates em termos de sua praacutetica de filosofia o que natildeo ocorreu Na visatildeo de Soacutecrates a obediecircncia ao oraacuteculo jaacute seria uma demonstraccedilatildeo da verdadeira devoccedilatildeo mas esta estaria de acordo com um padratildeo divino e natildeo humano Tal atitude poderia ser facilmente interpretada como uma manifestaccedilatildeo de arrogacircncia e desrespeito em relaccedilatildeo aos jurados Desse modo o fato de Soacutecrates ter se elevado como uma pessoa numa missatildeo divina e como algueacutem que se considera o mais saacutebio de Atenas teria contribuiacutedo significativamente para a sua condenaccedilatildeo (MCCOY 2010 57-60)

algumas concepccedilotildees ateacute aqui expostas Xenofonte relata que ao ver Soacutecrates discorrer

sobre assuntos completamente alheios ao seu processo Hermoacutegenes questiona a

negligecircncia deste em elaborar uma defesa nos moldes da teacutecnica retoacuterica comumente

empregada pelos oradores Em resposta Soacutecrates afirma que o melhor meio de preparar

uma boa defesa natildeo seria atraveacutes de estrateacutegias retoacutericas ou pela grandiosidade do

discurso (μεγαληγορίαν) mas atraveacutes de uma vida justa (Apol Soacutec I 2-3) Hermoacutegenes

tambeacutem denuncia que muitos juiacutezes em Atenas aborrecidos por determinadas defesas

mal elaboradas condenaram agrave morte muitos inocentes e absolveram muitos culpados

cuja linguagem teve o poder de suscitar o sentimento de piedade e lisonjear os ouvidos

Soacutecrates replica que por duas vezes tentou elaborar uma defesa agrave maneira dos oradores

mais competentes poreacutem sua divindade pessoal natildeo o permitira (Ibid I 4) Sendo assim

o δαιμόνιον teria dissuadido Soacutecrates a preparar uma defesa quando todos achavam que

deveria por todos os meios buscar subterfuacutegios para obter a benevolecircncia dos juiacutezes e

por conseguinte livrar-se da condenaccedilatildeo (Ibid I 8) Entretanto ao sugerir aos juiacutezes a

prerrogativa de possuir a preferecircncia dos deuses Soacutecrates teria suscitado sua indignaccedilatildeo

e natildeo sua benevolecircncia e tal disposiccedilatildeo emocional certamente contribuiu para a decisatildeo

final que condenou o filoacutesofo (Ibid II 14-15)

Conveacutem salientar que a mesma atitude de desprezo que Soacutecrates nutre pela teacutecnica

retoacuterica em favor da filosofia presente nas fontes supramencionadas aparece no diaacutelogo

de Platatildeo chamado Goacutergias Nesse diaacutelogo um dos interlocutores de Soacutecrates chamado

Caacutelicles (que era disciacutepulo de Goacutergias) critica naquele a excessiva dedicaccedilatildeo agrave filosofia

dedicaccedilatildeo que custa a Soacutecrates o preccedilo de tornar-se inexperiente nas leis da cidade nos

discursos que se deve empregar nas relaccedilotildees puacuteblicas e privadas nos prazeres e apetites

humanos e nos costumes dos homens (Goacuterg 484d) Caacutelicles tambeacutem afirma que aquele

que se dedica agrave filosofia e natildeo agrave retoacuterica mesmo dotado de oacutetima natureza tornar-se-aacute

efeminado e fugiraacute do centro da cidade e das aacutegoras onde os homens se tornam distintos

Ele passaraacute o resto da vida escondido a murmurar coisas pelos cantos junto a trecircs ou

quatro jovens sem jamais proferir algo livre valoroso e suficiente (Ibid 485d-e) Aleacutem

do mais Caacutelicles aventa que se algueacutem capturasse Soacutecrates e o encarcerasse sob a

alegaccedilatildeo de injusticcedila ainda que Soacutecrates natildeo a tivesse cometido natildeo teria nada de

significativo para dizer em seu proacuteprio favor de modo que quando chegasse ao tribunal

diante de um acusador extremamente miacutesero e despreziacutevel certamente morreria uma vez

que sem o domiacutenio conveniente da teacutecnica retoacuterica ele seria incapaz de socorrer a si

mesmo ou qualquer outra pessoa (Ibid 486b-c)

Pois se hoje algueacutem te capturasse ou qualquer outro homem da sua estirpe e te encarcerasse sob a alegaccedilatildeo de que cometeste uma injusticcedila ainda que natildeo a tenhas cometido sabes que natildeo terias o que fazer contigo mesmo mas ficarias turvado e boquiaberto sem ter o que dizer quando chegasses ao tribunal diante de um acusador extremamente miacutesero e despreziacutevel tu morrerias caso ele quisesse te estipular a pena de morte Ademais como isto pode ser saacutebio Soacutecrates ldquoque a arte apossando-se de um homem de oacutetima natureza torna-o piorrdquo incapaz de socorrer a si mesmo ou qualquer outra pessoa dos riscos mais extremos despojado pelos inimigos de todos os seus bens e vivendo absolutamente desonrado na cidade Para ser ainda mais rude qualquer um poderia rachar a tecircmpora de um homem como esse sem pagar a justa pena

Do que foi exposto ateacute aqui pode-se concluir que a diferenccedila essencial entre

Soacutecrates e os demais oradores incluindo obviamente os sofistas natildeo consiste na

separaccedilatildeo entre a filosofia e a retoacuterica pois conforme examinamos Soacutecrates defende sui

generis uma concepccedilatildeo filosoacutefica da retoacuterica O uso que ele faz da retoacuterica estaria a seus

olhos a serviccedilo das virtudes da justiccedila da coragem e da devoccedilatildeo agrave divindade Aliaacutes parte

do argumento de Platatildeo no diaacutelogo Defesa de Soacutecrates visa estabelecer que as virtudes

em apreccedilo surgem e estatildeo intrinsecamente relacionadas ao compromisso de Soacutecrates com

a filosofia a qual eacute tida por ele como um modo de vida algo pelo qual ele estaria disposto

a morrer inuacutemeras vezes (Def Soacutec 30b-c) Entretanto aos olhos de Soacutecrates os sofistas

procediam amiuacutede como oportunistas e casuiacutestas oportunistas porque persuadiam sem se

importar se a perspectiva em questatildeo eacute verdadeira visando somente a vitoacuteria a qualquer

custo e casuiacutestas porque em relaccedilatildeo a um determinado assunto os argumentos proacute e

contra poderiam ser veiculados pelo mesmo orador conforme a utilidade e a

conveniecircncia Para esse tipo de orador a persuasatildeo natildeo somente triunfa sobre a verdade

mas reina na ausecircncia da verdade

3 A arte retoacuterica de Aristoacuteteles e o discurso judicial de Soacutecrates

31 O compromisso eacutetico-poliacutetico da persuasatildeo retoacuterica

Apesar de Soacutecrates reconhecer em seu discurso a eficaacutecia persuasiva dos recursos

retoacutericos empregados pelos oradores de sua eacutepoca nem por isso ele deixa de rejeitaacute-los

conforme enfatizado acima Aristoacuteteles por sua vez sustenta que os recursos retoacutericos

jamais devem ser negligenciados por qualquer orador judicial ponderando que a praacutetica

da arte retoacuterica com todos os seus ornamentos natildeo contradiz necessariamente a justiccedila e

a verdade Na visatildeo de Aristoacuteteles ao argumento de que o uso injusto (χρώμενος ἀδίκως)

da arte retoacuterica pode provocar graves danos pode-se objetar que o mesmo argumento

pode se aplicar a todos os bens que existem ndash sobretudo os mais uacuteteis aos seres humanos

como a forccedila a sauacutede a riqueza e o talento militar ndash os quais se utilizados

adequadamente poderatildeo ser muito uacuteteis para o benefiacutecio da cidade e se utilizados de

maneira inadequada poderatildeo causar agravequela enorme prejuiacutezo Diz ele (Ret 1355b 4-10)

Se algueacutem argumentar que o uso injusto dessa faculdade da palavra pode causar graves danos conveacutem lembrar que o mesmo argumento se aplica a todos os bens exceto agrave virtude principalmente aos mais uacuteteis como a forccedila a sauacutede a riqueza e o talento militar pois sendo usados justamente poderatildeo ser muito uacuteteis e sendo usados injustamente poderatildeo causar grande dano

De acordo com a definiccedilatildeo elaborada por Aristoacuteteles a arte retoacuterica consiste na

capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com a finalidade de persuadir e

esta natildeo eacute a funccedilatildeo de nenhuma arte porque cada uma das outras artes eacute apenas instrutiva

e persuasiva nos campos de sua competecircncia mas a retoacuterica parece ter a faculdade de

descobrir os meios de persuasatildeo sobre qualquer assunto (Ibid 1355b 32-42)

Entendemos por retoacuterica a capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com o fim de persuadir Esta natildeo eacute seguramente a funccedilatildeo de nenhuma outra arte pois cada uma das outras eacute apenas instrutiva e persuasiva nas aacutereas de sua competecircncia como por exemplo a medicina sobre a sauacutede e a doenccedila a geometria sobre as variaccedilotildees que afetam as grandezas e a aritmeacutetica sobre os nuacutemeros o mesmo se passando com todas as outras artes e ciecircncias Mas a retoacuterica parece ter por assim dizer a faculdade de descobrir os meios de persuasatildeo sobre qualquer questatildeo dada

Desse modo a arte retoacuterica natildeo parece se identificar com a simples faculdade de

persuadir18 mas essencialmente eacute a arte de encontrar os meios de persuasatildeo que cada caso

comporta O orador natildeo eacute capaz de persuadir qualquer pessoa acerca de qualquer assunto

mas pode sempre ver o que seraacute persuasivo nas circunstacircncias dadas sem nada omitir A

atividade do meacutedico por exemplo nada pode realizar para os doentes incuraacuteveis

tampouco a estes pode prometer a cura mas pode propiciar aos pacientes todas as

oportunidades para curar-se Similarmente a atividade do orador consiste em descobrir

os meios disponiacuteveis para promover a persuasatildeo embora ele natildeo seja capaz de persuadir

a todos Escreve Aristoacuteteles (Ibid 1355b 11-19)

Eacute pois evidente que a retoacuterica natildeo pertence a nenhum gecircnero particular definido antes se assemelha agrave dialeacutetica Eacute tambeacutem evidente que ela eacute uacutetil e que a sua funccedilatildeo natildeo eacute persuadir mas discernir os meios de persuasatildeo mais pertinentes a cada caso tal como acontece em todas as outras artes de fato natildeo eacute funccedilatildeo da medicina dar sauacutede ao doente mas avanccedilar o mais possiacutevel na direccedilatildeo da cura pois tambeacutem se pode cuidar bem dos que jaacute natildeo estatildeo em condiccedilotildees em recuperar a sauacutede

Diferentemente do que parece propor Soacutecrates no proecircmio de seu discurso judicial

ao estabelecer a oposiccedilatildeo entre a persuasatildeo e a verdade para Aristoacuteteles a persuasatildeo

ligada agrave teacutecnica retoacuterica pode ser eacutetica e politicamente uacutetil (χρήσιμος) A arte da

persuasatildeo pode ser uacutetil porque em que pese a verdade e a justiccedila sejam por natureza mais

fortes que seus contraacuterios se os juiacutezos natildeo se fizerem como conveacutem a verdade e a justiccedila

seratildeo necessariamente vencidas pelos seus opostos e isto eacute censuraacutevel (Ibid 1355a 28-

32) Por essa razatildeo o emprego das teacutecnicas retoacutericas que visam a persuasatildeo dos ouvintes

jamais deve ser negligenciado ou omitido por qualquer orador bem-intencionado

Para Aristoacuteteles a verdade (ἀλήθεια) consiste sumariamente em afirmar aquilo que

eacute e negar aquilo que natildeo eacute O falso (ψεῦδος) por sua vez consiste em dizer que o ser natildeo

eacute ou que o natildeo-ser eacute Por conseguinte quem diz de uma coisa que eacute ou que natildeo eacute ou

afirmaraacute o verdadeiro ou afirmaraacute o falso (Met 1011b 25-28) Aristoacuteteles tambeacutem afirma

que o ser verdadeiro e falso das asserccedilotildees eacute funccedilatildeo do modo como nelas se une ou separam

suas partes de sorte que estaraacute na verdade quem considera separadas as coisas que

efetivamente satildeo separadas e unidas as coisas que efetivamente satildeo unidas Em

18 Ao rejeitar a noccedilatildeo de que a retoacuterica consiste stricto sensu na arte de persuadir Aristoacuteteles parece reportar-se agrave concepccedilatildeo defendida por Goacutergias no diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (Goacuterg 453a) onde o sofista define a retoacuterica como πειθοῦς δημιουργός ou seja como artiacutefice da persuasatildeo (ῥητορικὴν ἥντινα τέχνην ἡγῇ εἶναι καὶ εἴ τι ἐγὼ συνίημι λέγεις ὅτι πειθοῦς δημιουργός)

contrapartida estaraacute no erro quem considerar unido o que estaacute separado ou separado o

que estaacute unido Aleacutem disso Aristoacuteteles assevera que o entendimento do que uma coisa eacute

precisa estar de acordo com o que de fato ocorre na realidade e isto garantiria ou atestaria

a apreensatildeo do verdadeiro (Sob alm 420b 27-28) Por exemplo algo natildeo pode ser

considerado branco pelo fato de algueacutem simplesmente afirmar que eacute branco mas pelo

fato de ser branco na realidade eacute possiacutevel afirmar que eacute branco e isto implicaria na posse

da verdade (Ibid 1051b 1-10)

Para o Estagirita uma proposiccedilatildeo eacute verdadeira se e somente se corresponder aos

fatos pois se for verdadeira ela se verifica quer se afirme ou natildeo que ela seja verdadeira

E se ela eacute falsa natildeo se verifica quer se afirme ou natildeo que ela seja falsa Segundo essa

perspectiva a verdade seria uma forma de correspondecircncia entre as representaccedilotildees de

afirmaccedilatildeo de fatos e os estados de coisas existentes de modo que a relaccedilatildeo produtora de

verdade entre o discurso e as coisas que articula o modo como estas fazem aquele ser

verdadeiro dependeria do correspondente ontoloacutegico Assim sendo a verdade filosoacutefica

consiste no reconhecimento da realidade ontoloacutegica eacute dizer as coisas como efetivamente

satildeo eacute afirmar aquilo que existe na realidade No entanto conveacutem frisar que diante da

inexequibilidade de se obter na praacutetica retoacuterica uma verdade absoluta Aristoacuteteles propotildee

contentar-se com o verossiacutemil (εἰκός) pois ainda que natildeo exista em relaccedilatildeo a um

determinado assunto a verdade absoluta existe certamente algo mais seguro e mais

veriacutedico (Met 1008b 31-1009a 5) No acircmbito da arte retoacuterica o εἰκός19 eacute tanto o discurso

que enuncia o estado de coisas como o proacuteprio estado de coisas Por um lado eacute uma

ldquoproposiccedilatildeo geralmente admitidardquo isto eacute um discurso e por outro eacute ldquoaquilo que sabemos

que ocorre a maior parte das vezesrdquo que corresponderia aos fatos Com efeito o

enunciado eacute verossiacutemil porque emite a opiniatildeo dos homens ao testemunhar um fato

provaacutevel que pode ser tanto social como natural Desse modo o discurso retoacuterico natildeo

estaacute apartado do estado de coisas ou da realidade pois se eacute possiacutevel um discurso

verossiacutemil eacute por causa de um fato que ocorre a maior parte das vezes que neste caso

recebe a denominaccedilatildeo de provaacutevel (YAMIN 2016 149-153)

A justiccedila (δικαιοσύνη)20 por sua vez designa uma disposiccedilatildeo intermediaacuteria uma

reta medida A justiccedila eacute entatildeo uma certa posiccedilatildeo intermeacutedia (μεσοτeacuteς) mas natildeo do

19 O conceito aristoteacutelico de εἰκός seraacute ulteriormente objeto de um estudo agrave parte mais pormenorizado que incluiraacute uma anaacutelise comparativa entre as premissas retoacutericas e as premissas cientiacuteficas 20 Em comparaccedilatildeo com as demais virtudes eacuteticas o Estagirita dedica especial atenccedilatildeo agrave justiccedila a qual eacute concebida por ele natildeo como um valor transcendente como queria Platatildeo mas como uma virtude humana Para tanto ele distingue a justiccedila concebida num sentido mais amplo de siacutentese de todas as virtudes (Eacutet

mesmo modo que o satildeo as demais virtudes eacuteticas como a temperanccedila ou a coragem A

injusticcedila inversamente eacute determinada pela violaccedilatildeo do princiacutepio de proporccedilatildeo pois se a

justiccedila eacute uma posiccedilatildeo intermeacutedia a injusticcedila (ἄδικος) corresponde aos dois limites

extremos (Eacutet Nic 1133b 30-1134a 2) E uma vez que a posiccedilatildeo intermeacutedia corresponde

agrave virtude em geral a justiccedila torna-se a virtude mais importante e admiraacutevel a ponto de

ser considerada por Aristoacuteteles a mais completa (τέλειος) das virtudes (Ibid1129b 5) A

justiccedila eacute a mais completa porque o indiviacuteduo que a possui tem o poder de a usar natildeo

apenas para beneficiar-se a si mesmo mas tambeacutem para beneficiar a cidade (Ibid 1129b

30-35) Desse modo a accedilatildeo justa em geral beneficia a todos incluindo aqueles que a

realizam pois quando todos se empenham em fazer o que eacute justo e se esforccedilam para fazer

as coisas mais justas a comunidade ganharaacute tudo o que deve e cada indiviacuteduo ganharaacute o

maior dos bens uma vez que eacute isto o que eacute a virtude E ao escolher deliberadamente o

uso da virtude mais completa por ela mesma a pessoa virtuosa estaacute deliberadamente

escolhendo o que beneficia os outros pois as accedilotildees que manifestam a justiccedila beneficiam

tanto o agente que as realiza como todos os outros na comunidade poliacutetica A justiccedila pois

eacute a uacutenica virtude que eacute um bem que pertence a outrem uma vez que envolve uma relaccedilatildeo

com outrem21 ou seja produz pela sua accedilatildeo o que eacute de interesse para outrem seja esse

algueacutem um superior ou um igual Inversamente a injusticcedila eacute considerada o pior viacutecio de

todos a mais completa perversatildeo (ὅλη κακία) porque constitui um mal para o indiviacuteduo

que o possui e tambeacutem para outrem (Ibid 1130a 5-10)

Outrossim Aristoacuteteles assegura que em relaccedilatildeo agraves pessoas a justiccedila eacute definida de

duas maneiras porquanto o que se deve e natildeo se deve fazer eacute definido ora em relaccedilatildeo agrave

comunidade ora em relaccedilatildeo a um de seus membros Isto posto eacute possiacutevel cometer a

injusticcedila e praticar a justiccedila de duas maneiras em relaccedilatildeo a um determinado indiviacuteduo e

em relaccedilatildeo agrave comunidade poliacutetica Pois quem comete adulteacuterio ou fere algueacutem comete

Nic 1139b 30) agrave maneira de Platatildeo e a justiccedila como virtude particular Esta eacute definida por Aristoacuteteles como uma posiccedilatildeo intermeacutedia mais precisamente como uma forma de igualdade intermediando duas opostas desigualdades Todavia a igualdade pode existir entre desiguais que nesse caso vai consistir numa igualdade de relaccedilotildees ou seja em uma certa proporccedilatildeo ao se tratar de distribuir honras entre seres humanos com meacuteritos desiguais tal igualdade vai consistir no ato de dar a cada um conforme os seus meacuteritos que Aristoacuteteles designa de justiccedila distributiva (Ibid 1131a 10-1131b 25) Ao se tratar de corrigir ofensas a igualdade vai consistir no ato de ressarcir a parte prejudicada em medida igual ao dano sofrido que recebe o nome de justiccedila corretiva (Ibid 1131b 25-1132b 20) Ele tambeacutem enfatiza a necessidade de retificar a justiccedila legal atraveacutes da equidade quando a universalidade da lei natildeo for capaz de considerar os casos particulares a que se aplica a qual recebe o nome de justiccedila equitativa (Ibid 1137b 1- 1138a 5) 21 A noccedilatildeo de que a δικαιοσύνη eacute uacutetil tanto para o indiviacuteduo quanto para a cidade jaacute estaacute presente no pensamento de Platatildeo (Rep 333d) ldquoE quando se tem de manter guardada uma foice a justiccedila eacute uacutetil tanto comunitaacuteria quanto individualmenterdquo

injusticcedila contra um dos indiviacuteduos mas os que natildeo cumprem os seus deveres militares

cometem-no contra toda a comunidade poliacutetica (Ret 1373b 23-31) Aristoacuteteles enfatiza

tambeacutem que a justiccedila parece ser a mais desejaacutevel das virtudes por ser ela uacutetil em todas as

ocasiotildees eventualmente dispensando outras Ele pondera que dentre duas coisas aquela

que se todos a possuiacutessem tornaria desnecessaacuteria a outra eacute mais desejaacutevel do que aquela

que todos poderiam possuir e mesmo assim sentir falta da outra Considerando-se o caso

da justiccedila e da coragem (ανδρεία) se todos fossem justos natildeo haveria necessidade de

coragem ao passo que se todos fossem corajosos ainda assim haveria necessidade de

justiccedila (Toacutep 117a 35-40)

Tendo em conta que a verdade e a justiccedila satildeo por natureza mais fortes que seus

contraacuterios e sendo evidente que os recursos retoacutericos podem favorecer as causas injustas

entatildeo muito mais eficazmente os mesmos recursos podem favorecer as causas justas

Assim sob o ponto de vista do meacutetodo retoacuterico elaborado por Aristoacuteteles natildeo somente

Soacutecrates mas tambeacutem todo orador judicial deveria sem constrangimento se utilizar de

todas as estrateacutegias retoacutericas possiacuteveis para livrar-se da condenaccedilatildeo e estabelecer a

verdade dos fatos Na visatildeo de Aristoacuteteles o orador eacute um homem que examina sua

situaccedilatildeo concreta e a ela aplica sua arte para fazer um inventaacuterio das possibilidades

existentes a fim de obter a persuasatildeo da audiecircncia Enquanto estaacute ocupado com tal

inventaacuterio ele pode atuar sem nenhum compromisso eacutetico agrave maneira dos sofistas posto

que a retoacuterica eacute uma arte moralmente neutra No entanto Aristoacuteteles natildeo adota essa

postura para o seu meacutetodo pois para ele a arte retoacuterica para ser completa precisa ter em

conta premissas retiradas da eacutetica e da poliacutetica ou seja tais premissas devem expressar o

compromisso do orador com a escolha moral (προαίρεσις)

Pode-se assegurar entatildeo que o compromisso eacutetico da arte retoacuterica ndash estabelecer a

verdade e a justiccedila na cidade ndash justificaria o emprego de todos os expedientes disponiacuteveis

para obter a persuasatildeo Ademais como observa E M Cope a natural superioridade da

verdade e da justiccedila sobre a falsidade e a injusticcedila culmina por pautar que o bom uso da

arte retoacuterica deve corroborar tal superioridade Isto porque visto que as decisotildees judiciais

satildeo sempre suscetiacuteveis de serem influenciadas por argumentos falaciosos cumpre agrave boa

retoacuterica trazer a verdade agrave luz detectar e expor o engano e os sofismas e debelar a

perversatildeo da verdade e da justiccedila E se porventura os maus oradores acabam

prevalecendo sobre os oradores honestos eacute porque estes natildeo conseguiram aproveitar-se

do poderoso instrumento da teacutecnica retoacuterica Enfim se aqueles que tecircm a verdade e a

justiccedila ao seu lado satildeo derrotados (tanto nos tribunais quanto nas assembleias) sua derrota

se atribui agrave sua proacutepria negligecircncia em relaccedilatildeo ao bom uso da arte retoacuterica (COPE 2006

22-23)

Conforme jaacute examinamos a retoacuterica constitui a contraparte da dialeacutetica pois ambas

se ocupam de questotildees mais ou menos ligadas ao conhecimento comum e natildeo se

relacionam a nenhuma ciecircncia especiacutefica Assim todas as pessoas participariam de

alguma forma de ambas as disciplinas porque todas elas procuram eventualmente

questionar e sustentar um argumento defender ou acusar (Ret 1354a 1-7) Mas apesar

de ser uma faculdade (δύναμις) neutra a dialeacutetica natildeo deve ser empregada

indiferentemente na defesa de teses opostas Pelo contraacuterio ela deve estar a serviccedilo da

verdade contra a sabedoria aparente dos sofistas que privilegiam a eriacutestica (ἐριστική) em

vez da dialeacutetica que fazem da arte do debate uma atividade que busca a vitoacuteria agraves custas

da verdade (Met 1004b 15-25) Todavia em adiccedilatildeo agrave habilidade intelectual a dialeacutetica

tambeacutem exige de seus praticantes uma disposiccedilatildeo eacutetica ndash o dialeacutetico tem de trazer consigo

a prontidatildeo de escolher o verdadeiro em detrimento do falso (Toacutep 163b 10-20)

Aleacutem disso como contribuiccedilatildeo para o saber filosoacutefico o poder de discernir e trazer diante dos olhos as consequecircncias de uma e outra de duas hipoacuteteses natildeo eacute um instrumento para se desprezar porque entatildeo soacute resta escolher acertadamente entre as duas Para uma tarefa desta espeacutecie requer-se uma certa habilidade natural aliaacutes a verdadeira habilidade natural consiste precisamente no poder de escolher o verdadeiro e rejeitar o falso Os homens que possuem essa habilidade satildeo capazes disso pois graccedilas a um instintivo agrado ou desagrado em face de tudo que se lhes propotildee eles escolhem corretamente o que eacute melhor

E tendo em vista que a arte retoacuterica eacute uma forma de argumentaccedilatildeo comparaacutevel agrave

dialeacutetica eacute manifesto que a probidade moral que caracteriza o dialeacutetico tambeacutem deve

estar presente na atividade do orador Dentre as aptidotildees que satildeo inerentes agrave atividade do

orador existe a capacidade de argumentar persuasivamente sobre coisas contraacuterias mas

ele nunca deve fazer uma e outra coisa porque o orador jamais deve persuadir as pessoas

a praticar o que eacute imoral Aliaacutes a capacidade de argumentar persuasivamente sobre coisas

contraacuterias eacute uacutetil para que natildeo escape ao orador o real estado da questatildeo e para que seja

possiacutevel refutar os argumentos daqueles que argumentam contra a justiccedila Isto posto o

Estagirita concebe uma utilizaccedilatildeo eticamente boa da arte retoacuterica por desejaacutevel e confia a

ela o poder de fortalecer a virtude dos cidadatildeos (Eacutet Nic 1179b 5-10) Outrossim conveacutem

enfatizar que para Aristoacuteteles seria um absurdo que a incapacidade de defesa fiacutesica fosse

vergonhosa e natildeo o fosse a incapacidade de defesa verbal tendo em vista que esta

caracteriza mais o homem do que o uso da forccedila fiacutesica (Ret 1355a 35-41 1355b 1-3)

Aleacutem disso eacute preciso ser capaz de argumentar persuasivamente sobre coisas contraacuterias como tambeacutem acontece nos silogismos natildeo para fazer uma e outra coisa ndash pois natildeo se deve persuadir o que eacute imoral ndash mas para que natildeo nos escape o real estado da questatildeo e para que sempre que algueacutem argumentar contra a justiccedila noacutes proacuteprios estejamos habilitados a refutar os seus argumentos [] Aleacutem disso seria absurdo que a incapacidade de defesa fiacutesica fosse desonrosa e natildeo o fosse a incapacidade de defesa verbal uma vez que esta eacute a mais proacutepria do homem do que o uso da forccedila fiacutesica

Aleacutem da disposiccedilatildeo eacutetica que indica que o orador jamais deve persuadir as pessoas

a praticar o que eacute imoral mas fortalecer a virtude da sua audiecircncia conveacutem levar em

consideraccedilatildeo o seu caraacuteter moral (ἦθος) em conexatildeo com as qualidades que o tornam

persuasivo sem a necessidade de argumentos racionais No que concerne ao ἦθος do

orador a persuasatildeo se efetiva quando o discurso eacute realizado de tal forma a tornar o orador

digno de creacutedito (Ibid 1356a 5-7) pois se orador parecer confiaacutevel o puacuteblico iraacute formar

o juiacutezo de que as proposiccedilotildees apresentadas satildeo igualmente confiaacuteveis Assim o puacuteblico

estaraacute inclinado a transferir para o conteuacutedo do discurso a credibilidade (ἀξιόπιστον)

pertencente ao caraacuteter do orador e isto ocorre amiuacutede nos assuntos em que natildeo eacute possiacutevel

obter nenhum conhecimento exato mas margem para duacutevidas (Ibid 1356a 7-10) Por

certo em decorrecircncia da moralidade que exibe para o seu auditoacuterio o orador adquire um

reservatoacuterio de argumentos e de respostas que veicula implicitamente As virtudes eacuteticas

a boa conduta e a confianccedila que o orador aparenta possuir conferem-lhe uma autoridade

em relaccedilatildeo aos assuntos que pronuncia principalmente sobre assuntos de difiacutecil soluccedilatildeo

Dessarte o ἦθος que constitui a eacutetica do orador sua moralidade se transforma num

princiacutepio de autoridade que em alguns contextos se torna um criteacuterio para elucidar uma

questatildeo controversa (MEYER 2007 34-36)

Aristoacuteteles menciona a tese do filoacutesofo Eudoxo acerca do bem a qual se tornou

persuasiva natildeo tanto pelos argumentos que veiculava mas pela virtude do seu caraacuteter

Eudoxo pensava que o prazer era o bem pelo fato de ver todos os seres tanto racionais

como irracionais tenderem para ele e porque em todas as coisas aquilo para que se dirige

a escolha eacute sempre o melhor de tudo O fato de tudo se movimentar numa mesma direccedilatildeo

parecia indicar a ele que o prazer constitui o melhor de tudo para todos os seres Sendo

assim seria o prazer o objetivo final que todos se esforccedilam por obter razatildeo pela qual ele

seria o bem supremo Aristoacuteteles enfatiza que essas concepccedilotildees filosoacuteficas tornaram-se

convincentes mais pela excelecircncia do caraacuteter de Eudoxo do que pelo teor de sua

argumentaccedilatildeo jaacute que Eudoxo era tido por algueacutem extraordinariamente temperado dando

a impressatildeo de falar natildeo enquanto amigo do prazer mas como as coisas se passam

verdadeiramente na realidade (Eacutet Nic 1173a 10-20)

No entanto isto natildeo significa que o ἦθος do orador por si soacute seja suficiente para

determinar a persuasatildeo pois eacute necessaacuterio que a confianccedila no discurso seja

fundamentalmente o resultado da argumentaccedilatildeo entimemaacutetica e natildeo de uma preacutevia

opiniatildeo acerca do caraacuteter do orador Escreve Aristoacuteteles sobre este assunto (Ret 1356a

5-15)

Persuade-se pelo caraacuteter quando o discurso eacute proferido de tal maneira que deixa a impressatildeo de o orador ser digno de feacute Pois acreditamos mais e bem mais depressa em pessoas honestas em todas as coisas em geral mas sobretudo nas que natildeo haacute conhecimento exato e que deixam margem para a duacutevida Eacute poreacutem necessaacuterio que esta confianccedila seja resultado do discurso e natildeo de uma opiniatildeo preacutevia sobre o caraacuteter do orador pois natildeo se deve considerar sem importacircncia para a persuasatildeo a probidade do que fala como aliaacutes alguns autores desta arte propotildeem mas quase se poderia dizer que o caraacuteter eacute o principal meio de persuasatildeo

Aleacutem do mais Aristoacuteteles assegura existir trecircs causas que tornam os oradores

persuasivos sem a necessidade de demonstraccedilotildees entimemaacuteticas E a fim de que o orador

conquiste a credibilidade de seu puacuteblico ele deve possuir a prudecircncia (φρόνησις) a

virtude (ἀρετὴ) e a benevolecircncia (εὔνοια) Quanto agrave φρόνησις deve o orador ser apto a

dar conselhos razoaacuteveis e pertinentes Quanto agrave ἀρετὴ ele nunca deve dissimular o que

pensa nem o que sabe E quanto agrave εὔνοια ele deve estar disposto a ajudar seu auditoacuterio

Aliaacutes o orador ainda deve refletir o caraacuteter moral que o seu puacuteblico espera mesmo que

natildeo o tenha de verdade pois seria moralmente censuraacutevel o fato de o orador simplesmente

parecer prudente virtuoso e benevolente sem realmente o ser e natildeo seria menos

censuraacutevel se possuiacutesse esses atributos morais sem aparentaacute-los publicamente (Ibid

1378a 9-22)

Trecircs satildeo as causas que tornam persuasivos os oradores e sua importacircncia eacute tal que por elas nos persuadimos sem necessidades de demonstraccedilotildees Satildeo elas a prudecircncia a virtude e a benevolecircncia Quando os oradores recorrem agrave mentira nas coisas que dizem ou sobre aquelas que datildeo conselhos fazem-no por todas estas causas ou por algumas delas Ou eacute por falta de prudecircncia que emitem opiniotildees erradas ou entatildeo embora dando uma opiniatildeo correta natildeo dizem o que

pensam por maldade ou sendo prudentes ou honestos natildeo satildeo benevolentes por isso eacute admissiacutevel que embora sabendo eles o que eacute melhor natildeo o aconselham Para aleacutem destas natildeo haacute nenhuma outra causa Forccediloso eacute pois que aquele que aparente possuir todas estas qualidades inspirem confianccedila nos que o ouvem

Note-se que o Soacutecrates do diaacutelogo Defesa de Soacutecrates manifesta as caracteriacutesticas

eacuteticas assinaladas por Aristoacuteteles ele propotildee comunicar o seu discurso em coerecircncia com

o que acredita ser verdadeiro ou seja sem dissimular o que pensa nem o que sabe sua

atitude consiste em ajudar seus ouvintes jaacute que procura encorajaacute-los a se tornarem

pessoas mais virtuosas e ao defender que os capitatildees da batalha das Arginusas deveriam

ser julgados individualmente demonstrou ser capaz de dar conselhos razoaacuteveis e

pertinentes como todos reconheceram depois Natildeo obstante Soacutecrates natildeo obteve ecircxito

no seu discurso judicial por uma seacuterie de razotildees que oportunamente seratildeo trazidas agrave baila

Na Poliacutetica Aristoacuteteles declara que por ser um animal social (πολιτικὸν ζῷον) o

homem eacute o uacutenico que possui o dom da fala (λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴων) o

qual natildeo deve ser identificado com os sons da voz com que satildeo agraciados tambeacutem os

animais Os sons emitidos pelos animais satildeo apenas a expressatildeo de sensaccedilotildees agradaacuteveis

ou desagradaacuteveis ao passo que ao homem a natureza concedeu a capacidade de expressar

por meio de sinais o sentimento do bem e do mal (ἀγαθοῦ καὶ κακοῦ) do conveniente e

do nocivo (συμφέρον καὶ τὸ βλαβερόν) do justo e do injusto (δικαίου καὶ ἀδίκου) objetos

para cuja expressatildeo foi concedido o instrumento da fala (Pol 1253a 7-18)

Agora eacute evidente que o homem muito mais que a abelha ou outro animal gregaacuterio eacute um animal social Como costumamos dizer a natureza nada faz sem um propoacutesito e o homem eacute o uacutenico entre os animais que tem o dom da fala Na verdade a simples voz pode indicar a dor e o prazer e outros animais a possuem (sua natureza foi desenvolvida somente ateacute o ponto de ter sensaccedilotildees do que eacute doloroso ou agradaacutevel e externaacute-las entre si) mas a fala tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo e portanto tambeacutem o justo e o injusto a caracteriacutestica especiacutefica do homem em comparaccedilatildeo com os animais eacute que somente ele tem o sentimento do bem e do mal do justo e do injusto e de outras qualidades morais e eacute a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a famiacutelia e a cidade

Outrossim o Estagirita assevera que o homem quando perfeito eacute o melhor dos

animais mas tambeacutem eacute o pior de todos quando afastado da lei e da justiccedila porquanto a

injusticcedila eacute mais perniciosa quando armada Deveras o homem foi dotado de armas para

serem bem usadas pela inteligecircncia e pelo talento mas tambeacutem podem ser utilizadas no

sentido contraacuterio (ὁ δὲ ἄνθρωπος ὅπλα ἔχων φύεται φρονήσει καὶ ἀρετῇ οἷς ἐπὶ τἀναντία

ἔστι χρῆσθαι μάλιστα) Agrave vista disso quando destituiacutedo de qualidades morais o homem

eacute o mais impiedoso e selvagem dos animais Por outro lado a justiccedila constitui a base da

sociedade de modo que sua aplicaccedilatildeo assegura a ordem na comunidade social por ser o

meio de determinar o que eacute justo (Ibid 1253a 49-57) A arma (ὅπλον) referida por

Aristoacuteteles a qual pode ser bem utilizada pela inteligecircncia e pelo talento natildeo eacute outra coisa

senatildeo a capacidade natural de falar (λόγος) em conexatildeo com os recursos persuasivos da

arte retoacuterica posto que a capacidade de discursar eacute mais proacutepria do gecircnero humano do

que o uso da forccedila fiacutesica Dessarte os recursos retoacutericos devem ser habilmente

empregados no discurso tendo em vista sua finalidade eacutetica porque se o orador se recusar

a empregaacute-los adequadamente a injusticcedila poderaacute prevalecer sobre a justiccedila pela ineficaacutecia

em persuadir os ouvintes

No iniacutecio da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles assegura que toda arte22 e todo processo

de investigaccedilatildeo assim como todo procedimento praacutetico e toda decisatildeo parecem dirigir-

se para algum bem (ἀγαθός) por isso o bem eacute concebido como aquilo por que tudo anseia

(Eacutet Nic 1094a 5) Ele continua assinalando uma diferenccedila entre os fins (τέλοι)

porquanto uns seriam atividades ao passo que outros seriam certos produtos que delas

resultam para aleacutem delas Entre os fins das accedilotildees humanas a serem levadas a cabo existe

aquele que eacute buscado em virtude de si proacuteprio os demais fins satildeo fins mas apenas por

causa do fim que eacute buscado por causa de si proacuteprio por isso esse fim natildeo eacute um bem

qualquer mas eacute o bem supremo (Ibid 1094a 15-20)

Se por conseguinte entre os fins das accedilotildees a serem levadas a cabo haacute um pelo qual ansiamos por causa de si proacuteprio e os outros fins satildeo fins mas apenas em vista desse se por outro lado nem tudo eacute escolhido em vista de qualquer outra coisa (porque desse modo prosseguir-se-ia ateacute ao infinito de tal sorte que tal intenccedilatildeo seria vazia e vatilde) eacute evidente entatildeo que esse fim seraacute o bem e na verdade o bem supremo

Na perspectiva de C D C Reeve o bem supremo eacute melhor do que qualquer outro

bem e por ser o melhor de todos implica que ele deve ser uma atividade terminal ou

seja sem nenhum fim adicional merecedor de escolha ou o fim adicional de uma atividade

22 A traduccedilatildeo da Eacutetica a Nicocircmaco utilizada neste trabalho eacute de Antoacutenio de Castro Caeiro o qual optou por traduzir a palavra ldquoτέχνηrdquo por ldquoperiacuteciardquo e natildeo por ldquoarterdquo mas visto que esta palavra eacute mais familiar e eacute utilizada por muitos tradutores do Corpus Aristotelicum optou-se pelo seu emprego em detrimento de ldquoperiacuteciardquo salvo em alguns casos em que se utiliza a palavra ldquoteacutecnicardquo

natildeo-terminal Mas se esse fim adicional fosse ele mesmo uma atividade natildeo-terminal ele

natildeo poderia ser o melhor jaacute que seu proacuteprio fim adicional seria melhor do que ele E se

uma atividade terminal eacute merecedota de escolha deve ser unicamente por causa dela

mesma porque ao contraacuterio de uma atividade natildeo-terminal ela natildeo eacute merecedora de

escolha por causa de um fim adicional Agrave vista disso o bem supremo constitui uma

atividade terminal que sendo o fim da ciecircncia maximamente arquitetocircnica da poliacutetica eacute

o aacutepice da hierarquia teacutelica (ou hierarquia entre os fins) uacutenica que inclui todos os outros

fins ou bens merecedores de escolha (REEVE 2014 265-269)

Para o Estagirita o bem supremo deve ser o objeto de estudo da mais

arquitetocircnica23 de todas as ciecircncias (μάλιστα ἀρχιτεκτονικῆς) a qual deve ser capaz de

projetar a partir de princiacutepios fundamentais Tal parece ser a ciecircncia poliacutetica pois eacute ela

mesma que determina quais satildeo as ciecircncias necessaacuterias aos Estados e quais satildeo aquelas

que cada classe de cidadatildeos deve aprender e ateacute que ponto (Ibid 1094a 25-1094b 1)

Com efeito as atividades que alcanccedilam o maior prestiacutegio na cidade como a estrateacutegia

militar a economia e a retoacuterica estatildeo subordinadas agrave ciecircncia poliacutetica (Ibid 1094b 1-5)

do mesmo modo como a arte de fazer lanccediladeiras estaacute subordinada agrave arte de tecer e a arte

de fundir o bronze estaacute subordinada agrave arte da escultura (Pol 1256a 5-7) Todavia a

ciecircncia poliacutetica faz uso natildeo apenas das demais ciecircncias que dizem respeito agrave accedilatildeo24 mas

tambeacutem legisla a respeito do que se deve fazer e que coisas eacute necessaacuterio evitar E tendo

em vista o bem humano a ciecircncia poliacutetica envolve os fins das restantes ciecircncias porque

o bem que cada indiviacuteduo adquire e conserva para si eacute suficiente para se dar a si proacuteprio

por satisfeito mas o bem que um povo e os Estados adquirem e conservam eacute mais nobre

e mais proacuteximo do que eacute divino Escreve Aristoacuteteles a este respeito (Ibid 1094b 5-10)

23 Para Aristoacuteteles uma ciecircncia eacute arquitetocircnica em relaccedilatildeo a uma outra quando os fins da segunda satildeo subordinados aos da primeira 24 A reflexatildeo contida na Eacutetica a Nicocircmaco pressupotildee a distinccedilatildeo exposta na Metafiacutesica (Met 1025b 20-30) entre as ciecircncias teoreacuteticas que satildeo formas de conhecimento puramente contemplativo as ciecircncias praacuteticas que satildeo formas de conhecimento do qual deriva uma accedilatildeo uacutetil e as ciecircncias produtivas que satildeo formas de conhecimento que buscam o saber em vista de produzir certos objetos Por dignidade as ciecircncias mais elevadas satildeo as primeiras compostas pela metafiacutesica fiacutesica e matemaacutetica E dentre estas a metafiacutesica (tambeacutem chamada de filosofia primeira ou teologia) eacute a mais sublime porque indaga as causas e os primeiros princiacutepios Pertencem agraves ciecircncias praacuteticas a poliacutetica a eacutetica e a retoacuterica Cada grupo se organiza em linhas hieraacuterquicas com uma ciecircncia arquitetocircnica que fornece o objetivo das ciecircncias subordinadas Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles assegura que a ciecircncia poliacutetica eacute a principal das ciecircncias praacuteticas por ser uma ciecircncia arquitetocircnica Todavia ele faz aparentemente um rebaixamento da filosofia contemplativa que por ser uma atividade essencialmente individual pareceria ocupar uma posiccedilatildeo inferior agrave ciecircncia poliacutetica que tem por objeto o bem comum No entanto a ciecircncia poliacutetica somente eacute arquitetocircnica em relaccedilatildeo agraves ciecircncias praacuteticas que estatildeo abaixo das ciecircncias teoreacuteticas Isto ocorre porque a ciecircncia poliacutetica jamais poderaacute ser uma ciecircncia exata que partiria de axiomas e princiacutepios como a matemaacutetica e a metafiacutesica pelo contraacuterio ela deve contentar-se em alcanccedilar o maacuteximo de exatidatildeo que sua mateacuteria permite

Porque mesmo que haja um uacutenico bem para cada indiviacuteduo em particular e para todos em geral num Estado parece que obter e conservar o bem pertencente a um Estado eacute obter e conservar um bem maior e mais completo O bem que cada um obteacutem e conserva para si eacute suficiente para se dar a si proacuteprio por satisfeito mas o bem que um povo e os Estados obteacutem e conservam eacute mais belo e mais proacuteximo do que eacute divino

Decerto para Aristoacuteteles o bem em consideraccedilatildeo natildeo pertence somente ao

indiviacuteduo mas eacute o bem de toda a cidade pois o singular faz parte dela por isso a ciecircncia

que dele se ocupa constitui a ciecircncia da cidade quer dizer a ciecircncia poliacutetica Esta tambeacutem

eacute chamada de ciecircncia arquitetocircnica em relaccedilatildeo a todas as outras artes ou ciecircncias praacuteticas

porque desempenha uma funccedilatildeo diretiva nas relaccedilotildees entre todas na medida em que se

ocupa do fim uacuteltimo

De acordo com a anaacutelise de C D C Reeve a arte retoacuterica tem por objetivo obter a

persuasatildeo a economia domeacutestica a obtenccedilatildeo de riquezas e as demais artes e ciecircncias

praacuteticas visam alcanccedilar os fins que a definem Todavia isto natildeo quer dizer que as artes e

as ciecircncias natildeo possam ser utilizadas para outros fins que natildeo os seus fins naturais soacute que

quando o satildeo elas estatildeo sendo controladas por alguma outra coisa que as utiliza para

propoacutesitos mais elevados E como as artes e ciecircncias tecircm essa caracteriacutestica elas satildeo

adequadas para inclusatildeo em hierarquias teacutelicas que estatildeo sob o domiacutenio da arte mais

arquitetocircnica da ciecircncia poliacutetica que prescreve e coordena todas as suas atividades com

o propoacutesito de promover a felicidade Dessarte a sabedoria ou ciecircncia praacutetica da qual a

ciecircncia poliacutetica eacute um ramo seria um ponto inicial natildeo soacute da ciecircncia praacutetica da eacutetica como

tambeacutem de todas as artes produtivas de modo que constroacutei-se casas confecciona-se

calccedilados acumula-se riquezas pratica-se a medicina e persuade-se auditoacuterios tendo em

vista alcanccedilar a felicidade que eacute o fim definidor da sabedoria praacutetica (REEVE 2014

127) Em virtude desta intenccedilatildeo a sabedoria praacutetica eacute tudo menos neutra nas relaccedilotildees

com a realidade humana pelo contraacuterio julga o valor desta uacuteltima examina o que nela eacute

bom e o que eacute mau a fim de aperfeiccediloaacute-la

Eacute manifesto que a arte retoacuterica enquanto disciplina subordinada agrave ciecircncia poliacutetica

que eacute arquitetocircnica em relaccedilatildeo agraves demais ciecircncias praacuteticas adquire a tarefa de auxiliar a

atividade poliacutetica no nobre fomento do bem comum o qual soacute eacute exequiacutevel pelo

fortalecimento das virtudes eacuteticas Sob a direccedilatildeo e o controle arquitetocircnicos da ciecircncia

poliacutetica a eacutetica a retoacuterica e demais artes e ciecircncias satildeo coordenados e harmonizados a

fim de melhor promover o bem humano que no domiacutenio da poliacutetica identifica-se com a

justiccedila (Pol 1283a 1-4)

Em todas as ciecircncias e artes o fim eacute um bem e o maior dos bens e bem no mais algo grau se acha principalmente na ciecircncia todo-poderosa esta ciecircncia eacute a poliacutetica e o bem em poliacutetica eacute a justiccedila ou seja o interesse comum

Com efeito a vida na melhor cidade eacute regulada cuidadosamente pela ciecircncia

poliacutetica pois o mundo social que o cidadatildeo herda deve ser projetado para desenvolver e

fortalecer as virtudes eacuteticas bem como proporcionar o ambiente ideal para o exerciacutecio

delas Todavia existem duas categorias de ouvintes para os quais mormente o discurso

eacutetico pode dirigir-se Os ouvintes da primeira categoria possuem disposiccedilotildees naturais para

a virtude ou simplesmente receberam uma boa educaccedilatildeo Para estes os discursos eacuteticos

podem ser uacuteteis visto que os ajudaratildeo a transformar suas virtudes naturais ou

transmitidas pelo haacutebito em virtudes racionais Os ouvintes pertencentes agrave segunda

categoria satildeo escravos de suas proacuteprias paixotildees por isso o discurso eacutetico para eles natildeo

teraacute nenhum proveito (Eacutet Nic 1095a 3-10)

Ora as aacutereas de saber em causa dependem dos sentidos fixados a partir da experiecircncia das situaccedilotildees da vida e satildeo estas mesmas situaccedilotildees da vida que em uacuteltima anaacutelise constituem o seu proacuteprio tema Para mais indo sempre atraacutes de suas paixotildees ouviraacute falar dessas mateacuterias em vatildeo e sem proveito porquanto o objetivo final dessa investigaccedilatildeo natildeo eacute constituir um saber teoacuterico mas agir E aqui natildeo haacute nenhuma diferenccedila se a juventude diz respeito agrave idade ou agrave natureza imatura do caraacuteter A deficiecircncia natildeo se constitui pelo tempo mas por se viver exposto agraves paixotildees e se deixar ir atraacutes de cada uma delas porque para pessoas desta natureza este saber natildeo tem qualquer proveito tal como natildeo o teraacute para os que natildeo tem domiacutenio de si Mas saber destas coisas traraacute uma grande vantagem para aqueles que fazem os seus desejos orientarem-se num determinado sentido e agem nessa conformidade

No entanto em relaccedilatildeo aos ouvintes que satildeo escravos de suas proacuteprias paixotildees em

relaccedilatildeo aos quais o discurso eacutetico natildeo possui nenhuma utilidade cabe agrave comunidade

poliacutetica atraveacutes de bons legisladores fomentar pela coaccedilatildeo de suas leis e pela coerccedilatildeo os

haacutebitos virtuosos Conveacutem sublinhar que a arte legisladora (νομοθετικέ) tambeacutem constitui

um importante ramo da ciecircncia poliacutetica cujo escopo eacute formular leis prescritivas para

promover a felicidade dos cidadatildeos inculcando neles as virtudes eacuteticas e dirigindo suas

accedilotildees Por isso aquele que pretende atraveacutes da sua preocupaccedilatildeo tornar melhores os

homens sejam muitos sejam poucos teraacute de tentar tornar-se um legislador competente

(Ibid 1180b 24-26)

Na visatildeo de Aristoacuteteles eacute funccedilatildeo da ciecircncia poliacutetica assegurar a virtude dos

cidadatildeos e por conseguinte sua felicidade porque eacute impossiacutevel que uma cidade seja feliz

se nela a honestidade estiver ausente Agrave vista disso Aristoacuteteles funda na atividade poliacutetica

a esperanccedila de transformar tanto os homens quanto a cidade Existe pois uma

interconexatildeo necessaacuteria da vida individual com a vida comunitaacuteria que implica na relaccedilatildeo

iacutentima entre eacutetica e poliacutetica E a conexatildeo eacute tatildeo estreita que o Estagirita eacute capaz de definir

a tarefa de um governo poliacutetico em termos exclusivamente eacuteticos pois o estadista ou o

poliacutetico (πολιτικός) precisa fundamentalmente realizar um certo caraacuteter moral em seus

cidadatildeos uma disposiccedilatildeo para a virtude e para a execuccedilatildeo de accedilotildees virtuosas Outrossim

o que as pessoas consideram accedilotildees virtuosas depende de haacutebitos que elas adquiriram no

processo de ser socializadas e educadas pois o que elas veem como geralmente justo eacute o

que a sua constituiccedilatildeo as educou para ver e fazer como tal E se posteriormente receberem

a educaccedilatildeo adicional apropriada e a constituiccedilatildeo em que viveram for adequada elas

aprenderatildeo que praticar a virtude promove a felicidade daqueles que o fazem bem como

de todos os outros cidadatildeos da comunidade poliacutetica No entanto para que isto ocorra o

πολιτικός deve ser capaz de persuasatildeo retoacuterica de outro modo ele natildeo conseguiraacute avanccedilar

em seus projetos eacutetico-poliacuteticos Aliaacutes ateacute mesmo os tiranos natildeo podem prescindir da

persuasatildeo e governar somente com base na coerccedilatildeo e na forccedila Mas se porventura o

πολιτικός carece do conhecimento ou dos dons da retoacuterica ele pode recorrer agrave cooperaccedilatildeo

de um orador (profissional) Este por conseguinte deve estar ao seu lado pronto para

atuar como seu porta-voz (RORTY 1997 23-25)

Decerto o primeiro princiacutepio da eacutetica aristoteacutelica eacute o de que ela se dirige agrave

consecuccedilatildeo da felicidade para o indiviacuteduo a qual consiste grosso modo na atividade da

alma de acordo com a virtude (Eacutet Nic 1098a 15-19) No entanto esta noccedilatildeo natildeo diz

respeito a um ideal inteiramente individualista porque o ser humano eacute um animal ciacutevico

mais social do que as proacuteprias abelhas Existe portanto uma iacutentima conexatildeo entre a vida

individual e a vida coletiva que se consubstancia na conexatildeo iacutentima entre eacutetica e poliacutetica

O homem com efeito eacute o uacutenico animal que possui o dom da palavra cujo uso

somente eacute liacutecito em concordacircncia com as virtudes eacuteticas E uma vez que eacute vergonhosa a

incapacidade de defesa verbal os homens poliacuteticos devem desenvolver a capacidade de

falar persuasivamente no mais elevado grau Todavia a obtenccedilatildeo dessa capacidade soacute eacute

possiacutevel atraveacutes de uma τέχνη que estuda e ensina de maneira sistemaacutetica o que eacute

adequado a cada caso com a finalidade de persuadir qual seja a arte retoacuterica Isto posto

se as atividades que alcanccedilam o maior prestiacutegio na cidade estatildeo submetidas agrave ciecircncia

poliacutetica cuja finalidade eacute o bem humano entatildeo a arte retoacuterica a qual se cobre com a figura

da poliacutetica (Ret 1356a 34-35) se transfigura num poderoso instrumento para promover

o bem da comunidade poliacutetica pois conforme verificamos sua funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica

consiste em trazer a verdade agrave luz detectar e expor os sofismas e combater a perversatildeo

da verdade e da justiccedila

Pode-se asseverar entatildeo que Aristoacuteteles compromete o discurso retoacuterico em

perspectiva praacutetica ao fim uacuteltimo do ser humano qual seja a felicidade (εὐδαιμονία) E

com base nesse comprometimento a arte retoacuterica pertenceria instrumentalmente agrave eacutetica e

agrave ciecircncia poliacutetica A retoacuterica eacute um tipo de ciecircncia auxiliar da eacutetica e da poliacutetica porque

ela natildeo visa simplesmente a persuasatildeo (atividade natildeo-terminal) mas contribuir para o

bem agir tanto na vida privada quanto na vida puacuteblica (atividade terminal) ou seja ela

visa a εὐπραξία que eacute o equivalente agrave felicidade e o mesmo que o bem viver em geral

(Eacutet Nic 1140b 10-11)

32 A ineficaacutecia persuasiva do discurso judicial de Soacutecrates

Observamos que pela divisatildeo do discurso em partes (τάξις) cujo escopo eacute

possibilitar a demonstraccedilatildeo entimemaacutetica o orador faz o auditoacuterio encaminhar-se pelas

vias e pelas etapas que escolheu guiando-o para o objetivo proposto na exposiccedilatildeo

(πρόθεσις) No que se refere ao proecircmio (προοίμιον) o Estagirita estabelece que eacute o

comeccedilo do discurso e serve como preparaccedilatildeo do caminho que se segue depois e sua

funccedilatildeo essencial consiste em tornar o auditoacuterio benevolente doacutecil e atencioso pois tanto

mais interesse existiraacute pelo discurso quanto mais for relevante causar surpresas despertar

admiraccedilatildeo e for agradaacutevel25 Sendo assim atraveacutes do proecircmio o orador deve conquistar a

boa disposiccedilatildeo do auditoacuterio ele pode ateacute suscitar a sua ira mas contra os adversaacuterios e

25 Marco Faacutebio Quintiliano enfatiza que a funccedilatildeo essencial do προοίμιον ndash tornar o auditoacuterio benevolente doacutecil e atencioso ndash tambeacutem precisa ser levada em consideraccedilatildeo nas demais partes do discurso mas principalmente no princiacutepio porque ela propicia a entrada no acircnimo dos juiacutezes sem a qual natildeo eacute possiacutevel avanccedilar passo algum para adiante (Inst orat II I)

nunca contra si e pode tornaacute-lo ora atento ora descontraiacutedo Escreve Aristoacuteteles sobre

este assunto (Ret 1415a 44-50 1015b 1-3)

Os elementos que se relacionam com o auditoacuterio consistem em obter a sua benevolecircncia suscitar a sua coacutelera e por vezes atrair a sua atenccedilatildeo ou o contraacuterio Na realidade nem sempre eacute conveniente pocircr o auditoacuterio atento razatildeo pela qual muitos oradores tentam levaacute-lo a rir Todos estes recursos se se quiser levam a uma boa compreensatildeo e a apresentar o orador como um homem respeitaacutevel pois a este os auditores prestam mais atenccedilatildeo Satildeo tambeacutem mais atentos a temas importantes a coisas que lhes digam respeito agraves que os encham de espanto agraves agradaacuteveis

O proecircmio cumpre tambeacutem a funccedilatildeo de ornamentar o discurso o que daacute a impressatildeo

de que o mesmo natildeo foi preparado agraves pressas (Ibid 1415b 54-56) E no que tange agrave

maneira pela qual o orador poderaacute obter a benevolecircncia dos ouvintes dispondo-os

afetivamente para aderirem agraves teses a serem veiculadas Aristoacuteteles estabelece alguns

princiacutepios jamais refutar os seus erros fazer gracejos sempre que possiacutevel elogiar suas

boas qualidades natildeo repreender suas faltas e imperfeiccedilotildees interessar-se por seus

interesses consideraacute-los honestos e demonstrar alegria por sua companhia entre outras

coisas Enfim cabe ao orador nessa parte crucial do discurso agir com uma certa dose de

bajulaccedilatildeo26 (Ibid 1381a 12-16 1381b 17-20)

26 Embora Aristoacuteteles sustente que o orador (ῥήτωρ) necessita comportar-se diante do seu auditoacuterio com uma certa dose de bajulaccedilatildeo (κολακεία) sua atitude natildeo deve confundir-se com a de um demagogo (δημαγωγός) Em sua visatildeo ambos procuram produzir pelo discurso certas disposiccedilotildees nos ouvintes em vista de persuadi-los mas enquanto o ῥήτωρ visa o bem comum o δημαγωγός aspira somente a popularidade e o domiacutenio sobre as massas Longe de opor-se aos haacutebitos dos ouvintes o δημαγωγός os reproduz e os lisonjeia porque eacute um verdadeiro adulador do povo (Pol 1305a 1-29) Ele tambeacutem se apoia na tipologia dos caracteres dos ouvintes e no apelo agraves emoccedilotildees natildeo para aconselhar seu auditoacuterio sobre o que eacute mais uacutetil ou conveniente para a cidade mas simplesmente para se fazer aplaudir Ele ainda tenciona manipular a opiniatildeo do auditoacuterio mas soacute o faz tornando-se um haacutebil adulador pronto para lhe comunicar tudo aquilo que tem o desejo de ouvir E tal atitude culmina amiuacutede no domiacutenio tiracircnico sobre o auditoacuterio jaacute que o δημαγωγός torna-se soberano sobre a opiniatildeo das massas (Ibid 1292a 21-34) Aliaacutes para Norberto Bobbio eacute com Aristoacuteteles que o termo ldquodemagogordquo adquire um significado negativo cuja praacutexis ele descreve nos seguintes termos (BOBBIO 2008 318) ldquoAssim era chamado demagogo na Antiga Greacutecia aquele que sendo homem de Estado ou haacutebil orador sabia conduzir o povo Eacute com Aristoacuteteles que o termo adquire um significado negativo em teoria poliacutetica [] Um tipo de accedilatildeo eacute o utilizado por algueacutem que explorando particulares situaccedilotildees histoacuterico-poliacuteticas dirigindo-se para os seus proacuteprios fins incita e guia as massas populares subjugando-as graccedilas a particulares capacidades oratoacuterias e psicoloacutegicas frequumlentemente instintivas que lhe permitem interpretar os humores e as exigecircncias mais imediatas juntando a estas qualidades dotes carismaacuteticos incomuns [] Quando poreacutem nos governos populares a lei estaacute subordinada ao arbiacutetrio de muitos surgem os demagogos que abrandando e adulando as massas exasperando seus sentimentos destruidores distraindo-as do seu compromisso poliacutetico [] Conseguem assim consolidar o proacuteprio poder com a eliminaccedilatildeo de toda e qualquer oposiccedilatildeo Aristoacuteteles define portanto o demagogo como um lsquoadulador do povorsquordquo

Entretanto conforme jaacute examinado no seu discurso judicial Soacutecrates natildeo se

importou minimamente com as orientaccedilotildees em apreccedilo nem no proecircmio onde estas

deveriam ser observadas com mais proeminecircncia tampouco no desenvolvimento de sua

defesa pois ele se propotildee a falar a verdade de maneira espontacircnea sem uma preparaccedilatildeo

preacutevia mesmo arriscando-se a natildeo agradar os ouvintes No proecircmio de sua defesa ele

ignora o estratagema retoacuterico de agradar os ouvintes pelo elogio de suas boas qualidades

evitando ao maacuteximo repreender suas faltas Em vez de apresentar um discurso

ornamentado e agradaacutevel com a finalidade de obter a benevolecircncia dos ouvintes Soacutecrates

atrai para si a ira desses pois exorta-os a cuidar de suas almas mesmo correndo o risco

de ser derrotado no tribunal Com efeito no seu discurso ele age como um orador jaacute que

procura influenciar os seus ouvintes mas em vez de agradar e tentar obter a aprovaccedilatildeo

deles ele procura explicitamente exortaacute-los a serem virtuosos Dessarte o principal

objetivo do seu discurso natildeo consistiu em persuadir seus ouvintes mas sim em encorajaacute-

los agrave praacutetica das virtudes

Soacutecrates tambeacutem se recusa a apelar para o sentimento de piedade de seus ouvintes

seja suplicando o perdatildeo com copiosas laacutegrimas seja se aproveitando dos seus amigos

para livrar-se das acusaccedilotildees seja por algum outro estratagema retoacuterico Isso porque como

jaacute visto ele rejeita a ideia de desonrar a si mesmo usando-se de ldquomeios injustosrdquo para

vencer o julgamento e reteacutem como princiacutepio apenas o convencimento dos jurados a partir

somente da exposiccedilatildeo da verdade E apesar de correr grande perigo Soacutecrates diz que natildeo

faraacute o que muitos oradores fazem como trazer os filhos para exibi-los diante do tribunal

com o intuito de lograr a absolviccedilatildeo por meio da clemecircncia Para ele apelos emocionais

dessa natureza seriam incompatiacuteveis com sua reputaccedilatildeo e com o seu modo de vida (Def

Soacutec 34c-34d)

Algum de voacutes talvez se indigne com a recordaccedilatildeo do seu caso se ele proacuteprio agraves voltas com uma lide embora menos grave que esta teve de pedir de suplicar aos juiacutezes com laacutegrimas copiosas de trazer para melhor movecirc-los agrave piedade os filhos outros parentes muitos amigos ao passo que eu ndash natildeo eacute ndash natildeo vou fazer nada disso apesar de estar correndo como posso imaginar o extremo perigo [] portanto Atenienses tenho parentes e filhos estes satildeo trecircs um jaacute taludo e dois pequeninos Natildeo obstante natildeo trouxe nenhum deles aqui com o fito de vos pedir absolviccedilatildeo [] mas em face da honra minha vossa e de toda a cidade eu considero uma noacutedoa aquele procedimento na minha idade e com a reputaccedilatildeo adquirida [] Evidentemente se com a forccedila da persuasatildeo de minhas suacuteplicas vos levasse ao perjuacuterio eu vos estaria levando a natildeo crer nos deuses e com tal defesa simplesmente me estaria acusando de natildeo crer em deuses

Em sua versatildeo sobre o discurso de defesa de Soacutecrates Xenofonte enfatiza a

preocupaccedilatildeo de Soacutecrates em sustentar que jamais fora iacutempio para com os deuses nem

injusto para com os homens mas que longe de pensar rebaixar-se com suacuteplicas de piedade

a fim de escapar da condenaccedilatildeo agrave morte pelo contraacuterio desde logo se persuadira haver

chegado a hora de morrer (Apol Soacutec 2 22) Cocircnscio de que poderia apelar para as

emoccedilotildees dos juiacutezes com o intuito de obter a absolviccedilatildeo Soacutecrates prefere poreacutem natildeo

depreciar a si mesmo como procediam em sua opiniatildeo a maioria dos oradores judiciais

do seu tempo Eacute manifesto portanto que tanto o Soacutecrates de Platatildeo quanto o de

Xenofonte reputa como indigna e imoral a ecircnfase dada ao aspecto afetivo da arte retoacuterica

praticada por todos os oradores do seu tempo que visa influenciar a opiniatildeo dos ouvintes

pela emotividade

Aristoacuteteles por seu turno apresenta aos que pretendem ser bons oradores a maneira

que considera eficaz para estimular nos ouvintes o sentimento de piedade (ἔλεος) No

capiacutetulo 8 do segundo livro da Retoacuterica ele defende o uso desse expediente com base na

ponderaccedilatildeo de que o orador deve transformar a emoccedilatildeo experimentada num recurso uacutetil

para induzir os juiacutezos dos ouvintes em direccedilatildeo agravequilo que eacute eticamente conveniente Desse

modo se a finalidade da arte retoacuterica eacute obter um julgamento favoraacutevel para a causa que

defende e se as emoccedilotildees constituem o agente da mudanccedila dos juiacutezos dos seres humanos

entatildeo a arte retoacuterica em conformidade com sua funccedilatildeo de fazer a justiccedila e a verdade

prevalecer sobre seus contraacuterios deve apelar para o sentimento de piedade dos ouvintes

E a maneira pela qual o orador seraacute capaz de suscitar o sentimento de piedade nos seus

ouvintes consiste basicamente no conhecimento da definiccedilatildeo de piedade dos padrotildees de

estiacutemulos que acompanham essa emoccedilatildeo e na capacidade de mobilizar essas noccedilotildees nos

discursos

Segundo ele a piedade eacute definida como sendo o sentimento de pesar em face de um

mal destrutivo e penoso que acomete algueacutem que natildeo merece e esse sentimento eacute gerado

em algueacutem a partir do juiacutezo que este faz de que qualquer indiviacuteduo ele inclusive ou

algum de seus entes queridos estaacute sujeito a sofrer o mesmo mal Eacute a capacidade

psicoloacutegica para sentir o sofrimento de outra pessoa caso estivesse na mesma situaccedilatildeo

penosa vivenciada por ela Ademais o sentimento de piedade eacute mais facilmente suscitado

no indiviacuteduo quando os males que satildeo temidos atingem pessoas que estatildeo proacuteximas (Ret

1385b 17-29)

Falaremos agora do tipo de coisas que satildeo dignas de piedade quem tem piedade e em que disposiccedilotildees experimentamos esse sentimento Vamos admitir que a ldquopiedaderdquo consista numa certa pena causada pela apariccedilatildeo de um mal destruidor e aflitivo afetando quem natildeo merece ser afetado podendo tambeacutem fazer sofrer a noacutes ou a algum dos nossos principalmente quando esse mal nos ameaccedila de perto Eacute evidente que por forccedila das circunstacircncias aquele que estaacute a ponto de sentir piedade se encontra numa situaccedilatildeo de tal ordem que haacute de pensar que ele proacuteprio ou algueacutem da sua proximidade acabaraacute por sofrer algum mal idecircntico ou muito semelhante ao que referimos na nossa definiccedilatildeo

Os indiviacuteduos tambeacutem sentem piedade em relaccedilatildeo agravequeles que tecircm pais filhos ou

esposas por serem os pais filhos e esposas em certa medida partes da proacutepria pessoa e

estarem desse modo sujeitos a diversos males (Ibid 1385b 41-43) e sentem piedade

ainda em relaccedilatildeo agravequeles em que identificam qualquer relaccedilatildeo de semelhanccedila como a

idade o caraacuteter as qualidades a dignidade o nascimento entre outras relaccedilotildees de

semelhanccedila factiacuteveis (Ibid 1386a 34-37) Assim delimitados aqueles por quem se sente

em geral piedade Aristoacuteteles passa a buscar que eventos suscitam essa emoccedilatildeo e conclui

serem aqueles que ocasionam dor ou pena tais como diferentes tipos de morte violecircncias

doenccedilas agressotildees e coisas semelhantes (Ibid 1386a 4-8) Aristoacuteteles arremata

considerando que a piedade se intensifica quando se percebe que a viacutetima da circunstacircncia

penosa ou dolorosa eacute uma pessoa honrada a qual sofre o mal imerecidamente (Ibid

1386b 7-10)

Aristoacuteteles passa entatildeo a tratar dos dispositivos por meio dos quais o orador pode

reforccedilar o apelo emocional agrave piedade ressaltando o poder dos gestos da voz e da

indumentaacuteria Ele observa que ao expor diante dos olhos dos ouvintes o mal faz com

que este pareccedila mais proacuteximo E para comover mais vivamente a assistecircncia ele sugere

a seguinte estrateacutegia retoacuterica exibir para os ouvintes algum objeto passiacutevel de suscitar o

sentimento de piedade como por exemplo as roupas dos que sofreram grande calamidade

(Ibid 1386a 44-47) Em sintonia com essa tese aristoteacutelica Chaiumlm Perelman sublinha o

fato de que o orador ao selecionar certos elementos e apresentaacute-los ao auditoacuterio jaacute implica

a importacircncia e a pertinecircncia deles no discurso Isto ocorre porque semelhante escolha

confere a esses elementos uma presenccedila A presenccedila de um objeto qualquer tem o condatildeo

de despertar a imaginaccedilatildeo e sensibilidade dos ouvintes e constitui assim um fenocircmeno

psicoloacutegico essencial na argumentaccedilatildeo Para Perelman certos mestres de retoacuterica

incluindo Aristoacuteteles preconizam para emocionar o auditoacuterio o recurso a objetos

concretos como a tuacutenica ensanguentada de Ceacutesar que Antocircnio brandiu perante os

romanos como os filhos do reacuteu que satildeo levados perante os juiacutezes para suscitar-lhes o

sentimento de piedade e coisas deste jaez (PERELMAN 2014 132-133) Pode-se

concluir que mesmo esse estratagema retoacuterico eacute rejeitado por Soacutecrates que em prejuiacutezo

de sua proacutepria defesa recusa-se a exibir seus filhos com abundantes laacutegrimas trazer

parentes ou muitos amigos diante do tribunal ateniense como um expediente para tentar

obter a absolviccedilatildeo por meio da piedade da audiecircncia

De acordo com Aristoacuteteles as emoccedilotildees satildeo aquilo que ao provocar uma alteraccedilatildeo

nos seres humanos fazem com que eles divirjam em seus juiacutezos na medida em que elas

comportam dor e prazer (Ret 1378a 29-31) Agrave vista disso conveacutem considerar que o

conteuacutedo do discurso por si soacute eacute incapaz de fomentar a persuasatildeo porque no discurso

retoacuterico natildeo basta observar abstratas regras loacutegicas e racionais mas eacute preciso envolver

tambeacutem as emoccedilotildees dos ouvintes porquanto se estes natildeo estiverem afetivamente

dispostos a aderir a uma determinada tese os argumentos e fatos considerados

isoladamente natildeo influenciam na tomada de decisatildeo Dessarte para existir a persuasatildeo eacute

imprescindiacutevel emocionar dispor as emoccedilotildees da assistecircncia de modo a aceitar o que

intenta transmitir o orador pelo seu discurso porque o meacuterito do orador natildeo reside

somente na sua capacidade de oferecer razotildees mas tambeacutem em emocionar e mover os

ouvintes para onde ele o deseja Escreve Aristoacuteteles sobre este assunto (Ibid 1377b 27-

37)

Uma vez que a retoacuterica tem por objetivo formar um juiacutezo (porque tambeacutem se julgam as deliberaccedilotildees e a accedilatildeo judicial eacute um juiacutezo) eacute necessaacuterio procurar natildeo soacute que o discurso seja demonstrativo e digno de creacutedito mas tambeacutem que o orador mostre possuir certas disposiccedilotildees e prepare favoravelmente o juiz Muito conta para a persuasatildeo sobretudo nas deliberaccedilotildees e naturalmente nos processos judiciais a forma como o orador se apresenta e como daacute a entender as suas disposiccedilotildees aos ouvintes fazendo com que da parte destes tambeacutem haja um determinado estado de espiacuterito em relaccedilatildeo ao orador

Outrossim na visatildeo de Aristoacuteteles os fatos natildeo se apresentam sob o mesmo ponto

de vista a quem ama e a quem odeia nem satildeo iguais para o homem que estaacute irado ou para

o calmo ou satildeo completamente diferentes ou diferem segundo criteacuterios de grandeza

Assim quem ama acha que o juiacutezo que deve emitir sobre quem eacute julgado eacute de inocecircncia

ou de pouca culpabilidade e quem odeia acha justamente o contraacuterio (Ibid 1377b 40-

44) Isto posto a interpretaccedilatildeo dos fatos e por conseguinte a tomada de decisatildeo depende

amiuacutede da maneira como o orador predispotildee emocionalmente os ouvintes porque se estes

estiverem ligados afetivamente ao orador seja por um sentimento de piedade ou mesmo

de amizade ainda que este tenha cometido um crime pode vir a ser inocentado O oposto

tambeacutem eacute verdadeiro e a este respeito a condenaccedilatildeo de Soacutecrates parece ser paradigmaacutetica

pois ainda que as declaraccedilotildees feitas pelo filoacutesofo fossem verdadeiras as mesmas foram

recebidas de maneira desfavoraacutevel em virtude do sentimento de hostilidade que o proacuteprio

Soacutecrates suscitou nos juiacutezes A este respeito Xenofonte declara que em sua defesa

Soacutecrates falando de si mesmo com tamanha sobranceria perante o tribunal aticcedilou o ciuacuteme

e conticcedilou a disposiccedilatildeo dos juiacutezes natildeo para absolvecirc-lo mas para condenaacute-lo (Apol Soacutec

IV 32 )

Observamos na Defesa de Soacutecrates que a linguagem retoacuterica de Soacutecrates eacute a mesma

que ele utiliza nas praccedilas puacuteblicas nos comeacutercios ou em qualquer outro local por isso

natildeo estaria em descontinuidade de vocabulaacuterio e de forma de construccedilatildeo com a linguagem

que se emprega cotidianamente Nesse sentido a visatildeo de Aristoacuteteles sobre a maneira

como se deve pronunciar um discurso contrasta terminantemente com o estilo

extemporacircneo praticado por Soacutecrates

Em sua anaacutelise da expressatildeo enunciativa (λέξις) desenvolvida por Aristoacuteteles no

terceiro livro da Retoacuterica (2-12) Maria F S Francisco destaca esse aspecto ao sustentar

que embora a semelhanccedila de objeto entre o discurso retoacuterico e o ordinaacuterio determine uma

proximidade estiliacutestica fundamental entre eles em termos da escolha de palavras a

expressatildeo retoacuterica distingue-se da linguagem comum Haja vista que a fala do orador

precisa desempenhar funccedilotildees proacuteprias ausentes da linguagem comum deve igualmente

lanccedilar matildeo de recursos estiliacutesticos proacuteprios A despeito da expectativa do puacuteblico por um

discurso espontacircneo que manifeste o sincero e imediato modo de pensar do orador este

perderia toda possibilidade de ser persuasivo caso se limitasse a falar espontaneamente

Desse modo o resultado de uma fala natural como o faria algueacutem que natildeo deteacutem

conhecimento da teacutecnica retoacuterica (que parece ser o caso de Soacutecrates) seria a ausecircncia de

forccedila expressiva e por conseguinte de comunicaccedilatildeo com o puacuteblico Deveras a funccedilatildeo

proacutepria da expressatildeo enunciativa consiste em trabalhar sobre o conteuacutedo de modo a

comunicar ao puacuteblico aquilo que por si mesmo poderia natildeo ser observado Todavia a

linguagem ordinaacuteria precisamente por ser demasiado familiar pouco pode atender agraves

necessidades especiacuteficas do falar a um puacuteblico determinado como o da assembleia e do

tribunal Assim em face de uma audiecircncia inculta numerosa e dotada de variadas

dificuldades (como a compreensatildeo a fixaccedilatildeo da atenccedilatildeo e o discernimento auditivo e

visual) uma fala natildeo-teacutecnica estaria pouco munida para chegar a comunicar algo e

persuadir E a fim de solucionar esse tipo de dificuldade Aristoacuteteles acrescenta a segunda

exigecircncia a ser satisfeita pela λέξις a desfamiliarizaccedilatildeo ou a exploraccedilatildeo do estranho no

plano do discurso O afastamento em relaccedilatildeo agraves formulaccedilotildees da linguagem ordinaacuteria o

rompimento da expectativa do ouvinte e o efeito surpresa meios pelos quais se produz a

desfamiliarizaccedilatildeo ou o estranhamento conferem ao discurso retoacuterico o poder de se

comunicar com seu puacuteblico proacuteprio na medida em que tornam o que se diz expressivo e

capaz de captar sua atenccedilatildeo Esta captaccedilatildeo eacute o resultado da produccedilatildeo de uma certa espeacutecie

de prazer decorrente do inesperado jaacute que o diferente o que foge ao ordinaacuterio tende a

suscitar prazer Aliaacutes o prazer eacute uma das dimensotildees mais importantes da expressatildeo

enunciativa e sempre com a funccedilatildeo de resolver as dificuldades de acompanhamento do

discurso por parte do puacuteblico Isto posto o ouvinte deve ter a impressatildeo de um discurso

algo mais grave e solene que o discurso ordinaacuterio o que ocasionaria os efeitos da

desfamiliarizaccedilatildeo a expressividade a atenccedilatildeo e o prazer (FRANCISCO 1999 30-31)

Com efeito segundo os paracircmetros do meacutetodo retoacuterico desenvolvido pelo

Estagirita Soacutecrates poderia ser considerado um orador judicial justo e veraz mas ao

mesmo tempo ineficiente porque em sua defesa em vez de agradar os seus jurados faz

justamente o oposto ao declarar que satildeo convencidos facilmente de inverdades (Def Soacutec

18b) que acreditam serem mais saacutebios do que realmente satildeo (Ibid 21d-23a) que

merecem reprimendas e questionamentos (Ibid 29e-30a 30e) que natildeo satildeo facilmente

convencidos da verdade (Ibid 38a-b) que natildeo agradaraacute ou obedeceraacute aos jurados mas

somente ao deus de Delfos (Ibid 29d) ele insinua que os jurados natildeo satildeo moralmente

idocircneos ao afirmar que um homem bom natildeo sobreviveraacute por muito tempo na cidade (Ibid

32e) ele ainda assevera que continuaria com as mesmas accedilotildees mesmo que tivesse de

enfrentar a morte muitas vezes (Ibid 30b-c) finalmente ele foge agrave regra ao propor como

sua contrapenalidade refeiccedilotildees gratuitas no Pritaneu como conveacutem a um heroacutei (Ibid

36c-d) ao inveacutes de pleitear o exiacutelio ou multas como era comum acontecer Depois disso

o juacuteri vota pela condenaccedilatildeo e o discurso de Soacutecrates apoacutes a votaccedilatildeo os exaspera tanto

que mesmo alguns dos que votaram pela absolviccedilatildeo se retratam e votam pela execuccedilatildeo

Apesar de utilizar uma linguagem cotidiana espontacircnea em coerecircncia com o que

se acredita ser verdadeiro Soacutecrates foi ineficiente para persuadir jaacute que natildeo estava

interessado na teacutecnica retoacuterica nem agradar os seus ouvintes tampouco apelar para as

emoccedilotildees mas restringia-se a tentar instruiacute-los sobre os valores da sabedoria e das virtudes

(Ibid 36c) Em nenhum momento do seu discurso Soacutecrates procura lisonjear os jurados

pelo contraacuterio de propoacutesito os irrita com o intuito de despertaacute-los para a importacircncia de

se preocupar com a virtude e o conhecimento em prejuiacutezo de outros assuntos Desse

modo o principal objetivo de Soacutecrates ao expor o seu discurso consiste em encorajar os

jurados a se tornarem melhores cidadatildeos e natildeo tem interesse em obter exclusivamente um

veredicto de inocecircncia Isto natildeo significa que ele natildeo desejasse vencer o caso mas a

vitoacuteria no tribunal natildeo constituiacutea o objetivo principal

Eacute manifesto que Soacutecrates estava disposto a fazer algum esforccedilo para persuadir os

juiacutezes No seu discurso de defesa principal ele apresenta a versatildeo popularmente mais

persuasiva de sua vida como missatildeo divina Ele natildeo se limita apenas a desenvolver

argumentos para mostrar que seu modo de vida eacute na verdade o sumo bem humano Ele

tambeacutem afirma de modo categoacuterico agravequeles que o condenaram agrave morte que poderia ter

forjado argumentos que o absolvessem Isto posto o que causou a condenaccedilatildeo do referido

filoacutesofo natildeo foi o fato de estar em falta com discursos mas sua relutacircncia em dizer e fazer

tudo aquilo que concebia ser vergonhoso no tipo de retoacuterica praticada no seu tempo bem

como sua convicccedilatildeo de que natildeo se pode usar qualquer artimanha para evitar a morte seja

no campo de batalha ou no tribunal de modo que ele possuiacutea a capacidade retoacuterica para

persuadir sua audiecircncia mas escolheu natildeo usaacute-la

Aristoacuteteles a este respeito adota uma perspectiva diametralmente contraacuteria agrave de

Soacutecrates pois ao contraacuterio deste considera que a vitoacuteria no contexto de uma disputa

juriacutedica natildeo pode ter um caraacuteter secundaacuterio porque seria absurdo que a incapacidade de

defesa fiacutesica fosse desonrosa e natildeo o fosse a incapacidade de defesa verbal haja vista

que esta caracteriza mais o homem do que a forccedila fiacutesica Dessarte o orador precisa

empregar todos os recursos retoacutericos disponiacuteveis para atingir os seus objetivos incluindo

o apelo agraves emoccedilotildees dos ouvintes Natildeo obstante Aristoacuteteles natildeo estaacute fazendo qualquer

concessatildeo aos sofistas para os quais eacute possiacutevel em relaccedilatildeo ao mesmo assunto defender

sem quaisquer escruacutepulos o proacute e o contra Pelo contraacuterio eacute justamente para que a justiccedila

e a verdade prevaleccedilam na cidade que se faz necessaacuterio empregar todos os recursos de

que dispotildee o orador para persuadir os seus ouvintes posto que o instrumento da fala

concedido aos homens pela natureza somente eacute liacutecito em conexatildeo com a virtude E se os

maus oradores acabam prevalecendo sobre os bons eacute porque estes natildeo conseguiram

aproveitar-se adequadamente do poderoso instrumento da arte retoacuterica de modo que sua

derrota se atribui agrave sua proacutepria negligecircncia em relaccedilatildeo ao bom uso desta arte

Em siacutentese como consequecircncia da escolha de falar a verdade sem ornamento isto

eacute depurando o discurso das estrateacutegias retoacutericas empregadas por seus contemporacircneos

Soacutecrates natildeo obteve ecircxito algum em persuadir a sua audiecircncia sendo por isso condenado

agrave morte Em vez de agradar e procurar obter a aprovaccedilatildeo dos ouvintes apelando para os

seus sentimentos o que era muito comum e ateacute apropriado nos tribunais Soacutecrates

subordina o discurso somente agrave verdade dos fatos em consonacircncia com a vontade do deus

de Delfos e natildeo hesita em ofender sua audiecircncia Enfim ele natildeo se importou com os

resultados do seu discurso mas unicamente com a veracidade de seu conteuacutedo e esta

atitude ocasionou inevitavelmente a sua condenaccedilatildeo

4 A concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo no diaacutelogo Fedro

41 A retoacuterica filosoacutefica de Platatildeo

Antes do seu encontro com Soacutecrates (que teria ocorrido provavelmente em 408

aC) Platatildeo estudara pintura e escrevera poesias cantos liacutericos e trageacutedias e por certo

interessou-se pela filosofia de Heraacuteclito e Parmecircnides mas o contato com Soacutecrates

quando tinha cerca de 20 anos transformou radicalmente sua vida como homem e como

pensador Posteriormente ao condenar Soacutecrates agrave morte os atenienses fizeram mais do

que realizar um ato injusto Pois ao perpetrar esse ato suscitaram profunda revolta no

jovem Platatildeo assim contribuindo para precipitar definitivamente sua vocaccedilatildeo filosoacutefica

Platatildeo passou entatildeo a dedicar-se com mais afinco agrave exposiccedilatildeo e ao desenvolvimento das

ideias de Soacutecrates A propoacutesito satildeo vaacuterios os diaacutelogos platocircnicos que testemunham o

impacto da morte de Soacutecrates sobre seu autor a Defesa de Soacutecrates ou defesa em seu

julgamento o Criacuteton no qual Soacutecrates apresenta os motivos para natildeo ter fugido de Atenas

depois da condenaccedilatildeo o que poderia ter ocorrido sem dificuldade o Eutiacutefron no qual

Soacutecrates dialoga com o vidente Eutiacutefron sobre o que eacute a piedade na iminecircncia do seu

julgamento e o Feacutedon no qual Soacutecrates passa as uacuteltimas horas de sua vida em defesa da

imortalidade da alma

A concepccedilatildeo de filosofia tal como eacute expressa nos diaacutelogos de Platatildeo nasceu

certamente por frequentar Soacutecrates de modo que toda a sua obra procura expor a

verdadeira filosofia de Soacutecrates que eacute o personagem central de quase todos os seus

diaacutelogos Mas apesar de procurar expor a filosofia de Soacutecrates em disputa com outros

interlocutores Platatildeo de fato apresenta sua proacutepria filosofia pois sua fidelidade ao ensino

de Soacutecrates natildeo consiste tanto em repetir a sua doutrina mas em reafirmar a validade do

meacutetodo de investigaccedilatildeo socraacutetico E haja vista a concepccedilatildeo de Platatildeo acerca da arte

retoacuterica expressa no diaacutelogo Fedro o qual provavelmente foi escrito na fase intermediaacuteria

do seu pensamento27 pode-se assegurar que natildeo somente a filosofia de Soacutecrates mas

27 Para Giovanni Casertano Platatildeo teria escrito o diaacutelogo Fedro no periacuteodo entre 387 e 367 aC ou seja entre os 41 e os 61 anos juntamente com os diaacutelogos Mecircnon Feacutedon Eutidemo Banquete Craacutetilo e A Repuacuteblica (CASERTANO 2011 8)

tambeacutem sua retoacuterica (manifesta no seu discurso judicial) significou para aquele pelo

menos nos seus aspectos essenciais um cacircnone a ser seguido

O diaacutelogo Fedro eacute comumente dividido em duas partes A parte eroacutetica (Fed 227a-

259d) a qual comeccedila com a leitura e a criacutetica de um discurso de Liacutesias que aiacute eacute

apresentado como o chefe da mais influente escola de retoacuterica de Atenas O discurso de

Liacutesias que eacute proferido por Fedro (Ibid 231a-234c) defende a tese paradoxal de que eacute

melhor usufruir dos prazeres eroacuteticos sem efetivamente entregar-se ao amor Para

sustentar essa tese ele alega que os que natildeo amam permaneceriam senhores de si natildeo

seriam censurados por uma maacute conduta e estariam isentos dos sofrimentos que amiuacutede

acometem os apaixonados Nessa parte do diaacutelogo Platatildeo confronta Liacutesias com dois

discursos de Soacutecrates sobre o mesmo tema a saber o valor de eros (ἔρως) O objetivo

desses discursos eacute mostrar como a partir das falsas premissas de Liacutesias sobre eros se pode

tratar melhor do que ele o mesmo assunto No primeiro discurso Soacutecrates (Ibid 237b-

241d) defende grosso modo que o amor eacute um desejo desprovido de razatildeo que arrasta o

amante para o prazer da beleza dos corpos e no outro discurso (Ibid 244a-257b)

Soacutecrates expotildee a teoria de que o amor eacute uma loucura concedida pelos deuses para o

benefiacutecio dos homens uma vez que por meio dela seraacute possiacutevel atingir a verdade

Dessarte alguns inteacuterpretes afirmam que o tema do amor eacute a preocupaccedilatildeo principal do

diaacutelogo Correto ou natildeo esse diagnoacutestico natildeo vela a importacircncia desse diaacutelogo para quem

deseja compreender como Platatildeo concebe a natureza da retoacuterica Como veremos a seguir

esse tema tambeacutem eacute destaque no diaacutelogo tendo inclusive ensejado Werner Jaeger a

identificar a retoacuterica como o assunto por excelecircncia do Fedro (JAEGER 2003 1256)

Na segunda parte do diaacutelogo (Fed 259e-279c) a qual nos interessa mais de perto

Platatildeo expotildee os defeitos da retoacuterica e dos sistemas retoacutericos em vigor no seu tempo para

poder destacar na sequecircncia os meacuteritos da dialeacutetica socraacutetica como condiccedilatildeo preacutevia de

uma verdadeira retoacuterica O escopo de Platatildeo eacute tiraacute-la de persuasores superficiais

especializados demonstrando que aplicada adequadamente e baseada no conhecimento

da verdade eacute coextensiva com a filosofia Nesse sentido o Fedro pode ser compreendido

como veiacuteculo de uma nova concepccedilatildeo de Platatildeo a respeito da arte retoacuterica visto contrastar

com o que lemos no diaacutelogo Goacutergias28 em que a retoacuterica eacute sumariamente rejeitada sob

28 Para Giovanni Casertano o diaacutelogo Goacutergias foi escrito entre 395 e 388 aC isto eacute entre os seus 33 e 40 anos periacuteodo em que escreveu os seus primeiros diaacutelogos Defesa de Soacutecrates Criacuteton Iacuteon Eutiacutefron Caacutermides Laques Liacutesias Hiacutepias Maior Hiacutepias Menor Protaacutegoras e o livro I de A Repuacuteblica (CASERTANO 2011 8)

a consideraccedilatildeo de que seria a suma de uma cultura que natildeo se baseia na verdade mas na

mera aparecircncia Nesse diaacutelogo Platatildeo nega simplesmente que a retoacuterica seja uma arte isto

eacute um discurso fundado num conhecimento cientiacutefico e concebe-a como uma simples

praacutetica empiacuterica que objetiva exclusivamente a persuasatildeo dos ouvintes sem qualquer

preocupaccedilatildeo com o conhecimento (Goacuterg 462b-c) O objetivo de tal retoacuterica natildeo eacute o bem

mas somente o deleite e o prazer por isso ele a define como uma espeacutecie de κολακεία ou

seja de adulaccedilatildeo (Ibid 462e-463a) Ele ataca a retoacuterica existente basicamente no que

tange agrave justiccedila a retoacuterica busca o prazer mediante a adulaccedilatildeo em vez de almejar o bem

genuiacuteno por meio da justiccedila Ele tambeacutem a compara com a culinaacuteria e a cosmeacutetica que

estatildeo voltadas para o prazer do corpo que seriam imitaccedilotildees baratas da medicina e da

ginaacutestica as quais estariam preocupadas com o verdadeiro bem tanto do corpo como da

alma (Ibid 463b-464c)

Outrossim o diaacutelogo Fedro tem lugar entre duas pessoas fora das muralhas da

cidade de Atenas (Fed 227a) em contraste com a grande reuniatildeo perante a qual Soacutecrates

conversa com Goacutergias e os demais no diaacutelogo homocircnimo A discussatildeo sobre a retoacuterica

no Fedro surge em conexatildeo com discursos sobre ἔρως Os assuntos substanciais aqui

discutidos satildeo amplamente privados com apenas breves referecircncias a algo poliacutetico A

propoacutesito no Fedro Soacutecrates estaacute longe de rejeitar longos discursos como o faz de

maneira ostensiva no Goacutergias (Goacuterg 449c-d) pois descreve a si mesmo como um

amante de discursos e profere um discurso muito mais longo do que qualquer outro

exposto no Goacutergias No Fedro natildeo se discute explicitamente a questatildeo do poder da

retoacuterica mas suas proacuteprias observaccedilotildees ao desenvolver uma genuiacutena arte retoacuterica

parecem visar fazecirc-la mais confiavelmente efetiva E quando desenvolve sua proacutepria

noccedilatildeo de retoacuterica natildeo se limita agrave retoacuterica poliacutetica mas propotildee uma arte universal da

psicagogia (ψυχαγωγία) a qual visa conduzir a almas dos ouvintes agrave praacutetica das virtudes

Assim a verdadeira arte retoacuterica natildeo seria algo contraacuterio agrave dialeacutetica mas precisaria ser

desenvolvida por algueacutem com habilidade dialeacutetica que tenha estabelecido em relaccedilatildeo agraves

almas humanas suas accedilotildees e paixotildees todas as definiccedilotildees e divisotildees analiacuteticas de acordo

com as articulaccedilotildees naturais dos objetos necessaacuterios ao desenvolvimento de uma genuiacutena

arte retoacuterica E a este respeito o filoacutesofo teria uma manifesta vantagem na execuccedilatildeo dessa

tarefa Aliaacutes a divindade natildeo estaacute menos presente no Fedro do que no Goacutergias pelo

contraacuterio estaacute ainda mais presente pois sua atuaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo para o filoacutesofo

contemplar o verdadeiramente belo

Pode-se assegurar entatildeo que ao escrever o diaacutelogo Fedro Platatildeo reabilita a arte

retoacuterica mas entendendo-a como uma praacutetica a serviccedilo da dialeacutetica que consiste no

proacuteprio meacutetodo da filosofia o qual capacita o orador a pensar e a falar (Fed 266b) uma

retoacuterica do verdadeiro e natildeo do verossiacutemil que natildeo procura agradar agraves multidotildees mas

somente os deuses (Ibid 273e) Agrave vista disso Platatildeo concebe duas retoacutericas distintas a

dos sofistas em geral que natildeo eacute genuiacutena arte mas simples adulaccedilatildeo e a filosoacutefica que

natildeo passa de expressatildeo da filosofia sem conteuacutedo proacuteprio e sem autonomia Depois da

apresentaccedilatildeo do panorama geral do que interessa ao estudo da concepccedilatildeo retoacuterica de

Platatildeo no diaacutelogo Fedro importa uma anaacutelise mais pormenorizada do seu conteuacutedo

Com efeito apoacutes ter reservado uma parte inicial do diaacutelogo para criticar Liacutesias e

por extensatildeo todos os oradores por natildeo falarem nem escreverem bem e sobretudo por

priorizarem o conhecimento do verossiacutemil Soacutecrates procura apresentar a Fedro uma

justificaccedilatildeo filosoacutefica da retoacuterica No iniacutecio da segunda parte do diaacutelogo em apreccedilo o

personagem Soacutecrates expotildee a Fedro o seu propoacutesito de examinar quais condiccedilotildees satildeo

necessaacuterias para proferir e escrever um bom discurso E a primeira condiccedilatildeo indicada por

Soacutecrates para se proferir e escrever um discurso com perfeiccedilatildeo eacute que o orador conheccedila a

verdade sobre o assunto de que iraacute tratar (Ibid 259e)

Ora era nosso propoacutesito examinar neste momento qual o criteacuterio para proferir e escrever um discurso com perfeiccedilatildeo ou sem ela pois passemos a fazecirc-lo [] Porventura natildeo eacute necessaacuterio para se falar bem e com perfeiccedilatildeo pressupor na mente do falante o conhecimento da verdade sobre o assunto a tratar

Para Soacutecrates o conhecimento que o orador deve possuir para proferir um bom

discurso natildeo deve limitar-se agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras para as multidotildees

conforme sugere Fedro mas o orador deve conhecer a realidade do que eacute justo bom e

belo (Ibid 260a)

A respeito disso meu caro Soacutecrates ouvi dizer o seguinte quem se quer tornar orador natildeo tem necessidade de conhecer o que realmente eacute justo mas o que aparente secirc-lo agrave multidatildeo que deve julgar natildeo o que na realidade eacute bom e belo mas quanto daacute essa aparecircncia jaacute que daiacute deriva a persuasatildeo e natildeo da verdade

Isto posto a primeira condiccedilatildeo estabelecida por Soacutecrates em relaccedilatildeo ao bom

discurso eacute que o orador deve ter um entendimento discursivo da verdade sobre o assunto

que tenciona discutir O bom orador natildeo deve se apropriar das crenccedilas do que pensam os

homens em geral sobre o que eacute justo bom e belo mas eacute forccediloso antes de pretender

comunicar alguma palavra que ele conheccedila a essecircncia dessas virtudes

Conveacutem ainda frisar que o ponto de partida do diaacutelogo Fedro em seu exame

temaacutetico da retoacuterica natildeo difere da retoacuterica sofiacutestica do diaacutelogo Goacutergias Em ambos

Soacutecrates duvida que a retoacuterica seja uma verdadeira τέχνη mas no Fedro em vez de

menosprezar simpliciter a retoacuterica como uma praacutetica voltada para a bajulaccedilatildeo dos

ouvintes (Goacuterg 463b) ele recomenda natildeo maltratar mas perdoar aqueles que por natildeo

conhecerem a dialeacutetica tornam-se incapazes de definir o que pode ser a retoacuterica (Fed

269b)

No Goacutergias Soacutecrates tambeacutem critica a retoacuterica praticada por seus contemporacircneos

considerando-a uma praacutetica irracional e um saber aparente Isso porque segundo ele ela

dispensaria o orador de conhecer aquilo sobre o que discursa na medida em que lhe

proporcionaria a habilidade de meramente parecer conhecer agrave multidatildeo para a qual

discursa Soacutecrates acrescenta que no tocante a todas as artes o orador e a retoacuterica

(praticada por Goacutergias) se encontram na condiccedilatildeo de natildeo conhecer as coisas em si

mesmas mas apenas descobrir algum mecanismo persuasivo de modo a parecer agrave

multidatildeo ignorante conhecer mais do que aquele que possui genuiacuteno conhecimento

(Goacuterg 459b-c) Segundo Soacutecrates a retoacuterica natildeo deve ser concebida como uma arte que

impotildee aos ouvintes certas opiniotildees que ensina a compor belos discursos a fim de deixar

vitoriosa a causa ruim e enfraquecer a boa mas deve ser psicagoacutegica ou seja um guia da

alma para que se alcance a verdadeira beleza e justiccedila que eacute o nuacutecleo de todo ensinamento

genuinamente filosoacutefico

Eis o que testemunha tambeacutem o diaacutelogo A Repuacuteblica Na ceacutelebre alegoria da

caverna (Rep 514a-517c) Platatildeo equipara as sombras na caverna agraves questotildees em disputa

judicial E uma vez que as disputas legais atenienses eram famosas pela sua retoacuterica (Fed

272d-e) Platatildeo identifica todas as sutilezas da teacutecnica retoacuterica com as imagens que mais

comumente atraem a atenccedilatildeo do puacuteblico Para ele por todas as suas vidas as pessoas

levam em conta simples alegaccedilotildees sobre questotildees importantes e cada performance

retoacuterica que por atrair mais atenccedilatildeo para a forma do discurso do que para o seu conteuacutedo

tende a deixar a sua audiecircncia mais ignorante do que saacutebia Desse modo os prisioneiros

da alegoria da caverna que tentam enxergar as sombras e disputam por elas representam

todos aqueles cidadatildeos que acreditam no que os oradores lhes dizem

Soacutecrates sustenta que amiuacutede a persuasatildeo dos ouvintes estaacute intrinsecamente

relacionada com o apelo agraves crenccedilas das multidotildees com aquilo que aparenta ser bom belo

e justo em detrimento do conhecimento da verdade Esta advertecircncia tem em vista

sobretudo os mercenaacuterios (ἕκαστος τῶν μισθαρνούντων ἰδιωτῶν) a quem o povo chama

de sofistas os quais natildeo tecircm outro objetivo de ensinamento senatildeo veicular as opiniotildees

que o vulgo expressa nas assembleias refletindo tambeacutem seus prazeres e suas paixotildees e

a isso designam de sabedoria (Rep 493a) Pois quando o orador desconhece o bem e o

mal e ao se apoiar somente no que aparenta ser bom para as multidotildees em conexatildeo com

o conhecimento de suas inclinaccedilotildees naturais pode exaltar o mal como se fosse o bem e

a consequecircncia dessa atitude seraacute inevitavelmente nefasta para a cidade (Fed 260c)

Pois quando um orador que desconhece o bem e o mal encontra uma cidade em igual situaccedilatildeo e tenta persuadi-la natildeo jaacute fazendo o elogio da ldquosombra de um asnordquo como se de um cavalo se tratasse mas exaltando o mal como se fosse o bem quando depois de estudar as inclinaccedilotildees da multidatildeo a convencer a praticar o mal em vez do bem depois disto que fruto julgas tu que a retoacuterica possa colher das sementes que lanccedilou

Vecirc-se por aiacute que para Soacutecrates haacute um tipo de ldquoarte retoacutericardquo espuacuteria falsa

ilegiacutetima e um outro que constitui uma verdadeira arte de falar (ἔτυμος τέχνη) a qual

necessariamente estaacute vinculada agrave verdade (ἀληθείας ἧφθαι) E a maneira pela qual o

orador seraacute capaz de comunicar a verdade no seu discurso em detrimento das opiniotildees

que aparentam ser verdadeiras agraves multidotildees dependeraacute exclusivamente do cultivo da

filosofia (καλλίπαιδά τε Φαῖδρον πείθετε ὡς ἐὰν μὴ ἱκανῶς φιλοσοφήσῃ) Escreve Platatildeo

a este respeito (Fed 261a)

Vinde pois nobres criaturas e convencei Fedro pai da bela progeacutenie de que se natildeo cultivar a filosofia como deve ser nunca seraacute capaz de falar coisa alguma

Soacutecrates separa a filosofia da retoacuterica apresentando-as como se a ordem de

preparaccedilatildeo para o bom discurso fosse o preacutevio domiacutenio de verdades filosoacuteficas A

exposiccedilatildeo que Soacutecrates faz da filosofia e da retoacuterica evidencia que ambas as disciplinas

satildeo distintas A filosofia seria a disciplina principal e a retoacuterica a secundaacuteria pois seria a

filosofia a disciplina que fornece agrave retoacuterica todas as condiccedilotildees para que esta se torne uma

arte legiacutetima Soacutecrates natildeo separa a descoberta da verdade pela filosofia da sua

apresentaccedilatildeo em discursos de modo que a retoacuterica constitui uma mera manifestaccedilatildeo

puacuteblica da filosofia um veiacuteculo de verdades filosoacuteficas destituiacuteda de conteuacutedo proacuteprio e

heterocircnoma Ele ainda afianccedila que o orador que natildeo cultivar a filosofia e por conseguinte

natildeo possuir o conhecimento da verdade mas persistir em caccedilar as opiniotildees das multidotildees

transformaraacute a retoacuterica numa coisa ridiacutecula destituiacuteda de arte (Ibid 262c)

Por conseguinte meu amigo a arte da palavra quem natildeo conhecer a verdade mas ande agrave caccedila de opiniotildees faraacute dela de certo modo coisa ridiacutecula desprovida de arte

Soacutecrates acrescenta que todo discurso deve ser como um organismo vivo de tal

maneira que as partes de um discurso devem guardar um ordenamento interno em relaccedilatildeo

ao todo Um bom discurso deve pois exibir uma harmonia em suas partes em que cada

uma contribui com algo para a estrutura geral do todo O orador deve considerar como

cada parte coopera para a estrutura geral de seu argumento ao mesmo tempo em que

manteacutem a discussatildeo vigorosa e energeacutetica Portanto para que a retoacuterica se torne uma arte

o assunto que se discute deve primeiro ser entendido como um todo (Ibid 264c)

Poderaacutes pelo menos admitir creio eu que todo o discurso deve ser constituiacutedo como um organismo vivo com corpo proacuteprio que natildeo seja aceacutefalo ou aacutepodo mas possua tronco e membros escritos de forma a convir entre si e ao seu todo

Intrinsecamente articulada a essa concepccedilatildeo orgacircnica do discurso e talvez um

desdobramento dela eacute a necessidade de que o orador reuacutena em uma uacutenica ideia as ideias

ou convicccedilotildees que antes estavam difusas em todas as direccedilotildees de tal modo que ao

estabelecer cada definiccedilatildeo resulte claro qualquer assunto que se queira explicar Tal

reuniatildeo em uma unidade conferiraacute ao discurso clareza e consistecircncia (Ibid 265d)

Soacutecrates oferece como exemplo sua definiccedilatildeo de amor (ἔρως) Ele define o amor como a

forccedila da paixatildeo separada da razatildeo que domina a opiniatildeo e se dirige ao prazer da beleza

especialmente a beleza do corpo (Ibid 238c)

Ora quando um desejo desprovido de razatildeo eacute arrastado para o prazer da beleza e prevalece sobre a reflexatildeo que tende para a justiccedila quando aleacutem disso robustecido vigorosamente por desejos anaacutelogos que tendem para a beleza corporal se torna senhor absoluto tal desejo toma o nome dessa forccedila e passa a chamar-se amor

Soacutecrates considera que se tanto o orador quanto o puacuteblico tiverem em mente uma

clara noccedilatildeo das fronteiras do assunto a ser tratado no discurso seraacute menor a probabilidade

de confusatildeo na comunicaccedilatildeo entre eles Se um orador quiser empregar ἔρως para designar

o amor pelo bem e seu puacuteblico em contrapartida definir ἔρως como luxuacuteria entatildeo

provavelmente haveraacute desentendimento Todavia a menccedilatildeo que Soacutecrates faz agrave clareza e

agrave consistecircncia sugere um interesse que supera a mera concordacircncia entre o orador e sua

assistecircncia Soacutecrates quer o proacuteprio orador consistente a respeito do seu assunto e capaz

de compreender a forma que o unifica Portanto se a retoacuterica deve ser uma τέχνη o orador

deve circunscrever o que integra uma definiccedilatildeo deixando entatildeo de fora o que natildeo faz

parte dela ou seja deve precisar os limites do que uma coisa eacute

Na visatildeo de Soacutecrates o orador tambeacutem deve entender a natureza da coisa como um

todo de modo a incluir o que realmente pertence a ela e excluir o que natildeo pertence Ele

diz que se deve juntar em uma uacutenica ideia as vaacuterias realidades dispersas em muitos pontos

para que pela definiccedilatildeo de cada unidade seja possiacutevel tornar evidente o assunto sobre

que se deseja ensinar em cada caso (Ibid 265d)

Um consiste em reduzir a uma ideia uacutenica que se possa abarcar de um relance as vaacuterias realidades dispersas por muitos pontos para que pela definiccedilatildeo de cada unidade se possa tornar evidente o toacutepico sobre que se deseja ensinar em cada caso Foi o que ainda agora se fez a propoacutesito do Amor de que demos a definiccedilatildeo quer a tenhamos apresentado bem quer mal possibilitou pelo menos ao discurso expor os factos duma forma clara e coerente

Todavia muito aleacutem dessa definiccedilatildeo insipiente que visa a princiacutepio expor os fatos

de uma maneira clara e coerente podendo ser remodelada conforme a investigaccedilatildeo

filosoacutefica se aprofunda o orador deve aspirar compreender as coisas de acordo com a

Ideia (ἰδέα) partindo da multiplicidade das sensaccedilotildees para uma unidade que eacute inferida

pela reflexatildeo filosoacutefica E esta atividade chama-se reminiscecircncia (ἀνάμνησις) das

realidades que outrora a alma do filoacutesofo contemplou quando seguia no cortejo de um

deus (Ibid 249b-c)

Mas a alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma que eacute a nossa E isto porque deve o homem compreender as coisas de acordo com o que chamamos Ideia que vai da multiplicidade das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existe Por isso eacute justo que apenas a inteligecircncia do filoacutesofo seja provida de asas jaacute que com a recordaccedilatildeo estaacute continuamente absorvido na medida do possiacutevel nas coisas a cuja contemplaccedilatildeo um deus deve a sua divindade

No diaacutelogo A Repuacuteblica Soacutecrates concebe as Ideias como entidades reais

existindo independentemente dos indiviacuteduos as quais a alma do filoacutesofo deseja

contemplar O filoacutesofo seria aquele que natildeo se entrega agrave multiplicidade das impressotildees

sensoriais nem se deixa levar durante sua vida pela instabilidade das simples opiniotildees

mas orienta a sua alma para a unidade do que existe E acerca do justo e do injusto do

bem e do mal de todas as Ideias o que se diraacute seraacute o mesmo ou seja cada uma delas eacute

uma mas aparecendo por toda parte ser muacuteltipla devido a comunhatildeo que elas mantecircm

com as accedilotildees e com os corpos entre si (Rep 476a) Agrave vista disso somente o filoacutesofo

possuiria um conhecimento no verdadeiro sentido dessa palavra porque mediante a

multiplicidade dos fenocircmenos eacute capaz de contemplar a imagem universal e imutaacutevel das

coisas ndash a Ideia E a partir de tal contemplaccedilatildeo ele pode dizer o que eacute justo e belo por si

enquanto que as opiniotildees das multidotildees a respeito dessas coisas oscilam na penumbra

entre o natildeo-ser e o verdadeiro ser (Ibid 469c-d) Aleacutem disso satildeo raros os que satildeo capazes

de buscar as Ideias como o proacuteprio belo em si e contemplaacute-las em sua essecircncia (Ibid

476c)

Para Giovanni Casertano o esforccedilo filosoacutefico de Platatildeo nos seus diaacutelogos baseia-

se na tentativa de fundar objetivamente a niacutetida contraposiccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso

e tal fundaccedilatildeo somente eacute possiacutevel admitindo a existecircncia das Ideias que satildeo entes ideais

que independem da subjetividade dos discursos Assim comunicar o verdadeiro significa

construir um discurso (retoacuterico) que reflita a existecircncia desses entes ideais independentes

do fluxo dos fenocircmenos e das sensaccedilotildees portanto natildeo contraditoacuterios de modo que as

Ideias imoacuteveis satildeo o criteacuterio para medir a mobilidade o eterno serve para medir o

temporal o objetivo o subjetivo o ser o devir Eacute justamente isso que faz o filoacutesofo e o

dialeacutetico (CASERTANO 2010 43)

Eacute importante destacar que na maior parte dos diaacutelogos platocircnicos as Ideias satildeo

valores morais que fundam os juiacutezos sobre as coisas da vida humana Trata-se de procurar

na vida do indiviacuteduo e da cidade a triacuteade de valores que aparece de uma ponta a outra dos

diaacutelogos (Eutiacutefron Criacuteton Teeteto Primeiro Alcibiacuteades Poliacutetico e Fedro) quais sejam

o justo o belo e o bom Estes conceitos e muitos outros tecircm existecircncia agrave parte da mente

humana como criteacuterios independentes e imutaacuteveis aos quais se devem reportar as

percepccedilotildees e as accedilotildees humanas Dessarte Soacutecrates exige que o orador seja capaz de

apreender a Ideia da justiccedila da beleza e do bem com o objetivo de coletaacute-la em uma

unidade antes de proferir o seu discurso Pode-se dizer entatildeo que Soacutecrates estabelece um

elevadiacutessimo padratildeo para o orador que deseja cumprir os requisitos de uma verdadeira

arte noutros termos Soacutecrates exige que o orador seja efetivamente um filoacutesofo

Tendo em vista a exigecircncia estabelecida por Platatildeo no Fedro segundo a qual o

orador deve necessariamente ser um filoacutesofo em conexatildeo com as caracteriacutesticas e a

atuaccedilatildeo do filoacutesofo em sua cidade ideal exposta no diaacutelogo A Repuacuteblica concluir-se-aacute

que somente uma diminuta classe de homens ilustrados estaraacute apta a exercer a arte

retoacuterica Conforme o registro de Platatildeo somente por volta dos 30 anos um grupo seleto

de indiviacuteduos que se mostrou capaz em todos os campos da educaccedilatildeo anterior como a

ginaacutestica a danccedila os jogos para o aprendizado dos rudimentos da matemaacutetica e da leitura

a poesia as artes marciais o treino militar a geometria a aritmeacutetica a astronomia e a

muacutesica (Rep 522c-e 525b 526c 537b-c) pode estar habilitado ao estudo da dialeacutetica

por um periacuteodo de 5 anos (Ibid 537c-d) Assim o aacutepice destas aprendizagens eacute a

dialeacutetica que culmina no conhecimento do bem (ἀγαθός) de modo que ela constitui a

coroaccedilatildeo de todos os estudos Todavia os futuros dialeacuteticos precisam possuir naturezas

bem dotadas de muitas qualidades diligecircncia amor pela verdade temperanccedila coragem

e magnificecircncia (Ibid 535d-536b) Apoacutes os 35 anos eles podem servir nos cargos

inferiores da cidade civis e militares durante 15 anos (Ibid 539e-540a) E somente aos

50 anos os melhores dentre eles satildeo compelidos a voltar os olhos da alma para o

verdadeiro bem revezando-se pelo resto da vida na organizaccedilatildeo da cidade dos cidadatildeos

e de si mesmos tendo sempre por modelo a Ideia do bem (Ibid 540a-b)

Chegados aos cinquenta anos os que sobreviveram e em tudo e de todos os pontos de vista foram os primeiros nos trabalhos e nas ciecircncias jaacute devem ser conduzidos ao seu termo final e forccedilados a abrir os olhos da alma e a contemplar aquilo que por si mesmo fornece a luz para todos Tendo em vista o proacuteprio bem servindo-se dele como modelo deveratildeo manter em ordem a cidade os que a habitam e a si mesmos durante o resto da vida cada uma por sua vez dedicando agrave filosofia a maior parte de seu tempo Quando poreacutem chegar sua vez cada um suportaraacute o peso da accedilatildeo poliacutetica e exerceraacute o governo em favor da cidade natildeo porque isso eacute algo honroso mas algo inevitaacutevel

No que concerne agrave educaccedilatildeo dos filoacutesofos Platatildeo estabelece que se deva submetecirc-

los ao mais excelente e rigoroso estudo (Ibid 503b-e) Mas ao ser pressionado a explicar

esta afirmaccedilatildeo ele lanccedila matildeo de uma seacuterie de imagens para sugerir a Ideia de bem que

constitui o auge da investigaccedilatildeo filosoacutefica a relaccedilatildeo dos seres humanos com a Ideia de

bem se assemelha agrave relaccedilatildeo dos prisioneiros em uma caverna com o sol (Ibid 514a-517c)

A alegoria da caverna descreve o processo do filoacutesofo que consegue elevar-se do mundo

sensiacutevel pela contemplaccedilatildeo das Ideias E eacute justamente esta contemplaccedilatildeo que lhe

permitiraacute depois descer novamente ao mundo concreto para guiar os outros homens

conforme a Ideia suprema de bem Mas por ser muito difiacutecil definir o que eacute a Ideia de

bem Platatildeo tenta elucidaacute-la por meio da imagem do sol Platatildeo estabelece entatildeo uma

analogia entre o sol e o bem tal como o sol mesmo dando vida cor e nutriccedilatildeo a todas as

coisas na terra a todos os objetos sensiacuteveis natildeo se identifica com eles da mesma forma

o bem propicia a verdade e a faculdade de conhecer daacute a todos os seres cognosciacuteveis a

sua existecircncia e o seu ser mas natildeo se identifica com nenhum deles pelo contraacuterio

transcende-os por sua dignidade e potecircncia E por ser o princiacutepio mais elevado a melhor

coisa do mundo e a mais real a Ideia de bem promete justificar o governo exercido por

filoacutesofos

Assim a menos que algueacutem seja capaz de dar uma explicaccedilatildeo da Ideia do bem

distingui-la de tudo o mais e possa sobreviver a todas as objeccedilotildees como se estivesse numa

batalha procurando examinar as coisas natildeo conforme a opiniatildeo mas de acordo com a

essecircncia e passar por tudo isso com sua explicaccedilatildeo ainda intacta natildeo poderaacute ser dito que

ele conhece o bem propriamente dito ou qualquer outro bem (Ibid 534c-d) Isto posto

aquele que domina a praacutetica filosoacutefica de procurar os princiacutepios mais gerais por detraacutes

dos fenocircmenos particulares conheceraacute a Ideia de bem que explica em que consiste a

bondade de tudo o mais de modo que sem o conhecimento dessa Ideia natildeo se pode pensar

coerentemente sobre questotildees morais e natildeo se pode planejar um padratildeo moral para a vida

humana (Ibid 505a-b)

Com efeito os poucos indiviacuteduos que resistirem aos rigorosos testes impostos aos

que pretendem ser governantes e destacarem-se nos trabalhos e nas ciecircncias sendo por

conseguinte privilegiados por poderem contemplar as Ideias seratildeo os uacutenicos capazes de

determinar que tipo de vida eacute virtuoso a educaccedilatildeo mais adequada agrave formaccedilatildeo moral e

intelectual dos cidadatildeos bem como a melhor maneira de proferir um bom discurso E

quando se trata de discursos deve-se admitir que existem especialistas assim como

ocorre na construccedilatildeo de navios na medicina ou em qualquer outra arte

No diaacutelogo Protaacutegoras Platatildeo enfatiza que quando nas assembleias procura-se

deliberar sobre assuntos de construccedilatildeo os arquitetos satildeo chamados para opinar sobre o

edifiacutecio a ser levantado e o mesmo se aplicaria na construccedilatildeo de navios (Prot 319b-c)

No diaacutelogo Criacuteton esta noccedilatildeo tambeacutem aparece quando Soacutecrates descreve um especialista

hipoteacutetico que atuaria no domiacutenio da moral como um meacutedico em relaccedilatildeo ao corpo

humano Sendo assim um especialista deve ser obedecido independentemente das

opiniotildees de natildeo especialistas e somente aquele merece ser ouvido (Criacutet 47a-48b) Platatildeo

procura estender a validade dessa noccedilatildeo ao uso do discurso retoacuterico no seio da cidade

por isso ele rejeita a pretensatildeo democraacutetica de fazer do discurso retoacuterico algo

universalmente partilhado pois na deliberaccedilatildeo acerca da administraccedilatildeo da cidade

qualquer indiviacuteduo poderia emitir suas opiniotildees mesmo natildeo possuindo competecircncia

alguma nos assuntos eacutetico-poliacuteticos (Prot 319d)

No entanto o criteacuterio de validade de um discurso natildeo deve relacionar-se com uma

regra majoritaacuteria qualquer pois a arte retoacuterica seraacute antes de mais nada um assunto que

compete aos filoacutesofos Em relaccedilatildeo a este assunto Werner Jaeger sublinha que o objetivo

visado no diaacutelogo A Repuacuteblica consiste na educaccedilatildeo do futuro governante enquanto que

no diaacutelogo Fedro a ecircnfase consiste na formaccedilatildeo do orador e do escritor E o que ambas

as obras comungariam seria a exigecircncia de uma espeacutecie de formaccedilatildeo integral do espiacuterito

Assim a ideia central do diaacutelogo A Repuacuteblica seria literalmente repetida no programa de

uma formaccedilatildeo filosoacutefica do orador elaborada no diaacutelogo Fedro Para chegar a essa meta

Platatildeo estabelece um percurso longo e trabalhoso Eacute sempre para a meta mais elevada

nunca a mais baixa que a filosofia educacional de Platatildeo se encaminha e vistas as coisas

dali natildeo haacute caminho mais curto nem mais cocircmodo para quem quiser cumprir plenamente

a missatildeo de ser um bom orador Aliaacutes natildeo haacute a miacutenima duacutevida de que eacute em sentido eacutetico

que Platatildeo concebe tal missatildeo de modo que o rodeio filosoacutefico seria inevitaacutevel ainda que

se julgasse elevada demais essa meta (JAEGER 2003 1270)

Embora Platatildeo estabeleccedila rigorosas condiccedilotildees para a formaccedilatildeo do orador ele

encontra no passado de Atenas o protoacutetipo de bom orador na figura do estadista e

estratego Peacutericles No Fedro o personagem Soacutecrates reconhece o interesse de Peacutericles

pelas ciecircncias29 e o considera a perfeita representaccedilatildeo do orador porque antes de adquirir

a excelecircncia na arte do discurso ele teria se dedicado a sublimes especulaccedilotildees filosoacuteficas

Peacutericles seria o mais perfeito de todos na arte retoacuterica porque todas as artes que satildeo

grandes exigem loquacidade e altas especulaccedilotildees sobre a natureza das coisas Na verdade

foi justamente isso que Peacutericles aleacutem dos seus dotes naturais soube adquirir E tendo

29 Ao redor de Peacutericles se reuniram filoacutesofos e sofistas de toda espeacutecie de passagem pela cidade de Atenas Os filoacutesofos Anaxaacutegoras e Zenatildeo de Eleia e o sofista Protaacutegoras foram os mais eminentes Aleacutem destes ele conviveu intimamente com grandes arquitetos escultores muacutesicos e tragedioacutegrafos (CASERTANO 201018)

encontrado Anaxaacutegoras Peacutericles embebeu-se de sublimes especulaccedilotildees e atingiu a

natureza do espiacuterito e da inteligecircncia assuntos de que Anaxaacutegoras muito se ocupava

extraindo da filosofia tudo o que lhe fosse uacutetil para o exerciacutecio da arte retoacuterica (Fed

269e-270a)

42 A retoacuterica e o meacutetodo dialeacutetico

Soacutecrates deveras reduz a retoacuterica agrave filosofia e concebe a essecircncia da boa retoacuterica

como dialeacutetica (διαλεκτική) Ele relaciona a boa retoacuterica com a necessidade de investigar

a natureza do assunto em questatildeo e a imagem de um corpo vivo serve para ligar a ordem

natural com a ordem do discurso Natildeo se pode por exemplo separar artificialmente a

disposiccedilatildeo das partes de um animal sem destruiacute-lo Semelhantemente Soacutecrates diz que o

arranjo de um discurso natildeo pode ser totalmente separado da reuniatildeo (συναγωγή) e divisatildeo

(διαίρεσις) adequadas de seu conteuacutedo de acordo com a natureza Dessarte a dialeacutetica

constituiria um elemento central para a boa retoacuterica pois o bom orador deve segundo ele

ter a capacidade de separar os assuntos em espeacutecies segundo as articulaccedilotildees naturais sem

causar roturas em nenhuma parte diferente do que faria um mau accedilougueiro (Ibid 265e)

Assim para dizer o que alguma coisa eacute conveacutem indicar seu gecircnero referindo-a a classe

de coisas na qual se reuniu tudo o que a ela se assemelha procedendo-se na sequecircncia agrave

divisatildeo do gecircnero em espeacutecies recortando o que distingue uma da outra E Soacutecrates

denomina aqueles que procedem desse modo de dialeacuteticos (Ibid 266c)

Dessas divisotildees e siacutenteses eu mesmo Fedro sou um apaixonado a fim de ser capaz de falar e de pensar E se eu julgar qualquer outro capaz de observar a unidade e a pluralidade nascida daquela a esse eu perguntarei no encalccedilo dos seus passos como se fora um deus Ora aos que satildeo capazes de o fazer eu chamo-lhes pelo menos ateacute este momento dialeacuteticos ndash se os nomeio retamente ou natildeo um deus o sabe

Aos olhos de Soacutecrates o processo de dividir e de reunir conduz agrave aprendizagem do

falar e do pensar O dialeacutetico (διαλεκτικoacuteς) eacute aquele capaz de realizar isso numa

perspectiva de unidade e multiplicidade A dialeacutetica no seu exerciacutecio de perguntar e

responder de dividir e de aproximar as partes chega agrave verdade das coisas Assim ela

busca a verdade enquanto que a retoacuterica preocupa-se apenas com a relaccedilatildeo entre o orador

e o puacuteblico E uma vez que a retoacuterica precisa retirar os seus conteuacutedos da filosofia que a

submete ldquodespoticamenterdquo privando-a de autonomia a genuiacutena retoacuterica ateacute poderia ser

chamada de dialeacutetica

A dialeacutetica que pode ser assimilada ao meacutetodo da divisatildeo (διαίρεσις) consiste na

teacutecnica de investigaccedilatildeo conjunta realizada mediante a colaboraccedilatildeo de duas ou mais

pessoas segundo o procedimento de perguntar e responder A dialeacutetica constitui o aacutepice

a que pode chegar a investigaccedilatildeo conjunta e compotildee-se basicamente de dois momentos

Remeter as coisas dispersas para uma ideia uacutenica e em definir a ideia de tal modo que

possa ser veiculada a todos a exemplo da definiccedilatildeo geral de amor esboccedilada por Soacutecrates

que consiste num desejo desprovido de razatildeo (loucura) que arrasta o amante para o prazer

da beleza E dividir novamente a ideia em suas espeacutecies seguindo suas interaccedilotildees naturais

evitando fragmentar suas partes No que tange agrave definiccedilatildeo de amor Soacutecrates reuacutene duas

coisas que antes natildeo estavam relacionadas a saber a loucura que adveacutem aos homens em

virtude do descontrole dos proacuteprios apetites (Ibid 237d-238c) e a loucura que eacute inspirada

pelos deuses (Ibid 244a-c) e ao identificar duas formas de loucura Soacutecrates distinguiu

nesta segunda classe outros quatro tipos especiacuteficos os quais ulteriormente seratildeo

analisados (Ibid 265b)

A esse respeito eacute oportuno trazer agrave baila a anaacutelise de Pierre Hadot sobre a formaccedilatildeo

dialeacutetica na Academia Ele ressalta que essa formaccedilatildeo era absolutamente necessaacuteria na

medida em que os disciacutepulos de Platatildeo eram destinados a desempenhar seu papel na

cidade pois numa civilizaccedilatildeo que tinha por centro o discurso poliacutetico era preciso formar

indiviacuteduos para um perfeito domiacutenio da palavra e do raciociacutenio No entanto a dialeacutetica

platocircnica natildeo se reduziria a um exerciacutecio puramente loacutegico mas correspondia a um

exerciacutecio espiritual que exige dos interlocutores uma espeacutecie de ascese Aliaacutes natildeo se trata

de uma luta entre dois indiviacuteduos na qual o mais haacutebil imporaacute seu ponto de vista mas de

um esforccedilo realizado em comum por dois interlocutores que desejam estar de acordo com

as exigecircncias racionais do discurso sensato Hadot tambeacutem enfatiza que os sofistas

pretenderam formar os jovens para a vida poliacutetica mas Platatildeo quis fazer isso dotando-os

de um saber bem superior agravequele que os sofistas poderiam ofertar de um saber que de

uma parte estaria fundado sobre um meacutetodo racional rigoroso e de outra seria

inseparaacutevel do amor do bem e da transformaccedilatildeo interior do homem Dessa forma Platatildeo

natildeo pretendia simplesmente formar poliacuteticos e oradores haacutebeis mas verdadeiros filoacutesofos

(HADOT 2014 94)

Hadot acrescenta que a dialeacutetica praticada na Academia de Platatildeo era uma teacutecnica

de discussatildeo submetida a regras precisas Uma ldquoteserdquo era apresentada ou seja uma

proposiccedilatildeo interrogativa do tipo pode-se ensinar a virtude Um interlocutor atacava a

tese e outro a defendia O primeiro atacava interrogando ou seja apresentando ao

defensor da tese questotildees habilmente escolhidas a fim de induzi-lo a admitir proposiccedilotildees

contraacuterias agrave tese proposta enquanto que o proacuteprio interrogador natildeo teria uma tese (Ibid

2014 98) No entanto a dialeacutetica ensinava natildeo somente a atacar mas tambeacutem a responder

com o intuito de frustrar as armadilhas do interrogador (Ibid 2014 99) Aleacutem disso a

dialeacutetica exigia que os interlocutores pretendessem efetivamente dialogar por isso jaacute natildeo

eacute um dos interlocutores que impotildee sua verdade ao outro pelo contraacuterio o diaacutelogo ensina

a se colocar no lugar do outro e a superar se for o caso o proacuteprio ponto de vista Assim

os interlocutores seriam capazes de descobrir por eles mesmos e neles mesmos uma

verdade independente deles na medida em que se submetessem a uma autoridade superior

(Ibid 2014 100)

Prosseguindo na elucidaccedilatildeo da dialeacutetica eacute pertinente destacar a exposiccedilatildeo que

Platatildeo faz desse meacutetodo de investigaccedilatildeo filosoacutefica no mais proeminente dos seus

diaacutelogos30 Ele afirma que soacute se pode determinar o caraacuteter ou a natureza da dialeacutetica em

relaccedilatildeo com os demais tipos de saberes humanos Primeiramente ele compara a dialeacutetica

com as chamadas τέχναι ou disciplinas empiacutericas as quais dizem respeito agraves opiniotildees e

anseios dos homens e servem para produzir algum objeto ou para cuidar do que proveacutem

de produtos naturais ou artificiais (Rep 533b)

Isso pelo menos disse eu ningueacutem nos contestaraacute se dissermos que nenhum outro meacutetodo tenta sistematicamente apreender em cada coisa o que ela eacute Ao contraacuterio todas as outras artes se referem a opiniotildees e desejos dos homens ou estatildeo todas elas voltadas para processos de geraccedilatildeo ou composiccedilatildeo ou para cuidados com produtos naturais ou artificiais

Platatildeo tambeacutem compara a dialeacutetica com todas as disciplinas matemaacuteticas Ele

afirma que as disciplinas matemaacuteticas como a geometria e as que dela derivam em certa

30 De acordo com Giovanni Casertano o diaacutelogo A Repuacuteblica pode ser considerado a obra mais capital de Platatildeo pois nele estatildeo presentes todos os temas e problemaacuteticas da filosofia platocircnica da teoria das Ideias agrave teoria da alma etc embora sejam tratados sob uma perspectiva poliacutetica e depois do diaacutelogo Leis eacute o mais extenso Aleacutem disso o diaacutelogo em apreccedilo eacute uma obra a que Platatildeo dedicou muitos anos de sua vida de escritor e filoacutesofo entre 360 e 348 aC isto eacute entre os 68 e 80 anos ele revecirc reescreve em parte e debruccedila-se sobre o diaacutelogo e segundo um antigo relato no momento de sua morte foi encontrada junto agrave sua cama uma taacutebua na qual estava a transcrever e a modificar o proecircmio de A Repuacuteblica (CASERTANO 2011 6 9)

medida se aproximam do verdadeiro ser poreacutem soacute o alcanccedilam como em sonhos pois

seriam incapazes de contemplaacute-lo despertas O seu princiacutepio com efeito eacute algo que elas

ignoram e tudo o mais que se conecta com as matemaacuteticas estaria entretecido por uma

certa ignoracircncia (Ibid 533c) por isso a mera aproximaccedilatildeo (ὁμολογία) das matemaacuteticas

com o ser natildeo poderia a rigor ser chamada de ἐπιστήμη ou seja natildeo seria um

conhecimento filosoacutefico stricto sensu Dessarte somente a dialeacutetica proporcionaria um

conhecimento das coisas eacuteticas e poliacuteticas e um conhecimento mais seguro do que as

disciplinas matemaacuteticas poderiam oferecer

Outrossim a dialeacutetica constitui a ciecircncia que arrasta e leva para o alto o olho da

alma que estaacute enterrado num pacircntano baacuterbaro e para este propoacutesito serve-se das

matemaacuteticas como um instrumento auxiliar ou como uma espeacutecie de propedecircutica (Ibid

533d) Aliaacutes o saber conferido por Platatildeo agrave dialeacutetica eacute tatildeo superior ao saber matemaacutetico

quanto ao conteuacutedo do ser como as coisas reais do mundo sensiacutevel o satildeo quanto agraves suas

sombras ou imagens refletidas O dialeacutetico portanto eacute aquele que compreende a essecircncia

de cada coisa pois do mesmo modo ele deve estar em condiccedilatildeo de discernir a Ideia do

bem distinguindo-a de todas as outras ou seja separar o bem em si das diversas coisas

que satildeo mormente chamadas boas (Ibid 534c-d)

Entatildeo acontece o mesmo a respeito do bem Se algueacutem natildeo for capaz de definir pela razatildeo a ideia do bem distinguindo-a de todas as outras e como num combate passando atraveacutes de todas as objeccedilotildees natildeo estiver disposto a natildeo refutaacute-las segundo a opiniatildeo mas segundo a essecircncia natildeo atravessar todas as dificuldades como uma razatildeo inabalaacutevel se for essa a postura dele natildeo afirmaraacutes que ele natildeo conhece nem o proacuteprio bem nem algum outro bem Mas se apreende uma imagem do bem eacute pela opiniatildeo que a apreende natildeo pela ciecircncia e a vida de agora passa-a sonhando e cochilando sem despertar antes de chegar ao Hades e laacute dormir completamente

Platatildeo sustentava tanto na Academia como nos seus diaacutelogos da maturidade que a

compreensatildeo dos fenocircmenos que ocorrem no mundo fiacutesico depende da hipoacutetese da

existecircncia de uma realidade superior que somente pode ser conhecida pela alma do

filoacutesofo constituiacuteda de arqueacutetipos eternos a saber as Ideias dos quais o mundo concreto

seria o simulacro imperfeito e pereciacutevel Todavia atraveacutes da dialeacutetica que constitui o

meacutetodo por excelecircncia da filosofia eacute possiacutevel ascender do mundo fiacutesico que eacute percebido

pelos oacutergatildeos dos sentidos e objeto apenas de opiniotildees muacuteltiplas e mutaacuteveis agrave

contemplaccedilatildeo dos modelos ideais que satildeo os objetos da verdadeira ciecircncia

Constatamos ateacute aqui que a dialeacutetica constitui um elemento central para a boa

retoacuterica mas existe outro aspecto igualmente importante que consiste no conhecimento

que o orador deve possuir a respeito da alma humana (ψυχή) O orador que pretende

ensinar a arte da palavra com rigor a qualquer pessoa deve estar apto a demonstrar a

essecircncia do objeto a que vai aplicar os seus discursos qual seja a alma humana (Fed

270e) Desse modo o orador deve compreender a natureza da alma natildeo agrave maneira dos

sofistas mas com rigorosa exatidatildeo (ἀκριβείᾳ) deve conhecer se a alma eacute simples ou

multiforme e o que ela tem a capacidade de fazer e de sofrer tanto como um todo quanto

em suas partes31 Noutros termos o orador deve mostrar qual seja a accedilatildeo que por sua

natureza a alma estaacute apta a exercer sobre outras coisas e por conseguinte qual a

influecircncia que pode sofrer por parte destas (Ibid 271a)

Eacute entatildeo evidente que Trasiacutemaco e todo aquele que se esforce por ensinar a arte oratoacuteria devem comeccedilar por descrever a alma com toda a exatidatildeo e por fazer ver se por ventura ela constitui uma coisa una e homogeacutenea ou se agrave maneira do corpo eacute multiforme Eis o que chamamos mostrar a natureza de alguma coisa

Depois de classificar tanto as almas quanto os discursos o orador deve adequar

cada tipo de alma com cada tipo de discurso explicando as razotildees pelas quais uma alma

eacute necessariamente persuadida pelos discursos de certo tipo e natildeo de outro (Ibid 271a-b)

Em segundo lugar descreve de que modo costuma o objeto produzir ou sofrer qualquer acccedilatildeo e sob o efeito de quecirc [] Em terceiro apoacutes ordenar os geacuteneros de discursos os geacuteneros da alma e suas modalidades deve referir todas as relaccedilotildees causais ajustando os geacuteneros de uns aos da outra e mostrando com que discursos e devido

31 A menccedilatildeo no Fedro agraves partes da alma pode ser melhor compreendida em relaccedilatildeo com um dos temas centrais do livro IV do diaacutelogo A Repuacuteblica no qual Platatildeo divide a alma humana em trecircs partes cada uma possuindo uma faculdade especiacutefica Escreve Platatildeo a este respeito (Rep 436a-b) ldquoMas jaacute que fica difiacutecil saber se realizamos cada atividade graccedilas a mesma faculdade ou sendo elas trecircs usamos cada uma delas para uma atividade diferente isto eacute se aprendemos com uma irritamo-nos graccedilas a outra faculdade que temos e noacutes ainda com uma terceira desejamos os prazeres da comida e da geraccedilatildeo de filhos e tudo o mais que tem afinidade com estes atos ou se com a alma inteira fazemos cada um desses atos quanto nos pomos em accedilatildeordquo Com efeito a primeira faculdade da alma eacute concupiscente A alma concupiscente eacute irracional estaacute situada no baixo ventre e busca a comida a bebida o sexo e os prazeres de maneira geral No entanto estas inclinaccedilotildees que satildeo irracionais podem ser dominadas atraveacutes da educaccedilatildeo moral e resultar na virtude da temperanccedila A segunda faculdade da alma eacute irasciacutevel e estaacute situada no peito porquanto se irrita e se enraivece contra tudo quanto possa vir a ameaccedilar a seguranccedila do corpo A alma irasciacutevel eacute responsaacutevel pela proteccedilatildeo do corpo e semelhantemente agrave alma concupiscente eacute irracional No entanto atraveacutes da educaccedilatildeo moral a inclinaccedilatildeo da alma irasciacutevel agrave agressividade pode resultar na virtude da coragem Finalmente a terceira faculdade da alma eacute racional situada na cabeccedila eacute a faculdade do conhecimento Eacute a parte espiritual e imortal da alma sua funccedilatildeo ativa superior e eacute essa parte da alma que deve exercer domiacutenio sobre as demais partes Isto posto para que seja possiacutevel a obtenccedilatildeo da justiccedila que constitui para Platatildeo a virtude fundamental tanto para o cidadatildeo quanto para a cidade eacute necessaacuterio que a alma racional domine a alma concupiscente e a alma irasciacutevel

a que causa uma alma se deixa necessariamente persuadir e outra desobedece

O orador deve pois estar apto para classificar o gecircnero dos discursos e das almas

mostrar as influecircncias que estas sofrem e as causas dessas influecircncias Precisa tambeacutem

saber comparar cada gecircnero do primeiro grupo com cada um do segundo e ensinar por

qual tipo de discurso cada gecircnero de alma eacute necessariamente persuadido destacar as

causas dessa persuasatildeo e as causas pelas quais os outros gecircneros natildeo se deixam persuadir

Assim o poder de persuasatildeo do orador se evidenciaria pela psicagogia (ψυχαγωγία) ou

seja pela faculdade de governar as almas (Ibid 261b) donde decorre que aquele que

deseja tornar-se orador necessariamente deve conhecer quantas formas existem na alma

(τὸν μέλλοντα ῥητορικὸν ἔσεσθαι ἀνάγκη εἰδέναι ψυχὴ ὅσα εἴδη ἔχει) Estas formas satildeo

em certo nuacutemero e tecircm suas proacuteprias qualidades por isso os homens possuem caracteres

distintos (Ibid 271d)

Depois de realizada a classificaccedilatildeo das almas deveraacute o orador fazer a distinccedilatildeo de

cada tipo de discurso em suas diferentes qualidades porquanto existem homens que satildeo

persuadidos por certos discursos enquanto que os mesmos discursos natildeo produziratildeo

nenhum efeito na alma de outrem Assim os ouvintes com um determinado estado de

espiacuterito ou dotados de caraacuteter firme soacute podem ser levados a agir em determinado sentido

por meio de recursos oratoacuterios escolhidos de acordo com sua maneira de ser Por essa

razatildeo descobrir os fundamentos psicoloacutegicos de toda a influecircncia sobre os homens eacute uma

das incumbecircncias do bom orador (Ibid 271d)

Entatildeo uma vez definidas essas o nuacutemero de espeacutecies de discursos eacute o mesmo e cada um com caracteriacutesticas especiacuteficas Por isso uns homens sob a accedilatildeo de determinados discursos e por determinado motivo tornam-se obedientes a certas convicccedilotildees outros poreacutem com natureza diferente natildeo de deixam persuadir pelas mesmas razotildees

Eacute manifesto que o orador precisa influir sobre a alma humana poreacutem natildeo eacute tanto

sobre o mero ornato formal do discurso que a verdadeira arte retoacuterica versa eacute antes sobre

a ψυχαγωγία porquanto se quiser dirigir adequadamente o auditoacuterio o orador deve

conhecer o mundo da alma humana com todas as suas emoccedilotildees e com todas as suas forccedilas

Aleacutem disso Platatildeo natildeo se contenta com a exigecircncia teoacuterica de elaborar um sistema

universal de categorias psicoloacutegicas em vista do seu uso na arte retoacuterica mas ele insiste

na aplicaccedilatildeo praacutetica desses conhecimentos nos casos concretos e de maneira determinada

(JAEGER 2003 1268-1269)

Depois que o orador tiver dominado todos esses assuntos eacute necessaacuterio aplicar o

conhecimento adquirido num contexto especiacutefico Soacutecrates enfatiza a noccedilatildeo de ldquotempo

exatordquo (καιρός) para aplicar esse conhecimento pois se o orador natildeo empregar o discurso

correto no momento oportuno todo o conhecimento retoacuterico natildeo teraacute nenhuma utilidade

Assim tendo em vista o benefiacutecio de sua audiecircncia o orador deve saber quando falar

mas tambeacutem quando natildeo dizer nada Eacute possiacutevel assegurar entatildeo que Soacutecrates natildeo estaacute

interessado somente no conhecimento intelectual de um determinado assunto e da

natureza da alma humana mas tambeacutem no conhecimento praacutetico que consiste em como

aplicar as diversas noccedilotildees necessaacuterias para a formaccedilatildeo do bom orador em contextos

especiacuteficos (Fed 272a) De acordo com a anaacutelise de Marina McCoy sobre o diaacutelogo

Fedro a atenccedilatildeo de Soacutecrates ao καιρός o momento certo e ao modo como ele fala mostra

sensibilidade agrave natureza situada do conhecimento humano Se o καιρός inclui uma noccedilatildeo

de improviso em como responder ao puacuteblico no momento mais adequado Soacutecrates seria

um verdadeiro mestre de improvisaccedilatildeo Natildeo obstante Soacutecrates estaacute sempre orientado

para as Ideias (ou Formas) ou seja as verdades imutaacuteveis agraves quais eacute atraiacutedo e agraves quais

ele espera atrair os seus interlocutores de modo que a atenccedilatildeo de Soacutecrates ao καιρός

reflete seu amor e sua preocupaccedilatildeo com aqueles Isto posto o seu uso na retoacuterica natildeo eacute

orientado somente agrave persuasatildeo de seu interlocutor de modo a acreditar nele mas ao amor

e agrave busca das Ideias O amor verdadeiro pelo puacuteblico requer amaacute-lo o suficiente para

conduzi-lo aleacutem de si mesmo como orador ou escritor em direccedilatildeo agraves Ideias Agrave vista disso

a retoacuterica filosoacutefica pode ser considerada uma ponte entre as Ideias eternas e imutaacuteveis

e a compreensatildeo parcial e limitada da verdade que caracteriza a natureza situada do

conhecimento humano (MCCOY 2010 211)

Em resumo para se ter domiacutenio da arte retoacuterica nos moldes aventados por Soacutecrates

deve-se cumprir os seguintes requisitos compreender a verdade sobre o assunto em

questatildeo tanto o todo quanto a articulaccedilatildeo de suas partes compreender com exatidatildeo

natureza da alma humana saber como conduzir uma audiecircncia especiacutefica agrave verdade

proferir um discurso claro e vigoroso de acordo com a natureza do material e finalmente

eacute necessaacuterio que a combinaccedilatildeo de todos esses elementos sejam eficazmente aplicados no

momento mais adequado

Aleacutem do mais conveacutem sublinhar um traccedilo da personalidade de Soacutecrates que se

destaca tanto no diaacutelogo Defesa de Soacutecrates (Def Soacutec 31c-d) quanto no diaacutelogo Fedro

(Fed 238e-241d) qual seja a influecircncia de sua divindade pessoal (δαιμόνιον) sobre sua

maneira de pronunciar um discurso e sobre sua maneira de agir Logo apoacutes a pronunciaccedilatildeo

do seu primeiro discurso (Ibid 238e-241d) Soacutecrates declara a Fedro que no momento em

que se preparava para atravessar o rio manifestou-se nele o costumeiro ldquosinal divinordquo

que amiuacutede o proiacutebe de fazer o que tem em mente (ἀεὶ δέ με ἐπίσχει ὃ ἂν μέλλω πράττειν)

Nesse contexto o δαιμόνιον natildeo deixou Soacutecrates partir antes de se purificar como se

tivesse cometido uma impiedade (ἡμαρτηκότα) contra a divindade A impiedade

mencionada por Soacutecrates refere-se ao primeiro discurso proferido por este a Fedro no qual

aquele natildeo havia exposto adequadamente as qualidades de Eros que eacute uma divindade

pois se Eros eacute filho da deusa Afrodite (Ibid 242c-243a) entatildeo Eros eacute um ser divino32

Assim Soacutecrates deixa para traacutes a etapa de tratar o amor como uma afecccedilatildeo humana

doentia e inicia-se uma nova etapa para revelar o amor como uma das quatro daacutedivas da

loucura advinda dos deuses Esta segunda etapa chama-se palinoacutedia (παλινῳδία) termo

que remonta agrave forma de purificar-se posta em praacutetica por Estesiacutecoro o qual evitou ser

punido com a cegueira compondo versos de retrataccedilatildeo (Ibid 243a-b)

Marina McCoy destaca que na palinoacutedia Soacutecrates segue estreitamente a abordagem

de Estesiacutecoro em seu proacuteprio discurso tanto em seu estilo liacuterico quanto no modo em que

ele se dedica a um tema eacutepico Soacutecrates faz alusatildeo a uma histoacuteria contada por Estesiacutecoro

de quem se diz acometido de cegueira apoacutes escrever uma histoacuteria caluniadora contra

Helena de Troia Ele teria obtido sua visatildeo somente depois de contar uma segunda versatildeo

na qual afirmava que apenas o fantasma de Helena foi levado a Troia Soacutecrates tambeacutem

descreve seu proacuteprio discurso como uma renuacutencia a seu primeiro discurso no qual critica

o amor O primeiro discurso de Soacutecrates corretamente identifica os males de amantes

egoiacutestas preocupados com sua proacutepria satisfaccedilatildeo O erro deste primeiro discurso eacute que

ele era muito simploacuterio e difamava Eros que eacute um ser divino (MCCOY 2010 190)

Aleacutem disso McCoy sublinha que a palinoacutedia mostra que Soacutecrates usa seu discurso

para conduzir a alma de Fedro para o amor Soacutecrates tambeacutem natildeo se esquiva de empregar

uma linguagem eroacutetica com Fedro Assim desde os primeiros momentos dramaacuteticos do

diaacutelogo Fedro Soacutecrates sugere que ele pode estar tentando seduzir Fedro Todavia a

seduccedilatildeo de Soacutecrates em relaccedilatildeo a Fedro tem o escopo de reorientar o amor que este tem

pelos discursos em direccedilatildeo agraves Ideias e agrave filosofia de modo que a seduccedilatildeo natildeo eacute de natureza

32 No diaacutelogo A Repuacuteblica Platatildeo apresenta basicamente o mesmo ponto de vista acerca dos deuses Para ele os deuses devem ser representados natildeo como a causa de todas as coisas que acontecem mas somente das coisas boas (Rep 379a-380c) os deuses natildeo mudam natildeo assumem formas multiplas tampouco enganam os homens (Ibid 380d-382a) eles natildeo mudam nem enganam os outros nem com apariccedilotildees nem com palavras nem com o envio de sinais em vigiacutelia ou em sonho (Ibid 382e) e quando se fala dos deuses eacute necessaacuterio que os discursos que se fazem enfatizem somente suas altas qualidades morais por exemplo de Hades natildeo se pode falar que tem falta de coragem pois se ele eacute um deus deve ser representado como destemido em relaccedilatildeo agrave morte (Ibid 386a-b)

sensiacutevel ou carnal Os discursos de Soacutecrates levam em consideraccedilatildeo o amor de Fedro

pelos discursos em seu uso de estilo que supera o discurso de Liacutesias E cada discurso por

seu turno tem por objetivo afastar Fedro do amor pelos discursos em si e aproximaacute-lo do

amor pelas Ideias O uso que Soacutecrates faz da linguagem eroacutetica para falar sobre filosofia

estimula Fedro a considerar o familiar anseio de amor sexual por outra pessoa numa

ligaccedilatildeo com as Ideias Soacutecrates ainda sugere que se Fedro cogitar que jaacute conhece a

extensatildeo do desejo eroacutetico por outra pessoa ele ainda natildeo mergulhou nas profundezas do

amor pois a sua descriccedilatildeo da profundidade do amor filosoacutefico constitui um desafio a

Fedro a vivenciaacute-lo por si mesmo (Ibid 2010 193-195)

Com efeito a tese geral da palinoacutedia de Soacutecrates consiste em provar que a loucura

(μανίας) natildeo eacute simplesmente um mal pois haacute grandes bens advindos aos seres humanos

mediante a loucura por daacutediva divina (θείᾳ μέντοι δόσει διδομένης) E a loucura inspirada

pelos deuses se manifesta de quatro maneiras distintas na profecia (e na adivinhaccedilatildeo)

daacutediva de Apolo na revelaccedilatildeo da cura de certas doenccedilas daacutediva de Dioniso na poesia

daacutediva das Musas e finalmente na contemplaccedilatildeo das Ideias daacutediva de Eros (que eacute a

precondiccedilatildeo para o verdadeiro discurso retoacuterico) Desse modo o amor para Soacutecrates eacute

uma possessatildeo uma loucura divina o que postula a necessidade de um deus uma forccedila

transcendente

De acordo com Soacutecrates eacute no estado de loucura que a profetisa de Delfos e as

sacerdotisas de Dodona tecircm proporcionado agrave Heacutelade inuacutemeros benefiacutecios tanto no

acircmbito privado como no puacuteblico (Fed 244b) Outrossim eacute no estado de loucura que

alguns indiviacuteduos dedicam-se agrave indagaccedilatildeo do futuro por meio de aves e de outros sinais

procurando para a opiniatildeo humana conhecimento e informaccedilatildeo (Ibid 244c) Soacutecrates

tambeacutem declara ser um tipo de adivinho (μαντικός) ou seja um sujeito inspirado pela

divindade (Ibid 242c)

Sou na verdade um adivinho natildeo muito haacutebil eacute certo mas agrave maneira das pessoas que conhecem mal as letras contudo para mim chega Eu tenho jaacute consciecircncia perfeita da minha falta Sem duacutevida amigo que a alma possui tambeacutem esse poder macircntico pelo menos em parte jaacute que ainda haacute pouco algo me perturbou quando pronunciava o discurso e como que me fez recear para dizer como Iacutebico

A segunda forma de loucura mencionada por Soacutecrates eacute aquela que revela a cura de

certas doenccedilas que recaem sobre certas famiacutelias por inveja dos deuses prescrevendo ritos

de expiaccedilatildeo ou de purificaccedilatildeo (Ibid 244e)

Outra forma de loucura se manifesta na poesia pois quando a inspiraccedilatildeo divina

encontra uma alma delicada e pura desperta-a e arrebata-a levando-a a expressar-se em

odes e outras formas de poesia embelezando as inuacutemeras accedilotildees dos antigos e educando

as futuras geraccedilotildees (Ibid 245a)

Finalmente o quarto tipo de loucura manifesta-se quando o filoacutesofo percebe a

beleza sensiacutevel como a beleza dos corpos e se recorda da verdadeira beleza da beleza

enquanto Ideia (Ibid 249d) Portanto para Soacutecrates a contemplaccedilatildeo das Ideias eacute a

melhor de todas as possessotildees divinas e a de melhor origem tanto para o que a possui

como para quem dela compartilha (Ibid 249d-e)

Ora eacute aqui que leva todo o desenvolvimento sobre o quarto tipo de loucura ndash pela qual o homem quando vecirc a beleza de caacute e recorda da verdadeira beleza eacute provido de asas e munido delas arde no desejo de voar sem forccedilas bastantes no entanto olha para cima agrave maneira de uma ave descura os assuntos terrenos e recebe entatildeo a acusaccedilatildeo de se encontrar em estado de loucura Leva ela assim agrave conclusatildeo de que em si mesma eacute a melhor de todas as possessotildees divinas e a de melhor origem tanto para o que a possui como para quem dela compartilha

No entanto natildeo eacute faacutecil para qualquer um lembrar-se das realidades suprassensiacuteveis

a partir dos objetos terrenos pois em relaccedilatildeo agraves diversas virtudes como a justiccedila a

sabedoria etc natildeo se encontra seu esplendor nas imagens da Terra Eacute com dificuldade

agrave custa de oacutergatildeos obscuros e recorrendo agraves representaccedilotildees desses objetos que poucos

iniciados conseguem contemplar as Ideias (Ibid 250b) Por essa razatildeo os objetos

supremos do conhecimento a saber as Ideias natildeo satildeo perfeitamente contempladas por

qualquer ser humano Somente os deuses podem contemplaacute-las com facilidade e a

maioria dos seres humanos pouco vecirc delas por isso a praacutetica da arte retoacuterica a qual

pressupotildee o conhecimento das Ideias natildeo pode constituir um empreendimento qualquer

(Ibid 272b) Enfim a genuiacutena arte retoacuterica natildeo eacute acessiacutevel a qualquer um que

simplesmente estude em manuais de retoacuterica admiraacuteveis artifiacutecios (παγκάλων

τεχνημάτων) tais como a maneira de apelar para as emoccedilotildees dos ouvintes a maneira de

dividir o discurso em vaacuterias partes de pronunciaacute-lo de forma concisa (βραχυλογιῶν) e

de se utilizar do estilo figurado (εἰκονολογιῶν) Escreve Platatildeo a este respeito (Ibid

268c-269b)

E que sucederia se agora algueacutem se aproximasse de Soacutefocles e de Euriacutepedes e lhes dissesse que sobre mateacuterias de pouca monta sabia compor longas tiradas e falas muito reduzidas a respeito de assuntos de grande importacircncia mover quando o desejar agrave piedade ou

inversamente causar terror e ameaccedila e tambeacutem outras do mesmo geacutenero ndash e se julgasse que ensinando esses processos transmitia a capacidade de compor trageacutedias [] Porventura natildeo responderia Soacutefocles do mesmo modo a quem lhes fizesse a ele e a Euriacutepedes ostentaccedilatildeo de conhecimentos preliminares da trageacutedia mas natildeo da trageacutedia E Acuacutemeno a quem declarasse conhecer os preliminares da medicina mas natildeo a medicina [] E que pensaremos de ldquoAdrasto da voz de melrdquo ou de Peacutericles se ouvissem os tatildeo admiraacuteveis artifiacutecios que agora mesmo acabamos de referir ndash braquilogias estilo figurado e tantos outros expedientes que passamos em resenha e declaramos necessitarem de ser examinados em plena luz

Conveacutem sublinhar que Soacutecrates natildeo reduz o valor de nenhuma das teacutecnicas acima

em vez disso ele afirma que elas satildeo incompletas sem a genuiacutena arte retoacuterica que

depende do domiacutenio do meacutetodo dialeacutetico Ele sugere que tais teacutecnicas satildeo insuficientes

do mesmo modo que qualquer um chamaria de louco um homem que afirmasse ser um

meacutedico depois de ler sobre como baixar a febre ou um homem que dissesse ser muacutesico

porque consegue alcanccedilar as notas mais altas ou mais baixas Desse modo uma pessoa

que estudou em manuais teacutecnicas retoacutericas apenas estudou os preacute-requisitos da retoacuterica

e natildeo a retoacuterica propriamente dita

43 O desprezo de Platatildeo pela retoacuterica do verossiacutemil

Com efeito Platatildeo rejeita no Fedro a verossimilhanccedila (εἰκός) como fonte da

argumentaccedilatildeo retoacuterica por serem opiniotildees aceitas pelo coletivo o que tornaria o orador

num simples bajulador pois ele se inclinaria a explorar o desejo pelo prazer que eacute

intriacutenseco agrave natureza humana Tal prazer limita-se ao acircmbito da opiniatildeo (δόξα) uma vez

que seu fundamento natildeo estaacute na Ideia que eacute una e estaacutevel mas nos sentidos instaacuteveis e

muacuteltiplos Aleacutem de criticar Liacutesias por natildeo falar nem escrever bem tambeacutem eacute alvo da

criacutetica platocircnica o orador Isoacutecrates o qual se posiciona explicitamente contra as teorias

de Platatildeo Para Isoacutecrates a moral e a poliacutetica estariam limitadas tatildeo somente ao acircmbito

da δόξα pois para ele natildeo existiria qualquer possibilidade de aquisiccedilatildeo de conhecimento

(ἐπιστήμη) relativo ao domiacutenio das accedilotildees praacuteticas nomeadamente as poliacuteticas E ao

contraacuterio de Platatildeo Isoacutecrates natildeo assume que o conhecimento (como o compreende

aquele) eacute um bem a ser adquirido mediante a educaccedilatildeo filosoacutefica porque o mesmo natildeo

proveria as necessidades das accedilotildees humanas33

Mas se eacute manifesto que Platatildeo despreza a opiniatildeo menos ainda faz concessatildeo agrave

opiniatildeo da maioria e isto porque ela se identifica com valores e crenccedilas que se baseiam

no consenso social Aleacutem do mais Platatildeo natildeo admite a verossimilhanccedila porque sua

admissatildeo se configuraria num instrumento sofiacutestico aplicado com dupla finalidade ora

para garantir a comunicaccedilatildeo assegurando valores jaacute conhecidos e aceitos ora para impor-

se fazendo crer que o veiculado constitui-se um saber autecircntico Nesse sentido o Soacutecrates

do Fedro afasta-se substancialmente de Liacutesias de Isoacutecrates e dos sofistas em geral ao dar

prioridade agraves Ideias como as verdadeiras condutoras das almas O bons oradores entatildeo

devem apenas imitar em maior e menor grau a verdade e a beleza que pertencem mais

completamente a elas Agrave vista disso as teses de Soacutecrates sobre a existecircncia das Ideias

revela um compromisso autecircntico de sua parte com a verdade em detrimento das

expressotildees individuais ou culturais dessas verdades que seriam espuacuterias Noutros termos

a boa retoacuterica e a boa filosofia natildeo podem fundamentar seus argumentos no consenso

social pois ambas tendem a buscar uma existecircncia real agrave parte das crenccedilas e valores

compartilhados pela maioria dos cidadatildeos

Todavia os escritores de manuais de retoacuterica criticados por Soacutecrates sustentam que

natildeo eacute necessaacuterio conhecer a verdade a respeito dos atos justos ou bons e acerca dos

homens que satildeo o que satildeo por natureza ou por educaccedilatildeo Eles tambeacutem asseguram que nos

tribunais natildeo interessa absolutamente a ningueacutem a verdade das coisas mas simplesmente

o que seja persuasivo E tal poder de persuasatildeo residiria no provaacutevel a que deve aplicar-

se quem deseja falar com arte porquanto existem casos em que de modo algum conveacutem

referir fatos que realmente aconteceram se natildeo se deram de forma verossiacutemil Os

oradores portanto devem falar de verossimilhanccedilas tanto na acusaccedilatildeo quanto na defesa

e de modo geral ao discursar eacute preferiacutevel que procurem o provaacutevel em desfavor do

verdadeiro porque eacute a probabilidade que presente no discurso abre caminho a toda arte

(Ibid 272d-273a)

33 De acordo com Isoacutecrates natildeo eacute possiacutevel agrave natureza humana adquirir o tipo de conhecimento atraveacutes do qual saberiacuteamos o que se deve fazer ou dizer Natildeo obstante ele considera saacutebios aqueles que pela opiniatildeo descobrem o que eacute o melhor e filoacutesofos aqueles que se ocupam com aquilo por meio do que obteratildeo tal tipo de sabedoria o mais raacutepido possiacutevel (Ant 271) ldquoἐπειδὴ γὰρ οὐκ ἔνεστιν ἐν τῇ φύσει τῇ τῶν ἀνθρώπων ἐπιστήμην λαβεῖν ἣν ἔχοντες ἂν εἰδεῖμεν ὅ τι πρακτέον ἤ λεκτέον ἐστίν ἐκ τῶν λοιπῶν σοφοὺς μὲν νομίζω τοὺς ταῖς δόξαις ἐπιτυγχάνειν ὡς ἐπὶ τὸ πολὺ τοῦ βελτίστου δυναμένους φιλοσόφους δὲ τοὺς ἐν τούτοις διατρίβοντας ἐξ ὧν τάχιστα λήψονται τὴν τοιαύτην φρόνησινrdquo

Em vez de procurarem a verdade os escritores de manuais de retoacuterica

contentavam-se fundamentalmente com o verossiacutemil e o provaacutevel mas Soacutecrates natildeo

procura convencecirc-los da necessidade de dizer a verdade pois como procede

frequentemente coloca-se no ponto de vista dos adversaacuterios para neste campo lhes

demonstrar que tambeacutem para eles o conhecimento da verdade eacute indispensaacutevel Assim

sendo a descoberta do εἰκός em que mormente se baseia a argumentaccedilatildeo retoacuterica

pressupotildee o conhecimento da verdade porque o εἰκός natildeo eacute outra coisa senatildeo o que

aparece semelhante agrave verdade (Ibid 273d)

Dentre os escritores de manuais censurados por Soacutecrates o siracusano Tiacutesias merece

especial destaque Tiacutesias foi disciacutepulo de Coacuterax (que eacute considerado o fundador da arte

retoacuterica) e mestre dos famosos sofistas Liacutesias e Goacutergias Para Tiacutesias a probabilidade seria

mais digna de estima do que a verdade (Τεισίαν δὲ Γοργίαν τε ἐάσομεν εὕδειν οἳ πρὸ

τῶν ἀληθῶν τὰ εἰκότα εἶδον ὡς τιμητέα μᾶλλον) Ele tambeacutem fazia com que os

argumentos pequenos parecessem grandes e os grandes parecessem pequenos em virtude

da forccedila da palavra (Ibid 267a) Tiacutesias ainda defendia que o verossiacutemil surge amiuacutede no

espiacuterito da maioria (πολλοῖς) devido agrave semelhanccedila com a verdade (Ibid 273d)

Entretanto para Soacutecrates unicamente a verdade deve ser objeto de investigaccedilatildeo e de

veiculaccedilatildeo e natildeo somente nos limites da filosofia mas tambeacutem no acircmbito da arte retoacuterica

Isto posto a retoacuterica que natildeo declara efetivamente a verdade natildeo faria outra coisa senatildeo

caccedilar opiniotildees e constituir-se-ia numa praacutetica ridiacutecula e natildeo numa autecircntica arte

Vecirc-se que Platatildeo persiste no antagonismo entre dois tipos de retoacuterica uma retoacuterica

que visa declarar a verdade a essecircncia das coisas e outra que visa somente produzir

aparecircncias e criar ilusotildees A primeira deve estar pautada na verdade indubitaacutevel pois

aquele que pronuncia determinada tese deve conhecer cabalmente aquilo do que vai falar

pois conforme jaacute examinado a primeira condiccedilatildeo estabelecida por Soacutecrates para o bom

discurso eacute que o orador conheccedila a verdade sobre o assunto que tenciona discutir (Ibid

259e)

Fedro contraporaacute a essa tese uma perspectiva diferente a existecircncia de uma retoacuterica

cuja base natildeo eacute a verdade mas a verossimilhanccedila Ele argumenta que cabe agrave audiecircncia

decidir se o discurso retoacuterico eacute eficaz ou natildeo porque ndash observa ele ndash o orador deve

conhecer natildeo a realidade do que eacute justo bom ou belo mas sim o que parece aos ouvintes

jaacute que satildeo estes afinal que iratildeo emitir o juiacutezo de valor sobre o que foi dito (Ibid 260a)

A respeito disso meu caro Soacutecrates ouvi dizer o seguinte quem se quer tornar orador natildeo tem necessidade de conhecer o que realmente eacute justo mas o que aparente secirc-lo agrave multidatildeo que deve julgar natildeo o que na realidade eacute bom e belo mas quanto daacute essa aparecircncia jaacute que daiacute deriva a persuasatildeo e natildeo da verdade

Para Soacutecrates em contrapartida o orador que ignora em estado de vigiacutelia ou em

sono a noccedilatildeo de justo ou injusto de mau ou de bom natildeo pode escapar nunca agrave censura

que merece ainda que a multidatildeo o louve (Ibid 277e) Soacutecrates rejeita a concepccedilatildeo de

Fedro sob o argumento de que no acircmbito da retoacuterica a demonstraccedilatildeo baseada na

verossimilhanccedila deve ceder lugar agrave demonstraccedilatildeo baseada unicamente na verdade E se

o uacutenico criteacuterio atraveacutes do qual o discurso retoacuterico torna-se legiacutetimo eacute a verdade entatildeo

natildeo conveacutem ao orador determinar segundo seus interesses a natureza dos assuntos

tratados no discurso mas deve sempre o orador pronunciar a verdade independentemente

se a mensagem agrade ou natildeo sua audiecircncia Ainda que o discurso conduza os ouvintes a

odiar o orador pelo teor das palavras que profere esta atitude deve caracterizar todo

aquele que se propotildee a esta atividade A retoacuterica digna do filoacutesofo aquela que

conquistaria por suas razotildees os proacuteprios deuses deve ser condicionada pela verdade e

natildeo pelo consenso social O orador portanto jamais deve preocupar-se em agradar os

homens mas somente os deuses e proferir um discurso digno deles (Ibid 273e 274b

274c)

E este resultado natildeo pode adquirir nunca sem muita aplicaccedilatildeo que quem for sensato deve exercitar natildeo com vista a falar e conviver com os homens mas para se tornar capaz duma linguagem e duma conduta que sejam o mais possiacutevel do agrado dos deuses [] Sabes na verdade qual eacute o melhor meio de agradar a divindade em mateacuteria de discursos quer na praacutetica quer na teoria [] No entanto se conseguiacutessemos descobri-la por noacutes mesmos acaso precisariacuteamos ainda nos preocupar com as opiniotildees dos homens

Um dos defeitos especiacuteficos da praacutetica retoacuterica censurada por Platatildeo nos seus

diaacutelogos consiste na tendecircncia a agradar os homens Ele rejeita essa noccedilatildeo em favor da

tese de que eacute necessaacuterio falar e agir a fim de agradar somente a divindade No diaacutelogo

Leis num expliacutecito contraste com a doutrina do homem-medida de Protaacutegoras Platatildeo

defende que deus eacute a medida de todas as coisas natildeo o homem (ὁ δὴ θεὸς ἡμῖν πάντων

χρημάτων μέτρον ἂν εἴη μάλιστα καὶ πολὺ μᾶλλον ἤ πού τις ὥς φασιν ἄνθρωπος)

Assim para ser amado pelos deuses todo homem teraacute necessariamente de tornar-se

semelhante a eles e isto na medida das suas possibilidades (Leis 716c) Conveacutem

sublinhar a este respeito a pertinente anaacutelise de Barbara Cassin segundo a qual a retoacuterica

defendida por Platatildeo no Fedro possuiria uma tarefa sem duacutevida infinita uma vez que ela

se aplica a todos e a tudo que ela natildeo existe sem o conhecimento da verdade e dos entes

e que seu momento-chave seria a τέχνη διαλεκτική De tal forma que um homem sensato

jamais deveria se esforccedilar para falar e agir em relaccedilatildeo com os homens mas para poder

fazer discursos que tecircm o favor dos deuses e agir tanto quanto possiacutevel de forma a obter

o favor deles Assim em sua relaccedilatildeo com o divino a arte retoacuterica seria o nome do projeto

pedagoacutegico infinito da filosofia ateacute mesmo para o proacuteprio filoacutesofo de tal modo que a

retoacuterica do Fedro ateacute poderia ser identificada com a proacutepria filosofia (CASSIN 2005

155)

Segundo Platatildeo o discurso retoacuterico que natildeo exprime o que a coisa necessariamente

eacute tambeacutem deixa de ser uma praacutetica moral e se afasta do dom dos deuses que avalia com

certeza os homens suas accedilotildees e aquilo que os cerca De dom divino ndash a recordaccedilatildeo da

Ideia do justo do belo e do bom que constitui a mais sublime das possessotildees divinas ndash o

discurso torna-se um simples instrumento de poder sobretudo para os sofistas que pela

seduccedilatildeo dos seus discursos atraem os favores das multidotildees O projeto de Platatildeo tenciona

restaurar com uma justificaccedilatildeo filosoacutefica uma crenccedila em criteacuterios absolutos e verdades

permanentes e invariaacuteveis existindo agrave parte da alma humana e natildeo afetadas por fenocircmenos

sensiacuteveis e accedilotildees individuais E acompanha-se isso por uma visatildeo do mundo como

produto da inteligecircncia divina A retoacuterica filosoacutefica de Platatildeo exposta no Fedro se oporia

agrave neutralidade da linguagem proposta pelos sofistas e estabeleceria como ideal uma

linguagem normativa a qual seria capaz de realizar a uniatildeo entre a eacutetica e a retoacuterica

Assim a diferenccedila entre a retoacuterica filosoacutefica e a retoacuterica sofiacutestica eacute normativa a retoacuterica

sofiacutestica eacute moralmente deficiente porque natildeo busca conduzir as multidotildees agraves Ideias ao

passo que a retoacuterica de Platatildeo sempre se nutre da preocupaccedilatildeo com seus interlocutores

uma preocupaccedilatildeo que em uacuteltima instacircncia se mostra em suas tentativas de aproximaacute-los

das Ideias que satildeo valores morais que fundam os juiacutezos sobre as coisas da vida humana

Por essa razatildeo os discursos escritos qualquer que seja o assunto natildeo merecem creacutedito

algum se neles inexiste a intenccedilatildeo de instruir moralmente os ouvintes tendo em vista

apenas a persuasatildeo (Fed 278a)

O que considerar que existe necessariamente uma dose abundante de divertimentos dos discursos escritos qualquer que seja o assunto e que nenhum deles em verso ou em prosa merece grande atenccedilatildeo ao ser escrito ou ao ser pronunciado como fazem os rapsodos sem espiacuterito criacutetico e sem intenccedilatildeo de instruir mas visando apenas a persuasatildeo que na realidade os melhores desses discursos constituem

um meio de suscitar a recordaccedilatildeo em quem jaacute sabe O que considerar pelo contraacuterio que os destinados ao ensino feitos para instruir e realmente escritos na alma a respeito do justo do belo e do bom satildeo os uacutenicos que mostram clareza perfeiccedilatildeo e merecem o nosso esforccedilo

Em conexatildeo com este assunto conveacutem reportar-se ao que Platatildeo escrevera no

diaacutelogo Goacutergias Soacutecrates pergunta ao sofista Goacutergias se a persuasatildeo que a retoacuterica

produz nos tribunais e nas aglomeraccedilotildees a respeito do justo ou do injusto eacute a que gera

crenccedila (ou opiniatildeo) sem o saber ou a que gera o saber A resposta de Goacutergias eacute categoacuterica

no sentido de sustentar que a persuasatildeo retoacuterica natildeo eacute geradora de saber mas de crenccedila

Isto posto a arte retoacuterica de Goacutergias seria simplesmente artiacutefice da persuasatildeo que infunde

crenccedila mas natildeo ensina nada a respeito do justo e do injusto Por isso o orador natildeo estaria

apto a ensinar nos tribunais e nas demais aglomeraccedilotildees a respeito do justo e do injusto

mas somente a fazecirc-los crer uma vez que ele natildeo seria capaz de ensinar a tamanha

multidatildeo em pouco tempo coisas tatildeo valiosas (Goacuterg 454e-455a)

Tendo em vista a concepccedilatildeo retoacuterica de Goacutergias exposta acima os oradores natildeo

teriam por objetivo alcanccedilar o supremo bem a fim de que os cidadatildeos sejam melhores ao

maacuteximo em virtude de seus discursos pelo contraacuterio eles deveriam devotar-se para o

deleite dos ouvintes negligenciando o interesse geral em vista do particular A despeito

de tudo isso Soacutecrates admite a possibilidade de uma boa retoacuterica ou seja uma retoacuterica

voltada natildeo para o deleite dos ouvintes mas para o seu benefiacutecio (Ibid 503b 504e)

Isso basta Se eacute duacuteplice uma parte dela seria adulaccedilatildeo e oratoacuteria puacuteblica vergonhosa ao passo que a outra seria bela que se dispotildee para tornar melhores ao maacuteximo as almas dos cidadatildeos e as defende dizendo o que eacute melhor seja isso mais apraziacutevel ou menos apraziacutevel aos ouvintes Mas retoacuterica como essa jamais viste ou melhor se pode nomear um reacutetor desse tipo por que natildeo me disseste quem ele eacute [] Ele teraacute sua mente continuamente fixa nesse escopo a fim de que a justiccedila surja nas almas de seus concidadatildeos e da injusticcedila se libertem a fim de que a temperanccedila surja e da intemperanccedila se libertem a fim de que toda e qualquer virtude surja e o viacutecio parta

Em outro passo do diaacutelogo em apreccedilo Soacutecrates declara para Polo que a retoacuterica soacute

seraacute uacutetil para a cidade se estiver vinculada com a defesa da justiccedila independente dos

prejuiacutezos que poderatildeo ocorrer com o orador em virtude de sua coragem de acusar de

injusticcedila os amigos os parentes ou ainda sua paacutetria (Ibid 480b-d)

Pois bem para a defesa da injusticcedila quer de sua proacutepria injusticcedila dos parentes dos amigos dos filhos ou de sua proacutepria paacutetria a retoacuterica natildeo nos eacute minimamente uacutetil Polo a natildeo ser que algueacutem conceba seu uso em sentido contraacuterio deve-se acusar

antes de tudo a si mesmo e entatildeo os familiares ou outro amigo qualquer sempre que se cometa alguma injusticcedila ao inveacutes de ocultaacute-lo deve-se trazer agrave luz o ato injusto a fim de pagar a justa pena e se tornar saudaacutevel deve-se constranger a si mesmo e aos demais a natildeo se acovardarem mas a se apresentarem de olhos cerrados correta e corajosamente [] deve-se ser primeiro a acusar a si proacuteprio e aos demais familiares e utilizar a retoacuterica com este escopo a fim de que uma vez fuacutelgidos os atos injustos cometidos se livrem do maior mal da injusticcedila

Ainda no diaacutelogo Goacutergias Soacutecrates sugere a Caacutelicles que o fato de ser expulso da

cidade ou na situaccedilatildeo limite perder a proacutepria vida natildeo eacute uma vergonha para o orador que

se propotildee falar a verdade para seus ouvintes O mais vergonhoso natildeo eacute ter a tecircmpora

rachada injustamente ou ter a bolsa ou o corpo lacerados mas o pior e mais vergonhoso

eacute cometer a injusticcedila (Ibid 508d-e) Sendo assim independente dos efeitos do discurso

dos seus resultados praacuteticos o orador deve acusar se for necessaacuterio natildeo somente a si

mesmo mas tambeacutem os familiares os amigos ou qualquer outra pessoa sempre que se

cometa alguma injusticcedila

Verificamos no iniacutecio do capiacutetulo 2 que o Soacutecrates da Defesa de Soacutecrates ndash

histoacuterico questionador moral e ironista ndash atua como um retoacuterico na medida em que

procura persuadir os seus ouvintes mas em vez de agradar e tentar obter a aprovaccedilatildeo

deles ele procura explicitamente encorajaacute-los a se tornarem pessoas mais virtuosas

Soacutecrates entatildeo faz do seu processo judicial um processo filosoacutefico pois entendia a si

mesmo como um indiviacuteduo incumbido de despertar a cidade de Atenas para o

conhecimento de si e para a praacutetica das virtudes tarefa que lhe foi confiada pelo deus de

Delfos em relaccedilatildeo agrave qual ele ligou sua existecircncia Outrossim Soacutecrates propotildee comunicar

o seu discurso judicial numa linguagem ordinaacuteria que se apresenta diretamente em sua

alma em coerecircncia com o que acredita ser verdadeiro e se for o caso em detrimento da

proacutepria vida A propoacutesito em duas ocasiotildees Soacutecrates revela o risco de ser morto em

decorrecircncia de suas convicccedilotildees filosoacuteficas Na condiccedilatildeo de priacutetane enfrentou o perigo ao

lado da lei e da justiccedila em vez de se colocar ao lado do Conselho por medo da prisatildeo ou

da morte E no tocante agrave ordem dos tiranos ele declara que mostrou natildeo com palavras

mas por atos que a morte natildeo tem a menor importacircncia quando esta se contrapotildee agrave justiccedila

e agrave verdade Divisamos ainda que tanto para o estudo da retoacuterica como para muitos outros

importantes temas da obra de Platatildeo o diaacutelogo Defesa de Soacutecrates constituiu um ponto

de partida fundamental Pode-se assegurar entatildeo que o discurso que Soacutecrates proferiu

em sua proacutepria defesa diante do tribunal de Atenas forneceu na medida do possiacutevel as

primeiras indicaccedilotildees para a compreensatildeo da posiccedilatildeo de Platatildeo acerca da arte retoacuterica

expressa sobretudo nos diaacutelogos Fedro e Goacutergias A partir de agora analisar-se-aacute a

concepccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles e seu contraste em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo retoacuterica de

Platatildeo bem como as presumiacuteveis razotildees pelas quais o Estagirita teria se afastado do

pensamento de seu mestre

5 A retoacuterica de Aristoacuteteles e seu contraste com a retoacuterica de Platatildeo

51 A distinccedilatildeo aristoteacutelica entre ciecircncia e arte retoacuterica

Considerando-se que houve no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles duas fases

distintas quais sejam a fase juvenil intimamente ligada agrave filosofia de Platatildeo e a fase que

refletiria a maturidade do seu pensamento a qual teria recebido forte influecircncia da

sofiacutestica pode-se assegurar que a arte retoacuterica de Aristoacuteteles situa-se equidistante tanto

em relaccedilatildeo agrave posiccedilatildeo dos sofistas quanto agrave posiccedilatildeo de Platatildeo Em relaccedilatildeo aos sofistas ele

rejeita explicitamente o relativismo eacutetico porque o orador jamais deve persuadir seus

ouvintes acerca do que eacute imoral mesmo sendo capaz de fazecirc-lo Portanto a fim de

preservar a retoacuterica da sofiacutestica e para que a poliacutetica seja devidamente protegida do

relativismo o Estagirita atribui agrave arte retoacuterica uma funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica Em relaccedilatildeo a

Platatildeo o Estagirita rejeita a identificaccedilatildeo pura e simples do discurso retoacuterico com a

verdade (ἀλήθεια) substituindo-a pela verossimilhanccedila (εἰκός) pois em sua visatildeo quem

se quer tornar orador natildeo tem necessidade de conhecer o que realmente eacute mas o que

aparente secirc-lo agrave multidatildeo que deve julgar Deveras o interesse de Aristoacuteteles pela retoacuterica

leva-o a concebecirc-la sob duas perspectivas que correspondem a dois compromissos

distintos mas coexistentes no interior do amplo campo das preocupaccedilotildees humanas a

defesa da verdade e da justiccedila na cidade e a admissatildeo e veiculaccedilatildeo das crenccedilas geralmente

aceitas pelo conjunto dos cidadatildeos Esses dois compromissos se afiguram grosso modo

no nuacutecleo da conciliaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo e a dos sofistas

Aristoacuteteles opotildeem-se aos sofistas para os quais tudo eacute relativo admitindo que

existe uma ciecircncia inteiramente exata E assim como Platatildeo ele admite uma ciecircncia que

por via demonstrativa parta do verdadeiro para chegar ao verdadeiro mas ao mesmo

tempo ele objeta que a ciecircncia mais exata tenha relevacircncia para persuadir certos

auditoacuterios aos quais falta a devida instruccedilatildeo filosoacutefica Dessarte no discurso retoacuterico natildeo

eacute preciso veicular verdades filosoacuteficas ou cientiacuteficas ao inveacutes disso eacute preciso utilizar

noccedilotildees que satildeo acessiacuteveis aos ouvintes comuns Isto posto eacute mister compreendermos o

que substancialmente distingue a concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo elaborada sobretudo no

diaacutelogo Fedro da concepccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles exposta nos trecircs livros da Retoacuterica

No seu tratado sobre a arte retoacuterica o Estagirita procura neutralizar o antagonismo

entre a verdade e a verossimilhanccedila que caracteriza a concepccedilatildeo platocircnica exposta no

diaacutelogo Fedro mediante a separaccedilatildeo de dois domiacutenios legitimamente autocircnomos ndash o

domiacutenio da filosofia (φιλοσοφία) ou da ciecircncia (ἐπιστήμη) que para Aristoacuteteles satildeo

termos equivalentes34 e o domiacutenio da retoacuterica (ῥητορική) Conveacutem lembrar que no Fedro

Platatildeo tambeacutem separa a filosofia da retoacuterica Ambas as disciplinas seriam distintas

poreacutem natildeo seriam autocircnomas Para ele a filosofia seria a disciplina principal e a retoacuterica

a secundaacuteria uma vez que eacute a filosofia que fornece agrave retoacuterica todas as condiccedilotildees para

tornar-se uma legiacutetima arte No entanto para Aristoacuteteles tanto a filosofia (cujo objeto eacute

a verdade) como a retoacuterica (cujo objeto eacute a verossimilhanccedila ou a probabilidade) adquirem

legitimidade no seu campo proacuteprio de atuaccedilatildeo sem que haja qualquer oposiccedilatildeo entre elas

Sendo assim Aristoacuteteles reabilita a arte retoacuterica ao integraacute-la numa visatildeo sistemaacutetica do

mundo onde ela ocupa o seu lugar sem ocupar o lugar todo como queriam os sofistas

tampouco submete-a inteiramente agrave eacutegide da filosofia como queria Platatildeo Enfim a arte

retoacuterica de Aristoacuteteles seria uma disciplina distinta e autocircnoma e a despeito de ser uma

arte (τέχνη) e uma faculdade (δύναμις) e ateacute mesmo um tipo de conhecimento

(ἐπιστήμη) posto que tambeacutem procura conhecer pela causa (αἰτία) ela certamente natildeo se

confunde com a sofiacutestica nem com a filosofia

Eacute manifesto que a filosofia tem por finalidade descobrir a verdade e natildeo eacute agrave toa

que Aristoacuteteles a designa como ldquoἐπιστήμην τῆς ἀληθείαςrdquo ou seja ldquoa ciecircncia da verdaderdquo

(Met 993b 20) A retoacuterica por sua vez preocupa-se com aquilo que pensam os homens

em geral com as crenccedilas compartilhadas pelo consenso social tendo como objetivo a

persuasatildeo A filosofia busca o conhecimento universal e necessaacuterio enquanto que a

retoacuterica volta-se para o particular plausiacutevel e como tal aceito pela maioria dos homens

Na condiccedilatildeo de uma disciplina praacutetica a retoacuterica deve preocupar-se em conhecer os

particulares pois a accedilatildeo humana tem a ver com os particulares e natildeo com os universais

E apesar de natildeo saber muitas coisas em geral o orador pode atuar de maneira mais eficaz

do que os saacutebios no que respeita agraves questotildees ligadas agraves accedilotildees humanas (Eacutet Nic 1141b

15-20) Aliaacutes a retoacuterica versa sobre questotildees que satildeo em certa medida da competecircncia

comum de todos os homens por isso a sua atuaccedilatildeo se exerce no campo conflitivo das

opiniotildees humanas Platatildeo entretanto estabelece um elevadiacutessimo padratildeo para o orador

34 Para C D C Reeve Aristoacuteteles aplica com frequecircncia o termo ldquoφιλοσοφίαrdquo a qualquer ciecircncia que mire a verdade e natildeo a accedilatildeo Nesse sentido todas as ciecircncias teoacutericas em geral contariam como ramos da φιλοσοφία a qual seria mais ou menos equivalente ao termo ldquoἐπιστήμηrdquo (REEVE 2014 296)

que deseja cumprir os requisitos de uma verdadeira arte ele exige que o orador seja

efetivamente um filoacutesofo Sendo assim o orador que natildeo cultivar a filosofia e natildeo possuir

o conhecimento universal e necessaacuterio relativo agrave verdade mas insistir em valorizar as

opiniotildees das multidotildees transformaraacute a retoacuterica numa praacutetica ridiacutecula desprovida de valor

artiacutestico

Pode-se assegurar que Aristoacuteteles (o qual foi o mais autecircntico disciacutepulo de Platatildeo

visto que partiu de suas aporias e procurou superaacute-las) leva em consideraccedilatildeo todas as

objeccedilotildees de seu mestre contra a retoacuterica nos diaacutelogos Goacutergias e Fedro Ele ateacute procura

cumprir algumas de suas exigecircncias mas como eacute natural o faz apenas de modo parcial

Isto ocorre porque as exigecircncias de Platatildeo especialmente no diaacutelogo Fedro incorrem no

postulado de que os verdadeiros oradores precisam ser genuiacutenos filoacutesofos No entanto

comprometido com a criacutetica de uma ciecircncia unitaacuteria o Estagirita rejeita a estrateacutegia

platocircnica no sentido de construir uma coextensatildeo entre a filosofia e a retoacuterica Em vez

disso ele atribui uma capacidade especiacutefica agrave retoacuterica que pode ser aprendida por todos

os cidadatildeos em termos de uma democratizaccedilatildeo e natildeo apenas por poucos iniciados apoacutes

um longo percurso formativo Dessarte todas as pessoas participariam em certa medida

da retoacuterica porque todas elas (seja por acaso ou por haacutebito) mormente procuram discutir

e sustentar teses realizar a proacutepria defesa e acusar os outros

Com efeito nos assuntos em que os sofistas estavam interessados o ponto de vista

aristoteacutelico parece estar de muitas formas mais proacuteximo ao deles que ao de Platatildeo Eacute

manifesto que o Estagirita partilha da perspectiva teleoloacutegica de Platatildeo pois embora

tivesse abandonado a transcendecircncia das Ideias platocircnicas continua acreditando na

existecircncia de substacircncias ou essecircncias permanentes correspondendo aos termos

universais Outrossim ele faz a distinccedilatildeo categoacuterica entre os fins e por conseguinte entre

os meacutetodos da pesquisa cientiacutefica de um lado e a inquiriccedilatildeo dos problemas ligados agraves

accedilotildees humanas de outro Em relaccedilatildeo agrave pesquisa cientiacutefica deve-se exigir os mais

rigorosos padrotildees de exatidatildeo poreacutem estes seriam inadequados para o estudo da arte

retoacuterica que eacute empreendido natildeo para fins teoacutericos mas para fins praacuteticos E no acircmbito da

eacutetica o abandono das normas ou modelos morais absolutos de Platatildeo teve consequecircncias

de longo alcance porquanto tornava possiacutevel a distinccedilatildeo entre teoria e praacutetica

conhecimento cientiacutefico e accedilatildeo que para o pensamento platocircnico satildeo coisas

indissociaacuteveis

A noccedilatildeo de que a filosofia e a retoacuterica possuem legitimidade no seu respectivo

campo de atuaccedilatildeo a primeira tendo por finalidade a verdade enquanto que segunda a

probabilidade assoma no registro histoacuterico de Dioacutegenes Laeacutercio de maneira bem

definida Este atribui a Aristoacuteteles a asserccedilatildeo de que a filosofia divide-se em duas grandes

partes a praacutetica e a teoacuterica A primeira incluiria a eacutetica e a poliacutetica agrave medida em que a

segunda incluiria a fiacutesica e a loacutegica Ele ainda explicita que a loacutegica a qual natildeo seria uma

ciecircncia independente mas um instrumento para as demais ciecircncias tem uma dupla

finalidade a probabilidade e a verdade E para cada uma dessas finalidades Aristoacuteteles

utilizaria duas faculdades a dialeacutetica e a retoacuterica para a probabilidade a anaacutelise e a

filosofia para a verdade sem nada negligenciar do que leva agrave descoberta ao juiacutezo ou agrave

utilidade Agrave descoberta ele teria dedicado os Toacutepicos os Metoacutedicos e numerosas

proposiccedilotildees atraveacutes das quais eacute possiacutevel dispor de argumentos provaacuteveis para resolver

certos problemas Para os juiacutezos ele teria composto tanto os Primeiros quanto os

Segundos Analiacuteticos Mediante os Primeiros Analiacuteticos julgar-se-iam as premissas e

atraveacutes dos Segundos Analiacuteticos provar-se-iam as conclusotildees E acerca do uso praacutetico

Aristoacuteteles teria deixado os preceitos sobre controversas sobre o procedimento mediante

perguntas e respostas sobre refutaccedilotildees sofiacutesticas sobre silogismos e muitas outras coisas

(Vid doutr fil il V 1 28-29)

Tendo em conta a separaccedilatildeo aristoteacutelica de dois domiacutenios legitimamente

autocircnomos o da filosofia e o da retoacuterica conveacutem compreendermos grosso modo a

natureza do conhecimento cientiacutefico a fim de comparaacute-lo ulteriormente com o tipo de

premissa que fundamenta os argumentos retoacutericos Conforme a anaacutelise de Robin Smith

Aristoacuteteles aborda o conhecimento cientiacutefico nos Segundos Analiacuteticos num sentido

preciso sentido para o qual ele usa a palavra ldquoἐπιστήμηrdquo Επιστήμη seria um corpo de

conhecimentos sobre determinado assunto organizado num sistema demonstrativo cujo

modelo satildeo as disciplinas matemaacuteticas da aritmeacutetica e da geometria que no seu tempo

eram apresentadas como seacuteries sistemaacuteticas de deduccedilotildees partindo de primeiros princiacutepios

baacutesicos35 Dessa maneira o conceito central dos Segundos Analiacuteticos consiste na

35 Para Enrico Berti a maior parte dos exemplos e termos dos quais Aristoacuteteles se serve nos Segundos Analiacuteticos satildeo extraiacutedos da geometria significando que esta ciecircncia representa o modelo de conhecimento cientiacutefico por ele teorizado Para Berti a geometria foi a primeira ciecircncia descoberta pelos gregos e a uacutenica que alcanccedilou no tempo do Estagirita um estatuto epistecircmico quase definitivo principalmente pelo impulso que recebera no seio da academia platocircnica por obra de matemaacuteticos como Eudoxo Teeteto e o proacuteprio Platatildeo Ademais natildeo seria casual que a realizaccedilatildeo plena das indicaccedilotildees contidas nos Segundos Analiacuteticos encontre-se nos Elementos de Euclides natildeo porque este dependa de Aristoacuteteles ao qual eacute posterior em alguns anos mas tambeacutem porque ele simplesmente sistematizou uma geometria jaacute existente no tempo de Aristoacuteteles a qual teria sido elaborada em grande medida por Eudoxo (BERTI 1998 10)

demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) que eacute uma espeacutecie de deduccedilatildeo Uma explicaccedilatildeo do

conhecimento que resulta de demonstraccedilotildees seria simplesmente uma explicaccedilatildeo do que eacute

conhecer as premissas e o conhecimento da conclusatildeo seguiria automaticamente Assim

ter conhecimento cientiacutefico de p eacute conhecer por que p eacute verdadeiro eacute saber a resposta agrave

questatildeo ldquopor que p eacute o casordquo Tal resposta teraacute a forma ldquoporque q e r do que decorre

prdquo Para que a resposta seja adequada as premissas q e r precisam ser verdadeiras e a

conclusatildeo p tem de seguir-se delas Isto posto uma ἀπόδειξις tem de ser um argumento

vaacutelido com premissas verdadeiras que se sabe serem verdadeiras (BARNES 2009 81-

82)

Aristoacuteteles assevera nos Segundos Analiacuteticos que pensamos conhecer

cientificamente alguma coisa natildeo agrave maneira dos sofistas quando pensamos conhecer

tanto a causa em funccedilatildeo da qual uma coisa eacute como tambeacutem que natildeo eacute possiacutevel que ela

seja de outra maneira Tal concepccedilatildeo parece excluir qualquer conhecimento de fatos

meramente contingentes Segue ipsis litteris a ceacutelebre asserccedilatildeo de Aristoacuteteles a respeito

da natureza do conhecimento cientiacutefico (Seg Anal 71b 9-15)

Julgamos conhecer cientificamente uma coisa qualquer sem mais (e natildeo de modo sofiacutestico por concomitacircncia) quando julgamos conhecer a respeito da causa pela qual a coisa eacute que ela eacute causa disso e que natildeo eacute possiacutevel ser de outro modo Eacute evidente que conhecer cientificamente eacute algo deste tipo pois tanto os que natildeo conhecem julgam estar assim dispostos como tambeacutem os que conhecem assim se dispotildeem de fato por conseguinte eacute impossiacutevel que seja de outro modo aquilo de que sem mais haacute conhecimento cientiacutefico

Tendo em consideraccedilatildeo a passagem supracitada eacute manifesto que Aristoacuteteles atribui

ao conhecimento cientiacutefico duas caracteriacutesticas fundamentais O conhecimento cientiacutefico

de um objeto qualquer envolve o conhecimento de sua causa (αἰτία) que deve ser

entendida como a razatildeo a explicaccedilatildeo de um fato de um comportamento ou de uma

propriedade O conhecimento cientiacutefico tambeacutem envolve a necessidade (ἀνάγκη) de suas

conclusotildees ou seja a impossibilidade de que quando se conhece cientificamente um

certo estado de coisas estas sejam diferentes de como satildeo conhecidas Essas

caracteriacutesticas por conseguinte satildeo asseguradas pela demonstraccedilatildeo ou pelo silogismo

cientiacutefico que tem lugar quando as premissas satildeo verdadeiras primeiras imediatas mais

cognosciacuteveis que a conclusatildeo anteriores a ela e causas dela (Ibid 271b 16-19) O

conhecimento cientiacutefico portanto natildeo pode ser constituiacutedo por simples experiecircncias as

quais se relacionam com fatos contingentes ou seja fatos que poderiam ser de uma

maneira ou de outra mas deve ser identificado com aquilo que eacute necessaacuterio E uma

proposiccedilatildeo eacute necessaacuteria quando em hipoacutetese alguma pode ser concebida de modo

diferente (Ibid 74b 5 74b 13)

Visto que o conhecimento demonstrativo proveacutem de princiacutepios necessaacuterios (pois aquilo que se conhece cientificamente natildeo pode ser de vaacuterios modos) [] Com efeito devemos afirmaacute-lo ou deste modo ou estabelecendo como princiacutepio que a demonstraccedilatildeo eacute necessaacuteria ou seja se algo estaacute demonstrado natildeo eacute possiacutevel que seja de outro modo portanto eacute preciso que tal silogismo proceda de itens necessaacuterios

Em conexatildeo com a definiccedilatildeo de conhecimento cientiacutefico exposta nos Segundos

Analiacuteticos o Estagirita explicita na Eacutetica a Nicocircmaco que todas as afirmaccedilotildees verdadeiras

tecircm de ser eternas porque natildeo pode haver conhecimento genuiacuteno de coisas que podem

ser modificadas ou destruiacutedas Para ele os objetos de conhecimento cientiacutefico possuem

intrinsecamente uma constituiccedilatildeo necessaacuteria por isso satildeo eternos ou seja natildeo satildeo

gerados nem destruiacutedos (Eacutet Nic 1139b 23-25) Todavia conveacutem frisar que o caraacuteter de

necessidade da ciecircncia compreendida em sentido aristoteacutelico eacute amiuacutede indicado atraveacutes

da afirmaccedilatildeo de que ἐπιστήμη constitui o conhecimento de coisas que existem sempre o

que natildeo significa que todos os objetos da ciecircncia sejam substacircncias eternas mas que satildeo

eternos os nexos entre certos objetos e certas propriedades suas das quais se obtecircm

ciecircncia O nexo entre o triacircngulo e a propriedade de ter a soma dos acircngulos internos igual

a dois retos eacute eterno O triacircngulo tem sempre essa propriedade ou seja qualquer triacircngulo

em qualquer situaccedilatildeo a tem (BERTI 1998 5) E assim como todo conhecimento

cientiacutefico parece ser suscetiacutevel de ser ensinado tambeacutem o que eacute objeto de conhecimento

cientiacutefico eacute suscetiacutevel de ser aprendido Outrossim o conhecimento cientiacutefico eacute uma

disposiccedilatildeo com capacidade demonstrativa mas se natildeo tiver os princiacutepios tatildeo bem

conhecidos quanto a conclusatildeo natildeo poderaacute ser considerado como tal mas apenas

acidentalmente (Eacutet Nic 1139b 25-35)

Aleacutem do mais assim como todo conhecimento cientiacutefico parece ser suscetiacutevel de ser ensinado tambeacutem o que eacute objeto de conhecimento cientiacutefico eacute suscetiacutevel de ser aprendido Todo o ensino se faz a partir daqueles conhecimentos que se adquiriram previamente tal como dissemos nos Analiacuteticos [] O conhecimento cientiacutefico eacute uma disposiccedilatildeo com capacidade demonstrativa ndash a qual acresce como definiccedilatildeo tudo aquilo que dissemos nos Analiacuteticos Quando algueacutem adquire de algum modo uma determinada convicccedilatildeo e os princiacutepios se lhe tornaram conhecidos esse algueacutem adquiriu um conhecimento cientiacutefico Se poreacutem natildeo tiver os princiacutepios tatildeo bem conhecidos quanto a conclusatildeo poderaacute ter um conhecimento cientiacutefico mas

apenas acidentalmente Foi deste modo definido o que eacute o conhecimento cientiacutefico

De acordo com C D C Reeve a demonstraccedilatildeo no sentido estrito ou seja a

ἀπόδειξις eacute encontrada somente nas ciecircncias teoreacuteticas cujos pontos iniciais e teoremas

aplicam-se com necessidade incondicional pois nelas o entendimento eacute dos termos e

definiccedilotildees que satildeo primaacuterios na ciecircncia os quais satildeo imutaacuteveis e eternos Por essa razatildeo

as demonstraccedilotildees das ciecircncias em questatildeo devem ser de natureza estrita e incondicional

No entanto Reeve enfatiza a existecircncia de demonstraccedilotildees praacuteticas pertencentes agraves

ciecircncias praacuteticas as quais satildeo de natureza menos estrita posto que satildeo aplicaacuteveis a coisas

que ocorrem em sua maior parte mas natildeo necessariamente Desse modo quando se

atribui agrave demonstraccedilatildeo praacutetica um papel que eacute restrito agraves coisas particulares ela eacute

caracterizada como natildeo voltada para o que ocorre sempre porquanto seu escopo eacute a accedilatildeo

particular a ser realizada nas circunstacircncias concretas (REEVE 2014 208-209)

Com efeito a ciecircncia poliacutetica a eacutetica e a retoacuterica em comum com outras ciecircncias

praacuteticas e produtivas tratam daquilo que ocorre no mais das vezes (ὡς ἐπὶ τὸ πολύ) e

assim chegam a conclusotildees que tambeacutem satildeo do mesmo tipo Assim muitos princiacutepios

eacutetico-poliacuteticos norteadores das accedilotildees humanas mesmo sendo verdadeiros em sua maior

parte trazem a possibilidade de exceccedilotildees Por exemplo Aristoacuteteles sustenta que na maior

parte dos casos eacute um dever maior dar a contrapartida pelos favores recebidos do que

favorecer os amigos Outrossim eacute um dever maior pagar as nossas diacutevidas aos nossos

credores do que emprestar dinheiro a algum amigo Todavia nem isso deve ser sempre

assim em todas as circunstacircncias pois natildeo eacute possiacutevel distinguir uma coisa ou outra de

uma forma rigorosamente cientiacutefica (Eacutet Nic 1164b 30-35) Dessarte eacute preciso

reconhecer que os princiacutepios eacutetico-poliacuteticos satildeo aplicados em sua maior parte mas natildeo

necessariamente

Olivier Reboul ressalta que na visatildeo de Aristoacuteteles a retoacuterica eacute uma arte situada

abaixo da filosofia e das ciecircncias exatas as quais satildeo demonstrativas e atingem verdades

necessaacuterias que como os teoremas soacute podem ser o que satildeo possibilitando compreender

e prever No entanto a arte retoacuterica soacute pode alcanccedilar o verossiacutemil ou seja aquilo que

acontece no mais das vezes mas que poderia acontecer de outra forma Reboul acrescenta

ainda que existem para Aristoacuteteles dois mundos O mundo divino (supralunar) que eacute

cognosciacutevel pela razatildeo demonstrativa a qual eacute capaz de conhecer tanto o divino invisiacutevel

quanto o divino visiacutevel ou seja os astros que satildeo objetos da astronomia matemaacutetica

posto que seus movimentos satildeo necessaacuterios Por serem necessaacuterios satildeo tambeacutem

perfeitamente calculaacuteveis e previsiacuteveis E o mundo terreno (sublunar) onde existem a

mudanccedila o acaso a contingecircncia a imprevisibilidade no qual a ciecircncia perfeita nunca eacute

possiacutevel onde existe o provaacutevel o verossiacutemil Por essa razatildeo este mundo seria mormente

aberto agrave accedilatildeo humana onde a previsatildeo eacute mais ou menos provaacutevel as decisotildees mais ou

menos justas no qual eacute mister contentar-se com provas mais ou menos convincentes e

com opccedilotildees mais ou menos razoaacuteveis (REBOUL 2004 40-41)

Aristoacuteteles assim como Platatildeo antes dele preocupou-se primordialmente com uma

compreensatildeo cientiacutefica do mundo que envolvesse o conhecimento pelas causas e tal

conhecimento tambeacutem teria por objeto o que natildeo pode ser de outra maneira Natildeo obstante

eacute inequiacutevoco que as condiccedilotildees em apreccedilo satildeo demasiadamente restritivas No que

concerne agrave arte retoacuterica Aristoacuteteles assevera que natildeo eacute conveniente ao orador veicular no

seu discurso proposiccedilotildees cientiacuteficas porquanto ainda que possuiacutesse a ciecircncia mais exata

ele natildeo seria capaz de persuadir um auditoacuterio natildeo especializado A comunicaccedilatildeo da

verdade cientiacutefica tornar-se-ia inuacutetil para um auditoacuterio composto de pessoas comuns

Portanto o discurso cientiacutefico soacute eacute adequado para o ensino enquanto que as provas por

persuasatildeo e os raciociacutenios retoacutericos satildeo formados de premissas comumente aceitas pelas

multidotildees (Ret 1355a 32-39)

Pois o discurso cientiacutefico eacute proacuteprio do ensino e o ensino aqui eacute impossiacutevel visto ser necessaacuterio que as provas por persuasatildeo e os raciociacutenios se formem de argumentos comuns como jaacute tivemos ocasiatildeo de dizer nos Toacutepicos a propoacutesito da comunicaccedilatildeo com as multidotildees

Considerando-se o ponto de vista de Aristoacuteteles de que o ensino seria adequado

somente no contexto especiacutefico da ciecircncia e natildeo no da retoacuterica Enrico Berti sustenta que

a situaccedilatildeo concreta na qual pensa Aristoacuteteles ao teorizar sobre a ciecircncia apodiacutectica seria

aquela constituiacuteda por um cientista que possuindo o domiacutenio de uma determinada

ciecircncia se propotildee a expocirc-la a outros ou seja a ensinaacute-la O discurso cientiacutefico seria

essencialmente um monoacutelogo ainda que direcionado aos ouvintes pois estes natildeo teriam

nada a dizer e deveriam somente aprender ou seja ser auxiliados a ver com clareza aquilo

que eacute obscuro Desse modo demonstrar cientificamente significaria mostrar a verdade de

alguma coisa a quem a ignora e isto significaria ensinar no sentido mais rigoroso do

termo (BERTI 1998 11) Eacute manifesto pois o caraacuteter essencialmente didaacutetico dos

silogismos apodiacutecticos os quais mesmo sob uma condiccedilatildeo de possiacutevel diaacutelogo como

exatamente eacute o ensino constituem por excelecircncia um monoacutelogo porque o discente

precisa confiar no docente (Ibid 1998 30-31) E uma vez que a demonstraccedilatildeo apodiacutectica

seja realizada por exemplo que a soma dos acircngulos internos de um triacircngulo equivale a

dois retos ela natildeo poderaacute jamais ser concebida pelo ouvinte de modo diferente a natildeo ser

que este entre em contradiccedilatildeo consigo mesmo

No entanto os assuntos tratados pela arte retoacuterica diferente do que ocorre na

ciecircncia ou nas demais artes podem receber uma soluccedilatildeo diferente ou seja podem ser de

uma maneira ou de outra porquanto no acircmbito do discurso retoacuterico delibera-se amiuacutede

sobre accedilotildees e todas elas apresentam em comum a ausecircncia de qualquer necessidade A

propoacutesito os temas mais importantes sobre os quais todos os oradores deliberativos

oferecem conselho em puacuteblico satildeo basicamente cinco financcedilas guerra e paz defesa

nacional importaccedilotildees e exportaccedilotildees e legislaccedilatildeo36

A deliberaccedilatildeo (βούλευσις) natildeo diz respeito a nenhum conhecimento cientiacutefico pois

quem estaacute a passar por um processo de deliberaccedilatildeo natildeo procura saber nada acerca de

coisas que jaacute conhece (Eacutet Nic 1142a 31-1142b 1) A βούλευσις eacute uma forma de

aconselhamento porque aquele que estaacute em processo deliberativo (a despeito do resultado

da deliberaccedilatildeo) procura mediante o caacutelculo de probabilidades (λογίζεσθαι) a melhor

soluccedilatildeo (Ibid 1142b 15) Outrossim nada do que jaacute ocorreu no passado poderaacute ser objeto

de deliberaccedilatildeo por exemplo ningueacutem pode ainda decidir se a cidade de Troia teraacute sido

destruiacuteda Desse modo ningueacutem eacute capaz de deliberar a respeito do que jaacute aconteceu mas

somente sobre o futuro e o que eacute possiacutevel (Ibid 1139b 5-10) Isto ocorre porque o ato

tipicamente deliberativo soacute eacute possiacutevel diante de fatos que admitem mais de uma soluccedilatildeo

jaacute que natildeo eacute possiacutevel deliberar senatildeo a respeito das questotildees que satildeo manifestamente

36 Conforme Aristoacuteteles o orador que se dispor a dar conselhos sobre financcedilas precisa conhecer os recursos que tem a cidade e qual o seu valor de tal modo que se algum for omitido fazer a reposiccedilatildeo e se algum for insuficiente o aumentar Deve ainda conhecer todas as despesas da cidade com o intuito de eliminar o que eacute supeacuterfluo e reduzir o que for excessivo A respeito da guerra e da paz ele precisa conhecer o poder da cidade quanta forccedila jaacute possui e a quanta pode chegar a natureza das forccedilas que tem agrave sua disposiccedilatildeo e as que pode acrescentar conhecer com que povos se pode esperar fazer a guerra a fim de manter a paz com os mais fortes e deflagrar a guerra contra os mais fracos e se os recursos militares da cidade satildeo iguais ou desiguais aos dos vizinhos Quanto agrave defesa do paiacutes o orador natildeo pode ignorar o modo como este eacute guardado mas conhecer o nuacutemero e a espeacutecie das tropas que o defendem e os lugares onde se localizam as fortalezas Acerca da provisotildees ele precisa conhecer quantos e quais os gastos suficientes agrave cidade que alimentos satildeo produzidos no seu solo e os que satildeo importados e que exportaccedilotildees e importaccedilotildees satildeo necessaacuterias tendo em vista os possiacuteveis tratados e acordos E sobre a legislaccedilatildeo eacute indispensaacutevel que ele saiba quantas satildeo as formas de governo o que conveacutem a cada uma e por quais razotildees se corrompem eacute uacutetil ainda para a legislaccedilatildeo que ele natildeo conheccedila somente qual eacute a forma de governo conveniente mas tambeacutem conhecer as dos outros paiacuteses e satildeo uacuteteis os relatos de viagens porque neles pode-se aprender as leis dos povos (Ret 1359b 33-1360a 44)

suscetiacuteveis de receber duas soluccedilotildees contraacuterias Escreve Aristoacuteteles sobre este assunto

(Ret 1356b 43-1357a 1-9)

Pois tambeacutem esta natildeo forma silogismos de premissas tomadas ao acaso (ainda que assim pareccedila aos insensatos) mas das que o raciociacutenio requer e a retoacuterica forma-os da mateacuteria sobre que estamos habituados a deliberar A funccedilatildeo desta consiste em tratar das questotildees sobre as quais deliberamos e para as quais natildeo dispomos de artes especiacuteficas e isto perante um auditoacuterio incapaz de ver muitas coisas ao mesmo tempo e de seguir uma longa cadeia de raciociacutenios Noacutes deliberamos sobre as questotildees que parecem admitir duas possibilidades de soluccedilatildeo jaacute que ningueacutem delibera sobre as coisas que natildeo podem ter acontecido nem vir a acontecer nem ser de maneira diferente pois nesses casos nada haacute a fazer

Conforme a anaacutelise de Pierre Aubenque sobre a βούλευσις natildeo se delibera sobre

todos os assuntos mas somente sobre aqueles que dependem da accedilatildeo humana o que

excluiria os seres imutaacuteveis e eternos (da ciecircncia) A deliberaccedilatildeo envolveria tudo aquilo

que eacute obra do homem e em oposiccedilatildeo a Platatildeo Aristoacuteteles aventaria a incompatibilidade

entre a ciecircncia e a iniciativa humana que seria a consequecircncia da separaccedilatildeo de seus

domiacutenios Para Aubenque a ciecircncia diz respeito ao necessaacuterio enquanto que a atividade

inteligente do homem concerne senatildeo ao acaso pelo menos a um domiacutenio intermediaacuterio

entre a necessidade e o acaso ndash as coisas que acontecem frequentemente cujo resultado

eacute incerto e comportam indeterminaccedilatildeo Dessarte a deliberaccedilatildeo representaria a via

humana ou seja aquela de um homem que natildeo eacute completamente saacutebio nem ignorante

num mundo que natildeo eacute absolutamente racional nem absurdo (AUBENQUE 2003 174-

175 188)

Outrossim a deliberaccedilatildeo seria da ordem da opiniatildeo de um saber aproximativo

como o eacute o seu objeto e fundado nesse saber nenhuma deliberaccedilatildeo pode ser considerada

infaliacutevel O homem de bom conselho anuncia o que eacute possiacutevel e o que natildeo eacute mas natildeo

pode fazer com que esse ldquopossiacutevelrdquo seja necessaacuterio Agrave vista disso ainda que a deliberaccedilatildeo

seja a melhor ou a mais razoaacutevel sempre comportaraacute o risco do insucesso Todavia o que

justificaria humanamente a deliberaccedilatildeo apesar da sua falibilidade eacute que uma accedilatildeo ideal

e cientiacutefica com a qual sonhava Platatildeo natildeo parece ser possiacutevel em virtude da resistecircncia

das mediaccedilotildees rebeldes da mateacuteria e da imprevisibilidade do tempo (Ibid 2003 184)

A verdade com a qual a retoacuterica estaacute comprometida natildeo se relaciona a estados de

coisas necessaacuterios mas agravequeles que tambeacutem podem comportar-se diferentemente e sobre

os quais satildeo possiacuteveis somente proposiccedilotildees vaacutelidas no mais das vezes (ὡς ἐπὶ τὸ πολύ)

E tal domiacutenio conteacutem exatamente as coisas sobre as quais se tem de entrar em conselho

consigo mesmo ou com os demais cidadatildeos da sociedade Isto posto o acircmbito da arte

retoacuterica eacute o da deliberaccedilatildeo e nesse domiacutenio predomina o verossiacutemil jaacute que natildeo se delibera

sobre aquilo que eacute evidente mas sobre fatos incertos que podem realizar-se atraveacutes das

accedilotildees humanas como a vitoacuteria numa guerra e coisas desse jaez

De fato soacute eacute possiacutevel deliberar sobre coisas que eacute possiacutevel influenciar mediante as

accedilotildees humanas razatildeo pela qual ningueacutem delibera sobre coisas eternas como o sistema

solar ou a incomensurabilidade da diagonal e do lado do quadrado Tambeacutem natildeo se

delibera sobre as coisas que estatildeo sempre num movimento regular a exemplo dos

solstiacutecios e do nascer do sol (Eacutet Nic 1112a 20-25) Pode-se estudar esses assuntos

contemplativamente mas eacute manifesto que elas natildeo podem ser afetadas pela deliberaccedilatildeo

ou pela escolha humana A deliberaccedilatildeo diz respeito agraves coisas que embora seguindo em

geral certas linhas definidas natildeo tecircm resultados previsiacuteveis Algumas coisas natildeo admitem

de modo algum ser de outro jeito porque como eternas e imutaacuteveis elas satildeo

incondicionalmente necessaacuterias Todos os assuntos ligados agrave matemaacutetica agrave astronomia

ou agrave teologia natildeo estatildeo dentro da esfera da deliberaccedilatildeo E sobre estes assuntos ningueacutem

com algum entendimento iria deliberar embora um tolo ou um louco pudesse fazecirc-lo

Aliaacutes natildeo se delibera sobre os fins mas somente sobre os meios um meacutedico jamais

delibera se efetuaraacute ou natildeo a cura de seu paciente o orador natildeo delibera se persuadiraacute ou

natildeo os seus ouvintes ou um poliacutetico se vai ou natildeo produzir uma boa legislaccedilatildeo mas eles

se ocupam dos meios a partir dos quais poderatildeo atingir seus objetivos (Ibid 1112b 12-

15)

Conveacutem ainda levar em consideraccedilatildeo que do ponto de vista da comunicaccedilatildeo com

as multidotildees o discurso retoacuterico deve apoiar-se nos valores comuns nas opiniotildees

geralmente aceitas como expedientes legiacutetimos a fim de obter a persuasatildeo poreacutem

Aristoacuteteles natildeo deixa de reconhecer que em termos absolutos a verdade eacute sempre

superior em relaccedilatildeo agrave opiniatildeo (Ret 1365a 47-1365b 1) No entanto nos contextos em

que eacute mister a deliberaccedilatildeo o emprego da argumentaccedilatildeo retoacuterica torna-se crucial para

encontrar a soluccedilatildeo mais adequada em face de um impasse qualquer Sendo assim numa

situaccedilatildeo destituiacuteda de evidecircncia onde natildeo eacute possiacutevel uma demonstraccedilatildeo cientiacutefica nem

qualquer previsatildeo exata a arte retoacuterica possui a funccedilatildeo de fazer a defesa de um

determinado ponto de vista e esclarecer aqueles que devem formular a decisatildeo definitiva

a saber os juiacutezes de um tribunal ou os membros de uma assembleia A este respeito Luiz

Rohden declara que uma das utilidades da arte retoacuterica consiste na tentativa de

fundamentar decisotildees praacuteticas que podem orientar em diferentes sentidos o agir humano

pois na condiccedilatildeo de um tipo de racionalidade a retoacuterica compotildeem-se do universo do

persuasivo em que os temas eacutetico-poliacuteticos satildeo organizados dentro de uma ldquoarquitetura

razoaacutevelrdquo em que haacute diferentes possibilidades para o agir humano A atividade retoacuterica

portanto vincula-se ao universo da deliberaccedilatildeo e do realizaacutevel Aliaacutes no acircmbito da

retoacuterica seria inuacutetil investigar o bem humano em si conforme preconiza o projeto

platocircnico mas eacute necessaacuterio considerar o bem enquanto referido a um puacuteblico em

particular cujo aspecto foi negligenciado por Platatildeo e eacute desconsiderado pela

racionalidade apodiacutectica (ROHDEN 1997167 169)

Para Aristoacuteteles todos os silogismos (cientiacutefico dialeacutetico e retoacuterico) satildeo formados

de premissas semelhantes Das premissas de que se formam os entimemas umas seratildeo

necessaacuterias mas a maior parte eacute apenas frequente Assim os silogismos retoacutericos

(ῥητορικοὶ συλλογισμοί) mormente derivam de probabilidades (εἰκότων) e de sinais

(σημείων) enquanto que os silogismos cientiacuteficos satildeo formados a partir de premissas

necessaacuterias (Ibid 1357a 34-43)

[] e como as coisas que acontecem agrave maioria e satildeo possiacuteveis apenas se podem provar mediante silogismos formados de premissas semelhantes tal como as necessaacuterias se concluem das necessaacuterias ( o que tambeacutem sabemos pelos Analiacuteticos) eacute evidente que das premissas de que se formam os entimemas umas seratildeo necessaacuterias mas a maior parte eacute apenas frequente E uma vez que os entimemas derivam de probabilidades e sinais eacute necessaacuterio que cada um destes se identifique com a classe de entimema correspondente

Pode-se assegurar entatildeo que a arte retoacuterica estaacute longe de ser uma ciecircncia exata

que partiria de axiomas e princiacutepios cujas conclusotildees seriam sempre necessaacuterias longe

disso o seu processo de inferecircncia deve limitar-se ao seu proacuteprio material as

probabilidades e os sinais Na maior parte dos casos as argumentaccedilotildees retoacutericas natildeo

possuem caraacuteter de ciecircncia ou seja de verdade necessaacuteria Por isso se um orador escolhe

as premissas dos seus argumentos de modo a defrontar-se com verdadeiros princiacutepios ele

jaacute natildeo faz mais retoacuterica mas ciecircncia Ademais o discurso cientiacutefico eacute um monoacutelogo de

modo que os ouvintes nada teriam a dizer devendo somente aprender ao passo que este

processo natildeo ocorreria no discurso retoacuterico o qual se abre agraves perspectivas individuais de

cada ser humano Por essa razatildeo o orador que ultrapassa os limites da retoacuterica e invade

o campo da ciecircncia ao demonstrar suas teses atraveacutes de silogismos regulares e conclusotildees

necessaacuterias perde a caracteriacutestica de orador e transforma-se num homem de ciecircncia ou

num filoacutesofo

Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles explicita que a investigaccedilatildeo sobre determinados

assuntos sobretudo os ligados agraves accedilotildees humanas apenas seraacute adequada se contiver tanta

exatidatildeo (ἀκριβής) quanto comportar o assunto de modo que natildeo se deve exigir precisatildeo

em todos os raciociacutenios nem eacute necessaacuterio procurar o mesmo grau de rigor para todas as

aacutereas cientiacuteficas nem para todas as artes Isto posto no acircmbito da arte retoacuterica conveacutem

contentar-se com a indicaccedilatildeo da verdade aproximadamente em linhas gerais e falar de

coisas que satildeo verdadeiras ὡς ἐπὶ τὸ πολύ ou seja no mais das vezes e natildeo em termos

absolutos Aleacutem disso eacute proacuteprio daquele que passou por um processo de educaccedilatildeo buscar

a precisatildeo em cada gecircnero de coisas mas somente na medida em que a admite a natureza

do assunto Dessarte eacute evidente que natildeo seria menos insensato aceitar um raciociacutenio

provaacutevel da parte de um matemaacutetico do que exigir demonstraccedilotildees cientiacuteficas de um

orador37 Escreve Aristoacuteteles sobre este assunto (Eacutet Nic 1094 b 20-30)

Damo-nos portanto por satisfeitos se ao tratarmos desses assuntos a partir de pressupostos que admitem margem de erro indicarmos a verdade grosso modo segundo uma sua caracterizaccedilatildeo apenas nos traccedilos essenciais Pois para o que acontece apenas no mais das vezes com pressupostos compreendidos apenas grosso modo e segundo uma caracterizaccedilatildeo nos seus traccedilos essenciais basta que as conclusotildees a que chegarmos tenham o mesmo grau de rigor Do mesmo modo eacute preciso pedir que cada uma das coisas tratadas seja aceite a partir dessa mesma base de entendimento Eacute que eacute proacuteprio daquele que passou por um processo de educaccedilatildeo requerer para cada passo particular de investigaccedilatildeo apenas tanto rigor quanto a natureza do tema em tratamento admitir Na verdade parece um erro equivalente aceitar conclusotildees aproximadas a um matemaacutetico e exigir demonstraccedilotildees a um orador

Com efeito quando as coisas numa determinada aacuterea sobretudo em relaccedilatildeo agraves

situaccedilotildees concretas da accedilatildeo humana aplicam-se em sua maior parte parece que a verdade

sobre elas precisa ser veiculada nos seus traccedilos essenciais em vez de rigorosamente

(Ibid 1104a 1-3) Nesse caso o tratamento de um assunto nos seus traccedilos essenciais

parece ser a funccedilatildeo do grau de rigor que o assunto impotildee agrave ciecircncia que o aborda Na arte

37 Semelhantemente o Estagirita contrapotildee na Metafiacutesica dois tipos opostos de discurso quais sejam o matemaacutetico caracterizado por um rigor absoluto e outro facilmente identificaacutevel com aquele da arte retoacuterica destituiacutedo de rigor e caracterizado pelo uso de exemplos e testemunhos poeacuteticos (Met 995a 5-10) ldquoOra alguns natildeo estatildeo dispostos a ouvir se natildeo se fala com rigor matemaacutetico outros soacute ouvem quem recorre a exemplos enquanto outros ainda exigem que se acrescente o testemunho de poetas Alguns exigem que se diga tudo com rigor para outros a contraacuterio o rigor incomoda seja por sua incapacidade de compreender os nexos do raciociacutenio seja por aversatildeo agraves sutilizas De fato algo do rigor pode parecer sutileza e por isso alguns o consideram um tanto mesquinho tanto nos discursos quanto nos negoacuteciosrdquo

retoacuterica (bem como na ciecircncia poliacutetica e na eacutetica) discute-se sobre coisas que se aplicam

ὡς ἐπὶ τὸ πολύ razatildeo pela qual essas disciplinas satildeo tratadas em linhas gerais e natildeo com

o rigor cientiacutefico que caracteriza as ciecircncias exatas Todavia este tratamento longe de

ser uma falha corrigiacutevel em uma ciecircncia parece ser um sinal de sua probidade intelectual

ou seja do entendimento de que seu grau de rigor deve corresponder ao seu proacuteprio

objeto Dessa maneira constitui uma marca de falta de instruccedilatildeo esperar maior rigor em

uma ciecircncia do que o seu assunto permite

Outrossim Aristoacuteteles assegura que o verdadeiro homem de accedilatildeo poliacutetica

(πολιτικός) deve de alguma forma conhecer a alma humana mas natildeo no sentido rigoroso

do termo conforme aventava Platatildeo mas ele deve apenas conhecer um conhecimento

teoacuterico dela nos seus aspectos gerais apenas na medida adequada para fins legislativos

uma vez que o conhecimento mais rigoroso demandaria mais esforccedilo do que o seu

propoacutesito requer (Ibid 1102a 1-10) Desse modo natildeo cabe ao homem de accedilatildeo poliacutetica

investigar com rigor cientiacutefico a natureza da alma humana porque tal incumbecircncia cabe

ao filoacutesofo A mesma concepccedilatildeo aplicar-se-ia ao orador pois este deve conhecer a alma

humana bem como outras mateacuterias somente na medida em que eacute uacutetil para os propoacutesitos

da persuasatildeo

Aristoacuteteles estabelece nos Toacutepicos que uma definiccedilatildeo eacute uma frase ou proposiccedilatildeo

que significa a essecircncia de uma coisa (Toacutep 102a 1) No entanto ele enfatiza na Retoacuterica

que as definiccedilotildees propostas para serem utilizadas nos argumentos retoacutericos satildeo suficientes

para a finalidade de persuadir se natildeo forem obscuras nem tecnicamente rigorosas (Ret

1369b 39-41) A retoacuterica por certo natildeo pode descer aos detalhes e determinar com

absoluta precisatildeo exatidatildeo ou rigor o que eacute belo justo e bom em toda e qualquer

circunstacircncia ou em qualquer caso particular mas deve indicar o que eacute belo justo e bom

em geral A distinccedilatildeo entre os niacuteveis de precisatildeo na abordagem da retoacuterica e da eacutetica a

tiacutetulo de exemplo pode ser encontrada no contraste entre o modo como Aristoacuteteles

procede na definiccedilatildeo de virtude (ἀρετή) na Retoacuterica e na Eacutetica a Nicocircmaco

Na Retoacuterica a ἀρετή consiste de um lado no poder de produzir e conservar os bens

e de outro na faculdade de prestar muitos e relevantes serviccedilos de toda sorte e em todos

os casos Os elementos da virtude satildeo a justiccedila a coragem a temperanccedila a magnificecircncia

a magnanimidade a liberalidade a mansidatildeo a prudecircncia e a sabedoria E as maiores

virtudes satildeo necessariamente as que satildeo mais uacuteteis aos outros uma vez que a virtude eacute a

faculdade de fazer o bem Por isso se honram principalmente os justos em vez dos

corajosos visto que aqueles satildeo uacuteteis natildeo somente no periacuteodo da guerra mas tambeacutem no

periacuteodo de paz (Ibid 1366b 1-8)

Na Eacutetica a Nicocircmaco aleacutem de aprofundar as noccedilotildees acima indicadas Aristoacuteteles

assegura que a ἀρετή eacute um haacutebito voluntaacuterio que consiste num meio-termo (μεσοτeacuteς)

estabelecido pela razatildeo e como a estabeleceria um homem dotado de prudecircncia (Eacutet Nic

1107a 1-4) Desse modo a virtude eacutetica seria uma disposiccedilatildeo do caraacuteter escolhida

antecipadamente a qual estaacute situada no meio e eacute definida relativamente aos agentes

morais E a situaccedilatildeo do meio existe entre dois viacutecios o excesso (ὑπερβολή) e o defeito

(ἔλλειψις) Aliaacutes sem muito rigor e aprofundamento em comparaccedilatildeo com a Eacutetica a

Nicocircmaco Aristoacuteteles define a justiccedila na Retoacuterica simplesmente como a virtude pela qual

cada um possui os bens em conformidade com a lei e a injusticcedila o viacutecio pelo qual se

reteacutem o que eacute dos outros em detrimento da lei (Ret 1366b 10-13)

Conforme a apreciaccedilatildeo de E M Cope sobre este assunto existiria na Eacutetica a

Nicocircmaco (Livro II cap 6) uma completa descriccedilatildeo de todos os pontos e caracteriacutesticas

essenciais pelas quais a virtude eacute distinta de outros estados intelectuais e morais poreacutem

na Retoacuterica (Livro I cap 9) as definiccedilotildees seriam superficiais e incompletas Ele tambeacutem

enfatiza que a mesma definiccedilatildeo de prazer exposta na Retoacuterica com o intuito de persuadir

o auditoacuterio (Livro I cap 11) seria rejeitada na Eacutetica a Nicocircmaco (Livro X cap 3) Aleacutem

disso o mesmo aconteceria em outras obras de Aristoacuteteles na anaacutelise feita acerca dos

tipos de governos na Poliacutetica (livro III) e na Retoacuterica (Livro I cap 8) e na definiccedilatildeo de

πάθη que eacute encontrada em Sobre a Alma (Livro I cap 1 15) e na Retoacuterica (Livro II cap

1) Enfim Cope justifica as dessemelhanccedilas em apreccedilo mediante a hipoacutetese de que as

definiccedilotildees retoacutericas soacute visam descrever as coisas como elas satildeo na comunicaccedilatildeo e no

intercacircmbio entre os homens por isso devem ser adequadas para o propoacutesito da

persuasatildeo enquanto que as definiccedilotildees cientiacuteficas se esforccedilam por penetrar na verdadeira

natureza das coisas e estabelecer a sua essecircncia (COPE 1867 13)

52 Entimema o silogismo retoacuterico

Para Aristoacuteteles um silogismo (συλλογισμός) eacute um argumento em que certas

coisas tendo sido estabelecidas algo diferente dessas coisas estabelecidas

necessariamente resulta em decorrecircncia delas (Anal Ant 24b 13-15) Para C D C

Reeve as coisas estabelecidas satildeo as premissas do argumento ao passo que o resultado

necessaacuterio constitui sua conclusatildeo Tais argumentos consistem em uma premissa maior

uma premissa menor e uma conclusatildeo em que as premissas tecircm exatamente um uacutenico

termo meacutedio em comum e a conclusatildeo conteacutem apenas os outros dois termos extremos

quais sejam o termo menor e o termo maior O termo predicado da conclusatildeo eacute o termo

maior oriundo da premissa maior seu sujeito eacute o termo menor oriundo da premissa

menor O termo meacutedio deve ser sujeito de ambas as premissas predicado de ambas as

premissas ou sujeito de uma e predicado da outra (REEVE 2014 91-92)

Semelhantemente agrave definiccedilatildeo exarada nos Analiacuteticos Anteriores o Estagirita

define o silogismo nos Toacutepicos como o discurso em que estabelecidas certas coisas

outras coisas diferentes se seguem necessariamente das primeiras O silogismo eacute uma

ἀπόδειξις ou seja uma demonstraccedilatildeo cientiacutefica quando suas premissas satildeo verdadeiras

primeiras imediatas mais cognosciacuteveis que a conclusatildeo anteriores a esta e que sejam

causas dela Assim o silogismo cientiacutefico tem lugar quando as premissas satildeo verdadeiras

isto eacute quando elas exprimem o que efetivamente satildeo as coisas natildeo sendo possiacutevel existir

ciecircncia de um estado de coisas que natildeo existe Quando satildeo primeiras e imediatas ou seja

quando satildeo indemonstraacuteveis pois se as premissas devessem ser sempre demonstradas ad

infinitum seria impossiacutevel a ciecircncia As premissas devem ser a causa da conclusatildeo porque

ter ciecircncia de algo significa conhecer pelas causas Devem ser anteriores para poder ser a

causa da conclusatildeo e ainda devem ser mais conhecidas que esta Escreve Aristoacuteteles a

este respeito (Seg Anal 71b 19-24)

Assim se o conhecer cientificamente eacute como propusemos eacute necessaacuterio que o conhecimento demonstrativo provenha de itens verdadeiros primeiros imediatos mais cognosciacuteveis que a conclusatildeo anteriores a ela e que sejam causas dela Pois eacute deste modo que os princiacutepios seratildeo de fato apropriados ao que se prova Eacute possiacutevel haver silogismo mesmo sem tais itens mas natildeo eacute possiacutevel haver demonstraccedilatildeo Pois tal silogismo natildeo poderia propiciar conhecimento cientiacutefico

No que tange ao silogismo dialeacutetico (διαλεκτικὸς συλλογισμός) que eacute semelhante

ao retoacuterico as suas premissas natildeo satildeo verdadeiras e primeiras mas satildeo endoxais ou seja

apoiam-se nas ἔνδοξα que grosso modo satildeo as opiniotildees geralmente aceitas Todavia satildeo

verdadeiras e primeiras aquelas coisas nas quais se acredita em virtude de nenhuma outra

coisa que natildeo seja elas proacuteprias pois acerca dos primeiros princiacutepios da ciecircncia eacute

descabido buscar mais aleacutem o porquecirc e as razotildees dos mesmos Aliaacutes cada um dos

primeiros princiacutepios deve impor a convicccedilatildeo da sua verdade em si mesmo e por si mesmo

(Toacutep 100a 28-100b 20) Ἔνδοξα por sua vez (Ibid 100b 22-24) satildeo aquelas opiniotildees

que todo mundo admite ou a maioria das pessoas ou os filoacutesofos e dentre estes os mais

notaacuteveis e eminentes (Ἔνδοξα δὲ τὰ δοκοῦντα πᾶσιν ἢ τοῖς πλείστοις ἢ τοῖς σοφοῖς καὶ

τούτοις ἢ πᾶσιν ἢ τοῖς πλείστοις ἢ τοῖς μάλιστα γνωρίμοις καὶ ἐνδόξοις)

Depois das breves consideraccedilotildees sobre o silogismo cientiacutefico e o silogismo

dialeacutetico conveacutem analisarmos mais detidamente o silogismo retoacuterico Este conforme jaacute

esboccedilado foi desenvolvido por Aristoacuteteles na Retoacuterica e eacute denominado de entimema

(ἐνθύμημα) cujas premissas satildeo derivadas das proposiccedilotildees que veiculam probabilidades

e sinais (τὰ δ᾽ ἐνθυμήματα ἐξ εἰκότων καὶ ἐκ σημείων) A probabilidade (εἰκός) eacute definida

por Aristoacuteteles como aquilo que geralmente acontece mas natildeo absolutamente antes versa

sobre coisas que podem ser de uma maneira ou de outra e relaciona-se no que concerne

ao provaacutevel como o universal se relaciona com o particular (Ret 1357a 45-48) Todavia

segundo o dicionaacuterio de Henry George Liddel e Robert Scott (A Greek-English Lexicon)

a palavra grega ldquoεἰκόςrdquo pode ser traduzida tanto pelo adjetivo ldquoverossiacutemilrdquo (likelihood)

como por ldquoprovaacutevelrdquo (probable) e muitos tradutores assim procederam empregando

distintamente ora uma ora outra sem se aperceberem que ambas as palavras podem ser

utilizadas no mesmo contexto rementendo-se ao termo original grego ldquoεἰκόςrdquo mas com

significados diferentes a primeira (verossiacutemil) designaria uma concepccedilatildeo loacutegica

enquanto que a segunda (provaacutevel) uma concepccedilatildeo ontoloacutegica

Em sua anaacutelise do fundamento do discurso verossiacutemil na retoacuterica de Aristoacuteteles

A M Yamin argumenta que a oscilaccedilatildeo da traduccedilatildeo da palavra εἰκός que ora eacute traduzida

por verossiacutemil ora por provaacutevel explica-se pela oscilaccedilatildeo entre o plano do discurso e o

plano dos fatos Assim como eacute possiacutevel falar de discurso e fato verdadeiros tambeacutem eacute

possiacutevel falar de discurso e fato εἰκός E uma vez que natildeo haveria dois termos diferentes

para discurso e fato verdadeiros emprega-se o mesmo termo para discurso verossiacutemil e

fato provaacutevel Para Yamin o εἰκός eacute tanto o discurso que enuncia o estado de coisas

como o proacuteprio estado de coisas por um lado eacute uma ldquoproposiccedilatildeo geralmente admitidardquo

ou seja um discurso um juiacutezo e por outro eacute ldquoaquilo que sabemos que acontece a maior

parte das vezesrdquo que corresponderia aos fatos Um discurso eacute verossiacutemil porque estaacute de

acordo com o que realmente acontece a maior parte das vezes em um determinado

domiacutenio O discurso εἰκός natildeo eacute de forma alguma independente do estado de coisas pois

se eacute possiacutevel um discurso εἰκός verossiacutemil eacute em virtude da possibilidade de um fato isto

eacute aquele que acontece a maior parte das vezes que neste caso recebe a designaccedilatildeo de

provaacutevel Aleacutem disso o εἰκός eacute definido como uma proposiccedilatildeo geralmente admitida o

que significa que natildeo eacute qualquer coisa regular que daacute lugar ao εἰκός jaacute que ele faz parte

do universo cultural ou de crenccedilas geralmente admitidas num determinado contexto

social Desse modo palavras verossiacutemeis seratildeo aquelas que correspondam agrave regularidade

proacutepria do universo poliacutetico ao qual pertence aquele auditoacuterio particular No entanto na

medida em que o εἰκός natildeo se limita ao plano do discurso mas relaciona-se com as coisas

que de fato acontecem nada impede que as coisas que ocorrem no domiacutenio da natureza

sejam consideradas εἰκός posto que tambeacutem ocorrem com regularidade Agrave vista disso o

εἰκός enquanto discurso eacute o enunciado endoacutexico que veicula um evento que acontece a

maior parte das vezes assim como tambeacutem eacute o proacuteprio evento de modo que se esse

enunciado eacute verossiacutemil eacute porque ele enuncia a opiniatildeo dos homens ao testemunhar um

evento provaacutevel que pode ser tanto social quanto natural (YAMIN 2016 149-153)

Com o fim de lograr maior esclarecimento sobre o significado da palavra εἰκός no

pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles cabe ainda salientar a visatildeo de Roland Barthes sobre

a mateacuteria Para este o εἰκός designaria uma ideia geral que repousa no conceito que os

homens criaram atraveacutes de experiecircncias e induccedilotildees imperfeitas No verossiacutemil aristoteacutelico

existiriam entatildeo dois nuacutecleos O primeiro nuacutecleo expressaria a ideia de geral enquanto

se opotildee agrave ideia de universal O universal seria necessaacuterio e constituiria um atributo da

ciecircncia O geral por sua vez significaria o natildeo-necessaacuterio seria um geral humano

determinado estatisticamente pela opiniatildeo do maior nuacutemero O segundo nuacutecleo

expressaria a possibilidade de contrariedade Efetivamente o entimema eacute recebido pelo

puacuteblico como um silogismo certo pois parece partir de uma opiniatildeo em que ele pode

acreditar como absolutamente certo Mas no que tange agrave ciecircncia o verossiacutemil admitiria

o contraacuterio porque nos limites da experiecircncia humana e da vida moral que se relacionam

diretamente com o εἰκός o oposto sempre seria possiacutevel (COHEN 1975 192-193)

Mas relativamente agrave ciecircncia o verossiacutemil admite o contraacuterio nos limites da experiecircncia humana e da vida moral que satildeo as do eikos o oposto nunca eacute impossiacutevel natildeo se pode prever de maneira certa (cientiacutefica) as resoluccedilotildees de um ser livre ldquoquem goza de boa sauacutede veraacute o dia de amanhatilderdquo ldquoum pai ama seus filhosrdquo ldquoum roubo cometido na casa sem arrombamento teraacute sido obra certamente de um familiarrdquo etc estaacute certo mas o contraacuterio eacute sempre possiacutevel O analista o retoacuterico sente bastante a forccedila dessas opiniotildees mas honestamente as manteacutem agrave distacircncia introduzindo-as por um esto (seja) que lhe tira a responsabilidade aos olhos da ciecircncia em que o contraacuterio jamais eacute possiacutevel

Agrave vista disso pode-se determinar que o εἰκός sumariamente significa que tendo em

vista a impossibilidade de se obter uma verdade universal e necessaacuteria eacute preciso contentar-

se com o verossiacutemil isto eacute com aquilo que parece provaacutevel por ser compartilhado pela

maioria das pessoas Desse modo quando natildeo se pode ter acesso agrave verdade cientiacutefica

conveacutem ficar satisfeito com aquelas opiniotildees que todo mundo admite ou a maioria das

pessoas ou os filoacutesofos e dentre estes os mais notaacuteveis e eminentes (que Platatildeo ordenava

descartar em benefiacutecio da ciecircncia) Pois quando natildeo se pode fazer uma demonstraccedilatildeo

pelos silogismos cientiacuteficos que partem de premissas admitidas ou demonstradas a

conclusotildees necessaacuterias deve-se ficar satisfeito com os silogismos retoacutericos que partem

de premissas verossiacutemeis para conclusotildees tambeacutem verossiacutemeis

No silogismo retoacuterico aleacutem das proposiccedilotildees que veiculam probabilidades existem

aquelas que veiculam sinais (σημεία) O sinal com efeito eacute um indiacutecio de que algo

aconteceu ou existe e supotildee a relaccedilatildeo entre dois fatos Se a relaccedilatildeo entre os fatos for

estimada necessaacuteria o sinal recebe o nome de tecmeacuterion (τεκμήριον) do contraacuterio a

conclusatildeo se reduz a uma simples possibilidade Dentre os sinais Aristoacuteteles distingue a

premissa que eacute verdadeira e necessaacuteria ndash o τεκμήριον ndash da premissa que apesar de ser

verdadeira natildeo eacute necessaacuteria (Ret 1357a 37) No tocante a esta uacuteltima Aristoacuteteles afirma

natildeo existir nome peculiar que traduza sua diferenccedila em relaccedilatildeo ao τεκμήριον mas pode-

se afirmar que ela expressa um indiacutecio mais ambiacuteguo mais incerto que o τεκμήριον Por

exemplo a marca de sangue na roupa de algum suspeito supotildee um homiciacutedio mas natildeo

com absoluta certeza pois o sangue pode proceder de um sangramento no nariz ou de um

sacrifiacutecio (COHEN 1975 193) Os sinais natildeo necessaacuterios satildeo aqueles que natildeo sendo por

si soacute suficientes a tirar toda a duacutevida mas juntos com outros indiacutecios possuem muita forccedila

probatoacuteria Desse modo o sangue parece ser um forte sinal de homiciacutedio mas porque o

tal sangue pocircde ter caiacutedo nas roupas do suspeito ou da viacutetima ou do nariz ou coisa que

o valha natildeo se segue necessariamente que quem tem as roupas ensanguentadas cometeu

um assassinato

Para Aristoacuteteles o τεκμήριον se evidencia quando se julga impossiacutevel refutar o que

foi enunciado Eacute um indiacutecio que se caracteriza por um tipo de necessidade em contraste

com um indiacutecio possiacutevel o qual pode ser de uma maneira ou de outra O τεκμήριον eacute o

indiacutecio certo o sinal necessaacuterio e indestrutiacutevel aquele que eacute e natildeo pode ser de outra forma

O τεκμήριον entatildeo implica que o nexo que liga dois fatos eacute de natureza necessaacuteria38

Aristoacuteteles lanccedila matildeo de dois exemplos para elucidar o significado de τεκμήριον como

sinal necessaacuterio ldquoeacute sinal de uma pessoa estar doente o ter febrerdquo ou ldquode uma mulher ter

dado agrave luz o ter leiterdquo Tais proposiccedilotildees aproximam-se muito daquelas que inauguram o

silogismo cientiacutefico embora se fundamentem numa universalidade de experiecircncia Isto

posto o τεκμήριον eacute um indiacutecio que possui efetivamente o caraacuteter de necessidade e por

essa razatildeo eacute irrefutaacutevel (Ret 1357 b 3-9 16-21)

Destes sinais os necessaacuterios satildeo argumentos irrefutaacuteveis os natildeo necessaacuterios natildeo tecircm nome peculiar que traduza a diferenccedila Chamo portanto necessaacuterios agravequeles sinais a partir dos quais se pode formar um silogismo E por isso eacute argumento irrefutaacutevel o que entre os sinais eacute necessaacuterio pois quando se pensa que natildeo eacute possiacutevel refutar uma tese entatildeo pensa-se que se aduz um argumento concludente ou irrefutaacutevel [tekmeacuterion] como se o assunto jaacute estivesse demonstrado e concluiacutedo [] O outro o sinal necessaacuterio eacute como algueacutem dizer que eacute sinal de uma pessoa estar doente o ter febre ou de uma mulher ter dado agrave luz o ter leite E dos sinais este eacute o uacutenico que eacute um tekmeacuterion um argumento concludente pois eacute o uacutenico que se for verdadeiro eacute irrefutaacutevel

E a fim de ilustrar uma proposiccedilatildeo possiacutevel em contraste com uma proposiccedilatildeo

necessaacuteria Aristoacuteteles se utiliza de outro exemplo ldquoum sinal de que os saacutebios satildeo justos

eacute que Soacutecrates era saacutebio e justordquo Este eacute um sinal mas refutaacutevel pois embora seja verdade

o que se diz natildeo eacute possiacutevel demonstrar de maneira inexoraacutevel que os saacutebios sejam justos

Aristoacuteteles ainda fornece o seguinte exemplo ldquoeacute sinal de febre ter a respiraccedilatildeo raacutepidardquo

Para ele mesmo que esta proposiccedilatildeo seja verdadeira eacute passiacutevel de refutaccedilatildeo porque a

despeito da febre pode a respiraccedilatildeo ser ofegante (Ibid 1357b 14-18)

Outrossim diferente da espeacutecie de silogismo ligada agrave demonstraccedilatildeo cientiacutefica o

entimema eacute um silogismo incompleto truncado jaacute que natildeo possui tantas partes nem estas

satildeo tatildeo distintas como no silogismo cientiacutefico De acordo com Aristoacuteteles para concluir

que Dorieu recebeu uma coroa como precircmio da sua vitoacuteria basta dizer que foi vencedor

em Oliacutempia sem que haja necessidade de acrescentar agrave Oliacutempia a menccedilatildeo da coroa

porque os ouvintes jaacute saberiam Portanto se alguma das premissas retoacutericas for bem

38 De acordo com Marco Faacutebio Quintiliano o τεκμήριον se distingue em trecircs tempos passado presente e futuro ldquoUma mulher que pariu necessariamente teve trato com homemrdquo Este sinal seria do tempo passado ldquoEacute necessaacuterio haver ondas quando ventos fortes caem sobre o marrdquo Este sinal seria do tempo presente Enfim ldquohaacute de morrer infalivelmente aquele cujo coraccedilatildeo estaacute feridordquo Este sinal pertenceria ao futuro (Inst orat I VII sect II)

conhecida pelo puacuteblico nem sequer eacute necessaacuterio enunciaacute-la porque o proacuteprio ouvinte a

supre Escreve Aristoacuteteles a este respeito (Ibid 1357a 18-28)

De sorte que eacute necessaacuterio que o entimema e o exemplo se ocupem de coisas que podem ser para a maior parte tambeacutem de outro modo o exemplo como induccedilatildeo e o entimema como silogismo e em geral menos do que as do silogismo primaacuterio Porque se alguma dessas premissas for bem conhecida nem sequer eacute necessaacuterio enunciaacute-la pois o proacuteprio ouvinte a supre Como por exemplo para concluir que Dorieu recebeu uma coroa como precircmio da sua vitoacuteria basta dizer pois foi vencedor em Oliacutempia sem que haja necessidade de acrescentar agrave Oliacutempia a menccedilatildeo da coroa porque toda a gente o sabe

Com efeito aleacutem da funccedilatildeo de veicular probabilidades e sinais o entimema possui

outra importante caracteriacutestica a premissa maior a premissa menor ou ateacute ambas as

premissas podem estar subentendidas na argumentaccedilatildeo retoacuterica sem nenhum prejuiacutezo

para a persuasatildeo (MEYER 2007 72) A admissatildeo preacutevia de alguma premissa pode ser

classificada em trecircs ordens distintas segundo a premissa suprimida o entimema de

primeira de segunda e de terceira ordens O entimema de primeira ordem ocorre quando

a premissa maior do silogismo natildeo eacute enunciada O entimema de segunda ordem ocorre

quando a premissa suprimida eacute a premissa menor E no entimema de terceira ordem

tanto a premissa maior quanto a premissa menor satildeo suprimidas (SOARES 2003 103)

Tendo como exemplo o entimema de primeira ordem pode ser elucidado atraveacutes do

seguinte argumento ldquoa justiccedila eacute uma virtude por isso eacute boardquo A premissa maior ldquotoda a

virtude eacute boardquo foi suprimida deste argumento cuja disposiccedilatildeo formal conforme o

esquema da primeira figura do silogismo sob o modo BARBARA39 seria a seguinte ldquotoda

a virtude eacute boa toda a justiccedila eacute virtude logo toda justiccedila eacute boardquo A propoacutesito este tipo

de silogismo eacute o que Aristoacuteteles considera o protoacutetipo dos silogismos vaacutelidos tambeacutem

chamado de ldquosilogismo perfeitordquo (Anal Ant 26b 37)

39 A figura de um silogismo eacute definida em funccedilatildeo da posiccedilatildeo do termo meacutedio nas duas premissas (maior e menor) E como o termo meacutedio natildeo pode entrar na conclusatildeo sua posiccedilatildeo se restringe somente agraves premissas nas quais pode ocupar o lugar de sujeito ou predicado Desse modo existem trecircs figuras vaacutelidas do silogismo segundo a exposiccedilatildeo de Aristoacuteteles nos capiacutetulos 4 a 6 do primeiro livro dos Analiacuteticos Anteriores No tocante agrave primeira figura do silogismo o termo meacutedio ocupa a posiccedilatildeo de sujeito na premissa maior e predicado na premissa menor cujos modos vaacutelidos dependendo da quantidade e da qualidade das proposiccedilotildees podem ser de quatro maneiras BARBARA CELARENT DARII e FERIO A segunda figura do silogismo consiste em possuir o termo meacutedio como predicado em ambas as premissas cujos modos satildeo CESARE CAMESTRES FESTINO e BAROCO Finalmente a terceira figura do silogismo consiste em possuir o termo meacutedio como sujeito em ambas as premissas cujos modos satildeo DARAPTI DISAMIS DATISI FELAPTON FESAPO e FERISON

Eacute manifesto que o entimema eacute um silogismo mas um silogismo imperfeito posto

que pode suprimir uma das duas premissas ou ateacute ambas Todavia se o entimema eacute um

silogismo imperfeito isso soacute pode ocorrer no acircmbito da loacutegica formal pois no acircmbito da

comunicaccedilatildeo com as multidotildees cujo escopo eacute a persuasatildeo ele permanece irretocaacutevel

Portanto no acircmbito do discurso retoacuterico os raciociacutenios completos e formalmente

elaborados que veiculassem aos ouvintes todas as premissas de um argumento aleacutem de

serem enfadonhos correriam o risco de cair no ridiacuteculo haja vista que algumas delas

seriam oacutebvias Aliaacutes utilizam-se as premissas ausentes que satildeo oacutebvias no cotidiano pela

linguagem natural e natildeo somente no discurso retoacuterico e reiteraacute-las poderiam cansar

inutilmente os interlocutores

Com o escopo de se obter melhor esclarecimento sobre a estrutura loacutegica do

entimema seria proveitoso o exame minucioso da maneira pela qual algumas premissas

satildeo subentendidas no acircmbito de um discurso retoacuterico Forbes I Hill analisa uma seacuterie de

entimemas tal como poderiam surgir num discurso retoacuterico em comparaccedilatildeo com

silogismos cujas premissas natildeo satildeo subentendidas Ele assim procede a fim de mostrar

que as regras formais da loacutegica no interior da argumentaccedilatildeo entimemaacutetica corresponde agraves

regras formais da silogiacutestica em geral exposta por Aristoacuteteles nos Analiacuteticos Anteriores

Segue o exemplo de entimemas alvitrado por Hill ldquoPor que deveriacuteamos marchar ateacute

Queroneso e combater contra Filipe A proacutepria conservaccedilatildeo esta eacute a razatildeo Porque se

natildeo fazermos ele venceraacute nossos aliados um atraacutes do outro ateacute que restemos somente noacutes

para lutarrdquo Segundo Hill ao se colocar todas as premissas que estatildeo subentendidas nestes

entimemas sob a forma dos silogismos vaacutelidos expressa por Aristoacuteteles nos Analiacuteticos

Anteriores entatildeo os entimemas se desdobrariam nos seguintes termos ldquoTodos os meios

de autoconservaccedilatildeo constituem o maior dos bens para Estado Possuir aliados eacute um dos

meios de autoconservaccedilatildeo Logo possuir aliados eacute um dos maiores bens para o Estado

Possuir aliados constitui um dos maiores bens para o Estado Filipe eacute um homem que

destruiraacute nossos aliados Portanto Filipe eacute um homem que destruiraacute um dos maiores bens

para o Estado Todos os homens que querem destruir um dos maiores bens para o Estado

satildeo homens que devemos combater Filipe eacute um homem que quer destruir um dos maiores

bens para o Estado Sendo assim Filipe eacute um homem que devemos combaterrdquo

(MURPHY 1989 45-47)

A disposiccedilatildeo dos argumentos na forma geral do silogismo permitiu-nos examinar

a validez estrutural que se encontra nas ldquoentrelinhasrdquo da exortaccedilatildeo ao combate exposto

no primeiro caso pelos entimemas poreacutem sua exposiccedilatildeo completa como jaacute frisado natildeo

seria exequiacutevel num discurso efetivo Aleacutem disso com base nas regras formais

estabelecidas por Aristoacuteteles nos Analiacuteticos Anteriores as quais foram verificadas

sumariamente no desdobramento dos entimemas foi possiacutevel assegurar que os

argumentos entimemaacuteticos satildeo logicamente vaacutelidos

53 A relevacircncia persuasiva da opiniatildeo geral e da adaptaccedilatildeo agrave mentalidade do auditoacuterio

Aleacutem dos aspectos do entimema ateacute aqui considerados conveacutem ainda destacar que

ele consiste num tipo de raciociacutenio desenvolvido unicamente para o niacutevel da mentalidade

do puacuteblico tendo como ponto de partida suas proacuteprias crenccedilas e valores Eacute um raciociacutenio

voltado para ouvintes comuns os quais natildeo obtiveram um treinamento especiacutefico em

loacutegica formal nem em filosofia por isso natildeo estariam em condiccedilotildees de abarcar com um

uacutenico olhar muitos assuntos e raciocinar a partir de coisas distantes A retoacuterica portanto

trata de questotildees sobre as quais se delibera e para as quais natildeo existem artes especiacuteficas

e isto perante um puacuteblico insipiente que seria incapaz de ver muitas coisas ao mesmo

tempo ou de seguir uma longa cadeia de raciociacutenios (Ret 1356b 43-47) Dessarte natildeo

seria apropriado ao orador empregar no seu discurso uma extensa cadeia de silogismos

pois seus ouvintes satildeo pessoas simples e as premissas a serem empregadas precisam ser

admitidas por todos (Ibid 1357a 1-18)

Para M F Burnyeat a funccedilatildeo da arte retoacuterica consiste em falar de assuntos

passiacuteveis de deliberaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos quais natildeo existem especialistas ou peritos para

determinar qualquer coisa com precisatildeo cujos resultados satildeo incertos e podem ser

determinados pela decisatildeo humana Aleacutem do orador natildeo ser um especialista sobre as

questotildees a serem decididas ele se dirige para uma audiecircncia de pessoas que natildeo podem

facilmente seguir uma longa sucessatildeo de raciociacutenios por isso uma das atribuiccedilotildees da

retoacuterica consiste em ajustar o discurso agraves limitaccedilotildees intelectuais da audiecircncia Portanto o

ldquobom entimemardquo eacute aquele que pode ser efetivamente compreendido por uma audiecircncia

de limitada capacidade mental (RORTY 1997 100)

E M Cope enfatiza que no acircmbito da argumentaccedilatildeo entimemaacutetica tudo deve ser

inteligiacutevel e popular sem longas cadeias de raciociacutenio que as pessoas comuns natildeo podem

seguir sendo tambeacutem dispensaacutevel o uso de definiccedilotildees rigorosamente exatas No entanto

eacute imprescindiacutevel que o orador leve em consideraccedilatildeo as premissas que satildeo popularmente

admitidas e reconhecidas em detrimento do emprego de axiomas ou princiacutepios das

ciecircncias exatas e especiais as quais requerem treinamento e estudo especiacuteficos Sendo

assim no discurso retoacuterico devem ser utilizados apenas princiacutepios gerais comuns a todo

o raciociacutenio aceitos e compreendidos por todas as pessoas (COPE 1867 12)

Jonathan Barnes salienta que na retoacuterica de Aristoacuteteles a audiecircncia e o assunto

determinam conjuntamente a espeacutecie de argumento que o orador deve empregar No que

concerne agrave audiecircncia eacute necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo que os discursos retoacutericos satildeo

ouvidos natildeo lidos e os ouvintes natildeo satildeo compostos de loacutegicos sutis Por essa razatildeo os

argumentos de um orador tecircm de ser curtos e simples podendo omitir o material que a

assistecircncia supriraacute sem dificuldade Aleacutem do que o orador precisa persuadir uma

audiecircncia efetiva por isso seus argumentos devem basear-se nas proposiccedilotildees que esta

provavelmente acreditaraacute e aceitaraacute E a respeito do assunto os oradores natildeo argumentam

sobre questotildees teacutecnicas ou seja eles natildeo tentaratildeo provar teoremas geomeacutetricos ou coisas

deste jaez Os oradores natildeo estatildeo preocupados com o que eacute conhecimento firme e certo

mas com o que os homens pensam em geral pois no mundo da accedilatildeo natildeo existem regras

sem exceccedilatildeo e as coisas natildeo acontecem de maneira invariaacutevel Portanto as premissas do

argumento de um orador devem consistir predominantemente de proposiccedilotildees que

possuem validade no mais das vezes mas natildeo absolutamente (BARNES 2009 342)

Por certo o entimema eacute um tipo de deduccedilatildeo mas eacute uma deduccedilatildeo de valor concreto

feita para uma apresentaccedilatildeo popular em oposiccedilatildeo a uma deduccedilatildeo abstrata e analiacutetica

proacutepria do ensino cientiacutefico Eacute um raciociacutenio de faacutecil manejo entre homens incultos

porque visa produzir a persuasatildeo e natildeo uma ἀπόδειξις ou seja uma demonstraccedilatildeo de

natureza cientiacutefica Isto posto diferentemente do silogismo cientiacutefico o entimema natildeo

possui por fundamento premissas verdadeiras e primeiras mas premissas verossiacutemeis e

algumas delas satildeo subentendidas no discurso retoacuterico

Em contraste com a tese defendida por Platatildeo no Fedro o Estagirita sustenta que o

conhecimento que o orador deve possuir para proferir um bom discurso deve limitar-se

agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras e uacuteteis para as multidotildees Nesse sentido

conveacutem sublinhar que Aristoacuteteles o qual na sua juventude condenou a retoacuterica isocraacutetica

por natildeo ser uma genuiacutena arte aproxima-se agora em alguns aspectos do pensamento

retoacuterico de Isoacutecrates

A filosofia platocircnica grosso modo eacute um estudo teoacuterico que se dedica a

investigaccedilotildees de toda sorte mediante o meacutetodo dialeacutetico cujo escopo eacute conhecer a

verdadeira essecircncia de certas ideias abstratas Todavia no pensamento de Isoacutecrates tais

ideias natildeo se relacionam agraves questotildees mais relevantes para a cidade quer dizer as questotildees

poliacuteticas A filosofia isocraacutetica portanto volta-se para a praacutetica discursiva fundamenta-

se no estudo das opiniotildees e sua finalidade suprema eacute a formaccedilatildeo dos jovens atenienses

para a vida poliacutetica democraacutetica (SCHIAPPA 1999 174) Natildeo obstante cabe frisar que

a distinccedilatildeo geralmente traccedilada por Platatildeo entre as palavras ldquoδόξαrdquo e ldquoἐπιστήμηrdquo a

primeira significando ldquoopiniatildeordquo e a segunda ldquoconhecimentordquo natildeo eacute precisamente aquela

feita por Isoacutecrates A concepccedilatildeo isocraacutetica de δόξα natildeo constitui uma opiniatildeo leviana ou

irresponsaacutevel traccedilo que eacute fortemente criticado nos sofistas os quais mereceriam todo o

desprezo por se dedicarem agraves disputas eriacutesticas em detrimento da busca pela verdade

(Contr Sof 1) mas eacute uma noccedilatildeo baseada na experiecircncia praacutetica dos homens e na

vivecircncia dos fatos (Ant 184) Noutros termos eacute o que se pode designar de opiniatildeo

compartilhada o bom senso ou a ponderaccedilatildeo vigente na vida comum Ademais a δόξα

eacute um tipo de juiacutezo que lida com as contingecircncias incertas de qualquer situaccedilatildeo humana

que se apresente (Ibid 184) Nessa perspectiva a δόξα natildeo representaria qualquer

opiniatildeo sem qualificaccedilatildeo mas ao mesmo tempo estaria longe de ser uma ciecircncia exata

Aristoacuteteles com efeito sustenta que a massa do povo possui em sua capacidade

coletiva qualidade de virtude e mesmo de prudecircncia que a torna no mais das vezes capaz

de exercer com suas opiniotildees melhor julgamento do que a minoria E sobre este assunto

Aristoacuteteles discorda categoricamente de Platatildeo o qual natildeo atribuiacutea nenhum meacuterito nem

via nenhuma utilidade no julgamento popular Platatildeo tambeacutem rejeita no Fedro a

verossimilhanccedila como fonte da argumentaccedilatildeo retoacuterica por serem opiniotildees aceitas pelo

coletivo o que transformaria o orador num mero bajulador Desse modo na visatildeo

platocircnica o bom orador natildeo deve se apropriar das crenccedilas do que pensam os homens em

geral sobre o que eacute justo bom e belo mas eacute necessaacuterio que ele conheccedila a essecircncia dessas

virtudes

No entanto o Estagirita sempre considera bom (ἀγαθός) o que a maioria deseja

assim como o que parece digno de ser disputado pois o que todos desejam eacute sem duacutevida

bom e a ldquomaioriardquo representaria ldquotodosrdquo (Ret 1363a 8-10) Para ele o que todos

preferem eacute melhor do que o que nem todos preferem e o que a maioria prefere eacute melhor

do que o que prefere a minoria (Ibid 1364b 48-50) E o que as pessoas sensatas todas

muitas a maioria ou as mais qualificadas julgariam ou tecircm julgado como um bem ou

um bem maior corresponderia necessariamente agrave realidade senatildeo em absoluto pelo

menos na medida da sensatez com que emitiram o seu juiacutezo (Ibid 1364b 13-17) Aleacutem

disso Aristoacuteteles sustenta que o orador ou qualquer outra pessoa dotada de prudecircncia

deve no mais das vezes acatar as palavras e opiniotildees (cientificamente) natildeo demonstradas

de pessoas mais experientes e mais idosas ou de pessoas com sabedoria praacutetica natildeo

menos que a prestada a declaraccedilotildees e opiniotildees demonstradas Porquanto as pessoas mais

experientes agem como se tivessem obtido pela experiecircncia um olho com o qual veem

corretamente (Eacutet Nic 1136b 10-15)

Ao explicar na Eacutetica a Nicocircmaco o conceito de felicidade Aristoacuteteles incorpora

intencionalmente elementos de outras crenccedilas sobre ela crenccedilas que amiuacutede podem ser

consideradas populares Estas por serem atraentes para a maioria ou para os saacutebios

contam como ἔνδοξα sobre a felicidade que o seu meacutetodo de investigaccedilatildeo (meacutetodo

doxaacutestico) deve respeitar Aliaacutes a ciecircncia praacutetica eacute um tipo de saber menos rigoroso do

que a ciecircncia teoreacutetica de modo que uma demonstraccedilatildeo suficiente naquele campo

consiste em identificar as proposiccedilotildees compatiacuteveis com as opiniotildees compartilhadas por

todos ou pela maioria Embora o Estagirita natildeo identifique a felicidade exclusivamente

com a virtude a prudecircncia o prazer ou as riquezas ele deixa expliacutecito que qualquer

definiccedilatildeo da felicidade precisa levar em consideraccedilatildeo as crenccedilas geralmente aceitas sobre

a mateacuteria Algumas dessas satildeo mantidas por muitos e satildeo antigas ao passo que outras satildeo

mantidas por alguns poucos homens de boa reputaccedilatildeo de modo que nenhuma delas falha

completamente sobre o significado da felicidade pelo contraacuterio acerta pelo menos numa

parte ou ateacute na maior parte (Ibid 1098b 23-30) Desse modo em contraposiccedilatildeo a Platatildeo

o Estagirita reabilita as opiniotildees compartilhadas pela maioria as quais podem tanto ser

aceitas e veiculadas no acircmbito do discurso retoacuterico em que o rigor cientiacutefico estaacute ausente

como podem ser utilizadas como fonte da investigaccedilatildeo cientiacutefica na forma de

conhecimento preliminar

Outrossim no capiacutetulo 23 do segundo livro da Retoacuterica Aristoacuteteles elenca 31

lugares-comuns (τόποι κοινοί) que satildeo tipos de argumentos que podem ser facilmente

localizados visto que foram devidamente memorizados pelo orador com o intuito de

serem empregados em todas as circunstacircncias possiacuteveis Os lugares-comuns tambeacutem

podem ser aplicados em questotildees de direito de fiacutesica de poliacutetica e demais disciplinas O

11ordm lugar-comum exposto por Aristoacuteteles diz respeito ao apelo agraves ἔνδοξα ou seja agraves

crenccedilas geralmente aceitas as quais satildeo consideradas pelo Estagirita como um importante

recurso persuasivo Este recurso deveras eacute obtido de um juiacutezo sobre um caso idecircntico

igual ou contraacuterio principalmente se for um juiacutezo de todos os homens e de todos os

tempos se natildeo for de todos pelo menos da maior parte deles ou dos saacutebios de todos

eles ou da maior parte ou ainda das pessoas de bem (Ret 1398b 26-30)

O fato das ἔνδοξα serem as premissas das argumentaccedilotildees retoacutericas fica mais claro

quando Aristoacuteteles fala de argumentaccedilotildees que natildeo satildeo persuasivas indicando por

conseguinte as caracteriacutesticas daquelas que o satildeo Para ele eacute possiacutevel formar silogismos

e tirar conclusotildees tanto de coisas antes estabelecidas pelo silogismo (cientiacutefico) como de

premissas de que natildeo se formou silogismo mas que o requerem por natildeo serem

comumente aceitas Destas duas linhas de raciociacutenio a primeira cadeia de silogismos eacute

necessariamente difiacutecil de seguir devido agrave sua extensatildeo enquanto que a segunda natildeo eacute

persuasiva pelo fato de natildeo derivar de premissas sobre as quais existe acordo ou que

participam da opiniatildeo comum (Ibid 1357a 10-18) Pode-se assegurar entatildeo que as

argumentaccedilotildees retoacutericas satildeo persuasivas simplesmente por estarem fundadas nas crenccedilas

ou opiniotildees geralmente aceitas

A despeito disso eacute preciso levar em consideraccedilatildeo que os oradores natildeo devem falar

tomando como ponto de partida da argumentaccedilatildeo retoacuterica todas as opiniotildees como se

todas elas fossem igualmente vaacutelidas mas somente as certas e determinadas por exemplo

as opiniotildees dos juiacutezes ou as opiniotildees daqueles que gozam de reputaccedilatildeo (Ibid 1395b 43-

45) Agrave vista disso Aristoacuteteles rejeita as opiniotildees contraacuterias ao senso comum como

legiacutetimas fontes da argumentaccedilatildeo retoacuterica ou seja ele rejeita aquilo que recebe o nome

de paradoxo (παράδοξος)

Com efeito se a ἔνδοξα consiste no que parece ser verdadeiro a todo o mundo ou

agrave maioria das pessoas ou ainda aos indiviacuteduos mais competentes a noccedilatildeo de παράδοξος

representa justamente a perspectiva contraacuteria O παράδοξος designa todas as proposiccedilotildees

que satildeo contraacuterias agrave opiniatildeo da maioria ao senso comum ou ao sistema de crenccedilas a que

se faz referecircncia (ABBAGNANO 2003 742) Por exemplo a defesa de Helena de Troia

empreendida por Goacutergias no Elogio de Helena mulher unanimemente reputada maacute e

injusta (El Hel sect 2) ou ainda a defesa de uma causa considerada por todos injusta e

fazecirc-la prevalecer sobre uma causa justa como procede Fidiacutepides na comeacutedia As Nuvens

que bem instruiacutedo pela arte retoacuterica acha-se autorizado a bater no pai e sustenta atraveacutes

de sutis argumentos que natildeo hesitaria em fazer o mesmo com sua matildee (Nuv 1405-1415

1440)

Na obra Dos Argumentos Sofiacutesticos o Estagirita orienta tanto o dialeacutetico como o

orador a induzir o adversaacuterio a cair em afirmaccedilotildees paradoxais ou seja afirmaccedilotildees

contraacuterias agrave opiniatildeo geral (Arg Sof 172b 10-173a 30) poreacutem se eles forem forccedilados a

enunciar algum tipo de paradoxo devem fazecirc-lo com a maior cautela acrescentando que

ldquoassim parecerdquo pois dessa forma evitam dar a impressatildeo de que foram refutados ao

afirmar um paradoxo (Ibid 176a 25-27) No entanto em situaccedilotildees especiais o paradoxo

pode ser o objeto de uma prova dialeacutetica se por exemplo ela for sustentada por um saacutebio

reputado no assunto Eacute justamente o que ocorre com a negaccedilatildeo da falta de domiacutenio

(ἀκρασία) por parte de Soacutecrates que apesar de contrariar o que eacute geralmente aceito eacute

tomada seriamente por Aristoacuteteles A teoria de Soacutecrates contestava completamente a de

Aristoacuteteles pois para aquele natildeo havia sentido a noccedilatildeo de ldquofalta de domiacuteniordquo de tal modo

que ningueacutem agiria contra a noccedilatildeo que tem do que eacute o melhor de tudo mas quando assim

procede faria simplesmente por ignoracircncia Entretanto na visatildeo de Aristoacuteteles esta

teoria seria paradoxal por estar manifestamente em contradiccedilatildeo com os fatos da vida (Eacutet

Nic 1145b 25-28)

Aristoacuteteles tambeacutem declara que os oradores natildeo devem tirar conclusotildees a partir de

premissas necessaacuterias mas das premissas que satildeo pertinentes na maior parte das vezes

(Ret 1396a 1-5) Por essa razatildeo os oradores incultos seriam mais persuasivos do que os

cultos diante das multidotildees porque amiuacutede enunciam premissas comuns e gerais (Ibid

1395b 37-43)

Eacute esta a razatildeo pela qual os oradores incultos satildeo mais persuasivos do que os cultos diante das multidotildees como dizem os poetas os incultos satildeo mais inspirados pelas musas diante da multidatildeo Com efeito os primeiros enunciam premissas comuns e gerais os segundos se baseiam no que sabem e no que estaacute proacuteximo do seu auditoacuterio

Em oposiccedilatildeo ao que preconiza Platatildeo no diaacutelogo Fedro o Estagirita afirma que o

orador natildeo precisa conhecer a realidade ou a essecircncia do que eacute justo bom e belo ou coisas

deste jaez nem possuir um entendimento discursivo da verdade sobre o assunto que

tenciona discutir Pelo contraacuterio nos limites da arte retoacuterica eacute necessaacuterio que o orador

contente-se com a indicaccedilatildeo da verdade aproximadamente em linhas gerais e fale de

coisas que satildeo verdadeiras na maioria das vezes e natildeo absolutamente Aleacutem do que na

visatildeo de Platatildeo a genuiacutena arte retoacuterica natildeo deve ser concebida como uma teacutecnica que

impotildee aos ouvintes certas opiniotildees que ensina a compor belos discursos com o intuito de

deixar vitoriosa a causa ruim e enfraquecer a boa mas deve ser um guia da alma para que

se alcance a verdadeira beleza e justiccedila Em certa medida Aristoacuteteles subscreve a funccedilatildeo

psicagoacutegica da arte retoacuterica defendida por Platatildeo qual seja a funccedilatildeo de guiar a alma dos

cidadatildeos para a praacutetica das virtudes poreacutem sua psicagogia natildeo pressupotildee o conhecimento

universal e necessaacuterio que somente o filoacutesofo seria capaz de apreender mas justamente

aquilo que eacute negado por Platatildeo qual seja a opiniatildeo geral (Arg Sof 175a 30-33)

Em primeiro lugar pois assim como dizemos que agraves vezes eacute preferiacutevel provar as coisas com plausibilidade a fazecirc-lo com verdade tambeacutem agraves vezes devemos dar soluccedilatildeo aos argumentos de acordo com a opiniatildeo geral e natildeo de acordo com a verdade

Aristoacuteteles assegura nos Toacutepicos que se algueacutem atua com pretenccedilotildees filosoacuteficas

precisa ter em vista a verdade mas os que atuam segundo a dialeacutetica (e a retoacuterica)

precisam ter em vista natildeo mais a verdade mas a opiniatildeo geral (Toacutep 105b 30-32) Isto

significa que tanto a dialeacutetica quanto a retoacuterica que utilizam como premissas de suas

argumentaccedilotildees as ἔνδοξα natildeo pretendem estabelecer a verdade nos moldes da ciecircncia

mas apenas argumentar no plano da opiniatildeo As ἔνδοξα natildeo valem como criteacuterio para o

estabelecimento do que eacute verdadeiro mas certamente como uma pressuposiccedilatildeo com base

na qual se prova a verdade de proposiccedilotildees Desse modo todo debate dialeacutetico e todo

discurso retoacuterico tem de comeccedilar com pontos de vista que os interlocutores e os ouvintes

partilham uns com os outros E se a finalidade da arte retoacuterica eacute obter um juiacutezo favoraacutevel

ao conteuacutedo do discurso e se o discurso cientiacutefico eacute impossiacutevel de ser compreendido pela

maioria dos ouvintes entatildeo torna-se imprescindiacutevel ao orador descer ao niacutevel intelectual

do auditoacuterio e fundamentar seu discurso na opiniatildeo puacuteblica do contraacuterio ele natildeo seraacute

capaz de persuadir acerca daquilo que eacute justo e verdadeiro

Os filoacutesofos como soacute procuram investigar a verdade e isto tratando com outros

filoacutesofos entram amiuacutede em discussotildees sutis e miuacutedas ateacute apreender a uacuteltima evidecircncia

e convicccedilatildeo Os oradores poreacutem precisam adaptar os seus discursos agraves ideias dos

ouvintes e falar no mais das vezes diante de homens inteiramente insipientes de modo

que se estes natildeo forem aliciados com o prazer e algumas vezes afetados com as emoccedilotildees

natildeo seraacute possiacutevel persuadi-los sobre aquilo mesmo que eacute justo e verdadeiro Por essa

razatildeo todo o objeto da persuasatildeo eacute relativo aos ouvintes e eacute de acordo com suas opiniotildees

que o orador deve ajustar o seu discurso

Tendo em vista a necessidade do orador descer ao niacutevel intelectual do auditoacuterio

satisfazecirc-lo e por conseguinte persuadi-lo sobre aquilo que eacute justo e verdadeiro

Aristoacuteteles leva em consideraccedilatildeo o emprego da maacutexima (γνώμη) Ele define a maacutexima

como uma afirmaccedilatildeo geral que natildeo se aplica a aspectos particulares mas ao universal

natildeo a todas as coisas mas agraves que envolvem as accedilotildees humanas (Ret 1394a 29-35)

Aristoacuteteles declara que a maacutexima eacute de grande utilidade nos discursos retoacutericos em virtude

da mente tosca (φορτικότητα) dos ouvintes que ficam contentes quando algueacutem falando

em termos gerais vai de encontro agraves opiniotildees que eles sustentam sobre assuntos

particulares E quando Aristoacuteteles utiliza o termo ldquoφορτικότηταrdquo ele pretende indicar o

espiacuterito rude a vulgaridade e a falta de cultura dos ouvintes de um discurso puacuteblico (Ibid

1395b 1-9)

Para Aristoacuteteles as maacuteximas prestam um grande auxiacutelio aos oradores puacuteblicos por

duas razotildees principais A primeira eacute a vaidade grosseira dos ouvintes que sentem prazer

quando o orador falando em geral vai ao encontro das opiniotildees que cada um sustenta

individualmente Assim o orador deve conjecturar quais satildeo as coisas que os ouvintes

tecircm subentendidas e falar dessas coisas em geral Por exemplo caso o ouvinte tivesse de

tratar com maus vizinhos ou maus filhos o orador oportunamente deveria enunciar as

seguintes maacuteximas ldquonada mais insuportaacutevel que a vizinhanccedilardquo ou ldquonada mais estuacutepido

do que ter filhosrdquo A segunda razatildeo seria a mais importante pois confere ao discurso um

caraacuteter eacutetico ao exprimir de forma geral as intenccedilotildees daquele que as veicula de modo

que se as maacuteximas satildeo honestas tambeacutem faratildeo que o caraacuteter do orador pareccedila honesto

(Ibid 1395b 1-23)

Conveacutem sublinhar que a segunda funccedilatildeo da maacutexima pode ser um elemento

complementar agrave prova psicoloacutegica ligada ao caraacuteter do orador (ἦθος) segundo a qual a

persuasatildeo se efetiva quando o discurso eacute proferido por um orador que goze de prestiacutegio

pois se ele parecer confiaacutevel o auditoacuterio iraacute formar o juiacutezo de que as proposiccedilotildees

apresentadas satildeo igualmente confiaacuteveis A utilizaccedilatildeo adequada da maacutexima por sua vez

reforccedilaria o ἦθος do orador no sentido inverso ou seja atraveacutes de maacuteximas honestas

cuidadosamente escolhidas e comunicadas ao puacuteblico o caraacuteter do orador pareceria

honesto

A metaacutefora retoacuterica tambeacutem atesta com precisatildeo o princiacutepio segundo o qual a

estrutura da expressatildeo enunciativa se explica inteiramente pelo fato de estar voltada para

um puacuteblico pouco capaz de bom discernimento por isso a metaacutefora constitui a uacutenica

aprendizagem possiacutevel a todos e sem duacutevida a que se efetiva com relativa facilidade A

metaacutefora entatildeo eacute ela proacutepria uma instruccedilatildeo porque natildeo exige grandes esforccedilos

intelectuais do puacuteblico e proporciona igualmente satisfaccedilatildeo Aliaacutes eacute prazerosa a proacutepria

sensaccedilatildeo de atividade que acompanha a busca de resoluccedilatildeo do enigma envolvido na

metaacutefora como dizer que ldquoum homem de bem eacute um quadradordquo posto que ambos

significam alguma coisa perfeita (Ibid 1411b 30-33) Sendo assim em virtude do baixo

niacutevel intelectual do puacuteblico a demonstraccedilatildeo entimemaacutetica deve estar acompanhada do

prazer cuja funccedilatildeo auxiliar eacute neutralizar as vaacuterias dificuldades dos ouvintes

Aristoacuteteles sublinha que o que eacute mais agradaacutevel eacute maior que o menos agradaacutevel jaacute

que todos os seres humanos buscam o prazer e por ele se deixam seduzir e este seria o

criteacuterio que amiuacutede o senso comum utiliza para identificar o bem humano (Ibid 1364b

29-32) E uma vez que a retoacuterica precisa ter em vista a opiniatildeo geral o uso da metaacutefora

ou de qualquer outro recurso estiliacutestico deve levar em consideraccedilatildeo a tendecircncia natural

dos seres humanos agrave obtenccedilatildeo do prazer A capacidade de suscitar o prazer eacute precisamente

o que faz da metaacutefora um recurso estiliacutestico de sucesso entre o puacuteblico Ela eacute apta para

neutralizar suas dificuldades de compreensatildeo fixaccedilatildeo da atenccedilatildeo e indisposiccedilatildeo em

relaccedilatildeo ao discurso Dessarte a expressatildeo enunciativa na retoacuterica de Aristoacuteteles procura

por diferentes meios o prazer do auditoacuterio pois com aqueles que apresentam dificuldade

em aprender a dimensatildeo do prazer constitui para o que ensina um aliado indispensaacutevel

(Ibid 1410b 13-20)

Uma aprendizagem faacutecil eacute por natureza agradaacutevel a todos por seu turno as palavras tecircm determinado significado de tal forma que as mais agradaacuteveis satildeo todas as palavras que nos proporcionam tambeacutem conhecimento Eacute certo que haacute palavras que nos satildeo desconhecidas embora as conheccedilamos no seu sentido ldquoapropriadordquo mas sobretudo a metaacutefora que provoca tal

Isto posto a metaacutefora retoacuterica possui dois aspectos que estatildeo intrinsecamente

ligados os quais favorecem substancialmente a persuasatildeo ela serve como um eficiente

recurso didaacutetico e como via para se obter a atenccedilatildeo do auditoacuterio por estar relacionada com

o prazer Aliaacutes seu uso seria muito apropriado no proecircmio ou seja na parte do discurso

que visa fundamentalmente seduzir o auditoacuterio e conquistar imediatamente sua simpatia

tornando-o doacutecil benevolente e atencioso

O importante na argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo eacute saber o que o proacuteprio orador considera

verdadeiro ou persuasivo mas qual eacute o parecer daqueles a quem o discurso se dirige

Nenhum orador poderia descuidar do esforccedilo de adaptaccedilatildeo ao auditoacuterio uma vez que o

bom orador precisa pautar sua argumentaccedilatildeo no consenso geral Por isso ao auditoacuterio

cabe o papel principal para determinar tanto a qualidade da argumentaccedilatildeo como o

comportamento dos oradores Todavia ao aceitar que a opiniatildeo da maioria possa ser

veiculada pelo discurso retoacuterico Aristoacuteteles natildeo estaacute subscrevendo a concepccedilatildeo dos

sofistas os quais em sua maioria identificavam a retoacuterica com o verdadeiro saber mas

apenas separando o acircmbito da filosofia onde se busca a verdade do acircmbito da retoacuterica

cujo ponto de partida natildeo eacute a verdade mas a opiniatildeo geral E agrave maneira de Platatildeo ele

admite uma ciecircncia que por via demonstrativa parta de premissas verdadeiras para

chegar agrave conclusotildees verdadeiras mas ao mesmo tempo ele rejeita que a ciecircncia mais exata

tenha alguma importacircncia na persuasatildeo de um auditoacuterio composto de ouvintes comuns

Portanto o discurso retoacuterico natildeo deve pautar-se em axiomas e princiacutepios que

caracterizam as ciecircncias exatas as quais visam atingir verdades necessaacuterias mas deve

considerar como fontes legiacutetimas para levar a cabo a persuasatildeo os valores comuns e as

opiniotildees dignas de confianccedila

Com efeito a diferenccedila entre as premissas cientiacuteficas e as premissas retoacutericas

consiste no fato de que as primeiras valem por forccedila de si mesmas ou seja independem

de qualquer reconhecimento exterior como o consenso do auditoacuterio enquanto que as

segundas valem por forccedila do reconhecimento que lhe eacute atribuiacutedo da parte de todos da

maioria dos mais saacutebios ou dos filoacutesofos As ἔνδοξα satildeo premissas ou opiniotildees natildeo

quaisquer opiniotildees mas somente as autorizadas as importantes as qualificadas agraves quais

se deve dar credibilidade por isso natildeo precisam ser verdadeiras no sentido estrito do

termo mas devem ser compartilhadas reconhecidas e aceitas por todos senatildeo por todos

ao menos pela maioria Agrave vista disso as opiniotildees que satildeo candidatas por assim dizer ao

tiacutetulo de ἔνδοξα estatildeo dispostas em ordem de autoridade decrescente Eacute manifesto que

nem todas as opiniotildees satildeo ἔνδοξα mas se a respeito de um assunto qualquer existir uma

opiniatildeo aceita por todos esta seraacute a princiacutepio considerada uma ἔνδοξα e se natildeo existir

uma opiniatildeo aceita por todos mas apenas pela maioria das pessoas a ἔνδοξα seraacute esta e

caso natildeo haja uma opiniatildeo aceita pela maioria delas eacute a opiniatildeo dos mais saacutebios que deve

ser aceita como ἔνδοξα se natildeo existir uma unanimidade entre os saacutebios a opiniatildeo da

maioria deles deve ser considerada ἔνδοξα se porventura a opiniatildeo natildeo for aceita pela

maioria deles eacute a opiniatildeo dos filoacutesofos que deve ser aceita como ἔνδοξα e se natildeo existir

unanimidade entre eles eacute a opiniatildeo dos filoacutesofos mais eminentes que precisa ser

considerada como tal

Aristoacuteteles persiste no valor daquilo que denomina ldquoopiniotildees dignas de confianccedilardquo

porque uma coisa que constitua objeto de crenccedila de todos os homens ou da maioria deles

ou pelo menos de todos os homens inteligentes ou da maioria deles eacute digna de confianccedila

e merece que se diga algo a seu favor E o que fundamenta em termos epistemoloacutegicos

esta concepccedilatildeo consiste no fato de que para o Estagirita os homens por sua proacutepria

natureza tendem ao saber (Met 980a 20) Mas aleacutem dessa tendecircncia natural que impele

o ser humano ao saber ele afirma que todas as coisas na natureza (φύσις) parecem estar

organizadas com vistas a um τέλος ou seja a um fim ou cumprimento de alguma coisa

(de onde deriva a expressatildeo teleologia) Por isso a explicaccedilatildeo de qualquer evento do

mundo tanto no aspecto natural como no artificial consistiria em aduzir o fim ou causa

final para o qual esse evento se dirige

Com efeito Aristoacuteteles declara que a natureza natildeo faz coisa alguma

mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria

cada coisa com um uacutenico propoacutesito de modo que cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

(Pol 1252b 11-14) Noutro passo da mesma obra ele afirma que a natureza natildeo faz coisa

alguma sem uma finalidade ou em vatildeo de modo que haacute um propoacutesito para tudo o que

existe (Ibid 1256b 37-38) E na obra Partes dos Animais ele estabelece sua concepccedilatildeo

teleoloacutegica da natureza de maneira categoacuterica aventando que as causas finais ocorrem

tanto nas obras da natureza como nas produccedilotildees artiacutesticas (Part An 369b 15-27)

Mais ainda uma vez que constatamos a existecircncia de causas diversas nos processos naturais caso por exemplo do objectivo e da origem de uma mudanccedila eacute preciso tambeacutem determinar qual delas eacute naturalmente a primeira e qual a segunda A primeira parece ser aquela que implica o ldquopara quecircrdquo de um processo ou seja a sua razatildeo de ser que eacute um princiacutepio comum agraves produccedilotildees artiacutesticas e agraves da natureza Eacute soacute depois de determinar o meacutedico pela reflexatildeo o que seja a sauacutede e o arquitecto pela constataccedilatildeo o que seja uma casa que um e outro podem explicar as razotildees e as causas das iniciativas que tomam e o porquecirc das suas opccedilotildees Mas haacute um objectivo mais forte e uma maior perfeiccedilatildeo nas obras da natureza do que nas de qualquer arte

Jonathan Barnes sustenta que na passagem acima das Partes dos Animais

Aristoacuteteles estabelece de maneira bem definida o que recebe o nome de ldquoconcepccedilatildeo

teleoloacutegica da naturezardquo segundo a qual a explicaccedilatildeo pelas causas finais ocorrem tanto

nas obras da natureza como nos produtos da habilidade humana A explicaccedilatildeo em termos

de causas finais seria tambeacutem uma explicaccedilatildeo em termos do ldquobemrdquo porque se as aves

nadadoras como os patos tecircm peacutes com membranas natatoacuterias em vista da nataccedilatildeo entatildeo

eacute bom para as aves ter peacutes com membranas natatoacuterias Aliaacutes as causas finais satildeo

primordiais porque se identificariam com ldquoa explicaccedilatildeo da coisardquo de modo que ser

nadador eacute parte da essecircncia do pato e uma explicaccedilatildeo adequada do que eacute ser um pato

requer a referecircncia a nadar Desse modo as causas finais natildeo seriam impostas agrave natureza

por consideraccedilotildees teoreacuteticas mas seriam observaccedilotildees da natureza (BARNES 2005 118)

A concepccedilatildeo teleoloacutegica de Aristoacuteteles parece ser uma consequecircncia do princiacutepio

de Anaxaacutegoras de que a Inteligecircncia (νόος) eacute a causa ordenadora do mundo e se a

Inteligecircncia ordena todas as coisas ela o faz do melhor modo possiacutevel (Met 984b 15-18)

Disso resulta que a natureza natildeo iria conceder aos homens o desejo pelo saber e tornar

impossiacutevel a sua realizaccedilatildeo haja vista que a natureza natildeo realiza coisa alguma em vatildeo

Assim se eacute natural o desejo epistecircmico tambeacutem eacute possiacutevel sua realizaccedilatildeo E apesar da

investigaccedilatildeo pela verdade constituir uma tarefa difiacutecil de realizar principalmente quando

as pessoas procuram apreendecirc-la de maneira isolada natildeo eacute possiacutevel que todos falhem

tentativa (Ibid 993a 30-993b 5)

Sob certo aspecto a pesquisa da verdade eacute difiacutecil sob outro eacute faacutecil Prova disso eacute que eacute impossiacutevel apreender adequadamente a verdade e igualmente impossiacutevel natildeo apreendecirc-la de modo nenhum de fato se cada um pode dizer algo a respeito da realidade e se tomada individualmente essa contribuiccedilatildeo pouco ou nada acrescenta ao conhecimento da verdade todavia da uniatildeo de todas as contribuiccedilotildees decorre um resultado consideraacutevel Assim se a respeito da verdade ocorre o que eacute afirmado no proveacuterbio ldquoQuem poderia errar uma portardquo entatildeo sob este aspecto ela seraacute faacutecil ao contraacuterio poder alcanccedilar a verdade em geral e natildeo nos particulares mostra a dificuldade da questatildeo

Para o Estagirita a aquisiccedilatildeo da verdade eacute aacuterdua e lento o progresso da ciecircncia O

primeiro passo eacute o mais difiacutecil porque natildeo se dispotildee de nada que possa guiar a

investigaccedilatildeo mas posteriormente o progresso torna-se mais faacutecil De fato enquanto

indiviacuteduos contribui-se pouco para a massa crescente do conhecimento mas

coletivamente isto eacute realizaacutevel Aleacutem do mais os seres humanos tecircm uma inclinaccedilatildeo

natural para a verdade e a maior parte das vezes satildeo capazes de alcanccedilaacute-la (Ret 1355a

19-21)

Com base nas noccedilotildees apresentadas sobre a tendecircncia natural do ser humano para o

conhecimento e a possibilidade cognoscitiva de alcanccedilaacute-lo pode-se assegurar que as

pessoas em geral quando acreditam em alguma coisa ou quando datildeo o seu assentimento

a uma determinada crenccedila seria jaacute um indiacutecio de que a mesma eacute mais verdadeira que

falsa e por conseguinte digna de ser considerada uma ἔνδοξα Esta perspectiva aparece

de maneira expliacutecita numa passagem da Eacutetica a Eudemo na qual Aristoacuteteles declara que

pelo fato de todos os homens possuiacuterem algo de apropriado em relaccedilatildeo agrave verdade o

consenso entre eles natildeo seria apenas a condiccedilatildeo necessaacuteria mas tambeacutem um indiacutecio quase

suficiente da verdade por isso qualquer investigaccedilatildeo racional precisa partir dos

fenocircmenos como testemunhos e exemplos (μαρτυρίοις καὶ παραδείγμασι χρώμενον τοῖς

φαινομένοις) quer dizer dos juiacutezos ou das opiniotildees geralmente aceitas (Eacutet Eud 1216b

26-35) Portanto uma afirmaccedilatildeo que pode ser repetida por todas as pessoas ou pela

maioria delas deve corresponder ao que tem de ser ou seja eacute certamente um princiacutepio

geral natildeo sendo possiacutevel que este indiacutecio seja um erro cometido por todas as pessoas

Jonathan Lear enfatiza que na visatildeo de Aristoacuteteles todas as crenccedilas representam

uma ldquoestocada na verdaderdquo ou seja representam uma aproximaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave verdade

E haja vista que as crenccedilas satildeo formadas agrave base de interaccedilatildeo com o mundo Aristoacuteteles

acharia muito improvaacutevel ou raro que uma crenccedila qualquer seja completamente

equivocada e natildeo encerre qualquer elemento de verdade Aliaacutes natildeo somente o

conhecimento se acumularia com os humildes esforccedilos de pensadores e pesquisadores

como tambeacutem ateacute as falsas crenccedilas seriam normalmente formadas a partir de noccedilotildees

razoaacuteveis Esta seria uma das razotildees pelas quais Aristoacuteteles acreditava ser necessaacuterio

investigar as crenccedilas dos homens mesmo as mais imprecisas pois vendo-se como eles

tropeccedilam seria possiacutevel obter um apanhado mais claro da verdade (LEAR 2006 21)

Em concordacircncia as noccedilotildees apresentadas Otfried Houmlffe sustenta que quanto mais

Aristoacuteteles relaciona-se com as visotildees correntes tanto mais vecirc nelas um paracircmetro de

verdade Agraves opiniotildees universalmente partilhadas ele atribuiria uma suposiccedilatildeo de verdade

uma vez que todos os seres humanos trazem em si algo que estaacute em relaccedilatildeo com a verdade

e como totalidade elas natildeo poderiam desviar-se da verdade No entanto algumas vezes

as opiniotildees dos especialistas contradizem aquelas da maioria e para a exigida escolha

Aristoacuteteles aduziria como criteacuterio a ampla divulgaccedilatildeo uma certa medida de

fundamentaccedilatildeo a idade condigna e o suporte atraveacutes das opiniotildees de autoridades

reconhecidas E apesar das opiniotildees reconhecidas serem amiuacutede verdadeiras elas ainda

permaneceriam obscuras e imprecisas o que natildeo impediria o Estagirita de recusar em

algumas ocasiotildees a opiniatildeo da maioria Por exemplo a opiniatildeo corrente identifica a

felicidade com algo visiacutevel como o prazer a riqueza ou a honra mas ele a concebe como

a vida dedicada agrave atividade teoreacutetica Pode-se assegurar entatildeo que o pensamento de

Aristoacuteteles estaria fortemente ligado ao senso comum mas a um tipo de senso comum

que eacute qualificado e aberto agrave criacutetica (HOumlFFE 2008 90-92)

De acordo com Aristoacuteteles o discurso retoacuterico comporta trecircs elementos quais

sejam o orador o assunto de que se fala e o ouvinte Existe entatildeo uma relaccedilatildeo

indissociaacutevel entre o orador o ouvinte e o conteuacutedo do discurso e estes trecircs elementos

formam uma unidade mas eacute o ouvinte (ἀκροατής) que constitui o fim para o qual todos

os esforccedilos do orador precisam dirigir-se (Ret 1358a 47-51) Assim ao vincular os

fatores referentes ao orador e ao ouvinte o Estagirita atribui agrave retoacuterica uma funccedilatildeo

sumamente interpessoal de cujos componentes depende igualmente o vigor persuasivo do

discurso E no acircmbito da persuasatildeo o εἰκός representa um fator crucial pois ele se abre

agrave comunidade poliacutetica na medida em que se fundamenta nos valores compartilhados pela

maioria dos cidadatildeos razatildeo pela qual Aristoacuteteles inclui a retoacuterica no acircmbito da ciecircncia

poliacutetica (Ibid 1356a 25-34)

Entretanto conforme a concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo ao ser neutralizada a via do

εἰκός estaraacute tambeacutem neutralizada toda e qualquer participaccedilatildeo tanto do emissor quanto

do receptor do discurso Desse modo toda concessatildeo feita ao ouvinte seraacute interpretada

por Platatildeo como imposiccedilatildeo descabida de um ponto de vista como prestidigitaccedilatildeo

enganadora ou pura adulaccedilatildeo Mas para Aristoacuteteles o orador o ouvinte e o assunto do

discurso constituem realidades indissociaacuteveis determinando unitariamente a mensagem

global E a esses trecircs elementos correspondem outros tantos tipos de πίστεις ἔντεχνοι ou

seja aquelas provas que podem ser fornecidas pelo meacutetodo retoacuterico ndash umas referentes ao

ἦθος ou ao caraacuteter do orador outras a respeito do πάθος que consiste na disposiccedilatildeo

afetiva em que se coloca o ouvinte e finalmente as que se referem ao λόγος ou seja as

provas que se relacionam com o proacuteprio discurso enquanto demonstra ou parece

demonstrar alguma coisa Isto posto Aristoacuteteles enfatiza tanto a relaccedilatildeo fundamental

tripartite de orador conteuacutedo do discurso e ouvinte quanto os chamados trecircs meios de

persuasatildeo ἦθος πάθος e λόγος Em sua parte especiacutefica ele tambeacutem aborda o objeto dos

trecircs gecircneros de discurso puacuteblico συμβουλευτικός δικανικός e o ἐπιδεικτικός juntamente

com o seu lugar na vida puacuteblica e com o seu fim uacuteltimo Aleacutem do que ele considera as

condiccedilotildees psicoloacutegicas eacuteticas e poliacuteticas com cujo auxiacutelio um orador pode despertar a

capacidade de juiacutezo da assistecircncia e obter sua aprovaccedilatildeo

Pode-se assegurar entatildeo que no sistema retoacuterico de Aristoacuteteles o homem ocupa o

centro natildeo o homem enquanto ser individual mas o homem que tem suas crenccedilas

compartilhadas por seus concidadatildeos a saber o homem poliacutetico E conforme as

premissas verossiacutemeis satildeo chanceladas pelo grupo social configuram-se num patrimocircnio

cultural compartilhado por todos Assim no acircmbito da arte retoacuterica tanto o

desenvolvimento como o ponto de partida da argumentaccedilatildeo pressupotildeem o acordo ou o

consenso do auditoacuterio pois do princiacutepio ao fim a anaacutelise da argumentaccedilatildeo versa sobre o

que eacute possivelmente admitido pelos cidadatildeos

Eacute manifesto que a perspectiva ldquoantropocecircntricardquo da arte retoacuterica defendida por

Aristoacuteteles eacute diametralmente oposta agrave concepccedilatildeo ldquoteocecircntricardquo presente tanto na

concepccedilatildeo retoacuterica de Soacutecrates (na Defesa de Soacutecrates de Platatildeo e na Apologia de

Soacutecrates de Xenofonte) como na que eacute exposta de maneira incontestaacutevel por Platatildeo no

diaacutelogo Fedro

No seu discurso judicial Soacutecrates declara que a ordem para que natildeo se envolvesse

em assuntos poliacuteticos foi dada pelo δαιμόνιον ou seja por sua divindade pessoal Ele

tambeacutem propotildee comunicar o seu discurso de defesa numa linguagem ordinaacuteria que se

apresenta diretamente em sua alma em coerecircncia com o que acredita ser verdadeiro e

esta tarefa teria sido outorgada pelo deus de Delfos Ele ainda assegura que por duas vezes

tentou elaborar uma defesa agrave maneira dos oradores mais competentes poreacutem sua

divindade pessoal natildeo o permitiu Desse modo a arte retoacuterica para Soacutecrates natildeo deve

depender do que eacute admitido pelos cidadatildeos tampouco deve comprometer-se em agradaacute-

los pelo contraacuterio deve depender do que interessa agrave divindade e por conseguinte agradaacute-

la acima de tudo

No que tange a Platatildeo a retoacuterica genuiacutena eacute aquela que conquistaria por suas razotildees

os proacuteprios deuses Por essa razatildeo o orador jamais deveria preocupar-se em agradar os

homens mas somente os deuses e proferir um discurso digno da divindade o qual deve

ser condicionado pela ἀλήθεια e natildeo pelo εἰκός Outrossim ele registra no Fedro que o

δαιμόνιον natildeo deixou Soacutecrates partir antes de se purificar como se tivesse cometido uma

impiedade contra a divindade A impiedade atribuiacuteda a Soacutecrates refere-se ao primeiro

discurso proferido por este a Fedro no qual aquele natildeo havia exposto adequadamente as

qualidades de Eros que eacute uma divindade Ademais a contemplaccedilatildeo das Ideias que eacute uma

daacutediva concedida por Eros na forma de uma possessatildeo ou loucura divina constitui a

precondiccedilatildeo para o verdadeiro discurso retoacuterico

Werner Jaeger subscreve a tese de que a atitude de Platatildeo acerca da arte retoacuterica eacute

essencialmente teocecircntrica Todavia essa teoria natildeo seria exclusiva do Fedro pois

tambeacutem estaria presente em outros de seus diaacutelogos Para ele Platatildeo demonstra no Fedro

a necessidade do saber para o retoacuterico salientando que a descoberta do εἰκός em que se

baseia quase sempre a argumentaccedilatildeo retoacuterica pressupotildee o conhecimento da verdade O

εἰκός entatildeo natildeo seria outra coisa senatildeo o que aparece semelhante agrave verdade E como

Platatildeo reconhece a verdadeira finalidade da retoacuterica natildeo consistiria em falar para agradar

aos homens mas sim em agradar a Deus Eacute a teoria conhecida de a A Repuacuteblica do

Teeteto e das Leis Agrave vista disso todas as aporias das suas obras anteriores

desembocariam na atitude rigorosamente teocecircntrica que caracteriza a paideia de sua

uacuteltima fase (JAEGER 2003 1271)

Mediante a atuaccedilatildeo dos filoacutesofos Platatildeo cogita apagar e redesenhar na cidade os

costumes dos homens ateacute que sejam criados os caracteres humanos o mais possiacutevel de

acordo com o θεῖος παράδειγμα ou seja o modelo divino que ele elaborou pelo discurso

de Soacutecrates no decorrer do diaacutelogo A Repuacuteblica O filoacutesofo agrave maneira de um pintor

(ζώγραφος) apoacutes apanhar na cidade e nos caracteres humanos como se fosse um quadro

deve por conseguinte purificaacute-los depois disso conveacutem que ele trace o esquema da

constituiccedilatildeo para que em seguida com mistura e diluiccedilatildeo formar a tez humana

(ἀνδρείκελον) das vaacuterias ocupaccedilotildees de aspecto divino e semelhante aos deuses (Rep

501a-c)

[] jamais uma cidade seraacute feliz se natildeo a desenharem pintores que sigam o modelo divino [] Tomariam disse eu a cidade e os costumes dos homens e como se fosse um quadro comeccedilariam fazendo-a limpa tarefa natildeo muito faacutecil [] Em seguida penso eu ao se porem ao trabalho voltariam amiuacutede de olhos para os dois lados para aquilo que por natureza eacute justo belo temperante ou tem qualidades semelhantes e para aquilo que estivessem criando no meio dos homens misturando e temperando cores a partir das ocupaccedilotildees deles para chegar ao tom da tez humana tomando como base aquilo que quando existente entre os homens tambeacutem Homero chamou de divino e semelhante aos deuses [] E ora creio apagariam um traccedilo ora incluiriam outro ateacute conseguirem fazer que os caracteres humanos fossem tanto quanto possiacutevel agradaacuteveis aos deuses

Visto que para Platatildeo o criteacuterio atraveacutes do qual o discurso retoacuterico torna-se legiacutetimo

eacute sua vinculaccedilatildeo com o modelo divino entatildeo natildeo compete ao orador determinar segundo

seus interesses particulares a natureza dos assuntos tratados no discurso mas deve

sempre pronunciar a verdade em detrimento das crenccedilas compartilhadas pelos ouvintes

Mas para isto ser possiacutevel o orador deve compreender as coisas de acordo com as Ideias

que partem da multiplicidade das sensaccedilotildees para uma unidade (conceito universal) que eacute

inferida pela reflexatildeo filosoacutefica Assim os conceitos universais contidos em todo

conhecimento humano existem como Ideias ou seja como entidades eternas e imutaacuteveis

que existem separadas das coisas particulares e oferecem a estas o seu modelo coisas

essas que obtecircm o seu ser por participaccedilatildeo (μέθεξις) nas Ideias Estas portanto satildeo

aqueles modelos ideais das coisas particulares que natildeo dispotildeem apenas de uma realidade

proacutepria mas de uma realidade no sentido estrito do termo que existem

independentemente da opiniatildeo dos indiviacuteduos e que as almas filosoacuteficas desejam

contemplar acima de qualquer coisa

Conforme analisamos anteriormente Platatildeo exige que o orador seja capaz de

apreender as Ideias antes de proferir o seu discurso pois o orador que ignora a essecircncia

do que eacute justo ou injusto mau ou bom natildeo pode escapar nunca agrave censura que merece

ainda que a multidatildeo o louve Mas eacute com grande dificuldade que poucos iniciados

conseguem contemplar as Ideias E agrave maneira das diversas artes e ciecircncias Platatildeo exige

que existam especialistas altamente capacitados em mateacuteria de discurso razatildeo pela qual

ele rejeita a pretensatildeo da democracia de fazer do discurso retoacuterico algo universalmente

partilhado

Outrossim Platatildeo critica a democracia pelo fato dela sempre pressupor o desacordo

entre os cidadatildeos natildeo como um mal temporaacuterio a ser superado numa unanimidade futura

(como tenciona o empreendimento dialeacutetico) mas como uma condiccedilatildeo inerente agrave proacutepria

sociedade democraacutetica Para ele nenhum valor permanente poderia predominar em tal

sociedade jaacute que os cidadatildeos por possuiacuterem a παρρησία ou seja o direito de livre

expressatildeo podem concordar somente em discordar eles tecircm a licenccedila para fazer o que

querem e ainda podem organizar o modo de vida que mais lhes agrade (Ibid 557b) O

regime democraacutetico eacute comparado por Platatildeo a um manto multicolorido com muitas flores

bordadas capaz de seduzir crianccedilas e mulheres mas eacute somente belo na aparecircncia porque

esta forma de governo que privilegia a liberdade eacute bordada com todo tipo de caraacuteter de

modo que os cidadatildeos natildeo recorrem a nenhum valor comum e natildeo estimulam qualquer

virtude puacuteblica (Ibid 557c) Pelo contraacuterio com soberba a democracia tende a neutralizar

o estudo necessaacuterio para a formaccedilatildeo do bom governante que desde a infacircncia deve

envolver-se somente com belas atividades (Ibid 558b) Aleacutem do mais a proacutepria

concepccedilatildeo de um governante superior aos cidadatildeos que seja capaz de transmitir pelo seu

discurso a noccedilatildeo do justo do belo e do bom constituiria algo repugnante num regime

democraacutetico que por sua proacutepria natureza eacute isento de chefes (Ibid 558c) Sendo assim

na visatildeo de Platatildeo o criteacuterio de validade de um discurso natildeo deve relacionar-se com uma

regra majoritaacuteria qualquer como a opiniatildeo da maioria pois a arte retoacuterica deve ser antes

de mais nada um assunto da competecircncia de filoacutesofos

Entretanto para Aristoacuteteles a arte retoacuterica natildeo eacute o patrimocircnio exclusivo de uma

elite de especialistas ou filoacutesofos longe disso ela se abre agraves perspectivas individuais de

cada ser humano configura-se num instrumento de afirmaccedilatildeo da liberdade de expressatildeo

valoriza o jogo de interesses e motivaccedilotildees humanos e tambeacutem destaca o caraacuteter

interpessoal do discurso Para Aristoacuteteles a persuasatildeo retoacuterica eacute melhor que o uso da

forccedila fiacutesica e a retoacuterica eacute por excelecircncia a ldquoarte democraacuteticardquo a qual natildeo pode quer em

sua forma deliberativa quer em sua forma judicial desenvolver-se sob um regime

autoritaacuterio ou tiracircnico razatildeo pela qual ele enfatiza que o nascimento da arte retoacuterica na

Siciacutelia coincidiu com a expulsatildeo dos tiranos (Ret 1402a 23-24) Aliaacutes Aristoacuteteles

explicita que ordinariamente a maioria das pessoas exerce a retoacuterica mesmo que ao acaso

ou mediante a praacutetica que resulta do haacutebito A retoacuterica portanto natildeo pode ser uma praacutetica

exclusiva de poucos especialistas visto que os cidadatildeos comuns jaacute participam dela

(mesmo desconhecendo seus princiacutepios e regras gerais) na medida em que procuram

eventualmente questionar e sustentar um argumento defender ou acusar

No diaacutelogo Fedro o filoacutesofo Platatildeo subordinou a arte retoacuterica agrave filosofia

Aristoacuteteles por sua vez separou uma da outra apresentando-as como disciplinas distintas

e complementares E diferente de Platatildeo o interesse de Aristoacuteteles natildeo se limitou a

apresentar uma conexatildeo entre o discurso retoacuterico e a verdade das proposiccedilotildees poreacutem

levou em consideraccedilatildeo a dimensatildeo da comunicaccedilatildeo e do uso puacuteblico da linguagem Isto

posto a referecircncia do discurso natildeo se encontra em objetos ideais transcendentes e

acessiacuteveis a um pequena classe de privilegiados mas constitui-se pelas opiniotildees ou pelo

conjunto das crenccedilas da comunidade as quais configuram-se tanto na mateacuteria prima como

no criteacuterio da argumentaccedilatildeo retoacuterica

Decerto as crenccedilas da comunidade possuem para Aristoacuteteles um papel fundamental

na argumentaccedilatildeo retoacuterica porque esta natildeo tem por objetivo expor a verdade cientiacutefica

mas a verossimilhanccedila a qual soacute eacute vaacutelida naquilo que concebe o auditoacuterio A arte retoacuterica

de Aristoacuteteles eacute adaptada ao niacutevel intelectual dos ouvintes ao senso comum agrave opiniatildeo

corrente por isso conveacutem aos produtos da cultura de massa em que impera as crenccedilas que

o puacuteblico julga verdadeiras Porquanto ainda que o orador possua a ciecircncia mais exata

natildeo seria capaz de persuadir com ela um auditoacuterio composto por pessoas comuns (Ibid

1355a 32-34) Desse modo parece ser mais uacutetil veicular aquilo que o puacuteblico acha

verdadeiro mesmo que seja cientificamente impreciso do que expor o que na realidade

eacute cientificamente verdadeiro e ser rejeitado pela opiniatildeo puacuteblica Pode-se assegurar

entatildeo que o poder persuasivo da arte retoacuterica estaacute limitado agraves opiniotildees oficiais existentes

e as crenccedilas que prevalecem numa determinada sociedade Essa dimensatildeo da realidade

poliacutetica ou social como limitante do poder da retoacuterica eacute o que fundamenta a asserccedilatildeo de

Soacutecrates no diaacutelogo Defesa de Soacutecrates de que uma maneira de persuadir sua audiecircncia

seria mais faacutecil do que a outra embora esta outra expresse a verdade dos fatos Portanto

as crenccedilas existentes numa sociedade satildeo tatildeo cruciais para a persuasatildeo puacuteblica que nem

o mais habilidoso orador seria capaz de persuadir seus ouvintes contrariando

explicitamente crenccedilas arraigadas de maneira poderosa e profunda

Examinamos ateacute aqui a concepccedilatildeo platocircnica acerca da arte retoacuterica assim como o

seu contraste em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo retoacuterica sustentada por Aristoacuteteles Dessa avaliaccedilatildeo

foi possiacutevel ressaltar subjacentemente algumas noccedilotildees que aproximam o pensamento

retoacuterico de Aristoacuteteles da sofiacutestica sobretudo a noccedilatildeo de que os argumentos retoacutericos

devem ser formados de opiniotildees comuns tendo em vista a comunicaccedilatildeo com as

multidotildees Todavia a partir do proacuteximo capiacutetulo analisar-se-aacute a concepccedilatildeo retoacuterica dos

sofistas Goacutergias e Protaacutegoras e por conseguinte sua contraposiccedilatildeo relativamente a

Aristoacuteteles Esta investigaccedilatildeo natildeo visa somente evidenciar a discordacircncia entre

Aristoacuteteles e a sofiacutestica mas trazer agrave baila em termos mais definidos os pontos nos quais

o Estagirita se aproxima do seu mestre mormente em relaccedilatildeo agrave funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da

arte retoacuterica cujo corolaacuterio seraacute a visatildeo de um quadro mais completo da tese que

tencionamos demonstrar

6 A concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas Goacutergias e Protaacutegoras

61 Aspectos gerais do movimento sofista

De acordo com G B Kerferd certos aspectos da vida de Atenas na segunda metade

do seacuteculo V aC poderiam sugerir que estava ocorrendo uma mudanccedila bastante

fundamental em direccedilatildeo a uma sociedade na qual o que as pessoas pensavam e falavam

comeccedilava a ser mais relevante do que os proacuteprios fatos reais Assim a mentalidade que

teria emergido no seacuteculo V aC baseava-se na compreensatildeo de que a relaccedilatildeo entre o

discurso e o fato real estava longe de ser um acontecimento simples E apesar de ser

provaacutevel que os pensadores do seacuteculo em apreccedilo estivessem preparados para aceitar que

haacute e deve haver sempre uma relaccedilatildeo entre os dois havia um crescente entendimento de

que o que estaacute envolvido no conhecimento humano natildeo eacute simplesmente a apresentaccedilatildeo

dos fatos em palavras mas antes uma representaccedilatildeo das coisas (KERFERD 2003 135)

Conveacutem ainda considerar que nessa eacutepoca a cidade de Atenas havia conquistado o

domiacutenio poliacutetico e exercia tambeacutem uma espeacutecie de hegemonia cultural sobre toda a

Heacutelade por isso tornou-se rapidamente um centro cultural para onde convergiram muitos

pensadores que aspiravam por notoriedade incluindo os sofistas (σοφισταί) Estes vieram

de toda parte do mundo grego e alguns continuaram a viajar por toda parte em funccedilatildeo de

sua atividade profissional Todavia a maioria se dirigiu para Atenas a qual representou

o verdadeiro centro do movimento sofista por pelo menos sessenta anos (Ibid 2003 31-

32) Mas antes de prosseguirmos no exame do movimento sofista eacute pertinente a anaacutelise

sumaacuteria do significado etimoloacutegico da palavra ldquosofistardquo

Segundo W K C Guthrie a palavra ldquosofistardquo (σοφιστής) que significa

literalmente ldquosaacutebiordquo a qual ateacute o seacuteculo V aC natildeo tinha adquirido um sentido pejorativo

se aplicava aos sete saacutebios (σοφοί) da tradiccedilatildeo grega40 cuja sabedoria consistia sobretudo

na arte praacutetica de estadista As palavras gregas σοφός e σοφία que mormente satildeo

traduzidas por ldquosaacutebiordquo e ldquosabedoriardquo foram usadas desde os tempos mais antigos para

designar uma qualidade intelectual ou espiritual Este sentido passou facilmente para o de

40 Na lista oferecida por Platatildeo a respeito dos sete saacutebios da tradiccedilatildeo grega menciona-se Piacutetaco de Mitilene Periandro de Corinto Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Quiacutelon de Esparta Cleoacutebulo de Lindos e Bias de Priene (Prot 343a)

conhecedor geral ou prudente Nesse sentido as palavras ldquoσοφιστήςrdquo e ldquoσοφόςrdquo por

muito tempo foram consideradas como sinocircnimas Σοφιστής tambeacutem se aplicava muitas

vezes a poetas pois no modo de ver dos gregos instruccedilatildeo praacutetica e conselho moral

constituiacuteam a funccedilatildeo preciacutepua do poeta Todavia no seacuteculo V aC a palavra comeccedilou a

ser usada para escritores em prosa em contraste a poetas quando a funccedilatildeo didaacutetica veio a

se exercer cada vez mais por este meio Por conseguinte um σοφιστής eacute aquele que

escreve e ensina porque tem especial periacutecia ou conhecimento para comunicar-se mas

sua σοφία eacute eminentemente praacutetica quer nos campos da conduta e poliacutetica quer nas artes

teacutecnicas Natildeo obstante os atenienses tendiam a desconficar de intelectuais versados

professores e coisas deste jaez cujas qualidades sintetizam-se na palavra δεινότης com o

adjetivo δεινός Degenerando como acontece com as palavras no uso popular δεινότης

se torna vinculada com σοφός para significar astuto ou esperto principalmente aquele

que eacute perito em discursos e na argumentaccedilatildeo Sendo assim temos a partir de seacuteculo V

aC o adjetivo δεινός ligado expressamente a σοφιστής para ser sentido como insulto

cuja esperteza eacute utilizada para objetivos errados (GUTHRIE 2007 31-36)

A segunda metade do seacuteculo V aC foi o tempo em que se produziu por parte dos

sofistas uma reaccedilatildeo contra toda especulaccedilatildeo fiacutesica Eles teriam deflagrado uma

verdadeira rebeliatildeo contra a distacircncia e a incompreensibilidade do mundo tal como os

fiacutesicos o representavam e iniciado as investigaccedilotildees sobre os assuntos ligados agrave vida

humana Para Guthrie isto teria ocorrido porque as teorias dos filoacutesofos da natureza natildeo

eram satisfatoacuterias nem particularmente criacuteveis porquanto o que eles chamavam de

ldquonatureza real das coisasrdquo era algo extremamente remoto em relaccedilatildeo ao mundo concreto

no qual as pessoas viviam Agrave vista disso a natureza do mundo real resultava de pouca

importacircncia para indiviacuteduos que tinham de lidar todos os dias com um mundo

completamente distinto (Id 2010 74) Importa ainda considerar que apesar da oposiccedilatildeo

dos sofistas em relaccedilatildeo agraves especulaccedilotildees dos primeiros filoacutesofos eles natildeo constituiacuteram

uma escola filosoacutefica particular Na verdade eles eram sobretudo mestres ambulantes

que se orientavam para os assuntos praacuteticos da vida motivados pelas crescentes

oportunidades para tomar parte na vida poliacutetica pela insatisfaccedilatildeo cada vez maior a

respeito das doutrinas dos filoacutesofos da natureza e pelo crescente ceticismo acerca da

validez do ensino religioso tradicional com suas representaccedilotildees dos deuses toscamente

antropomoacuterficos (Ibid 2010 77)

Os sofistas com efeito natildeo podem ser considerados membros de uma escola posto

que eram muito individualistas para admitir um mestre fundador de quem seriam

seguidores Ademais como todo conhecimento implica na aprendizagem que depende

das circunstacircncias do mestre e do disciacutepulo natildeo se poderia transformar a sofiacutestica num

corpo doutrinaacuterio transferiacutevel de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo Os sofistas natildeo formaram uma

corrente filosoacutefica mas certamente constituiacuteram uma profissatildeo a qual teria o seguinte

aspecto em comum a natureza essencialmente praacutetica dos seus ensinamentos Aliaacutes um

assunto em especial que pelo menos todos os sofistas praticavam e ensinavam em comum

era a retoacuterica ou arte do λόγος Um claro exemplo da natureza praacutetica dos ensinamentos

dos sofistas eacute a anedota atribuiacuteda por Platatildeo ao sofista Hiacutepias o qual teria se apresentado

no jogos oliacutempicos levando coisas que ele mesmo havia fabricado (Hip Men 368b-c)

Soacutecrates ndash Adiante pois Hiacutepias Deixa-me levar-te a fazer um exame semelhante em todas as ciecircncias para te assegurares de que em nenhuma se passam as coisas de maneira diferente Ora tu eacutes entre todos os homens o mais saacutebio nas mais numerosas artes como um dia ouvi gabares-te na Aacutegora quando diante das bancas do mercado descrevias a extensatildeo do saber que possuis Tu afirmavas ter uma vez vindo a Oliacutempia trazendo sobre o corpo coisas feitas por ti proacuteprio sem excepccedilatildeo primeiro ndash pois eacute por aiacute que comeccedilavas ndash o anel que trazias era da tua lavra em seguida o sinete obra tua tambeacutem e a tua raspadeira e a tua acircnfora de azeite eram tambeacutem fabricadas pelas tuas matildeos Depois os sapatos que levavas eras tu que tinhas moldado o couro o teu manto eras tu quem o tinha tecido tal como a tua tuacutenica O que enfim em verdade no juiacutezo de todos era o facto mais desconcertante e um testemunho probatoacuterio de um saber sem limites era o cinto que tinhas na tua tuacutenica semelhante dizias tu agraves faixas mais sumptuosas da Peacutersia entranccedilado pelas tuas matildeos Natildeo eacute tudo tinhas vindo declaravas com um arsenal de poemas versos eacutepicos trageacutedias ditirambos e uma variedade de composiccedilotildees oratoacuterias em prosa

Conforme a anaacutelise de Werner Jaeger desde o princiacutepio a finalidade do movimento

educacional comandado pelos sofistas natildeo era a educaccedilatildeo do povo mas a dos chefes Eles

foram os primeiros intelectuais a fazerem do ldquoconhecimentordquo uma profissatildeo pois

ofereciam aulas de retoacuterica e conhecimentos gerais (poesia muacutesica dialeacutetica e gramaacutetica)

aos jovens cidadatildeos da classe dirigente de Atenas que pretendiam dedicar-se agrave carreira

poliacutetica (JAEGER 2003 339 342) Os sofistas ofereciam o seu conhecimento aos filhos

dos aristocratas abastados ou dos novos ricos por isso o que estavam aptos a oferecer natildeo

era de forma alguma uma contribuiccedilatildeo para a educaccedilatildeo das massas uma vez que

ofereciam um produto caro para os que estavam buscando fazer carreira na poliacutetica e na

vida puacuteblica em geral A despeito disso uma das consequecircncias da educaccedilatildeo oferecida

por eles foi superar os privileacutegios da antiga educaccedilatildeo a qual era acessiacutevel somente aos

que tinham ldquosangue divinordquo ou seja a partir da sofiacutestica a educaccedilatildeo formal natildeo se

limitava mais agrave nobreza de sangue mas tambeacutem se estendia a todos que podiam pagar

(Ibid 2003 337) E tendo em vista que a finalidade principal da educaccedilatildeo oferecida

pelos sofistas consistia em preparar homens para uma carreira na poliacutetica uma parte

essencial da educaccedilatildeo oferecida por eles incidia no treinamento do discurso persuasivo

Giovanni Casertano sublinha que os institutos da democracia ateniense

representavam o espaccedilo poliacutetico no qual se mediavam as tensotildees e lutas econocircmicas e

sociais da sociedade grega de modo que tal mediaccedilatildeo poliacutetica obrigava novas exigecircncias

e habilidades ndash a exigecircncia de homens capazes de sustentar e de fazer prevalecer uma

tese impondo-a agrave maioria da assembleia e por conseguinte a exigecircncia de homens que

possuem uma teacutecnica do discurso natildeo mais ligada a uma determinada classe social Agrave

vista disso os sofistas se apresentavam como os ldquonovos mestresrdquo que poderiam satisfazer

a essa nova exigecircncia do saber falar que natildeo consistia numa exigecircncia exclusivamente

retoacuterica mas possuiacutea um claro valor poliacutetico e social (CASERTANO 2010 17)

A habilidade dos sofistas no domiacutenio da arte retoacuterica permitia sem duacutevida

conquistar uma vasta clientela entre os jovens atenienses desejosos de galgar o posto de

magistrados nas assembleias onde se tomavam as decisotildees poliacuteticas e diante dos

tribunais onde ocorriam as acusaccedilotildees e as defesas (onde tambeacutem era necessaacuterio censurar

ou louvar) Assim a importacircncia da persuasatildeo em Atenas na segunda metade do seacuteculo

V aC explicaria o grande ecircxito obtido pelos sofistas No entanto eacute certo que as

qualidades essenciais de um homem de Estado natildeo poderiam ser adquiridos pelo

treinamento porque satildeo inatos o tato a presenccedila de espiacuterito e a previsatildeo Por outro lado

pode-se desenvolver o dom de pronunciar discursos convincentes e oportunos porquanto

no Estado democraacutetico as assembleias puacuteblicas e a liberdade da palavra tornaram-se

imprescindiacuteveis os dotes oratoacuterios Dessarte toda a educaccedilatildeo poliacutetica dos chefes devia

basear-se na eloquecircncia que se converteu na formaccedilatildeo baacutesica do orador por isso eacute

compreensiacutevel o fato de ter surgido uma classe inteira de educadores que publicamente

ofereceram por dinheiro o ensino da virtude que no contexto da eacutepoca claacutessica era

concebida sobretudo como aptidatildeo intelectual e oratoacuteria (JAEGER 2003 340)

Natildeo obstante o poder atribuiacutedo agrave retoacuterica no seacuteculo V aC natildeo teria sido

exclusivamente uma descoberta da geraccedilatildeo dos sofistas visto que sua importacircncia era jaacute

conhecida de Homero e nenhum dos primeiros poetas subestimava a importacircncia de sua

proacutepria atividade no emprego das palavras Mas a teoria acerca da retoacuterica foi em grande

medida uma criaccedilatildeo do periacuteodo sofista E ao lado da sofiacutestica que para Jaeger constitui

um fenocircmeno meramente pedagoacutegico a retoacuterica representaria um fenocircmeno de cunho

poliacutetico que se orienta praticamente para o Estado razatildeo pela qual o ῥήτωρ continuaria

ainda na eacutepoca claacutessica a ser o nome para designar o estadista que num regime

democraacutetico precisaria ser um orador (Ibid 2003 650)

Outrossim os sofistas eram todos estrangeiros (μέτοικος) residentes em Atenas por

esse motivo estavam excluiacutedos da vida puacuteblica e dos direitos garantidos pela posse da

cidadania razatildeo pela qual natildeo tiveram nenhuma oportunidade de tornarem-se figuras

poliacuteticas o que efetivamente foi compensado pelo ensino que ofertavam Platatildeo refere-se

a isso no diaacutelogo Defesa de Soacutecrates onde Soacutecrates afirma que os sofistas satildeo muito bons

fazedores de discursos poliacuteticos mas o seu haacutebito de andar de cidade em cidade e natildeo

possuir uma moradia fixa constitui uma desvantagem quando se refere ao ensino de

assuntos de cidadania Aleacutem disso os sofistas exigiam notaacuteveis somas de dinheiro por

seus ensinamentos a exemplo de Eveno de Paros que cobrava o equivalente a cinco

minas por suas aulas (Def Soacutec 19e-20b)

Conveacutem enfatizar que o ensino constituiacutea na Greacutecia um modo respeitaacutevel de ganhar

a vida de modo que natildeo havia nenhum preconceito contra ganhar a vida como tal Os

poetas eram pagos por seus trabalhos e de artistas e intelectuais se esperava que fossem

pagos por sua atividade e tambeacutem por ensinaacute-la aos outros Portanto a rejeiccedilatildeo que os

sofistas sofreram parece ter-se voltado para a espeacutecie de assunto que eles professavam

ensinar que na visatildeo de W K C Guthrie consistia especialmente na instruccedilatildeo da virtude

(GUTHRIE 2007 41) G B Kerferd tambeacutem compartilha desse ponto de vista ao

sustentar natildeo era o fato dos sofistas cobrarem honoraacuterios que desagradava a maioria mas

o fato de venderem instruccedilatildeo em sabedoria e virtude a todo tipo de gente simplesmente

por dinheiro E o que agravava mais a situaccedilatildeo consistia em que eles vendiam ldquosabedoriardquo

e ldquovirtuderdquo a todos sem nenhuma discriminaccedilatildeo posto que ao cobrarem honoraacuterios

abriam matildeo do direito de escolher seus alunos Esta seria pois a fonte da poderosa

atraccedilatildeo exercida pelos sofistas em Atenas e talvez a principal causa do oacutedio que

fomentou os ataques dos autores de comeacutedias os processos judiciais e finalmente a

morte do proacuteprio Soacutecrates (KERFERD 2003 47-48) Ateacute mesmo Isoacutecrates num de seus

famosos discursos critica tal aspecto da atividade dos sofistas ao declarar que eles foram

tatildeo longe em sua falta de escruacutepulos que tentam persuadir os jovens de que se estudassem

apenas com eles saberiam o que fazer na vida e por meio desse conhecimento se

tornariam felizes e proacutesperos Aleacutem disso embora os sofistas se estabeleccedilam como

mestres e distribuidores de bens tatildeo preciosos natildeo se envergonham de pedir a seus alunos

um preccedilo de trecircs ou quatro minas (Contr Sof 3)

Para W K C Guthrie eacute manifesto que os sofistas natildeo formaram uma vertente

filosoacutefica definida mas no seu entendimento isto natildeo significa que suas reflexotildees natildeo

possuiacuteam grosso modo um conteuacutedo filosoacutefico Para ele os sofistas compartilharam algo

que com propriedade pode chamar-se uma atitude filosoacutefica o ceticismo e a desconfianccedila

a respeito da possibilidade do conhecimento absoluto que era o resultado natural do

impasse a que havia chegado a filosofia natural Todos eles com efeito sustentavam a

ausecircncia total de valores e princiacutepios absolutos e desprezavam todas as consideraccedilotildees

teoloacutegicas Na perspectiva deles toda accedilatildeo humana se baseava unicamente na

experiecircncia a qual era mormente determinada por sua utilidade e eficaacutecia Aleacutem do mais

as noccedilotildees de sabedoria de justiccedila e de bondade eram concebidas como meros nomes

(GUTHRIE 2010 78-79 83)

Outrossim natildeo podendo eliminar o dilema eleaacutetico que forccedilava uma escolha entre

o ser e o tornar-se a estabilidade e o fluxo a realidade e a aparecircncia os sofistas acabaram

por abandonar a ideia de uma realidade permanente por detraacutes das aparecircncias em favor

do fenomenismo do relativismo e do subjetivismo extremos Eles compartilhavam da

perspectiva filosoacutefica geral do empirismo e com este o ceticismo comum sobre a

possibilidade do conhecimento certo Eles sustentavam esta perspectiva em virtude da

inadequaccedilatildeo e falibilidade das faculdades humanas bem como da ausecircncia de uma

realidade estaacutevel para ser conhecida Todos igualmente acreditavam na antiacutetese entre

natureza e convenccedilatildeo Divergiam ainda na avaliaccedilatildeo do valor relativo de cada uma mas

nenhum deles sustentava que leis costumes e crenccedilas religiosas eram inabalaacuteveis por

estarem enraizados numa ordem natural imutaacutevel (Idem 2007 49)

Seguindo a mesma perspectiva interpretativa Giovanni Casertano enfatiza que

aquilo que na obra dos sofistas veio agrave luz pela primeira vez com clareza foi a consciecircncia

da relatividade dos valores ndash a consciecircncia de que natildeo eacute mais possiacutevel falar em termos de

verdade absoluta nem eacute mais aceita a velha figura do saacutebio investido de um saber divino

cuja sabedoria deve ser transmitida aos mortais Depois do advento da sofiacutestica a relaccedilatildeo

entre o homem e a realidade que o circunda e por conseguinte a proacutepria vida humana

com suas tensotildees e organizaccedilotildees natildeo satildeo mais concebidas num esquema fixo e imutaacutevel

A experiecircncia relativista dos sofistas faz nascer tambeacutem um novo sentido para a sabedoria

oficial de modo que as cogitaccedilotildees fiacutesicas astronocircmicas e meacutedicas retomadas dos antigos

saacutebios tornam-se menos abstratas e mais aderentes agrave vida concreta do homem Os

antigos portanto natildeo representam mais o texto da sabedoria oficial dos quais eacute preciso

haurir com reverecircncia noccedilotildees e preceitos de vida Pelo contraacuterio a sabedoria do homem

natildeo eacute mais a absorccedilatildeo passiva de uma tradiccedilatildeo e dos seus ensinamentos mas sua

utilizaccedilatildeo na consciecircncia da diversidade das eacutepocas dos costumes das situaccedilotildees no

processo contiacutenuo da vida humana que eacute ao mesmo tempo relativa e devida somente agraves

forccedilas do homem E para a formaccedilatildeo dessa consciecircncia relativista contribuiu fortemente

o amor dos sofistas pelas viagens e as descobertas de povos e costumes distintos fator

constante da cultura grega mas que foi fortemente potenciado no periacuteodo das guerras

persianas (CASERTANO 2010 19-20)

Todavia antes da conclusatildeo da tocircnica sobre a posiccedilatildeo epistemoloacutegica dos sofistas

acerca da possibilidade do conhecimento humano eacute pertinente o exame das consideraccedilotildees

gerais de Victor Brochard sobre o assunto Brochard sustenta que a passagem do

dogmatismo mecanicista e materialista para o ceticismo se explica sem dificuldade Os

filoacutesofos preacute-socraacuteticos completamente ocupados com suas investigaccedilotildees fiacutesicas teriam

constatado a insuficiecircncia da experiecircncia sensiacutevel mas sua confianccedila ingecircnua na razatildeo

natildeo chegou a ser abalada A diversidade dos resultados aos quais eles chegaram teria

inspirado a desconfianccedila em seus sucessores e os espiacuteritos penetrantes natildeo tardariam a

compreender que se pode dirigir contra a proacutepria razatildeo argumentos anaacutelogos aos que

arruinaram a confianccedila inicialmente concedida aos dados dos sentidos No entanto os

filoacutesofos preacute-socraacuteticos teriam parado no meio do caminho enquanto que os sofistas

avanccedilaram na criacutetica do conhecimento Agrave vista disso os sofistas teriam sido pioneiros em

manifestar uma postura ceacutetica diante do conhecimento eles certamente abriram o

caminho para os demais ceacuteticos mas natildeo foram capazes de formar uma escola filosoacutefica

Brochard destaca ainda que os sofistas quando falavam e agiam como se natildeo houvesse a

possibilidade de apreender a verdade natildeo se dedicavam a oferecer as razotildees teoacutericas para

sustentar sua duacutevida ceacutetica por isso o seu ceticismo se caracterizava por ser

eminentemente praacutetico porque pensavam mais em exploraacute-lo do que em explicaacute-lo

Assim a asserccedilatildeo de que a verdade eacute incognosciacutevel teria sido tomada pelos sofistas como

um axioma que natildeo se discute Eles teriam negligenciado a compreensatildeo dos princiacutepios

que fundamentam o ceticismo buscando apenas suas aplicaccedilotildees praacuteticas tais como

confundir os interlocutores arruinar os adversaacuterios e ganhar as causas mais nefastas

Ademais os argumentos ceacuteticos seriam apresentados pelos sofistas sem nenhuma ordem

e sem nenhum cuidado quanto ao meacutetodo (BROCHARD 2009 29 33)

Eacute manifesto que a filosofia desde a sua origem com Tales de Mileto eacute

permanentemente animada pela controveacutersia e todo novo avanccedilo teoacuterico representa

amiuacutede uma reaccedilatildeo contra as ideias anteriores (Met 983b 19-21) Pode-se verificar esta

atitude tanto em Platatildeo quanto em Aristoacuteteles sobretudo em relaccedilatildeo agrave filosofia moral e

poliacutetica que na sua eacutepoca estava envolta por influecircncia da sofiacutestica numa atmosfera de

ceticismo E foi com o intuito de combater tal posicionamento epistemoloacutegico o qual

parecia ser intelectualmente errocircneo e moralmente pernicioso que os filoacutesofos em apreccedilo

consagraram suas vidas Giovanni Casertano sublinha que no seacuteculo V aC o termo

ldquosofistardquo eacute utilizado em Atenas num sentido mais teacutecnico indicando determinada figura

de saacutebio de intelectual poreacutem no seacuteculo IV aC o termo adquire especialmente por

influecircncia de Platatildeo e Aristoacuteteles um sentido mais exato e proacuteprio distinguindo-se do

termo ldquofiloacutesofordquo e obtendo por conseguinte uma caracterizaccedilatildeo negativa a qual teria sido

conservada ateacute os dias atuais Ele enfatiza com efeito que ser sofista eacute sinocircnimo de

homem sagaz pronto para sustentar uma tese indiferentemente bem como a tese

contraacuteria ardiloso mais ou menos pedante e mais ou menos de maacute-feacute homem que

ldquoadulterardquo discursos com excessivas sutilezas que se agarra teimosa e arrogantemente a

toda palavra ou conceitos expressos por seu interlocutor e sobre cada um deles tem o que

falar pelo mero prazer de contradizer homem fraudulento que recorre a todos os truques

e artimanhas da linguagem para ter sucesso na discussatildeo ou simplesmente para ser

aplaudido pelo auditoacuterio por fim ser sofista eacute ser um homem aborrecedor que natildeo tem

nada a dizer e que apesar disso natildeo faz outra coisa senatildeo falar (CASERTANO 2010 9)

A hostilidade de Platatildeo em relaccedilatildeo aos sofistas eacute notoacuteria e sempre foi reconhecida

Em todos os diaacutelogos platocircnicos flui sempre de maneira expliacutecita ou impliacutecita

frequentemente oculta por uma sofisticada ironia uma tenaz polecircmica contra os sofistas

No diaacutelogo Goacutergias ele distingue de um lado uma seacuterie de atividades cientiacuteficas

chamadas de τέχναι cujos objetivos satildeo o mais alto grau de virtude em cada uma das suas

proacuteprias esferas e de outro lado diversas atividades empiacutericas (ἐμπειρίαν ἔγωγέ τινα)

Estas na verdade natildeo satildeo cientiacuteficas posto que natildeo estatildeo baseadas em princiacutepios

racionais e satildeo incapazes de dar explicaccedilotildees pelo contraacuterio elas soacute objetivam ao

agradaacutevel em vez da virtude e fazem isso sendo complacentes com as expectativas e os

desejos das pessoas (χάριτός τινος καὶ ἡδονῆς ἀπεργασίας) As atividades empiacutericas satildeo

portanto imitaccedilotildees enganadoras de genuiacutenas atividades cientiacuteficas E no acircmbito geral de

preocupaccedilatildeo com a alma humana (ψυχή) Platatildeo inclui a declaraccedilatildeo de normas de

comportamento e isso ele considera uma genuiacutena τέχνη e o que difere disso corresponde

a uma atividade espuacuteria conhecida como sofiacutestica (Goacuterg 462b-465e)

No diaacutelogo A Repuacuteblica Platatildeo descreve os sofistas como uma espeacutecie de

ldquodomadoresrdquo que dedicam toda a vida a estudar os caprichos do ldquoanimal grande e

robustordquo (οἷόνπερ ἂν εἰ θρέμματος μεγάλου καὶ ἰσχυροῦ) que seria a representaccedilatildeo

metafoacuterica das multidotildees Eles conhecem suas reaccedilotildees e desejos como devem aproximar-

se dele e tocaacute-lo quando e por que ele se torna mais agressivo e mais doacutecil qual a razatildeo

do tom que daacute a cada um dos seus urros e a que tom de voz se amansa ou enfurece E a

estas noccedilotildees os sofistas chamam de sabedoria e potildeem-se a ensinaacute-la desconhecendo por

completo o que aquelas opiniotildees e aqueles desejos tecircm na realidade de belo ou feio de

justo ou de injusto Aleacutem disso eles sempre seguem as opiniotildees do grande animal

chamando de bom o que o alegra e de mau o que o aflige justificando-se depois que tudo

isto eacute necessaacuterio porque eacute assim que sucede na realidade Portanto a adaptaccedilatildeo aos

caprichos das multidotildees constitui para os sofistas a pauta suprema da conduta poliacutetica E

esta adaptaccedilatildeo exclui a possibilidade de uma autecircntica educaccedilatildeo dos cidadatildeos orientada

conforme os valores imutaacuteveis e eternos do belo do bom e do justo que somente o

filoacutesofo eacute capaz de apreender (Rep 493a-c)

Verifica-se no pensamento de Aristoacuteteles uma atitude muito semelhante agrave de Platatildeo

dado que para aquele a arte do sofista consiste em aparente sabedoria Para o Estagirita

os dialeacuteticos e os sofistas tecircm o mesmo aspecto do filoacutesofo poreacutem a sofiacutestica eacute uma

sabedoria apenas aparente Outrossim a dialeacutetica e a sofiacutestica dirigem-se ao mesmo

gecircnero de objetos aos quais se dirige a filosofia mas a filosofia difere da primeira pelo

modo de especular e da segunda pela finalidade da especulaccedilatildeo A dialeacutetica move-se agraves

cegas nas coisas que a filosofia conhece verdadeiramente enquanto a sofiacutestica se reduz a

um conhecimento aparente natildeo real (Met 1004b 15-25) E na obra Dos Argumentos

Sofiacutesticos Aristoacuteteles descreve o sofista como algueacutem que ganha muito dinheiro com a

sabedoria aparente e natildeo real porque para ele eacute mais proveitoso parecer saacutebio do que secirc-

lo realmente A arte sofiacutestica consiste entatildeo num simulacro da sabedoria sem qualquer

vinculaccedilatildeo com a realidade e o sofista eacute aquele que faz comeacutercio de uma sabedoria

aparente Aleacutem do que eacute essencial para o sofista desempenhar em aparecircncia o papel de

um homem saacutebio em lugar de secirc-lo efetivamente (Arg Sof 165a 20-25)

62 Goacutergias a retoacuterica como artiacutefice da persuasatildeo

A despeito das criacuteticas que Aristoacuteteles teceu contra a sofiacutestica conveacutem lembrar sua

declaraccedilatildeo de que atraveacutes de alguns sofistas como Goacutergias Protaacutegoras e Trasiacutemaco a

arte retoacuterica pocircde atingir dimensotildees consideraacuteveis de modo que os grandes oradores do

seu tempo seriam os beneficiaacuterios de uma longa sucessatildeo de homens que a aprimoraram

ateacute que atingisse a forma corrente Todavia a arte retoacuterica natildeo foi uma invenccedilatildeo dos

sofistas nem nasceu em Atenas mas na Siciacutelia grega por volta de 465 aC depois da

expulsatildeo dos tiranos (Gelatildeo e Hieratildeo) e sua origem eacute judiciaacuteria Os cidadatildeos despojados

pelos tiranos em apreccedilo reclamaram seus bens e agrave guerra civil seguiram-se diversos

conflitos judiciaacuterios Corax que era disciacutepulo do filoacutesofo Empeacutedocles e seu proacuteprio

disciacutepulo chamado Tiacutesias publicaram uma coletacircnea de preceitos praacuteticos que continha

exemplos para as pessoas que recorressem agrave justiccedila E uma vez que naquela eacutepoca natildeo

havia advogados os litigantes recorriam aos logoacutegrafos que eram como escrivatildees

puacuteblicos que escreviam as queixas que eles teriam de ler diante do tribunal Nesse

contexto de disputas juriacutedicas os retores teriam oferecido aos logoacutegrafos e litigantes um

instrumento de persuasatildeo que alegavam ser infaliacutevel a ponto de ser capaz de persuadir

qualquer um sobre qualquer assunto (REBOUL 2004 2)

Todavia atraveacutes do sofista Goacutergias de Leontini surge uma nova fonte da retoacuterica

qual seja esteacutetica e propriamente literaacuteria Nascido em 385 aC ele tambeacutem era siciliano

e disciacutepulo de Empeacutedocles Em 327 aC ele teria visitado Atenas como embaixador e

sua eloquecircncia teria encantado os atenienses de tal modo que teve de prometer-lhes o seu

retorno Goacutergias foi considerado um dos fundadores do discurso epidiacutectico o qual criou

para esta finalidade uma prosa eloquente multiplicando as figuras de linguagem que a

tornam uma composiccedilatildeo erudita e ritmada tatildeo bela quanto a poesia Aliaacutes suas figuras

de linguagem satildeo tanto de palavras como assonacircncias rimas paranomaacutesias e ritmo da

frase quanto de sentido e pensamento como periacutefrases metaacuteforas e antiacuteteses (Ibid 2004

4) E as melhores informaccedilotildees a este respeito encontram-se plasmadas numa obra de

Goacutergias escrita em forma de declamaccedilatildeo retoacuterica chamada Elogio de Helena (Ἑλένης

ἐγκώμιον)

A obra gorgiana Elogio de Helena eacute um excelente exemplo de como as anaacutelises dos

sofistas alcanccedilaram uma sutileza e riqueza de articulaccedilotildees natildeo somente no acircmbito da

loacutegica mas tambeacutem no acircmbito da investigaccedilatildeo psicoloacutegica e no da explicaccedilatildeo dos

comportamentos praacuteticos dos seres humanos Sumariamente a obra procura demonstrar

a posiccedilatildeo privilegiada do λόγος ou seja do discurso retoacuterico natildeo soacute em relaccedilatildeo a

realidade das coisas mas tambeacutem em relaccedilatildeo a realidade dos seres humanos dos seus

prazeres das suas dores e de todos os seus sentimentos O propoacutesito inicial da obra

consiste em libertar Helena de Troia da culpa por ter feito o que fez ao deixar seu lar sua

filha e seu marido para ir ateacute Troia com Paacuteris mostrar que os que a condenam estatildeo

falando falsamente e ao indicar a verdade neutralizar a ignoracircncia deles Escreve

Goacutergias a este respeito (El Hel sect 2 )

Cabe ao mesmo homem dizer tambeacutem o que conveacutem com justiccedila e convencer do erro os que criticam Helena mulher em relaccedilatildeo agrave qual tornou-se uniacutessona e unacircnime tanto a crenccedila que ouvem os poetas quanto a fama de seu nome que se tornou memoacuteria de infortuacutenios Eu anseio oferecendo com o discurso uma explicaccedilatildeo e revelando a verdade suprimir a responsabilidade dela que tem erradamente uma maacute reputaccedilatildeo e suprimir a ignoracircncia denunciando os que enganados a criticam

O acento na ldquoverdaderdquo na passagem acima eacute enfaacutetico e revela que natildeo haacute em

Goacutergias a intenccedilatildeo de negar a existecircncia do fato concreto haja vista que soacute pode existir

o engano em relaccedilatildeo ao que realmente existe Isto posto Goacutergias aventa quatro possiacuteveis

explicaccedilotildees para o comportamento de Helena que era considerado ignoacutebil pela opiniatildeo

geral o decreto dos deuses e da necessidade o sequestro agrave forccedila a persuasatildeo pelo poder

do discurso e o resultado da forccedila da paixatildeo No primeiro caso os deuses representariam

uma forccedila mais poderosa que o homem resultando daiacute que satildeo eles os culpados e natildeo o

ser humano que naturalmente eacute mais fraco Por natureza natildeo seria o mais forte a ser

dominado pelo mais fraco mas o mais fraco pelo mais forte E se o mais forte deve

dominar entatildeo ao mais fraco soacute restaria obedecer O divino portanto seria mais forte

que o homem tanto pela forccedila como pela sabedoria por isso conveacutem atribuir a

responsabilidade agrave Fortuna e ao divino e libertar por conseguinte Helena da ignomiacutenia

(Ibid sect 6 )

No segundo caso seria necessaacuterio ter pena da mulher em vez de censuraacute-la e

condenar o baacuterbaro que a teria sequestrado pois se Helena foi arrebatada agrave forccedila

ilegalmente submetida e injustamente tratada com insolecircncia eacute evidente que agiu

ilegalmente quem a arrebatou enquanto ela sendo raptada e ultrajada obteve

indevidamente uma maacute fortuna Assim seria o baacuterbaro o merecedor da condenaccedilatildeo tanto

pelo discurso e pela lei quanto por sua accedilatildeo e ao ser submetida agrave forccedila privada da paacutetria

e afastada dos amigos Helena deveria inspirar a piedade em vez da difamaccedilatildeo (Ibid sect

7)

Algumas dificuldades poreacutem podem ser levantadas na terceira situaccedilatildeo quando eacute

o discurso (λόγος) que persuade e a resposta eacute desenvolvida um tanto longamente por

Goacutergias A soluccedilatildeo de Goacutergias parece ser dupla Em primeiro lugar Goacutergias argumenta

que se o discurso a persuadiu e sua alma enganou natildeo seria difiacutecil defendecirc-la e por

conseguinte liberaacute-la da responsabilidade visto que o λόγος seria como um grande e

soberano senhor que com um corpo pequeniacutessimo e invisibiliacutessimo eacute capaz de operar

diviniacutessimas accedilotildees (Ibid sect 8) A propoacutesito o poder de persuasatildeo atribuiacutedo por Goacutergias agrave

arte retoacuterica tambeacutem eacute reconhecido por Soacutecrates o qual declara que de acordo com o

sofista a arte retoacuterica revelar-se-ia como um poder quase divino (Goacuterg 456a)

Outrossim Goacutergias enfatiza o enorme poder do λόγος que se manifestaria pelas

experiecircncias emocionais que produz tanto pela poesia como pela maestria da prosa ndash um

estremecimento de medo repleto de espanto uma compaixatildeo que provocaria abundantes

laacutegrimas e um sentimento de nostalgia que entraria no espiacuterito dos que a ouvem (El Hel

sect 9-10)

Eacute necessaacuterio tambeacutem demonstrar pela opiniatildeo aos ouvintes considero e designo toda poesia como discurso metrificado Um estremecimento de medo repleto de espanto uma compaixatildeo que provoca laacutegrimas abundantes um sentimento de nostalgia entra no espiacuterito dos que a ouvem A alma eacute afetada (uma afecccedilatildeo que lhe eacute proacutepria) atraveacutes das palavras pelos sucessos e insucessos que concernem a outras coisas e outros seres animados Mas passemos de um a outro discurso Pois os maacutegicos e sedutores cantos atraveacutes das palavras inspirados pelos Deuses produzem prazer afastando a dor Pois o poder do maacutegico canto que nasce com a opiniatildeo da alma encanta-a persuade-a e modifica-a por fascinaccedilatildeo

Giovanni Casertano salienta que esta passagem do Elogio de Helena apresenta os

dois aspectos do λόγος gorgiano o aspecto natural e aspecto teacutecnico De um lado ele eacute

natural porque pertence por natureza agrave espeacutecie do homem mas de outro eacute teacutecnico porque

natildeo possuindo uma consistecircncia fiacutesica comparaacutevel agrave das outras coisas constitui uma

realidade natildeo menos verdadeira do que as outras e seria ainda mais real que as outras na

vida do homem Nesse sentido mediante o discurso a alma sofre uma forma proacutepria de

sofrimento que eacute artificial construiacuteda com arte como na poesia ou em qualquer discurso

que se dirige a outrem A despeito disso natildeo eacute por sua superficialidade que ele eacute menos

verdadeiro ou real do que as demais coisas que existem no mundo Todas as paixotildees

humanas como alegria e dor dependem do discurso Ele eacute aquilo que faz ser as coisas

que natildeo satildeo justamente porque eacute aquilo que leva agrave consciecircncia do homem o significado

das coisas nas quais ele estaacute imerso Por isso ele eacute tambeacutem um grande e soberano senhor

porque o homem natildeo pode viver sem significados (CASERTANO 2010 96-97)

Haveria para Goacutergias uma outra maneira pela qual o λόγος eacute capaz de agir sobre a

alma humana Para ele a maioria dos homens eacute incapaz de recordar o que de fato

aconteceu ou de investigar o presente ou de advinhar o futuro De modo que na maioria

das questotildees os homens usam a opiniatildeo (δοξα) como um conselheiro para suas almas A

δοξα poreacutem natildeo eacute confiaacutevel e pode fazer a pessoa tropeccedilar e cair com consequecircncias

danosas para si mesma Todavia o λόγος eacute capaz de agir persuasivamente sobre a δοξα

porque a δοξα natildeo eacute conhecimento (ἐπιστήμη) e por essa razatildeo seria faacutecil de mudar (El

Hel sect 11)

Quantos persuadiram e persuadem outros tantos a propoacutesito de outras tantas coisas forjando um falso discurso Se pois todos sobre todas as coisas tivessem tanto a memoacuteria das coisas passadas quanto a noccedilatildeo das coisas presentes e as presciecircncias das coisas futuras o discurso natildeo seria o mesmo para os que agora natildeo podem facilmente nem lembrar o passado nem examinar o presente nem predizer o futuro De modo que os muitos sobre muitas coisas buscam com a alma a opiniatildeo conselheira A opiniatildeo sendo incerta e inconstante lanccedila a incertos e inconstantes sucessos os que a ela se confiam

Eacute preciso levar em consideraccedilatildeo que as praacuteticas da retoacuterica de Goacutergias se baseavam

numa concepccedilatildeo relativista acerca do conhecimento semelhante a de Protaacutegoras e por ela

se justificavam porquanto se houvesse uma verdade universalmente vaacutelida que se

pudesse comunicar a outrem entatildeo tal verdade devia ser transmitida por estar apoiada

numa evidecircncia absoluta Assim somente o conhecimento baseado numa prova

irrefutaacutevel poderia se opor ao poder inerente agrave persuasatildeo mas na condiccedilatildeo de ceacutetico

Goacutergias aventa natildeo existir algo desta natureza razatildeo pela qual na maioria dos assuntos

os homens tecircm apenas δόξα e natildeo ἐπιστήμη Eles vivem num mundo onde a δοξα eacute

suprema e natildeo existe um criteacuterio mais elevado atraveacutes do qual se possa verificar o

contraacuterio Isto deixa o orador que eacute exiacutemio na arte da persuasatildeo (tanto privada como

puacuteblica) no controle de todo o campo da experiecircncia humana jaacute que a δόξα por ser incerta

e inconstante sempre pode mudar Goacutergias ainda declara que o modo de ser da persuasatildeo

de maneira alguma se parece agrave necessidade (ἀνάγκη) mas certamente tem o mesmo poder

(δύναμις) Isto ocorre porque o discurso persuasivo ao agir sobre a alma eacute capaz de

constrangecirc-la tanto a crer nas coisas enunciadas quanto a concordar com as coisas feitas

(Ibid sect 12) Agrave vista disso o efeito do discurso eacute sempre a persuasatildeo mas a maioria das

pessoas conserva firmemente na alma natildeo a verdade mas apenas a opiniatildeo de modo que

eacute faacutecil dominaacute-la com o discurso da mesma forma que com violecircncia fiacutesica dominam-se

os corpos E se eacute verdade que eacute o λόγος quem daacute significado agravequilo que o homem eacute e faz

eacute necessaacuterio pois que os homens aprendam a usaacute-lo adequadamente

O ensino retoacuterico de Goacutergias natildeo se restringia agrave forma e ao estilo mas referia-se

tambeacutem a substacircncia do que se dizia Para ele a verdade seria individual e temporaacuteria e

natildeo universal e permanente jaacute que a verdade para o homem consiste simplesmente em

que podia ser persuadido pelo λόγος e seria possiacutevel persuadir qualquer um sobre

qualquer coisa E a fim de justificar sua concepccedilatildeo de que a opiniatildeo eacute incerta e

inconstante e a persuasatildeo aliada a palavras modela a mente dos homens como quiser

Goacutergias aduziu trecircs exemplos Primeiramente ele menciona os que discutem os corpos

celestes a saber os meteorologistas (μετεωρολόγοι) ou os cientistas naturais que

acreditando possuir o segredo do universo substituem uma opiniatildeo por outra removendo

uma e formando outra em seu lugar e fazem com que as coisas que natildeo se veem agraves quais

faltam credibilidade se tornem aparentes aos olhos da opiniatildeo O segundo exemplo

consiste no caso em que o λόγος estaacute em debate com outro λόγος como as disputas que

ocorrem nas assembleias (λόγων ἀγῶνας) onde um discurso pela habilidade de sua

composiccedilatildeo natildeo pela verdade de suas afirmaccedilotildees ao mesmo tempo delicia e persuade

uma grande multidatildeo de ouvintes E em terceiro lugar os combates dos discursos dos

filoacutesofos (φιλοσόφων λόγων) nos quais a rapidez do pensamento se evidencia ao

modificar facilmente a crenccedila da opiniatildeo (Ibid sect 13)

Com efeito o resultado a que chega Goacutergias eacute que o poder do λόγος em relaccedilatildeo agrave

condiccedilatildeo da alma eacute comparaacutevel ao poder inerente a uma droga (φάρμακον) pois eacute

manifesto que diferentes drogas tecircm diferentes efeitos sobre o corpo Algumas curam

doenccedilas e outras potildeem fim agrave vida do mesmo modo tambeacutem entre as palavras umas

afligem outras encantam outras amedrontam outras estabelecem confianccedila nos

ouvintes outras atraveacutes de soacuterdida persuasatildeo envenenam e enganam a alma (Ibid sect 14)

Desse modo o discurso para Goacutergias eacute como um φάρμακον ou seja natildeo eacute nem bom nem

mau em si mesmo nem verdadeiro nem falso de modo que a bondade do discurso

depende necessariamente do uso que se faz dele visto que ele sempre tem um efeito sobre

a alma assim como o φάρμακον sobre o corpo

A comparaccedilatildeo da persuasatildeo com o termo ldquoφάρμακονrdquo sugere que Goacutergias deseja

distinguir dois tipos de persuasatildeo ou seja uma boa e outra maacute Seria entatildeo a maacute

persuasatildeo que operou no caso de Helena levando-a a abandonar sua famiacutelia e seguir Paacuteris

Tal concepccedilatildeo se ajusta perfeitamente com a posiccedilatildeo atribuiacuteda a Goacutergias por Platatildeo no

diaacutelogo Goacutergias ndash a retoacuterica para Goacutergias seria simplesmente uma arte que pode ser usada

para produzir tanto a crenccedila falsa como a crenccedila verdadeira embora ele e seus defensores

no diaacutelogo em apreccedilo defendam que ela natildeo deve ser empregada para propoacutesitos imorais

Goacutergias tambeacutem propotildee que enquanto mestre de retoacuterica ele transmite a sua arte a seus

disciacutepulos para ser empregada de maneira justa embora eles possam empregaacute-la de

maneira contraacuteria Contudo isso seria de responsabilidade moral do orador o qual deve

responder por suas proacuteprias accedilotildees e natildeo do mestre que lhe transmitiu a arte retoacuterica

atraveacutes da qual ele comete injusticcedila (Goacuterg 457a-c)

Pois eles lhe transmitiram o uso justo dessas coisas contra inimigos e pessoas injustas para se defender e natildeo para atacar ao passo que seus transgressores usam a forccedila e a arte incorretamente Assim ignoacutebeis natildeo satildeo os mestres tampouco culpada e ignoacutebil eacute a arte por tal motivo mas as pessoas que natildeo a usam corretamente como presumo O mesmo argumento tambeacutem vale para a retoacuterica o reacutetor eacute capaz de falar contra todos e a respeito de tudo de modo a ser mais persuasivo em meio agrave multidatildeo em suma acerca do que quiser poreacutem nem mesmo por esse motivo ele deve furtar a reputaccedilatildeo dos meacutedicos ndash pois seria capaz de fazecirc-lo ndash nem a de qualquer outro artiacutefice mas usar a retoacuterica de forma justa como no caso da luta E se algueacutem julgo eu tornar-se reacutetor e cometer posteriormente alguma injusticcedila por meio desse poder e dessa arte se deve odiar expulsar ou matar quem os usou incorretamente e natildeo quem os ensinou

No iniacutecio do Elogio de Helena Goacutergias afirma que sua intenccedilatildeo natildeo eacute outra coisa

senatildeo indicar a verdade pois para ele a boa ordem da cidade consistiria na coragem dos

seus cidadatildeos (Κόσμος πόλει μὲν εὐανδρία) a boa ordem do corpo a beleza (σώματι δὲ

κάλλος) a boa ordem da alma a sabedoria (ψυχῆι δὲ σοφία) a boa ordem da accedilatildeo a

virtude (πράγματι δὲ ἀρετή) e a boa ordem do discurso a verdade (λόγωι δὲ ἀλήθεια)

Entretanto o contraacuterio dessas coisas resultaria na desordem na cidade Assim em relaccedilatildeo

a um homem e a uma mulher a um discurso e a uma accedilatildeo a uma cidade e a um negoacutecio

de Estado eacute necessaacuterio tanto honrar pelo elogio puacuteblico aquele que o merece quanto

infligir repreensatildeo ao que eacute indigno uma vez que eacute erro e ignoracircncia reprovar as coisas

louvaacuteveis e louvar as coisas criticaacuteveis (El Hel sect 1)

A despeito disso Goacutergias fala do λόγος que persuade a alma produzindo engano

(ἀπατή) e da persuasatildeo que eacute bem sucedida porque moldou um λόγος falso Para ele a

persuasatildeo age por engano porque se o discurso persuadiu Helena e enganou sua alma

natildeo seria difiacutecil quanto a este assunto defendecirc-la e por conseguinte isentaacute-la da

responsabilidade Dessarte pode-se entender que na visatildeo de Goacutergias a uacutenica maneira

pela qual a persuasatildeo age na opiniatildeo eacute por engano O λόγος seria entatildeo um grande e

soberano senhor capaz de operar diviniacutessimas accedilotildees sendo possiacutevel atraveacutes dele suscitar

o medo a calma a alegria afastar a dor e estimular a compaixatildeo (Ibid sect 8)

Conforme a anaacutelise de G B Kerferd eacute possiacutevel compreender o verdadeiro

significado de ἀπατή no pensamento de Goacutergias levando em consideraccedilatildeo o que eacute dito na

segunda e na terceira partes do seu tratado chamado Sobre a natureza Na segunda parte

Goacutergias afirma que mesmo se as coisas existirem natildeo poderatildeo ser conhecidas pensadas

ou apreendidas pelos seres humanos E na terceira parte ele afirma que mesmo que

pudessem ser apreendidas ainda assim natildeo poderiam ser comunicadas a uma outra

pessoa Isto ocorreria porque o meio atraveacutes do qual as pessoas se comunicam eacute o

discurso o qual jamais poderaacute se identificar com os objetos externamente subsistentes

que existem na realidade Sendo assim aquilo que se comunica a uma outra pessoa nunca

satildeo as coisas existentes na realidade mas apenas um λόγος e este eacute sempre outra coisa

diferente das coisas em si mesmas (KERFERD 2003 139) Isto posto se para Goacutergias

as coisas natildeo existem ou natildeo satildeo cognosciacuteveis nem comunicaacuteveis ele estaria por esse

motivo apregoando a onipotecircncia do λόγος o qual natildeo estaria mais submetido a nenhum

criteacuterio extriacutenseco e do qual nem mesmo se pode dizer que eacute falso de sorte que no

conhecimento humano o que estaacute envolvido natildeo eacute simplesmente a apresentaccedilatildeo dos fatos

em palavras mas uma representaccedilatildeo subjetiva das coisas existentes na realidade

De acordo com a interpretaccedilatildeo de Kerferd o sofista Goacutergias teria introduzido uma

espeacutecie de fosso entre o λόγος e as coisas agraves quais ele se refere (πράγματα) que chegariam

aos seres humanos de uma fonte externa a eles Assim tal fosso deve ser compreendido

pelo fato de o λόγος (pelo menos quando exposto em sons vocais audiacuteveis) natildeo ser ele

mesmo algo da mesma categoria das πράγματα Em vez disso as coisas chegariam aos

seres humanos de fora deles mesmos mediante um oacutergatildeo do sentido diferente daquele

pelo qual recebemos as impressotildees visuais razatildeo pela qual o λόγος jamais teria a funccedilatildeo

de exibir o objeto externo tal como eacute na realidade (Ibid 2003 167-168) Uma vez

reconhecido o fosso compreender-se-ia entatildeo muito facilmente o sentido em que todo

discurso envolve uma falsificaccedilatildeo da coisa agrave qual se refere o λόγος jamais seria capaz de

reproduzir a realidade em si mesma a qual estaria irreparavelmente fora dele Aleacutem disso

essa doutrina lanccedilaria luz sobre a afirmaccedilatildeo do paraacutegrafo 11 do Elogio de Helena no qual

Goacutergias afirma que se os homens possuiacutessem mesmo o conhecimento o λόγος natildeo seria

visivelmente similar agrave aquilo do qual eles possuem o conhecimento (Ibid 2003 140) E

na medida em que Goacutergias declara a intenccedilatildeo de reproduzir fielmente a realidade ao

mostrar que os que condenam Helena estatildeo falando falsamente e ao indicar a verdade

neutralizar a ignoracircncia deles (El Hel sect 2) isto natildeo passaria de ἀπατή daiacute que todo

discurso que objetiva persuadir eacute nada mais nada menos que puro engano

Eacute manifesto que Goacutergias acreditava na existecircncia de um mundo real objetivo que

amiuacutede eacute concebido como a verdade ou aquilo que eacute verdadeiro A apreensatildeo desse

mundo real se identificaria efetivamente com o conhecimento mas o estado cognitivo

mais comum seria δόξα e natildeo ἐπιστήμη ao passo que o λόγος que seria mais poderoso

que a δόξα teria o poder ilimitado de influenciaacute-la Ambos seriam falsos em contraste

com a verdade e o conhecimento mas eacute possiacutevel apelar dos enganos do λόγος e da δοξα

para o conhecimento e a verdade O efeito desse apelo embora propiciasse algum

conhecimento natildeo eliminaria o incuraacutevel caraacuteter falso do λόγος visto que ele jamais

poderia exprimir a realidade que pretende expor

Na perspectiva de Goacutergias a distinccedilatildeo entre o niacutevel da realidade e o niacutevel do

discurso sobre a realidade natildeo expressa uma relaccedilatildeo de estrita correspondecircncia jaacute que ela

acontece apenas num dos niacuteveis ou seja no niacutevel do discurso Eacute sempre e somente o

discurso que determina a relaccedilatildeo entre a linguagem e a realidade diferenciando-os e

conectando-os Poder-se-ia dizer (invertendo a concepccedilatildeo aristoteacutelica acerca da verdade)

que algo natildeo pode ser considerado branco pelo fato de ser branco na realidade mas

simplesmente por ser afirmado por algueacutem que assim o percebe Agrave vista disso natildeo seria

possiacutevel determinar a realidade de algo de maneira independente do λόγος de modo que

a afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo da realidade de algo o inevitaacutevel atribuir predicados a algum

objeto por exemplo que ldquoa neve eacute brancardquo dependem sempre das percepccedilotildees subjetivas

acerca da realidade Estas percepccedilotildees natildeo seriam neutras pois exprimiriam sempre a

perspectiva individual de cada sujeito sobre a realidade justamente porque satildeo a

representaccedilatildeo em palavras das coisas Pode-se assegurar entatildeo que Goacutergias procura

demonstrar que existe um verdadeiro fosso entre as coisas e a percepccedilatildeo assim como

entre a percepccedilatildeo e o discurso razatildeo pela qual as palavras natildeo teriam qualquer

correspondecircncia com as coisas que vez por outra elas imitam

A despeito da inconsonacircncia entre a realidade a percepccedilatildeo e o discurso as palavras

para Goacutergias podem persuadir os outros a mudar suas opiniotildees o que confere um poder

quase ilimitado ao discurso retoacuterico Este por conseguinte eacute capaz de imprimir o ser agraves

coisas que natildeo satildeo levar agrave consciecircncia do homem o significado das coisas alterar tanto

as emoccedilotildees como as opiniotildees daqueles que o ouvem e submeter os ouvintes ao poder do

orador Ele ainda pode persuadir a alma constrangendo-a tanto a crer nas coisas

enunciadas quanto a concordar com as coisas feitas Dessarte Goacutergias define a arte

retoacuterica como πειθοῦς δημιουργός ou seja como artiacutefice da persuasatildeo (Goacuterg 453a)

Agora sim Goacutergias tua indicaccedilatildeo parece-me muito mais propiacutenqua agrave qual arte consideras ser a retoacuterica e se compreendo alguma coisa afirmas que a retoacuterica eacute artiacutefice da persuasatildeo e todo seu exerciacutecio e cerne convergem a esse fim Ou tens algo mais a acrescentar ao poder da retoacuterica aleacutem de incutir na alma dos ouvintes a persuasatildeo

Enquanto artiacutefice da persuasatildeo a retoacuterica eacute capaz de persuadir mediante o discurso

os juiacutezes no tribunal os conselheiros no Conselho os membros da Assembleia e em toda

e qualquer reuniatildeo que seja uma reuniatildeo poliacutetica E atraveacutes dela eacute possiacutevel submeter os

ouvintes ao poder do orador a ponto deste ter o meacutedico como escravo e como escravo o

treinador (Ibid 452e)

A meu ver ser capaz de persuadir mediante o discurso os juiacutezes no tribunal os conselheiros no Conselho os membros da Assembleia na Assembleia e em toda e qualquer reuniatildeo que seja uma reuniatildeo poliacutetica Ademais por meio desse poder teraacutes o meacutedico como escravo e como escravo o treinador Tornar-se-aacute manifesto que aquele negociante negocia natildeo para si proacuteprio mas para outra pessoa para ti que tens o poder de falar e persuadir a multidatildeo

Aleacutem do mais para Goacutergias se porventura algum meacutedico fosse incapaz de

persuadir um doente qualquer a seguir cabalmente suas orientaccedilotildees como por exemplo

cortar ou cauterizar algum membro enfermo o orador haacutebil jaacute natildeo teria tal dificuldade e

isto soacute seria possiacutevel atraveacutes do domiacutenio da arte retoacuterica E no caso de um orador e um

meacutedico que se dirigissem a uma cidade e laacute se requeresse uma disputa entre eles atraveacutes

do discurso sobre quem deveria ser eleito meacutedico certamente seria o orador e natildeo o

meacutedico a obter a vaga pleiteada (Ibid 456c)

Ah Se soubesses de tudo Soacutecrates todos os poderes por assim dizer elas os manteacutem sob sua eacutegide Vou te contar uma grande prova disso muitas vezes eu me dirigi em companhia de meu irmatildeo e de outros meacutedicos a um doente que natildeo queria tomar remeacutedio nem permitir ao meacutedico que lhe cortasse ou cauterizasse algo sendo o meacutedico incapaz de persuadi-lo eu enfim o persuadi por meio de nenhuma outra arte

senatildeo a da retoacuterica E digo mais se um reacutetor e um meacutedico se dirigirem a qualquer cidade que quiseres e laacute requerer uma disputa entre eles mediante o discurso na Assembleia ou em qualquer outra reuniatildeo sobre quem deve ser eleito como meacutedico quem se apresentaraacute jamais seraacute o meacutedico mas seraacute eleito aquele que tenha o poder de falar se assim ele o quiser E se disputasse com qualquer outro artiacutefice o reacutetor ao inveacutes de qualquer um deles persuadiria as pessoas a elegerem-no pois natildeo haacute nada sobre o que o reacutetor natildeo seja mais persuasivo do qualquer outro artiacutefice em meio agrave multidatildeo Esse eacute o tamanho e o tipo de poder dessa arte

Em sua explanaccedilatildeo acerca da arte retoacuterica Goacutergias a apresenta como uma disciplina

separada e distinta das demais aacutereas do conhecimento humano Para ele um orador natildeo

deveria estar preocupado com o conhecimento teacutecnico dos assuntos de seus discursos

pois apesar de natildeo conhecer a arte da medicina poderia facilmente persuadir um paciente

desobediente agraves ordens de seu meacutedico41 Desse modo natildeo seria necessaacuterio o domiacutenio de

um conhecimento teacutecnico sobre um assunto especiacutefico no qual o orador objetivasse a

persuasatildeo Pelo contraacuterio o orador saberia como produzir a persuasatildeo nos ouvintes

independente de qualquer conhecimento especializado E se o meacutedico e o orador satildeo

capazes de persuadir o resultado praacutetico seria o mesmo em seus ouvintes com a diferenccedila

de que o orador eacute mais eficiente em atingir seu objetivo

Com efeito Goacutergias natildeo nega que o conhecimento teacutecnico exista mas sim a

existecircncia de uma conexatildeo necessaacuteria entre o conhecimento e a persuasatildeo E quando

Soacutecrates no diaacutelogo em apreccedilo aventa que os especialistas numa determinada arte satildeo os

melhores para dar conselhos sobre a construccedilatildeo de um porto ou de uma muralha Goacutergias

argumenta que satildeo os oradores que sempre tecircm ecircxito para persuadir a Assembleia a

aprovar as leis mais relevantes e jamais os especialistas (Ibid 455b-c) Para ele os

estaleiros as muralhas de Atenas e o aparelhamento dos portos seriam o resultado do

conselho de Temiacutestocles e de Peacutericles e natildeo dos artiacutefices (Ibid 455e) Aliaacutes Goacutergias natildeo

se utiliza de raciociacutenios para provar sua tese sobre a onipotecircncia do discurso mas de

exemplos que seriam suficientemente fortes para questionar a pretensatildeo dos especialistas

e refutaacute-la

Embora Goacutergias reconheccedila que meacutedicos e outros especialistas tenham

conhecimento parece que tanto o Goacutergias do Elogio de Helena quanto o personagem

41 Goacutergias teria sido disciacutepulo de Empeacutedocles que o levou a dedicar-se agraves artes do discurso persuasivo e da medicina O seu irmatildeo Heroacutedico tambeacutem era meacutedico de modo que pretendeu ajudar a medicina utilizando seus poderes de persuasatildeo sobre os pacientes recalcitrantes de seu irmatildeo bem como de outros meacutedicos (GUTHRIE 2007 251)

forjado por Platatildeo no diaacutelogo Goacutergias concordam que o conhecimento especializado eacute

irrelevante quando se trata da eficaacutecia da persuasatildeo Por essa razatildeo Goacutergias pode declarar

que por meio do poder da retoacuterica eacute possiacutevel submeter tanto o meacutedico como o treinador agrave

condiccedilatildeo de escravos Isto significa que todos os especialistas que natildeo possuem a

habilidade retoacuterica satildeo menos poderosos do que aqueles que sabem como persuadir as

multidotildees (Ibid 452e) As decisotildees poliacuteticas entatildeo natildeo seriam tomadas por

especialistas porque quem realmente decide natildeo satildeo os especialistas mas aqueles que

em virtude de sua habilidade persuasiva satildeo capazes de fazer-se ouvir e arbitrar Werner

Jaeger salienta a este respeito que Goacutergias natildeo se sentiria capaz de definir a retoacuterica senatildeo

pelos seus efeitos persuasivos Assim a tentativa de defini-la a partir de um conteuacutedo

material como se pode fazer com outras disciplinas que igualmente se servem da palavra

como meio fracassaria porque a retoacuterica seria somente palavra e arte da palavra a qual

tenderia a persuadir por meio da forma oratoacuteria (JAEGER 2003 650)

Com o propoacutesito de compreendermos a concepccedilatildeo retoacuterica de Goacutergias analisamos

ateacute aqui algumas de suas doutrinas expostas no Elogio de Helena e nas doxografias

exaradas por Platatildeo no diaacutelogo Goacutergias Cabe examinarmos adiante seguindo o mesmo

procedimento as doutrinas do sofista Protaacutegoras

63 Protaacutegoras a teacutecnica dos argumentos opostos e o relativismo

De acordo com o registro histoacuterico de Dioacutegenes Laeacutercio o sofista Protaacutegoras era

um mestre itinerante originaacuterio da cidade de Abdera que ensinava a arte de persuadir e

conhecimentos gerais o que lhe garantia fabulosas quantias de dinheiro a tiacutetulo de

honoraacuterios No entanto ele teria sido mais arrojado que o sofista Goacutergias pois ao chegar

na cidade de Atenas teria declarado a seguinte profissatildeo de feacute agnoacutestica ldquoπερὶ μὲν θεῶν

οὐκ ἔχω εἰδέναι οὔθ᾽ ὡς εἰσίν οὔθ᾽ ὡς οὐκ εἰσίν πολλὰ γὰρ τὰ κωλύοντα εἰδέναι ἥ τ᾽

ἀδηλότης καὶ βραχὺς ὢν ὁ βίος τοῦ ἀνθρώπουrdquo segundo a qual natildeo existiriam meios de

saber se os deuses existem ou natildeo existem uma vez que satildeo muitos os obstaacuteculos

impeditivos de tal conhecimento como a obscuridade do assunto e a brevidade da vida

humana Em virtude dessa declaraccedilatildeo ele teria sido banido de Atenas e suas obras

queimadas na praccedila do mercado (Vid doutr fil il IX 8 52-53)

Quando Protaacutegoras declara que natildeo se pode afirmar que os deuses existem nem que

natildeo existem apelando primeiramente para a obscuridade do assunto provavelmente ele

estaacute falando da impossibilidade de fazer um discurso sobre os deuses em virtude de uma

ausecircncia de experiecircncia Sobre os deuses nada se pode falar porque o seu eventual ser natildeo

se transforma num objeto de experiecircncia imediata e sensiacutevel de modo que qualquer

discurso sobre eles natildeo seria de fato evidente E a referecircncia agrave brevidade da vida humana

eacute uma concessatildeo puramente exterior agraves opiniotildees e crenccedilas tradicionais fato comum em

Protaacutegoras que em seus discursos se utilizava tambeacutem dos mitos para veicular suas ideias

eacuteticas e poliacuteticas No entanto quando ele declara que natildeo sabe se os deuses existem ou

natildeo existem natildeo estaacute efetivamente negando sua existecircncia o que configuraria o crime de

impiedade (ἀσέβεια) pela qual ele foi condenado mas apenas suspendendo qualquer

julgamento sobre a questatildeo Natildeo obstante parece que os atenienses interpretaram o fato

de Protaacutegoras dizer natildeo saber nada acerca da existecircncia dos deuses como um modo menos

expliacutecito mas igualmente claro de afirmar saber que os deuses natildeo existem

Ainda segundo Dioacutegenes Laeacutercio o sofista Protaacutegoras teria sido o primeiro

indiviacuteduo a afirmar que em relaccedilatildeo a qualquer assunto existem duas afirmaccedilotildees

contraditoacuterias e argumentava em concordacircncia com este princiacutepio Ele teria sido o

primeiro a exigir cem minas a tiacutetulo de honoraacuterios a distinguir os tempos e os verbos a

destacar a importacircncia de aproveitar o momento oportuno a organizar debates oratoacuterios

a ensinar os contendores o uso dos sofismas a relegar a plano secundaacuterio a significaccedilatildeo

dos termos atendo-se unicamente ao jogo de palavras a criar as discussotildees eriacutesticas e a

descobrir o meacutetodo de aprovar e refutar um mesmo tema proposto Ele tambeacutem teria

distinguido quatro tipos de discursos a narraccedilatildeo a pergunta a resposta a enumeraccedilatildeo a

suacuteplica e a invocaccedilatildeo que sustentou serem as bases fundamentais do discurso Tambeacutem

existiriam no seu tempo alguns textos conservados que eram atribuiacutedos a Protaacutegoras tais

como Da arte eriacutestica Da luta Das ciecircncias Do Estado Da ambiccedilatildeo Das virtudes Da

ordem antiga das coisas Dos que habitam no Hades Sobre as maacutes accedilotildees do homens

Preceitos Dos discursos forenses mediante honoraacuterios e Antilogias em dois livros (Ibid

IX 8 52-53)

No que tange agrave afirmaccedilatildeo de que em relaccedilatildeo a qualquer assunto existem duas

afirmaccedilotildees contraditoacuterias ou dois argumentos opostos (δισσοὶ λόγοι) e de que eacute possiacutevel

aprovar e refutar um mesmo tema proposto Protaacutegoras queria dizer com isso que se pode

tomar qualquer lado de uma questatildeo e defendecirc-la com igual convicccedilatildeo Eacute manifesto que

desde que os homens comeccedilaram a argumentar sempre existiram argumentos opostos

Aristoacuteteles ateacute declara que todas as pessoas em certa medida questionam e sustentam

argumentos defendem ou acusam (Ret 1354a 5-7) poreacutem o que caracteriza o

pensamento protagoacuterico natildeo eacute simplesmente a ocorrecircncia de argumentos opostos mas o

fato de que ambos os argumentos (proacute e contra) podem ser veiculados pelo mesmo orador

sem se levar em consideraccedilatildeo o absurdo de negar o princiacutepio loacutegico de natildeo-contradiccedilatildeo

No diaacutelogo Fedro Platatildeo censura esta praacutetica chamada por ele de antiloacutegica

(ἀντιλογική) a qual consiste em fazer com que a mesma coisa seja vista pelas mesmas

pessoas ora possuindo um predicado ora possuindo o predicado contraacuterio a exemplo do

justo e do injusto Para Platatildeo o executor da ἀντιλογικὴ seria capaz de fazer com que a

mesma coisa apareccedila agraves mesmas pessoas umas vezes justa outras injusta Nos discursos

na Assembleia ele seria capaz de fazer que as mesmas coisas pareccedilam agrave cidade algumas

vezes boas e outras vezes maacutes (Fed 261d) Todavia a ἀντιλογικὴ ou a arte de combater

com palavras aprovando ou refutando um mesmo tema proposto natildeo se limitaria apenas

aos tribunais e agrave Assembleia mas abrangeria todo gecircnero oratoacuterio Aliaacutes a ἀντιλογικὴ

possibilitaria a uma pessoa tornar cada coisa semelhante a qualquer outra (Ibid 261e)

No diaacutelogo A Repuacuteblica Platatildeo estabelece uma clara distinccedilatildeo entre a ἀντιλογικὴ e

a dialeacutetica (διαλεκτικὴ) ao assegurar que falta ao executor da ἀντιλογικὴ uma

caracteriacutestica que eacute essencial ao debate filosoacutefico qual seja a capacidade de discutir com

base na divisatildeo objetiva das coisas em espeacutecies uma vez que a ἀντιλογικὴ procede

somente com base em contradiccedilotildees verbais (Rep 454a) E no Protaacutegoras ele atribui ao

sofista Protaacutegoras a crenccedila de que qualquer discussatildeo equivale a uma ldquoluta de palavrasrdquo

(λόγων ἀφικόμην) da qual um deve sair como vitorioso e outro o derrotado em

detrimento do ideal expresso por Soacutecrates da investigaccedilatildeo em comum um auxiliando o

outro para que ambos possam chegar mais facilmente ao conhecimento da verdade (Prot

335a)

Tal ldquoluta de palavrasrdquo tambeacutem recebe o nome de eriacutestica (εριστική) que pode ser

caracterizada como a habilidade em refutar e sustentar ao mesmo tempo teses

contraditoacuterias cujo objetivo eacute somente a persuasatildeo dos interlocutores O sucesso da

εριστική estaacute intrinsecamente vinculado agrave habilidade retoacuterica de sorte que vencia a

discussatildeo o mais forte em argumentos e natildeo necessariamente aquele que veiculasse

argumentos verdadeiros Na visatildeo de Chaumlim Perelman em oposiccedilatildeo ao ponto de vista

eriacutestico a discussatildeo dialeacutetica consiste no instrumento ideal para chegar a conclusotildees

objetivamente vaacutelidas pois nela supotildee-se que os interlocutores natildeo se preocupam senatildeo

em mostrar e provar todos os argumentos a favor ou contra atinentes agraves diversas teses

em presenccedila Desse modo ao ser levada a bom termo a discussatildeo dialeacutetica deveria

conduzir os interlocutores a uma conclusatildeo inevitaacutevel e unanimemente admitida

Entretanto no debate eriacutestico cada interlocutor soacute aventaria argumentos convenientes

para sua tese e soacute se preocuparia com os argumentos contraacuterios se lhe fossem favoraacuteveis

ora para refutaacute-los ora para limitar-lhes o alcance O interlocutor com posiccedilatildeo tomada eacute

sempre parcial tanto por ter tomado posiccedilatildeo como por jaacute natildeo poder fazer senatildeo a parte

dos argumentos pertinentes que lhe eacute favoraacutevel os quais apareceratildeo no debate se o

adversaacuterio os aventar Compreende-se entatildeo que a discussatildeo dialeacutetica se apresenta como

uma busca sincera pela verdade ao passo que no debate eriacutestico cada qual se preocupa

sobretudo com o triunfo de sua proacutepria tese (PERELMAN 2014 41-42)

Com base nas duas referecircncias em apreccedilo acerca do significado de ἀντιλογικὴ no

pensamento platocircnico pode-se concluir que o termo designa de um lado a praacutetica sofiacutestica

de defender indiferentemente teses que satildeo contraacuterias e de outro o combate verbal cujo

objetivo principal eacute vencer o adversaacuterio sem qualquer compromisso com a apreensatildeo da

verdade Todavia conveacutem levar em consideraccedilatildeo que apesar de haver uma longa tradiccedilatildeo

nos estudos platocircnicos de tratar as palavras antiloacutegica e eriacutestica como simplesmente

intercambiaacuteveis G B Kerferd sustenta que esta interpretaccedilatildeo eacute um tanto ou quanto

imprecisa42

Existe um fragmento conhecido como Discursos Duplos (Δισσοὶ λόγοι) que foi

datado do iniacutecio do seacuteculo IV aC cujo autor eacute desconhecido (SPRAGUE 1968 155-

167) A despeito disso o fragmento em apreccedilo certamente possui um caraacuteter sofista e

42 Conforme a anaacutelise de G B Kerferd Platatildeo frequentemente usa os termos ldquoεριστικήrdquo e ldquoἀντιλογικὴrdquo para se referir ao mesmo procedimento e da mesma forma emprega ocasionalmente adjetivos derivados de ldquoεριστικόςrdquo e ldquoαντιλογικόςrdquo para se referir agraves mesmas pessoas mas da mesma forma ocasionalmente aplica um soacute termo sem o outro E agraves vezes o segundo termo que falta eacute simplesmente omitido mas em outras situaccedilotildees o contexto sugere que teria sido inadequado usar o segundo termo Todavia quer Platatildeo use um termo ou os dois reportando-se agrave mesma coisa ou agrave mesma pessoa eles nunca teriam o mesmo significado O termo ldquoεριστικήrdquo seria derivado do substantivo ldquoἔριςrdquo que significa luta disputa ou controveacutersia e quando Platatildeo o emprega significa ldquobuscar a vitoacuteria na argumentaccedilatildeordquo e a arte que cultiva e propicia os meios e estratagemas para obtecirc-la Portanto a εριστική natildeo seria stricto sensu uma teacutecnica de argumentaccedilatildeo pois ela pode usar uma ou mais de uma seacuterie de teacutecnicas com o intuito de atingir seu objetivo qual seja o sucesso no debate ou sua aparecircncia A ἀντιλογικὴ por sua vez seria um procedimento mais especiacutefico pois consistiria em opor um λόγος a outro ou em descobrir ou chamar atenccedilatildeo para a presenccedila de uma oposiccedilatildeo em um argumento ou em uma coisa ou situaccedilatildeo Assim sua caracteriacutestica essencial seria a oposiccedilatildeo de um λόγος a outro por contrariedade ou oposiccedilatildeo e ao contraacuterio da εριστική a palavra ldquoἀντιλογικὴrdquo constituiria uma teacutecnica bem especiacutefica que a partir de um determinado λόγος procura estabelecer um λόγος contraacuterio ou contraditoacuterio (KERFERD 2003 108-110)

muitos estudiosos como Heinrich Gomperz (GOMPERZ 1965) e T M Robinson

(ROBINSON 1979) sustentaram que a estrutura antiloacutegica do fragmento relaciona-se ao

meacutetodo protagoacuterico por isso eles o atribuiacuteram agrave escola do sofista Protaacutegoras O fragmento

Δισσοὶ λόγοι eacute composto por uma seacuterie de discursos de natureza antiloacutegica pois seu autor

examina cinco toacutepicos propondo para cada um deles discursos contraacuterios sobre o bom e

o ruim (Περὶ ἀγαθῶ καὶ κακῶ) sobre o bonito e o feio (Περὶ καλοῦ καὶ αἰσχροῦ) sobre

o justo e o injusto (Περὶ δικαίου καὶ ἀδίκου) sobre o falso e o verdadeiro (Περὶ ἀλαθέος

καὶ ψεύδεος) e sobre a sabedoria e a virtude (Περὶ τᾶς σοφίας καὶ τᾶς ἀρετᾶς)

Ao abordar o tema sobre o bom e o ruim o autor desconhecido assevera que duplos

discursos sobre o bom e o ruim satildeo proferidos na Greacutecia pelos pensadores Para ele

alguns dizem que o bom eacute uma coisa e o ruim outra ao passo que outros sustentam que

eacute a mesma coisa Na verdade ela pode ser boa para uns mas ruim para outros e para a

mesma pessoa ora eacute boa ora eacute ruim O autor deixa claro que prefere tomar o partido destes

uacuteltimos e pretende expor tal raciociacutenio comeccedilando pela anaacutelise da vida humana Em sua

visatildeo certas coisas satildeo ruins para os que estatildeo doentes mas satildeo boas para os que estatildeo

saudaacuteveis e delas tecircm necessidade Semelhantemente a doenccedila eacute ruim para os que

adoecem mas eacute boa para os meacutedicos que lucram com os honoraacuterios A morte tambeacutem eacute

ruim para os que morrem todavia eacute boa para os que vendem serviccedilos funeraacuterios bem

como para os fabricantes de caixotildees Quando os cargueiros colidem e se quebram

certamente eacute ruim para seus proprietaacuterios mas eacute bom para os construtores de barcos

Aleacutem do mais quando uma ferramenta corroe-se perde o fio ou se quebra eacute ruim para os

proprietaacuterios mas para o ferreiro eacute uma coisa boa O mesmo acontece quando os potes se

quebram jaacute que eacute ruim para os outros mas eacute bom para o ceramista (Disc Dup 1 1-5)

No que tange ao bonito e ao feio o autor tambeacutem declara que satildeo proferidos dois

discursos opostos Para ele alguns dizem que o bonito seria uma coisa e o feio outra

diferente tanto na realidade como no nome Todavia existem outros que asseveram que

a mesma coisa eacute bonita e feia Para as mulheres eacute bonito banhar-se dentro de casa e feio

fazecirc-lo fora dela mas para os homens tanto em casa quanto no ginaacutesio eacute bonito Ter

relaccedilotildees sexuais com o marido em lugar tranquilo onde se estaacute protegida por paredes eacute

algo bonito mas eacute feio fazecirc-lo publicamente Ter relaccedilotildees sexuais com o proacuteprio marido

eacute bonito mas com o marido de outra eacute muito feio Igualmente para o homem eacute bonito se

deitar com sua mulher mas eacute feio que o faccedila com a de outro homem Enfeites maquiagens

e o uso de joias parece feio para o homem ao passo que eacute bonito para a mulher Fazer o

bem aos amigos tambeacutem eacute bonito mas aos inimigos eacute feio Correr dos inimigos em plena

guerra eacute feio mas correr dos competidores numa pista de corrida eacute bonito Assassinar os

amigos e concidadatildeos eacute feio mas matar os inimigos eacute algo bonito (Ibid 2 1-8)

Outrossim para os traacutecios eacute um ornamento o fato das meninas tatuarem-se mas para os

outros povos a tatuagem constitui um castigo para os criminosos Os citas consideram

bonito que o homem que assassina seu inimigo arranque seu couro cabeludo e leve o

escalpo diante de seu cavalo e que apoacutes ter recoberto de ouro ou prata o cracircnio do morto

beba nele e faccedila libaccedilotildees aos deuses Entretanto ningueacutem entre os gregos iria querer ficar

debaixo do mesmo teto com uma pessoa que tivesse cometido tais atos Os massagetas

cortam seus pais em pedaccedilos e os comem e ser comido por seus filhos parece-lhes a mais

bela sepultura Mas se algueacutem fizesse isso entre os gregos morreria miseravelmente ou

seria expulso da Greacutecia por ter cometido atos tatildeo feios e terriacuteveis Os persas acham bonito

que os homens se maquiem como as mulheres e que tenham relaccedilotildees sexuais com as

filhas matildees e irmatildes mas para os gregos isso eacute considerado feio e contraacuterio agrave lei E entre

os liacutedios considera-se bonito que as jovens se prostituam faccedilam dinheiro e depois se

casem ao passo que entre os gregos ningueacutem desejaria desposar tais mulheres (Ibid 2

13-16) O autor conclui este toacutepico sustentando a seguinte hipoacutetese se reunissem tudo

que eacute considerado feio pelos povos em geral e em seguida eles tivessem de levar dali o

que consideram bonito todas as coisas seriam levadas embora como bonitas pois natildeo

tecircm todos as mesmas opiniotildees Eacute improvaacutevel que reunidas as coisas feias elas venham a

ser bonitas jaacute que natildeo chegaram desse modo E caso tivessem trazido cavalos bois

ovelhas ou homens certamente natildeo tirariam algo diferente de modo que trazendo ouro

natildeo levariam ferro e se trouxessem prata natildeo levariam chumbo ou coisas desde jaez

(Ibid 2 26-27)

Para o autor desconhecido duplos discursos tambeacutem satildeo proferidos sobre o justo

e o injusto Segundo ele algumas pessoas asseveram que uma coisa seria o justo e outra

coisa o injusto mas para outros a mesma coisa eacute ao mesmo tempo justa e injusta Na

tentativa de defender esta uacuteltima posiccedilatildeo ele declara que pode ser justo mentir e enganar

de modo que fazer isso com os inimigos eacute feio e baixo mas natildeo com os mais proacuteximos

a exemplo dos pais Se o pai ou a matildee precisa tomar um remeacutedio que natildeo quer eacute justo

colocaacute-lo em sua bebida ou comida e natildeo contar o ocorrido Desse modo mentir para os

pais e enganaacute-los eacute realmente justo e tambeacutem roubar o que eacute do amigo e ateacute usar a forccedila

contra os entes queridos Caso um familiar transtornado e abatido com algo estiver prestes

a cometer o suiciacutedio com um punhal corda ou outro instrumento qualquer eacute justo roubaacute-

lo Ou ainda no caso de algueacutem chegar tarde e ele jaacute o tiver em matildeos eacute justo empregar a

forccedila para arrancaacute-lo dele E se o pai de algueacutem ao ser condenado agrave morte estiver preso

tendo sido capturado por inimigos poliacuteticos tambeacutem seria justo invadir o local para salvaacute-

lo No tocante ao perjuacuterio se algueacutem ao ser capturado por inimigos jurar que trairia sua

cidade ao ser libertado natildeo deveria manter sua palavra jaacute que nesse caso o melhor eacute

praticar o perjuacuterio para salvar a cidade (Ibid 3 1-6) Enfim sobre o toacutepico em apreccedilo o

autor acredita ter demonstrado que a mesma coisa eacute tanto justa quanto injusta pois o fato

de ser justo roubar o que eacute do inimigo demonstraria que a mesma coisa eacute justa e injusta

e isto tambeacutem seria vaacutelido para todas as outras afirmaccedilotildees (Ibid 3 15-16)

Sobre o falso e o verdadeiro tambeacutem satildeo proferidos discursos duplos Para o autor

uns dizem que o discurso verdadeiro eacute diferente do falso tanto no nome quanto na

realidade No entanto existem aqueles que afirmam que satildeo o mesmo discurso A fim de

justificar esta perspectiva o autor aventa que os loucos e os sensatos os saacutebios e os

ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas Primeiramente eles usam os mesmos nomes

como terra homem cavalo fogo etc Eles tambeacutem fazem as mesmas coisas como sentar

comer beber dormir e tudo o mais do mesmo jeito Ademais ele afirma que a mesma

coisa eacute tanto maior quanto menor mais e menos mais pesada e mais leve razatildeo pela qual

as mesmas coisas satildeo tudo O talento eacute mais pesado que a mina e mais leve que dois

talentos indicando que a mesma coisa eacute mais leve e mais pesada O mesmo homem vive

e natildeo vive e as mesmas coisas satildeo e natildeo satildeo As coisas que estatildeo num determinado lugar

natildeo estatildeo na Liacutebia e aquilo que estaacute na Liacutebia natildeo estaacute no Chipre E o raciociacutenio de que

as coisas satildeo e natildeo satildeo se aplicaria a todas as demais coisas Todavia existem os que

veiculam a opiniatildeo contraacuteria ou seja que eacute incorreto que os loucos e os sensatos os

saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas porquanto eles sustentam que a

loucura difere da sensatez e a sabedoria da ignoracircncia Natildeo obstante eacute manifesto para o

autor que eles concordariam que cada um age de acordo com o que eacute pois se fazem as

mesmas coisas os saacutebios seriam loucos e os loucos seriam saacutebios e todas as coisas assim

misturadas confundir-se-iam de maneira que elas precisam ser compreendidas em

sentido relativo (Ibid 5 1-8 15)

Por fim o escritor anocircnimo do Δισσοὶ λόγοι aborda o toacutepico a respeito da sabedoria

e da virtude43 bem como a asserccedilatildeo de que elas natildeo podem ser ensinadas nem aprendidas

43 No decorrer dessa obra traduziu-se a palavra grega ldquoἀρετήrdquo por ldquovirtuderdquo uso que a tradutora do Δισσοὶ λόγοι (Joseane Mara Prezotto) procurou evitar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade ou correccedilatildeo moral optando entatildeo por ldquoexcelecircnciardquo Por falar nisso a traduccedilatildeo da Eacutetica a Nicocircmaco

Ele aventa que os que dizem isso mormente se apoiam nas seguintes provas natildeo seria

possiacutevel preservar consigo o que se transmite a algueacutem se fosse possiacutevel ensinar

sabedoria e virtude haveria professores conhecidos como tais a exemplo dos professores

de muacutesica os homens na Greacutecia que se tornaram saacutebios teriam a capacidade de ensinar

seus proacuteprios filhos e amigos existem pessoas que jaacute frequentaram os sofistas e natildeo

obtiveram disso proveito algum em contrapartida muitos que natildeo se associaram aos

sofistas tornaram-se indiviacuteduos notaacuteveis Todavia o autor considera que esse discurso eacute

demasiado simplista jaacute que os professores que ensinam letras conhecem-nas tambeacutem eles

proacuteprios e o mesmo ocorre com os professores de ciacutetara E se natildeo existem professores de

sabedoria e virtude seria necessaacuterio explicar o fato de sofistas anaxagoacutericos e pitagoacutericos

ensinarem seus disciacutepulos Policleto com efeito ensinou seu filho a fazer estaacutetuas E se

porventura algueacutem natildeo foi capaz desse feito natildeo se prova nada de modo que se um foi

capaz de ensinar isto jaacute seria uma prova de que o ensino eacute possiacutevel E se porventura junto

aos sofistas saacutebios alguns natildeo se tornam saacutebios tambeacutem muitos quando estudantes

sequer aprenderam as letras Aleacutem do mais existe certa disposiccedilatildeo natural graccedilas agrave qual

algueacutem que natildeo estudou com um sofista se torna capaz de compreender facilmente a

maioria dos assuntos depois de ter aprendido um pouco junto agravequeles com quem se

aprende a liacutengua incluindo os pais E caso algueacutem natildeo acredita que se aprende a liacutengua

mas que jaacute se nasce sabendo deve considerar que se uma crianccedila receacutem-nascida for

enviada para a Peacutersia e ali for criada sem ouvir a liacutengua grega certamente falaria persa

Depois de opor dois argumentos contraacuterios o autor conclui seu discurso sem afirmar que

a sabedoria e a virtude podem ser ensinadas mas que os argumentos contraacuterios satildeo

insuficientes para impor-se como verdade absoluta (Ibid 6 1-13)

A praacutetica de argumentos opostos eacute mormente atribuiacuteda a Protaacutegoras mas eacute

provaacutevel que natildeo estivesse confinada a ele pois eacute trazida agrave baila por Aristoacutefanes na

comeacutedia As Nuvens razatildeo pela qual natildeo se pode afirmar que todos os casos de δισσοὶ

λόγοι procedam exclusivamente de Protaacutegoras Na comeacutedia em apreccedilo o personagem

chamado Estrepsiacuteades estaacute cheio de diacutevidas em virtude de sua paixatildeo por cavalos e para

natildeo pagar seus credores decide frequentar o pensatoacuterio (φροντιστήριον) que eacute o nome da

escola onde Soacutecrates ensina qualquer pessoa a triunfar uma causa maacute graccedilas aos artifiacutecios

frequentemente utilizada neste trabalho eacute de Antoacutenio de Castro Caeiro o qual tambeacutem optou por traduzir a palavra grega ldquoἀρετήrdquo por ldquoexcelecircnciardquo e natildeo por ldquovirtuderdquo Todavia visto que esta palavra eacute mais familiar e tradicionalmente utilizada por muitos tradutores do Corpus Aristotelicum como procede Manuel Alexandre Juacutenior em sua traduccedilatildeo da Retoacuterica preferiu-se pois empregaacute-la em todos os casos em que se faz referecircncia ao termo grego

e sutilezas da arte retoacuterica Quando Estrepsiacuteades se apresenta ao φροντιστήριον a fim de

ser admitido encontra Soacutecrates pendurado num cesto estudando os fenocircmenos celestes

Mas como se revela um mal aluno pouco dotado para seguir os ensinamentos de

Soacutecrates Estrepsiacuteades insiste que seu filho Fidiacutepides frequente o pensatoacuterio e receba a

formaccedilatildeo retoacuterica na espectativa de que ela o ajudaraacute contra seus credores Estrepsiacuteades

orienta o seu filho Fidiacutepides nos seguintes termos (Nuv 95 115)

Laacute moram homens que quando falam do ceacuteu querem convencer de que eacute um abafador que estaacute em nosso redor e noacutessomos os carvotildees Se a gente lhes der algum dinheiro eles ensinam a vencer com discursos nas causas justas e injustas [] Dizem que no meio deles os raciociacutenos satildeo dois o forte seja ele qual for e o fraco Eles afirmam que o segundo raciociacutenio isto eacute o fraco discursando vence nas causas mais injustasOra se vocecirc me aprender esse raciociacutenio injusto do dinheiro que agora estou devendo por sua culpa dessas diacutevidas eu natildeo pagaria nem um oacutebulo a ningueacutem

Com efeito mais dotado que o pai Fidiacutepides segue com sucesso as aulas de

Soacutecrates o que possibilita Estrepsiacuteades livrar-se dos seus credores Mas a vitoacuteria contra

os credores volta-se contra Estrepsiacuteades porque o seu filho bem instruiacutedo pelos

ensinamentos de Soacutecrates que lhe dispensou o raciociacutenio injusto acha autorizado a bater

no pai e afirma (atraveacutes de sutis argumentos e sem nenhum escruacutepulo) que natildeo hesitaria

em fazer o mesmo com sua matildee Pode-se assegurar que todo o enredo da comeacutedia As

Nuvens gira em torno da pretensatildeo de Soacutecrates de ensinar seus alunos a como escapar das

penalidades legais referente ao agir mal Instruiacutedo por ele Fidiacutepides defende abertamente

agredir o seu proacuteprio pai justificando que eacute doce conviver com ideias novas e engenhosas

e poder desprezar as leis tradicionais estabelecidas (Ibid 1404) Portanto atraveacutes da arte

retoacuterica transmitida por Soacutecrates na forma de sentenccedilas palavras e pensamentos seria

possiacutevel defender uma causa considerada injusta e fazecirc-la prevalecer sobre uma causa

justa (Ibid 1405-1415 1440)

E antes vou dizer-lhe o seguinte quando eu era crianccedila vocecirc me batia [] Entatildeo diga-me natildeo eacute justo que eu tenha boas intenccedilotildees e da mesma forma lhe bata jaacute que ldquoter boas intenccedilotildeesrdquo eacute ldquobaterrdquo Mas como eacute que seu corpo deve sair ileso dos golpes e o meu natildeo E no entanto bem que eu nasci livre ldquoas crianccedilas choram e pensas que um pai natildeo deve chorar Mas vocecirc diraacute que se considera esse ato como proacuteprio das crianccedilas e eu responderei que os ldquo Velhos satildeo duas vezes crianccedilasrdquo e que eacute natural que os velhos chorem mais do que os jovens tanto quanto eacute menos razoaacutevel que cometam erros [] Tambeacutem vou bater na minha matildee como lhe bati

Mediante o auxiacutelio da arte retoacuterica ensinada por Soacutecrates seria possiacutevel a Fidiacutepides

em proveito proacuteprio fazer o argumento mais forte transformar-se no argumento mais

fraco na Assembleia popular no tribunal ou em qualquer outro lugar Atraveacutes da teacutecnica

retoacuterica as crenccedilas e os valores tradicionais poderiam ser confundidos no debate entre os

argumentos ldquojustordquo e ldquoinjustordquo posto que nele o que vale como justo poderia ser

transformado no seu oposto Assim dois discursos se enfrentam a fim de conquistar o

favor de Fidiacutepides o discurso mais forte que reivindica o valor da educaccedilatildeo do passado

a qual estaria fundada sobre a justiccedila a temperanccedila a honestidade o dever de venerar os

deuses e o respeito pelos pais e o discurso mais fraco que reivindica ser o primeiro em

absoluto a ter a ideia de contradizer as crenccedilas e os valores tradicionalmente aceitos

Aliaacutes o discurso mais fraco oferece o quadro de uma vida inclinada agraves diversotildees e aos

viacutecios de modo que eacute justamente com este tipo de formaccedilatildeo educacional que o jovem

Fidiacutepides poderaacute tornar-se um sofista perfeito Depois que Estrepsiacuteades percebe que a

retoacuterica sofiacutestica corrompeu completamente seu filho tornando-o rebelde contra toda

autoridade incluindo a sua proacutepria ele decide entatildeo acabar com esta educaccedilatildeo retoacuterica

incendiando o pensatoacuterio acontecimento que encerra a peccedila (Ibid 1490)

Aleacutem de enfatizar no seu registro histoacuterico a profissatildeo de feacute agnoacutestica e a doutrina

dos dois λόγοι Dioacutegenes Laeacutercio tambeacutem faz menccedilatildeo agrave ceacutelebre declaraccedilatildeo de Protaacutegoras

ldquoπάντων χρημάτων μέτρον ἄνθρωπος τῶν μὲν ὄντων ὡς ἔστιν τῶν δὲ οὐκ ὄντων ὡς οὐκ

ἔστινrdquo cuja traduccedilatildeo significa ldquoo homem eacute a medida de todas as coisas das coisas que

satildeo que elas satildeo das coisas que natildeo satildeo que elas natildeo satildeordquo (Vid doutr fil il IX 8 51)

Pode-se assegurar que a declaraccedilatildeo acima significa basicamente duas coisas o homem

(ἄνθρωπος) que eacute a medida (μέτρον) seria cada homem individualmente e natildeo a raccedila

humana como um todo tomada como uma entidade em si e o que eacute medido nas coisas

natildeo seria sua existecircncia e sua natildeo-existecircncia mas o modo como satildeo e o modo como natildeo

satildeo Sendo assim a frase ldquoπάντων χρημάτων μέτρον ἄνθρωποςrdquo expressa

categoricamente o relativismo de Protaacutegoras segundo o qual natildeo haveria nenhuma

verdade absoluta nem universalmente vaacutelida poreacutem toda a verdade seria relativa ao

sujeito que conhece e julga Protaacutegoras certamente natildeo tem a pretensatildeo de alcanccedilar pela

teoria do homem-medida uma verdade objetiva e vaacutelida para todos pois se o homem eacute a

medida de todas as coisas natildeo existiria um criteacuterio de verdade extriacutenseco a ele Portanto

as percepccedilotildees sensiacuteveis as leis as regras morais os valores as crenccedilas religiosas a

cultura e tudo o mais soacute poderiam ser definidos subjetivamente

Agrave parte do registro de Dioacutegenes Laeacutercio muitas das informaccedilotildees sobre o

pensamento protagoacuterico derivam dos diaacutelogos platocircnicos por isso a avaliaccedilatildeo de suas

ideias depende em grande medida do valor histoacuterico atribuiacutedo aos registros de Platatildeo

Que este tenha reproduzido o pensamento de Protaacutegoras com rigorosa exatidatildeo eacute algo

questionaacutevel mas eacute possiacutevel aduzir que seu objetivo nunca foi denegrir a reputaccedilatildeo do

sofista pelo contraacuterio eacute manifesto em muitas passagens o respeito com que aborda suas

ideias Aliaacutes as contribuiccedilotildees pessoais de Protaacutegoras para as discussotildees filosoacuteficas nos

diaacutelogos sempre se mantecircm num niacutevel intelectual e moral elevado natildeo deixando duacutevida

sobre o respeito que lhe devotava Platatildeo E o fato de praticamente natildeo existir contradiccedilatildeo

entre o que Platatildeo diz e o restante das informaccedilotildees sobre Protaacutegoras oriundas de outras

fontes reforccedila ainda mais a confiabilidade de suas declaraccedilotildees

No diaacutelogo Teeteto Platatildeo interpreta o sofista Protaacutegoras a partir da tese segundo a

qual cada coisa eacute para cada um conforme lhe parece Ele tambeacutem atribui ao sofista a

doutrina de que a aparecircncia (φαντασία) e a percepccedilatildeo (αἴσθησις) satildeo a mesma coisa E

no que respeita ao calor ou ao frio a maneira como cada um se apercebe assim tambeacutem

eacute para cada um Ademais a percepccedilatildeo para Protaacutegoras eacute sempre daquilo que eacute por isso

natildeo pode ser falsa (ἀψευδής) pelo contraacuterio ela constitui o verdadeiro saber (Teet 152b-

c) Pode-se assegurar entatildeo que a perspectiva epistecircmica de Protaacutegoras eacute marcantemente

relativista jaacute que faz depender a atribuiccedilatildeo de qualidades nas coisas natildeo de uma fonte

objetiva de verdade mas daquilo que parece a cada um

Com efeito a doutrina protagoacuterica do homem-medida natildeo eacute um criteacuterio para a

existecircncia mas um criteacuterio para determinar como as coisas satildeo no sentido de quais

predicados podem a elas ser atribuiacutedos Ao declarar que a percepccedilatildeo eacute sempre daquilo

que eacute (αἴσθησις ἄρα τοῦ ὄντος ἀεί ἐστιν) pode-se entender que isto significa que para

Protaacutegoras a percepccedilatildeo de um objeto branco seria sempre a percepccedilatildeo de que ele eacute

branco e tal percepccedilatildeo seria infaliacutevel Isto indica que cada percepccedilatildeo individual em cada

pessoa individual e em cada situaccedilatildeo individual jamais poderia ser corrigida atraveacutes da

comparaccedilatildeo com a percepccedilatildeo de outra pessoa Outrossim Platatildeo afirma que Protaacutegoras

teria declarado que o homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo enquanto satildeo

das que natildeo satildeo enquanto natildeo satildeo querendo dizer com isto que cada coisa seria para

determinado indiviacuteduo tal como lhe aparece Ele ainda atribui a Protaacutegoras a tese

relativista de que quando o mesmo vento estaacute soprando ele poderia ser percebido como

frio por uma certa pessoa mas natildeo por outra (Ibid 152a-b)

Contudo arriscas-te a natildeo teres emitido uma definiccedilatildeo trivial sobre o saber mas sim aquela que diz tambeacutem Protaacutegoras O modo eacute algo diferente mas diz a mesma coisa pois afirma que ldquoa medida de todas as coisasrdquo eacute o homem ldquodas que satildeo enquanto satildeo das que natildeo satildeo enquanto natildeo satildeordquo Leste isto em algum lado [] De certa maneira o que diz eacute isto que cada coisa eacute para mim do modo que a mim me parece por outro lado eacute para ti do modo que a ti te parece [] No entanto eacute provaacutevel que um homem saacutebio natildeo fale ao acaso sigamo-lo entatildeo Natildeo acontece por vezes um de noacutes sentir um mesmo sopro de vento frio e outro natildeo E um sentir pouco frio e outro muito [] Entatildeo como dizemos que eacute o sopro de vento em si mesmo Que eacute frio ou que natildeo eacute frio Ou persuadidos por Protaacutegoras diremos que eacute frio para quem sente frio e natildeo eacute frio para quem natildeo o sente frio

Em conformidade com a doutrina protagoacuterica do homem-medida se o vento parece

muito frio para determinada pessoa entatildeo para ela eacute muito frio e isso natildeo poderia ser

refutado pela experiecircncia subjetiva de outra pessoa que natildeo o perceberia como muito

frio mas como pouco frio Assim se o vento parece ser muito frio para alguns e pouco

frio para outros entatildeo ele seria muito frio para aqueles aos quais parece muito frio e

pouco frio para aqueles aos quais parece pouco frio Para G B Kerferd a teoria de

Protaacutegoras parece implicar na rejeiccedilatildeo da percepccedilatildeo cotidiana ligada ao senso comum

segundo a qual o vento em si mesmo ou eacute frio ou natildeo eacute frio e aquele que o sente se

enganaria caso afirmasse que o vento (objetivamente) eacute tal como lhe parece Dessarte

haveria para Protaacutegoras um vento em si mesmo real objetivo e independente o qual natildeo

seria nem frio nem quente pois a frieza do vento soacute existiria particularmente para o sujeito

que tem a sensaccedilatildeo de frio O vento em si mesmo existiria independentemente da

percepccedilatildeo que algueacutem possa ter dele mas natildeo a sua frialdade a qual seria puramente

subjetiva A percepccedilatildeo do vento e das coisas em geral basear-se-ia de modo causal nos

aspectos de fato presentes na realidade objetiva Os fatores causativos podem numa

opiniatildeo normalmente sustentada ser a fonte dos conteuacutedos da percepccedilatildeo de um indiviacuteduo

mas sua percepccedilatildeo das coisas natildeo se identificaria com os proacuteprios fatores causativos mas

com os resultados subjetivos desses fatores E uma vez que os resultados seriam

determinados pela atuaccedilatildeo dos fatores causativos necessariamente teriam de variar de

pessoa para pessoa e de acordo com as particularidades de cada sujeito (KERFERD 2003

148-150)

Segundo a anaacutelise de Giovanni Casertano a afirmaccedilatildeo protagoacuterica de que o homem

eacute a medida de todas as coisas tem um claro sentido antidogmaacutetico e antimetafiacutesico Isto

quer dizer que a verdade para o sofista natildeo eacute algo dado uma vez para sempre natildeo eacute algo

que possa ser revelado por saacutebios ou profetas nem pode consistir de tradiccedilotildees miacuteticas

transmitidas de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo Pelo contraacuterio a verdade consiste numa relaccedilatildeo

dialeacutetica com a realidade que cada homem em particular instaura segundo sua idade

suas disposiccedilotildees e sua situaccedilatildeo histoacuterica Cada homem em particular tem a capacidade de

sentir e de julgar posto que suas sensaccedilotildees e os seus juiacutezos representam a cada vez o tipo

de relaccedilatildeo todo particular no qual ele se potildee em relaccedilatildeo com a realidade relaccedilatildeo que natildeo

pode ser fixa constante posto que a realidade e o proacuteprio homem natildeo satildeo estaacuteticos

Assim numa realidade perenemente mutaacutevel cada indiviacuteduo capta aqueles aspectos que

lhe satildeo mais congeniais ou seja aqueles aspectos que satildeo mais proacuteprios agrave sua natureza

particular No entanto isto natildeo acontece porque eacute o homem que imprime realidade agraves

coisas segundo o modo no qual se relaciona com ele mas justamente porque as coisas

que existem antes e independentemente do homem encerra em si a possibilidade das

diversas sensaccedilotildees Aleacutem do que no pensamento de Protaacutegoras existe a plena valorizaccedilatildeo

da experiecircncia sensiacutevel da verdade das aparecircncias do fenocircmeno e por conseguinte da

relatividade da verdade ndash cada um tem sua proacutepria verdade porque cada um tem as suas

sensaccedilotildees diferentes das dos outros sobre as quais constroacutei os seus juiacutezos e os seus

discursos E se cada um sente num certo modo e no seu discurso expressa sempre esta

percepccedilatildeo enunciaraacute sempre sua relativa verdade razatildeo pela qual natildeo pode existir um

discurso falso pois cada uma diz o que eacute verdadeiro para ele num determinado momento

situaccedilatildeo e disposiccedilatildeo (CASERTANO 2010 51-52)

Eacute manifesto que a doutrina protagoacuterica do homem-medida produz o mais absoluto

relativismo porque se uma coisa parece bela a um e feia a outro fria a um quente a

outro grande a um pequena a outro inevitavelmente seraacute as duas coisas ao mesmo

tempo Natildeo haveria mais qualquer objetividade nem mesmo loacutegica pois o princiacutepio

loacutegico da natildeo-contradiccedilatildeo natildeo teria mais validade ndash cada indiviacuteduo teria sua proacutepria

verdade e todos os pontos de vista seriam simultaneamente verdadeiros Outrossim esta

concepccedilatildeo aplicar-se-ia agrave cidade que em nome do seu proacuteprio interesse decidiria sobre

os valores e as verdades de modo que as leis as ciecircncias os valores esteacuteticos e morais

natildeo passariam de simples convenccedilotildees que mudariam de uma cidade para outra de acordo

com a histoacuteria e a geografia O desafio protagoacuterico agraves crenccedilas e valores tradicionalmente

aceitos fundamenta-se em teorias relativistas e subjetivistas de ontologia e epistemologia

Todavia agrave medida que eacute aplicada a valores morais o relativismo protagoacuterico significa que

natildeo existe nada a que se possam aplicar a designaccedilatildeo de bom ou mau de maneira absoluta

de sorte que aquilo que eacute bom para determinado indiviacuteduo pode ser mau para outro e o

que eacute bom para um em certas circunstacircncias pode ser mau para ele em outras Aliaacutes o

fragmento Δισσοὶ λόγοι pelos seus diversos exemplos de argumentos opostos expressa

de forma categoacuterica o relativismo moral que caracteriza o pensamento de Protaacutegoras

Desse modo quando ele sustenta que o bem e o mau satildeo apenas relativos significa

simplesmente que natildeo existe nada de bom ou mau em si mesmos mas eacute o pensamento

que o torna tal Eacute justamente tal posiccedilatildeo que natildeo eacute aceita por Platatildeo e Aristoacuteteles que de

fato a criticaram duramente enfatizando que se tudo aquilo que parece para o indiviacuteduo

eacute verdadeiro entatildeo todos os discursos seratildeo verdadeiros e falsos simultaneamente e por

conseguinte tambeacutem bons e maus

Platatildeo tambeacutem atribui a Protaacutegoras a crenccedila de que acerca das coisas da cidade

belas e feias justas e injustas piedosas e iacutempias e quantas forem as normas em que cada

cidade acredite e estabeleccedila para si nelas ningueacutem seria mais saacutebio nem um indiviacuteduo

em relaccedilatildeo a outro nem uma cidade em relaccedilatildeo a outra (καὶ ἐν τούτοις μὲν οὐδὲν

σοφώτερον οὔτε ἰδιώτην ἰδιώτου οὔτε πόλιν πόλεως εἶναι) No estabelecimento daquilo

que conveacutem ou natildeo conveacutem Protaacutegoras sustentaria que um conselheiro difere de outro e

que a opiniatildeo de uma cidade difere de outra no que diz respeito agrave verdade E a respeito

dos casos de justiccedila e de injusticcedila de piedade ou de impiedade o sofista sustentaria que

nenhuma destas coisas eacute por natureza possuidora de uma realidade proacutepria (οὐκ ἔστι

φύσει αὐτῶν οὐδὲν οὐσίαν) tornando-se entatildeo verdade o que parece agrave comunidade

sempre que lhe parecer e enquanto que lhe parecer (Teet 172a-c)

Protaacutegoras sustentava como a maioria dos sofistas a inexistecircncia de uma verdade

objetiva e vaacutelida para todos mas ele defendia a necessidade do estudo e da educaccedilatildeo na

medida em que se natildeo existem proposiccedilotildees verdadeiras deve-se saber distinguir entre as

opiniotildees melhores e piores mais ou menos uacuteteis ao indiviacuteduo e agrave sociedade e seria o

orador que teria esse crucial papel a desempenhar na cidade E conforme o registro de

Platatildeo o sofista Protaacutegoras natildeo negaria a existecircncia da sabedoria nem do homem saacutebio

mas o saacutebio seria aquele que quando as coisas satildeo e lhe aparecem maacutes eacute capaz de

ldquoμεταβάλλων ποιήσῃ ἀγαθὰ φαίνεσθαί τε καὶ εἶναιrdquo ou seja eacute capaz de mudaacute-las pela

persuasatildeo a fim de que apareccedilam e sejam boas a seus interlocutores Porquanto para o

indiviacuteduo que estaacute doente (ἀσθενέω) aquilo que come aparece e eacute amargo (πίκρα) mas

para quem estaacute saudaacutevel (ὑγιαίνω) acontece justamente o contraacuterio de sorte que nenhum

dos dois seria saacutebio acerca do real sabor do alimento por isso natildeo se deve acusar o doente

de ser ignorante (ἀμαθής) por ter sua opiniatildeo particular nem o saudaacutevel de saacutebio (σοφός)

por ter outra (Ibid 166 d-167a)

Pois afirmo que a verdade eacute como eu escrevi Pois cada um de noacutes eacute a medida do que eacute e do que natildeo eacute e no entanto cada um difere infinitamente do outro para um eacute uma coisa e assim aparece a outro eacute e aparece outra coisa E estou longe de negar que exista a sabedoria e o homem saacutebio Mas este mesmo a quem chamo saacutebio eacute aquele de noacutes que quando as coisas satildeo e lhe aparecem maacutes as muda de modo a aparecerem e serem boas [] Recorda-te pois do que foi dito atraacutes que para quem estaacute doente aquilo que come aparece e eacute amargo mas para quem estaacute saudaacutevel aparece e eacute o contraacuterio E natildeo eacute preciso fazer mais saacutebio nenhum dos dois ndash pois natildeo eacute possiacutevel ndash nem se deve acusar o doente de ser ignorante por ter esta opiniatildeo nem o saudaacutevel de saacutebio por ter outra

A despeito disso deve-se fazer uma mudanccedila no doente pois eacute melhor (βελτίων) o

estado do indiviacuteduo saudaacutevel Pela educaccedilatildeo (παιδεία) deve-se fazer uma mudanccedila de um

estado para outro melhor o meacutedico faz a mudanccedila com remeacutedios (φαρμάκοις) ao passo

que o sofista a faz com discursos (λόγοις) E a quem tem uma opiniatildeo afim ao defeituoso

estado de alma em que se acha um beneacutefico estado de alma faraacute ter outras opiniotildees

imagens a que alguns por ignoracircncia chamariam verdadeiras mas Protaacutegoras chama a

umas melhores que as outras poreacutem natildeo mais verdadeiras (Ibid 167a-b) Ele tambeacutem

teria sustentado que os oradores saacutebios e bons (σοφούς τε καὶ ἀγαθοὺς ῥήτορας) fazem

com que as coisas beneacuteficas (χρήστης) pareccedilam ser justas agraves cidades em vez de

defeituosas (πονηρός) posto que aquilo que a cada cidade parece justo e belo eacute assim para

ela durante o tempo que determinar Agrave vista disso o saacutebio eacute aquele que eacute capaz de fazer

com que sejam e pareccedilam beneacuteficas cada uma das coisas que para os demais indiviacuteduos

satildeo defeituosas E pelo mesmo raciociacutenio tambeacutem o sofista que eacute capaz de instruir os

que satildeo ensinados por ele deve ser considerado saacutebio e merecedor de muito dinheiro

(Ibid 167c-d)

E afirmo que os oradores saacutebios e bons fazem com que as coisas beneacuteficas pareccedilam ser justas agraves cidades em vez de defeituosas Pois aquilo que a cada cidade parece justo e belo eacute isso para ela enquanto assim o determinar Mas o saacutebio eacute aquele que faz serem e parecerem beneacuteficas cada uma das coisas que para os outros satildeo defeituosas E pela mesma ordem de ideias tambeacutem o sofista assim capaz de instruir os que satildeo ensinados por ele eacute saacutebio e merece muito dinheiro da parte dos que educa E deste modo uns satildeo mais saacutebios que outros e ningueacutem tem uma opiniatildeo falsa

Pode-se assegurar entatildeo que para o sofista Protaacutegoras o que realmente existe e

importa eacute aquilo que eacute mais uacutetil ou mais conveniente O bem e o mal ou ainda o

verdadeiro e o falso seriam respectivamente o uacutetil e o prejudicial Todavia o uacutetil tambeacutem

se apresentaria como um conceito relativo porque para ele a sabedoria consistiria em

reconhecer aquilo que eacute nocivo e uacutetil agrave conveniecircncia eacutetica e poliacutetica dos homens e em

saber demonstraacute-los persuasivamente44 Agrave vista disso sua doutrina pode ser denominada

grosso modo de ldquorelativismo pragmaacuteticordquo porque natildeo haveria uma verdade em si mesma

objetiva e vaacutelida para todos mas a verdade dependeria de cada indiviacuteduo ou de cada

cidade de sorte que o mais importante seria aquilo que possibilita fazer-se valer e impor-

se funccedilatildeo que ele atribui agrave arte retoacuterica As leis e os costumes vigentes na cidade satildeo

corretos e louvaacuteveis enquanto forem impostos ou socialmente aprovados mas o orador

pode persuadi-la de que outros lhe seriam mais vantajosos ou convenientes pois embora

todas as crenccedilas sejam verdadeiras nem todas satildeo igualmente boas Desse modo se cada

indiviacuteduo vive num mundo privado proacuteprio a tentativa de alterar o seu mundo interior

parece ser impossiacutevel mas na visatildeo de Protaacutegoras tal dificuldade eacute superada substituindo

um padratildeo de verdade e falsidade por um padratildeo de vantagem e desvantagem

Conforme a apreciaccedilatildeo de Giovanni Casertano a este respeito parece natildeo existir

qualquer contradiccedilatildeo entre o relativismo gnosioloacutegico e a visatildeo eacutetico-poliacutetica de

Protaacutegoras Para este o bem e o uacutetil satildeo conceitos certamente relativos natildeo existe o bem

e o uacutetil em si mesmos pois aquilo que pode ser bem para alguns pode ser mal para outros

Desse modo os discursos que os homens fazem contrapostos uns com os outros satildeo

tambeacutem eles relativos porque natildeo existe um discurso mais verdadeiro que outro mas

certamente existe um discurso que seja convenientemente mais uacutetil E se cada indiviacuteduo

ou cada grupo de indiviacuteduos tem uma verdade nem todas as verdades satildeo uacuteteis do mesmo

modo agrave vida em sociedade Aliaacutes para Protaacutegoras ldquoo discurso melhorrdquo natildeo constitui o

discurso puramente loacutegico mas sim o discurso poliacutetico o qual se demonstra mais idocircneo

a um pacto de aceitaccedilatildeo por parte da coletividade No entanto ele eacute melhor

provisoriamente ateacute que natildeo apareccedila e se afirme outro discurso ainda melhor E o

discurso melhor eacute o νόμος ou seja a lei que constitui a realizaccedilatildeo dinacircmica de um

44 Ao ser interrogado por Soacutecrates sobre o que Hipoacutecrates poderia aprender do seu ensino Protaacutegoras declara que eacute o cuidado adequado de seus proacuteprios negoacutecios a fim de administrar com prudecircncia sua casa e famiacutelia e tambeacutem o cuidado dos assuntos do Estado para se tornar uma figura poderosa na cidade seja mediante a arte do discurso persuasivo seja como homem de accedilatildeo (Prot 318e) ldquoNa minha companhia Hipoacutecrates natildeo teraacute de suportar as maccediladas a que ficaria sujeito se viesse a frequumlentar outro sofista [] vindo ele poreacutem estudar comigo natildeo se ocuparaacute senatildeo com o que se propusera estudar quando resolveu procurar-me Essa disciplina eacute a prudecircncia nas suas relaccedilotildees familiares que o poraacute em condiccedilotildees de administrar do melhor modo sua proacutepria casa e nos negoacutecios da cidade o deixaraacute mais do que apto a dirigi-los e para discorrer sobre elesrdquo

consenso humano procurado e imposto com a persuasatildeo agrave cidade pelo sofista que eacute

considerado saacutebio e meacutedico da sociedade (CASERTANO 201080)

Decerto a aprovaccedilatildeo ou desaprovaccedilatildeo de certas praacuteticas seria correta e apropriada

numa cidade enquanto tem o apoio da opiniatildeo puacuteblica e eacute imposta legalmente Os

massagetas cortam seus pais em pedaccedilos e os comem e ser comido por seus filhos

parece-lhes a mais bela sepultura mas entre os gregos tal praacutetica mereceria a condenaccedilatildeo

agrave morte Outrossim os persas acham bonito que os homens tenham relaccedilotildees sexuais com

as filhas matildees e irmatildes mas para os gregos isso eacute considerado feio e contraacuterio agrave lei (Disc

Dup 2 14-15) No entanto para que essas condiccedilotildees se alterem eacute necessaacuterio que

oradores haacutebeis tenham ecircxito em difundir ideias distintas sejam quais forem E somente

podem fazecirc-lo persuadindo a cidade de que a alteraccedilatildeo de suas leis e costumes redundaraacute

numa vantagem praacutetica se natildeo para todos ao menos para a maioria Todavia conveacutem

frisar que para Protaacutegoras as leis existentes na cidade existem para a preservaccedilatildeo da

ordem social e que sua manutenccedilatildeo embora elas natildeo sejam as melhores satildeo justas e

louvaacuteveis porque as alternativas de desobediecircncia e subversatildeo destruiriam os laccedilos de

amizade e uniatildeo de que depende a sobrevivecircncia da cidade E somente depois de

aprovadas novas leis por consentimento comum posto que a noccedilatildeo de pudor e de justiccedila

pertencem igualmente a todos os cidadatildeos eacute que a mudanccedila pode ocorrer para melhor

(Prot 322b-c) Apesar do seu relativismo eacute manifesto pois o respeito de Protaacutegoras pelas

virtudes democraacuteticas da justiccedila do respeito pela opiniatildeo dos outros e pelos processos de

persuasatildeo paciacutefica que satildeo tidos como o esteio da vida comunitaacuteria tendo em vista sua

sobrevivecircncia

Com base nos assuntos ateacute aqui examinados pode-se concluir que uma das mais

importantes liccedilotildees ensinadas nos manuais escritos pelos sofistas era a habilidade de falar

com igual poder de convicccedilatildeo sobre ambos os lados de uma dada questatildeo Protaacutegoras

teria sido o primeiro a postular a tese de que existem dois argumentos sobre cada assunto

Eacute possiacutevel reconhecer as virtudes de ver ambos os lados de uma questatildeo mas esta

doutrina na visatildeo de Aristoacuteteles seria politicamente perigosa nas matildeos de oradores

inescrupulosos Outrossim verificamos na anaacutelise da doutrina de Goacutergias que o discurso

retoacuterico equivale a um tirano que pode realizar qualquer intento E a convicccedilatildeo de que os

homens podiam ser persuadidos de qualquer coisa harmoniza-se naturalmente com o

relativismo de Protaacutegoras cuja doutrina tambeacutem eacute considerada por Aristoacuteteles como

imoral e epistemicamente subversiva de sorte que natildeo somente doce e amargo quente e

frio existiriam subjetivamente ou por convenccedilatildeo mas tambeacutem justiccedila e injusticcedila certo e

errado Agrave vista disso se existe algo que se pode chamar de uma visatildeo sofiacutestica geral eacute a

concepccedilatildeo de que natildeo existe nenhum criteacuterio de verdade extriacutenseco ao ser humano duas

pessoas discutindo e comparando suas proacuteprias experiecircncias natildeo poderiam corrigi-las e

alcanccedilar o conhecimento de uma realidade extriacutenseca a ambos conforme propotildee o

meacutetodo dialeacutetico jaacute que natildeo haveria uma realidade estaacutevel que pudesse ser apreendida

Semelhantemente no domiacutenio da eacutetica natildeo haveria nenhum apelo a padrotildees gerais ou a

princiacutepios gerais de qualquer natureza de modo que o uacutenico criteacuterio soacute pode ser o agir e

o falar em qualquer momento como pareccedila mais conveniente

7 A funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da retoacuterica de Aristoacuteteles e a refutaccedilatildeo da sofiacutestica

71 A retoacuterica de Aristoacuteteles e a dos sofistas

Eacute manifesto que os sofistas foram os principais responsaacuteveis pelo florescimento

da retoacuterica enquanto arte do discurso persuasivo pois eacute a eles que a retoacuterica deve os

primeiros esboccedilos de gramaacutetica a divisatildeo do discurso em partes as teacutecnicas de elocuccedilatildeo

a noccedilatildeo de que existe o momento oportuno para expor um argumento o ideal de prosa

ornada e erudita etc E muitos dos elementos que compotildeem a arte retoacuterica de Aristoacuteteles

jaacute se encontravam disseminados na retoacuterica dos sofistas razatildeo pela qual ele reconhece

que alguns deles foram os que descobriram os primeiros princiacutepios desta arte e os fizeram

avanccedilar aperfeiccediloando-os ateacute sua forma atual Aliaacutes se Aristoacuteteles eacute grato para com os

filoacutesofos que o antecederam sem os quais o desenvolvimento de sua filosofia natildeo seria

possiacutevel o mesmo ocorre com os oradores que o precederam

No entanto Aristoacuteteles natildeo se aproxima dos sofistas somente em virtude de alguns

elementos ou princiacutepios que deles foram apropriados e utilizados para compor o seu

proacuteprio meacutetodo retoacuterico expresso nos trecircs livros da Retoacuterica mas ainda por outras razotildees

O Estagirita designa o λόγος como um traccedilo dominante da condiccedilatildeo poliacutetica do homem

Ele declara que por ser um πολιτικὸν ζῷον ou seja um animal social o homem eacute o uacutenico

que possui o dom da palavra a partir do qual eacute capaz de expressar por meio de sinais a

noccedilatildeo do bem e do mal do uacutetil e do prejudicial do justo e do injusto objetos para cuja

expressatildeo foi concedido o dispositivo da fala Outrossim a aproximaccedilatildeo com os sofistas

ocorre pela maneira como ele articula a pluralidade das diferenccedilas e dos pontos de vista

na unidade plural da cidade pois na medida em que sua arte retoacuterica se abre agraves

perspectivas individuais e valoriza o jogo de interesses de cada cidadatildeo ela se transforma

num expediente de afirmaccedilatildeo da liberdade de opiniatildeo Dessarte o conhecimento que o

orador deve possuir para proferir o seu discurso natildeo deve necessariamente fundamentar-

se em verdades filosoacuteficas conforme postulava Platatildeo mas deve amiuacutede limitar-se agraves

ἔνδοξα isto eacute agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras para o consenso geral porque

conveacutem que os argumentos retoacutericos sejam formados de argumentos comuns tendo em

vista a comunicaccedilatildeo com as multidotildees

Com efeito a perspectiva epistecircmica assumida pela maioria dos sofistas aventa

que o mundo estaacute destituiacutedo de qualquer verdade objetiva razatildeo pela qual o discurso

retoacuterico natildeo teria um referente extriacutenseco ao sujeito ou seja natildeo existiria outro criteacuterio

de verdade senatildeo o proacuteprio sujeito e suas percepccedilotildees que mediante o triunfo da palavra

eacute capaz de persuadir pela loacutegica aparente e pelo encantamento do estilo qualquer um

sobre qualquer assunto O sofista Goacutergias levou a efeito um certo modo de conceber a

retoacuterica que tanto Platatildeo quanto Aristoacuteteles reputaram por dever ser rechaccedilado Esse

modo particular de conceber a arte do discurso persuasivo era baseado na proacutepria

perspectiva epistecircmica de Goacutergias segundo a qual natildeo existiria uma verdade objetiva

mas ainda que existisse ela natildeo seria apreendida e se porventura o fosse jamais poderia

ser expressa pelo discurso Pode-se assegurar sumariamente que o corolaacuterio dessas trecircs

proposiccedilotildees significa que o discurso retoacuterico natildeo teria a funccedilatildeo de tornar possiacutevel a

comunicaccedilatildeo das coisas como realmente satildeo Pelo contraacuterio ao preconizar que existe um

fosso intransponiacutevel entre as coisas e a percepccedilatildeo assim como entre a percepccedilatildeo e o

discurso as palavras jaacute natildeo teriam nenhuma correspondecircncia com a realidade de sorte

que todo discurso que objetiva persuadir eacute ἀπατή ou puro engano Apesar desse ceticismo

Goacutergias sustenta que as palavras quando adequadamente empregadas tecircm o poder de

persuadir as pessoas a modificar suas opiniotildees outorgando ao orador um poder quase

ilimitado As palavras tambeacutem poderiam alterar tanto as emoccedilotildees como as opiniotildees dos

ouvintes submetendo-os despoticamente ao domiacutenio do orador (El Hel sect 12)

Em conformidade com o pensamento de Goacutergias e Protaacutegoras o discurso retoacuterico

natildeo pode pretender ser verdadeiro nem mesmo verossiacutemil tampouco comprometer-se

rigidamente com princiacutepios eacuteticos mas soacute pode ser proacuteprio para persuadir as pessoas a

mudar suas opiniotildees para alterar as emoccedilotildees daqueles que o ouvem submetendo os

ouvintes ao domiacutenio daquele que fala para fazer as coisas pequenas parecerem grandes

e as grandes parecerem pequenas para defender uma causa considerada injusta e fazecirc-la

prevalecer sobre uma causa justa transformando assim o argumento mais fraco no mais

forte e para mudar as coisas que satildeo consideradas maacutes de modo a aparecerem boas agraves

multidotildees De fato a finalidade dessa arte retoacuterica natildeo estaria a serviccedilo daquilo que

Aristoacuteteles chama de εὐπραξία ou seja o bem agir na vida puacuteblica e na vida privada mas

a serviccedilo do anseio de dominar os ouvintes por intermeacutedio da palavra Conquanto o

Estagirita se aproxime da sofiacutestica na escolha do λόγος como caracteriacutestica dominante da

condiccedilatildeo poliacutetica do homem ele eacute declaradamente anti-sofista tanto na compreensatildeo

quanto na utilizaccedilatildeo dessa faculdade humana45 Isto ocorre sobretudo porque no contexto

de seu meacutetodo retoacuterico o λόγος tem um significado bem definido ele se identifica com o

bloco das provas loacutegicas compostas pelo entimema e pelo exemplo as quais estatildeo

destinadas a persuadir atraveacutes de argumentos racionais cujo uso eacute liacutecito somente em

conexatildeo com a sabedoria e a virtude

Por seu turno o λόγος de Aristoacuteteles (a partir da sua relaccedilatildeo com o justo e o

injusto) eacute significativamente mais poliacutetico que o λόγος dos sofistas isso porque ele

funciona sempre como um τέλος ou seja como uma finalidade eacutetico-poliacutetica e natildeo

simplesmente como uma τέχνη Nessa perspectiva o λόγος ou o discurso retoacuterico sem

o qual natildeo pode existir verdadeira vida poliacutetica pode tornar-se um instrumento de

manipulaccedilatildeo demagoacutegica quando eacute utilizado sem a preocupaccedilatildeo com o bem comum Ao

mesmo tempo em que a arte retoacuterica permite tornar inteligiacutevel aos membros da

comunidade poliacutetica soluccedilotildees engenhosas e novas para os problemas eacutetico-poliacuteticos

prementes ela tambeacutem pode cegar o entendimento dos ouvintes com proposiccedilotildees

demagoacutegicas Sendo assim o λόγος aristoteacutelico natildeo eacute em momento algum apenas um

meio de comunicaccedilatildeo com as massas nem se limita a uma teacutecnica neutra de discurso

pois ele implica num movimento teleoloacutegico em direccedilatildeo agrave εὐπραξία

Para Aristoacuteteles existem aqueles que apesar de natildeo possuiacuterem um conhecimento

compreensivo (διάνοια) sobre assuntos de poliacutetica de Estado o colocam em praacutetica

atraveacutes de certa capacidade que lhes eacute intriacutenseca ou pelo conhecimento obtido pela

experiecircncia (ἐμπειρία) mas os sofistas que proclamam ensinar os assuntos ligados agrave

ciecircncia poliacutetica natildeo a conhecem pelas causas nem a colocam efetivamente em praacutetica46

Para ele os sofistas afirmam ser professores na aacuterea da poliacutetica mas estariam muito longe

disso porque natildeo possuiriam nem o conhecimento empiacuterico tampouco o conhecimento

compreensivo Aleacutem disso eles ignorariam totalmente qual eacute a qualidade essencial da

ciecircncia poliacutetica bem como seus objetos Se natildeo fosse assim eles natildeo a colocariam no

mesmo niacutevel da arte retoacuterica ou num niacutevel ainda mais baixo nem achariam que eacute faacutecil

legislar apenas reunindo aquelas leis que satildeo consideradas as melhores sem qualquer

discernimento do que haacute de bom e de mau nelas (Eacutet Nic 1180b 35-1181a 20)

45 Aristoacuteteles teria escrito uma obra exoteacuterica com o intuito de refutar as doutrinas do sofista Goacutergias chamada Contra a Doutrina de Goacutergias (Πρὸς τὰ Γοργίου) Esta obra foi registrada por Dioacutegenes Laeacutercio no seu cataacutelogo de obras atribuiacutedas ao Estagirita (Vid doutr fil il V 1 25) 46 Aristoacuteteles faz alusatildeo agrave condiccedilatildeo civil de μέτοικος pertencente aos sofistas Por serem estrangeiros residentes em Atenas eles estavam excluiacutedos da possibilidade de exercer a atividade poliacutetica

Conforme examinamos Aristoacuteteles declara nas linhas iniciais da Eacutetica a Nicocircmaco

que toda arte processo de investigaccedilatildeo procedimento praacutetico e decisatildeo parecem dirigir-

se para certo bem (ἀγαθός) por isso o bem eacute concebido como aquilo por que tudo anseia

Todavia entre os fins das accedilotildees humanas a serem levadas a cabo existe aquele que eacute

buscado em virtude de si proacuteprio Esse fim natildeo eacute um bem qualquer mas eacute o bem supremo

ou seja a felicidade (εὐδαιμονία) Outrossim no iniacutecio da Poliacutetica ele diz que toda cidade

eacute uma espeacutecie de comunidade a qual se forma tendo em vista algum bem pois todas as

accedilotildees de todos os homens satildeo praticadas com vistas ao que lhes parece o bem E se todas

as comunidades visam alcanccedilar algum bem eacute manifesto que a mais importante de todas ndash

a cidade ou a comunidade poliacutetica ndash e que inclui todas as outras possui mais que todas

tal objetivo e aspira ao mais importante de todos os bens qual seja o bem supremo (Pol

1252a 1-7) O bem supremo eacute o objeto de estudo da eacutetica mas eacute sobretudo o objeto de

estudo da mais arquitetocircnica de todas as ciecircncias qual seja a ciecircncia poliacutetica a qual por

sua vez submete os fins de todas as atividades humanas E se todas as atividades humanas

na cidade estatildeo submetidas agrave ciecircncia poliacutetica cuja finalidade eacute o bem humano entatildeo a

arte retoacuterica (que eacute um ramo da eacutetica) adquire naturalmente a incumbecircncia de promover

o bem da comunidade poliacutetica Esta com efeito constitui um organismo eacutetico razatildeo pela

qual a ciecircncia poliacutetica representa a condiccedilatildeo e o complemento da atividade moral

individual bem como o fundamento primeiro da suprema atividade contemplativa

Para o Estagirita a finalidade da existecircncia da comunidade poliacutetica natildeo consiste

simplesmente no ldquoviver juntosrdquo (ἀλλήλων) conforme ocorre com outros animais que

vivem em sociedade mas para a obtenccedilatildeo de uma ldquovida melhorrdquo (ζῆν καλῶς) e todas as

instituiccedilotildees poliacuteticas incluindo as artes e as ciecircncias seriam meios para a obtenccedilatildeo desse

fim (Ibid 1281a 35-37) O interesse comum tambeacutem une os membros da sociedade posto

que cada um aiacute encontra meios de viver melhor e isto constituiria o seu fim principal

comum a todos e a cada um em particular (Ibid 1278b 49-53) Aleacutem disso a cidade eacute

formada natildeo somente com vistas a assegurar a vida mas para assegurar uma vida melhor

de outro modo um grupo de escravos ou animais irracionais poderia constituir uma

cidade (Ibid 1280b 22-25) Sendo assim o escopo da comunidade poliacutetica eacute a vida

melhor e a proacutepria cidade seria apenas uma grande comunidade de clatildes e povoados em

que a vida encontraria todos os meios para uma vida perfeita e independente e esta seria

a maneira feliz e nobilitante de viver (τὸ ζῆν εὐδαιμόνως καὶ καλῶς) A comunidade

poliacutetica deve pois existir para a praacutetica de accedilotildees nobilitantes e natildeo somente para a

convivecircncia (Ibid 1281a 37-41) Aristoacuteteles tambeacutem sustenta que natildeo haacute nenhuma

duacutevida de que a verdadeira cidade ou seja aquela que natildeo o eacute somente de nome deve

estimar acima de tudo as virtudes de seus cidadatildeos dado que eacute impossiacutevel que uma cidade

seja feliz se dela a honestidade for abolida (Ibid 1280b 40-44) Na verdade natildeo existiria

nada de bom a esperar dela nem tampouco de um indiviacuteduo em particular pois a

coragem a justiccedila a prudecircncia e demais virtudes tecircm na comunidade poliacutetica o mesmo

caraacuteter e a mesma influecircncia que nos indiviacuteduos particulares Agrave vista disso a melhor

existecircncia para cada um em particular e para todas as cidades dependeria necessariamente

do conhecimento e da praacutetica das virtudes eacuteticas

O orador puacuteblico cuja missatildeo eacute promover o bem da cidade natildeo deve jamais

preocupar-se em dominar nos moldes sofiacutesticos os seus ouvintes atraveacutes da palavra em

detrimento do bem geral mas deve fundamentalmente cultivar e aparentar a prudecircncia

(φρόνησις) a virtude (ἀρετὴ) e a benevolecircncia (εὔνοια) Mediante a φρόνησις ele deve

estar apto a dar conselhos razoaacuteveis e pertinentes pela ἀρετὴ ele eacute obrigado a nunca

dissimular o que pensa nem o que sabe e pela εὔνοια ele deve estar sempre disposto a

ajudar seu auditoacuterio (Ret 1378a 9-22) Ademais o orador deve comprometer-se em

trazer a verdade agrave baila identificar e refutar os argumentos falaciosos e combater a

perversatildeo da verdade e da justiccedila A propoacutesito na obra Dos argumentos Sofiacutesticos

Aristoacuteteles explicita que ao homem que possui conhecimento de uma determinada

mateacuteria como a arte retoacuterica cabe evitar ele proacuteprio os viacutecios de raciociacutenio nos assuntos

que conhece e ao mesmo tempo ser apto a desmascarar aquele que lanccedila matildeo de

argumentos falaciosos Dessas capacidades a primeira consiste em ser apto a oferecer as

razotildees do que se diz e a segunda em fazer com que o adversaacuterio as apresente (Arg Sof

164b 25-30)

Haja vista que para Aristoacuteteles a verdade e a justiccedila satildeo por natureza mais fortes

que seus contraacuterios e sendo manifesto que a teacutecnica retoacuterica pode favorecer as causas

injustas entatildeo muito mais eficientemente a mesma teacutecnica pode favorecer as causas

justas Sendo assim o orador natildeo deve hesitar em se utilizar de todas as estrateacutegias

retoacutericas possiacuteveis natildeo simplesmente para vencer uma disputa ou para infundir o seu

ponto de vista subjetivo aos ouvintes mas a fim de orientaacute-los para o conhecimento e a

praacutetica das virtudes Ele ainda como o dialeacutetico possui a capacidade de argumentar sobre

coisas contraacuterias mas ele nunca deve fazer uma e outra coisa indiferentemente posto que

jamais deve persuadir seu auditoacuterio a praticar uma conduta imoral pelo contraacuterio deve

ele refutar os argumentos daqueles que argumentam contra a verdade e a justiccedila

O orador deve esforccedilar-se por implantar a justiccedila na alma dos seus concidadatildeos e

eliminar o viacutecio A retoacuterica deve ser entatildeo um instrumento educacional eacutetico-poliacutetico e

nisso consistiria sua legiacutetima funccedilatildeo na cidade razatildeo pela qual Aristoacuteteles censura o uso

que os sofistas faziam das palavras os quais incorriam (em decorrecircncia do seu

relativismo) tanto no mal moral quanto no erro epistecircmico O mal moral seria a ecircnfase

dada pelos sofistas na excitaccedilatildeo das paixotildees dos ouvintes e por visarem somente o

interesse proacuteprio que em nada favoreceria o bem da cidade Enquanto que o erro

epistecircmico consistiria na defesa de um relativismo conceitual nos moldes do pensamento

protagoacuterico Nesse aspecto Aristoacuteteles se afasta de todos os sofistas que praticavam e

defendiam a doutrina dos δισσοὶ λόγοι cujo principal representante foi Protaacutegoras o qual

aventava que em relaccedilatildeo a qualquer assunto existem dois argumentos opostos e que eacute

possiacutevel aprovar e refutar um mesmo tema proposto Ele queria dizer com isso que se

pode tomar qualquer lado de uma questatildeo e defendecirc-la com igual sucesso de sorte que o

mesmo orador poderia defender teses que satildeo contraditoacuterias Aliaacutes tal concepccedilatildeo se

relaciona com a ideia de que eacute possiacutevel tornar mais forte o argumento mais fraco (Ret

1402a 34-35)

Verificamos que a concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo exposta nos diaacutelogos Fedro e

Goacutergias contrasta com a tese da neutralidade da linguagem proposta pelos sofistas posto

que Platatildeo estabelece como ideal uma linguagem normativa a qual seria capaz de realizar

na cidade a uniatildeo perdida entre a eacutetica e a retoacuterica Para ele o discurso retoacuterico enquanto

ferramenta educacional natildeo merece nenhum creacutedito se nele inexistir a intenccedilatildeo de instruir

moralmente os ouvintes qualquer que seja o assunto Todavia Luiz Rohden enfatiza que

contrapondo-se a Platatildeo o Estagirita sustenta que a arte retoacuterica eacute por natureza amoral no

sentido de que em muitos momentos da vida humana o homem pode fazer uso da

palavra sem colocar o poder da linguagem sob a eacutegide da moral Ela ainda seria amoral

no sentido de poder ser autocircnoma dos conselhos morais para desenvolver-se ou seja

independentemente da cultura de um povo seus costumes e haacutebitos a retoacuterica possuiria

um valor proacuteprio A despeito do caraacuteter amoral ou neutro da arte retoacuterica ela precisa

comprometer-se com a moral no sentido que diferente dos sofistas natildeo se deve persuadir

um auditoacuterio para praticar algum mal Aleacutem disso a retoacuterica precisa estar associada agrave

moral porque na visatildeo de Aristoacuteteles esta arte estaria primeiramente vinculada agrave eacutetica e

depois agrave ciecircncia poliacutetica (ROHDEN 1997166-167)

E apesar de Aristoacuteteles afirmar que atraveacutes da retoacuterica eacute possiacutevel favorecer tanto

as causas justas como as injustas e que o orador precisa ser apto de argumentar

persuasivamente sobre coisas contraacuterias ele rejeita agrave maneira de Platatildeo a neutralidade da

linguagem que caracteriza a sofiacutestica uma vez que o orador mesmo sendo capaz de

defender teses opostas jamais deve persuadir acerca do que eacute incorreto Em suma para

Aristoacuteteles a retoacuterica eacute uma arte amoral ou mesmo neutra e neste ponto ele aproxima-se

da sofiacutestica mas ao mesmo tempo ele defende que a retoacuterica enquanto ferramenta eacutetico-

poliacutetica natildeo deve ser neutra mas comprometida com a moral o que por sua vez o

aproxima de Platatildeo

Deveras para que se possa fazer a precisa distinccedilatildeo entre o orador e o sofista seria

preciso definir o orador natildeo somente pela teacutecnica retoacuterica que por sua natureza eacute neutra

(como ocorre com a medicina e a estrateacutegia militar) mas fundamentalmente por sua

disposiccedilatildeo moral em face dela A arte retoacuterica pode ter dois usos distintos um para

alcanccedilar uma finalidade nobre e outro para alcanccedilar uma finalidade ignoacutebil assim como

um olho pode ser usado para ver bem ou para ver mal como quando se distorce o formato

da pupila ateacute que uma coisa pareccedila ser duas Desse modo ambos os usos satildeo intriacutensecos

aos assuntos em questatildeo pois a arte retoacuterica funciona como tal mesmo quando utilizada

para realizar algo ruim ou ignoacutebil assim como um olho funciona como tal mesmo quando

sua visatildeo eacute deliberadamente distorcida

Na visatildeo de Aristoacuteteles o orador distinguir-se-ia do sofista pelo fato de empregar

o discurso retoacuterico tendo em vista o triunfo natural do verdadeiro e do justo e tambeacutem

por ser capaz de separar o argumento aparente do argumento verdadeiro Desse modo eacute

quando se apela agrave intenccedilatildeo ou quando se acrescenta algo como uma vontade criacutetica (que

natildeo poderia fazer parte dos requisitos da arte retoacuterica enquanto tal) que se poderia

distinguir mais claramente pela boa e maacute intenccedilatildeo o orador do sofista E para evitar os

efeitos danosos da sofiacutestica sobre a accedilatildeo poliacutetica assunto que tambeacutem eacute longamente

explorado por Platatildeo em seus diaacutelogos o Estagirita atribui agrave arte retoacuterica uma funccedilatildeo

eacutetica razatildeo pela qual ela seria crucial para o bem da cidade Pode-se dizer portanto que

eacute o criteacuterio eacutetico-poliacutetico que coloca nos extremos o orador e o sofista o orador e o sofista

se distinguem realmente pelos diferentes postos que ocupam na cidade pois seus

discursos sobre o bem para a cidade para a vida do homem sobre como viver e sobre

como se pode ser feliz satildeo realmente distantes entre si

Para Aristoacuteteles os sofistas arrogam poder ensinar os diversos assuntos ligados agrave

ciecircncia poliacutetica mas eles natildeo a conheceriam efetivamente Eles a colocam no mesmo

niacutevel da arte retoacuterica ou ainda num niacutevel inferior ao passo que para o Estagirita a retoacuterica

eacute um instrumento auxiliar da ciecircncia poliacutetica inferior a esta na hierarquia teacutelica ou seja

na hierarquia entre os fins A ciecircncia poliacutetica eacute o aacutepice da hierarquia teacutelica porque eacute a

uacutenica que inclui todos os outros fins ou bens merecedores de escolha Os sofistas tambeacutem

acham que eacute possiacutevel legislar apenas compilando leis que satildeo consideradas as melhores

sem qualquer criteacuterio para discernir o que haacute de bom e de mau nelas Este equiacutevoco

ocorreria porque eles ignoram que o estudo da natureza da legislaccedilatildeo eacute um componente

da arte legisladora (νομοθετικέ) a qual constitui um dos ramos da ciecircncia poliacutetica que

por sua vez submete os fins de todas as ciecircncias praacuteticas Portanto para se obter o

domiacutenio da νομοθετικέ que habilita ao orador distinguir a boa lei daquela que eacute maacute eacute

necessaacuterio como condiccedilatildeo preacutevia o estudo da eacutetica e da ciecircncia poliacutetica

Aristoacuteteles assevera que todos aqueles que exercem algum tipo de autoridade na

cidade podem beneficiar muita gente tais como os estrategos os oradores e todos os que

possuem poderes idecircnticos (Ret 1388b 26-28) Eacute manifesto que a arte retoacuterica pode

beneficiar muita gente porque se os juiacutezos natildeo se fizerem como conveacutem (natildeo somente

nos tribunais mas tambeacutem nas assembleias) a verdade e a justiccedila seratildeo necessariamente

vencidas pelos seus opostos e isto seria prejudicial para comunidade poliacutetica Isto posto

Aristoacuteteles compromete o discurso retoacuterico em perspectiva praacutetica ao fim uacuteltimo do ser

humano e com base nesse comprometimento a retoacuterica pertenceria tanto agrave eacutetica quanto agrave

ciecircncia poliacutetica Pode-se dizer que a retoacuterica seria um tipo de arte auxiliar da eacutetica e da

poliacutetica porque ela natildeo visa simplesmente a persuasatildeo (atividade natildeo-terminal) mas

contribuir para o bem agir tanto na vida privada quanto na vida puacuteblica (atividade

terminal) Aristoacuteteles chega a enfatizar que a retoacuterica eacute como um rebento (παραφυής) da

dialeacutetica e do saber praacutetico sobre os caracteres a que eacute justo chamar poliacutetica (Ibid 1356a

32-42)

De sorte que a retoacuterica eacute como um rebento da dialeacutetica e daquele saber praacutetico sobre os caracteres que eacute justo chamar de poliacutetica Eacute por isso tambeacutem que a retoacuterica se cobre com a figura da poliacutetica e igualmente aqueles que tecircm a pretensatildeo de a conhecer quer por falta de educaccedilatildeo quer por jactacircncia quer ainda por outras razotildees inerentes agrave natureza humana A retoacuterica eacute de fato uma parte da dialeacutetica e a ela se assemelha como dissemos no princiacutepio pois nenhuma das duas eacute ciecircncia de definiccedilatildeo de um assunto especiacutefico mas mera faculdade de proporcionar razotildees para os argumentos

Com base na passagem supracitada pode-se assegurar que as provas loacutegicas da

argumentaccedilatildeo retoacuterica ou seja o entimema e o exemplo (λόγος) pertenceriam mediante

a vinculaccedilatildeo com a dialeacutetica ao domiacutenio da loacutegica formal47 posto que uma das

caracteriacutesticas mais marcantes da retoacuterica de Aristoacuteteles eacute a sua vinculaccedilatildeo com a

dialeacutetica a qual constitui um notoacuterio ramo da loacutegica Aleacutem do mais a retoacuterica natildeo eacute

apenas anaacuteloga agrave dialeacutetica pelas razotildees que jaacute destacamos mas tambeacutem o seu ldquorebentordquo

jaacute que uma parte das provas artiacutesticas eacute constituiacuteda pelos entimemas ou sumaacuterios de

silogismos dialeacuteticos A arte retoacuterica entatildeo pertenceria em parte ao domiacutenio da loacutegica

formal desenvolvida nos Analiacuteticos Anteriores porque ela estuda silogismos e induccedilotildees

(Ibid 1356b 5-12)

Todavia a arte retoacuterica vincula-se natildeo somente agrave dialeacutetica mas tambeacutem agrave ciecircncia

poliacutetica pois ela se ocupa dos mesmos conteuacutedos dos quais esta se ocupa ndash os caracteres

e as paixotildees ndash mas unicamente com vistas a persuadir Os meios psicoloacutegicos da

argumentaccedilatildeo retoacuterica ou seja o caraacuteter do orador (ἦθος) e o apelo emocional (πάθος)

estariam por mediaccedilatildeo da eacutetica ligados ao domiacutenio da ciecircncia poliacutetica O conhecimento

especulativo do caraacuteter e das virtudes pertenceria por definiccedilatildeo agrave disciplina que trata dos

caracteres A disciplina que trata dos caracteres que mormente recebe o nome de eacutetica

subordina-se conforme jaacute examinamos agrave ciecircncia poliacutetica Dessarte pela mediaccedilatildeo da

eacutetica a arte retoacuterica pertenceria ao domiacutenio da ciecircncia poliacutetica A retoacuterica ao lidar com as

accedilotildees humanas caracteres virtudes e emoccedilotildees estaacute intimamente ligada agrave poliacutetica que

por sua vez inclui a eacutetica Ambas as disciplinas tratam do mesmo assunto mas de um

ponto de vista diferente Ambas lidam com a felicidade e a virtude mas o escopo da

ciecircncia poliacutetica consiste grosso modo em comparar as diferentes formas de governo e

encontrar aquela na qual o homem seraacute mais virtuoso A eacutetica por seu turno eacute um

instrumento importante na educaccedilatildeo individual do cidadatildeo e dos membros da comunidade

poliacutetica como um todo por isso pode ser considerada como uma ramificaccedilatildeo da poliacutetica

E conforme a pertinente anaacutelise de Barbara Cassin sobre esse toacutepico seria por intermeacutedio

da eacutetica que tem razatildeo de chamar-se ldquopoliacuteticardquo que a retoacuterica entraria na aacutervore da

poliacutetica Mas enquanto os conhecimentos dos ecircthecirc (ἤθη) constituiria para a retoacuterica algo

como uma toacutepica das almas uma compilaccedilatildeo que permite inventar premissas adaptadas

com o intuito de suscitar paixotildees e arrebatar a convicccedilatildeo a eacutetica contribuiria para

47 A loacutegica formal que tambeacutem eacute conhecida por ldquosilogiacutestica geralrdquo refere-se agrave forma do raciociacutenio a qual leva em consideraccedilatildeo a existecircncia ou a inexistecircncia do nexo entre o antecedente e o consequente se eacute correto o raciociacutenio em suas duas formas silogismo e induccedilatildeo

conhecer e sem duacutevida para educar tanto os indiviacuteduos como as cidades tendo em vista

a finalidade de bem viver (CASSIN 1999 74)

Conforme jaacute observamos o ideal platocircnico aspirava absorver a vida praacutetica no

conceito cientiacutefico da dialeacutetica ao passo que a sofiacutestica procurava dissolver todas as

normas morais no relativismo Aristoacuteteles estava cocircnscio de que natildeo havia um modelo

loacutegico que pudesse oferecer conhecimentos cientiacuteficos com base em crenccedilas sempre

passiacuteveis de discussatildeo pois a forccedila da retoacuterica natildeo consiste no conteuacutedo da verdade

cientiacutefica que possui mas por ser um instrumento argumentativo para melhor viver em

sociedade A arte retoacuterica enquanto ramificaccedilatildeo da dialeacutetica e da eacutetica pode servir de

ferramenta educacional para os cidadatildeos e fornecer-lhes os meios teacutecnicos para defender

a verdade e a justiccedila na cidade O exerciacutecio da arte retoacuterica tambeacutem eacute uacutetil para conduzir

a comunidade a resolver seus problemas pela discussatildeo racional e natildeo pelo uso da forccedila

fiacutesica considerando o maior nuacutemero possiacutevel de aspectos dos problemas eacutetico-poliacuteticos

em questatildeo No entanto ela restringe-se a tornar mais ou menos plausiacuteveis opiniotildees ou

pontos de vista sem fornecer a garantia da verdade absoluta sobre as questotildees eacutetico-

poliacuteticas A despeito disso a retoacuterica de Aristoacuteteles tem como pressuposto um caraacuteter

eacutetico-normativo e muito mais do que um simples jogo de linguagem ela implica na

concretizaccedilatildeo do bem supremo ou da felicidade

De acordo com a definiccedilatildeo elaborada por Aristoacuteteles a arte retoacuterica consiste na

capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com a finalidade de persuadir e

esta natildeo seria a funccedilatildeo de nenhuma outra arte No entanto conveacutem sublinhar que a

persuasatildeo natildeo eacute uma atividade terminal ou um fim em si mesma conforme propalavam

os sofistas porquanto na condiccedilatildeo de instrumento eacutetico-poliacutetico a retoacuterica submete-se a

uma finalidade mais sublime a qual eacute buscada em virtude de si mesma Eacute manifesto que

a persuasatildeo eacute o fim da atividade retoacuterica mas aquela eacute uma atividade natildeo-terminal ou

seja o seu fim eacute buscado em funccedilatildeo de outro fim mais elevado o qual eacute buscado em

virtude de si proacuteprio Este fim supremo natildeo eacute outro senatildeo a felicidade de sorte que cada

homem em particular e todos em conjunto tecircm este fim em vista tanto no que escolhem

fazer como no que evitam E eacute dela mesma das accedilotildees que para ela tendem e daquelas que

lhe satildeo contraacuterias que versam todos os conselhos e dissuasotildees razatildeo pela qual a felicidade

constitui o fim da deliberaccedilatildeo (Ret 1360b 4-8)

72 A refutaccedilatildeo da retoacuterica gorgiana

Goacutergias foi um dos fundadores do discurso epidiacutectico (o qual tem por objetivo o

elogio puacuteblico de um homem de uma mulher de uma divindade ou ateacute de animais) e o

melhor exemplo de como ele concebia este gecircnero de discurso se encontra no Elogio de

Helena Embora ele afirme no iniacutecio desta obra que sua intenccedilatildeo natildeo eacute outra senatildeo indicar

a verdade conveacutem considerar que sua retoacuterica eacute marcantemente falaciosa A propoacutesito

ldquofalaacuteciardquo eacute o termo que os escolaacutesticos atribuiacuteram ao ldquoargumento sofiacutesticordquo condenado

veementemente por Aristoacuteteles na sua obra Dos Argumentos Sofiacutesticos e pode ser definida

como o argumento que possui a aparecircncia de ser verdadeiro mas sob uma anaacutelise

rigorosamente loacutegica se revela falso Na definiccedilatildeo de Aristoacuteteles os argumentos

sofiacutesticos satildeo os que parecem ser argumentos ou refutaccedilotildees mas em realidade natildeo passam

de ilogismos Para ele alguns raciociacutenios satildeo genuiacutenos ao passo que outros apenas

aparentam secirc-lo mas natildeo o satildeo e isso ocorre natildeo soacute com os argumentos mas tambeacutem

em outros campos devido a uma certa semelhanccedila entre o genuiacuteno e o falso (Arg Sof

164a 20-25)

O discurso de Goacutergias no Elogio de Helena pode ser considerado falacioso pelo

fato de fundamentar-se na falaacutecia petitio principii tambeacutem conhecida como peticcedilatildeo de

princiacutepio Isto ocorre porque as uacutenicas causas possiacuteveis por ele atribuiacutedas ao ato de Helena

satildeo justamente as que a inocentam Ele natildeo considera em nenhum momento a

possibilidade de que Helena tenha partido expontaneamente com Paacuteris pelo contraacuterio

ele inventa atraveacutes de uma enumeraccedilatildeo completa todas as possiacuteveis causas do rapto de

Helena ou ele ocorreu em virtude do decreto dos deuses e do destino ou ela foi arrebatada

agrave forccedila ou foi persuadida por discursos ou foi vencida pelo desejo Desse modo em

nenhum dos casos Helena teria agido livremente mas em todos foi subjugada por uma

forccedila superior agrave sua razatildeo pela qual ela natildeo poderia ser considerada culpada Conveacutem

salientar ainda que nos Toacutepicos a falaacutecia petitio principii eacute considerada um erro na teacutecnica

de demonstraccedilatildeo que consiste no fato de postular o que se quer provar (Toacutep 162b 35-

37) Noutros termos a falaacutecia petitio principii consiste no tipo de argumentaccedilatildeo que

objetiva provar uma tese jaacute partindo do princiacutepio que essa mesma tese seja verdadeira48

48 De acordo com Chaumlim Perelman no plano da loacutegica formal a petitio principii eacute desprovida de sentido haja vista que toda deduccedilatildeo formalmente correta consistiria em postular o que se quer provar o princiacutepio de identidade segundo o qual toda proposiccedilatildeo implica a si proacutepria seria um exemplo de petitio principii

Goacutergias comete explicitamente este ilogismo no Elogio de Helena ao supor que o

interlocutor jaacute aderiu a uma tese que ele justamente se esforccedila por fazecirc-lo admitir

Com efeito Aristoacuteteles coloca ao lado dos gecircneros oratoacuterios deliberativo e

judiciaacuterio aquele gecircnero que para Goacutergias eacute tatildeo caro mas ele o faz de uma maneira um

tanto ou quanto distinta O gecircnero epidiacutectico tem por escopo manifestar a grandeza de

uma virtude efetivamente existente (ἔστιν δ᾽ ἔπαινος λόγος ἐμφανίζων μέγεθος ἀρετῆς)

e universalmente reconhecida pelo auditoacuterio (Ret 1367b 35) Ele tambeacutem visa

reconhecer valores e natildeo transformar mediante argumentos falaciosos uma accedilatildeo perversa

numa accedilatildeo virtuosa O contraacuterio desse procedimento incorreria num paradoxo

(παράδοξος) que designa todas as proposiccedilotildees que satildeo contraacuterias agrave opiniatildeo geral Eacute dessa

forma que procede Goacutergias ao enaltecer Helena apesar da opiniatildeo puacuteblica acreditar em

sua deslealdade e adulteacuterio contra Menelau em sua fuga consciente para Troia com Paacuteris

e no cruel abandono de sua filha Hermiacuteone com apenas nove anos de idade

Na visatildeo de Aristoacuteteles existem accedilotildees como o adulteacuterio (μοιχεία) que Goacutergias

procurou relativizar no Elogio de Helena que satildeo perversas de maneira absoluta e natildeo

por constituiacuterem excessos e defeitos Para ele as accedilotildees perversas como o adulteacuterio satildeo

sempre erradas e natildeo existe nunca a respeito delas uma maneira de acertar razatildeo pela

qual seriam indefensaacuteveis por qualquer orador bem-intencionado Escreve Aristoacuteteles a

este respeito (Eacutet Nic 1107a 15-25)

Ou seja natildeo haacute uma maneira certa de cometer adulteacuterio como se houvesse a mulher certa com quem se pudesse praticaacute-lo como se houvesse a altura certa ou a maneira certa de o fazer porque praticar adulteacuterio estaacute sempre absolutamente errado [] Portanto tal como natildeo haacute excesso nem defeito na temperanccedila nem na coragem porque o meio eacute de algum modo um extremo (e a temperanccedila e a coragem satildeo posiccedilotildees extremas) assim tambeacutem se passa a respeito daquelas accedilotildees perversas porque natildeo admitem posiccedilatildeo intermeacutedia entre o excesso e o defeito Isto eacute simplesmente praticaacute-las eacute jaacute errar absolutamente

Ao abordar na Retoacuterica as virtudes que pertencem agraves mulheres Aristoacuteteles leva

em consideraccedilatildeo as virtudes do corpo (σῶμα) e as da alma (ψυχή) As virtudes do corpo

satildeo a beleza (κάλλος) e a estatura (μέγεθος) enquanto que as virtudes da alma satildeo a

temperanccedila (σωφροσύνη) e o amor ao trabalho (φιλεργία) mas sem servilismo (Ret

1361a 8-10) Outrossim ele examina na Poliacutetica algumas virtudes que precisam ser

formalizada Todavia a falaacutecia em apreccedilo que natildeo diz respeito agrave verdade mas agrave adesatildeo dos interlocutores agraves premissas que se supotildeem natildeo seria um erro de loacutegica mas de retoacuterica (PERELMAN 2014 127)

observadas pelas mulheres as quais satildeo distintas das virtudes que pertencem aos homens

Nesse sentido Aristoacuteteles critica a concepccedilatildeo socraacutetica de que a virtude eacutetica seria uacutenica

para todas as pessoas pelo contraacuterio a temperanccedila de uma mulher e de um homem natildeo

satildeo a mesma coisa nem a coragem (ἀνδρεία) ou o sentimento de justiccedila Porquanto uma

eacute a coragem de comando (ἀρχικός) a outra eacute de obediecircncia (ὑπηρετικός) e o mesmo

sucederia com as outras qualidades Assim aqueles que relacionam separadamente as

qualidades de pessoas diferentes conforme faz Goacutergias estariam mais certos que aqueles

que definem as qualidades genericamente (Pol 1260a 32-1260b 7)

Outrossim a coragem de um homem se aproximaria da covardia (δέος) se fosse

apenas igual agrave de uma mulher ao passo que a mulher passaria por tagarela se natildeo fosse

mais reservada do que um homem em suas palavras (Ibid 1277b 25-29) Assim cada

indiviacuteduo e a sociedade como um todo sobretudo os oradores devem procurar

desenvolver essas qualidades nos cidadatildeos pois os povos em que haacute imoralidade nas

mulheres a exemplo dos lecedemocircnios natildeo podem ser considerados plenamente felizes

(Ret 1361a 10-15) Enfim na visatildeo de Aristoacuteteles o gecircnero epidiacutectico precisa manifestar

a grandeza de uma virtude efetivamente existente e reconhecida pelo consenso geral

como as virtudes das mulheres acima mencionadas e jamais transformar uma accedilatildeo

considerada perversa numa accedilatildeo virtuosa

Para Aristoacuteteles o orador se propotildee a atingir segundo o gecircnero especiacutefico de

discurso finalidades que satildeo distintas no gecircnero deliberativo ele aconselha acerca do que

eacute uacutetil ou prejudicial no gecircnero judiciaacuterio ele tem em vista o justo ou o injusto e no gecircnero

epidiacutectico que aborda o elogio ou a censura ocupa-se com o que eacute belo ou feio Pode-se

assegurar entatildeo que no acircmbito do gecircnero epidiacutectico o orador ocupa-se essencialmente

de reconhecer valores (Ibid 1366a 29-40)

Depois disto falemos da virtude e do viacutecio do belo e do vergonhoso pois estes satildeo os objetivos de quem elogia ou censura Com efeito sucederaacute que ao mesmo tempo que falarmos destas questotildees estaremos tambeacutem mostrando os meios pelos quais deveremos ser considerados como pessoas de um certo caraacuteter Esta era a segunda prova pois eacute pelos mesmos meios que poderemos inspirar confianccedila em noacutes proacuteprios e nos outros no que respeita agrave virtude Mas como muitas vezes acontece que por brincadeira ou a seacuterio louvamos natildeo soacute um homem ou um deus mas ateacute seres inanimados ou qualquer animal que se apresente devemos de igual modo prover-nos de premissas sobre estes assuntos

O Estagirita define o belo como aquilo que sendo preferiacutevel por si mesmo eacute digno

de louvor ou aquilo que sendo bom eacute agradaacutevel porque eacute bom (καλὸν μὲν οὖν ἐστιν ὃ ἂν

δι᾽ αὑτὸ αἱρετὸν ὂν ἐπαινετὸν ᾖ ἢ ὃ ἂν ἀγαθὸν ὂν ἡδὺ ᾖ ὅτι ἀγαθόν) E se isto eacute belo

tambeacutem a virtude eacute bela porquanto sendo boa eacute digna de louvor A virtude por sua vez

consiste de um lado no poder de produzir e conservar os bens e de outro na faculdade

de prestar muitos e relevantes serviccedilos de toda sorte e em todos os casos (ἀρετὴ δ᾽ ἐστὶ

μὲν δύναμις ὡς δοκεῖ ποριστικὴ ἀγαθῶν καὶ φυλακτική καὶ δύναμις εὐεργετικὴ πολλῶν

καὶ μεγάλων καὶ πάντων περὶ πάντα) Os componentes da virtude (μέρη δὲ ἀρετῆς) satildeo

a justiccedila a coragem a temperanccedila a magnificecircncia a magnanimidade a liberalidade a

mansidatildeo a prudecircncia e a sabedoria (Ibid 1366a 43-1366b 6) Sendo assim o elogio

(ἔπαινος) que distingue-se do encocircmio (ἐγκώμιον)49 eacute um discurso que visa manifestar a

grandeza de uma determinada virtude por isso eacute necessaacuterio demonstrar atraveacutes do

discurso epidiacutectico que certas accedilotildees satildeo efetivamente virtuosas Nesse sentido Aristoacuteteles

se afasta do modo como Goacutergias compreende e emprega o gecircnero epidiacutectico Goacutergias

utiliza o discurso epidiacutectico natildeo para reconhecer valores como a justiccedila a coragem ou a

temperanccedila mas para defender de maneira falaciosa e ateacute imoral comportamentos que

seriam indefensaacuteveis por qualquer orador bem-intencionado de sorte que um homem de

maacute iacutendole poderia transfigurar-se num homem virtuoso e vice-versa Esta atitude tambeacutem

foi criticada por Platatildeo no Fedro ao mencionar que existem oradores que desconhecendo

o bem e o mal satildeo capazes de fazer um elogio tatildeo eloquente de um miacutesero asno a ponto

de transformaacute-lo num belo e nobre cavalo (Fed 260c)

Outrossim os tipos de argumentaccedilatildeo dos trecircs gecircneros do discurso retoacuterico natildeo satildeo

os mesmos O judiciaacuterio que dispotildee de leis e se dirige a um auditoacuterio especializado se

utiliza amiuacutede do entimema (ἐνθύμημα) proacuteprio para esclarecer uma questatildeo judicial O

deliberativo dirige-se a um puacuteblico menos esclarecido por isso utiliza preferencialmente

argumentos pelo exemplo (παράδειγμα) Enquanto que o gecircnero epidiacutectico recorre

principalmente agrave amplificaccedilatildeo (αὐξητικός) pois os fatos satildeo conhecidos pelo auditoacuterio

e cabe ao orador dar-lhes valor mostrando sua importacircncia e nobreza (Ret1368a 37-46)

Entre as espeacutecies comuns a todos os discursos a amplificaccedilatildeo eacute em geral a mais apropriada aos epidiacutecticos pois estes tomam em consideraccedilatildeo as accedilotildees por todos aceitas de sorte que apenas resta revesti-las de grandeza e de beleza Os exemplos por seu turno satildeo mais apropriados aos discursos deliberativos pois eacute com base no

49 Para Aristoacuteteles o termo ldquoἔπαινοςrdquo diz respeito agraves virtudes das accedilotildees tais como a justiccedila a coragem a temperanccedila etc enquanto que o ldquoἐγκώμιονrdquo refere-se agraves obras realizadas em benefiacutecio de algueacutem ou de uma cidade

passado que adivinhamos e julgamos o futuro E os entimemas convecircm mais aos discursos judiciais pois o que se passou por ser obscuro requer sobretudo causa e demonstraccedilatildeo

A argumentaccedilatildeo proacutepria do discurso epidiacutectico se propotildee entatildeo a aumentar a

intensidade de adesatildeo a certos valores em relaccedilatildeo aos quais natildeo existiriam duacutevidas No

discurso epidiacutectico o orador procura criar uma concordacircncia em torno de certos valores

reconhecidos pelo auditoacuterio valendo-se do conjunto de meios de que a retoacuterica dispotildee

para amplificar e valorizar Por exemplo pela αὐξητικός o orador precisa levar em

consideraccedilatildeo se um homem agiu soacute ou em primeiro lugar ou com poucas pessoas ou se

teve a parte mais relevante de uma accedilatildeo porquanto todas estas circunstacircncias satildeo

consideradas belas (Ibid 1367a 14-17) Agrave vista disso a retoacuterica epidiacutectica natildeo estaria

menos ligada agrave experiecircncia eacutetica e poliacutetica do que os demais gecircneros de discurso

porquanto deve partir de conceitos do belo e da virtude para poder realizar o tipo de

persuasatildeo que lhe caracteriza A propoacutesito no capiacutetulo 9 do primeiro livro da Retoacuterica

Aristoacuteteles se delonga em discussotildees de caraacuteter eacutetico natildeo muito diferentes daquelas da

Eacutetica a Nicocircmaco redimindo a arte retoacuterica da falsa acusaccedilatildeo de superficialidade e

imoralidade que lhe fizera Platatildeo

No entanto eacute manifesto que o estudo das virtudes eacuteticas empreendido por

Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco serve a um propoacutesito que eacute distinto do desiacutegnio exposto

na Retoacuterica o qual se relaciona fundamentalmente com a persuasatildeo Para o Estagirita

(Ibid 1369b 39-41) as definiccedilotildees das virtudes a serem utilizadas nos argumentos

retoacutericos satildeo suficientes para a finalidade de persuadir se natildeo forem obscuras nem

tecnicamente rigorosas (ἑκάστου μήτε ἀσαφεῖς μήτε ἀκριβεῖς) E aleacutem de ser mais

acurada e extensa a anaacutelise das virtudes na Eacutetica a Nicocircmaco natildeo tem por objetivo

proporcionar uma ajuda praacutetica para os oradores puacuteblicos mas um conhecimento que

possibilite a todos viver bem e virtuosamente Dessarte ele declara que o objetivo final

de sua investigaccedilatildeo natildeo eacute constituir um saber teoacuterico mas agir (Eacutet Nic 1095a 5-7)

Com efeito uma breve apreciaccedilatildeo da natureza da virtude na Eacutetica a Nicocircmaco eacute

pertinente para compreendermos mais adiante de que maneira (e por qual razatildeo) o

Estagirita parece reduzir o discurso epidiacutectico a uma manipulaccedilatildeo sofiacutestica quando

recomenda ao orador transformar (se for conveniente) um viacutecio numa virtude e vice-

versa haja vista sua sutil proximidade Sumariamente a virtude para Aristoacuteteles eacute

definida atraveacutes de gecircnero e espeacutecie Segundo o gecircnero a virtude equivale a um haacutebito

(ἕξις) e de acordo com a espeacutecie ela consiste numa posiccedilatildeo intermeacutedia (μεσότης) a qual

deve ser estabelecida pela razatildeo como a estabeleceria um homem dotado de prudecircncia

(φρόνησις)

Para Aristoacuteteles as virtudes eacuteticas natildeo surgem no homem por uma determinaccedilatildeo da

natureza mas esta propicia a capacidade de desenvolvecirc-las desde que o agente moral se

habitue a praticaacute-las Todos os fatos que resultam da natureza tecircm uma causa interna e

regular posto que se produzem sempre ou geralmente da mesma maneira (Ret 1369b 1-

2) Todavia em relaccedilatildeo agraves virtudes eacuteticas ele as assemelha com as artes uma vez que

ambas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio repetitivo Assim a virtude eacutetica seria uma

consequecircncia do haacutebito visto que o ser humano se transforma naquilo que repetidamente

pratica sendo o haacutebito uma espeacutecie de segunda natureza de modo que o agente moral

torna-se justo praticando accedilotildees justas ou corajoso praticando accedilotildees corajosas (Eacutet Nic

1103a 14-1103b 25)

Outrossim a virtude consiste na posiccedilatildeo intermeacutedia entre dois extremos viciosos

um deles se caracteriza pelo excesso (ὑπερβολή) e outro pela falta (ἔλλειψις) A coragem

constitui o meio-termo entre o medo e a audaacutecia a temperanccedila entre a insensibilidade e

a devassidatildeo a generosidade entre o esbanjamento e a avareza a gentileza entre

passividade e a ira a sinceridade entre a fanfarronice e a falsa modeacutestia a afabilidade

entre a bajulaccedilatildeo e rabugice e a espirituosidade entre a palhaccedilada e a rudeza (Ibid 1107a

28-1108b 35) O μεσότης ou a posiccedilatildeo intermeacutedia constitui um dos princiacutepios

fundamentais da eacutetica aristoteacutelica por isso a accedilatildeo correta do ponto de vista eacutetico deve

sempre evitar os extremos isto eacute tanto o excesso quanto a falta

O μεσότης pode ser compreendido tanto em relaccedilatildeo a algum objeto como em

relaccedilatildeo aos agentes morais Em relaccedilatildeo a algum objeto Aristoacuteteles entende o que eacute

equidistante de cada um dos seus extremos sendo um soacute e mesmo para todos conforme

ocorre a respeito da proporccedilatildeo numeacuterica ndash se dez eacute muito e dois eacute pouco seis seria

considerado o meio-termo em relaccedilatildeo ao objeto No entanto a posiccedilatildeo intermeacutedia em

relaccedilatildeo aos agentes morais que eacute o enfoque da eacutetica aristoteacutelica natildeo pode ser entendida

como uma proporccedilatildeo numeacuterica (Ibid 1106a 30-1106b 1) A posiccedilatildeo intermeacutedia soacute pode

ser determinada pela φρόνησις ou virtude da prudecircncia que consiste na capacidade de

discernir a justa medida cuja determinaccedilatildeo poderaacute variar de acordo com as circunstacircncias

e situaccedilotildees envolvidas (Ibid 1141b 15-20) Por exemplo o sentimento de ira suscitado

por alguma ofensa leva naturalmente um homem a querer a vinganccedila mas esta deve ser

proporcional agrave ofensa de modo que ele agiraacute de acordo com a posiccedilatildeo intermeacutedia se ele

irar-se como deveria sobre as coisas apropriadas em relaccedilatildeo agraves pessoas apropriadas pelo

fim devido e da maneira correta

Aleacutem do exposto para o Estagirita existem trecircs gecircneros de fenocircmenos que surgem

na alma e somente um deles estaria intimamente ligado agraves virtudes eacuteticas as afecccedilotildees

(πάθη) as capacidades (δυνάμεις) e as disposiccedilotildees (ἕξεις) As afecccedilotildees dizem respeito

ao desejo agrave ira ao medo agrave coragem agrave inveja agrave alegria agrave amizade ao oacutedio agrave saudade

ao ciuacuteme agrave piedade e em geral a tudo aquilo que eacute acompanhado por prazer ou

sofrimento Tais afecccedilotildees satildeo fenocircmenos involuntaacuterios que surgem na alma por isso

existem independentemente dos indiviacuteduos As capacidades satildeo as condiccedilotildees de

possibilidade dos seres humanos serem afetados ou influenciados pelas afecccedilotildees E as

disposiccedilotildees que satildeo gecircneros de fenocircmenos de acordo com os quais as pessoas se

comportam bem ou mal relativamente agraves afecccedilotildees Relativamente ao estado em que se

fica irado comporta-se mal aquele que fica nesse estado emocional em excesso ou ainda

em falta Desse modo sentir medo ser corajoso ficar irritado ou ter piedade admitem

um mais e um menos ou seja admitem modos errados de se relacionar com tais afecccedilotildees

Todavia o sentir as afecccedilotildees no tempo em que se deve nas ocasiotildees em que se deve em

vista do que se deve e do modo em que se deve constitui a medida da virtude eacutetica As

virtudes eacuteticas portanto natildeo satildeo afecccedilotildees porque natildeo depende do indiviacuteduo ser afetado

ou natildeo por elas as virtudes tambeacutem natildeo satildeo capacidades as quais satildeo inerentes aos seres

humanos mas certamente satildeo disposiccedilotildees de caraacuteter isto eacute as virtudes dependem de uma

decisatildeo preacutevia As pessoas satildeo acometidas pelo medo pela ira ou por qualquer outra

afecccedilatildeo sem qualquer decisatildeo preacutevia enquanto que as virtudes eacuteticas resultam de certas

decisotildees tomadas de antematildeo em face das afecccedilotildees Dessarte as pessoas satildeo louvadas

por suas virtudes ou censuradas por seus viacutecios em decorrecircncia de uma escolha

deliberada (Ibid 1105b 19-1106a 10)

Verificamos que Aristoacuteteles estabelece a distinccedilatildeo entre o orador e o sofista

sobretudo pela disposiccedilatildeo ou intenccedilatildeo moral o primeiro distingue-se do segundo por

empregar a arte retoacuterica tendo em vista o triunfo natural do verdadeiro e do justo e natildeo

simplesmente para persuadir sua audiecircncia conforme o que lhe conveacutem Entretanto

Aristoacuteteles parece reduzir o gecircnero do discurso epidiacutectico a uma manipulaccedilatildeo digna dos

maiores sofistas quando recomenda ao orador considerar idecircnticas certas qualidades

existentes e as que lhes estatildeo proacuteximas Ele pode apresentar o indiviacuteduo coleacuterico como

franco o arrogante como magnificente e digno e os que mostram algum tipo de excessso

como se possuiacutessem as virtudes correspondentes (Ret 1367a 42-47) O audacioso pode

ser apresentado como corajoso e o esbanjador como generoso porque dessa forma

pareceraacute agrave maioria que natildeo tem a perspicaacutecia de distinguir a sutil diferenccedila entre a virtude

e o viacutecio (Ibid 1367b 1-4) Portanto em cada caso o orador pode tirar proveito dessas

qualidades semelhantes no sentido mais favoraacutevel

Aleacutem da aparente ldquocumplicidaderdquo de Aristoacuteteles com a sofiacutestica ele ainda sugere

ao orador o que eacute necessaacuterio dizer ao defender uma determinada causa primeiro se a lei

lhe for desfavoraacutevel teraacute de lanccedilar matildeo de um criteacuterio que esteja acima da lei escrita

apelando a uma lei natildeo escrita depois se a lei lhe for favoraacutevel teraacute de rejeitar todo

criteacuterio extriacutenseco agrave lei escrita Agrave primeira vista tem-se a impressatildeo de que o Estagirita

estaacute subscrevendo todas as desonestidades e manipulaccedilotildees que sempre caracterizaram os

sofistas W K C Guthrie sustenta (um tanto ou quanto superficialmente) que Aristoacuteteles

deveras rendeu-se agraves tramoacuteias de Goacutergias e seus comparsas os quais ensinavam em seus

manuais os modos como os conceitos eacuteticos podem ser submetidos agraves conveniecircncias do

momento Ele sustenta esta visatildeo com a justificativa de que no momento em que

Aristoacuteteles escreveu seu manual de retoacuterica baseou-se nos manuais anteriores

confeccionados em sua maioria pelos mais eminentes sofistas Por essa razatildeo ele teria

simplesmente reproduzido os estratagemas retoacutericos dos sofistas sem preocupar-se no

toacutepico em questatildeo em fazer com que a lei eterna da natureza prevaleccedila sobre a convenccedilatildeo

mas mostrar que um advogado pode jogar com a noccedilatildeo de lei escrita e natildeo escrita da

maneira que conveacutem ao seu caso (GUTHRIE 2007 118)

Com efeito se por casualidade a lei escrita for desfavoraacutevel ao discurso do orador

ele precisa lanccedilar matildeo dos seguintes estratagemas recorrer agrave lei comum uma vez que

esta possuiria razotildees mais equacircnimes e mais justas dizer que a foacutermula ldquona melhor

consciecircnciardquo significa natildeo nos atermos estritamente agrave lei escrita declarar que os

princiacutepios de equidade satildeo permanentes e nunca mudam tampouco a lei comum que estaacute

baseada na natureza e ateacute citar a lei natildeo escrita de Antiacutegona que seria o uacutenico criteacuterio de

justiccedila das leis escritas as quais satildeo amiuacutede transitoacuterias ambiacuteguas e contraditoacuterias entre

si dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita

natildeo deve ser considerada uma lei se natildeo cumprir efetivamente a sua funccedilatildeo de lei e que

eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se adequar mais

do que agraves leis escritas Aleacutem do mais Aristoacuteteles orienta que se verifique se existe alguma

ambiguidade na lei com o intuito de contornar e ver a que sentido ela se acomoda se ao

justo ou ao conveniente e na sequecircncia utilizar a interpretaccedilatildeo mais favoraacutevel (Ret

1375a 41-49) E se porventura as circunstacircncias que motivaram a lei jaacute natildeo existem mas

a lei ainda permanece entatildeo conveacutem demonstraacute-lo ao juiz e lutar contra a lei vigente por

este estratagema (Ibid 1375b 3-19)

No entanto se a lei escrita for favoraacutevel ao orador Aristoacuteteles recomenda que a

foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo natildeo tem por objetivo obter uma sentenccedila contraacuteria agrave lei

mas escusar o juiz de perjuacuterio caso ele tivesse ignorado o verdadeiro sentido da lei que

eacute preciso explicar que ningueacutem escolhe o bem absoluto mas sim o seu proacuteprio bem que

natildeo existe nenhuma diferenccedila entre natildeo haver lei e natildeo se fazer uso dela que nas outras

artes natildeo existe vantagem em ser mais haacutebil do que o meacutedico porquanto o erro de um

meacutedico eacute menos prejudicial do que o haacutebito de desobedecer agrave autoridade e que procurar

ser mais saacutebio do que as leis eacute precisamente o que eacute proibido pelas leis que satildeo louvadas

(Ibid 1375b 20-31)

Ao orientar sobre os casos em que a lei escrita eacute desfavoraacutevel ao orador Aristoacuteteles

recusa o legalismo em benefiacutecio da equidade (ἐπιεικής) que estabelece a justiccedila acima do

direito positivo e faz do juiz um aacuterbitro o qual pode retificar a lei quando esta deixar de

desempenhar devidamente sua funccedilatildeo No segundo caso Aristoacuteteles recomenda a recusa

do arbitraacuterio haja vista que cada um pode invocar a lei natildeo escrita de Antiacutegona para

revogar a lei que natildeo lhe conveacutem Desse modo a atitude ldquorelativistardquo de Aristoacuteteles ao

aconselhar o orador a adotar segundo sua conveniecircncia ora uma tese ora o seu contraacuterio

parece um tanto ou quanto imoral

No entanto se levarmos em consideraccedilatildeo que as accedilotildees humanas natildeo procedem de

verdades absolutamente necessaacuterias que a arte retoacuterica soacute pode ser exercida em situaccedilotildees

de divergecircncia e incerteza e que o orador pode deparar-se com um adversaacuterio mal-

intencionado a quem importa fazer de tudo para desmentir sua argumentaccedilatildeo (haja vista

que sua missatildeo eacute lutar para o bem da comunidade poliacutetica) entatildeo as estrateacutegias retoacutericas

supramencionadas parecem ser apropriadas nas circunstacircncias especiacuteficas nas quais o

orador dotado de prudecircncia (φρόνιμος) estaraacute apto a empregaacute-las50 Eacute inegaacutevel que o

50 Guardadas as devidas proporccedilotildees pode-se comparar a asserccedilatildeo aristoteacutelica de que o orador pode relativizar certas noccedilotildees eacuteticas com a ldquomentira uacutetilrdquo de Platatildeo a qual soacute poderia ser exercida por governantes justos (Rep 331c 382c 389-391c 414b 459c-d) Decerto a eventual mentira dos governantes natildeo visa o seu proacuteprio bem mas o bem de todos os cidadatildeos Ela natildeo tem como fim obter riqueza poder ou manter a condiccedilatildeo privilegiada da proacutepria classe mas sim alcanccedilar o bem-estar de toda a cidade Portanto a mentira do governante natildeo eacute funcional agrave conservaccedilatildeo do seu poder sobre todos os outros homens mas agrave de uma vida justa e feliz com todos os outros homens Semelhantemente os oradores

debate entre Creonte e Antiacutegona51 (entre a razatildeo de Estado que exige a ordem para

estabelecer a paz e a lei divina) ainda natildeo se encerrou e pode-se assegurar que nunca vai

se encerrar A uacutenica coisa que se pode fazer na ausecircncia de uma demonstraccedilatildeo rigorosa

ou apodiacutectica eacute confiar no debate contraditoacuterio em que cada orador emprega todo o

esforccedilo para encontrar os meios de efetivar a persuasatildeo Assim nos contextos onde eacute

premente a deliberaccedilatildeo torna-se fundamental o emprego da argumentaccedilatildeo retoacuterica com

o intuito de encontrar a soluccedilatildeo mais plausiacutevel em face de um impasse qualquer porque

numa situaccedilatildeo destituiacuteda de evidecircncia onde natildeo eacute possiacutevel demonstraccedilatildeo cientiacutefica nem

qualquer previsatildeo exata a arte retoacuterica possui o papel fundamental de fazer a justa defesa

de uma determinada causa e esclarecer aqueles que devem emitir a palavra definitiva e

disso depende a proacutepria subsistecircncia da cidade

Eacute manifesto que a condiccedilatildeo do orador eacute a de um sujeito que natildeo estaacute isolado ou

sozinho mas ele tem diante de si um adversaacuterio a quem compete fazer de tudo para

desmentir sua argumentaccedilatildeo caso seja falaciosa tendo sempre em vista o combate contra

a perversatildeo da verdade e da justiccedila Num contexto juriacutedico por exemplo ambas as partes

de um litiacutegio tecircm a missatildeo de fazer valer tudo o que possa servir agrave sua proacutepria causa mas

quem deteacutem a palavra final eacute sempre o juiz E uma vez que a verdade e a justiccedila satildeo por

natureza mais fortes que seus contraacuterios e sendo evidente que os estratagemas retoacutericos

podem favorecer as causas injustas entatildeo com mais eficaacutecia os mesmos estratagemas

podem favorecer as causas justas Desse modo sob o ponto de vista do meacutetodo retoacuterico

desenvolvido de Aristoacuteteles o orador judicial deve empregar sem nenhum melindre todas

as estrateacutegias retoacutericas disponiacuteveis a fim de triunfar sobre o adversaacuterio e estabelecer a

verdade dos fatos Outrossim as accedilotildees humanas fundamentam-se sobre juiacutezos que

poderiam ser de uma maneira ou de outra e normalmente natildeo procedem de verdades

absolutamente necessaacuterias Por isso ningueacutem pode deliberar sobre coisas que natildeo podem

ser de outra maneira nem acerca daquelas coisas sobre as quais natildeo tem o poder de agir

(Eacutet Nic 1140a 31-34) Na hipoacutetese de que as estrateacutegias retoacutericas sejam quais forem

verdadeiramente ilibados e bem-intencionados teriam a prerrogativa de submeter agraves conveniecircncias do momento certas noccedilotildees tendo em vista seu compromisso eacutetico-poliacutetico com o bem da cidade 51 De acordo a trageacutedia chamada Antiacutegona escrita por Soacutefocles em 442 aC Antiacutegona era irmatilde de Polinice que morreu lutando contra Creonte que era o rei de Tebas Este por conseguinte decidiu que como puniccedilatildeo por seus erros o corpo do rebelde Polinice natildeo poderia ser sepultado Entretanto Antiacutegona entendeu que ningueacutem poderia deixar insepulto o corpo de seu proacuteprio irmatildeo ainda que para isso tivesse de contrariar a lei que foi escrita e sancionada pelo rei Para tanto ela procura apelar para as leis natildeo escritas estabelecidas pelos deuses as uacutenicas que na sua opiniatildeo mereceriam ser observadas Dessarte ela foi julgada e condenada por Creonte que decide aprisionaacute-la numa caverna escavada na rocha para que tivesse uma morte lenta e angustiante

satildeo pertinentes em situaccedilotildees de divergecircncia e incerteza mormente nas ocasiotildees em que

o orador dotado de prudecircncia enfrenta um adversaacuterio mal-intencionado e

descomprometido com o bem da cidade entatildeo torna-se premente a compreensatildeo dessa

virtude tal como a relevacircncia de sua vinculaccedilatildeo com a persuasatildeo retoacuterica

O Estagirita define brevemente a prudecircncia (Ret 1366b 23-25) como a virtude da

inteligecircncia mediante a qual se pode deliberar adequadamente sobre os bens e os males

que conduzem agrave felicidade (φρόνησις δ᾽ ἐστὶν ἀρετὴ διανοίας καθ᾽ ἣν εὖ βουλεύεσθαι

δύνανται περὶ ἀγαθῶν καὶ κακῶν τῶν εἰρημένων εἰς εὐδαιμονίαν) A prudecircncia que eacute

uma das qualidades morais que compotildeem o ἦθος do orador a partir da qual ele estaraacute

apto a dar conselhos razoaacuteveis e pertinentes possui um componente dianoeacutetico mas natildeo

pode ser um conhecimento cientiacutefico stricto sensu nem uma arte pois o que acontece no

horizonte das accedilotildees humanas pode ser sempre de outra maneira (Eacutet Nic 1140b 1-5)

Apesar disso natildeo eacute possiacutevel nenhuma argumentaccedilatildeo nem decisatildeo verossiacutemil se o orador

natildeo for dotado de prudecircncia

A prudecircncia faz os agentes morais agirem tendo em vista um fim o qual se

identifica em uacuteltima instacircncia com o bem supremo ou a felicidade No entanto a

prudecircncia natildeo se relaciona diretamente com o fim da accedilatildeo o qual natildeo pode ser objeto de

deliberaccedilatildeo mas com os meios de atingi-lo E aquele que possui a prudecircncia sabe-se

numa deliberaccedilatildeo comprometida com o fim uacuteltimo da felicidade e o homem prudente

(φρόνιμος) eacute capaz de calcular de forma correta a fim de chegar a este objetivo final (Ibid

1140a 28-30) Mediante a prudecircncia chega-se em parte ao bem do indiviacuteduo em parte ao

bem da comunidade poliacutetica razatildeo pela qual Peacutericles eacute considerado por Aristoacuteteles o

modelo de φρόνιμος porque ele foi capaz de ver as coisas que eram boas para si proacuteprio

em particular e para os homens em geral (Ibid 1140b 5-10) O homem prudente

portanto eacute aquele que tem o poder de deliberar corretamente acerca das coisas que satildeo

boas e vantajosas tanto para si como para o viver bem em geral

Aristoacuteteles enfatiza que a investigaccedilatildeo sobre as accedilotildees humanas somente seraacute

adequada se contiver tanta exatidatildeo quanto comportar o assunto haja vista que natildeo se

deve exigir precisatildeo cientiacutefica em todos os raciociacutenios O acircmbito do raciociacutenio eacutetico

constitui-se sobre o sistema de opiniotildees geralmente aceitas e sobre o que sucede a maior

parte das vezes com o reconhecimento da comunidade poliacutetica ou pelo menos dos

homens mais eminentes E as opiniotildees que constituem o mundo cultural satildeo justamente

os valores que a arte retoacuterica leva em consideraccedilatildeo em suas anaacutelises e no seu poder de

persuasatildeo e nesse aspecto retoacuterica e eacutetica satildeo disciplinas intimamente relacionadas

No entanto quando se examina as accedilotildees humanas parece impossiacutevel detectar de

forma definitiva e cabal a distinccedilatildeo entre a coragem e a audaacutecia ou entre a generosidade

e o esbajamento pois a justa medida entre as qualidades em consideraccedilatildeo natildeo eacute

rigidamente aritmeacutetica ela difere de uma pessoa para outra depende dos temperamentos

de cada um e das circunstacircncias envolvidas Mas eacute justamente esta obscuridade que

possibilita ao orador judicial dotado de prudecircncia apresentar como corajoso aquele que eacute

acusado de ser audacioso ou generoso aquele que eacute considerado esbanjador e vice-versa

sem ser confundido com o sofista cuja motivaccedilatildeo natildeo estaria vinculada a interesses eacutetico-

poliacuteticos mas somente agraves disputas eriacutesticas Sendo assim Aristoacuteteles natildeo considera um

orador virtuoso enquanto ele natildeo optar por agir em conformidade com o que a virtude

aconselha Mantendo este criteacuterio ele aconselha ao orador que suas accedilotildees se manifestem

como resultado de uma προαίρεσις ou seja uma escolha moral bem intencionada

Conveacutem tambeacutem salientar que Aristoacuteteles utiliza a palavra cacircnone (κανών) para

caracterizar a pessoa virtuosa (σπουδαῖος) cujos sentimentos e juiacutezos estatildeo nesta

condiccedilatildeo Assim o que distinguiria o orador dotado de prudecircncia daquele que natildeo o eacute

seria sua capacidade de ver o que eacute verdadeiro em cada caso sendo ele proacuteprio um κανών

ou seja um padratildeo ou medida desses casos (Ibid 1113a 30-1113b 1) Ele tambeacutem declara

que quando coisas vis e injustas parecem agradaacuteveis para alguns indiviacuteduos isso se deve

ao tipo de defeito na parte desiderativa da alma que ao mesmo tempo evidencia que seu

possuidor natildeo possui um caraacuteter virtuoso razatildeo pela qual ele constitui um κανών ruim

para distinguir adequadamente as coisas que satildeo boas para si proacuteprio em particular e

para os homens em geral (Ibid 1176a 16-19) Nessa perspectiva se o orador natildeo possuir

genuiacutena virtude de caraacuteter o seu juiacutezo moral sobre as coisas natildeo seraacute correto ou confiaacutevel

assim como a visatildeo que natildeo pode distinguir corretamente os objetos se for afetada por

alguma doenccedila E uma vez que ele tenha um caraacuteter virtuoso o mundo dos prazeres das

dores e dos valores em geral seraacute imediatamente acessiacutevel e compreensiacutevel como o das

cores dos sons e dos objetos perceptiacuteveis para aquele que possui os oacutergatildeos dos sentidos

em boas condiccedilotildees

De fato as observaccedilotildees de Aristoacuteteles sobre o orador como aquele que eacute capaz de

considerar idecircnticas certas qualidades existentes e as que estatildeo proacuteximas sugerem que

ele natildeo tivesse uma visatildeo muito elevada da moral mas estaacute hipoacutetese estaacute longe de

corresponder agraves suas convicccedilotildees No seu comentaacuterio agrave Retoacuterica Forbes I Hill procura

certificar que o fato do orador poder tirar proveito de qualidades semelhantes no sentido

mais favoraacutevel natildeo comprometeria a elevada visatildeo moral do Estagirita Para tanto ele

utiliza o exemplo do soldado que saiu de suas proacuteprias linhas sem nenhuma necessidade

e conseguiu matar trecircs soldados inimigos Em sua perspectiva o que definiria para

Aristoacuteteles a conduta do soldado seria a intenccedilatildeo moral que o fez lutar haja vista que ele

percebeu o perigo que corria No entanto a resposta agrave pergunta se o soldado escolheu

realizar a accedilatildeo porque era um homem corajoso ou simplesmente porque desejava a gloacuteria

eacute uma empreitada que ultrapassa a capacidade humana Eacute possiacutevel entatildeo graccedilas agrave

limitada condiccedilatildeo epistecircmica dos seres humanos nomear os fatos de uma maneira ou de

outra segundo a conveniecircncia Contudo eacute mister levar em consideraccedilatildeo que a

superioridade eacutetica da visatildeo aristoteacutelica em comparaccedilatildeo com a dos sofistas consiste na

defesa de um modelo correto de escolha moral (MURPHY 1989 60)

Aristoacuteteles tambeacutem admite a existecircncia de uma capacidade chamada ldquoδεινότηςrdquo

cujo termo pode ser traduzido por ldquoespertezardquo sem a qual a prudecircncia natildeo poderia

subsistir Por isso diz-se que tanto os prudentes quanto os maldosos satildeo dotados de

esperteza No entanto quando a esperteza objetiva alcanccedilar uma finalidade eacutetica associa-

se agrave prudecircncia e por conseguinte torna-se louvaacutevel haja vista seu comprometimento com

o bem comum mas isoladamente ela designa um poder de juiacutezo tendencialmente egoiacutesta

e imoral Portanto esta tecircnue diferenccedila entre a esperteza associada agraves causas justas e a

esperteza engajada em vis propoacutesitos parece ser mais um razoaacutevel motivo para ressalvar

Aristoacuteteles de todas as velhacarias e desonestidades que mancharam a reputaccedilatildeo dos

sofistas (Eacutet Nic 1144a 20-35)

A esperteza eacute o elemento que como o resultado de uma deliberaccedilatildeo correta

assegura a promoccedilatildeo do fim incondicional da accedilatildeo qual seja a felicidade (geral) pois o

que faz a prudecircncia boa em calcular eacute justamente a esperteza E se a meta a que algueacutem

visa eacute nobre seu caraacuteter deve ser virtuoso e por conseguinte louvaacutevel posto que a virtude

de caraacuteter eacute o que assegura a escolha deliberada correta de fins nobres e louvaacuteveis (Ibid

1144a 9-10) Entretanto uma pessoa imoral e amante de si proacutepria (φίλαυτος) eacute algueacutem

que toma quanto puder de dinheiro honras prazeres corporais e outros bens de

competiccedilatildeo que satildeo os fins particulares da avidez em detrimento do bem comum e

independente de a quem a pertenccedilam (Ibid 1168b 15-20) Todavia aleacutem da vinculaccedilatildeo

entre a prudecircncia e a esperteza na visatildeo de Troels Engberg-Pedersen haveria tambeacutem

uma vinculaccedilatildeo entre a esperteza e a retoacuterica de Aristoacuteteles dado que ambas satildeo por

natureza habilidades moralmente neutras A arte retoacuterica envolveria pois conhecimentos

especiacuteficos e a habilidade de encontrar argumentos persuasivos sobre os assuntos eacutetico-

poliacuteticos No entanto ela natildeo pressupotildee por si soacute qualquer caraacuteter moral particular ou

motivaccedilatildeo de modo que a habilidade retoacuterica eacute formalmente idecircntica agrave esperteza quer

dizer uma habilidade neutra que ao inclinar-se para objetivos moralmente bons pode

tornar-se louvaacutevel caso contraacuterio pode culminar na perversatildeo e na vilania (RORTY

1997 120)

De acordo com John B Morrall a interconexatildeo entre a eacutetica e a poliacutetica eacute

demonstrada pela preeminecircncia em ambas da faculdade da prudecircncia Para ele a eacutetica se

preocupa em fazer asserccedilotildees que podem servir de guia uacutetil para a aquisiccedilatildeo e preservaccedilatildeo

de tal faculdade a exemplo da utilizaccedilatildeo de uma posiccedilatildeo central entre opostos como regra

de medida No entanto em sua perspectiva Aristoacuteteles insiste que o meio-termo natildeo se

identifica com uma foacutermula maacutegica pelo contraacuterio ele conteacutem todas as incertezas do

mundo do conhecimento praacutetico juntamente com os perigos especiacuteficos que a posse da

livre escolha atribui ao comportamento humano por meio de um resiacuteduo final de

imprevisibilidade A prudecircncia que eacute a virtude suprema tanto na poliacutetica como na eacutetica

teria por escopo encontrar a soluccedilatildeo mais judiciosa e apropriada possiacutevel em meio a um

milhatildeo de circunstacircncias variaacuteveis e imprevisiacuteveis Desse modo no acircmbito das accedilotildees

humanas natildeo seria possiacutevel formular regras riacutegidas jaacute que a soluccedilatildeo estaria no

treinamento do intelecto praacutetico mediante a experiecircncia adquirida e o haacutebito de escolher

o curso correto de accedilatildeo em cada caso especiacutefico que ocorra (MORRALL 2000 42-43)

Morrall tambeacutem salienta que embora Aristoacuteteles rejeite o relativismo (absoluto)

na eacutetica e denuncie os sofistas como guias poliacuteticos o atributo fundamental do seu

pensamento no que se refere agrave poliacutetica consiste na adoccedilatildeo de um tipo mitigado de

relativismo que eacute ditado tanto pela flexibilidade da mateacuteria tratada como pelos

instrumentos humanos que atuam sobre ela Em sua opiniatildeo este relativismo se deve em

certa medida agrave influecircncia do ensino meacutedico que Aristoacuteteles recebera A conexatildeo de

Aristoacuteteles com a tradiccedilatildeo meacutedica de Hipoacutecrates que precedeu o seu periacuteodo na

Academia de Platatildeo teria uma forte afinidade com a corrente de ensinamento sofista pois

ambos os movimentos tinham o programa de abandonar as explicaccedilotildees abstratas e gerais

para os fenocircmenos e em vez disso concentrar-se no comportamento observaacutevel dos

fenocircmenos e nas previsotildees baseadas nesse conhecimento empiacuterico Morrall alude ao

tratado chamado Da Medicina Antiga no qual o meacutedico Hipoacutecrates sustenta que em

mateacuteria de sauacutede nada eacute absolutamente bom nem absolutamente mau de modo que o

valor dos alimentos remeacutedios e outros meios de sauacutede seria condicionado pelo estado de

cada indiviacuteduo uma refeiccedilatildeo de carne pode ser boa para um homem no gozo de perfeita

sauacutede e pode ser inadequada para um doente etc (Ibid 2000 44 76)

Com efeito a concepccedilatildeo de um tipo especial de relativismo aparece de maneira

expliacutecita no pensamento eacutetico do Estagirita quando ele fala a respeito das coisas que satildeo

justas de acordo com as convenccedilotildees e a conveniecircncia comparando-as agrave unidades de

medida (τὰ δὲ κατὰ συνθήκην καὶ τὸ συμφέρον τῶν δικαίων ὅμοιά ἐστι τοῖς μέτροις) As

medidas de vinho e cereais natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares mas maiores nos

mercados por atacado ao passo que satildeo menores no varejo Semelhantemente as coisas

que natildeo satildeo justas por natureza mas meramente por decisatildeo humana natildeo satildeo as mesmas

em todos os lugares (ὁμοίως δὲ καὶ τὰ μὴ φυσικὰ ἀλλ᾽ ἀνθρώπινα δίκαια οὐ ταὐτὰ

πανταχοῦ) Isto tambeacutem se aplicaria agraves constituiccedilotildees as quais natildeo satildeo as mesmas em toda

parte (ἐπεὶ οὐδ᾽ αἱ πολιτεῖαι ἀλλὰ μία μόνον πανταχοῦ κατὰ φύσιν ἡ ἀρίστη) A despeito

disso Aristoacuteteles estaacute longe de ser considerado um relativista ordinaacuterio pois ele se

distingue dos sofistas por afirmar (Eacutet Nic 1135a 1-8) a existecircncia de um tipo de

constituiccedilatildeo uacutenica em todo lado que eacute a melhor de todas por estar fundada na justiccedila por

natureza cujo sentido eacute uacutenico e universal (τῶν δὲ δικαίων καὶ νομίμων ἕκαστον ὡς τὰ

καθόλου πρὸς τὰ καθ᾽ ἕκαστα ἔχει)

Conforme jaacute verificamos o sofista Goacutergias define a arte retoacuterica como πειθοῦς

δημιουργός ou seja ela eacute artiacutefice ou a criadora da persuasatildeo razatildeo pela qual seria capaz

de persuadir pelo discurso a despeito de qualquer assunto52 os juiacutezes no tribunal os

conselheiros no Conselho os membros da Assembleia e em toda e qualquer reuniatildeo de

natureza poliacutetica (Goacuterg 452e) Goacutergias tambeacutem assevera que todos os especialistas que

natildeo possuem a habilidade retoacuterica de persuadir satildeo menos poderosos do que aqueles que

52 Conforme sugere James J Murphy a concepccedilatildeo gorgiana segundo a qual a teacutecnica retoacuterica possui intrinsecamente a eficaacutecia de persuadir qualquer um sobre qualquer assunto jaacute estava em germe na retoacuterica de Coacuterax Este com efeito teria manifestado uma extrema confianccedila no seu meacutetodo retoacuterico ao propor a seu disciacutepulo Tiacutesias que pagasse por suas aulas somente apoacutes obter alguma vitoacuteria no tribunal Tiacutesias teria de pagar pelas aulas de Coacuterax somente se vencesse caso contraacuterio estaria desobrigado do pagamento Tiacutesias natildeo querendo pagar pelas aulas levanta um processo contra o proacuteprio Coacuterax sustentando que nada deve Este foi o primeiro processo de Tiacutesias Se este porventura ganhasse o processo entatildeo natildeo teria de pagar pelas aulas mas se perdesse natildeo pagaria da mesma forma pois a derrota provaria que as aulas de Coacuterax natildeo foram eficientes para habilitaacute-lo a persuadir qualquer um sobre qualquer assunto Coacuterax por sua vez constroacutei um contra-argumento se Tiacutesias ganhar o processo teraacute de pagar pelas aulas segundo o acordo feito entre eles Perdendo o processo teraacute de pagar consoante a decisatildeo dos juiacutezes (MURPHY 1989 15)

a possuem de tal modo que por meio do poder do discurso seria possiacutevel submeter

qualquer indiviacuteduo agrave condiccedilatildeo de escravo No Elogio de Helena ele declara que o λόγος

eacute um grande e soberano senhor uma espeacutecie de encantador ou de mago que nenhum ser

humano eacute capaz de resistir (El Hel sect 3) Aliaacutes a crenccedila no poder irrestrito da persuasatildeo

era tal entre os sofistas a ponto de Polo de Agrigento (que era disciacutepulo de Goacutergias)

afirmar que os oradores haacutebeis podiam como os tiranos fazer com que condenassem agrave

morte agrave confiscaccedilatildeo ou ao exiacutelio quem lhes desagradasse (Goacuterg 469c)

Entretanto para o Estagirita o objetivo da retoacuterica natildeo se reduz ao simples poder

de persuadir mas fundamentalmente eacute a arte de achar os meios de persuasatildeo que cada

caso comporta tal como acontece em todas as outras artes Para ele natildeo eacute funccedilatildeo da

medicina dar sauacutede ao doente mas avanccedilar o mais possiacutevel na direccedilatildeo da cura uma vez

que se pode cuidar bem dos que jaacute natildeo estatildeo em condiccedilotildees de recuperar a sauacutede (Ret

1355b 13-19) O meacutedico (ἰατρὸς) por exemplo possui menos seguranccedila do que faz pois

ele nada pode realizar para os doentes incuraacuteveis nem mesmo aos demais pacientes pode

prometer a cura (a natildeo ser que se comporte como um charlatatildeo) mas certamente pode

propiciar a eles todas as oportunidades de obtecirc-la De modo semelhante o bom orador

natildeo eacute aquele que promete a vitoacuteria a qualquer custo mas eacute aquele que encontra para a sua

causa todas as possibilidades de obter a vitoacuteria estando cocircnscio de que o seu discurso

possui limites que natildeo podem ser superados53

Nos Toacutepicos Aristoacuteteles natildeo define o orador como aquele que eacute capaz de persuadir

qualquer um sobre qualquer assunto mas sim como aquele que pode sempre ver o que

seraacute persuasivo nas diversas circunstacircncias sem nada omitir (Toacutep 149b 25-28) E

quando o orador possui uma compreensatildeo completa de seu meacutetodo ele estaraacute apto a

descobrir os meios disponiacuteveis para persuadir os seus ouvintes poreacutem ele jamais teraacute o

poder de persuadir a todos Desse modo Aristoacuteteles nega a tese gorgiana da onipotecircncia

do discurso retoacuterico uma vez que o orador natildeo seria conforme aventa Goacutergias o portador

do discurso como ldquoum grande e soberano senhor que com um corpo pequeniacutessimo e

invisibiliacutessimo eacute capaz de operar diviniacutessimas accedilotildeesrdquo (El Hel sect 8)

A perspectiva aristoteacutelica acerca da arte retoacuterica eacute ao mesmo tempo modesta e

realista porquanto rejeita que a retoacuterica possui o poder absoluto para convencer qualquer

53 Platatildeo tambeacutem enfatiza as reais limitaccedilotildees do poder da retoacuterica Agrave proposta de Polemarco de que Soacutecrates e Glauco deveriam se provar mais fortes que o grupo dele ou entatildeo permanecer no Pireu Soacutecrates sugere a alternativa da persuasatildeo No entanto Polemarco declara que a persuasatildeo natildeo teraacute nenhum efeito nos ouvintes que natildeo estatildeo dispostos ao ouvir (Rep 327c)

um sobre qualquer assunto e nega que a palavra persuasiva conforme defendia Goacutergias

eacute um senhor absoluto sobre todas as coisas Tanto Goacutergias como Aristoacuteteles tecem elogios

agrave arte retoacuterica mas enquanto Goacutergias enaltece o poder do discurso sobre os ouvintes o

Estagirita sublinha sua utilidade eacutetico-poliacutetica Por essa razatildeo Aristoacuteteles natildeo a apresenta

como o expediente a partir do qual eacute possiacutevel dominar os ouvintes agrave maneira de um tirano

mas sim como o meio a partir do qual eacute possiacutevel defender a verdade e a justiccedila na cidade

Ambos tambeacutem admitem que pelo fato de ser neutra ela pode ser utilizada

desonestamente o que em nada subtrai o seu valor mas se Goacutergias e Aristoacuteteles falam da

mesma coisa certamente natildeo falam da mesma maneira

Com efeito a arte retoacuterica desenvolvida por Aristoacuteteles se distingue

significativamente dos tratados escritos por seus predecessores pois ao redigirem seus

manuais eles teriam se afastado do que o Estagirita considera o mais importante para a

persuasatildeo ndash a argumentaccedilatildeo atraveacutes do entimema (ἐνθύμημα) e do exemplo

(παράδειγμα) Para ele os que compuseram tratados de retoacuterica (incluindo obviamente

muitos sofistas) ocuparam-se somente de uma parte desta arte posto que soacute os

argumentos retoacutericos satildeo parte essencial dela e tudo o resto seria acessoacuterio Assim sendo

os predecessores de Aristoacuteteles nada diziam dos entimemas que satildeo o corpo da prova

(σῶμα τῆς πίστεως) antes dedicavam-se a maior parte dos seus tratados a questotildees

exteriores ao assunto tais como o ataque verbal o apelo agrave piedade o apelo agrave ira e outras

paixotildees semelhantes a estas que natildeo visam o assunto mas apenas manipular

emocionalmente o juiz (Ret 1354a 16-23)

Ao mesmo tempo em que Aristoacuteteles defendia uma retoacuterica racional com base na

demonstraccedilatildeo teacutecnica do verossiacutemil Goacutergias e seus disciacutepulos teorizavam e praticavam

uma retoacuterica elocutiva e emocional Este tipo de retoacuterica valorizava no discurso natildeo os

argumentos racionais mas o ritmo a harmonia o tom de voz sobretudo os efeitos

emocionais do discurso e a seduccedilatildeo irracional que a palavra habilmente usada exerce

sobre a alma dos ouvintes O discurso retoacuterico que Goacutergias designa por λόγος teria

fundamentalmente a capacidade de suscitar o medo a calma a alegria afastar a dor e ateacute

estimular a compaixatildeo (El Hel sect 8) Mediante o discurso retoacuterico seria possiacutevel ao

orador suscitar o medo repleto de espanto a compaixatildeo que provoca laacutegrimas abundantes

e um sentimento de nostalgia que afeta o espiacuterito dos ouvintes (Ibid sect 9)

Outrossim o sofista Goacutergias desenvolveu para a retoacuterica uma expressatildeo linguiacutestica

eloquente excedendo-se no uso das figuras de linguagem transformando-a numa

composiccedilatildeo erudita e ritmada no niacutevel esteacutetico da poesia O cuidado de Goacutergias com o

estilo foi o que conferiu a ele a fama de haver misturado a prosa com a poesia de tal

modo que o seu estilo chamado de gorgiazein (γοργιαζειν) foi considerado pelos antigos

como sinocircnimo de prosa poeacutetica incluindo o proacuteprio Aristoacuteteles (Ret 1404a 34-36) E a

principal razatildeo pela qual ele optou pela linguagem poeacutetica e natildeo pela linguagem corrente

eacute porque aquela possui mais eficazmente a capacidade de comover os ouvintes

Dimos Spatharas destaca que na concepccedilatildeo retoacuterica de Goacutergias existem dois tipos

de discursos que satildeo aduzidos como manifestaccedilatildeo do poder do λόγος a poesia e o

encantamento A poesia eacute descrita grosso modo como o discurso com meacutetrica e eacute

justamente esta caracteriacutestica que a distingue de todos os outros tipos de discurso Para

ele a expressatildeo poeacutetica de Goacutergias natildeo seria fruto de um mero capricho mas teria sido

desenvolvida para atender a uma crescente necessidade pelo discurso persuasivo Goacutergias

estaria cocircnscio de que fundara uma nova e sofisticada ldquoprosardquo similar agrave habilidade que a

poesia possui de seduzir e de moldar a alma dos ouvintes E as emoccedilotildees suscitadas pela

retoacuterica poeacutetica de Goacutergias seguiria regularmente o padratildeo utilizado no Elogio de Helena

pois ao entrar na alma dos ouvintes o discurso poeacutetico possuiria o poder de suscitar o

medo a compaixatildeo e uma seacuterie de outras emoccedilotildees Ademais os sinais psicoloacutegicos

atraveacutes dos quais a alma expressaria suas emoccedilotildees seriam as laacutegrimas e o temor

manifestado pela audiecircncia Para Spatharas o segundo exemplo do poder exercido pelo

λόγος adviria do domiacutenio do encantamento que sob o ponto de vista do senso comum

significa que as palavras exercem o poder de conduzir algueacutem a agir de uma maneira que

natildeo corresponde agraves suas intenccedilotildees originais Quando o poder de encantamento do λόγος

alcanccedila a opiniatildeo da alma esta seria encantada e uma vez persuadida seria levada a

mudar suas opiniotildees ou seja ela adotaria pontos de vista que anteriormente recusava

Sendo assim ao ser seduzida pelo λόγος a alma estaria alienada em relaccedilatildeo a si mesma

e suas accedilotildees estariam de acordo com o comando proveniente do encantamento

(SPATHARAS 2001 100-101)

Na visatildeo de Aristoacuteteles a funccedilatildeo da arte retoacuterica permanece sendo a persuasatildeo

puacuteblica poreacutem os meios de persuasatildeo natildeo devem ser redutiacuteveis ao apelo emocional e agrave

expressatildeo enunciativa ao inveacutes disso devem caracterizar-se essencialmente por formas

de argumentaccedilatildeo Sendo assim em oposiccedilatildeo a Goacutergias a concepccedilatildeo de Aristoacuteteles

estabelece que a retoacuterica constitui a arte da comunicaccedilatildeo racional e natildeo do puro

encantamento ou da pura sugestatildeo emotiva Aristoacuteteles tambeacutem critica Goacutergias por

vincular agrave retoacuterica a expressatildeo poeacutetica que este teria originalmente inventado (Ret 1404a

30-39)

Os poetas foram os primeiros como seria natural a dar um impulso a este aspecto Efetivamente palavras satildeo imitaccedilotildees e a voz eacute de todos os nossos oacutergatildeos o mais apropriado agrave imitaccedilatildeo Por isso as artes entatildeo estabelecidas foram a rapsoacutedia e a representaccedilatildeo teatral aleacutem de outras mais E uma vez que os poetas embora dizendo coisas fuacuteteis pareciam obter renome graccedilas agrave sua expressatildeo por esta mesma razatildeo foi um tipo de expressatildeo poeacutetica o primeiro a surgir como a de Goacutergias E ainda agora muitas pessoas sem instruccedilatildeo pensam que estes oradores os falam da forma mais bela

Para o Estagirita a expressatildeo proacutepria da poesia distingue-se da expressatildeo que eacute

apropriada ao discurso retoacuterico a qual se caracteriza por empregar a linguagem na sua

forma corrente e usual Aliaacutes seria ridiacuteculo empregar a extravagante expressatildeo poeacutetica

no discurso retoacuterico em detrimento da linguagem corrente e usual cuja principal

caracteriacutestica eacute a σαφής ou seja a clareza (Ibid 1404a 34-48) Desse modo a virtude

suprema da expressatildeo enunciativa (λέξις) a qual diz respeito agrave maneira pela qual o

conteuacutedo do discurso deve ser apresentado ao auditoacuterio eacute a clareza (ἔστω οὖν ἐκεῖνα

τεθεωρημένα καὶ ὡρίσθω λέξεως ἀρετὴ σαφῆ εἶναι) porque se no discurso retoacuterico natildeo

se comunicar algo com nitidez e inteligibilidade natildeo seraacute possiacutevel cumprir a sua funccedilatildeo

proacutepria qual seja provocar a adesatildeo dos ouvintes agraves teses que se lhes apresentam ao

consentimento atraveacutes de argumentos racionais (Ibid 1404b 1-5) Posto que a funccedilatildeo

proacutepria da linguagem consiste em remeter adequadamente para aquilo que significa a

clareza seraacute uma condiccedilatildeo imposta ao discurso retoacuterico O refinamento da expressatildeo

poeacutetica comum a exemplo das metaacuteforas distantes de Goacutergias (Ibid 1406b 8-16) aleacutem

de ser inadequado na arte retoacuterica por fazer o discurso parecer artificial e teacutecnico tende

a suprimir deste a clareza Portanto o objetivo maior do orador eacute esclarecer os ouvintes

acerca da investigaccedilatildeo a que se procede (Ibid 1357a 24) e instruiacute-los sobre o assunto

em discussatildeo a fim de que possam elaborar o melhor julgamento

Tendo em vista a importacircncia dada por Aristoacuteteles ao uso da linguagem na sua

forma corrente e usual eacute pertinente a anaacutelise de Maria F S Francisco sobre este assunto

Observamos que a expressatildeo poeacutetica de Goacutergias teria sido desenvolvida para atender a

uma crescente necessidade pelo discurso persuasivo mas conforme a interpretaccedilatildeo de

Francisco o Estagirita acharia pouco persuasivo o discurso que eacute veiculado conforme a

expressatildeo poeacutetica Ela destaca que na retoacuterica de Aristoacuteteles a limitaccedilatildeo na elevaccedilatildeo do

vocabulaacuterio deve ser levada muito a seacuterio pelo orador do contraacuterio o seu discurso perderaacute

o poder de persuasatildeo e natildeo obteraacute a adesatildeo dos ouvintes em relaccedilatildeo agrave opiniatildeo defendida

A exigecircncia por parte de Aristoacuteteles da escolha de vocabulaacuterio iria ao encontro de uma

expectativa do ouvinte em relaccedilatildeo ao orador o ouvinte espera que assuntos semelhantes

aos da vida comum sejam tratados e do ponto de vista lexical da mesma forma como se

faz na linguagem da vida cotidiana ele ainda espera que a fala do orador seja apropriada

ou verossiacutemil como condiccedilatildeo para lhe parecerem persuasivos seus argumentos Sendo

assim a despeito das opiniotildees sensatas defendidas pelo orador se ele natildeo as apresentar

com o vocabulaacuterio adequado proacuteximo da linguagem comum seu discurso pareceraacute pouco

convincente e com pouca probabilidade de ganhar a adesatildeo do auditoacuterio (FRANCISCO

1999 30)

Na retoacuterica de Aristoacuteteles o perfil proacuteprio da expressatildeo enunciativa consiste no fato

de ser delineado por referecircncia agrave poesia e ao discurso ordinaacuterio em relaccedilatildeo a cada um

dos quais verifica-se aproximaccedilotildees e distanciamentos No decorrer de sua exposiccedilatildeo

sobre a λέξις Aristoacuteteles faz inuacutemeras alusotildees agrave poesia e a linguagem do homem comum

que adquirem desse modo o papel de balizas situadas em extremos opostos a meia

distacircncia das quais se localiza o campo proacuteprio da expressatildeo retoacuterica Conforme

examinamos um dos princiacutepios fundamentais da eacutetica aristoteacutelica eacute o μεσοτeacuteς ou seja

ou o meio-termo ou a justa medida por esse motivo a accedilatildeo correta do ponto de vista eacutetico

deve sempre evitar os extremos tanto o excesso quanto a falta Todavia o mesmo

princiacutepio se aplica agrave arte retoacuterica pois tendo em vista a expressatildeo enunciativa o orador

deve perseguir a justa medida entre dois extremos viciosos natildeo deve utilizar uma

linguagem demasiadamente rasteira ou trivial tampouco uma linguagem acima do seu

valor mas deve visar aquilo que eacute adequado ou seja uma linguagem que veicule nomes

e verbos que satildeo ldquoproacutepriosrdquo Os nomes e os verbos proacuteprios que produzem clareza ao

discurso satildeo aqueles que designam cada objeto em linguagem comum por exemplo num

discurso dirigido a um puacuteblico comum seria mais adequado utilizar o verbo ldquocomprarrdquo

em vez de ldquomercarrdquo ou a palavra ldquoroupardquo em vez de ldquoindumentaacuteriardquo O discurso poeacutetico

por sua vez natildeo produz uma expressatildeo corrente mas ornamentada Eacute manifesto que a

expressatildeo poeacutetica natildeo eacute rasteira ou trivial mas estaacute longe de ser apropriada para um

discurso de prosa (Ret 1404b 5-12) Assim aqueles que se expressam poeticamente de

forma inapropriada introduzem no discurso retoacuterico o ridiacuteculo e o friacutevolo e em virtude

da esterilidade dessa forma de expressatildeo erram por falta de clareza Todavia conveacutem

sublinhar que nem todos os recursos linguiacutesticos que caracterizam a expressatildeo poeacutetica

satildeo rejeitados por Aristoacuteteles

Dos nomes e dos verbos de que o discurso eacute composto devem utilizar-se

pouquiacutessimas vezes e em situaccedilotildees muito especiacuteficas as palavras raras ou seja os

termos inusitados e obsoletos de difiacutecil compreensatildeo para o ouvinte comum Outrossim

os termos compostos comumente utilizados por Goacutergias como ldquoengenhosos-no-

mendigarrdquo ou ldquojurando-em-falso falsordquo e ldquojurando-com-sinceridaderdquo (Ibid 1405b 50-

1406a 1) Aristoacuteteles ainda recomenda que devem ser evitados no discurso retoacuterico por

serem demasiadamente poeacuteticos a utilizaccedilatildeo de glosas tal como a de Liacutecofron que

apelida Xerxes de ldquohomem-monstrordquo (Ibid 1406a 8-10) Da mesma forma os epiacutetetos

extensos inoportunos ou muito repetidos por exemplo em vez de dizer ldquocorrendordquo diz-

se ldquocorrendo com o impulso da almardquo ou em vez de dizer ldquoinspiraccedilatildeo das Musasrdquo diz-

se ldquorecebendo da Natureza a inspiraccedilatildeo das Musasrdquo (Ibid 1406a 30-32) Deve-se

tambeacutem evitar as metaacuteforas quando natildeo satildeo claras por derivarem de algo muito afastado

tal como praticava Goacutergias ao formular ldquosemeaste vergonhosamente improficuamente

ceifasterdquo e coisas deste jaez (Ibid 1406b 13-15)

Eacute manifesto que o sofista Goacutergias eacute censurado por Aristoacuteteles pela ecircnfase de sua

expressatildeo poeacutetica que carecia de simplicidade e clareza a qual natildeo objetivava provar

teses de maneira loacutegica e direta mas aspirava apenas os efeitos pateacuteticos do discurso e a

seduccedilatildeo irracional que a palavra habilmente manipulada eacute capaz de exercer sobre a

audiecircncia Todavia natildeo somente Goacutergias mas os sofistas em geral procuravam persuadir

sua audiecircncia apelando para os desejos puramente irracionais (άλογοι επιθυμίαι) da alma

humana que para o Estagirita satildeo todos aqueles que natildeo procedem de um ato preacutevio da

compreensatildeo Satildeo desse tipo todos os que se dizem ser naturais como os que procedem

do corpo (σώματος ὑπάρχουσαι) Dentre os desejos naturais destacam-se o desejo por

alimento a sede e a fome o desejo relativo a cada espeacutecie de alimento os desejos ligados

ao gosto e aos prazeres sexuais e em geral os desejos relativos ao tato ao olfato ao

ouvido e agrave vista Entretanto em relaccedilatildeo aos desejos racionais (μετὰ λόγου) os quais

procedem de um ato preacutevio do entendimento o Estagirita recomeda ao orador priorizaacute-

los em sua argumentaccedilatildeo visto que existem muitas coisas que as pessoas desejam adquirir

simplesmente porque ouviram falar delas e foram racionalmente persuadidas de que satildeo

agradaacuteveis (Ibid 1370a 24-34) Para tanto o bom orador precisa compreender e aplicar

a estrutura loacutegica do argumento retoacuterico constituiacuteda pelo entimema e pelo exemplo que

satildeo os dispositivos fundamentais para o exerciacutecio da arte retoacuterica

De acordo com a anaacutelise de E M Cope a argumentaccedilatildeo atraveacutes do entimema (e

do exemplo) designa o essencial no discurso retoacuterico e tudo o mais pode ser considerado

acessoacuterio porquanto todos os tipos de provas indiretas ou argumentos fora do assunto

seriam secundaacuterios como as roupas ou os ornamentos que cobrem um corpo Isto posto

o entimema na arte retoacuterica de Aristoacuteteles seria equivalente ao ldquocorpordquo que eacute o meio

artiacutestico de provar certas teses de maneira loacutegica e direta Para ele a expressatildeo aristoteacutelica

σῶμα τῆς πίστεως que traduzida quer dizer o ldquocorpo da provardquo significaria a substacircncia

ou a essecircncia da arte em detrimento a tudo aquilo que eacute considerado acessoacuterio no discurso

retoacuterico54 Desse modo a arte retoacuterica para Aristoacuteteles consistiria fundamentalmente no

procedimento de provocar ou aumentar a adesatildeo dos ouvintes agraves teses que se lhes

apresentam ao assentimento atraveacutes de argumentos racionais (λόγος) enquanto que o

caraacuteter do orador (ἦθος) o apelo agraves emoccedilotildees (πάθος) e a expressatildeo enunciativa (λέξις)

deveriam ser empregados somente como recursos auxiliares

Aristoacuteteles explicita que aqueles que anteriormente compuseram tratados de

retoacuterica ocuparam-se de uma pequena parte desta arte haja vista que somente os

argumentos retoacutericos fazem parte dela e tudo o mais seriam considerados acessoacuterios Ele

prossegue afirmando que seus predecessores nada escreveram acerca dos entimemas que

significa o corpo da prova em vez disso dedicaram-se amiuacutede a questotildees extriacutensecas ao

assunto (Ibid 1354a 16-21) E ao censuraacute-los por se concentrarem principalmente no

estiacutemulo de uma resposta emocional Aristoacuteteles estaacute declarando que eles apenas

escreveram sobre uma pequena parte da arte retoacuterica o que natildeo implica obviamente na

sua total desconsideraccedilatildeo Com efeito em exceccedilatildeo do entimema e do exemplo tudo o

mais parece ser acessoacuterio (προσθήκη) dentre as provas artiacutesticas (πίστεις ἔντεχνοι) pois

embora despertar as emoccedilotildees possa ser eficiente para colocar a audiecircncia ao lado do

orador e a expressatildeo enunciativa uacutetil e necessaacuteria em virtude do baixo niacutevel intelectual

do auditoacuterio o seu estudo natildeo seria o elemento mais importante da retoacuterica de Aristoacuteteles

nem seria rigorosamente um modo de persuasatildeo porque os modos de persuasatildeo satildeo

formas de argumentaccedilatildeo Pode-se concluir entatildeo que no sistema retoacuterico de Aristoacuteteles

somente a demonstraccedilatildeo entimemaacutetica designa a substacircncia das provas artiacutesticas

Eacute manifesto que no meacutetodo retoacuterico desenvolvido por Aristoacuteteles o entimema

possui a prioridade mais alta enquanto que os elementos exteriores agrave demonstraccedilatildeo satildeo

54 Escreve E M Cope a este respeito (COPE 1867 160) ldquoOf enthymeme the form of syllogism which rhetoric employs in drawing its conclusions which is in fact lsquothe bodyrsquo the solid substantial matter of proof ndash to which all other kinds of indirect proof such as the influence of character or appeals to the feelings interests passions of judge or audience are subsidiary and subordinate standing to the other in the relation of mere adjuncts or external appendageshelliplike dress or ornaments to the personrdquo

considerados supeacuterfluos E dado que quase todos os assuntos concernentes a arte retoacuterica

relacionam-se com a opiniatildeo puacuteblica o orador precisa levar em conta os elementos

exteriores ao conteuacutedo do discurso natildeo porque este procedimento eacute justo mas porque

em termos pragmaacuteticos eacute algo necessaacuterio Ele ainda assegura que aquilo que deve ser

almejado num discurso (judicial) eacute a demonstraccedilatildeo do que eacute justo mais do que natildeo

desagradar ou agradar os ouvintes O correto eacute competir com os fatos por si soacute de forma

que os demais elementos exteriores agrave demonstraccedilatildeo poderiam ser dispensados Contudo

eles satildeo relevantes no discurso retoacuterico em virtude do baixo niacutevel intelectual do auditoacuterio

sem os quais natildeo seria possiacutevel persuadi-lo acerca do que eacute justo e verdadeiro (Ibid

1404a 1-10)

Ao assegurar que se conquista a persuasatildeo retoacuterica atraveacutes de trecircs meios ndash λόγος

ἦθος e πάθος ndash o Estagirita estabelece a disposiccedilatildeo das provas artiacutesticas em ordem de

importacircncia (Ibid 1356a 27-32) a comeccedilar pela demonstraccedilatildeo racional ligada ao

entimema e ao exemplo em relaccedilatildeo a qual se pode servir quem for capaz de formar

silogismos (συλλογίσασθαι δυναμένου) que eacute o mesmo que raciocinar logicamente E

visto que Aristoacuteteles afirma categoricamente que a demonstraccedilatildeo entimemaacutetica eacute o corpo

das provas artiacutesticas entatildeo esta prova possui preeminecircncia sobre as demais Logo abaixo

da prova por demonstraccedilatildeo mediante o entimema e o exemplo reside a prova ligada ao

caraacuteter do orador cuja finalidade consiste em teorizar sobre os caracteres e as virtudes

(θεωρῆσαι περὶ τὰ ἤθη καὶ περὶ τὰς ἀρετὰς) E sob esta repousa a que estaacute ligada ao apelo

emocional que se ocupa das paixotildees o que cada uma eacute as suas qualidades que origem

tecircm e como se produzem (περὶ τὰ πάθη τί τε ἕκαστόν ἐστιν τῶν παθῶν καὶ ποῖόν τι καὶ

ἐκ τίνων ἐγγίνεται καὶ πῶς)

Aristoacuteteles assegura que o meacutetodo artiacutestico (ἔντεχνος μέθοδος) eacute o que se refere agraves

provas por persuasatildeo (πίστεις) e a prova por persuasatildeo eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo

(ἀπόδειξίς) pois os ouvintes satildeo mais eficazmente persuadidos quando entendem que

algo foi demonstrado (ἀποδεδεῖχθαι) Por isso o que Aristoacuteteles condena nos seus

predecessores consiste na ecircnfase dada aos discursos fora do assunto em questatildeo em

detrimento daquilo que eacute essencial na arte retoacuterica isto eacute a demonstraccedilatildeo da verdade ou

o que parece ser a verdade Dessarte os meios de persuasatildeo exteriores ao assunto se

configurariam num erro e mereceria sua reprovaccedilatildeo caso fossem empregados como o

principal meio de obter a persuasatildeo dos ouvintes (Ibid 1355a 5-1419-28) Aleacutem disso

Aristoacuteteles assegura que natildeo resta a menor duacutevida de que mateacuterias extriacutensecas ao assunto

satildeo descritas como artes por aqueles que definem outras coisas por exemplo o que deve

conter o proecircmio ou a narraccedilatildeo e cada uma das partes do discurso Ao ocuparem-se

dessas mateacuterias o escritores de manuais de retoacuterica natildeo se preocupavam senatildeo em como

poderiam criar no juiz uma certa disposiccedilatildeo emocional mas acerca das provas

propriamente artiacutesticas ou seja sobre aquilo que efetivamente torna o leitor haacutebil no uso

do entimema (ἐνθυμηματικός) eles natildeo produziram coisa alguma (Ibid 1354b 17)

Outra razatildeo que levou Aristoacuteteles a lanccedilar sua criacutetica contra seus predecessores foi

o fato deles privilegiarem um dos gecircneros da arte retoacuterica a saber o judicial (δικανικός)

e negligenciarem o gecircnero mais puro e nobre ou seja o deliberativo (συμβουλευτικός)

Embora o mesmo meacutetodo retoacuterico convenha tanto ao gecircnero judicial como ao

deliberativo e apesar da retoacuterica deliberativa ser mais nobre (καλλίονος) e mais uacutetil agrave

comunidade poliacutetica (πολιτικωτέρας) que a relativa a contratos os autores criticados por

Aristoacuteteles a desconsideravam e se esforccedilavam por elaborar a arte do discurso judicial

Na verdade isto ocorria porque eacute menos uacutetil dizer algo fora do assunto nos discursos

deliberativos e porque a retoacuterica poliacutetica eacute menos nociva que a judicial por ser de

interesse mais geral (κοινότερον) Outrossim os oradores criticados por Aristoacuteteles

primavam pelo gecircnero judicial porque nas cortes legais havia uma possibilidade maior de

se utilizar eficazmente de argumentos falaciosos a fim de influenciar a decisatildeo dos juiacutezes

No gecircnero deliberativo o ouvinte julga sobre assuntos que pessoalmente o afetam por

essa razatildeo aquele que aconselha soacute precisa demonstrar com exatidatildeo as suas teses Mas

nos discursos judiciais isso natildeo basta em vez disso existe toda a vantagem de cativar o

ouvinte pois os juiacutezes julgam sobre questotildees alheias e pelo fato de buscarem o seu

interesse e escutando parcialmente tendem satisfazer a vontade dos litigantes (Ibid

1354b 31-46)

Eacute manifesto pois que os oradores criticados por Aristoacuteteles (Ibid 1354a 19-23)

nada diziam dos entimemas que representam o corpo das provas artiacutesticas em vez disso

dedicavam-se a maior parte dos seus tratados a questotildees exteriores ao assunto (περὶ δὲ

τῶν ἔξω τοῦ πράγματος τὰ πλεῖστα πραγματεύονται) Estas dizem respeito agrave enfase dada

pelos oradores ao apelo emocional em detrimento da demonstraccedilatildeo racional E no

discurso retoacuterico o apelo agraves emoccedilotildees manifestava-se atraveacutes do ataque verbal calunioso

do apelo agrave piedade do apelo agrave ira e demais emoccedilotildees da alma semelhantes a estas que natildeo

visam o assunto mas influenciar afetivamente o juiz (διαβολὴ γὰρ καὶ ἔλεος καὶ ὀργὴ καὶ

τὰ τοιαῦτα πάθη τῆς ψυχῆς οὐ περὶ τοῦ πράγματός ἐστιν ἀλλὰ πρὸς τὸν δικαστήν)

A palavra grega διαβολὴ55 empregada por Aristoacuteteles na passagem acima a qual

foi traduzida pela expressatildeo ldquoataque verbalrdquo consiste em substituir a argumentaccedilatildeo

entimemaacutetica por um apelo simplesmente afetivo em vez de revelar que algo aconteceu

ou natildeo ou que as proposiccedilotildees do adversaacuterio natildeo satildeo logicamente consistentes o orador

procura atacar a sua personalidade o seu caraacuteter etc O ataque verbal caracteriza-se entatildeo

por introduzir na argumentaccedilatildeo retoacuterica elementos que natildeo satildeo relevantes na discussatildeo

como as consideraccedilotildees pessoais sobre o adversaacuterio Tal estratagema retoacuterico (tambeacutem

conhecido por argumentum ad hominem) era comumente empregado quando natildeo se podia

ou natildeo se queria oferecer razotildees sobre uma determinada questatildeo e ao inveacutes de atacar o

argumento do adversaacuterio atraveacutes de entimemas voltava-se contra a sua pessoa Pode-se

dizer que a artimanha do ataque verbal contra o adversaacuterio eacute o equivalente negativo da

prova psicoloacutegica referente ao caraacuteter do orador pois se esta visa conferir credibilidade

ao discurso do orador estribando-se no seu caraacuteter moral aquele procura desconstruir a

credibilidade do discurso mediante a depreciaccedilatildeo do caraacuteter daquele que o veicula

Aristoacuteteles ainda critica os oradores do seu tempo pelo emprego exagerado do apelo

agrave piedade (ἔλεος) Este estratagema retoacuterico (que tambeacutem eacute conhecido por argumentum

ad misericordiam) ocorre quando se apela aos sentimentos de compaixatildeo dos ouvintes

em detrimento dos fatos Em contextos carregados de emotividade o apelo agrave piedade pode

ser muito eficaz por isso nos tribunais de Atenas era utilizado com muita regularidade

Todavia o enfoque do apelo agrave piedade natildeo era a demonstraccedilatildeo de que determinado ato

foi justo ou natildeo ou se aconteceu ou natildeo mas unicamente o empenho em influir no acircnimo

da audiecircncia visando conduzi-la a emitir juiacutezos favoraacuteveis agrave causa do orador Por

exemplo diante de um tribunal o advogado de defesa negligenciando o meacuterito da

questatildeo procuraria enfatizar que seu cliente estaacute doente que eacute uma pobre viuacuteva ou coisas

deste jaez com o uacutenico objetivo de cegar os juiacutezes e manipular sua decisatildeo Disso conclui-

se que o grande equiacutevoco apontado por Aristoacuteteles na praacutetica retoacuterica de seus

predecessores consistiu no fato de confinarem-se no modo indireto de provar seus casos

bem como na negligecircncia do correto modo de apelar para as emoccedilotildees Por isso o desprezo

manifestado por Aristoacuteteles contra a retoacuterica afetiva natildeo possui um sentido absoluto mas

aplica-se apenas em certo sentido ou sob certo ponto de vista

55 O dicionaacuterio de Henry Georg Liddell e Robert Scott (A Greek-english Lexicon) indica os seguintes significados da palavra διαβολὴ falsa acusaccedilatildeo (false accusation) difamaccedilatildeo (slander) caluacutenia (calumny) e criar preconceito contra um adversaacuterio (create prejudice against an antagonist)

W W Fortenbaugh enfatiza que a anaacutelise de Aristoacuteteles (no segundo livro da

Retoacuterica) tornou clara a relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a argumentaccedilatildeo racional pois ao

interpretar o pensamento ou a crenccedila como a causa eficiente daquelas ele teria mostrado

que a resposta emocional constitui um comportamento inteligente e aberto agrave persuasatildeo

racional Aristoacuteteles teria se concentrado no lado cognitivo da resposta emocional e

deixado claro que qualquer emoccedilatildeo pode ser alterada por argumentos de modo que natildeo

eacute mais necessaacuterio confinar o apelo emocional ao proecircmio e ao epiacutelogo porque as emoccedilotildees

podem e devem ser suscitadas no discurso (como um todo) mediante argumentos

racionais O Estagirita entatildeo lanccedilaria matildeo da persuasatildeo pautada nos ouvintes e somada

a esta atitude introduziria a persuasatildeo atraveacutes da demonstraccedilatildeo entimemaacutetica numa

espeacutecie de coordenaccedilatildeo (FORTENBAUGH 200817-18)

No meacutetodo retoacuterico desenvolvido por Aristoacuteteles tal coordenaccedilatildeo faz com que o

apelo emocional seja empregado no discurso de maneira muito diferente do modo como

era empregado por muitos oradores incluindo Goacutergias e seus seguidores Pois enquanto

eles empregavam o apelo emocional de maneira exagerada e sem qualquer compromisso

com o caso em questatildeo o meacutetodo do Estagirita conecta o apelo agraves emoccedilotildees com a

argumentaccedilatildeo entimemaacutetica na medida em que enfatiza o emprego racional de cada

emoccedilatildeo particular em termos definicionais Ele natildeo nega que as emoccedilotildees podem mover

as pessoas em direccedilatildeo de um determinado juiacutezo ou mesmo alterar o seu rigor mas as

emoccedilotildees devem ser suscitadas pelo orador atraveacutes dos seus argumentos e natildeo mediante

assuntos fora de questatildeo Sendo assim o orador que pretende apelar para as emoccedilotildees dos

ouvintes de forma legiacutetima deve fazer por meio de argumentos racionais segundo os

princiacutepios que regem a demonstraccedilatildeo entimemaacutetica56 Por exemplo para suscitar o

sentimento de piedade ndash pesar em face de um mal destrutivo e penoso que acomete algueacutem

que natildeo merece ndash num determinado auditoacuterio e conduzi-lo a fazer doaccedilotildees financeiras a

uma instituiccedilatildeo de caridade que presta assistecircncia a idosos natildeo seria adequado ao orador

exibir idosos caqueacuteticos em laacutegrimas ou maltrapilhos a fim de comover os ouvintes

56 E M Cope corrobora esta interpretaccedilatildeo ao sustentar que haveria na retoacuterica de Aristoacuteteles duas maneiras distintas de suscitar as emoccedilotildees dos ouvintes A primeira seria o apelo emocional de forma cientiacutefica e a segunda o apelo emocional de forma natildeo-cientiacutefica No primeiro caso o apelo emocional eacute feito por meio do proacuteprio discurso ao passo que no segundo o apelo ocorre pela introduccedilatildeo de consideraccedilotildees fora do assunto em questatildeo (COPE 1867 4-5) ldquoNow this may be in two ways scientifically through the medium of the speech itself which is indeed one of modes of proof ndash of which there are three ndash and therefore forms part of the art of rhetoric in its strictest sense And unscientifically by introduction of considerations ab extra or beside the real point arguments ad hominem and ad captandum such as direct appeals to the feelings impassioned and exaggerated language or even as was often done the actual production of the widow and orphans or friends of a deceased person to excite and blind the judges to the real merits of the caserdquo

embora isto possa ser feito como um recurso auxiliar mas argumentar (com base nas

noccedilotildees sobre a piedade) que os idosos poderiam ser os pais dos ouvintes ou ainda que

estes poderatildeo estar no lugar daqueles caso sejam abandonados por seus filhos etc Tais

argumentos teriam efetivamente o objetivo de influenciar as emoccedilotildees dos ouvintes e por

conseguinte obter um juiacutezo favoraacutevel ao conteuacutedo do discurso poreacutem natildeo apelariam

diretamente para assuntos fora de questatildeo

Aristoacuteteles apresenta entatildeo aos que pretendem ser oradores a maneira que

considera eficaz para estimular nos ouvintes as diversas emoccedilotildees Ele defende o uso desse

expediente com base na noccedilatildeo de que o orador deve transformar a emoccedilatildeo experimentada

num recurso uacutetil para induzir os juiacutezos dos ouvintes em direccedilatildeo agravequilo que eacute conveniente

Pois em conformidade com a funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da arte retoacuterica que consiste em fazer

a justiccedila e a verdade prevalecer sobre seus contraacuterios o orador natildeo deve hesitar em apelar

para as emoccedilotildees de sua audiecircncia O modo de persuasatildeo ligado ao apelo emocional natildeo

eacute descartado simplesmente por Aristoacuteteles mas pode ser empregado no discurso retoacuterico

como acessoacuterio cuja funccedilatildeo eacute tornar mais eficiente a exposiccedilatildeo dos entimemas Sendo

assim natildeo foi o mero emprego da retoacuterica afetiva que Aristoacuteteles censurou em seus

predecessores sobretudo em relaccedilatildeo a Goacutergias haja vista que ele dedicou grande parte

do segundo livro da Retoacuterica a esse tema mas o seu emprego exagerado conjugado com

o desprezo daquilo que eacute mais relevante na arte retoacuterica ndash a demonstraccedilatildeo loacutegica na forma

do entimema e do exemplo

73 A refutaccedilatildeo da retoacuterica protagoacuterica

Aleacutem do desprezo agrave demonstraccedilatildeo loacutegica expresso tanto nos manuais de retoacuterica

como na praacutetica discursiva alguns predecessores de Aristoacuteteles foram tenazmente

censurados por negarem o fundamento de todo e qualquer discurso racional Na

Metafiacutesica o Estagirita enuncia o primeiro princiacutepio da ciecircncia do ser enquanto ser e das

ciecircncias em geral transmitido agrave posteridade sob o nome de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo

Este princiacutepio que na verdade eacute o mais firme e seguro de todos (βέβαιος) tambeacutem eacute o

mais conhecido natildeo dependendo de coisa alguma para subsistir Aristoacuteteles explicita o

princiacutepio em apreccedilo nos seguintes termos (Met 1005b 18-30)

Depois do que foi dito devemos definir esse princiacutepio Eacute impossiacutevel

que a mesma coisa ao mesmo tempo pertenccedila e natildeo pertenccedila a uma mesma coisa segundo o mesmo aspecto (e acrescentem-se tambeacutem todas as outras determinaccedilotildees que se possam acrescentar para evitar dificuldades de iacutendole dialeacutetica) Este eacute o mais seguro de todos os princiacutepios de fato ele possui as caracteriacutesticas acima indicadas Efetivamente eacute impossiacutevel a quem quer que seja acreditar que uma mesma coisa seja e natildeo seja como segundo alguns teria dito Heraacuteclito Com efeito natildeo eacute preciso admitir como verdade tudo o que ele diz E se natildeo eacute possiacutevel que os contraacuterios subsistam juntos no mesmo sujeito (e acrescente-se a esta premissa as costumeiras explicaccedilotildees) e se uma opiniatildeo que estaacute em contradiccedilatildeo com outra eacute o contraacuterio dela eacute evidentemente impossiacutevel que ao mesmo tempo a mesma pessoa admita verdadeiramente que a mesma coisa exista e natildeo exista

Natildeo obstante Aristoacuteteles assegura que existem alguns indiviacuteduos que recusam o

princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo os quais sustentam o disparate de que eacute possiacutevel que a

mesma coisa seja e natildeo seja Os indiviacuteduos mencionados por Aristoacuteteles certamente que

satildeo os sofistas mas ele tambeacutem declara que existem alguns filoacutesofos naturalistas que

tambeacutem negam o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo (Ibid 1006a 1-5) Em defesa do princiacutepio

de natildeo-contradiccedilatildeo e por conseguinte em defesa da proacutepria verdade Aristoacuteteles ataca os

sofistas mas o seu combate ocorreraacute dentro do proacuteprio campo destes qual seja o do

discurso Nesse sentido ao refutar os que sustentam a legitimidade de afirmaccedilotildees

contraditoacuterias como a que afirma que ldquoa mesma coisa ao mesmo tempo pertenccedila e natildeo

pertenccedila a uma mesma coisa segundo o mesmo aspectordquo ele os alinha em dois grupos

distintos ndash uns assim pensam por ignoracircncia e outros por convicccedilatildeo Aos primeiros ele

declara que natildeo se deve combater sua maneira de falar mas conveacutem dirigir sua

inteligecircncia ao passo que em relaccedilatildeo aos segundos conveacutem combater pela refutaccedilatildeo do

seu discurso (Ibid 1009a 15-20)

Todavia natildeo se deve discutir com todos do mesmo modo alguns precisam ser persuadidos outros devem ser forccedilados De fato os que escolheram este modo de ver por causa das dificuldades encontradas tecircm uma ignoracircncia facilmente sanaacutevel Com efeito na discussatildeo com estes natildeo nos defrontamos com discursos vazios mas com verdadeiros raciociacutenios Ao contraacuterio os que discorrerm exclusivamente por amor ao discurso soacute podem ser corrigidos com a refutaccedilatildeo do seu discurso tomando-o tal como eacute constituiacutedo soacute de nomes e de palavras

Dentre os sofistas que satildeo o alvo principal do ataque de Aristoacuteteles destaca-se

Protaacutegoras de Abdera com quem o Estagirita procura natildeo somente dialogar mas tambeacutem

refutar Na verdade a ignoracircncia (ἀπαιδευσία) de Protaacutegoras a respeito dos rudimentos

da loacutegica (que nasceria da ausecircncia de um conhecimento preliminar dos Analiacuteticos)

obriga Aristoacuteteles ldquodemonstrarrdquo o princiacutepio que por si soacute eacute indemonstraacutevel porque de

um lado eacute formalmente primeiro e de outro em razatildeo de implicar na possibilidade de

todas as demonstraccedilotildees (Ibid 1005b 1-5)

Na perspectiva de Aristoacuteteles pode-se demonstrar por meio da refutaccedilatildeo (ἀποδεῖξαι

ἐλεγκτικῶς) a impossibilidade de que o mesmo seja e natildeo seja desde que o adversaacuterio

diga alguma coisa Se porventura ele nada falar torna-se ridiacuteculo procurar dizer algo a

algueacutem que natildeo possui nada a dizer e na medida em que natildeo tem nada a dizer tal

indiviacuteduo seria semelhante a uma planta (ὅμοιος γὰρ φυτῷ) Todavia demonstrar algo e

demonstrar por refutaccedilatildeo (ἔλεγχος) satildeo coisas bem diferentes se algueacutem pretende

demonstrar o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo cairia inevitavelmente numa petitio principii

ndash postular o que se quer provar ndash mas se a causa da demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) fosse a

afirmaccedilatildeo de outro entatildeo haveria uma refutaccedilatildeo e natildeo propriamente uma demonstraccedilatildeo

Nesse sentido o adversaacuterio do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo eacute instigado a fazer um

desempenho epistecircmico miacutenimo ndash significar algo para si e para outro ndash e entatildeo eacute ensinado

sobre o fato de que com sua simples atitude ele jaacute pressupotildee o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo A demonstraccedilatildeo torna-se refutaccedilatildeo (ἔλεγχος) ao evidenciar que ao negar o

princiacutepio o proacuteprio adversaacuterio o supocircs ao comunicar algo pois a demonstraccedilatildeo por

refutaccedilatildeo deduz o princiacutepio de sua proacutepria negaccedilatildeo Aristoacuteteles identificaria nessa atitude

uma petitio principii pois quem afirma qualquer estado de coisas jaacute postula o princiacutepio

de natildeo-contradiccedilatildeo como verdadeiro Sendo assim o ponto de partida em todos os casos

desse gecircnero consiste simplesmente em exigir que o adversaacuterio signifique algo tanto para

si mesmo quanto para seu interlocutor (ἀλλὰ σημαίνειν γέ τι καὶ αὑτῷ καὶ ἄλλῳ) E se

porventura algueacutem aceita significar qualquer coisa que seja tanto para si quanto para

outro entatildeo haveraacute demonstraccedilatildeo por refutaccedilatildeo (Ibid 1006a 1-30)

A estrateacutegia de Aristoacuteteles consiste em substituir a demonstraccedilatildeo do princiacutepio em

apreccedilo que por sua natureza eacute impossiacutevel por outro tipo de demonstraccedilatildeo que lanccedila toda

a responsabilidade sobre o adversaacuterio A condiccedilatildeo de significar algo para si e para outro

constitui o ponto inicial da demonstraccedilatildeo por refutaccedilatildeo pois se aquele que nega o

princiacutepio satisfaz a condiccedilatildeo ele assume imediatamente a total responsabilidade

permitindo a seu interlocutor fugir do ocircnus de pressupor justamente o que estaacute em

questatildeo O adversaacuterio do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo ao cumprir a condiccedilatildeo de

significar algo para si e para outro deve confirmar involuntariamente seu compromisso

com o mesmo princiacutepio Tal empenho ocorre pela mera exigecircncia de falar sugerida ao

adversaacuterio ou ele se cala renunciando o seu caraacuteter especiacutefico de ser humano que eacute um

ser dotado de palavra ou entatildeo ele fala ou mesmo significa e por essa razatildeo renuncia agrave

possibilidade de negar o princiacutepio Sendo assim caso o adversaacuterio comprometa-se em

significar algo para si e para outro uma refutaccedilatildeo fundamental ocorre no mesmo

momento em que ele o faz considerando-se que certa porccedilatildeo delimitaacutevel da realidade eacute

o que se quer comunicar e natildeo uma outra

Consoante a anaacutelise de Enrico Berti se aquele que nega o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo diz uma uacutenica palavra e admite que ela tenha um uacutenico significado neste

exato momento jaacute haveraacute alguma coisa de definido de modo que ele significaraacute aquela

coisa e natildeo outra admitindo com isso que aquela coisa natildeo eacute outra Ele admitiraacute a

oposiccedilatildeo entre ser e natildeo ser certa coisa expressa pela afirmaccedilatildeo e negaccedilatildeo em que

consiste o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Assim no momento mesmo em que se chega a

defender sua tese quer dizer a negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo quem contradiz

natildeo nega mas o admite ou seja sustenta sua tese destruindo-a porque admitir o princiacutepio

equivale a destruir sua negaccedilatildeo Eacute manifesto pois que neste procedimento ocorre uma

peticcedilatildeo de princiacutepio mas nela cai apenas quem sustenta a tese isto eacute quem nega o

princiacutepio o qual por conseguinte se pode considerar refutado (BERTI 1998 97-98)

Em conformidade com a doutrina protagoacuterica do homem-medida se uma coisa

parece bela a um e feia a outro fria a um quente a outro grande a um pequena a outro

entatildeo inevitavelmente seraacute as duas coisas ao mesmo tempo Natildeo existiria mais qualquer

objetividade nas coisas cada indiviacuteduo teria sua proacutepria noccedilatildeo de verdade e todos os

pontos de vista seriam igualmente verdadeiros No entanto Aristoacuteteles sustenta que se a

respeito do mesmo sujeito satildeo verdadeiras ao mesmo tempo todas as afirmaccedilotildees

contraditoacuterias eacute manifesto que todas as coisas se reduziratildeo a uma soacute (ἔτι εἰ ἀληθεῖς αἱ

ἀντιφάσεις ἅμα κατὰ τοῦ αὐτοῦ πᾶσαι δῆλον ὡς) E na hipoacutetese de que determinado

predicado pode ser tanto negado quanto afirmado de todas as coisas conforme defende

Protaacutegoras e seus seguidores entatildeo seratildeo a mesma coisa um ldquotrirremerdquo (τριήρης) uma

ldquoparederdquo (τοῖχος) e um ldquohomemrdquo (ἄνθρωπος) consequecircncia que eles efetivamente natildeo

admitiriam (Ibid 1007b 18-23)

Uma vez que todas as coisas se reduzem a uma soacute por exemplo ldquohomemrdquo ldquo Deusrdquo

e ldquotirremerdquo e suas respectivas negaccedilotildees entatildeo inevitavelmente seratildeo a mesma coisa E

se de cada coisa pode-se igualmente predicar afirmaccedilatildeo (κατάφασις) e negaccedilatildeo

(ἀπόφασις) como ldquobrancordquo e ldquonatildeo-brancordquo nada poderaacute distinguir-se de outra pois caso

se distinguisse tal diferenccedila constituiria algo verdadeiro e peculiar agravequela coisa A

propoacutesito a verdade consiste em afirmar aquilo que eacute e negar aquilo que natildeo eacute ou ainda

em afirmar que o ser eacute e que o natildeo-ser natildeo eacute enquanto que o falso consiste em afirmar

que o ser natildeo eacute ou que o natildeo-ser eacute Por isso quem diz de uma coisa que eacute ou que natildeo eacute

ou afirmaraacute o verdadeiro ou afirmaraacute o falso Mas no caso em que natildeo se diz a verdade

distingindo afirmaccedilatildeo e negaccedilatildeo natildeo se diz nada e natildeo pode existir nada Posto dessa

forma a discussatildeo com um adversaacuterio que nega o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo tornar-se-

ia inviaacutevel porque ele nada diria ndash nem que a coisa eacute assim nem que natildeo eacute assim mas

afirmaria que eacute assim e natildeo-assim (Ibid 1008a 24-35)

Outrossim quando ocorre a oposiccedilatildeo entre duas opiniotildees propriamente

contraditoacuterias uma em relaccedilatildeo agrave outra como no exemplo jaacute enunciado de ldquobrancordquo e natildeo-

brancordquo conforme outro princiacutepio loacutegico trazido a baila por Aristoacuteteles qual seja o

princiacutepio do terceiro excluiacutedo necessariamente uma opiniatildeo seraacute verdadeira e a outra

falsa sendo pois logicamente impossiacutevel que ambas sejam simultaneamente verdadeiras

ndash ou ldquoa neve eacute brancardquo ou ldquoa neve natildeo eacute brancardquo sendo pois impossiacutevel uma terceira

alternativa Assim entre os dois opostos da contradiccedilatildeo natildeo existiria um termo

intermediaacuterio (τῶν δ᾽ ἀντικειμένων ἀντιφάσεως μὲν οὐκ ἔστι μεταξύ) de sorte que o

conhecimento de qual eacute a opiniatildeo falsa coincidiria imediatamente com o conhecimento

de qual eacute a verdadeira e vice-versa (Ibid 1057a 34-35) Isto posto Protaacutegoras negaria

tanto o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo como o princiacutepio do terceiro excluiacutedo porque

negaria a proacutepria oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso admitindo que duas posiccedilotildees entre si

contraditoacuterias podem ser ambas verdadeiras ou ambas falsas

Com efeito caso se sustente que todos igualmente se enganam e todos digam a

verdade entatildeo quem sustentar tal tese natildeo poderaacute abrir a boca nem falar posto que

afirmaria certas coisas e ao mesmo tempo as negaria E se porventura algueacutem natildeo pensa

nada e indiferentemente crecirc e natildeo crecirc natildeo seraacute diferente das plantas (Ibid 1008b 8-12)

Todavia Aristoacuteteles sustenta que entre aqueles que negam o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo fica muito evidente que nenhum deles efetivamente coloca-se nessa posiccedilatildeo

(ὅθεν καὶ μάλιστα φανερόν ἐστιν ὅτι οὐδεὶς οὕτω διάκειται οὔτε τῶν ἄλλων οὔτε τῶν

λεγόντων τὸν λόγον τοῦτον) ou seja eles negam o princiacutepio pelo menos

discursivamente mas natildeo com suas accedilotildees (Ibid 1008b 12-17)

Daiacute deriva com a maacutexima evidecircncia que ningueacutem estaacute nessa condiccedilatildeo nem os que sustentam essa doutrina nem os outros De fato por que motivo quem raciocina desse modo vai verdadeiramente agrave

Megara e natildeo fica em casa tranquumlilo contentando-se simplesmente com pensar em ir E por que logo de manhatilde natildeo se deixa cair num poccedilo ou num precipiacutecio quando os depara mas evita isso cuidadosamente como se estivesse convencido de que cair ali natildeo eacute absolutamente coisa natildeo-boa e boa Eacute claro portanto que ele considera a primeira coisa melhor e a outra pior

Com base na passagem supracitada Aristoacuteteles afirma que os que em teoria negam

o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo mas o pressupotildeem por suas accedilotildees ndash porque eles natildeo se

deixam cair num poccedilo (φρέαρ) ou num precipiacutecio (φάραγξ) quando estes satildeo percebidos

ndash devem tambeacutem admitir que algo determinado eacute um homem e que outra coisa natildeo o eacute

(ἄνθρωπον τὸ δ᾽ οὐκ ἄνθρωπον) e que algo eacute doce e que outra coisa natildeo o eacute (γλυκὺ τὸ δ᾽

οὐ γλυκὺ) Eles tambeacutem natildeo admitem em seu comportamento praacutetico que todas as coisas

satildeo iguais sendo manifesto que natildeo agem conforme este pressuposto ao considerarem

que seja melhor beber aacutegua ou ver um homem eles vatildeo imediatamente em busca dessas

coisas e natildeo o contraacuterio (Ibid 1008b 17-23)

Aristoacuteteles com efeito natildeo se limita a enunciar a foacutermula geral de sua

demonstraccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo mas a desdobra articularmente tomando

em exame as posiccedilotildees concretas dos que negavam direta ou indiretamente o princiacutepio em

apreccedilo e refutando-as com argumentaccedilotildees de tipo pragmaacutetico que consistem em

enfatizar uma discrepacircncia entre a tese sustentada discursivamente e o comportamento

praacutetico Pode-se assegurar entatildeo que o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo natildeo se evidencia

somente como a condiccedilatildeo de possibilidade do pensamento teoacuterico (θεωρητικῆς διανοίας)

mas na circunstacircncia de que todo falar e todo agir subsiste e tem sucedimento em

concordacircncia com ele

De acordo com Aristoacuteteles o pensamento teoacuterico o qual se ocupa de todos aqueles

entes com princiacutepios que natildeo podem ser de outro modo natildeo visa a accedilatildeo (πρακτικῆς) nem

a produccedilatildeo (ποιητικῆς) mas eacute executado de uma forma correta ou incorreta conforme

detecta a verdade ou a falsidade pois esta eacute em geral a funccedilatildeo de todo o pensamento

Todavia a funccedilatildeo do pensamento praacutetico (πρακτικῆς διανοίας) que considera aqueles

entes com princiacutepios que podem ser de outra maneira eacute obter a verdade que corresponde

agrave accedilatildeo correta Agrave vista disso a εὐπραξία que significa o bem agir tanto na vida puacuteblica

como na vida privada natildeo existe na accedilatildeo sem o pensamento teoacuterico e a disposiccedilatildeo eacutetica

(Eacutet Nic 1139a 25-35) Cabe ainda frisar a este respeito que o Estagirita define a

prudecircncia como ldquoἀρετὴ διανοίαςrdquo ou seja como a virtude da inteligecircncia do pensamento

ou da razatildeo atraveacutes da qual se pode tanto deliberar adequadamente sobre os bens e os

males que conduzem agrave felicidade quanto discernir a justa medida a fim de evitar os

extremos do excesso e da falta

No diaacutelogo Teeteto Platatildeo atribui a Protaacutegoras a tese segundo a qual para quem estaacute

doente aquilo que come aparece e eacute amargo mas para quem estaacute saudaacutevel aparece e eacute o

contraacuterio e nenhum dois dois seria saacutebio razatildeo pela qual natildeo se deve acusar o doente de

ser ignorante em virtude de sua opiniatildeo nem o saudaacutevel de saacutebio por ter uma opiniatildeo

contraacuteria (Teet 166e) Entretanto a posiccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre este assunto eacute a de

aquele que defende tal doutrina natildeo o faz com base na ciecircncia mas na pura opiniatildeo por

isso ele deveria se preocupar em procurar a verdade assim como deve preocupar-se com

a sauacutede quem estaacute enfermo e natildeo quem eacute saudaacutevel Porquanto quem possui somente

opiniatildeo em comparaccedilatildeo com aquele que possui ciecircncia certamente natildeo estaacute em

condiccedilotildees de sauacutede relativamente agrave verdade (Met 1008b 27-30) E a fim de descobrir o

que efetivamente eacute natural o Estagirita sublinha que eacute necessaacuterio conduzir as

investigaccedilotildees de preferecircncia para as coisas em seu estado natural e natildeo para as

deterioradas (διεφθαρμένοις) Assim para estudar o homem conveacutem considerar aquele

que estaacute nas melhores condiccedilotildees possiacuteveis (βέλτιστα διακείμενον) de corpo e alma (Pol

1254b 5-9)

Eacute obvio que Aristoacuteteles natildeo nega que duas pessoas possam ter percepccedilotildees opostas

em relaccedilatildeo ao mesmo objeto o indiviacuteduo saudaacutevel pode perceber o mel como doce

enquanto que o doente pode percebecirc-lo como amargo poreacutem natildeo significa que ambas as

percepccedilotildees estejam em peacute de igualdade quanto agrave sua veracidade Pois a percepccedilatildeo de um

homem em estado natural seria mais certa ou mais preferiacutevel do que a percepccedilatildeo de um

homem doente Assim o criteacuterio epistecircmico das percepccedilotildees em geral que garantiria que

uma percepccedilatildeo eacute mais certa ou mais preferiacutevel que outra eacute essencialmente o mesmo que

fundamenta as ἔνδοξα uma percepccedilatildeo que pode ser repetida por todas as pessoas

(saudaacuteveis) ou pela maioria delas deve corresponder ao que tem de ser natildeo sendo possiacutevel

que este fato seja um engano e se a maioria das pessoas percebe o mel como doce e natildeo

como amargo isto jaacute seria um indiacutecio de que esta percepccedilatildeo eacute mais verdadeira que falsa

Ao explicar como a percepccedilatildeo opera Aristoacuteteles assegura que no caso de sensiacuteveis

proacuteprios de cada sentido a verdade atribuiacutedo a ela deve ser quase absoluta Por sensiacutevel

proacuteprio de cada sentido ele se refere a um que natildeo possa ser percebido por outro sentido

ndash a visatildeo em relaccedilatildeo agraves cores a audiccedilatildeo em relaccedilatildeo aos diversos sons etc ndash e sobre o qual

natildeo se pode estar em erro Assim cada sentido tem discernimento quanto a seus sensiacuteveis

proacuteprios e natildeo comete erros quanto a se haacute cor ou quanto a se haacute som mas somente sobre

o que a coisa colorida eacute ou onde se localiza ou o que a coisa que emite som eacute e onde se

localiza (Sob alm 418a 1-16) Todavia essas asserccedilotildees seguras pressupotildeem que os

sentidos estejam operando adequadamente em condiccedilotildees que natildeo os impeccedilam de alcanccedilar

seu fim natural (Eacutet Nic 1153a 14-16) Portanto a percepccedilatildeo de sensiacuteveis proacuteprios eacute

verdadeira ou tem o miacutenimo grau possiacutevel de erro (Sob alm 428b 18-20) ao menos

enquanto o objeto sensiacutevel continua a efetar o sentido da mesma maneira (Ibid 428b 25-

30)

Aleacutem do exposto eacute manifesto para Aristoacuteteles que diferenccedilas de graus satildeo

inerentes agrave natureza das coisas (ἀλλὰ τό γε μᾶλλον καὶ ἧττον ἔνεστιν ἐν τῇ φύσει τῶν

ὄντων) de sorte que natildeo se pode dizer que satildeo pares o dois e o trecircs nem se pode dizer

que erra do mesmo modo quem confunde o quatro com o mil e visto que eles natildeo erram

do mesmo modo eacute certo que um dos dois erra menos e estaacute mais na verdade Ele tambeacutem

sustenta que se estar mais na verdade significa proacuteximo (ἐγγύτερος) da verdade deveraacute

existir uma verdade absoluta em relaccedilatildeo a qual o que estaacute mais proacuteximo eacute tambeacutem o mais

verdadeiro (εἴη γε ἄν τι ἀληθὲς οὗ ἐγγύτερον τὸ μᾶλλον ἀληθές) Mas ainda que natildeo

exista tal verdade absoluta existe certamente algo mais seguro e mais veriacutedico

(βεβαιότερον καὶ ἀληθινώτερον) ndash a verossimilhanccedila ndash que refutaria a doutrina de

Protaacutegoras segundo a qual o pensamento estaria impedido de determinar qualquer coisa

como certa (Met 1008b 31-1009a 5)

Com efeito longe do conhecimento humano e suas sensaccedilotildees serem a medida da

realidade conforme apregoa a doutrina subjetivista de Protaacutegoras eacute a realidade que deve

medir objetivamente a soma e o valor do conhecimento O conhecimento humano natildeo

pode determinar a natureza das coisas pois sua tarefa eacute justamente adaptar-se agrave natureza

delas a fim de atingir a verdade Desse modo na visatildeo de Aristoacuteteles quando o sofista

Protaacutegoras afirma que o homem eacute a medida de todas as coisas referindo-se ao indiviacuteduo

que conhece e percebe sustentaria algo absurdo embora aparente ser engenhoso (Ibid

1053a 31-1053b 3) Aristoacuteteles concebe isso do ponto de vista de sua epistemologia

segundo a qual existe uma realidade independente dos nossos conhecimentos e opiniotildees

(Ibid 1051b 5-10) e contrastando com ela a doutrina de Protaacutegoras de acordo com a

qual nada existiria objetivamente salvo o que cada um conhece e percebe

Visto que para Protaacutegoras o calor e o frio ou o doce e o amargo natildeo existem

efetivamente na natureza mas dependem da percepccedilatildeo de cada indiviacuteduo em particular

pode-se alvitrar por conseguinte que a justiccedila e a injusticcedila ou o certo e o errado tambeacutem

possuem uma existecircncia subjetiva e irreal Nesse sentido natildeo pode haver na natureza

princiacutepios absolutos que determinem as relaccedilotildees entre os homens por isso tudo

dependeria daquilo que aparece no momento a cada indiviacuteduo (GUTHRIE 2010 79)

Cabe ainda lembrar que o fragmento Δισσοὶ λόγοι atribuiacutedo a Protaacutegoras rejeita a tese

segundo a qual uma coisa eacute o justo e outra o injusto distinto tanto na realidade como no

discurso Ao considerar o tema sobre o justo e o injusto o autor do fragmento assevera

que para algumas pessoas haveria uma diferenccedila entre o justo e o injusto mas para outras

a mesma coisa seria justa e injusta e eacute justamente esta perspectiva que ele tenciona

defender O mesmo ponto de vista relativista se aplicaria ao que eacute considerado bom e

ruim verdadeiro e falso etc E se o homem eacute medida de todas as coisas significa que a

maneira como as coisas se apresentam a um homem para ele constitui a verdade e o

modo como se apresenta a um outro para este tambeacutem eacute a verdade Todavia nenhum

deles pode atribuir erro agrave opiniatildeo do outro pois se um concebe as coisas de uma certa

maneira para ele eacute assim o que significa simplesmente que a verdade eacute relativa ao ponto

de vista de cada um O ceacutelebre dito de Protaacutegoras significa que o conhecimento humano

natildeo depende de normas absolutas mas de exigecircncias situacionais com que se depara o

homem tanto como indiviacuteduos quanto como espeacutecie Ademais natildeo haveria um padratildeo

eacutetico absoluto em favor do tipo de julgamento eacutetico situacional que varia conforme os

indiviacuteduos e as circunstacircncias

A despeito disso Protaacutegoras concedia no seu pensamento um certo espaccedilo agraves

opiniotildees convencionais sobre a verdade e a moral mas nenhuma delas seria mais

verdadeira do que outra de tal modo que se para algum homem parece sinceramente que

eacute bom roubar a ele pareceraacute que essa eacute a verdade Todavia a grande maioria dos homens

que amiuacutede condena o roubo como uma praacutetica imoral poderaacute ser persuadida pelo orador

no sentido contraacuterio pois ele pode sustentar que tal crenccedila natildeo eacute em si mesma verdadeira

e enfatizar aquilo que momentacircneamente aparenta ser o melhor Sendo assim Protaacutegoras

opta por abandonar a prova da verdade ou da falsidade e a substitui pela prova pragmaacutetica

(Ibid 2010 80-81) Em conformidade com esta noccedilatildeo natildeo haveria uma verdade em si

mesma objetiva e universalmente vaacutelida mas a verdade dependeria de cada indiviacuteduo e

o mais relevante para o orador seria reconhecer aquilo que eacute nocivo e uacutetil agrave conveniecircncia

eacutetica e poliacutetica dos homens e persuadi-los disso

Aristoacuteteles tambeacutem atribui um espaccedilo consideraacutevel agraves opiniotildees convencionais sobre

a verdade e a moral mas diferente de Protaacutegoras ele natildeo estaacute disposto a subscrever a

concepccedilatildeo de que as opiniotildees satildeo igualmente vaacutelidas pelo contraacuterio eacute necessaacuterio que o

orador procure em cada caso a verdade da melhor maneira possiacutevel (Eacutet Nic 1139b 13-

14) Isto ocorre porque natildeo eacute necessaacuterio procurar o mesmo grau de rigor para todas as

aacutereas cientiacuteficas nem para todas as artes mas isto natildeo significa abrir matildeo do que eacute mais

seguro e mais veriacutedico Assim no terreno da arte retoacuterica eacute necessaacuterio satisfazer-se com

a indicaccedilatildeo da verdade aproximadamente em linhas gerais e falar de coisas que satildeo

verdadeiras no mais das vezes e natildeo absolutamente

Considerando-se entatildeo a impossibilidade de se obter na vida praacutetica uma verdade

absoluta o Estagirita propotildee contentar-se com o verossiacutemil isto eacute com aquilo que parece

o mais provaacutevel porque ainda que natildeo exista em relaccedilatildeo a um dado assunto a verdade

absoluta existe certamente algo mais seguro e mais veriacutedico Aleacutem do mais o verossiacutemil

(no acircmbito natural) natildeo eacute de forma alguma independente do estado de coisas pois se ele

eacute possiacutevel eacute em virtude da existecircncia de um fato isto eacute aquele que acontece a maior parte

das vezes que neste caso recebe a designaccedilatildeo de provaacutevel O verossiacutemil tambeacutem pode

ser compreendido (no acircmbito social) como uma proposiccedilatildeo geralmente admitida o que

significa que natildeo eacute qualquer opiniatildeo ou crenccedila que conta jaacute que ele faz parte do universo

cultural ou de crenccedilas geralmente admitidas num determinado contexto social

Para o Estagirita no caso de algueacutem atuar com pretenccedilotildees filosoacuteficas precisa ter

em vista a verdade mas os que atuam segundo a retoacuterica precisam ter em vista natildeo mais

a verdade mas as opiniotildees qualificadas bem-fundamentadas que todo mundo admite ou

a maioria das pessoas ou os filoacutesofos e dentre estes os mais notaacuteveis e eminentes

Porquanto se as pessoas em geral acreditam em algo por exemplo que o roubo e o

incesto satildeo praacuteticas imorais isto jaacute seria um indiacutecio que de as opiniotildees a este respeito satildeo

mais verdadeiras que falsas e por essa razatildeo dignas de anuecircncia Dessarte o bom orador

agrave maneira do dialeacutetico precisa ser capaz de ao fazer frente a um argumento defender suas

teses por meio de opiniotildees tatildeo geralmente aceitas quanto possiacutevel (Arg Sof 183b 5-7)

Em conexatildeo com este assunto eacute pertinente salientar a distinccedilatildeo feita por Aristoacuteteles

entre a lei particular e a lei comum (νόμος δ᾽ ἐστὶν ὁ μὲν ἴδιος ὁ δὲ κοινός) Ele define a

que eacute particular (ἴδιος) como o conjuito de leis escritas atraveacutes das quais se rege cada

cidade enquanto que a comum (κοινός) constitui o conjunto das leis natildeo escritas (ἄγραφοι

νόμοι) sobre as quais parece haver um consenso (παρὰ πᾶσιν ὁμολογεῖσθαι δοκεῖ) entre

todos os homens (Ret 1368b 10-13) Em outro passo (Ibid 1373b 4-10) ele assegura

que a lei particular eacute a que foi definida por cada povo quer seja escrita ou natildeo escrita ao

passo que a lei comum a que eacute segundo a natureza (κατὰ φύσιν) Agrave vista disso haveria na

natureza um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos os homens de algum

modo reconheceriam mesmo que natildeo haja entre eles comunicaccedilatildeo ou acordo Aliaacutes todos

os que observam as leis comuns natildeo poderiam eventualmente ter-se encontrado e se

porventura se encontraram natildeo falavam a mesma liacutengua razatildeo pela qual elas devem ter

uma origem na natureza e natildeo por convenccedilatildeo

Com efeito dentre as leis que natildeo foram forjadas pela convenccedilatildeo mas pela natureza

Aristoacuteteles destaca a gratidatildeo a quem nos faz algum bem o pagamento do bem recebido

com o mesmo bem e o auxiacutelio aos amigos nas suas necessidades (Ibid 1374a 30-33)

Aleacutem dessas poder-se-ia acrescentar o dever de cultuar os deuses e de honrar os pais a

hospitalidade para com os estrangeiros ou ainda a proibiccedilatildeo do incesto (GUTHRIE

2007 113 115) as quais em hipoacutetese alguma poderiam ser relativizadas posto que a

violaccedilatildeo das leis natildeo escritas satildeo um delito mais grave do que a violaccedilatildeo das leis escritas

(Ret 1375a 27-31) Pode-se assegurar entatildeo que a lei da natureza existe porque haacute

efetivamente um conceito natural e universal de certo e errado um padratildeo eacutetico absoluto

independente de um julgamento eacutetico situacional que varia conforme os indiviacuteduos e as

circunstacircncias que poderia ser (indiferentemente) de uma maneira ou de outra

Apesar de ser inexequiacutevel ao orador o acesso agrave verdade absoluta (cuja prerrogativa

pertence ao filoacutesofo) natildeo conveacutem que ele se renda ao relativismo e fique satisfeito com

qualquer opiniatildeo desqualificada como se todas as opiniotildees fossem igualmente

verdadeiras Porquanto se todas as percepccedilotildees e todos os juiacutezos morais devem ser aceitos

como igualmente verdadeiros entatildeo nenhum argumento que expresse juiacutezos perceptivos

e morais seria superior a um outro o que seria um equiacutevoco posto que existem aqueles

juiacutezos que representam uma aproximaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave verdade ao passo que outros satildeo

expressamente falsos Portanto se o relativismo protagoacuterico prevalecer tornaraacute a poliacutetica

inteiramente impraticaacutevel e poderaacute fomentar consequecircncias danosas para a cidade haja

vista que a justiccedila e a injusticcedila poderatildeo ser defendidas indiferentemente opondo-se agrave

funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da arte retoacuterica que consiste em combater a perversatildeo da verdade e

da justiccedila

Segundo a visatildeo relativista de Protaacutegoras mediante a percepccedilatildeo imaginaccedilatildeo e

pensamento todas as coisas produzidas pela natureza satildeo meras opiniotildees variando no

tempo e no espaccedilo de indiviacuteduo para indiviacuteduo ou ainda no mesmo indiviacuteduo Todavia

o fato do homem ser a medida de todas as coisas natildeo significa que ele tem o poder total

para fazer com que as coisas em geral sejam ou natildeo sejam mas tem o poder pleno para

decidir o que elas satildeo ou que elas podem ou devem ser e quais natildeo deveratildeo passar agrave

existecircncia ndash eacute justamente isso que significa ldquodas coisas que satildeo que elas satildeo das coisas

que natildeo satildeo que elas natildeo satildeordquo Por certo dois homens podem ter percepccedilotildees e opiniotildees

opostas sobre coisas que parecem idecircnticas ou iguais e as duas opiniotildees seriam

verdadeiras segundo o ponto de vista de cada indiviacuteduo que as tem Desse modo natildeo

haveria espaccedilo em sua teoria para o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo porque tanto as

percepccedilotildees quanto as opiniotildees sempre seriam verdadeiras ainda que opostas entre si

razatildeo pela qual as pessoas soacute poderiam mudar suas opiniotildees ao serem persuadidas por

outras melhores ou mais fortes Aleacutem disso as ideias gerais sobre a justiccedila o bem o uacutetil

as leis os deuses etc satildeo para Protaacutegoras meras convenccedilotildees nascidas de um consenso

entre os homens para a utilidade da vida em comum Por isso natildeo haveria nenhuma

verdade universal e necessaacuteria nem sequer uma aproximaccedilatildeo em relaccedilatildeo a ela mas

apenas as opiniotildees e as teacutecnicas nascidas da experiecircncia e da observaccedilatildeo para o uso e a

accedilatildeo humana Tendo isto em conta a arte retoacuterica deve persuadir as pessoas de quais satildeo

as melhores opiniotildees e as melhores teacutecnicas para cada cidade

Eacute manifesto que ao elaborar sua teoria acerca da arte retoacuterica o Estagirita rejeita a

concepccedilatildeo de que no acircmbito dessa arte seja possiacutevel veicular verdades absolutas Por

certo a funccedilatildeo essencial da retoacuterica consiste em obter a anuecircncia dos ouvintes agraves teses

que se lhes apresentam ao assentimento mediante argumentos racionais mas sem as

exigecircncias excessivas da racionalidade cientiacutefica Contudo sem degringolar para o seu

extremo oposto qual seja o do relativismo Aristoacuteteles natildeo considera todos os ideais

sociais legais poliacuteticos e morais sem sentido ou sem nenhum valor de modo que todas

as opiniotildees sejam igualmente vaacutelidas Sua retoacuterica tambeacutem natildeo proclama agraves pessoas que

parem com seus conflitos de opiniotildees supondo que todas as coisas satildeo igualmente boas

ou maacutes Pelo contraacuterio ele submete as opiniotildees sua interpretaccedilatildeo e sua aplicaccedilatildeo agrave uma

anaacutelise criacutetica incessante de modo que seu pensamento retoacuterico estaria fortemente ligado

ao senso comum mas a um tipo de senso comum que eacute qualificado e aberto agrave criacutetica Fica

claro entatildeo que embora a retoacuterica seja uma forma de racionalidade especificamente

distinta da ciecircncia ela eacute estruturada por argumentaccedilotildees o que natildeo apenas lhe confere um

caraacuteter teacutecnico preciso mas permite-lhe em algum grau aproximar-se da verdade

Outrossim a retoacuterica de Aristoacuteteles eacute explicitamente favoraacutevel ao pluralismo de

ideias agrave liberdade de opiniatildeo ao jogo de interesses e motivaccedilotildees humanos As

argumentaccedilotildees retoacutericas precisam ser formadas com base em premissas geralmente

aceitas pelo auditoacuterio poreacutem os ideais e os fins aprovados por este natildeo devem ser tratados

como valores absolutos Isto ocorre porque a realidade social e poliacutetica no interior da

qual a arte retoacuterica opera mais eficazmente extrapola os estreitos limites da demonstraccedilatildeo

cientiacutefica Natildeo obstante a arte retoacuterica pode funcionar como a ferramenta mais adequada

na permanente luta pelo progresso e felicidade da sociedade Aleacutem de tudo ela eacute um

instrumento indispensaacutevel para o subrepujamento da bipolaridade existente entre o

conhecimento cientiacutefico e o relativismo objetivando na medida de sua capacidade a

tomada razoaacutevel de decisotildees na vida praacutetica Pois tendo em vista a impossibilidade de se

obter nos assuntos da vida praacutetica uma verdade universal e necessaacuteria eacute preciso contentar-

se com o verossiacutemil ou seja com aquilo que parece provaacutevel por ser compartilhado pela

maioria dos ouvintes

O Estagirita prossegue em sua condenaccedilatildeo ao relativismo ao identificar a doutrina

de Protaacutegoras (de que eacute possiacutevel tornar o argumento mais fraco no argumento mais forte)

com uma argumentaccedilatildeo falaciosa chamada de silogismo aparente (φαινόμενος

συλλογισμός) Considerando-se que pode haver um silogismo verdadeiro e outro

aparente do mesmo modo pode haver um entimema verdadeiro e outro que o seja

somente na aparecircncia (Ibid 1400b 45-50) Aristoacuteteles cataloga pois dez tipos de

entimemas aparentes que seriam os equivalentes retoacutericos dos sofismas expostos

minuciosamente na obra Dos Argumentos Sofiacutesticos 1ordm o que proveacutem da expressatildeo 2ordm o

que procede da homoniacutemia 3ordm o que consiste em argumentar combinando o que estava

dividido ou dividindo o que estava combinado 4ordm o que consiste em estabelecer ou refutar

um argumento por meio do exagero 5ordm o que procede do signo 6ordm o que decorre do

acidente 7ordm o que eacute retirado da consequecircncia 8ordm o que consiste em apresentar o que natildeo

eacute causa como causa 9ordm o que consiste na omissatildeo do quando e do como 10ordm e o que

consiste em considerar uma coisa absolutamente e natildeo absolutamente mas soacute em relaccedilatildeo

a uma coisa (Ibid 1401a 1-1402a 39) Todavia somente este uacuteltimo tipo de entimema

aparente seraacute objeto de anaacutelise devido agrave sua ligaccedilatildeo imediata com a doutrina do sofista

Protaacutegoras

Com efeito a promessa de tornar mais forte o argumento mais fraco natildeo ficou

restrita a Protaacutegoras e sua escola mas tambeacutem tornou-se ceacutelebre com os autores

posteriores Na comeacutedia As Nuvens escrita por Aristoacutefanes existe uma referecircncia a esta

doutrina onde o personagem Estrepsiacuteades afirma que no φροντιστήριον onde Soacutecrates

ensina a triunfar as causas maacutes devido aos artifiacutecios e sutilezas da arte retoacuterica existem

ambos os argumentos o mais forte natildeo importa qual seja e o mais fraco e desses dois o

mais fraco pode tornar-se vitorioso apesar de expressar a tese mais injusta (Nuv 95

115) Aristoacuteteles tambeacutem oferece exemplos reais do seacuteculo V aC especialmente o

argumento de Goacutergias de que o natildeo ser existe porque negar o natildeo ser seria afirmar sua

existecircncia bem como a citaccedilatildeo de Aacutegaton de maneira que o que ele diz a respeito do

provaacutevel poderia ser plausivelmente retirado dos textos de Protaacutegoras (Ret 1402a 4-15)

E ainda tal como na eriacutestica do fato de se poder considerar uma coisa absolutamente e natildeo absolutamente mas soacute em relaccedilatildeo a uma coisa resulta um silogismo aparente Por exemplo na dialeacutetica afirmar que o natildeo ser existe porque o natildeo ser eacute natildeo ser e que o desconhecido eacute objeto de conhecimento porque o incognosciacutevel enquanto incognosciacutevel constitui objeto de conhecimento cientiacutefico Assim tambeacutem na retoacuterica haacute um entimema aparente do natildeo absolutamente provaacutevel mas do provaacutevel em relaccedilatildeo a algo Esta probabilidade natildeo eacute universal como tambeacutem diz Aacutegaton Bem se poderia dizer que o uacutenico provaacutevel eacute que aos mortais aconteccedilam muitas coisas improvaacuteveis

Para Aristoacuteteles o φαινόμενος συλλογισμός resulta do fato de se poder considerar

na dialeacutetica uma coisa absolutamente e natildeo absolutamente mas soacute em relaccedilatildeo a uma

coisa Semelhantemente na retoacuterica existe um entimema aparente (φαινόμενον

ἐνθύμημα) do natildeo absolutamente provaacutevel mas soacute do provaacutevel em relaccedilatildeo a algo Isto

ocorre porque aquilo que estaacute agrave margem da probabilidade pode eventualmente produzir-

se de tal maneira que eacute provaacutevel o que estaacute fora da probabilidade Por exemplo eacute

altamente provaacutevel que um homem com histoacuterico de agressatildeo domeacutestica seja culpado por

ferir sua esposa a qual o leva a julgamento por agressatildeo fiacutesica mas eacute tambeacutem possiacutevel

que a mulher tenha ferido a si mesma a fim de incriminar o marido que neste caso

especiacutefico seria inocente No entanto esforccedilar-se a fim de que esta probabilidade relativa

suplante a primeira qual seja a probabilidade absoluta (ἁπλῶς εἰκὸς) constitui para

Aristoacuteteles uma atitude reprovaacutevel na praacutetica retoacuterica bem como uma falsidade Sendo

assim no entimema aparente o improvaacutevel seraacute ateacute provaacutevel conforme o exemplo acima

mas natildeo de maneira absoluta porque possui um grau de probabilidade quase que

insignificante E como ocorre na eriacutestica o natildeo acrescentar em que medida em relaccedilatildeo a

quecirc e de que modo torna o argumento capcioso na arte retoacuterica acontece o mesmo

porquanto o improvaacutevel (ou pouco provaacutevel) eacute tomado pelo orador como provaacutevel natildeo

de maneira absoluta mas somente de maneira relativa E Aristoacuteteles acrescenta que eacute

deste toacutepico que se compotildee a arte de Coacuterax (Ibid 1402a 3-24)

Sabe-se que Coacuterax foi o primeiro de que se tem registro a teorizar com um meacutetodo

e preceitos uma arte retoacuterica E a despeito do desconhecimento documental das regras

propriamente ditas e dos processos de composiccedilatildeo que Coacuterax elaborara eacute possiacutevel

sustentar que um dos seus preceitos fundamentais consistia em propor a argumentaccedilatildeo de

que algo poderia ser considerado improvaacutevel por ser proacutevavel demais Este argumento

carrega seu nome ou seja o κόραξ Aristoacuteteles explicita este argumeno nos seguintes

termos (Ibid 1402a 24-28) caso o reacuteu suspeito de agressatildeo seja forte e se todas as

evidecircncias lhe forem contraacuterias proporaacute o argumento de que seria tatildeo provaacutevel que

tivesse realmente praticado o ato de que eacute acusado que natildeo pode ser provaacutevel que ele o

tenha feito (ἔστι δ᾽ ἐκ τούτου τοῦ τόπου ἡ Κόρακος τέχνη συγκειμένη ldquoἄν τε γὰρ μὴ

ἔνοχος ᾖ τῇ αἰτίᾳ οἷον ἀσθενὴς ὢν αἰκίας φεύγει [οὐ γὰρ εἰκός] κἂν ἔνοχος ᾖ οἷον

ἰσχυρὸς ὤν [οὐ γὰρ εἰκός ὅτι εἰκὸς ἔμελλε δόξειν]rdquo)

Aristoacuteteles aventa que ambos os casos acima mencionados parecem ser provaacuteveis

poreacutem o primeiro caso o de que o reacuteu forte (ἰσχυρός) eacute legitimamente suspeito de

agressatildeo seria absolutamente provaacutevel poreacutem o outro caso o de que o reacuteu forte eacute

inocente porque pareceria altamente provaacutevel que fosse o agressor do eacute fraco (ἀσθενής)

natildeo o eacute em absoluto mas de maneira relativa Este tipo de argumentaccedilatildeo que o Estagirita

atribui ao sofista Protaacutegoras parece implicar que a causa mais fraca seria realmente

idecircntica agrave pior de modo que apoiaacute-la seria o mesmo que apoiar a injusticcedila Aleacutem disso

os raciociacutenios que visam tornar o argumento mais fraco no argumento mais forte tambeacutem

satildeo chamados de eriacutesticos ou contenciosos ou seja os que raciocinam ou parecem

raciocinar a partir de opiniotildees que parecem ser geralmente aceitas mas em realidade natildeo

satildeo (Arg Sof 156b 7-8)

Todavia com o intuito de lograr maior esclarecimento sobre o significado do

entimema aparente no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles eacute pertinente inteirar-se da

abalizada anaacutelise de A M Yamin sobre este toacutepico Ela sustenta que uma coisa eacute mais

provaacutevel quanto maior o nuacutemero de casos similares de tal maneira que a verossimilhanccedila

ou a probabilidade de algo eacute diretamente proporcional ao nuacutemero de vezes que este

mesmo tipo de coisa costuma acontecer Assim o enunciado eacute verossiacutemil porque enuncia

a opiniatildeo dos homens ao testemunhar um evento provaacutevel que pode ser tanto social como

natural E quanto maior seja a frequecircncia dos fatos mais provaacuteveis eles seratildeo e mais

verossiacutemil seraacute o discurso a seu respeito Eacute manifesto que no mais das vezes o homem de

compleiccedilatildeo forte tende a prevalecer e a bater naquele que eacute mais fraco e este fenocircmeno

refletiria a regularidade proacutepria do mundo das accedilotildees humanas e tal afirmaccedilatildeo pode ser

feita com seguranccedila por qualquer orador porque efetivamente eacute isto que costuma

acontecer O discurso natildeo-verossiacutemil que o Estagirita designa de entimema aparente

seria aquele que enunciasse um estado de coisas que natildeo fosse provaacutevel ou que fugisse

da regularidade das accedilotildees humanas Dessarte soacute eacute digno de credibilidade o discurso que

eacute verdadeiro ou o que eacute provaacutevel pois assim como o discurso verdadeiro eacute digno de ser

acreditado por veicular o que eacute o discurso verossiacutemil tambeacutem o eacute por enunciar o que

acontece no mais das vezes Todavia no que se refere ao mundo das accedilotildees humanas a

regularidade de que o homem de compleiccedilatildeo forte prevalece e tende a bater naquele que

eacute mais fraco tem a peculiaridade de natildeo ser a uacutenica (ou seja pode ocorrer exceccedilotildees) mas

ela sempre seraacute uacutenica para um auditoacuterio determinado ao passo que os argumentos mais

verossiacutemeis seratildeo aqueles que correspondam agrave regularidade proacutepria do contexto poliacutetico

ao qual pertence aquele auditoacuterio particular (YAMIN 2006 150-151)

Na perspectiva de Yamin ao se ocupar dos diferentes tipos de falaacutecias Aristoacuteteles

trata do entimema aparente e o define como o argumento que pode resultar daquilo que

natildeo eacute absolutamente verossiacutemil mas somente eacute verossiacutemil em casos particulares

Aristoacuteteles faria uma analogia com o silogismo aparente ou seja aquele que resulta de

considerar uma coisa primeiro absolutamente e em seguida natildeo absolutamente mas

somente num caso particular O silogismo aparente ocorreria quando se afirma que aquilo

que natildeo eacute absolutamente enquanto eacute desconhecido em um caso particular eacute o caso O

εἰκός enquanto discurso eacute o enunciado endoacutexico que enuncia um evento que acontece a

maior parte das vezes assim como tambeacutem eacute o proacuteprio evento (natural ou social) O εἰκός

eacute verossiacutemil porque ele enuncia a opiniatildeo dos homens ao testemunhar um evento provaacutevel

cuja opiniatildeo estaacute de acordo com um estado de coisas que corresponde agrave regularidade de

um determinado domiacutenio (Ibid 2006 152-153)

Por certo tanto um enunciado (verossiacutemil) como um evento (provaacutevel) soacute seratildeo

εἰκός na medida em que efetivamente correspondam ou faccedilam parte de uma regularidade

No entanto eacute possiacutevel fazer com que um enunciado que natildeo eacute absolutamente verossiacutemil

pareccedila dessa forma e a este Aristoacuteteles designa de verossiacutemil relativo o qual eacute atribuido

agrave praacutetica retoacuterica de Protaacutegoras O entimema aparente surge entatildeo a partir de um discurso

que natildeo eacute absolutamente verossiacutemil mas somente num caso particular ao passo que um

enunciado absolutamente verossiacutemil teraacute que estar de acordo com uma certa regularidade

E haja vista que o entimema aparente eacute de alguma maneira anaacutelogo ao silogismo

aparente a condiccedilatildeo para identifcar o entimema aparente deveraacute ser a identificaccedilatildeo de

uma certa regularidade aparente ou seja uma regularidade que soacute eacute tal em um contexto

particular (Ibid 2006 153-154)

Com efeito o verossiacutemil relativo seria simplesmente falso e sobretudo inuacutetil um

discurso vazio jaacute que natildeo teria uma referecircncia e a ningueacutem poderia convencer A despeito

disso se o verossiacutemil relativo pode ser veiculado (por um sofista como Protaacutegoras) eacute

precisamente porque no domiacutenio humano as coisas acontecem furtuitamente de maneira

contraacuteria ao esperado Isto significa que neste domiacutenio eacute possiacutevel explicar um mesmo fato

por mais de um entimema verossiacutemil Por exemplo eacute absolutamente verossiacutemil que o

capitatildeo do navio natildeo jogue a carga ao mar poreacutem eacute verossiacutemil que quando houver uma

tormenta que ameace a vida dos passageiros relativamente a essas circunstacircncias

particulares seria liacutecito e razoaacutevel que o capitatildeo decida jogar a carga ao mar Por isso

estaria vedado para Aristoacuteteles argumentar pelo verossiacutemil relativo em toda a extensatildeo

do domiacutenio onde a regularidade eacute a marca dos seus objetos isto eacute em todo o domiacutenio das

coisas que acontecem a maior parte das vezes (Ibid 2006 156-157) Isto posto o

verossiacutemil pode ter duas modalidades distintas A primeira diz respeito ao verossiacutemil

absoluto que estaacute de acordo com as expectativas normais aquelas com as quais os

ouvintes estatildeo acostumados como quando um homem forte tenha agredido algueacutem

fisicamente mais fraco E a outra o verossiacutemil relativo que insere o fato acontecido em

coordenadas diferentes daquelas nas quais se teria pensado naturalmente por exemplo

leva em consideraccedilatildeo o fato da naturalidade de levantar suspeita que um homem forte

tenha batido em um fraco e declara que esse mesmo fato torna inverossiacutemil que o homem

forte seja culpado (Ibid 2006 161-162)

Com base na argumentaccedilatildeo falaciosa chamada de entimema aparente o orador

mal-intencionado pode apresentar um fato que normalmente pareceria de uma certa

maneira (na medida em que estaria inserido numa certa regularidade) como exatamente

o contraacuterio do que parece ser o caso introduzindo-o em uma outra regularidade Assim

se determinado indiviacuteduo pareceria culpaacutevel no quadro de expectativas ao qual se estaacute

acostumado considerado de um outro ponto de vista (ou seja em relaccedilatildeo a uma outra

forma de regularidade) sua inocecircncia poderia ser suposta como verossiacutemil No entanto

tal argumentaccedilatildeo caracterizaria o verossiacutemil relativo e natildeo o absoluto o qual segundo

Aristoacuteteles deveria ser veiculado por todo orador bem-intencionado Aliaacutes o que

determina um entimema aparente natildeo eacute o simples fato do orador argumentar a partir do

verossiacutemil relativo mas por apresentaacute-lo como se fosse absoluto em detrimento do que

geralmente acontece

Pode-se assegurar entatildeo que eacute verossiacutemil absolutamente que um homem de

compleiccedilatildeo forte tenha batido naquele que eacute fraco porque de acordo com aquilo que se

estaacute acostumado a presenciar eacute isso que amiuacutede acontece ou seja tal fato estaria de

acordo com a regularidade do domiacutenio no qual se vive Natildeo obstante poder-se-ia

perfeitamente considerar esse mesmo fato como fazendo parte de uma outra regularidade

qual seja aquela na qual os homens fortes soubessem que facilmente se tornariam

suspeitos razatildeo pela qual evitariam bater em homens fracos A investigaccedilatildeo sobre o

verossiacutemil relativo teria levado o Estagirita a constatar que embora no domiacutenio dos

homens que vivem na comunidade poliacutetica certas coisas comportam-se ὡς ἐπὶ τὸ πολύ

quer dizer comportam-se no mais das vezes tal situaccedilatildeo natildeo seria a uacutenica e isto teria

como consequecircncia a possibilidade de persuadir os ouvintes mediante argumentos

falaciosos Por fim Aristoacuteteles encerra sua anaacutelise do entimema aparente (Ret 1402a 30-

37) afirmando que com justiccedila os homens se indignaram contra a doutrina de Protaacutegoras

pois ela constitui um logro e uma probabilidade natildeo verdadeira mas aparente (καὶ

ἐντεῦθεν δικαίως ἐδυσχέραινον οἱ ἄνθρωποι τὸ Πρωταγόρου ἐπάγγελμα ψεῦδός τε γάρ

ἐστιν καὶ οὐκ ἀληθὲς ἀλλὰ φαινόμενον εἰκός)

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Tendo em vista os assuntos tratados na presente investigaccedilatildeo pode-se concluir que

a hipoacutetese de que no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles encontra-se uma conciliaccedilatildeo

entre duas perspectivas tidas como antagocircnicas ndash a de Platatildeo e a dos sofistas ndash resulta

confirmada Inicialmente diagnosticamos dois momentos distintos no pensamento

retoacuterico do Estagirita quais sejam a juvenil filiaccedilatildeo em relaccedilatildeo a filosofia de Platatildeo e

ulteriormente numa fase mais madura a adoccedilatildeo da heranccedila retoacuterica dos mais importantes

sofistas Todavia antes da indicaccedilatildeo da intrincada relaccedilatildeo entre a filosofia de Platatildeo e a

sofiacutestica na retoacuterica de Aristoacuteteles foi necessaacuterio uma breve anaacutelise da concepccedilatildeo retoacuterica

do Soacutecrates histoacuterico a fim de entrevermos em que medida a retoacuterica sui generis deste

filoacutesofo definiu a visatildeo retoacuterica de Platatildeo Na sequecircncia comparamos a concepccedilatildeo retoacuterica

de Soacutecrates com a de Aristoacuteteles que permitiu concluir que agrave diferenccedila daquele

Aristoacuteteles natildeo estimava haver uma incompatibilidade intriacutenseca entre a persuasatildeo

retoacuterica e a comunicaccedilatildeo da verdade de sorte que os mais engenhosos recursos retoacutericos

poderiam ser uacuteteis para o bem da cidade mas com a condiccedilatildeo de serem empregados

segundo um compromisso eacutetico-poliacutetico Depois investigamos na obra de Platatildeo

sobretudo no diaacutelogo Fedro a linha mestra do pensamento retoacuterico deste filoacutesofo que

consiste substancialmente na adoccedilatildeo de uma retoacuterica filosoacutefica apoiada no meacutetodo

dialeacutetico cujo objetivo natildeo eacute adular nem reproduzir a opiniatildeo dos ouvintes mas instruiacute-

los moralmente de acordo com a Ideia do bem em conexatildeo com um modelo divino Mais

uma vez contrastamos duas visotildees distintas acerca da arte retoacuterica a de Platatildeo e a de

Aristoacuteteles Esse contraste permitiu ressaltar as noccedilotildees que aproximam Aristoacuteteles dos

sofistas daiacute atestando que este separa o domiacutenio da filosofia do domiacutenio da retoacuterica

conferindo-lhe uma autonomia que natildeo eacute ponderada por Platatildeo Desse modo a arte

retoacuterica de Aristoacuteteles natildeo precisa levar em conta a comunicaccedilatildeo da verdade filosoacutefica

mas deveria apenas ater-se agrave opiniatildeo geral razatildeo pela qual ela deveria abrir matildeo de

qualquer demonstraccedilatildeo apodiacutectica para limitar-se a argumentar a partir de probabilidades

e sinais em conformidade com o niacutevel da mentalidade do puacuteblico

Outrossim investigamos a concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas Goacutergias e Protaacutegoras a

qual estaria epistemicamente estribada no mais absoluto relativismo segundo o qual natildeo

seria possiacutevel veicular no discurso retoacuterico a apresentaccedilatildeo dos fatos em palavras mas

somente sua representaccedilatildeo subjetiva No toacutepico sobre a doutrina do sofista Goacutergias

observamos que ele enaltece exageradamente a capacidade persuasiva do discurso

retoacuterico que ele designa de λόγος conferindo-lhe um poder quase absoluto sobre os

ouvintes a ponto de comparaacute-lo com um grande e soberano senhor Aliaacutes para Goacutergias

o discurso soacute pode comunicar a opiniatildeo e natildeo o conhecimento porque conforme sua

posiccedilatildeo ceacutetica as palavras natildeo teriam qualquer correspondecircncia com as coisas Natildeo

obstante as palavras podem alterar pelo engano tanto as emoccedilotildees como as opiniotildees dos

ouvintes submetendo-os ao poder do orador No que toca agrave concepccedilatildeo retoacuterica de

Protaacutegoras consideramos a doutrina de que sobre qualquer assunto existem sempre duas

opiniotildees contraacuterias de maneira que orador pode defender indiferentemente ambos os

lados de uma questatildeo Nesse sentido natildeo haveria espaccedilo em sua teoria para o princiacutepio

de natildeo-contradiccedilatildeo porque tanto as percepccedilotildees quanto as opiniotildees sempre seriam

verdadeiras ainda que opostas entre si O sofista ainda concebe o homem como a medida

de todas as coisas o que significa que a verdade soacute pode ser relativa ao sujeito que

conhece e julga Mas se para Protaacutegoras natildeo existem proposiccedilotildees universalmente vaacutelidas

compete ao orador saber distinguir entre as opiniotildees melhores e piores e persuadir seus

ouvintes a respeito disso No entanto em contraste com a perspectiva de Goacutergias vimos

que Aristoacuteteles limita o poder de persuasatildeo da retoacuterica ndash ela pode descobrir os meios

disponiacuteveis para a persuasatildeo mas natildeo eacute capaz de persuadir a todos Aristoacuteteles tambeacutem

rejeita na retoacuterica gorgiana o emprego paradoxal do discurso epidiacutectico que deve acima

de tudo reconhecer valores bem como sua expressatildeo poeacutetica que carecia de simplicidade

clareza e aspirava apenas os efeitos pateacuteticos do discurso em detrimento da demonstraccedilatildeo

loacutegica na forma do entimema e do exemplo No que tange a Protaacutegoras verificamos que

Aristoacuteteles faz a defesa do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que para ele constitui o

fundamento tanto do pensamento teoacuterico como do praacutetico Este uacuteltimo que nos interessou

sobremaneira dispotildee-se a obter a verdade que corresponde agrave accedilatildeo eacutetico-poliacutetica mais

correta e neste aspecto aferimos a filiaccedilatildeo de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo a Platatildeo No entanto

o Estagirita rejeita a concepccedilatildeo de que no acircmbito da arte retoacuterica seja possiacutevel veicular

verdades absolutas como queria seu mestre mas nem por isso ele anui o relativismo

absoluto dos sofistas porque se este prevalecer na poliacutetica por certo fomentaraacute

consequecircncias nefastas para a cidade haja vista que a justiccedila e a injusticcedila poderatildeo ser

defendidas indiferentemente Mas ainda que natildeo exista em referecircncia aos assuntos eacutetico-

poliacuteticos a verdade absoluta existe certamente algo mais seguro e mais veriacutedico ndash as

opiniotildees geralmente aceitas ndash cujo expediente eacute vital para a superaccedilatildeo da bipolaridade

existente entre o conhecimento cientiacutefico e o relativismo

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YAMIN A M Sobre o fundamento do discurso verossiacutemil na Retoacuterica de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Polieacutetica 2016

MOISEacuteS DO VALE DOS SANTOS

A ARTE RETOacuteRICA DE ARISTOacuteTELES UMA CONCILIACcedilAtildeO ENTRE A

CONCEPCcedilAtildeO RETOacuteRICA DE PLATAtildeO E A DOS SOFISTAS

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia do Setor de Ciecircncias Humanas da Universidade Federal do Paranaacute como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia Orientador Profordf Drordf Vivianne de Castilho Moreira

CURITIBA

2019

FICHA CATALOGRAacuteFICA ELABORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECASUFPR ndash BIBLIOTECA DE CIEcircNCIAS HUMANAS COM OS DADOS FORNECIDOS PELO AUTOR

Fernanda Emanoeacutela Nogueira ndash CRB 91607 Santos Moiseacutes do Vale dos A arte retoacuterica de Aristoacuteteles uma conciliaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo

retoacuterica de Platatildeo e dos Sofistas Moiseacutes do Vale dos Santos ndash Curitiba 2019

Tese (Doutorado em Filosofia) ndash Setor de Ciecircncias Humanas da

Universidade Federal do Paranaacute Orientadora Profordf Drordf Vivianne de Castilho Moreira

1 Aristoacuteteles ndash Criacutetica e interpretaccedilatildeo 2 Eacutetica - Filosofia 3 Loacutegica 4 Retoacuterica antiga 5 Dialeacutetica 6 Sofistas (Filosofia grega) I Tiacutetulo CDD ndash 184

Agraves minhas preciosas filhas Gabriela e Alice

AGRADECIMENTOS

Por meio dos agradecimentos que se seguem desejo manifestar minha terna e

sincera gratidatildeo a todos aqueles que em maior ou menor grau contribuiacuteram para a

realizaccedilatildeo da presente tese Primeiramente agradeccedilo a inspiradora e brilhante professora

Drordf Vivianne de Castilho Moreira que no decurso dos meses que se seguiram desde a

elaboraccedilatildeo do projeto de doutorado ateacute a conclusatildeo da tese mostrou-se sempre soliacutecita

confiante e comprometida com o objeto da minha pesquisa Estendo meu reconhecimento

agrave professora Drordf Inara Zanuzzi e ao professor Dr Bernardo Guadalupe dos Santos Lins

Brandatildeo pelas perspicazes orientaccedilotildees sem as quais dificilmente teria ecircxito no meu

trabalho de pesquisa Tambeacutem sou grato aos nobiliacutessimos amigos Luiz Francisco Garcia

Lavanholi Carlos Eduardo Contreras Villayzan e Viniacutecius Joseacute da Costa Leonard bem

como agraves dedicadas secretaacuterias do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia Aurea

Junglos e Marianne Nigro Reconheccedilo ainda o meacuterito do suporte acadecircmico que me foi

concedido pela Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES)

Agradeccedilo igualmente a todos os professores do Departamento de Filosofia da

Universidade Federal do Paranaacute (UFPR) cuja contribuiccedilatildeo agrave minha formaccedilatildeo intelectual

e moral tem produzido inestimaacuteveis frutos E por fim sou grato agrave minha famiacutelia pela

complacecircncia e apoio afetivo dispensados nos momentos mais cruciais da minha

caminhada

Que isto de meacutetodo sendo como eacute uma coisa indispensaacutevel Todavia eacute melhor tecirc-lo sem

gravata nem suspensoacuterios mas um pouco agrave fresca e agrave solta como quem natildeo se lhe daacute da

vizinha fronteira nem do inspetor de quarteiratildeo Eacute como a eloquecircncia que haacute uma

genuiacutena e vibrante de uma arte natural e feiticeira e outra tesa engomada e chocha

Machado de Assis

RESUMO

Esta tese procura demonstrar que no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles existe uma conciliaccedilatildeo entre duas concepccedilotildees antagocircnicas acerca da arte retoacuterica a de Platatildeo e a dos sofistas Sob a influecircncia de Platatildeo o Estagirita procura preservar a praacutetica retoacuterica do relativismo moral atribuindo agrave arte do discurso persuasivo um compromisso eacutetico-poliacutetico que consiste tanto na defesa da verdade e da justiccedila na cidade como no fortalecimento das virtudes eacuteticas dos cidadatildeos cuja finalidade eacute o bem viver em geral ou a felicidade A retoacuterica portanto deve ser um instrumento educacional eacutetico-poliacutetico e nisso consistiria sua legiacutetima funccedilatildeo social Todavia em relaccedilatildeo agrave aproximaccedilatildeo com os sofistas Aristoacuteteles sustenta que o compromisso eacutetico-poliacutetico da arte retoacuterica justificaria o emprego de todos os estratagemas retoacutericos disponiacuteveis para obter a persuasatildeo dos ouvintes como o apelo emocional e a ecircnfase na expressatildeo enunciativa porque eacute censuraacutevel que a verdade e a justiccedila sejam vencidas pelos seus opostos Poreacutem tais expedientes natildeo podem ser mais relevantes para a argumentaccedilatildeo que o uso do entimema ndash espeacutecie de silogismo que se fundamenta sobre probabilidades e sinais Ele ainda limita a atuaccedilatildeo da arte retoacuterica agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras para o consenso geral rejeita a identificaccedilatildeo pura e simples do discurso retoacuterico com a verdade cientiacutefica separa o domiacutenio da filosofia do domiacutenio da retoacuterica e pretere a demonstraccedilatildeo apodiacutectica pela verossimilhanccedila Esta no entanto natildeo designa qualquer opiniatildeo sem qualificaccedilatildeo como se todas as opiniotildees fossem igualmente vaacutelidas de modo que seja possiacutevel argumentar o proacute e o contra sobre qualquer tema proposto mas caracteriza os fatos que acontecem a maior parte das vezes e as crenccedilas e valores geralmente aceitos pelo consenso social que amiuacutede indicam uma aproximaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave verdade

Palavras-chave Arte retoacuterica Dialeacutetica Conhecimento cientiacutefico Eacutetica Verossimilhanccedila Poliacutetica Sofiacutestica Loacutegica Relativismo Persuasatildeo Silogismo Entimema

ABSTRACT

This thesis tries to demonstrate that in the rhetorical thought of Aristotle there is a conciliation between two antagonistic conceptions about rhetorical art that of Plato and that of the Sophists Under Platorsquos influence the Stagirite seeks to preserve the rhetorical practice from moral relativism by attributing to the art of persuasive discourse an ethical-political commitment which consists both in the defense of truth and justice in the city and in the strengthening of the ethical virtues of citizens whose purpose is to live well in general or happiness Rhetoric therefore must be an ethical-political educational instrument and in this would be its legitimate social function However in relation to the Sophists Aristotle maintains that the ethical-political commitment of rhetorical art would justify the use of all available rhetorical devices for persuading listeners such as emotional appeal and the emphasis on elocution because it is blameworthy that truth and justice be overcome by their opposites Nevertheless such means should not be more relevant to the argument than the use of the enthymeme ndash a kind of syllogism that is based on probabilities and signs He still limits the performance of rhetorical art to opinions which appear to be true to general consensus rejects the pure and simple identification of rhetorical discourse with scientific truth separates the domain of philosophy from the domain of rhetoric and precludes the apodictic demonstration by likelihood This however does not designate any opinion without qualification as if all opinions were equally valid so that it is possible to argue the pro and the contra on any proposed theme but characterize the facts that happen most of the times and the beliefs and values generally accepted by social consensus which often indicate an approximation to the truth

Keywords Rhetorical art Dialectic Scientific knowledge Ethics Likelihood Politics Sophistry Logic Relativism Persuasion Syllogism Enthymeme

LISTA DE ABREVIATURAS

Anal Ant = Analiacuteticos Anteriores

Ant= Antiacutedose

Apol Soacutec = Apologia de Soacutecrates

Arg Sof = Dos Argumentos Sofiacutesticos

Criacutet = Criacuteton

Contr Sof = Contra os Sofistas

Def Soacutec = Defesa de Soacutecrates

Disc Dup = Discursos Duplos

El Hel = Elogio de Helena

Eacutet Eud = Eacutetica a Eudemo

Eacutet Nic = Eacutetica a Nicocircmaco

Fed = Fedro

Goacuterg = Goacutergias

Hip Men = Hiacutepias Menor

Inst orat = Instituiccedilotildees oratoacuterias

Leis= Leis

Mem = Ditos e Feitos Memoraacuteveis de Soacutecrates

Met = Metafiacutesica

Nuv = As Nuvens

Part An = Partes dos Animais

Pol = Poliacutetica

Prot = Protaacutegoras

Rep = A Repuacuteblica

Ret = Retoacuterica

Seg Anal = Segundos Analiacuteticos

Sob alm = Sobre a alma

Sof = O Sofista

Teet = Teeteto

Toacutep = Toacutepicos

Vid doutr fil il = Vidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustres

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO12

1 Aspectos gerais da arte retoacuterica Aristoacuteteles25

11 Experiecircncia arte e o primeiro esboccedilo da retoacuterica dAristoacuteteles25

12 Breve anaacutelise dos trecircs livros da Retoacuterica34

2 A concepccedilatildeo de retoacuterica no diaacutelogo platocircnico Defesa de Soacutecrates52

21 O problema da fidedignidade do discurso judicial de Soacutecrates52

22 As caracteriacutesticas da retoacuterica de Soacutecrates58

3 A arte retoacuterica de Aristoacuteteles e o discurso judicial de Soacutecrates67

31 O compromisso eacutetico-poliacutetico da persuasatildeo retoacuterica67

32 A ineficaacutecia persuasiva do discurso judicial de Soacutecrates81

4 A concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo no diaacutelogo Fedro 91

41 A retoacuterica filosoacutefica de Platatildeo91

42 A retoacuterica e o meacutetodo dialeacutetico103

43 O desprezo de Platatildeo pela retoacuterica do verossiacutemil113

5 A retoacuterica de Aristoacuteteles e seu contraste com a retoacuterica de Platatildeo121

51 A distinccedilatildeo aristoteacutelica entre ciecircncia e arte retoacuterica121

52 Entimema o silogismo retoacuterico135

53 A relevacircncia persuasiva da opiniatildeo geral e da adaptaccedilatildeo agrave mentalidade do

auditoacuterio143

6 A concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas Goacutergias e Protaacutegoras162

61 Aspectos gerais do movimento sofista162

62 Goacutergias a retoacuterica como artiacutefice da persuasatildeo171

63 Protaacutegoras a teacutecnica dos argumentos opostos e o relativismo181

7 A funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da retoacuterica de Aristoacuteteles e a refutaccedilatildeo da sofiacutestica199

71 A retoacuterica de Aristoacuteteles e a dos sofistas199

72 A refutaccedilatildeo da retoacuterica gorgiana209

73 A refutaccedilatildeo da retoacuterica protagoacuterica235

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS253

REFEREcircNCIAS255

INTRODUCcedilAtildeO

Eacute manifesto que em sua vasta obra escrita Aristoacuteteles tratou praticamente de todos

os temas de pesquisa de sua eacutepoca mas poucos sabem que foi sobre o tema da retoacuterica

que ele iniciou-se como escritor Ele foi motivado por Platatildeo que lhe conferiu a

incumbecircncia de ministrar liccedilotildees sobre retoacuterica no interior da Academia Nesse periacuteodo

Aristoacuteteles compocircs e publicou o diaacutelogo exoteacuterico Grilos dedicado ao assunto No

diaacutelogo em apreccedilo ele discute se a retoacuterica eacute ou natildeo eacute uma arte donde conclui que a

retoacuterica de tipo gorgiano agrave qual se filiava tambeacutem o orador Isoacutecrates natildeo poderia ser

considerada uma genuiacutena arte A despeito das pouquiacutessimas informaccedilotildees doxograacuteficas

disponiacuteveis sobre o Grilos pode-se afirmar com certa seguranccedila que ele representa a

primeira fase do pensamento retoacuterico do Estagirita enquanto que o pensamento da sua

maturidade e da sua uacuteltima produccedilatildeo eacute expresso pelos trecircs livros da Retoacuterica

Nas uacuteltimas linhas da obra Dos Argumentos Sofiacutesticos Aristoacuteteles explicita o

procedimento utilizado para a composiccedilatildeo da Retoacuterica uma longa pesquisa sobre os

manuais de retoacuterica elaborados por seus predecessores a partir dos quais compocircs o seu

proacuteprio meacutetodo de persuasatildeo No decorrer da Retoacuterica ele menciona alguns autores de

manuais de retoacuterica e suas respectivas contribuiccedilotildees para o aprimoramento desta arte

dentre os quais eacute oportuno mencionar os eminentes sofistas Goacutergias de Leontini

Protaacutegoras de Abdera Trasiacutemaco de Calcedocircnia e Alcidamante de Eleacuteia Eacute inequiacutevoco

portanto que a arte retoacuterica de Aristoacuteteles em sua uacuteltima fase conteacutem muitos elementos

da concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas

Na hipoacutetese de assumirmos que houve no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles duas

diferentes fases quais sejam a fase juvenil intimamente ligada agrave filosofia de Platatildeo e a

fase que refletiria a maturidade do seu pensamento a qual teria recebido a inegaacutevel

influecircncia da sofiacutestica pode-se aventar que a arte retoacuterica de Aristoacuteteles situa-se

equidistante da posiccedilatildeo de Platatildeo e da posiccedilatildeo dos sofistas Aproximando-se do

pensamento de Platatildeo ele rejeita explicitamente na sofiacutestica o relativismo eacutetico porque

em sua visatildeo o orador bem-intencionado jamais deve persuadir seus ouvintes acerca do

que eacute imoral mesmo sendo capaz de fazecirc-lo Pelo contraacuterio deve ele comprometer-se

com a defesa da verdade e da justiccedila na cidade tendo por fim terminal a εὐπραξία que

significa o bem agir na vida puacuteblica e na vida privada E com o escopo de evitar os efeitos

danosos da sofiacutestica sobre a accedilatildeo poliacutetica tema que eacute longamente explorado por Platatildeo

do decorrer dos seus diaacutelogos o Estagirita atribui agrave arte retoacuterica uma funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica

No entanto eacute importante sublinhar que Aristoacuteteles natildeo subscreve todas as teses

platocircnicas acerca da arte retoacuterica jaacute que ele rejeita no pensamento de Platatildeo a

identificaccedilatildeo pura e simples do discurso retoacuterico com a veiculaccedilatildeo da verdade (ἀλήθεια)

substituindo-a pela verossimilhanccedila ou probabilidade (εἰκός) porquanto quem aspira se

tornar orador natildeo precisa forccedilosamente ser um filoacutesofo nem tem a obrigaccedilatildeo de conhecer

o que realmente eacute mas apenas o que aparenta ser verdadeiro agraves multidotildees Por falar nisso

a palavra grega ldquoεἰκόςrdquo pode ser traduzida tanto por ldquoverossiacutemilrdquo como por ldquoprovaacutevelrdquo

Por certo ambas as palavras seratildeo utilizadas neste trabalho mas com significados

diferentes a primeira designando uma concepccedilatildeo loacutegica ao passo que a segunda uma

concepccedilatildeo ontoloacutegica Isto posto um discurso eacute considerado verossiacutemil porque estaacute de

acordo com fatos que realmente acontecem a maior parte das vezes e com as crenccedilas

geralmente admitidas num determinado contexto social que neste caso recebe a

designaccedilatildeo de provaacutevel

No que tange agrave aproximaccedilatildeo com os sofistas Aristoacuteteles limita a atuaccedilatildeo da arte

retoacuterica agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras para o consenso geral porque os

argumentos retoacutericos devem ser formados de premissas comuns tendo em vista a

comunicaccedilatildeo com as multidotildees e natildeo com um auditoacuterio especializado Todavia em

oposiccedilatildeo aos sofistas para os quais tudo eacute relativo ele admite que existe uma ciecircncia

inteiramente exata (ἐπιστήμη) E assim como Platatildeo ele admite uma ciecircncia que por via

demonstrativa eacute capaz de alcanccedilar a verdade apodiacutectica mas ao mesmo tempo ele objeta

que a ciecircncia mais exata eacute relevante para persuadir certos auditoacuterios aos quais falta a

devida instruccedilatildeo filosoacutefica Por essa razatildeo no discurso retoacuterico natildeo eacute preciso comunicar

verdades filosoacuteficas ou cientiacuteficas ao inveacutes disso eacute preciso utilizar noccedilotildees que satildeo

acessiacuteveis aos ouvintes comuns Decerto a filosofia tem por finalidade descobrir a

verdade por isso Aristoacuteteles a designa com a expressatildeo ldquoἐπιστήμην τῆς ἀληθείαςrdquo que

traduzida significa ldquoa ciecircncia da verdaderdquo A retoacuterica por seu lado preocupa-se com

aquilo que pensam os homens em geral com as crenccedilas compartilhadas pelo consenso

social tendo como objetivo a persuasatildeo (πείθω)

Agrave vista disso o interesse de Aristoacuteteles pela retoacuterica leva-o a concebecirc-la sob duas

perspectivas que correspondem a dois compromissos distintos mas coexistentes no

interior do amplo campo das preocupaccedilotildees humanas de um lado a defesa da verdade e

da justiccedila na cidade e de outro a admissatildeo e veiculaccedilatildeo das crenccedilas geralmente aceitas

pelo conjunto dos cidadatildeos (ἔνδοξα) Esses dois compromissos se afiguram grosso modo

no nuacutecleo da conciliaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo e a dos sofistas Eacute

justamente em torno de tal nuacutecleo que a presente pesquisa gravitaraacute a fim de demonstrar

na medida do possiacutevel a maneira pela qual Aristoacuteteles concilia os elementos da filosofia

de Platatildeo mormente sua perspectiva retoacuterica com a concepccedilatildeo retoacuterica teorizada e

praticada pelos mais eminentes sofistas

Conforme veremos ulteriormente em pormenor a concepccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles

expressa nos trecircs livros da Retoacuterica se afasta substancialmente do pensamento retoacuterico de

Platatildeo notadamente em relaccedilatildeo ao periacuteodo em que aquele frequentava a Academia e

aproxima-se em muitos aspectos da retoacuterica praticada pelos sofistas Dessarte seraacute

preciso por um lado compreendermos as possiacuteveis razotildees pelas quais Aristoacuteteles teria se

afastado de Platatildeo e o que efetivamente caracteriza o seu meacutetodo retoacuterico e por outro

analisar em que medida a sofiacutestica influenciou o pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles uma

vez que este menciona os sofistas como os descobridores dos primeiros princiacutepios da arte

retoacuterica os quais teriam contribuiacutedo para o seu desenvolvimento

Com efeito a anaacutelise da concepccedilatildeo platocircnica acerca da arte retoacuterica assim como o

seu contraste em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo retoacuterica sustentada por Aristoacuteteles visa ainda

ressaltar algumas noccedilotildees que aproximam Aristoacuteteles dos sofistas sobretudo a noccedilatildeo de

que os argumentos retoacutericos devem ser formados das opiniotildees geralmente aceitas tendo

por alvo a persuasatildeo Todavia a anaacutelise da concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas mais

precisamente de Goacutergias e de Protaacutegoras e sua contraposiccedilatildeo relativamente a Aristoacuteteles

natildeo visa somente evidenciar a discordacircncia entre Aristoacuteteles e a sofiacutestica mas trazer agrave

tona em termos mais definidos os pontos nos quais o Estagirita se aproxima do seu

mestre mormente em relaccedilatildeo agrave funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da arte retoacuterica cujo corolaacuterio seraacute

a visatildeo de um quadro mais completo da tese que se tenciona demonstrar

A presente investigaccedilatildeo seraacute dividida de sorte a concretizar as tarefas sumarizadas

acima E para levaacute-las a cabo seraacute oportuno elucidar os termos as noccedilotildees e os conceitos

pertencentes agrave arte retoacuterica de Aristoacuteteles cuja compreensatildeo eacute requisito para

acompanharmos subsequentemente a argumentaccedilatildeo aristoteacutelica sobre o tema Eis por que

o primeiro capiacutetulo seraacute dedicado ao exame de concepccedilotildees como a de experiecircncia

(ἐμπειρία) e arte (τέχνη) a vinculaccedilatildeo da retoacuterica de Aristoacuteteles com a dialeacutetica

(διαλεκτικῇ) bem como a compreensatildeo desta as provas artiacutesticas (πίστεις ἔντεχνοι) que

residem de um lado nas provas loacutegicas isto eacute no entimema e no exemplo (λόγος) e de

outro nas provas psicoloacutegicas compostas pelo caraacuteter do orador (ἦθος) e o apelo

emocional (πάθος) os trecircs gecircneros de discursos retoacutericos o deliberativo

(συμβουλευτικός) o judicial (δικανικός) e o epidiacutectico (ἐπιδεικτικός) a anaacutelise e a

classificaccedilatildeo do caraacuteter dos ouvintes (ἦθος) que visam construir os argumentos mais

adequados a cada um deles dividindo-os em grupos segundo a idade e a condiccedilatildeo social

os lugares-comuns (τόποι κοινοί) que satildeo tipos de argumentos que podem ser facilmente

localizados pelo orador tendo em vista sua utilizaccedilatildeo em diversas situaccedilotildees a expressatildeo

enunciativa (λέξις) que diz respeito agrave maneira pela qual o conteuacutedo do discurso deve ser

apresentado ao auditoacuterio e finalmente o breve estudo das partes do discurso (τάξις)

Depois de cumprida essa primeira etapa de iacutendole propedecircutica o capiacutetulo 2 seraacute

reservado ao exame do diaacutelogo platocircnico Defesa de Soacutecrates cujo propoacutesito eacute elucidar

algumas noccedilotildees do assim chamado ldquoSoacutecrates histoacutericordquo e sua respectiva compreensatildeo sui

generis da arte retoacuterica Esta investigaccedilatildeo pode proporcionar em certa medida as

primeiras indicaccedilotildees para o oportuno discernimento das posiccedilotildees de Platatildeo e de

Aristoacuteteles a respeito da arte retoacuterica Ela tambeacutem eacute esclarecedora no que concerne agraves

razotildees pelas quais Aristoacuteteles teria se afastado da concepccedilatildeo retoacuterica defendida por

Platatildeo bem como na explicitaccedilatildeo do efeito que o movimento sofista teria exercido sobre

o pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles Pode-se desde jaacute adiantar que o discurso judicial de

Soacutecrates proferido em sua proacutepria defesa no diaacutelogo em apreccedilo natildeo corresponde

exatamente agravequilo que ele pronunciou mas existem fortes indiacutecios para sustentar a

hipoacutetese de que o Soacutecrates histoacuterico natildeo pronunciaria um discurso em sua defesa nos

moldes da teacutecnica retoacuterica empregada pelos oradores de sua eacutepoca que em grande parte

incluiacutea os sofistas A retoacuterica socraacutetica como eacute exposta na Defesa de Soacutecrates (e na

Apologia de Soacutecrates escrita por Xenofonte) natildeo se identifica simplesmente com uma

teacutecnica de discurso ou com uma arte mas com sua proacutepria vida E a fim de demonstrar

isso Soacutecrates decide comunicar o seu discurso numa linguagem ordinaacuteria que se

apresenta diretamente em sua alma em coerecircncia com o que acredita ser verdadeiro em

obediecircncia agrave sua divindade pessoal (δαιμόνιον) e se for o caso em prejuiacutezo da proacutepria

vida Ele ainda nega que seu discurso seja premeditado quer dizer previamente elaborado

ou arquitetado para que tenha eficaacutecia persuasiva

De fato a linguagem retoacuterica comum eacute dependente de certo nuacutemero de princiacutepios

regras e teacutecnicas mas a linguagem que eacute inerente ao tipo de retoacuterica defendida e praticada

por Soacutecrates caracteriza-se pela simplicidade estaacute em conformidade com o proacuteprio

movimento do pensamento que sem ornamento eacute adequada ao que se refere e eacute conforme

ao que pensa e acredita quem a emprega Ele tambeacutem associa por um lado a

artificialidade do discurso agrave persuasatildeo e agrave mentira e por outro associa o seu discurso

improvisado com a verdade e a justiccedila Por essa razatildeo ele natildeo produziu uma boa defesa

quando todos achavam que deveria por todos os meios disponiacuteveis persuadir os juiacutezes

nem preocupou-se em buscar subterfuacutegios (como desfilar com sua esposa e filhos) para

obter a benevolecircncia deles e por conseguinte livrar-se da condenaccedilatildeo A despeito disso

eacute inegaacutevel que Soacutecrates age no tribunal como um orador na medida em que procura

influenciar os seus ouvintes mas em vez de apresentar um discurso ornamentado e

agradaacutevel com a finalidade de obter a condescendecircncia dos ouvintes ele atrai para si a

sua ira pois exorta-os a cuidar de suas almas mesmo correndo o risco de ser derrotado

no tribunal Aleacutem disso ele busca persuadir acerca do que acredita ser verdadeiro em

contraste com os demais oradores que natildeo parecem comprometidos com a honestidade e

a boa-feacute nos seus discursos Tal atitude suscitou a indignaccedilatildeo dos juiacutezes e natildeo sua

benevolecircncia o que certamente contribuiu para a decisatildeo final que condenou o filoacutesofo agrave

morte

O capiacutetulo 3 daraacute prosseguimento ao exame da posiccedilatildeo retoacuterica atribuiacuteda a Soacutecrates

mas levando em consideraccedilatildeo o contraste com as teses aristoteacutelicas Pode-se adiantar que

a despeito de reconhecer a eficaacutecia persuasiva da teacutecnica retoacuterica Soacutecrates nem por isso

a emprega no seu discurso judicial o que lhe vale a objeccedilatildeo por parte de Aristoacuteteles de

que os recursos retoacutericos jamais devem ser negligenciados por qualquer orador judicial

bem-intencionado porque a praacutetica da arte retoacuterica com todos os seus ornamentos e

sutilezas natildeo contradiz necessariamente a justiccedila e a verdade Por exemplo ele apresenta

aos que pretendem ser bons oradores a maneira que considera eficaz para estimular nos

ouvintes o sentimento de piedade (ἔλεος) recurso utiliacutessimo para induzir os juiacutezos dos

ouvintes em direccedilatildeo agravequilo que conveacutem eticamente E diferente do que parece propor

Soacutecrates no proecircmio de seu discurso judicial ao estabelecer a oposiccedilatildeo entre a persuasatildeo

(πειθώ) e a verdade (ἀλήθεια) Aristoacuteteles assevera que a persuasatildeo ligada agrave teacutecnica

retoacuterica pode ser politicamente uacutetil razatildeo pela qual ela jamais deve ser negligenciada por

qualquer orador bem-intencionado Ademais a arte retoacuterica enquanto disciplina

subordinada agrave ciecircncia poliacutetica que eacute arquitetocircnica (αρχιτεκτονική) em relaccedilatildeo agraves demais

ciecircncias praacuteticas adquire a tarefa de auxiliar a atividade poliacutetica no nobre fomento do

bem comum o qual soacute eacute exequiacutevel pela consolidaccedilatildeo das virtudes eacuteticas Outrossim a

persuasatildeo retoacuterica pode ser uacutetil porque a verdade e a justiccedila satildeo por natureza mais fortes

que seus contraacuterios E o fato da verdade e da justiccedila possuiacuterem uma superioridade natural

sobre a falsidade e a injusticcedila implica que o bom uso da arte retoacuterica deve corroborar tal

superioridade Isto ocorre porque as decisotildees judiciais e poliacuteticas satildeo sempre susceptiacuteveis

de serem influenciadas por argumentos falaciosos Agrave vista disso a arte retoacuterica se

transfigura num poderoso instrumento para promover o bem da cidade jaacute que sua funccedilatildeo

eacutetico-poliacutetica consiste em trazer a verdade agrave luz identificar e expor os sofismas e

combater a perversatildeo da verdade e da justiccedila Pode-se concluir pois que segundo os

paracircmetros do meacutetodo retoacuterico desenvolvido pelo Estagirita Soacutecrates poderia ser

considerado (sob o ponto de vista moral) um orador judicial justo e veraz poreacutem foi

ineficiente em persuadir jaacute que natildeo estava interessado na teacutecnica retoacuterica nem agradar

os seus ouvintes tampouco apelar para suas emoccedilotildees mas restringia-se a tentar instruiacute-

los sobre os valores da sabedoria e das virtudes funccedilatildeo que aliaacutes eacute reservada ao ensino

e natildeo ao discurso puacuteblico

No capiacutetulo 4 analisar-se-aacute a perspectiva propriamente platocircnica acerca da arte

retoacuterica ou seja a do Platatildeo dos diaacutelogos da fase intermediaacuteria (387-367 aC) A anaacutelise

em questatildeo estaraacute focada sobretudo no diaacutelogo Fedro no qual Platatildeo sustenta a tese de

que aquele que pretende pronunciar determinado assunto deve conhecer cabalmente

aquilo do que vai falar pois a primeira e mais fundamental condiccedilatildeo para o bom discurso

eacute que o orador conheccedila a verdade sobre o assunto que tenciona discutir Desse modo o

orador que ignora a noccedilatildeo de justo ou injusto de mau ou de bom etc natildeo pode escapar

nunca agrave censura que merece ainda que a multidatildeo o estime Platatildeo tambeacutem rejeita a

concepccedilatildeo propalada pela maioria dos oradores de que a demonstraccedilatildeo baseada na

verossimilhanccedila deve ocupar o lugar da demonstraccedilatildeo baseada na verdade Ele rejeita a

verossimilhanccedila como fonte da argumentaccedilatildeo retoacuterica por consistir de opiniotildees e valores

conhecidos e aceitos pelo coletivo de modo que subscrevecirc-los transformaria o orador

num mero bajulador Aleacutem do mais o orador que desconhece o bem e o mal e ao se

apoiar somente no que aparenta ser bom para as multidotildees pode exaltar o mal como se

fosse o bem e a consequecircncia dessa atitude seraacute inevitavelmente prejudicial para a cidade

Ele ainda rejeita a pretensatildeo democraacutetica de fazer do discurso retoacuterico algo

universalmente partilhado Assim o criteacuterio de validade de um discurso natildeo deve

relacionar-se com uma regra majoritaacuteria qualquer porque a arte retoacuterica deve ser um

assunto que compete exclusivamente aos filoacutesofos E tendo em vista a exigecircncia

estabelecida por Platatildeo no Fedro segundo a qual o orador deve necessariamente ser um

filoacutesofo em conexatildeo com as caracteriacutesticas e a atuaccedilatildeo deste em sua cidade ideal exposta

no diaacutelogo A Repuacuteblica concluir-se-aacute que somente uma pequena classe de homens muito

esclarecidos estaraacute habilitada a exercer a arte retoacuterica pois quando se trata de discursos

Platatildeo assevera que existem especialistas assim como ocorre na construccedilatildeo de navios na

medicina ou em qualquer outra arte Nessa perspectiva apenas o filoacutesofo possuiria um

conhecimento no verdadeiro sentido dessa palavra que por meio da multiplicidade dos

fenocircmenos eacute capaz de contemplar a imagem universal e imutaacutevel das coisas ndash a Ideia A

partir da contemplaccedilatildeo da Ideia ele pode dizer o que eacute justo e belo por si enquanto que

as opiniotildees das multidotildees a respeito dessas coisas natildeo teriam nenhuma validade Decerto

a contemplaccedilatildeo das Ideias eacute a melhor de todas as ldquopossessotildees divinasrdquo um tipo de loucura

(μανίας) que se manifesta quando o filoacutesofo percebe a beleza sensiacutevel como a beleza dos

corpos e se recorda da beleza enquanto Ideia que eacute a verdadeira beleza E aquele que

domina a praacutetica filosoacutefica de procurar os princiacutepios mais gerais por detraacutes dos fenocircmenos

particulares ndash a dialeacutetica ndash conheceraacute a Ideia suprema de bem (ἀγαθός) que explica em

que consiste a bondade de tudo o mais Sem o conhecimento dessa Ideia natildeo se pode

pensar coerentemente sobre questotildees morais natildeo se pode planejar um padratildeo moral para

a vida humana nem proferir um verdadeiro discurso retoacuterico

No capiacutetulo 5 o objetivo seraacute mostrar que no seu tratado sobre a arte retoacuterica

Aristoacuteteles neutraliza o antagonismo entre a verdade e a verossimilhanccedila que caracteriza

a concepccedilatildeo platocircnica exposta no diaacutelogo Fedro por meio da separaccedilatildeo de dois domiacutenios

legitimamente autocircnomos ndash o domiacutenio da filosofia ou da ciecircncia que para o Estagirita

satildeo termos equivalentes e o domiacutenio da retoacuterica Para ele tanto a filosofia (cujo objeto eacute

a verdade) como a retoacuterica (cujo objeto eacute a verossimilhanccedila) adquirem legitimidade no

seu campo especiacutefico de atuaccedilatildeo sem que haja qualquer oposiccedilatildeo entre elas Todavia a

retoacuterica eacute uma arte situada abaixo da filosofia e das ciecircncias exatas que satildeo

demonstrativas ou apodiacutecticas e visam atingir verdades necessaacuterias A retoacuterica por seu

lado soacute pode alcanccedilar o verossiacutemil isto eacute aquilo que por ser compartilhado pela maioria

das pessoas afigura-se razoaacutevel ou provaacutevel E diferente da espeacutecie de silogismo ligada

agrave demonstraccedilatildeo cientiacutefica o silogismo retoacuterico eacute incompleto truncado jaacute que natildeo possui

tantas partes nem estas satildeo tatildeo distintas como no silogismo cientiacutefico Agrave vista disso a

retoacuterica de Aristoacuteteles estaacute longe de ser uma ciecircncia exata que partiria de axiomas e

princiacutepios cujas conclusotildees satildeo sempre necessaacuterias Pelo contraacuterio no acircmbito da arte

retoacuterica conveacutem contentar-se com a indicaccedilatildeo da verdade aproximadamente em linhas

gerais e falar de coisas que satildeo verdadeiras no mais das vezes (ὡς ἐπὶ τὸ πολύ) Em

contraste com a tese defendida por Platatildeo no Fedro segundo a qual o bom orador deve

conhecer a essecircncia do eacute que justo bom e belo o Estagirita aproxima-se das teses

sofiacutesticas ponderando que o conhecimento que o orador deve possuir para proferir um

bom discurso deve limitar-se agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras para as multidotildees

Tal procedimento se explica pelo fato de Aristoacuteteles sustentar que natildeo se deve exigir

precisatildeo em todos os raciociacutenios nem eacute necessaacuterio procurar o mesmo grau de rigor para

todas as ciecircncias e artes Ele tambeacutem assegura que se algueacutem atua com pretensotildees

filosoacuteficas precisa ter em vista a verdade mas os que atuam segundo a retoacuterica precisam

ter em vista natildeo mais a verdade mas a opiniatildeo geral Isto ocorre porque Aristoacuteteles

persiste no valor das ἔνδοξα ou seja das opiniotildees geralmente aceitas jaacute que na sua visatildeo

uma coisa que constitua objeto de crenccedila de todos os homens ou da maioria deles ou pelo

menos de todos os homens inteligentes ou da maioria deles eacute digna de confianccedila e

merece que se diga algo a seu favor Todavia as ἔνδοξα natildeo satildeo quaisquer opiniotildees mas

as autorizadas as importantes agraves quais se deve dar credibilidade por isso natildeo precisam

ser verdadeiras no sentido estrito do termo mas devem ser compartilhadas e aceitas pela

maioria Aleacutem disso o silogismo retoacuterico que recebe o nome de entimema (ἐνθύμημα)

consiste num tipo de raciociacutenio desenvolvido unicamente para o niacutevel da mentalidade do

puacuteblico tendo como ponto de partida suas proacuteprias crenccedilas e isto perante um puacuteblico

insipiente que natildeo recebeu um treinamento especiacutefico em loacutegica formal e que seria

incapaz de ver muitas coisas ao mesmo tempo ou de seguir uma longa cadeia de

raciociacutenios O orador portanto precisa adaptar o seu discurso agraves ideias dos ouvintes e

falar amiuacutede diante de homens inteiramente ignorantes de sorte que se estes natildeo forem

aliciados pelo prazer nem influenciados pelas emoccedilotildees natildeo seraacute possiacutevel persuadi-los

sobre aquilo mesmo que eacute justo e verdadeiro

Essas convicccedilotildees de Aristoacuteteles conduzem-nos naturalmente ao pensamento

atribuiacutedo aos sofistas que seraacute tema do capiacutetulo 6 Aiacute se buscaraacute reconstruir com base

nas doxografias e fragmentos disponiacuteveis a concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas Goacutergias de

Leontini e Protaacutegoras de Abdera Goacutergias por certo foi considerado um dos inventores

do discurso epidiacutectico para o qual criou uma prosa eloquente e com muacuteltiplas figuras de

linguagem que o transformaram numa composiccedilatildeo erudita e ritmada nos moldes da

poesia As melhores informaccedilotildees a este respeito se encontram numa obra de Goacutergias

escrita em forma de declamaccedilatildeo retoacuterica chamada Elogio de Helena (Ἑλένης ἐγκώμιον)

O propoacutesito desta obra consiste em libertar Helena da culpa por deixar seu lar sua filha

e seu marido para ir para Troia com Paacuteris Uma das explicaccedilotildees de Goacutergias para o

comportamento de Helena consiste no poder que eacute inerente ao discurso retoacuterico (λόγος)

Ele argumenta que se o discurso a persuadiu e sua alma enganou natildeo seria difiacutecil livraacute-

la da responsabilidade pois o λόγος seria um grande e soberano senhor capaz de operar

diviniacutessimas accedilotildees sendo possiacutevel atraveacutes dele suscitar o medo a calma a alegria afastar

a dor e estimular a compaixatildeo Dessarte Goacutergias define a arte retoacuterica como artiacutefice da

persuasatildeo (πειθοῦς δημιουργός) de modo que as palavras quando adequadamente

empregadas podem alterar tanto as emoccedilotildees como as opiniotildees dos ouvintes outorgando

ao orador um poder quase ilimitado Nessa perspectiva natildeo seria necessaacuterio o domiacutenio

de um conhecimento teacutecnico sobre um certo assunto porque o orador saberia como

produzir a persuasatildeo independente de qualquer conhecimento especializado Aliaacutes para

Goacutergias satildeo os oradores que sempre tecircm sucesso em persuadir a Assembleia a aprovar

as leis mais relevantes e natildeo os especialistas

No que tange ao sofista Protaacutegoras ver-se-aacute sua doutrina dos δισσοὶ λόγοι segundo

a qual em relaccedilatildeo a qualquer assunto eacute possiacutevel formular dois argumentos opostos isto

eacute que sustentam respectivamente duas afirmaccedilotildees contraditoacuterias e por via de

consequecircncia que eacute possiacutevel aprovar e refutar um mesmo tema proposto Ele queria dizer

com isso que se pode tomar qualquer lado de uma questatildeo e defendecirc-la com igual sucesso

Um fragmento conhecido como Discursos Duplos (Δισσοὶ λόγοι) atribuiacutedo a Protaacutegoras

e sua escola ilustra bem essa habilidade O fragmento eacute composto por uma seacuterie de

discursos de natureza antiloacutegica no qual o autor examina cinco toacutepicos propondo para

cada um deles discursos contraacuterios sobre o bom e o ruim sobre o bonito e o feio sobre

o justo e o injusto sobre o falso e o verdadeiro e sobre a sabedoria e a virtude Protaacutegoras

tambeacutem teria declarado que ldquoo homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo

enquanto satildeo das que natildeo satildeo enquanto natildeo satildeordquo Tal declaraccedilatildeo significa que a medida

(μέτρον) de todas as coisas seria cada homem (ἄνθρωπος) considerado individualmente

enquanto que o que eacute medido nas coisas natildeo seria sua existecircncia e sua natildeo-existecircncia

mas o modo como satildeo e o modo como natildeo satildeo percebidas Decerto a declaraccedilatildeo em

apreccedilo reflete o mais absoluto relativismo segundo o qual natildeo haveria qualquer verdade

absoluta nem universalmente vaacutelida mas ela seria relativa ao sujeito que conhece e julga

Protaacutegoras natildeo tem a pretensatildeo de alcanccedilar uma verdade objetiva e vaacutelida para todos pois

se o homem eacute a medida de todas as coisas natildeo existiria um criteacuterio de verdade extriacutenseco

a ele ndash as percepccedilotildees sensiacuteveis as leis as regras morais os valores a cultura e tudo o

mais soacute poderiam ser definidos subjetivamente De acordo com a doutrina do homem-

medida se uma coisa parece bela a um e feia a outro fria a um e quente a outro etc

inevitavelmente seraacute as duas coisas simultaneamente de sorte que natildeo haveria mais

qualquer objetividade nem mesmo o princiacutepio loacutegico da natildeo-contradiccedilatildeo teria validade

Mas se natildeo existe um discurso mais verdadeiro que outro certamente existe um discurso

que seja convenientemente mais uacutetil Nesse sentido a verdadeira sabedoria para

Protaacutegoras consiste em reconhecer aquilo que eacute nocivo e uacutetil agrave conveniecircncia eacutetica e

poliacutetica dos cidadatildeos e fazer prevalecer pela persuasatildeo o melhor discurso No entanto o

melhor discurso tem uma validade provisoacuteria ou seja ele perdura ateacute que natildeo apareccedila e

se afirme outro discurso ainda melhor Portanto o que realmente existe e importa para

Protaacutegoras natildeo eacute a verdade ou algo mais veriacutedico mas os expedientes que possibilitam

ao orador impor-se sobre os demais cidadatildeos cuja faculdade ele atribui agrave arte retoacuterica

No uacuteltimo capiacutetulo iremos discorrer sobre o compromisso eacutetico-poliacutetico da arte

retoacuterica de Aristoacuteteles bem como o seu contraste com a retoacuterica eriacutestica e relativista

praticada pelos sofistas Decerto a perspectiva epistecircmica assumida pela maioria dos

sofistas pressupotildee que o mundo estaacute destituiacutedo de verdade objetiva por isso o discurso

retoacuterico natildeo teria um referente extriacutenseco ao sujeito ou seja natildeo existiria outro criteacuterio

de verdade senatildeo o proacuteprio sujeito que mediante o triunfo da palavra eacute capaz de persuadir

qualquer um sobre qualquer assunto Entretanto numa expliacutecita alusatildeo a Goacutergias o

Estagirita declara que o bom orador natildeo eacute aquele que promete a vitoacuteria a qualquer custo

mas eacute aquele que encontra para a sua causa todas as chances de obter a vitoacuteria Ele deve

estar apto a descobrir os meios disponiacuteveis para persuadir mas ele jamais teraacute o poder de

persuadir todo e qualquer ouvinte

E no que poderiacuteamos divisar como uma expliacutecita afinidade em relaccedilatildeo agraves teses

platocircnicas Aristoacuteteles sustenta que o orador deve esforccedilar-se por implantar a justiccedila na

alma dos seus concidadatildeos e eliminar os viacutecios Nesse ponto de vista ele subscreve a

funccedilatildeo psicagoacutegica da arte retoacuterica defendida por Platatildeo ndash guiar a alma dos ouvintes para

a praacutetica das virtudes A arte retoacuterica deve pois ser um instrumento educacional eacutetico-

poliacutetico e nisso consistiria a atividade terminal agrave qual se subordina quer dizer a

finalidade uacuteltima para a qual afigura-se como meio razatildeo pela qual Aristoacuteteles censura o

uso leviano que os sofistas faziam das palavras que incorria tanto no mal moral quanto

no erro epistecircmico Desse modo a persuasatildeo natildeo possuiria um fim em si mesmo

conforme propalavam os sofistas porque na condiccedilatildeo de instrumento eacutetico-poliacutetico a

retoacuterica submete-se a uma finalidade mais sublime a qual precisa ser buscada em virtude

de si mesma qual seja a felicidade (εὐδαιμονία) Com efeito para que se possa fazer a

distinccedilatildeo entre o orador e o sofista seraacute preciso a seus olhos identificar aquele natildeo

somente pela teacutecnica retoacuterica que por natureza eacute neutra (como a medicina a estrateacutegia

militar e demais artes) mas fundamentalmente por sua disposiccedilatildeo moral Portanto o bom

orador distinguir-se-ia do sofista pelo fato de empregar a teacutecnica retoacuterica para o triunfo

natural do verdadeiro e do justo e tambeacutem por ser capaz de separar o argumento aparente

do argumento verdadeiro

Aristoacuteteles reafirma o engajamento eacutetico de sua retoacuterica ao criticar o uso que

Goacutergias e os sofistas faziam do discurso epidiacutectico este precisaria manifestar a grandeza

de uma virtude efetivamente existente e reconhecida pelo consenso geral e nunca

transformar uma accedilatildeo perversa numa accedilatildeo virtuosa Porquanto existem accedilotildees que por

serem perversas de maneira absoluta tornam-se indefensaacuteveis a exemplo do adulteacuterio

(μοιχεία) E ao mesmo tempo em que Aristoacuteteles defendia uma retoacuterica racional com

base na demonstraccedilatildeo teacutecnica do verossiacutemil Goacutergias teorizava e praticava uma retoacuterica

elocutiva e emocional Goacutergias desenvolveu para a retoacuterica uma expressatildeo linguiacutestica

eloquente transformando-a numa composiccedilatildeo erudita e ritmada no niacutevel esteacutetico da

poesia Por certo a principal razatildeo pela qual ele optou pela linguagem poeacutetica e natildeo pela

linguagem corrente eacute que aquela possui mais eficazmente a capacidade de apelar para os

desejos irracionais da alma humana Entretanto Aristoacuteteles argumenta que aqueles que

se expressam poeticamente de forma inapropriada introduzem no discurso retoacuterico o

ridiacuteculo e o friacutevolo e em virtude da esterilidade dessa forma de expressatildeo erram por falta

de clareza (σαφής) Sendo assim a virtude suprema da expressatildeo enunciativa seria a

clareza porque se no discurso retoacuterico natildeo se comunicar algo com nitidez e

inteligibilidade natildeo seraacute possiacutevel cumprir a sua respectiva funccedilatildeo ndash persuadir atraveacutes de

argumentos racionais Aliaacutes natildeo foi o mero emprego da retoacuterica afetiva que Aristoacuteteles

censurou em Goacutergias mas o seu emprego exagerado associado com o desprezo da

demonstraccedilatildeo loacutegica na forma do entimema e do exemplo

Veremos tambeacutem que os sofistas mereceram de Aristoacuteteles a reprovaccedilatildeo por

desconsiderar o fundamento de todo e qualquer discurso racional ndash o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo Este princiacutepio que ele considera o mais firme de todos (βέβαιος) expressa

que eacute impossiacutevel que a mesma coisa ao mesmo tempo pertenccedila e natildeo pertenccedila a uma

mesma coisa segundo o mesmo aspecto Protaacutegoras nega este princiacutepio loacutegico ao

sustentar que cada indiviacuteduo possui sua proacutepria verdade e que todos os pontos de vista

satildeo ao mesmo tempo verdadeiros Todavia para Aristoacuteteles pode-se demonstrar tal

princiacutepio por meio da refutaccedilatildeo desde que o adversaacuterio signifique algo para si e para

outro pois com esta simples atitude ele jaacute pressuporia o princiacutepio Ele ainda o pressuporia

por suas accedilotildees porque ele natildeo se deixa cair num poccedilo quando este eacute percebido nem

afirma que cair ali eacute coisa natildeo-boa e boa E visto que para Protaacutegoras o calor e o frio ou

o doce e o amargo natildeo existem efetivamente na natureza mas dependem da percepccedilatildeo de

cada indiviacuteduo em particular a justiccedila e a injusticcedila ou o certo e o errado tambeacutem

possuiriam uma existecircncia igualmente subjetiva A despeito disso ele concedia um certo

espaccedilo agraves opiniotildees convencionais sobre a verdade e a moral mas nenhuma delas seria

mais verdadeira do que outra Aproximando-se de Protaacutegoras o Estagirita propotildee que o

orador deve ser capaz de argumentar persuasivamente sobre coisas contraacuterias poreacutem ele

nunca deve fazer uma e outra coisa posto que o orador jamais deve persuadir as pessoas

a praticar um ato imoral Do mesmo modo Aristoacuteteles atribui um espaccedilo consideraacutevel agraves

opiniotildees convencionais sobre a verdade e a moral mas diferente de Protaacutegoras ele natildeo

estaacute disposto a subscrever a concepccedilatildeo de que as opiniotildees satildeo igualmente vaacutelidas pelo

contraacuterio eacute necessaacuterio que o orador procure nas opiniotildees geralmente aceitas a verdade

da melhor maneira possiacutevel Porquanto ainda que natildeo seja possiacutevel obter sobre os

assuntos eacutetico-poliacuteticos uma verdade absoluta certamente eacute possiacutevel obter algo mais

seguro e mais veriacutedico perspectiva que refutaria o relativismo protagoacuterico Aliaacutes a noccedilatildeo

aristoteacutelica de lei comum implica que efetivamente existe um conceito natural e universal

de certo e errado que todos os homens de algum modo reconheceriam independente de

um julgamento eacutetico situacional que varia conforme os indiviacuteduos e as circunstacircncias

Aristoacuteteles prossegue em sua condenaccedilatildeo do relativismo ao identificar a doutrina de

Protaacutegoras (de que eacute possiacutevel tornar o argumento mais fraco no argumento mais forte)

com uma argumentaccedilatildeo falaciosa chamada de entimema aparente (φαινόμενον

ἐνθύμημα) que constitui um logro e uma verossimilhanccedila natildeo verdadeira Os raciociacutenios

que visam tornar o argumento mais fraco no argumento mais forte ndash que o reacuteu forte eacute

inocente porque pareceria altamente provaacutevel que fosse o agressor ndash parecem raciocinar

a partir de opiniotildees que parecem ser geralmente aceitas mas em realidade natildeo satildeo por

isso satildeo simplesmente falsos e sobretudo inuacuteteis jaacute que natildeo refletiria a regularidade

proacutepria do mundo das accedilotildees humanas Nessa perspectiva se o relativismo for

disseminado poderaacute fomentar consequecircncias danosas para a cidade haja vista que a

justiccedila e a injusticcedila poderatildeo ser defendidas indiferentemente opondo-se agrave funccedilatildeo eacutetico-

poliacutetica da arte retoacuterica que consiste justamente em fortalecer as virtudes dos cidadatildeos

Sendo assim para o Estagirita a verdadeira cidade quer dizer aquela que natildeo o eacute

somente de nome deve estimar acima de tudo as virtudes de seus cidadatildeos porque eacute

impossiacutevel que uma cidade seja feliz se dela a moralidade for abolida

1 Aspectos gerais da retoacuterica de Aristoacuteteles

11 Experiecircncia arte e o primeiro esboccedilo da retoacuterica de Aristoacuteteles

De acordo com o registro histoacuterico de Dioacutegenes Laeacutercio o filoacutesofo Aristoacuteteles tinha

cerca de dezessete anos de idade quando se dirigiu para Atenas com o intuito de

aperfeiccediloar a sua formaccedilatildeo intelectual e imediatamente ingressou na Academia de Platatildeo

Na Academia ele amadureceu e consolidou sua vocaccedilatildeo filosoacutefica de maneira definitiva

permanecendo na escola de Platatildeo por cerca de vinte anos (Vid doutr fil il V 1 9)

Laeacutercio tambeacutem assevera que nesse periacuteodo o Estagirita ensinava seus disciacutepulos a se

exercitarem sobre um tema proposto ao mesmo tempo que os preparava para o exerciacutecio

da arte retoacuterica (Ibid V 1 3) Aleacutem de ministrar liccedilotildees de retoacuterica Aristoacuteteles teria sido

o primeiro a compor em sua proacutepria defesa um discurso judicial quando Eurimedon

hierofante dos misteacuterios de Deoacute o acusou de impiedade (Ibid V 1 8)

Outrossim foram fundamentais suas contribuiccedilotildees nas numerosas discussotildees em

torno dos temas que mormente ocupavam a Academia Decerto no decorrer dos anos

passados na Academia Aristoacuteteles absorveu os princiacutepios platocircnicos e fez defesa deles

em alguns escritos ao mesmo tempo em que submeteu-os a rigorosas criacuteticas A despeito

disso Dioacutegenes Laeacutercio sustenta que o Estagirita foi o mais genuiacuteno (γνήσιος) disciacutepulo

de Platatildeo (Ibid V 1 1) E conforme sublinha Giovanni Reale eacute exato o juiacutezo de Laeacutercio

de que Aristoacuteteles foi o disciacutepulo mais genuiacuteno de Platatildeo mas para ele conveacutem dar a

ldquodisciacutepulordquo e ldquogenuiacutenordquo um significado correto o genuiacuteno disciacutepulo de um grande mestre

natildeo eacute aquele que simplesmente o repete restringindo-se a conservar intacta a sua doutrina

mas eacute aquele que partindo das aporias do mestre procura superaacute-las Aristoacuteteles portanto

revela-se como o disciacutepulo que repensa e ao inveacutes de meramente repetir o mestre

esforccedila-se para ir muito aleacutem dele (REALE 2015 10)

Dioacutegenes Laeacutercio exara que quando Aristoacuteteles tomou a decisatildeo de se afastar da

Academia Platatildeo teria declarado o seguinte ldquoAristoacuteteles deu-me um pontapeacute como

fazem os potros com a matildee que os gerourdquo (Vid doutr fil il V 1 2) Todavia ao referir-

se agraves teorias de Platatildeo na Eacutetica a Nicocircmaco o Estagirita assegura que eacute preferiacutevel e

mesmo a obrigaccedilatildeo de todo o filoacutesofo enquanto amante da sabedoria preterir os laccedilos

mais iacutentimos quando eles rivalizam com a preservaccedilatildeo da verdade Embora ambos sejam

preciosos seria necessaacuterio amar mais a verdade do que os amigos (Eacutet Nic 1096a 14-

17)

E contudo parece ser melhor ateacute talvez um dever que pela salvaccedilatildeo da verdade se destruam os laccedilos que temos com os que nos estatildeo proacuteximos sobretudo se formos filoacutesofos Sendo ambos queridos para noacutes eacute mais de acordo com a lei divina preferir a verdade

Aristoacuteteles afirma que a pesquisa pela verdade eacute difiacutecil mas sob outro aspecto eacute

faacutecil eacute impossiacutevel a um homem apreender adequadamente a verdade e igualmente

impossiacutevel natildeo a apreender de maneira nenhuma Para ele qualquer um pode dizer algo

sobre a realidade mas individualmente essa contribuiccedilatildeo pouco acrescenta ao

conhecimento da verdade Seria a uniatildeo de todas as contribuiccedilotildees individuais o que

produz um resultado consideraacutevel Eacute necessaacuterio pois que o filoacutesofo seja grato a todos

aqueles que compartilham de suas opiniotildees mas tambeacutem com aqueles que expressaram

opiniotildees ateacute mesmo superficiais pois tambeacutem eles deram alguma contribuiccedilatildeo agrave pesquisa

filosoacutefica (Met 993a 30-993b 15)

Aristoacuteteles com efeito natildeo quer transmitir a impressatildeo de que eacute com ele que a

pesquisa filosoacutefica acontece pela primeira vez de modo fundamental pelo contraacuterio ele

dedica agraves opiniotildees doutrinais (δόξαι) anteriores um espaccedilo consideraacutevel A metodologia

que ele emprega no Liceu com o seu respeito ao cabedal de conhecimento proporcionado

pelos saacutebios do passado em qualquer campo do conhecimento necessitava mais do que

qualquer outra escola filosoacutefica de uma biblioteca como ferramenta de trabalho

indispensaacutevel De modo geral as pesquisas de Aristoacuteteles incluiacuteam um abrangente

programa de leitura Sabe-se que ele estudava com tamanha dedicaccedilatildeo a ponto de sua casa

ser chamada de ldquoa casa do leitorrdquo Ele tinha uma grande biblioteca em funccedilatildeo disso teria

sido o primeiro homem a ter reunido livros cujo exemplo teria inspirado o reis do Egito

a montar uma biblioteca (BARNES 2005 30) Em contraste com Platatildeo que natildeo

acreditava na possibilidade de expressar de maneira escrita a verdade filosoacutefica (Fed

275a-276a) o Estagirita compreendera desde os tempos em que frequentou a Academia

a importacircncia do contato contiacutenuo com o pensamento reflexivo do passado que somente

o estudo de sua heranccedila escrita poderia proporcionar

A dedicaccedilatildeo de Aristoacuteteles agraves opiniotildees doutrinais anteriores tambeacutem leva em

consideraccedilatildeo a natureza da legislaccedilatildeo que eacute um componente da arte legisladora

(νομοθετικέ) a qual por sua vez constitui um dos ramos da ciecircncia poliacutetica Para tanto

ele sustenta que eacute necessaacuterio percorrer tudo o que particularmente foi dito com relevacircncia

pelos investigadores do passado sobre a mateacuteria em questatildeo Ele ainda enfatiza que eacute

preciso analisar teoricamente a partir das compilaccedilotildees de constituiccedilotildees quais delas

conservam as suas cidades-Estados e quais delas as destruiacuteram quais os diferentes tipos

de constituiccedilatildeo particular e quais os motivos pelos quais umas governam corretamente e

outras procedem de maneira contraacuteria Ao abordar cada um desses assuntos o Estagirita

supotildee obter uma melhor compreensatildeo de qual eacute a melhor constituiccedilatildeo de todas que tipo

de ordem traz cada constituiccedilatildeo e de que tipo de leis e costumes se serve (Eacutet Nic 1181b

13-25) Praticamente natildeo existe nenhuma obra na qual ele natildeo venha a falar dos seus

predecessores e tal procedimento que apropriadamente pode receber o nome de ldquomeacutetodo

doxaacutesticordquo natildeo diz respeito somente ao estudo da filosofia ou da ciecircncia poliacutetica mas

tambeacutem ao estudo da arte retoacuterica

Na obra Dos Argumentos Sofiacutesticos Aristoacuteteles assegura que fizera uma longa

pesquisa sobre os manuais de retoacuterica elaborados por seus predecessores a partir dos

quais desenvolveu o seu proacuteprio meacutetodo retoacuterico Para ele em todos os casos os

descobrimentos filosoacuteficos resultaram do trabalho daqueles que se debruccedilaram e

reelaboraram os trabalhos jaacute iniciados por seus predecessores O mesmo sucedeu tambeacutem

no campo da arte retoacuterica e praticamente no de todas as demais artes Desse modo os que

descobriram os primeiros princiacutepios da arte retoacuterica os fizeram avanccedilar apenas um pouco

enquanto que os renomados oradores do seu tempo seriam os herdeiros de uma longa

sucessatildeo de homens que os fizeram avanccedilar gradualmente e os desenvolveram ateacute que

alcanccedilassem a sua forma atual Sucedendo-se Tiacutesias aos primeiros fundadores e

Trasiacutemaco a Tiacutesias e a seguir Teodoro e vaacuterios outros oradores que fizeram as suas

diversas contribuiccedilotildees a arte retoacuterica pocircde atingir dimensotildees consideraacuteveis (Arg Sof

182b 20-35)

Eacute bem possiacutevel que em todas as coisas como diz o refratildeo popular o primeiro passo seja o mais importante e por essa mesma razatildeo tambeacutem o mais difiacutecil pois quanto mais poderosa se destina a ser a sua influecircncia mais pequenas satildeo as suas proporccedilotildees e portanto mais difiacuteceis de perceber mas depois que foi descoberto o primeiro comeccedilo eacute mais faacutecil fazer-lhe acreacutescimos e desenvolver o resto Isso tem acontecido no campo da retoacuterica e praticamente no de todas as demais artes pois os que descobriram os seus primeiros princiacutepios os fizeram avanccedilar um pouquinho apenas enquanto as celebridades de hoje satildeo os herdeiros (por assim dizer) de uma longa sucessatildeo de homens que os fizeram avanccedilar polegada por polegada e os desenvolveram ateacute que alcanccedilassem a sua forma presente sucedendo-se Tiacutesias aos primeiros fundadores e Trasiacutemaco a Tiacutesias

e a seguir Teodoro enquanto vaacuterias pessoas faziam as suas diversas contribuiccedilotildees e assim natildeo eacute de surpreender que a arte tenha atingido dimensotildees consideraacuteveis

Outrossim no decorrer da Retoacuterica Aristoacuteteles faz referecircncias a alguns autores de

manuais de retoacuterica e suas respectivas contribuiccedilotildees Dentre esses autores eacute oportuno

mencionar Goacutergias de Leontini Pacircnfilo Isoacutecrates e seu disciacutepulo Calipo Empeacutedocles

Protaacutegoras de Abdera Alcidamante Poliacutecrates Liacutecofron Liciacutemnio de Quios Trasiacutemaco

de Calcedocircnia Hermaacutegoras de Temnos Eacutesquines de Samos Eutidemo de Quios

Andoacutecion Esiacuteon Cefisoacutedoto Glaacuteucon de Teo Coacuterax e Tiacutesias A propoacutesito Aristoacuteteles

teria feito uma coletacircnea de tratados de retoacuterica que circulavam em seu tempo que recebia

o nome de Coletacircnea das Artes a qual teria exposto o tratado do orador Teoacutedotos

chamado de A arte de Teoacutedotos E como se evidencia por estes tiacutetulos e tambeacutem por seu

proacuteprio tratado intitulado de Τέχνη ρητορική Aristoacuteteles utilizava o termo ldquoarterdquo para

designar natildeo somente a atividade praticada pelos oradores mas tambeacutem o seu ensino

(BERTI 1998 170)

Conforme a definiccedilatildeo formulada por Aristoacuteteles a retoacuterica consiste na capacidade

(δύναμις) de descobrir o que eacute adequado a cada caso quando se tem por finalidade

persuadir (Ret 1355b 32-42) Os oradores haacutebeis por conseguinte devem desenvolver

a capacidade de persuadir no mais elevado grau Outrossim a retoacuterica deve estudar e

ensinar de maneira sistemaacutetica essa capacidade pois a retoacuterica soacute poderaacute ser efetivamente

considerada uma arte (τέχνη)1 se atingir tais objetivos Embora a argumentaccedilatildeo de

Aristoacuteteles seja sucinta e objetiva ao sustentar que a retoacuterica eacute uma arte porque eacute possiacutevel

descobrir a razatildeo pela qual satildeo bem-sucedidos os oradores na sua praacutetica discursiva sua

posiccedilatildeo eacute peremptoacuteria segundo ele a retoacuterica eacute uma arte (Ibid 1354a 8-15)

Simplesmente na sua maioria umas pessoas fazem-no ao acaso e outras mediante a praacutetica que resulta do haacutebito E porque os dois modos satildeo possiacuteveis eacute oacutebvio que seria tambeacutem possiacutevel fazer a mesma coisa seguindo um meacutetodo Pois eacute possiacutevel estudar a razatildeo pela qual tanto satildeo bem-sucedidos os que agem por haacutebito como os que agem espontaneamente e todos facilmente concordaratildeo que tal estudo eacute tarefa de uma arte

Na qualidade de uma τέχνη a retoacuterica constituiria para Aristoacuteteles um corpo de

regras e princiacutepios gerais que a razatildeo pode conhecer ou seja uma forma de conhecimento

1 O sentido geral de ldquoarterdquo parece coincidir com o sentido geral de ldquoteacutecnicardquo quer dizer o conjunto de regras aptas a dirigir eficazmente uma atividade humana qualquer por isso ambas as palavras seratildeo oportunamente empregadas como sinocircnimas

que ultrapassa a mera experiecircncia de tal modo que a retoacuterica estaria num grau

intermediaacuterio entre a simples experiecircncia praacutetica e o conhecimento cientiacutefico Essa

caracterizaccedilatildeo da retoacuterica pode ser compreendida agrave luz da Metafiacutesica onde Aristoacuteteles

apresenta uma descriccedilatildeo de graus consecutivos de conhecimento O primeiro grau de

conhecimento se identifica com a percepccedilatildeo (αἴσθησις) de um objeto sensiacutevel O segundo

grau consiste na memoacuteria (μνήμη) O terceiro grau consiste na experiecircncia (ἐμπειρία) E

o quarto grau do saber eacute constituiacutedo pela arte (τέχνη) e pela ciecircncia (ἐπιστήμη) o qual diz

respeito ao conhecimento pela causa (αἰτία) e a pessoa detentora desse grau de saber eacute

considerada mais saacutebia do que aquele que possui simplesmente uma experiecircncia (Met

980a 25-980b 10) Pode-se assegurar entatildeo que o caminho pelo qual o intelecto apreende

qualquer conhecimento eacute a induccedilatildeo (ἐπαγωγή) a qual comeccedila com a percepccedilatildeo de objetos

particulares o que leva agrave retenccedilatildeo de conteuacutedo perceptivo na memoacuteria e depois que

muitos desses conteuacutedos foram retidos a uma experiecircncia e depois desta surge o

conhecimento da arte e da ciecircncia quando de muitos objetos inteligiacuteveis que derivam da

experiecircncia uma suposiccedilatildeo universal sobre objetos similares eacute produzida Sendo assim

o conhecimento da arte e da ciecircncia se produz quando de muitas observaccedilotildees da

experiecircncia forma-se um juiacutezo geral e uacutenico passiacutevel de ser referido a todos os casos

semelhantes (Ibid 981a 1-5 )

Com efeito do ponto de vista do conhecimento natildeo haveria uma diferenccedila

substancial entre a arte e a ciecircncia considerando-se que ambas procuram conhecer pela

causa A uacutenica diferenccedila entre elas eacute que a primeira se ocupa de realidades contingentes

as quais se relacionam com as accedilotildees humanas ao passo que a segunda se ocupa daquilo

que eacute das realidades necessaacuterias as quais seriam independentes dos seres humanos (Seg

Anal 100a 4-7) Todavia eacute importante observar que a palavra ldquocausardquo deve ser

compreendida num sentido mais abrangente pois o termo grego ldquoαἰτίαrdquo traduzido

normalmente por ldquocausardquo tambeacutem designa o que nomeamos por ldquoexplicaccedilatildeordquo Assim

explicar alguma coisa eacute demonstrar por que ela eacute assim e demonstrar por que alguma

coisa eacute assim eacute expor a sua causa (BARNES 2005 58) Dessarte a retoacuterica se identifica

com uma legiacutetima arte porque eacute possiacutevel explicar a razatildeo pela qual satildeo bem sucedidos os

oradores na sua praacutetica discursiva e por conseguinte produzir um corpo de regras e

princiacutepios gerais que podem ser conhecidos e aplicados por qualquer indiviacuteduo dotado de

razatildeo

Os oradores que satildeo o alvo da criacutetica de Aristoacuteteles na Retoacuterica possuiacuteam segundo

ele somente uma ἐμπειρία e natildeo uma τέχνη (Ret 1354a 16-26) De acordo com a

exposiccedilatildeo de Aristoacuteteles na Metafiacutesica jaacute aludida precedentemente a palavra grega

ldquoἐμπειρίαrdquo se relaciona com as sensaccedilotildees a memoacuteria e o haacutebito ao passo que como jaacute

dito a palavra ldquoτέχνηrdquo reporta-se ao conhecimento das causas A sensaccedilatildeo eacute o sinal

comum entre os homens e os animais A repeticcedilatildeo das sensaccedilotildees uma apoacutes a outra eacute

organizada na alma pela faculdade da memoacuteria e a esta ordem estabelecida pela memoacuteria

nas sensaccedilotildees Aristoacuteteles denomina de ἐμπειρία que eacute o termo grego que designa a

experiecircncia A ἐμπειρία entatildeo designa a ordem que a memoacuteria estabelece nas sensaccedilotildees

passageiras constituindo-se um modo imperfeito de conhecer haja vista que eacute comum ao

homem e ao animal2 Pois enquanto os animais vivem de imagens sensiacuteveis e com

recordaccedilotildees e pouco participam da experiecircncia o ser humano vive da arte e de

raciociacutenios (Met 980a 5-980b 7)

Outrossim existe mais conhecimento na τέχνη do que na ἐμπειρία de modo que

os homens de arte satildeo mais saacutebios do que os empiacutericos Isto ocorre porque estes conhecem

o ldquoquerdquo mas natildeo conhecem o ldquoporquecircrdquo das coisas Assim aquele que tem a direccedilatildeo nas

diferentes artes (ἀρχιτέκτων) eacute superior ao trabalhador manual (χειροτέχνης) pelo fato de

conhecer as causas do que se faz podendo transmitir por demonstraccedilatildeo o seu

conhecimento ao passo que o trabalhador manual age simplesmente por haacutebito (ἔθος)

ignorando o que faz Aristoacuteteles considera o ἀρχιτέκτων mais digno de honra e possuidor

de maior conhecimento do que o χειροτέχνης na medida em que aquele conhece as causas

das coisas que satildeo feitas ao contraacuterio deste que age sem saber o que faz Aliaacutes o

trabalhador manual age como alguns dos seres inanimados a exemplo do fogo quando

queima pois cada um dos seres inanimados age por certo impulso natural enquanto que

o trabalhador manual age por haacutebito Agrave vista disso o Estagirita considera o primeiro mais

saacutebio natildeo porque eacute capaz de produzir alguma coisa mas porque eacute conhecedor das causas

Aleacutem do mais ele sustenta que a diferenccedila entre quem sabe e quem natildeo sabe consiste na

2 Apesar da experiecircncia constituir um modo imperfeito de conhecer Aristoacuteteles sustenta que as pessoas que possuem um saber empiacuterico em determinadas aacutereas satildeo mais praacuteticas do que aquelas que possuem um saber cientiacutefico Por exemplo aquele que possui o conhecimento geral de que carnes leves satildeo digeriacuteveis e saudaacuteveis mas natildeo sabe que tipos de carne satildeo leves natildeo seraacute capaz de produzir sauacutede ao passo que aquele que sabe quais tipos de carnes de aves satildeo saudaacuteveis certamente produziraacute sauacutede Por essa razatildeo natildeo se deve possuir um conhecimento (cientiacutefico) em detrimento do outro (empiacuterico) mas ambos os tipos de conhecimento (Eacutet Nic 1141b 18-23) ldquoDe resto os mais sensatos a respeito da accedilatildeo satildeo tambeacutem os mais experimentados nas circunstacircncias particulares em que de cada vez nos podemos encontrar Por exemplo se algueacutem souber que as carnes leves satildeo de mais faacutecil digestatildeo e por isso mais saudaacuteveis mas desconhecer quais satildeo os animais com carne mais leve natildeo conseguiraacute restabelecer sua proacutepria sauacutede Contudo quem souber que as aves satildeo animais leves e portanto que tecircm carne mais leve restabelececirc-la-aacute mais facilmente A sensatez eacute uma disposiccedilatildeo atuante sobre o horizonte praacutetico de tal forma que se deve possuir ambas as formas de saber (o universal e o particular)rdquo

capacidade de ensinar pois o que possui a arte eacute capaz de ensinar enquanto o que possui

a experiecircncia natildeo o eacute (Ibid 981a 30-981b 1-9)

Aristoacuteteles daiacute conclui que os oradores que distribuiacuteam discursos para serem

aprendidos de memoacuteria ou sob a forma de perguntas e respostas que ensinavam as regras

sobre a melhor maneira de transmiti-los em partes e as estrateacutegias para criar no juiz certa

disposiccedilatildeo emocional natildeo estariam transmitindo atraveacutes de seus manuais uma verdadeira

τέχνη com um meacutetodo e preceitos mas unicamente uma ἐμπειρία3 (Ret 1354b 21-30)

E se o que dizemos eacute exato natildeo resta a menor duacutevida de que mateacuterias externas ao assunto satildeo descritas como artes por aqueles que definem outras coisas por exemplo o que devem conter o proecircmio ou a narraccedilatildeo e cada uma das partes do discurso pois ao se ocuparem destas questotildees nada mais os preocupa senatildeo o modo como poderatildeo criar no juiz uma certa disposiccedilatildeo Mas sobre as provas propriamente artiacutesticas nenhuma indicaccedilatildeo avanccedilam isto eacute sobre aquilo que afinal torna o leitor haacutebil no uso do entimema

Na obra Dos Argumentos Sofiacutesticos Aristoacuteteles assegura que o treinamento

proporcionado pelos professores remunerados para ensinar a produzir argumentos

sofiacutesticos era similar agrave maneira como Goacutergias tratou do asssunto porquanto o que eles

faziam era distribuir discursos para serem aprendidos de memoacuteria alguns deles retoacutericos

e outros na forma de perguntas e respostas na suposiccedilatildeo de que os argumentos de cada

uma das partes estivessem todos de modo geral incluiacutedos ali (Arg Sof 183b 35-184a

1) Assim o ensino que eles transmitiam aos seus alunos era raacutepido mas rudimentar e

imaginavam adestrar as pessoas transmitindo-lhes natildeo a arte stricto sensu mas

simplesmente os seus produtos Aristoacuteteles ilustra esse diagnoacutestico afirmando que a arte

retoacuterica praticada por seus predecessores era como se um homem que pretendesse ser

capaz de transmitir o conhecimento de como evitar as dores nos peacutes natildeo ensinasse a seu

aluno a arte do sapateiro nem indicasse as fontes onde poderia adquiri-la mas

apresentasse calccedilados de todos tipos Tal homem o teria ajudado a satisfazer a sua

necessidade poreacutem jamais teria transmitido uma autecircntica arte (Ibid 184a 1-10)

3 No diaacutelogo Goacutergias Platatildeo tambeacutem critica a retoacuterica praticada por seus contemporacircneos por natildeo ser uma τέχνη mas simplesmente uma ἐμπειρία uma vez que ela natildeo possuiria nenhuma compreensatildeo racional da natureza daquilo a que se aplica ou daquilo que aplica e por conseguinte natildeo teria nada a dizer sobre o conhecimento das causas (Goacuterg 465a) ldquoIsso eu chamo de adulaccedilatildeo e afirmo que coisa desse tipo eacute vergonhosa Polo ndash e isto eu digo a ti ndash porque visa o prazer a despeito do supremo bem Natildeo afirmo que ela eacute arte mas experiecircncia porque natildeo possui nenhuma compreensatildeo racional da natureza daquilo a que se aplica e consequentemente natildeo tem nada a dizer sobre a causa de cada um deles Eu natildeo denomino arte algo que seja irracional mas se tiveres algum ponto a contestar desejo colocar agrave prova o argumentordquo

Enquanto praacutetica retoacuterica conveacutem levar em consideraccedilatildeo a anaacutelise de E M Cope

acerca do significado da ἐμπειρία Para ele a ἐμπειρία constitui um procedimento

irracional Eacute irracional porque manifesta-se num modo de operaccedilatildeo meramente mecacircnico

exibindo uma habilidade que natildeo resulta de nada aleacutem do haacutebito e eacute adquirida pela simples

repeticcedilatildeo E seria assim porque a ἐμπειρία trata apenas de casos individuais em

detrimento de concepccedilotildees ou regras gerais E ainda que ocasionalmente seja capaz de

elaborar alguma noccedilatildeo geral ela nunca estaacute separada dos objetos particulares nem eacute

definida com precisatildeo Desse modo a ἐμπειρία torna-se incapaz de transmitir o

conhecimento de uma verdadeira arte Esta por conseguinte pode ser definida como um

corpo de regras gerais visando um resultado praacutetico cuja aplicaccedilatildeo assegura a previsatildeo

de um certo resultado (COPE 1867 22-23)

Os estudiosos de Aristoacuteteles normalmente dividem seus escritos em dois grandes

grupos os escritos exoteacutericos que eram compostos na sua maioria em forma dialoacutegica e

destinados a um puacuteblico mais amplo E os escritos esoteacutericos que eram destinados

somente ao ciacuterculo iacutentimo de disciacutepulos O primeiro grupo de escritos perdeu-se

completamente e o que resta deles satildeo alguns fragmentos e tiacutetulos vazios Todavia

estima-se que o primeiro escrito exoteacuterico tenha sido o diaacutelogo juvenil chamado Grilos

ou Da Retoacuterica no qual Aristoacuteteles defende a posiccedilatildeo de Platatildeo acerca da retoacuterica em

detrimento da posiccedilatildeo de Isoacutecrates (REALE 2015 9) Aleacutem do mais segundo o registro

de Dioacutegenes Laeacutercio Aristoacuteteles teria escrito outras obras sobre temas especiacuteficos ligados

agrave arte retoacuterica as quais tambeacutem foram perdidas tais como Prefaacutecio aos Lugares-Comuns

Das Paixotildees Entimemas Retoacutericos Divisotildees dos Entimemas e Da Dicccedilatildeo (Vid doutr fil

il V 1 22 24)

Com efeito foi justamente sobre temas de retoacuterica que Aristoacuteteles lanccedilou-se como

escritor compondo e publicando o Grilos redigido em torno de 360 aC a propoacutesito dos

elogios retoacutericos compostos por vaacuterios oradores em virtude da morte de Grilos que era

filho de Xenofonte no ano de 362 aC 4 Tal motivaccedilatildeo viria de Platatildeo que lhe incumbiu

4 Dioacutegenes Laeacutercio refere-se agrave morte de Grilos nos seguintes termos (Vid doutr fil il II 6 54-55) ldquoDe acordo com Dioacutecles em suas Vidas dos Filoacutesofos eles se educaram na proacutepria Esparta Diocircdoros sobreviveu agrave batalha sem fazer nada de extraordinaacuterio (ele tinha um filho com o mesmo nome que o irmatildeo) Grilos ao contraacuterio servia na cavalaria e na batalha travada nas proximidades de Mantinea combateu bravamente e tombou segundo o relato de Eacuteforos no vigeacutessimo quinto livro de sua obra Cefisocircdoros era o comandante da cavalaria e Hegesiacutelaos o comandante-em-chefe Nessa batalha tambeacutem morreu Epamecircinondas Dizem que na ocasiatildeo Xenofon estava realizando um sacrifiacutecio com uma coroa na cabeccedila e a removeu ao receber a notiacutecia da morte de seu filho Mais tarde tendo sabido que ele tombara gloriosamente repocircs a coroa na cabeccedila Alguns altores dizem que Xenofon natildeo derramou uma laacutegrima sequer mas exclamou lsquoeu sabia que ele nasceu mortalrsquo Aristoacuteteles menciona que incontaacuteveis autores de

de ministrar liccedilotildees sobre essa disciplina na Academia5 No diaacutelogo em apreccedilo Aristoacuteteles

toma posiccedilatildeo contra Isoacutecrates ao defender o ideal filosoacutefico da paideia platocircnica e parece

acolher a perspectiva que o proacuteprio Platatildeo defendera sobre a retoacuterica sobretudo no

diaacutelogo Fedro (REALE 2015 163) A Academia de Platatildeo reservava um espaccedilo

consideraacutevel agrave retoacuterica e foi por tratar deste toacutepico no diaacutelogo Grilos que o Estagirita

comeccedilou a criar o seu renome como filoacutesofo no qual ele atacava as concepccedilotildees de

Isoacutecrates que era respeitado orador educador e especialista profissional Um dos

disciacutepulos de Isoacutecrates chamado Cefisoacutedoro elaborou uma longa reacuteplica a primeira de

muitas polecircmicas em que Aristoacuteteles esteve envolvido Aliaacutes anos depois em seu

Protreacuteptico Aristoacuteteles defendeu o ideal da Academia platocircnica contra as noccedilotildees mais

pragmaacuteticas da escola isocraacutetica tendo o proacuteprio Isoacutecrates dado uma resposta a ela em

sua obra Antiacutedose (BARNES 2005 37-38) E conforme o exame de George A Kennedy

a afinidade dos pontos de vista de Platatildeo e do jovem Aristoacuteteles sobre o tema da retoacuterica

estaria indicada pelo ataque de Cefisoacutedoro a ambos os filoacutesofos Cefisoacutedoro era um

disciacutepulo de Isoacutecrates que viu no Grilos uma invectiva tanto ao seu trabalho quanto ao

trabalho do seu mestre Kennedy ainda salienta que a polecircmica sobre a natureza da

retoacuterica envolvendo de um lado Isoacutecrates e Cefisoacutedoro e de outro Platatildeo e Aristoacuteteles

teria surgido em virtude do sucesso da escola de retoacuterica fundada por Isoacutecrates

(KENNEDY 1963 83-84)

Outrossim os primeiros esboccedilos da Retoacuterica que ao contraacuterio do Grilos e do

Protreacuteptico ainda permanece intacto podem muito bem remontar aos primeiros anos da

Academia ao passo que os retoques finais desse trabalho soacute foram dados no uacuteltimo

periacuteodo da vida de Aristoacuteteles Aliaacutes a retoacuterica e o estudo da literatura se acham

estreitamente ligados Aristoacuteteles escreveu um livro histoacuterico-criacutetico Sobre os poetas e

uma coletacircnea de Problemas homeacutericos os quais podem ter sido escritos no interior da

Academia Estes estudos mostraram que o Estagirita era um seacuterio estudioso de filologia

e de criacutetica literaacuteria tendo constituiacutedo parte do trabalho preparatoacuterio para a Poeacutetica (onde

ele esboccedilou seu celebrado relato sobre a trageacutedia) assim como para o terceiro livro da

epitaacutefios e elogios escreveram a propoacutesito de Grilos em parte para serem agradaacuteveis ao pai Em sua obra Vida dos filoacutesofos Hecircrmipos tambeacutem afirma que o proacuteprio Isocrates escreveu um elogio de Grilosrdquo 5 Existe um documento escrito pelo epicurista Filodemo que enfatiza o interesse de Aristoacuteteles pela retoacuterica desde os primeiros anos na Academia de Platatildeo Segundo tal documento Aristoacuteteles teria ministrado um curso de retoacuterica durante o qual havia estabelecido um viacutenculo estreito entre a retoacuterica e a poliacutetica Aliaacutes Aristoacuteteles consideraria a retoacuterica uma verdadeira arte digna de ser ensinada mas ao mesmo tempo rejeitava aquele de tipo gorgiano ensinada tambeacutem por Isoacutecrates substituindo-a pelo tipo desejado por Platatildeo no Fedro qual seja uma retoacuterica baseada na dialeacutetica e articulada com a poliacutetica (BERTI 1998169-170)

Retoacuterica o qual versa sobre a linguagem e o estilo A retoacuterica de Aristoacuteteles ainda

manteacutem laccedilos com a loacutegica de modo que uma das principais alegaccedilotildees de Aristoacuteteles no

Grilos foi que a retoacuterica natildeo deveria apelar para as emoccedilotildees com uma linguagem

elaborada devendo antes persuadir os ouvintes mediante argumentos racionais

(BARNES 2005 38) E apesar das parcas informaccedilotildees disponiacuteveis sobre o diaacutelogo

Grilos pode-se concluir com muita probabilidade que ele representa a primeira fase do

pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles enquanto que o pensamento da sua maturidade e da

sua uacuteltima produccedilatildeo eacute expresso pelos trecircs livros da Retoacuterica os quais seratildeo examinados

a seguir nos seus aspectos gerais

12 Breve anaacutelise do trecircs livros da Retoacuterica

A teoria mais aceita sobre a composiccedilatildeo dos trecircs livros da Retoacuterica eacute que satildeo notas

das aulas do proacuteprio Aristoacuteteles muitas das quais escritas durante sua primeira estadia na

cidade de Atenas que teriam sido revisadas vaacuterias vezes durante os anos em que lecionou

Muito provavelmente as aulas foram publicadas e editadas depois de sua morte pelos

membros da Escola Peripateacutetica fundada por Aristoacuteteles (em 335 aC) Com base nas

sucessivas revisotildees os conceitos tomados de Platatildeo e dos sofistas chegaram a constituir

um todo novo e coerente Isto posto tal como chegou aos leitores de Aristoacuteteles a

Retoacuterica estaria perfeitamente estruturada e entre suas partes haveria uma genuiacutena

unidade passando de um tema a outro com naturalidade e cuidado Eacute certo que algumas

dessas divisotildees poderiam ter sido obra dos editores a divisatildeo do Livro I e do Livro II

por exemplo poderia ter sido realizada por pura conveniecircncia na confecccedilatildeo dos rolos

Natildeo obstante o conjunto da obra eacute muito completo e muitas passagens remetem-se

explicitamente a outras partes do tratado (MURPHY 1989 35-36)

No iniacutecio do primeiro livro da Retoacuterica o Estagirita afirma que a arte retoacuterica eacute uma

forma de argumentaccedilatildeo comparaacutevel agrave dialeacutetica ndash ἡ ῥητορική ἐστιν ἀντίστροφος τῇ

διαλεκτικῇ Isso porque ambas se ocupam de questotildees mais ou menos ligadas ao

conhecimento comum e natildeo se relacionam a nenhuma ciecircncia em particular Conforme

observa Barbara Cassin a retoacuterica seria ἀντιστροφή da dialeacutetica porque elas guardariam

uma relaccedilatildeo de analogia a retoacuterica seria o anaacutelogo no campo do persuasivo da dialeacutetica

no campo do demonstrativo A analogia entre as duas disciplinas seria ainda indicada pelo

caraacuteter comum de universalidade ao fato de que suas premissas satildeo provaacuteveis e apenas

provaacuteveis e ao fato de que ambas tecircm a capacidade de argumentar os contraacuterios

(CASSIN 2005 161-162) Aristoacuteteles declara que todas as pessoas praticam de alguma

forma ambas as disciplinas porque elas procuram eventualmente questionar e sustentar

um argumento defender ou acusar Ademais a retoacuterica e a dialeacutetica natildeo seriam ciecircncias

(ἐπιστῆμαι) mas faculdades (δυνάμεις) mentais as quais se relacionam somente a

discursos (λόγοι) e natildeo a determinadas mateacuterias estabelecidas (Ret 1354a 1-7 1359b15-

20)

A retoacuterica eacute a outra face da dialeacutetica pois ambas se ocupam de questotildees mais ou menos ligadas ao conhecimento comum e natildeo correspondem a nenhuma ciecircncia em particular De fato todas as pessoas de alguma maneira participam de uma e de outra pois todas elas tentam em certa medida questionar e sustentar um argumento defender-se ou acusar [] E quanto mais se tentaram imaginar a dialeacutetica ou a retoacuterica natildeo apenas como faculdades mentais mas como ciecircncias tanto mais se estaraacute inadvertidamente obscurecendo a sua real natureza passando-se com isso a construir ciecircncias relativas a determinadas mateacuterias estabelecidas e natildeo soacute a discursos

Segundo o exame de E M Cope a caracteriacutestica mais distintiva e peculiar da

retoacuterica de Aristoacuteteles eacute a sua vinculaccedilatildeo com a dialeacutetica Seria a ligaccedilatildeo da retoacuterica com

a dialeacutetica que habilitaria a primeira propiciar uma exposiccedilatildeo sistemaacutetica e cientiacutefica de

seus conteuacutedos podendo por conseguinte ser classificada como um tipo especial de

raciociacutenio e modo de prova (COPE 1867 6) Aleacutem do mais ele considera a retoacuterica e a

dialeacutetica como espeacutecies de um mesmo gecircnero como artes irmatildes as quais possuiriam

diferenccedilas especiacuteficas e semelhanccedilas gerais As diferenccedilas especiacuteficas consistiriam em

duas maneiras diferentes de provar seus raciociacutenios ao passo que a dialeacutetica concluiria

suas proposiccedilotildees mediante o silogismo formal e pela induccedilatildeo regular a retoacuterica por sua

vez realizaria suas inferecircncias a partir dos entimemas os quais satildeo argumentos

abreviados imperfeitos e nunca formalmente completos e atraveacutes do exemplo que eacute o

equivalente a um argumento por analogia (Id 2006 2) No que diz respeito agrave

compreensatildeo das semelhanccedilas gerais entre a retoacuterica e a dialeacutetica conveacutem salientar o que

o proacuteprio Aristoacuteteles expocircs acerca das duas disciplinas

Ambas satildeo capazes de provar uma tese bem como a tese que lhe eacute contraacuteria

poreacutem isto natildeo deve implicar na equivalecircncia entre elas equivalecircncia que redundaria na

doutrina dos dissoi logoi (δισσοὶ λόγοι) atribuiacuteda a Protaacutegoras e aos sofistas em geral

segundo a qual eacute possiacutevel tomar qualquer lado de uma questatildeo e defendecirc-la com igual

sucesso Antes o que Aristoacuteteles parece pretender assinalar eacute que atraveacutes da retoacuterica e da

dialeacutetica eacute possiacutevel argumentar em favor de uma tese fraca (Ret 1355a 39-45) Essas

disciplinas natildeo pertencem a nenhum gecircnero particular definido satildeo faculdades universais

pela caracteriacutestica de natildeo implicarem nenhuma especializaccedilatildeo e possibilitarem a

discussatildeo de tudo quanto eacute controverso (Ibid 1355b 11-12) Ambas podem ser praticadas

tanto por haacutebito como por acaso mas tambeacutem podem ser ensinadas de acordo com um

meacutetodo por isso ambas satildeo consideradas artes (Ibid 1354a 1-4) E finalmente ambas

as disciplinas se utilizam de dois tipos de argumentaccedilatildeo (Ibid 1356b 1-5) induccedilatildeo

(ἐπαγωγή) e silogismo (συλλογισμός)

No iniacutecio dos Toacutepicos Aristoacuteteles define a dialeacutetica como um meacutetodo de

investigaccedilatildeo a partir do qual eacute possiacutevel raciocinar partindo de opiniotildees geralmente

aceitas sobre qualquer tipo de problema (Toacutep 100a 18-20) Com efeito ao discorrer

sobre a dialeacutetica Aristoacuteteles faz referecircncia a uma situaccedilatildeo concreta de discussatildeo entre dois

interlocutores na qual um sustenta determinada tese enquanto que o outro esforccedila-se por

contestaacute-la O instrumento que se usa em tal discussatildeo eacute a argumentaccedilatildeo por silogismo e

induccedilatildeo O objeto ao qual tal argumentaccedilatildeo se aplica eacute o problema (πρόβλημα) que

consiste numa alternativa de tipo interrogativo entre duas proposiccedilotildees contraacuterias A

discussatildeo tem iniacutecio com a formulaccedilatildeo de uma pergunta que estaacute aberta agrave possibilidade

de duas respostas entre si contraditoacuterias por exemplo ldquoeacute lsquoanimal que caminha com dois

peacutesrsquo a definiccedilatildeo de homem ou natildeo eacuterdquo (Ibid 101b 30-35) Agrave pergunta inicial um dos dois

interlocutores deve sustentar uma determinada tese ao passo que o outro tem a

incumbecircncia de contestar a tese defendida O interlocutor encarregado de contestar faraacute

uma seacuterie de perguntas a fim de obter do proponente da tese as premissas com as quais

esteja de acordo atraveacutes das quais seraacute possiacutevel levaacute-lo agrave contradiccedilatildeo consigo mesmo

Todavia aquele que responde deve evitar ao maacuteximo ser conduzido agrave contradiccedilatildeo consigo

mesmo A argumentaccedilatildeo que conclui numa contradiccedilatildeo eacute denominada por Aristoacuteteles de

refutaccedilatildeo (ἔλεγχος) Outrossim a discussatildeo dialeacutetica supotildee que os dois interlocutores

discutam na presenccedila de um puacuteblico que decidiraacute qual dos dois teve sucesso ndash conseguir

refutar o outro ou natildeo fazer-se refutar pelo outro As premissas utilizadas pelos

interlocutores satildeo as opiniotildees geralmente aceitas (ἔνδοξα) as quais satildeo partilhadas por

todos os ouvintes e servem de ponto de referecircncia comum para a discussatildeo Tambeacutem eacute

partilhada pelos ouvintes a regra segundo a qual a contradiccedilatildeo eacute o equivalente de falsidade

de uma tese de modo que aquele que nela incorre deve ser considerado o perdedor da

discussatildeo dialeacutetica E para este meacutetodo de investigaccedilatildeo Aristoacuteteles destaca trecircs fins uacuteteis

o adestramento do intelecto as disputas casuais e as ciecircncias filosoacuteficas (Ibid 101a 25-

26) Vejamos separadamente cada uma dessas trecircs utilidades

A primeira utilidade da dialeacutetica consiste no seu mero exerciacutecio ou treino intelectual

(πρὸς γυμνασίαν) porquanto o domiacutenio do seu meacutetodo capacita a argumentar o proacute e o

contra sobre qualquer tema proposto Este primeiro uso tem caraacuteter pessoal ou privado

ou seja de estudo de preparo de aprimoramento de uma praacutetica largamente disseminada

mas natildeo adequadamente disciplinada a fim de que se a pratique mais eficazmente Nas

disputas dialeacuteticas argumenta-se para avaliar as forccedilas com o propoacutesito de exercitar-se e

provar-se natildeo simplesmente para instruir-se E se dessa atividade natildeo for possiacutevel extrair

qualquer verdade pelo menos obter-se-aacute um treinamento intelectual um adestramento no

uso da linguagem que possibilite argumentar sobre qualquer tipo de assunto (Ibid101a

28-30)

A segunda utilidade da dialeacutetica refere-se aos encontros casuais (πρὸς τὰς

ἐντεύξεις) pois ao fornecer uma lista de opiniotildees geralmente aceitas facilita a persuasatildeo

ao discutir a partir das teses do proacuteprio oponente Trata-se natildeo mais do uso privado da

dialeacutetica mas sim do seu uso puacuteblico o qual eacute mais proacuteprio a ela no qual entram as

discussotildees poliacuteticas desenvolvidas nas assembleias deliberativas e consultivas e os

debates judiciaacuterios que ocorrem nos tribunais Todavia os argumentos utilizados para

este propoacutesito natildeo devem ser extraiacutedos das opiniotildees alheias mas das opiniotildees defendidas

pela maioria das pessoas (Ibid 101a 31-34)

No que tange ao estudo das ciecircncias filosoacuteficas (πρὸς τὰς κατὰ φιλοσοφίαν

ἐπιστήμας) a dialeacutetica eacute uacutetil porque a capacidade de suscitar dificuldades significativas

sobre ambos os aspectos de um assunto permite ao dialeacutetico detectar mais facilmente a

verdade e o erro nos diversos pontos e questotildees que surgirem (Ibid 101a 35-40)

Outrossim ela serve como um processo de criacutetica onde se encontra o caminho que conduz

aos princiacutepios de todas as investigaccedilotildees (Ibid 101b 3-12) E os assuntos investigados

pela dialeacutetica podem ser problemas loacutegicos fiacutesicos ou eacuteticos (Ibid 105b 20-25)

Das proposiccedilotildees e problemas mdash encarando-se a questatildeo em linhas gerais mdash existem trecircs grupos algumas satildeo proposiccedilotildees eacuteticas outras versam sobre a filosofia natural e outras enfim satildeo loacutegicas Proposiccedilotildees como a seguinte satildeo eacuteticas deve um homem obedecer antes aos seus genitores ou agraves leis quando estatildeo em desacordo um exemplo de proposiccedilatildeo loacutegica eacute o conhecimento dos opostos eacute ou natildeo eacute o mesmo enquanto proposiccedilotildees como esta dizem respeito agrave filosofia natural eacute ou natildeo eacute eterno o universo E do mesmo modo no

que tange aos problemas A natureza de cada uma das supraditas espeacutecies de proposiccedilatildeo natildeo se expressa facilmente numa definiccedilatildeo mas devemos esforccedilar-nos por reconhecer cada uma delas graccedilas a uma familiaridade conquistada atraveacutes da induccedilatildeo examinando-as agrave luz dos exemplos dados acima

Pode-se depreender dessa sumaacuteria anaacutelise que a dialeacutetica eacute reduzida por Aristoacuteteles

agrave condiccedilatildeo de exerciacutecio intelectual que se ocupa natildeo com as proacuteprias coisas mas com as

opiniotildees geralmente aceitas sobre as coisas que natildeo podendo atingir pelo seu meacutetodo a

verdade cientiacutefica permanece no acircmbito da probabilidade Sua abordagem eacute uacutetil quer

para o livre exerciacutecio na arte de argumentar quer para se ter sucesso em qualquer tipo de

discussatildeo puacuteblica quer para conhecer a verdade ou a falsidade de uma certa proposiccedilatildeo

Sendo a dialeacutetica uma praacutetica interrogativa ou examinativa ela tambeacutem desempenharia

um papel epistecircmico por permitir estabelecer atraveacutes de um exame contraditoacuterio os

primeiros princiacutepios de cada ciecircncia e os primeiros princiacutepios comuns agraves ciecircncias em

geral E posto que todas as ciecircncias em que se articula a filosofia aristoteacutelica satildeo

substancialmente pesquisas de princiacutepios e de causas ela se utiliza da dialeacutetica a qual

natildeo garante o conhecimento seguro dos princiacutepios da ciecircncia porque natildeo eacute uma ciecircncia

mas certamente facilita a busca e a posse destes princiacutepios Ela natildeo eacute por si mesma tal

conhecimento mas constitui a investigaccedilatildeo o caminho que se realiza para chegar a ele

Portanto em certos casos a dialeacutetica pode fazer conhecer ou seja pode ser um

instrumento ou meacutetodo da ciecircncia

No entanto a dialeacutetica de Aristoacuteteles natildeo deve ser confundida com a dialeacutetica no

sentido platocircnico cujo escopo consiste em apreender os fundamentos da realidade como

um todo Pelo contraacuterio conforme frisa Otfried Houmlffe o Estagirita teria expandido o

domiacutenio de aplicaccedilatildeo da dialeacutetica e ao mesmo tempo nivelado para baixo o seu estatuto

epistecircmico Desse modo a dialeacutetica aristoteacutelica se ocuparia de um determinado tipo de

debates intelectuais natildeo sendo competente nem para conduzir a uma verdade de niacutevel

supremo nem para a filosofia Por outro lado ela seria seguramente proveitosa para a arte

para atacar a tese de um oponente ou para defender as proacuteprias teses Para a filosofia ela

seria importante e uacutetil mas somente como um tipo de ciecircncia auxiliar E tal como a

demonstraccedilatildeo cientiacutefica (ἀπόδειξις) a dialeacutetica tambeacutem se serve do silogismo A

diferenccedila no uso do silogismo em um caso e em outro natildeo reside no caraacuteter loacutegico-formal

estrito mas no estatuto epistecircmico das premissas ndash a demonstraccedilatildeo cientiacutefica repousa em

proposiccedilotildees verdadeiras e primeiras enquanto que as demonstraccedilotildees dialeacuteticas nas

chamadas ἔνδοξα Por essas Aristoacuteteles entende proposiccedilotildees que diferentemente dos

princiacutepios de uma ciecircncia natildeo satildeo criacuteveis por si mesmas e consistem em parte (como na

arte retoacuterica) de opiniotildees comuns de concepccedilotildees da maioria de opiniotildees qualificadas

bem-fundamentadas (HOumlFFE 2008 56)

De sua longa pesquisa sobre os manuais de retoacuterica existentes em sua eacutepoca

Aristoacuteteles conclui que todos eles satildeo incompletos porque amiuacutede negligenciam a

argumentaccedilatildeo loacutegica enfatizando a retoacuterica judicial (Ret 1354a 16-23) A maioria dos

autores de manuais censurados por Aristoacuteteles se esforccedilava por elaborar a arte do discurso

judicial (δικανικός) em detrimento de outros gecircneros de discurso como o deliberativo

(συμβουλευτικός) e o epidiacutectico (ἐπιδεικτικός) porque seria mais uacutetil pronunciar algo

exterior ao assunto nos discursos judiciais bem como criar no juiz uma certa disposiccedilatildeo

emocional (Ibid 1354b 31-49) Agrave vista disso o orador precisaria compreender a estrutura

loacutegica do argumento retoacuterico constituiacuteda pelo entimema (ἐνθύμημα) e pelo exemplo

(παράδειγμα) Estes seriam entatildeo os dispositivos fundamentais para o exerciacutecio da arte

retoacuterica

De acordo com Aristoacuteteles o entimema eacute uma espeacutecie de silogismo que se

fundamenta sobre probabilidades e sinais (τὰ δ᾽ ἐνθυμήματα ἐξ εἰκότων καὶ ἐκ σημείων)

e natildeo propriamente sobre o verdadeiro e imediato Para ele a probabilidade eacute o que

geralmente acontece mas natildeo absolutamente antes diz respeito a coisas que podem ser

de uma maneira ou de outra e relaciona-se no que concerne ao provaacutevel (Ibid 1357a 44-

47) O sinal (σημείων) por sua vez eacute um indicativo de que algo aconteceu ou existe e

supotildee a relaccedilatildeo entre dois fatos Se a relaccedilatildeo entre os fatos for julgada necessaacuteria o sinal

recebe o nome de tecmeacuterion (τεκμήριον) do contraacuterio limita-se a uma simples

possibilidade O entimema eacute um raciociacutenio eficaz com respeito a homens incultos

porquanto visa produzir a persuasatildeo e natildeo uma demonstraccedilatildeo de natureza cientiacutefica Em

vista disso conveacutem considerar outra caracteriacutestica do entimema a premissa maior a

premissa menor ou ateacute ambas podem estar pressupostas na argumentaccedilatildeo retoacuterica Eacute

necessaacuterio pois que o entimema se ocupe de coisas que podem ser para a maior parte de

outro modo e seja formado de poucas premissas e em geral menos do que as do silogismo

primaacuterio e caso alguma dessas premissas for bem conhecida natildeo eacute necessaacuterio comunicaacute-

la pois o proacuteprio ouvinte a supre (Ibid 1357a 18-24) Aleacutem do mais existem duas

espeacutecies de entimemas quais sejam os entimemas demonstrativos de algo que eacute ou natildeo

eacute e os entimemas refutativos A diferenccedila eacute igual agrave que existe na dialeacutetica entre refutaccedilatildeo

e silogismo O entimema demonstrativo eacute aquele em que se obteacutem a conclusatildeo com base

nas premissas com as quais se estaacute de acordo ao passo que o refutativo conduz a

conclusotildees que o adversaacuterio natildeo aceita (Ibid 1396b 30-35)

Para Aristoacuteteles a demonstraccedilatildeo de alguma coisa com base em muitos casos

semelhantes chama-se na dialeacutetica induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e na arte retoacuterica chama-se

exemplo (παράδειγμα) Pode-se assegurar entatildeo que o exemplo eacute um tipo particular de

induccedilatildeo (Ibid 1356b 3-6) No entanto diferentemente do argumento indutivo o exemplo

retoacuterico natildeo procede dos casos particulares ndash sejam todos sejam muitos ndash para o conceito

universal mas parte do particular e conclui algo particular (Ibid 1357b 35-38) Dessarte

o exemplo eacute uma espeacutecie de correspondente indutivo do entimema enquanto propotildee

generalizaccedilotildees que satildeo persuasivas por si mesmas ou satildeo premissas plausiacuteveis de um

silogismo Aliaacutes existem dois tipos distintos de exemplos O primeiro consiste em aludir

a fatos histoacutericos anteriores como quando se afirma que Dioniacutesio procura adquirir a

tirania porque solicita uma guarda pois tambeacutem antes Pisiacutestrato ao intentaacute-la pediu uma

guarda e se transformou em tirano mal a conseguiu assim como Teaacutegenes em Meacutegara

Estes e outros fatos semelhantes servem de exemplo para Dioniacutesio de quem ainda natildeo se

sabe se eacute essa a razatildeo pela qual a pede Estes casos particulares se enquadram na mesma

noccedilatildeo geral de que quem aspira agrave tirania solicita uma guarda pessoal (Ibid 1357b 40-

48) O segundo tipo de exemplo consiste em invenccedilotildees mobilizadas pelo orador que

podem ser uma paraacutebola ou uma faacutebula (Ibid 1393a 37-40) A paraacutebola eacute um exemplo

inventado e implica uma comparaccedilatildeo com alguma coisa com que tenha semelhanccedila e da

qual sirva de ilustraccedilatildeo como quando Soacutecrates afirma que os governantes natildeo devem ser

escolhidos por um sorteio assim como natildeo satildeo escolhidos por sorteio os atletas para uma

competiccedilatildeo (Ibid 1393b 8-15) A faacutebula por sua vez consiste de narrativa curta e

imaginaacuteria com um objetivo pedagoacutegico e moral geralmente protagonizada por animais

a exemplo da faacutebula de Estesiacutecoro apresentada por Aristoacuteteles6

6 Aristoacuteteles escreve a respeito da faacutebula de Estesiacutecoro nos seguintes termos (Ret 1393b 17-33) ldquoUm exemplo de faacutebula eacute a que se refere Estesiacutecoro a respeito de Faacutelaris e a de Esopo a favor de um demagogo Tendo os cidadatildeos de Hiacutemera escolhido Faacutelaris como estratego com plenos poderes a ponto de lhe atribuir uma escolta pessoal Estesiacutecoro entre outras consideraccedilotildees contou-lhes a faacutebula seguinte um cavalo tinha um prado soacute para si mas chegou um veado e estragou-lhe o pasto o cavalo entatildeo querendo vingar-se do veado perguntou a um homem se o podia ajudar a punir o veado O homem consentiu com a condiccedilatildeo de lhe pocircr um freio e o montar armado com dardos Feito o acordo o homem montou o cavalo e este em vez de se vingar tornou-se escravo do homem lsquoAssim tambeacutem voacutesrsquo disse ele lsquoacautelai-vos natildeo vaacute acontecer que querendo vingar os vossos inimigos venhais a sofrer a sorte do cavalo jaacute tendes o freio ao eleger um estratego pleno de poderes se lhe dais uma guarda pessoal e permitis que vos monte entatildeo sereis escravos de Faacutelarisrsquordquo

Segundo Aristoacuteteles o estudo da arte retoacuterica deve levar em consideraccedilatildeo trecircs

componentes quais sejam o orador o assunto que eacute tratado no discurso e o ouvinte a

quem o discurso eacute endereccedilado (Ibid 1358a 47-51) Trecircs tambeacutem satildeo os tipos de provas

artiacutesticas (πίστεις ἔντεχνοι) que objetivam a persuasatildeo Assim as provas artiacutesticas da

persuasatildeo retoacuterica (Ibid 1356a 1-5) residem de um lado nas provas loacutegicas isto eacute no

entimema e no exemplo (λόγος)7 e de outro nas provas psicoloacutegicas compostas pelo

caraacuteter do orador (ἦθος) e o apelo emocional (πάθος) Com efeito as provas artiacutesticas

da persuasatildeo retoacuterica devem ser fornecidas pelo proacuteprio orador enquanto que os

elementos que estatildeo disponiacuteveis preacutevia e independentemente do orador a saber os

juramentos as leis as testemunhas os documentos e as confissotildees por tortura pertencem

agraves provas inartiacutesticas (πίστεις ἄτεχνοί) uma vez que natildeo podem ser elaboradas pelo

orador Escreve Aristoacuteteles a respeito (Ibid 1355b 36-42)

Das provas de persuasatildeo umas satildeo proacuteprias da arte retoacuterica e outras natildeo Chamo provas inartiacutesticas a todas as que natildeo satildeo produzidas por noacutes antes jaacute existem provas como testemunhos confissotildees sob tortura documentos escritos e outras semelhantes e provas artiacutesticas todas as que se podem preparar pelo meacutetodo e por noacutes proacuteprios De sorte que eacute preciso utilizar as primeiras mas inventar as segundas

Outro relevante assunto que eacute abordado por Aristoacuteteles no livro I da Retoacuterica (Ibid

1358a 45-1359a 33) diz respeito aos trecircs gecircneros de discursos o deliberativo o judicial

e o epidiacutectico Esta triacuteplice divisatildeo dos gecircneros de discursos que era corrente no seacuteculo

V aC foi tomada dos sofistas sem qualquer modificaccedilatildeo Todavia Aristoacuteteles oferece

uma justificativa teoacuterica para dividir os discursos em trecircs partes os possiacuteveis tipos de

ouvintes e os momentos possiacuteveis para tomar decisotildees

No discurso deliberativo existe tanto o conselho quanto a dissuasatildeo porque os que

procuram persuadir seja em puacuteblico ou em privado sempre fazem uma destas duas

coisas Para o que delibera o fim diz respeito ao conveniente e o prejudicial pois aquele

que aconselha recomenda-o como o melhor e aquele que desaconselha dissuade dele

como o pior O tempo para aquele que delibera eacute o futuro porquanto aconselha sobre

eventos futuros ora persuadindo ora dissuadindo Ademais o discurso deliberativo

7 Aristoacuteteles natildeo emprega diretamente o termo ldquoλόγοςrdquo para designar as provas loacutegicas (entimema e exemplo) mas eacute frequentemente utilizado pelos estudiosos da arte retoacuterica com o intuito de simplificar

dirige-se a um puacuteblico menos esclarecido para tanto o orador deve utilizar

preferencialmente argumentos pelo exemplo

No discurso judicial existe tanto a acusaccedilatildeo quanto a defesa porque eacute necessaacuterio

que os que pleiteiam faccedilam uma destas duas coisas Para os que falam no tribunal o fim

diz respeito ao justo e o injusto O tempo para aquele que acusa ou defende eacute o passado

pois eacute sempre sobre atos acontecidos que um acusa e outro defende Outrossim o discurso

judicial que dispotildee de leis e se dirige a um auditoacuterio mais especializado exige que o

orador empregue o entimema que eacute proacuteprio para esclarecer uma questatildeo judicial

No discurso epidiacutectico existe tanto o elogio quanto a censura Para os que elogiam

ou censuram o fim eacute o belo e o feio O tempo principal eacute o presente visto que todos

louvam ou censuram eventos atuais embora seja possiacutevel evocar o passado e conjecturar

sobre o futuro E quanto ao principal argumento a ser utilizado o gecircnero epidiacutectico

recorre principalmente agrave amplificaccedilatildeo (αὐξητικός) porque os fatos satildeo conhecidos pelo

auditoacuterio e conveacutem ao orador dar-lhes valor mostrando sua importacircncia e nobreza (Ibid

1367a 37-46)

Apoacutes ter discorrido no livro I sobre o bloco das provas loacutegicas (entimema e

exemplo) isto eacute aquelas destinadas a persuadir atraveacutes de argumentos racionais

Aristoacuteteles analisa no livro II o bloco das provas psicoloacutegicas que satildeo aquelas cujo vigor

persuasivo natildeo depende diretamente da razatildeo mas do apelo emocional O ἦθος que

consiste no caraacuteter do orador e o πάθος que designa o apelo agraves emoccedilotildees formam o bloco

de provas que natildeo satildeo demonstrativas mas psicoloacutegicas Isso porque os meios de

persuasatildeo de que se valem estatildeo fora do assunto a ser tratado no discurso isto eacute natildeo se

relacionam com os conteuacutedos da argumentaccedilatildeo propriamente dita Isto posto no livro II

da Retoacuterica o Estagirita procura explanar como os elementos da argumentaccedilatildeo

psicoloacutegica podem ser utilizados como parte da argumentaccedilatildeo entimemaacutetica

Com efeito a arte retoacuterica tem como objetivo fundamental encontrar teoricamente

os modos pelos quais se efetiva a persuasatildeo e por conseguinte produzir na alma dos

ouvintes um juiacutezo favoraacutevel ao conteuacutedo do discurso Dessarte precisam ser levados em

consideraccedilatildeo natildeo somente os efeitos intelectuais do discurso mas tambeacutem a imagem que

o orador exibe e a maneira pela qual a audiecircncia poderaacute inclinar-se emocionalmente em

favor do que foi veiculado (Ibid 1377b 29-32) E ao ponderar sobre a importacircncia do

caraacuteter do orador e do apelo agraves emoccedilotildees dos ouvintes o Estagirita introduz no seu meacutetodo

retoacuterico ao lado de uma retoacuterica demonstrativa ainda outra que pode ser cognominada

de retoacuterica afetiva porquanto no discurso retoacuterico natildeo basta observar abstratas regras

loacutegicas e racionais para obter a persuasatildeo mas eacute preciso envolver tambeacutem os sentimentos

os afetos a emotividade

No que concerne ao caraacuteter moral do orador a persuasatildeo se efetiva quando o

discurso eacute proferido por um orador que goze de prestiacutegio (Ibid 1356a 6-8) pois se

orador parecer confiaacutevel o puacuteblico iraacute formar o juiacutezo de que as proposiccedilotildees apresentadas

satildeo igualmente confiaacuteveis Noutros termos o puacuteblico se sentiraacute inclinado a transferir para

o conteuacutedo do discurso a credibilidade que confere ao caraacuteter do orador e isto ocorre

muito frequentemente nos casos em que natildeo haacute um conhecimento certo e definitivo sobre

determinado assunto mas margem para duacutevidas Natildeo obstante o ἦθος do orador por si

soacute natildeo eacute suficiente para efetivar a persuasatildeo pois eacute necessaacuterio que a confianccedila no discurso

seja fundamentalmente o resultado da argumentaccedilatildeo entimemaacutetica e natildeo de uma opiniatildeo

a priori acerca do caraacuteter do orador (Ibid 1356a 8-13) Aleacutem do mais Aristoacuteteles afirma

existir trecircs causas que tornam os oradores persuasivos sem a necessidade de

demonstraccedilotildees entimemaacuteticas (Ibid 1378a 9-22) Assim para que o orador obtenha a

credibilidade diante do seu puacuteblico deve aparentar possuir a prudecircncia (φρόνησις) a

virtude (ἀρετὴ) e a benevolecircncia (εὔνοια)

Para Aristoacuteteles a consideraccedilatildeo do πάθος eacute relevante para a investigaccedilatildeo das

condiccedilotildees de persuasatildeo porque as emoccedilotildees podem mover as pessoas em direccedilatildeo de um

determinado juiacutezo ou mesmo alterar o seu rigor Isto ocorre porque os fatos natildeo se

apresentam sob a mesma perspectiva a quem ama e a quem odeia nem satildeo iguais para o

homem que estaacute irado ou para o calmo Quem ama acha que o juiacutezo que deve emitir sobre

quem eacute julgado eacute de natildeo culpabilidade ou de pouca culpabilidade e quem odeia amiuacutede

pensa o contraacuterio (Ibid 1377b 40-1378a 4) Pode-se assegurar entatildeo que a influecircncia

das emoccedilotildees sobre os ouvintes de um discurso pode determinar de um lado a natureza

de um juiacutezo e de outro o grau de sua severidade

A maneira pela qual o orador torna-se apto a suscitar certas emoccedilotildees nos seus

ouvintes depende basicamente do conhecimento circunstanciado de cada emoccedilatildeo em

particular ndash vale dizer o conhecimento da definiccedilatildeo que expressa sua natureza ndash e dos

padrotildees de estiacutemulos que acompanham cada situaccedilatildeo afetiva ndash o que requer a explanaccedilatildeo

desses padrotildees Eacute a partir dessas noccedilotildees que o orador pode elaborar seus argumentos com

o intuito de persuadir seu auditoacuterio de acordo com sua conveniecircncia (Ibid 1378a 34-

43) Desse modo para conquistar este relevante efeito no pensamento e na postura

assumida pelos ouvintes Aristoacuteteles descreve (nos capiacutetulos 2 a 11 de Retoacuterica II) treze

emoccedilotildees na seguinte ordem ira (ὀργή) calma (πραότης) amizade (φίλος) inimizade

(μῖσος) temor (φόβος) confianccedila (θαρσαλέος) vergonha (αἰσχύνη) desvergonha

(ἀναισχυντία) amabilidade (χάρις) piedade (ἔλεος) indignaccedilatildeo (νέμεσις) inveja

(φθόνος) e emulaccedilatildeo (ζῆλος)

Dos capiacutetulos 12 a 17 do mesmo livro Aristoacuteteles empreende uma anaacutelise do caraacuteter

dos ouvintes (ἦθος) dividindo-os em grupos segundo a idade e a condiccedilatildeo social o caraacuteter

do jovem (νέος) o caraacuteter do idoso (πρέσβυς) o caraacuteter dos que estatildeo no auge da vida

(ἀκμάζοντες) o caraacuteter do nobre (εὐγενής) o caraacuteter do rico (πλοῦτος) e o caraacuteter dos

poderosos (δυνάμεως) Esta parte do seu tratado supotildee um esforccedilo de Aristoacuteteles por levar

a cabo o desejo manifestado por Platatildeo8 de chegar a uma classificaccedilatildeo do caraacuteter dos

ouvintes com o intuito de construir os argumentos mais adequados a cada um deles9 No

entanto as observaccedilotildees de Aristoacuteteles que subsequentemente seratildeo resumidas natildeo

possuem um cunho eminentemente cientiacutefico visto que limitam-se a subscrever o que

propala o senso comum ou a sabedoria convencional

Para Aristoacuteteles os jovens satildeo propensos aos desejos passionais e inclinados a

fazer o que desejam Satildeo impulsivos irritadiccedilos e deixam-se arrastar pela ira Satildeo

confiantes e otimistas porque ainda natildeo foram muitas vezes enganados nem sofreram

muitas decepccedilotildees na vida Satildeo magnacircnimos porque ainda natildeo foram feridos pela vida e

satildeo inexperientes acerca das necessidades materiais Eles em tudo pecam por excesso e

violecircncia Acham que sabem de tudo e satildeo obstinados Preferem o belo em detrimento do

que eacute uacutetil Mais do que todas as idades amam os amigos e companheiros porque gostam

de conviver com os outros Tambeacutem gostam de rir e fazer gracejos No que tange aos

idosos ele destaca que em tudo avanccedilam com cautela e em tudo dizem menos do que

conveacutem Preferem o uacutetil em detrimento do que eacute belo Tambeacutem tecircm mau caraacuteter pois ter

mau caraacuteter consiste em supor sempre o pior em tudo Satildeo de espiacuterito mesquinho por

8 Escreve Platatildeo a respeito da classificaccedilatildeo do caraacuteter dos ouvintes (Fed 271d) ldquoVisto que eacute funccedilatildeo do discurso conduzir as almas quem deseja vir a ser orador necessita conhecer quantas formas tem a alma Ora haacute tantas e tais que tornam uns homens de determinada natureza e outros de natureza diferente Entatildeo uma vez definidas essas o nuacutemero de espeacutecies de discursos eacute o mesmo e cada um com caracteriacutesticas especiacuteficas Por isso uns homens sob a acccedilatildeo de determinados discursos e por determinado motivo tornam-se obedientes a certas convicccedilotildees outros poreacutem com natureza diferente natildeo de deixam persuadir pelas mesmas razotildeesrdquo 9 Segundo Armando Plebe a faculdade de encontrar os diversos modos de expressatildeo convenientes a cada tipo de ouvinte a qual recebe a designaccedilatildeo de polytropiacutea (πολυτροπία) teria sua origem na vertente retoacuterica do primeiro pitagorismo (PLEBE 1978 3-4)

terem sido maltratados pela vida razatildeo pela qual natildeo aspiram a nada de grande nem de

extraordinaacuterio mas somente ao que eacute indispensaacutevel agrave vida Ademais satildeo mais egoiacutestas

do que o necessaacuterio satildeo pessimistas em razatildeo da sua experiecircncia mas tambeacutem devido agrave

sua covardia satildeo faladores pois vivem a falar de coisas passadas estatildeo sempre se

queixando e natildeo gostam de brincadeiras nem de rir E sobre os que estatildeo no auge (ακμή)

da vida (dos 30 aos 35 anos) ele sustenta que mantecircm a justa medida em todas as

situaccedilotildees Nem confiantes em tudo nem totalmente desconfiados Natildeo vivem para o belo

nem para o uacutetil mas para as duas coisas Enfim tudo o que de uacutetil estaacute repartido entre a

juventude e a velhice encontra-se reunido no auge da vida

Tendo em conta a anaacutelise das classes sociais o Estagirita sublinha que o caraacuteter

proacuteprio da nobreza eacute tornar mais ambicioso aquele que a possui Os nobres que possuem

uma dignidade transmitida pelos antepassados tecircm uma tendecircncia para o desprezo

mesmo em relaccedilatildeo aqueles que satildeo semelhantes aos seus antepassados Ele entende por

nobre aquele cujas virtudes satildeo inerentes a uma estirpe e natildeo perde suas qualidades

naturais Todavia existem indiviacuteduos de boa linhagem que se degeneram e adquirem um

caraacuteter vil a exemplo dos descendentes de Peacutericles e Soacutecrates Os ricos por sua vez satildeo

descritos como soberbos e orgulhosos porque estatildeo afetados pelas riquezas Satildeo

efeminados e petulantes Efeminados porque vivem do luxo e fazem ostentaccedilatildeo da sua

felicidade Petulantes porque estatildeo acostumados a que toda gente se ocupe dos seus

desejos e os admire E quando eles cometem injusticcedila natildeo o fazem por maldade mas

por insolecircncia ou intemperanccedila Enfim os poderosos que na visatildeo de Aristoacuteteles satildeo por

temperamento mais ambiciosos e mais viris que os ricos pois ambicionam realizar atos

que podem cumprir devido ao poder de que dispotildeem Eles satildeo mais diligentes porque

tecircm responsabilidades obrigando-se a velar por tudo que se relaciona ao seu poder Satildeo

mais dignos do que graves porque a sua dignidade lhes confere mais respeito E se

porventura cometem injusticcedilas essas injusticcedilas natildeo alvejam as pessoas pequenas mas

sim para as grandes

Tambeacutem satildeo analisados no presente livro os lugares-comuns (κοινοί τόποι)

Aristoacuteteles natildeo oferece uma definiccedilatildeo expliacutecita dos κοινοί τόποι mas pode-se assegurar

que satildeo fontes de argumentaccedilatildeo que podem ser facilmente localizados uma vez que

foram devidamente memorizados pelo orador tendo em vista sua utilizaccedilatildeo em diversas

situaccedilotildees Os lugares-comuns podem ser aplicados em questotildees de direito de fiacutesica de

poliacutetica e demais disciplinas que diferem em espeacutecie (Ret 1358a 15-18) Dentre os 28

tipos de lugares-comuns expostos no capiacutetulo 23 os quais tambeacutem satildeo abordados nos

Toacutepicos conveacutem a exposiccedilatildeo de alguns deles Vejamos primeiramente o lugar do mais e

o do menos Na hipoacutetese de que um atributo natildeo se aplica ao que eacute mais aplicaacutevel tambeacutem

natildeo se aplica ao que eacute menos aplicaacutevel de modo que se nem os deuses sabem de tudo

menos ainda os homens Ou ainda o argumento de que uma pessoa que agride os vizinhos

tambeacutem agride o pai visto que se assenta no raciociacutenio de que se haacute o menos tambeacutem haacute

o mais pois amiuacutede se agride menos os pais do que os vizinhos Uma variaccedilatildeo deste lugar

consiste no argumento de que se os demais artistas natildeo satildeo despreziacuteveis certamente os

filoacutesofos tambeacutem natildeo satildeo (Ibid 1397b 16-23 36-37) Outro lugar consiste em apropriar-

se das palavras pronunciadas contra o orador e voltaacute-las contra o adversaacuterio Este

argumento tem por objetivo desacreditar o adversaacuterio atribuindo-lhe tudo aquilo que foi

recriminado no orador (Ibid 1398a 7-24) Existe tambeacutem o lugar-comum referente agrave

induccedilatildeo por exemplo natildeo se pode confiar os proacuteprios cavalos agravequeles que cuidam mal

dos cavalos dos outros e natildeo se pode confiar os proacuteprios navios aos que fizeram afundar

os navios alheios Disso conclui-se que a quem zela mal pela seguranccedila alheia natildeo eacute

proveitoso confiar-lhe a proacutepria (Ibid 1398b 7-13)

No livro III da Retoacuterica o Estagirita expotildee outro motivo pelo qual eacute necessaacuterio levar

em consideraccedilatildeo o πάθος na praacutetica retoacuterica qual seja a atenccedilatildeo que deve ser

necessariamente conferida agrave expressatildeo enunciativa10 (λέξις)11 A λέξις diz respeito agrave

maneira pela qual o conteuacutedo do discurso deve ser apresentado ao auditoacuterio uma vez que

natildeo basta ter domiacutenio o teoacuterico do assunto mas tambeacutem eacute necessaacuterio expocirc-lo de forma

conveniente (Ibid 1403b 17-20) Aleacutem disso trecircs aspectos gerais precisam ser

observados a fim de que a expressatildeo enunciativa possa ser empregada de maneira

eficiente a saber o volume (μέγεθος) a harmonia (ἁρμονία) e o ritmo (ῥυθμός) Por isso

aqueles que entre os competidores de recitaccedilatildeo de poesias empregavam estes trecircs

aspectos tendiam a conquistar quase todos os precircmios e assim como os atores possuiacuteam

mais influecircncia nas competiccedilotildees poeacuteticas do que os proacuteprios autores o mesmo ocorreria

10 Para E M Cope o uso da expressatildeo enunciativa se justificaria em certa medida pelo julgamento depravado e pelo gosto de um puacuteblico comum que demandaria algum tipo de ldquolisonjardquo (COPE 1867 5) ldquoBut besides this scientific use of them there is another reason for not excluding appeals to the feelings from the practice of rhetoric they are justified to a cert extent like the attention which must necessarily be paid to composition and language harmony and rhythm of the speech (III15) the depraved judgment and taste of an ordinary audience requires this kind of lsquoflatteryrsquo as Plato calls it and the speaker is therefore obliged to give away to relax the rigorous observance of the rules of his art and humor their perverted inclinationsrdquo

11 Alguns autores optam por traduzir a palavra grega ldquoλέξιςrdquo por ldquoestilordquo ou ldquoelocuccedilatildeordquo

nos debates retoacutericos (Ibid 1403b 38-44)

Com efeito a expressatildeo enunciativa quando eacute empregada corretamente abrangendo

os trecircs aspectos jaacute considerados estaraacute inserida no plano da representaccedilatildeo teatral cuja

inserccedilatildeo ocorre em virtude da pronunciaccedilatildeo (ὑπόκρισις) Esta refere-se propriamente ao

ato de pronunciar um discurso em puacuteblico incluindo um cabedal de teacutecnicas que vatildeo

desde a projeccedilatildeo da voz ao proacuteprio movimento corporal do orador A pronunciaccedilatildeo que

identifica-se com a arte do ator eacute um elemento indispensaacutevel na praacutetica retoacuterica porque

uma boa pronunciaccedilatildeo pode suscitar o mesmo efeito nos ouvintes de um discurso que a

representaccedilatildeo teatral causaria numa plateia (Ibid 1404a 17-18) Nos concursos de

poesias a maioria dos precircmios era conquistada por aqueles que empregavam eficazmente

a pronunciaccedilatildeo razatildeo pela qual alguns poetas embora proferindo coisas fuacuteteis

adquiriram renome em decorrecircncia da vivacidade com que expressavam o seu conteuacutedo

(Ibid 1404a 25-36)

Na verdade haacute discursos escritos que obtecircm muito mais efeito pelo enunciado do que pelas ideias Os poetas foram os primeiros como seria natural a dar um impulso a este aspecto Efetivamente palavras satildeo imitaccedilotildees e a voz eacute de todos os nossos oacutergatildeos o mais apropriado agrave imitaccedilatildeo Por isso as artes entatildeo estabelecidas foram a rapsoacutedia e a representaccedilatildeo teatral aleacutem de outras mais E uma vez que os poetas embora dizendo coisas fuacuteteis pareciam obter renome graccedilas agrave sua expressatildeo por esta mesma razatildeo foi um tipo de expressatildeo poeacutetica o primeiro a surgir como a de Goacutergias

Na visatildeo de Aristoacuteteles assim como alguns poetas conquistaram a fama atraveacutes de

sua performance teatral os bons oradores tambeacutem deveriam buscar a adesatildeo de seus

ouvintes atraveacutes da boa pronunciaccedilatildeo posto que os discursos tornam-se persuasivos natildeo

somente pelas ideias que veiculam mas pela forma como satildeo pronunciados Todavia

todos os esforccedilos do Estagirita no estudo da expressatildeo enunciativa vatildeo no sentido de

mostrar sua relevacircncia para o ultrapassamento das dificuldades que obstam o bom

esclarecimento do ouvinte que amiuacutede eacute de baixo niacutevel intelectual (Ibid 1404a 9) a fim

de que o exerciacutecio de julgamento possa ocorrer em condiccedilotildees favoraacuteveis agrave vitoacuteria da

verdade e da justiccedila

Por fim Aristoacuteteles dedica os uacuteltimos sete capiacutetulos da Retoacuterica ao estudo das

partes do discurso (τάξις) O objetivo de dividir o discurso em partes eacute possibilitar a

demonstraccedilatildeo entimemaacutetica jaacute que de outra forma seria difiacutecil recordar num momento

tudo o que se disse a respeito de um tema ao passo que em partes eacute mais faacutecil A

disposiccedilatildeo do discurso em partes tambeacutem possui uma funccedilatildeo econocircmica pois facilita a

tarefa do orador de nada omitir sem fazer qualquer repeticcedilatildeo Aliaacutes pela divisatildeo do

discurso o orador faz o auditoacuterio encaminhar-se pelas vias e pelas etapas que escolheu

conduzindo-o para o objetivo proposto Para tanto Aristoacuteteles segue a divisatildeo claacutessica do

discurso jaacute presente na concepccedilatildeo retoacuterica de Isoacutecrates a saber o proecircmio (προοίμιον)12

a exposiccedilatildeo (πρόθεσις) as provas (πίστεις) e o epiacutelogo (ἐπίλογος)

O προοίμιον equivale ao comeccedilo do discurso e serve como preparaccedilatildeo do caminho

que se segue depois Sua funccedilatildeo eacute essencialmente faacutetica tornar o auditoacuterio doacutecil

benevolente e atencioso pois tanto mais interesse existiraacute pelo discurso quanto mais ele

for relevante causar surpresas despertar admiraccedilatildeo e soar agradaacutevel Desse modo no

proecircmio o papel do ἦθος assume toda sua importacircncia pois o escopo principal desta

etapa eacute seduzir os ouvintes e conquistar imediatamente sua simpatia Enfim a funccedilatildeo do

proecircmio consiste em apresentar o orador como uma pessoa respeitaacutevel (Ibid 1415a 48-

51)

Para Aristoacuteteles ficariam sem efeito tanto o discurso que expotildee algo sem fazer uma

demonstraccedilatildeo quanto o discurso que demonstra algo sem ter previamente exposto o

assunto Por isso eacute imprescindiacutevel a πρόθεσις ou seja a exposiccedilatildeo ou comunicaccedilatildeo do

assunto a ser desenvolvido na parte subsequente do discurso a qual se refere agraves πίστεις

Eacute necessaacuterio para Aristoacuteteles que as πίστεις sejam demonstrativas (Ibid 1417b 29) razatildeo

pela qual precisam estar pautadas no emprego do entimema e do exemplo O entimema

conforme jaacute examinado eacute uma espeacutecie de silogismo que se fundamenta sobre

probabilidades e sinais ao passo que o exemplo consiste na demonstraccedilatildeo de alguma tese

particular com base na consideraccedilatildeo de muitos casos semelhantes Nas πίστεις satildeo os

fatos que entram em causa os quais satildeo concebidos unicamente sob o ponto de vista das

provas loacutegicas (λόγος) No entanto a ecircnfase que deve ser dada ao λόγος natildeo exclui nesta

etapa do discurso o emprego do πάθος ou seja o apelo emocional conquanto natildeo se

demore muito neste tipo de prova Assim ainda que o ἦθος e o πάθος tenham

respectivamente seu assento proacuteprio no proecircmio e no epiacutelogo onde satildeo mais comuns

possuem tambeacutem lugar nas demais partes do discurso

A uacuteltima parte do discurso consiste no ἐπίλογος que basicamente deve encerrar

12 Alguns autores preferem empregar o termo ldquoexoacuterdiordquo em vez de ldquoproecircmiordquo para referir-se ao iniacutecio do discurso

quatro caracteriacutesticas (Ibid 1419b 14-1420a 10) 1) tornar o ouvinte favoraacutevel agrave causa

do orador e desfavoraacutevel para agrave causa do adversaacuterio o que o orador busca por um lado

apresentando-se como homem de bem diante dos ouvintes e por outro apresentando o

adversaacuterio como perverso 2) amplificar ou minimizar 3) trazer agrave memoacuteria o que foi

exposto pelo discurso isto eacute retomar o que foi dito resumir e finalmente 4) provocar

determinadas emoccedilotildees como a piedade a ira o oacutedio a inveja a emulaccedilatildeo entre outras

Embora o apelo agraves emoccedilotildees seja predominante no epiacutelogo este natildeo exclui a argumentaccedilatildeo

entimemaacutetica pelo contraacuterio eacute a uniatildeo das provas loacutegicas com as provas psicoloacutegicas que

caracteriza a etapa final do discurso pois eacute o momento por excelecircncia em que a

afetividade se une com a argumentaccedilatildeo (REBOUL 2004 60)

Ateacute aqui foi possiacutevel constatar duas redaccedilotildees distintas pertencentes a dois periacuteodos

diferentes do pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles Uma primeira que pode ser designada

por ldquoretoacuterica antigardquo intimamente ligada ao pensamento de Platatildeo a qual eacute expressa

atraveacutes do diaacutelogo exoteacuterico Grilos e demais textos que natildeo foram conservados dos quais

soacute restaram poucas doxografias A segunda por contraste com a anterior poderia ser

denominada ldquoretoacuterica recenterdquo Esta que eacute expressa nos trecircs livros da Retoacuterica se afasta

substancialmente do pensamento de Platatildeo e aproxima-se em muitos aspectos da sofiacutestica

Isto posto conveacutem adiante compreendermos as possiacuteveis razotildees desse afastamento e o

que distingue a retoacuterica de Platatildeo da retoacuterica de Aristoacuteteles Outrossim seraacute necessaacuterio

analisar em que medida a sofiacutestica influenciou o pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles uma

vez que o filoacutesofo menciona uma seacuterie de sofistas como os descobridores dos primeiros

princiacutepios da arte retoacuterica os quais teriam contribuiacutedo para o seu progresso enquanto que

o proacuteprio Aristoacuteteles se posiciona como um simples herdeiro dessa longa sucessatildeo de

homens Considerando-se pois que houve no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles duas

fases distintas uma fase juvenil intimamente ligada agrave filosofia de Platatildeo e uma fase que

representaria a maturidade do seu pensamento a qual teria recebido forte atuaccedilatildeo do

movimento sofista pode-se sustentar com plausibilidade que a arte retoacuterica de Aristoacuteteles

situa-se equidistante tanto em relaccedilatildeo agrave posiccedilatildeo de Platatildeo quanto agrave posiccedilatildeo dos sofistas

Esta perspectiva eacute endossada por Barbara Cassin a qual aventa que a retoacuterica

recente de Aristoacuteteles apareceria como uma espeacutecie de conciliaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo

retoacuterica de Platatildeo e a dos sofistas No entanto com o intuito de preservar a retoacuterica da

sofiacutestica que eacute sempre alvo de suas objeccedilotildees e para que a poliacutetica seja devidamente

resguardada do relativismo o Estagirita teria atribuiacutedo agrave arte retoacuterica uma funccedilatildeo eacutetico-

poliacutetica que consistiria no triunfo natural do verdadeiro e do justo Para Cassin

Aristoacuteteles define a linguagem de forma a que a sofiacutestica seja definitivamente privada de

palavra de filosofia e ateacute de humanidade Ao mesmo tempo o sistema e as doutrinas

aristoteacutelicas apareceriam como o resultado de uma difiacutecil negociaccedilatildeo entre Platatildeo e a

sofiacutestica que permite por exemplo a exclusatildeo bem-sucedida da sofiacutestica para a literatura

mas que o obriga a compartilhar teses com ela principalmente sobre o valor atribuiacutedo ao

consenso dos cidadatildeos (CASSIN 1999 14) Assim o pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles

aproximar-se-ia da sofiacutestica e deliberadamente seria antiplatocircnico por duas razotildees

principais pela escolha do λόγος como traccedilo dominante da condiccedilatildeo poliacutetica do homem

e pela maneira de articular a pluralidade das diferenccedilas dos pontos de vista e de fala na

unidade plural da cidade No entanto o pensamento de Aristoacuteteles eacute antisofista em sua

interpretaccedilatildeo do λόγος e no que se pode designar de autosubordinaccedilatildeo do retoacuterico ao

poliacutetico do linguageiro e do discursivo ao loacutegico e ao racional (Ibid 1999 48) Aleacutem

disso Cassin sustenta que para Aristoacuteteles o sofista que falaria simplesmente pelo prazer

de falar seria e natildeo seria um homem pois se ele persevera deveria ser comparado com

uma planta jaacute que seria necessaacuterio ao Estagirita natildeo soacute decidir de uma vez por todas que

falar eacute significar mas ainda fazer no λόγος um enxerto eacutetico ndash a introduccedilatildeo na arte retoacuterica

de um suplemento de boa intenccedilatildeo a fim de que a retoacuterica escape agrave sofiacutestica e para que a

poliacutetica seja preservada do relativismo (Ibid 199916)

Pode-se concluir que a envergadura eacutetico-poliacutetica da retoacuterica de Aristoacuteteles que

consiste na defesa da verdade e da justiccedila na cidade e na admissatildeo das crenccedilas geralmente

aceitas pelos cidadatildeos se afigura no nuacutecleo da conciliaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo retoacuterica de

Platatildeo e a dos sofistas Este nuacutecleo obviamente teraacute de ser analisado em toda a sua

complexidade que implica na investigaccedilatildeo meticulosa das noccedilotildees que o compotildee tanto a

partir dos textos de Platatildeo como daqueles que satildeo atribuiacutedos aos principais sofistas a fim

de demonstrar sua articulaccedilatildeo no tecido da teoria retoacuterica de Aristoacuteteles Para tanto o

discurso que Soacutecrates profere em sua proacutepria defesa diante do tribunal de Atenas em 399

a C e ao qual Platatildeo dedica a obra Defesa de Soacutecrates nos pode fornecer em certa

medida as primeiras indicaccedilotildees para oportunamente compreendermos tanto a posiccedilatildeo de

Platatildeo quanto a posiccedilatildeo de Aristoacuteteles acerca da arte retoacuterica Ele tambeacutem eacute elucidativo

no que concerne agraves razotildees pelas quais Aristoacuteteles teria se afastado da concepccedilatildeo retoacuterica

defendida por Platatildeo bem como na explicitaccedilatildeo do efeito que o movimento sofista teria

exercido sobre o pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles

2 A concepccedilatildeo de retoacuterica no diaacutelogo platocircnico Defesa de Soacutecrates

21 O problema da fidedignidade do discurso judicial de Soacutecrates

O processo judicial contra Soacutecrates ocorreu na cidade de Atenas no ano de 399 aC

com a peculiaridade de que diferentemente de uma acusaccedilatildeo privada feita pela parte

lesada ou por seu representante Soacutecrates foi constrangido a responder a uma acusaccedilatildeo

puacuteblica que era prerrogativa de qualquer cidadatildeo honesto Todavia com base no conjunto

das acusaccedilotildees contra Soacutecrates conforme satildeo relatadas por Platatildeo e Xenofonte pode-se

identificar trecircs momentos sucessivos de acusaccedilotildees que se escalonaratildeo por trinta anos Os

ataques presentes na comeacutedia As Nuvens de Aristoacutefanes (Nuv 423) contados por Platatildeo

expressamente entre os ldquoprimeiros acusadoresrdquo de Soacutecrates (Def Soacutec 18b) Na comeacutedia

em apreccedilo Aristoacutefanes oferece uma caricatura de Soacutecrates a qual o associa a alguns

aspectos importantes da vida intelectual de sua eacutepoca (agrave sofiacutestica e agrave filosofia da natureza)

e eacute altamente provaacutevel que tenha contribuiacutedo significativamente para o clima de

desconfianccedila e hostilidade que finalmente levou agrave sua condenaccedilatildeo e morte O ato oficial

de acusaccedilatildeo deposto por Meleto Acircnito e Liacutecon que adiante seraacute examinado E as

acusaccedilotildees de caraacuteter poliacutetico expressas pelo orador e sofista Poliacutecrates depois de 394 aC

Este teria escrito um relato hostil contra Soacutecrates num panfleto hoje perdido chamado

Κατηγορία Σωκράτους ou Acusaccedilatildeo de Soacutecrates (TAYLOR 2010 35) Isto posto aos

setenta anos de idade Soacutecrates foi levado a julgamento por supostamente corromper a

juventude e natildeo acreditar nos deuses da cidade de Atenas13 (Def Soacutec 24b-c)

Nada mais preciso dizer para defender-me diante de voacutes das mentiras de meus primeiros acusadores Tentarei em seguida defender-me de Meleto esse honrado e prestante cidadatildeo como se proclama e dos acusadores recentes Novamente jaacute que se trata de outros acusadores tomemos tambeacutem o texto de sua acusaccedilatildeo Reza ele mais

13 Em sua obra Ditos e Feitos Memoraacuteveis de Soacutecrates (conhecida tambeacutem como ldquoMemorabiliardquo) Xenofonte defende Soacutecrates da acusaccedilatildeo de natildeo venerar os deuses cultuados por Atenas nos seguintes termos (Mem I I 1-3) ldquoA que testemunha afinal recorreram para provar que ele natildeo honrava os deuses do Estado se fazia sacrifiacutecios frequumlentes agraves abertas ora em sua casa ora nos altares puacuteblicos se praceiramente recorria agrave arte divinatoacuteria Corria a voz ateada pelo proacuteprio Soacutecrates de que o inspirava um democircnio eis sem duacutevida por que o criminaram de introduzir extravagacircncias demoniacuteacas No entanto natildeo introduzia ele mais novidades do que todos aqueles que crecircem na adivinhaccedilatildeo e interrogam o vocirco das aves as vozes os signos e as entranhas das viacutetimas natildeo supotildeem nas aves nem naqueles com que se encontram o conhecimento do que buscam mas acreditam que por seu intermeacutedio lho revelam os deuses Soacutecrates tambeacutem pensava o mesmordquo

ou menos assim ldquoSoacutecrates eacute reacuteu de corromper a juventude e de natildeo crer nos deuses em que o povo crecirc e sim em outras divindades novasrdquo

O principal acusador de Soacutecrates foi Meleto seguido por Acircnito e Liacutecon Segundo a

afirmaccedilatildeo de Soacutecrates Meleto tomou as dores dos poetas Acircnito as dores dos artesatildeos e

dos poliacuteticos e Liacutecon a dos oradores (Def Soacutec 24a) Nominalmente o principal

acusador foi Meleto de quem pouco se sabe o acusador secundaacuterio era o igualmente

ignoto Liacutecon Acircnito por sua vez era um prestigiado cidadatildeo de Atenas que entre 403 e

397 aC foi estratego uma funccedilatildeo de elevada responsabilidade na cidade (MARTENS

2013 116)

C C W Taylor sustenta que o primeiro item da peccedila acusatoacuteria contra Soacutecrates

fundamenta-se na suposta influecircncia poliacutetica do filoacutesofo sobre aqueles de seus disciacutepulos

que haviam se tornado famosos por condutas antiatenienses ou antidemocraacuteticas Em

virtude da maacute fama de Alcibiacuteades Criacutetias Caacutermides e outros disciacutepulos conhecidos de

Soacutecrates como Fedro e Erixiacutemaco (ambos implicados juntamente com outros do ciacuterculo

socraacutetico em um ceacutelebre escacircndalo religioso em 415 aC) seria muito plausiacutevel que a

acusaccedilatildeo de Meleto Acircnito e Liacutecon mencionasse os crimes deles para difamar Soacutecrates

imputando-lhe a corrupccedilatildeo da juventude No ano de 403 aC foi aprovada uma lei

proibindo que pessoas fossem acusadas de crimes cometidos anteriormente mas isto natildeo

impedia a menccedilatildeo de eventos passados a fim de exemplificar o caraacuteter do reacuteu Dessarte

eacute praticamente certo que a acusaccedilatildeo de corromper a juventude possuiacutea no caso de Soacutecrates

uma dimensatildeo poliacutetica No entanto isso natildeo permitiria concluir que as acusaccedilotildees

especificamente religiosas natildeo fossem tambeacutem plausiacuteveis ou que a suposta corrupccedilatildeo da

juventude natildeo tivesse em si mesma um aspecto religioso (TAYLOR 2010 23-24)

Por volta de 432 aC foi sancionada na Assembleia popular (ἐκκλησία) sob a

proposta do adivinho profissional Dioacutepeites a lei que condena a impiedade (ἀσέβεια) de

acordo com a qual constitui crime grave divulgar doutrinas puramente fiacutesicas sobre a

natureza dos astros ldquodivinosrdquo e negar a existecircncia dos deuses Agrave vista disso duvidar do

sobrenatural e ensinar a astronomia eram crimes passiacuteveis de perseguiccedilatildeo penal O

filoacutesofo Anaxaacutegoras e o sofista Protaacutegoras foram conhecidas viacutetimas dessa lei Nos

tempos inquietos apoacutes a Guerra do Peloponeso a filosofia da natureza de Anaxaacutegoras e

a retoacuterica dos sofistas pareceram a muitos atenienses corromper as convicccedilotildees

fundamentais que sustentavam a comunidade poliacutetica e uma vez que os processos de

ἀσέβεια eram levados muito a seacuterio tanto Anaxaacutegoras quanto Protaacutegoras soacute puderam ser

salvos mediante a fuga De fato a atividade filosoacutefica de Soacutecrates oferecia motivos para

a associaccedilatildeo do seu pensamento com o movimento sofista de sua eacutepoca Ele tambeacutem

havia se aproximado do partido oligarca proacute-espartanos Seus acusadores por

conseguinte possivelmente ligaram ambas as coisas entre si e consideraram a atividade

ldquoiacutempiardquo de Soacutecrates como responsaacutevel pela decadecircncia de Atenas e pela vitoacuteria da

oligarquia proacute-espartanos A despeito disso ele permaneceu fiel agraves suas convicccedilotildees

filosoacuteficas e natildeo se deixou desviar em virtude de um erro judicial (MARTENS 2013

119-122)

Com efeito as acusaccedilotildees relativas a crimes religiosos ou capitais eram da

competecircncia do ldquoarconte basileurdquo um alto magistrado que na condiccedilatildeo de βασιλεύς

assumiu na Atenas democraacutetica as funccedilotildees da antiga realeza A audiecircncia principal

acontecia diante de um tribunal de justiccedila (δικαστήριον) composto de 501 jurados os

quais eram definidos por sorteio com base numa lista de 6 mil voluntaacuterios todos cidadatildeos

atenienses escolhidos pela Assembleia popular (Ibid 2013 117) Na primeira votaccedilatildeo

dos jurados Soacutecrates foi considerado culpado pela estreita maioria faltando-lhe somente

30 votos para ser absolvido (Def Soacutec 36a) na votaccedilatildeo decisiva sobre a pena de morte

proposta pelos acusadores Soacutecrates mais uma vez eacute condenado pela maioria dos jurados

provocados provavelmente por sua contraproposta que estipulava uma pena de apenas de

30 minas de prata (Ibid 38b) Aliaacutes a execuccedilatildeo de Soacutecrates soacute ocorreu um bom tempo

depois de sua condenaccedilatildeo pois era preciso esperar pelo retorno do navio enviado todo

ano agrave ilha de Delos para agradecer a Apolo sua ajuda a Teseu na salvaccedilatildeo dos refeacutens

atenienses para fora do labirinto do Minotauro E durante a missatildeo festiva natildeo era liacutecito

que a cidade de Atenas fosse conspurcada por qualquer execuccedilatildeo

Antes de passar agrave anaacutelise do discurso judicial de Soacutecrates conveacutem lembrar as

duacutevidas levantadas por muitos estudiosos dos diaacutelogos platocircnicos quanto agrave fidedignidade

da defesa de Soacutecrates tal como apresentada por Platatildeo no opuacutesculo homocircnimo Como eacute

sabido paira sobre esse diaacutelogo a suspeita de que antes que restringir-se a reproduzir o

discurso proferido pelo Soacutecrates histoacuterico ele encerraria tambeacutem e talvez

fundamentalmente formulaccedilotildees e argumentos de autoria do proacuteprio Platatildeo De acordo

com o exame de Ekkehard Martens surgiram trecircs posicionamentos distintos que

procuraram oferecer uma resposta satisfatoacuteria para o problema em consideraccedilatildeo Num

extremo haveria a hipoacutetese de que todos os diaacutelogos platocircnicos satildeo o produto da invenccedilatildeo

de Platatildeo de tal modo que o Soacutecrates histoacuterico seria insignificante No outro extremo

haveria a hipoacutetese de que o Soacutecrates de Platatildeo seria sem qualquer restriccedilatildeo o Soacutecrates

histoacuterico Finalmente entre os dois extremos haveria a hipoacutetese que sustenta tanto a

existecircncia de diaacutelogos socraacuteticos quanto a existecircncia de diaacutelogos platocircnicos Desse modo

conforme esta uacuteltima hipoacutetese os diaacutelogos de Platatildeo estariam divididos em dois grupos

distintos os diaacutelogos da fase inicial e os diaacutelogos da fase intermediaacuteria e tardia

(MARTENS 2013 27-28)

R M Hare subscreve esta uacuteltima hipoacutetese e assegura que o primeiro grupo reuniria

os diaacutelogos propriamente socraacuteticos Estes teriam sido escritos nos anos que se seguiram

agrave morte de Soacutecrates e apresentariam amiuacutede um caraacuteter aporeacutetico ou seja sua conclusatildeo

seria um enigma (ἀπορία) Satildeo eles Defesa de Soacutecrates Criacuteton Eutiacutefron A Repuacuteblica

(Livro I) Laques Liacutesis Caacutermides Teages Hiacutepias Menor Hiacutepias Maior Iacuteon e

Alcebiacuteades Maior No diaacutelogo Defesa de Soacutecrates que nos interessa mais de perto

Soacutecrates apresenta enigmas em especial sobre virtudes e boas qualidades particulares e

sobre as relaccedilotildees destas entre si e com o conhecimento e os enigmas nunca satildeo

resolvidos14 O segundo grupo pertenceria aos diaacutelogos mais longos de Platatildeo os quais

se caracterizariam pela exposiccedilatildeo de doutrinas positivas e substantivas sobre a

moralidade a educaccedilatildeo a retoacuterica a poliacutetica etc Seriam eles Protaacutegoras Mecircnon

Goacutergias O Banquete Feacutedon os restantes livros de A Repuacuteblica Craacutetilo Leis

Parmecircnides O Sofista O Poliacutetico Teeteto Filebo Fedro e Timeu (HARE 2000 35-36)

E com o intuito de solucionar a tensatildeo que opotildee o Soacutecrates questionador e

ignorante dos diaacutelogos da fase inicial ao Soacutecrates saacutebio e metafiacutesico dos diaacutelogos da fase

madura de Platatildeo Gregory Vlastos reforccedila a distinccedilatildeo entre um Soacutecrates anterior que

seria histoacuterico e um Soacutecrates posterior que seria o produto da imaginaccedilatildeo de Platatildeo Para

Vlastos o filoacutesofo Soacutecrates da primeira fase seria moral e ironista enquanto que o

filoacutesofo Soacutecrates da fase posterior seria dogmaacutetico e proponente de doutrinas metafiacutesicas

a exemplo da doutrina dos dois mundos Em sua obra Socrates Ironist and Moral

Philosopher ele procura analisar os diaacutelogos de Platatildeo a partir da visatildeo criacutetica de

Aristoacuteteles o qual atribui ao filoacutesofo Soacutecrates uma posiccedilatildeo toda proacutepria autocircnoma

Sendo assim o Soacutecrates ironista e moralista dos diaacutelogos platocircnicos da fase inicial seria

positivamente histoacuterico enquanto que nos diaacutelogos da fase intermediaacuteria e tardia ele seria

14 Um dos enigmas expostos por Soacutecrates diz respeito ao destino da alma humana depois da morte Ele afirma que morrer eacute uma de duas coisas ou a morte eacute igual a nada e natildeo sente nenhuma sensaccedilatildeo de coisa alguma como um sono em que o adormecido nada vecirc nem sonha ou trata-se de uma mudanccedila uma emigraccedilatildeo da alma para o Hades Em face deste enigma Soacutecrates declara que independente do destino de sua alma depois da morte eacute certo que para o homem bom natildeo haacute nenhum mal (Def Soacutec 40c-41a 41c)

apenas o porta-voz das doutrinas metafiacutesicas de Platatildeo (VLASTOS 1991 47-49) E haja

vista a hipoacutetese segundo a qual eacute possiacutevel atribuir ao Soacutecrates dos diaacutelogos da fase inicial

de Platatildeo certas posiccedilotildees autocircnomas levemos a cabo a anaacutelise do diaacutelogo Defesa de

Soacutecrates a fim de compreendermos as concepccedilotildees de Soacutecrates especificamente sobre a

arte retoacuterica

Em sua introduccedilatildeo ao diaacutelogo Defesa de Soacutecrates W R M Lamb15 aventa a

elevada probabilidade de que o conteuacutedo essencial do discurso de Soacutecrates tenha sido

pronunciado por este embora natildeo fosse originalmente tatildeo sofisticado quanto o registro

elaborado por Platatildeo Para corroborar o seu ponto de vista Lamb propotildee os seguintes

argumentos os quais seratildeo suficientes como preparaccedilatildeo para o assunto que

fundamentalmente nos interessa 1) o procedimento socraacutetico na Defesa de Soacutecrates

corresponde agrave maneira usual de Soacutecrates se expressar conforme se depreende dos

diversos relatos de Platatildeo e de Xenofonte 2) natildeo existe nada de inconsistente no discurso

de Soacutecrates com o que se conhece do seu pensamento sobretudo em relaccedilatildeo agrave doutrina

de Platatildeo 3) finalmente o registro da defesa de Soacutecrates refletiria o propoacutesito de

apresentaacute-lo sob uma luz verdadeira e favoraacutevel para a posteridade e isto dificilmente

poderia ser obtido atraveacutes da publicaccedilatildeo de uma ficccedilatildeo aliaacutes muitos atenienses

lembravam-se do que ocorrera com Soacutecrates no tempo da publicaccedilatildeo do diaacutelogo o qual

possivelmente natildeo estava muito distante do julgamento do filoacutesofo

Em consonacircncia com os argumentos acima Ekkehard Martens sustenta que Platatildeo

teria escrito o diaacutelogo Defesa de Soacutecrates para que seu mestre natildeo caiacutesse no

esquecimento A defesa filosoacutefica de Soacutecrates natildeo exclui que ele tambeacutem quisesse

defender objetivamente Soacutecrates das acusaccedilotildees apresentadas Dessarte Platatildeo buscaria

oferecer provas de que Soacutecrates natildeo tinha nada a ver nem com a nova filosofia da natureza

nem com a praacutetica docente sofiacutestica Aleacutem disso ele queria demonstrar que Soacutecrates natildeo

havia sido partidaacuterio dos oligarcas mas tentara estabelecer sobre uma nova base toda a

poliacutetica cotidiana inclusive a democracia Desse modo a criacutetica de Soacutecrates agrave democracia

no Livro VIII de A Repuacuteblica natildeo deveria ser atribuiacuteda ao Soacutecrates histoacuterico e sim

entendida como uma concepccedilatildeo exclusiva de Platatildeo No entanto se o Soacutecrates histoacuterico

de fato se defendeu da maneira peculiar apresentada por Platatildeo isto natildeo poderia ser

15 PLATO The Apology pp 64-65

verificado mas certamente este teria reproduzido o conteuacutedo essencial do discurso

daquele (MARTENS 2013 122-123)

Outrossim conforme frisa George A Kennedy a Defesa de Soacutecrates natildeo

corresponde exatamente agravequilo que Soacutecrates pronunciou e os criacuteticos tecircm variado

grandemente quanto a seu parecer sobre o grau de invenccedilatildeo que se deve atribuir a Platatildeo

Mesmo assim satildeo consideraacuteveis os indiacutecios para sustentar a hipoacutetese de que o Soacutecrates

histoacuterico natildeo pronunciaria um discurso em sua defesa nos moldes da teacutecnica retoacuterica

empregada pelos oradores do seu tempo Kennedy menciona o registro de Xenofonte em

sua Apologia de Soacutecrates segundo o qual em virtude da influecircncia do deus (δαιμόνιον)

Soacutecrates teria se dirigido para o tribunal ateniense sem preocupar-se minimamente com a

preparaccedilatildeo de sua defesa afirmaccedilatildeo que se harmoniza perfeitamente com a de Platatildeo

Kennedy tambeacutem enfatiza que Xenofonte percebe que Soacutecrates poderia ter defendido a

si mesmo de tal modo a persuadir efetivamente os juiacutezes mas por convicccedilotildees morais natildeo

o teria feito Aliaacutes um grande nuacutemero de defesas publicadas a respeito de Soacutecrates depois

de sua morte bem como as tentativas de Platatildeo no Menexeno e no Fedro revelam que

Soacutecrates poderia construir um bom discurso retoacuterico se de fato o desejasse (KENNEDY

1963 149-150)

Nickolas Pappas salienta que os tribunais de Atenas natildeo tinham juiacutezes para instruir

o processo e nenhum advogado profissional que representasse clientes Primeiramente

aquele que trazia a acusaccedilatildeo falava perante o juacuteri identificando a lei que o reacuteu havia

supostamente transgredido e apresentando testemunhas para sustentar o seu caso O reacuteu

por sua vez respondia com seu proacuteprio discurso e suas testemunhas E ambos os lados

falava com restriccedilotildees de tempo Depois disso o juacuteri votava seu veredicto e quando o reacuteu

era considerado culpado votava uma segunda vez para determinar a sentenccedila Isto posto

tanto no tribunal como na Assembleia a habilidade de falar persuasivamente poderia

significar a diferenccedila entre a vitoacuteria e a derrota ou entre a vida e a morte Daiacute a

importacircncia de especialistas em retoacuterica Em Atenas os filhos das pessoas abastadas e

poderosas estudavam a teacutecnica retoacuterica com os sofistas a fim de tornarem-se oradores

persuasivos E o que estes faziam de um certo modo natildeo era verdadeiro nem honesto

mas mesmo assim funcionava (PAPPAS 2017 26-27)

Dioacutegenes Laeacutercio destaca na atitude de Soacutecrates em face do seu julgamento o

desprezo agrave teacutecnica retoacuterica com vistas agrave persuasatildeo da audiecircncia noccedilatildeo que seraacute capital

para a anaacutelise subsequente de seu discurso judicial Conforme Laeacutercio Liacutesias teria

redigido uma excelente defesa para o julgamento de Soacutecrates nos moldes da teacutecnica

retoacuterica praticada pelos oradores mais haacutebeis Liacutesias seguia aqui a praacutetica corrente naquele

contexto em que desprovidos de advogados os acusados recorriam para se defenderem

aos logoacutegrafos (λογογράφος) isto eacute indiviacuteduos pagos para redigir a defesa que teria de

ser pronunciada diante do tribunal No caso presente depois de ler toda a defesa elaborada

por Liacutesias Soacutecrates teria declinado ponderando que a despeito da beleza do discurso

este natildeo seria adequado a seu caso Para Laeacutercio a composiccedilatildeo de Liacutesias era

evidentemente mais judicial do que filosoacutefica e por essa razatildeo Soacutecrates a teria rejeitado

A composiccedilatildeo em apreccedilo que provavelmente obedecia com esmero os princiacutepios

usualmente empregados pelos oradores com o intuito de obter a persuasatildeo do auditoacuterio

seria incongruente com o modo de vida do filoacutesofo Escreve Laeacutercio sobre este assunto

(Vid doutr fil il II 5 40)

A declaraccedilatildeo jurada que ainda se conserva tinha o seguinte teor de conformidade com Favorinos em sua obra Metrocircon ldquoEsta acusaccedilatildeo e declaraccedilatildeo eacute jurada por Mecircletos filho de Mecircletos de Pitos contra Soacutecrates filho de Sofroniscos de Alopece Soacutecrates eacute culpado de recusar-se a reconhececer os deuses reconhecidos pelo Estado e de introduzir divindades novas e eacute tambeacutem culpado de corromper a juventude Pena pedida a morterdquo Depois de ter lido toda a sua defesa escrita por Liacutesias o filoacutesofo declarou ldquoUm belo discurso Liacutesias mas natildeo eacute adequado ao meu casordquo Com efeito a composiccedilatildeo de Liacutesias era evidentemente mais forense que filosoacutefica Liacutesias retrucou ldquoSe se trata de um belo discurso como pode faltar-lhe adequaccedilatildeo ao teu casordquo Soacutecrates replicou ldquoOra belos mantos e calccedilados natildeo me seriam tambeacutem inadequadosrdquo

Aleacutem das fontes ateacute aqui apresentadas existe outro indiacutecio que corrobora a

hipoacutetese em consideraccedilatildeo um fragmento de papiro anocircnimo preservado na cidade de

Colocircnia que conteacutem parte de um diaacutelogo entre Soacutecrates e uma pessoa sem nome na cela

de Soacutecrates apoacutes sua condenaccedilatildeo onde se pergunta ao filoacutesofo a razatildeo pela qual ele teria

rejeitado todos os artifiacutecios retoacutericos no seu discurso de defesa (TAYLOR 2010 36)

22 As caracteriacutesticas da retoacuterica de Soacutecrates

Para o estudo da retoacuterica assim como para muitos outros importantes temas da obra

de Platatildeo o diaacutelogo Defesa de Soacutecrates oferece um ponto de partida fundamental O

discurso de defesa comeccedila com as afirmaccedilotildees de Soacutecrates sobre os problemas envolvendo

a retoacuterica As pessoas com o domiacutenio na arte da retoacuterica satildeo descritas por ele como

terrivelmente engenhosas na fala e os acusadores de Soacutecrates assim o caracterizaram em

seu discurso diante o corpo judicial ateniense composto com cerca de 500 cidadatildeos Ele

nega a acusaccedilatildeo e a descreve como a mais vergonhosa das acusaccedilotildees feita por seus

adversaacuterios por isso eles seratildeo refutados por seu proacuteprio discurso judicial Desse modo

em seu uacutenico discurso dirigido agrave multidatildeo poliacutetica da cidade de Atenas de que se tem

registro Soacutecrates comeccedila com uma reflexatildeo a respeito da relaccedilatildeo entre a persuasatildeo e a

verdade e chama a atenccedilatildeo de maneira enfaacutetica para a sua visatildeo sui generis da retoacuterica

No proecircmio de sua defesa (Def Soacutec 17a-18a) isto eacute na introduccedilatildeo de seu discurso

judicial Soacutecrates caracteriza seus adversaacuterios como aqueles que jamais proferiram a

verdade mas somente coisas falsas E apesar desses indiviacuteduos nunca terem proferido a

verdade Soacutecrates reconhece neles um talento a saber a capacidade de falar

persuasivamente Soacutecrates tambeacutem declara que seus adversaacuterios satildeo tatildeo haacutebeis na

capacidade de persuadir seus ouvintes que estatildeo a ponto de persuadi-lo uma vez que natildeo

eacute mais capaz de saber quem realmente eacute poreacutem eles natildeo teriam proferido nenhuma

verdade (Ibid17a)

Com efeito a mentira persuasiva que Soacutecrates atribui a seus adversaacuterios que

mesmo nunca tendo dito a verdade conseguiram convencer seus ouvintes e quase o

proacuteprio Soacutecrates consistia em fazer crer que este era formidaacutevel (δεῖνος) na arte de falar

Ele declara que iraacute desmentir com fatos que efetivamente natildeo eacute um formidaacutevel orador

salvo se seus acusadores chamam de formidaacutevel a quem diz somente a verdade E eacute

contra essa falsa imagem elaborada por seus adversaacuterios os quais seriam mestres na arte

de persuadir que Soacutecrates vai se opor como aquele que diz a verdade prescindindo de

qualquer habilidade persuasiva Desse modo ele se posiciona diante dos seus adversaacuterios

como sendo justamente aquele que diz a verdade e a diz fora da arte da persuasatildeo que eacute

conhecida e praticada por aqueles que o acusam Soacutecrates entatildeo se apresenta como

aquele que estaacute incumbido de expressar unicamente a realidade em total desprezo a toda

teacutecnica retoacuterica (Ibid 17b)

Com efeito natildeo corarem de me haver eu de desmentir prontamente com os fatos ao mostrar-me um orador nada formidaacutevel eis o que me pareceu o maior dos seus descaramentos salvo se essa gente chama formidaacutevel a quem diz a verdade se eacute o que entendem eu caacute admitiria que em contraste com eles sou um orador Seja como for repito-o verdade eles natildeo proferiram nenhuma ou quase nenhuma de mim poreacutem voacutes ides ouvir a verdade inteira Mas natildeo por Zeus Atenienses natildeo ouvireis discursos como os deles aprimorados em nomes e verbos em estilo florido

Prosseguindo em seu discurso Soacutecrates declara que possui setenta anos de idade

que jamais foi citado diante de um tribunal que jamais foi acusado e que tampouco foi

o acusador Com isso ao afirmar que nunca compareceu diante de um tribunal insinua

que o discurso que proferiraacute em sua defesa natildeo pertence agraves formas retoacutericas comumente

praticadas diante das assembleias e dos tribunais E com o intuito de explicar mais

claramente sua posiccedilatildeo Soacutecrates se utiliza da metaacutefora do ldquoestrangeirordquo (ξένος) para

distinguir o seu discurso daquele de seus adversaacuterios (Ibid 17d)

Acontece que venho ao tribunal pela primeira vez aos setenta anos de idade sinto-me assim completamente estrangeiro sem duacutevida me desculpariacuteeis o sotaque e a linguagem de minha criaccedilatildeo

Soacutecrates afirma que nunca esteve acostumado com o gecircnero de eloquecircncia dos

mais haacutebeis oradores uma vez que nunca esteve num local poliacutetico e judicial das

assembleias e dos tribunais sendo um ξένος em relaccedilatildeo a estes ambientes Aleacutem disso

pode-se assegurar que o discurso de Soacutecrates representa o de um ldquoestrangeirordquo em virtude

de certas atitudes que o distinguem dos demais oradores quando se trata de pronunciar

um discurso

Soacutecrates diz que a sua linguagem eacute a mesma que utiliza nas praccedilas puacuteblicas nos

comeacutercios ou em qualquer outro local Desse modo a linguagem de Soacutecrates natildeo estaria

em descontinuidade (de vocabulaacuterio e de forma de construccedilatildeo) com a linguagem que se

emprega cotidianamente e esta caracteriacutestica constitui a primeira diferenccedila entre sua

linguagem e a dos demais oradores (Ibid 17c)

Faccedilo-vos no entanto um pedido Atenienses uma suacuteplica premente se ouvirdes na minha defesa a mesma linguagem que habitualmente emprego na praccedila junto das bancas onde tantos dentre voacutes me tendes escutado e noutros lugares natildeo a estranheis nem vos amotineis por isso

Soacutecrates tambeacutem declara que a linguagem que utiliza eacute tal que nada mais eacute que a

seacuterie de palavras e sentenccedilas que se apresentam agrave sua alma por isso ele procura falar de

acordo com as expressotildees que surgem espontaneamente A linguagem de Soacutecrates natildeo

faria portanto mais do que traduzir prontamente e sem nenhuma reconstruccedilatildeo nem

artifiacutecio retoacuterico o movimento natural do pensamento Ela seria uma expressatildeo

espontacircnea do que lhe vai na alma nos termos que lhe ocorrem (Ibid 17b-c)

Outra caracteriacutestica que Soacutecrates sustenta distingui-lo dos demais oradores consiste

em se utilizar de uma linguagem que procura exprimir com toda fidedignidade

exatamente aquilo que quem a profere acredita ser verdadeiro Soacutecrates sustenta existir

em suas palavras uma exata correspondecircncia com o que ele supotildee ser correto por isso

pode depositar confianccedila na justiccedila do que enuncia (Ibid 17c) Tal atitude pode ser

definida simplesmente como boa-feacute que eacute tanto um fato psicoloacutegico como uma virtude

moral Como fato psicoloacutegico eacute a conformidade dos atos e das palavras com a vida

interior e como virtude moral consiste no amor agrave verdade em detrimento do amor-

proacuteprio Pode-se assegurar entatildeo que a boa-feacute representa uma crenccedila fiel e uma

fidelidade no que se acredita Isto significa que Soacutecrates jamais pronunciaria um discurso

cujo conteuacutedo fosse contraacuterio agraves suas crenccedilas pessoais somente para agradar seu auditoacuterio

para natildeo o ofender ou ainda para obter eficaacutecia persuasiva por isso depois de ler toda a

defesa elaborada por Liacutesias ele simplesmente a descartou Ele se recusa a enganar a

dissimular a enfeitar ou a utilizar artifiacutecios retoacutericos Trata-se pois de amar a verdade

mais do que a si mesmo o que implica na coragem de pensar e de dizer tudo aquilo que

eacute tido por verdadeiro

Tendo em vista o proecircmio de Soacutecrates momento em que este expotildee a maneira como

pronunciaraacute sua defesa eacute possiacutevel sustentar que a retoacuterica socraacutetica possui trecircs

caracteriacutesticas essenciais a linguagem cotidiana comum vulgar a linguagem da maneira

que se apresenta diretamente na alma e a linguagem em coerecircncia com o que se acredita

ser verdadeiro Sendo assim utilizar-se da linguagem de todos os dias sem floreios

retoacutericos proferir todas as ideias que emergem na alma e somente afirmar o que se

acredita ser verdadeiro satildeo os componentes indissociaacuteveis da retoacuterica socraacutetica

Soacutecrates sustenta que a linguagem tipicamente retoacuterica eacute arquitetada elaborada e

escolhida cuidadosamente para atingir uma finalidade muito especiacutefica a saber a

persuasatildeo dos ouvintes Ademais a linguagem retoacuterica comum eacute dependente de certo

nuacutemero de princiacutepios regras e teacutecnicas Todavia a linguagem que eacute inerente ao tipo de

retoacuterica defendida por Soacutecrates caracteriza-se pela simplicidade em conformidade com

o proacuteprio movimento do pensamento que sem ornamento eacute adequada ao que se refere e

eacute conforme ao que pensa e acredita quem a emprega Essa linguagem portanto ao se

dirigir agrave alma dos ouvintes natildeo emprega nenhuma teacutecnica de persuasatildeo

Na sequecircncia do seu discurso judicial Soacutecrates confessa que a razatildeo pela qual

jamais se apresentou anteriormente agrave Assembleia como orador para aconselhar seus

concidadatildeos e lhes oferecer suas opiniotildees foi que recebeu ordens para natildeo o fazer E quem

lhe deu a ordem ou mais precisamente a ordem para que natildeo se envolvesse em assuntos

poliacuteticos foi o δαιμόνιον isto eacute sua divindade pessoal (Ibid 31d)

A razatildeo disso em muitos lugares e ocasiotildees ouvistes em minhas conversas uma inspiraccedilatildeo que vem de um deus ou de um gecircnio da qual Meleto fez caccediloada na denuacutencia Isso comeccedilou na minha infacircncia eacute uma voz que se produz e quando se produz sempre me desvia do que vou fazer nunca me incita Ela eacute que me barra a atividade poliacutetica

Fora precisamente o δαιμόνιον diz Soacutecrates quem o advertiu para natildeo tentar dizer

a verdade direta e imediatamente no acircmbito da poliacutetica ateniense Natildeo obstante ele natildeo

pocircde seguir agrave risca o conselho por ter sido obrigado a exercer em nome de sua tribo a

Antioacutequida uma funccedilatildeo de priacutetane que natildeo eacute uma funccedilatildeo que algueacutem postule ou requeira

mas que eacute outorgada por sorteio e por rodiacutezio das funccedilotildees entre as diferentes tribos E

depois da aboliccedilatildeo temporaacuteria da democracia durante a ditadura dos Trinta Soacutecrates

tambeacutem foi incumbido de exercer uma funccedilatildeo poliacutetica Em ambos os postos ele insurgiu-

se contra o que se pretendia constrangecirc-lo a fazer Assim eacute que quando priacutetane natildeo se

importou com a opiniatildeo hegemocircnica no Conselho que queria que fossem julgados

coletivamente os capitatildees que depois da batalha das Arginusas natildeo haviam recolhido os

cadaacuteveres dos soldados mortos Soacutecrates natildeo quis aceitar essa medida que considerou

uma ilegalidade defendendo que os capitatildees deveriam ser julgados individualmente E

quando em Salamina os Trinta lhe ordenaram que prendesse Leatildeo Salamiacutenio recusou-

se preferiu simplesmente ir para a casa a executar uma ordem que reputava ilegal

Conveacutem sublinhar que em ambos os casos Soacutecrates declara-se ciente do risco de

ser morto em decorrecircncia de suas convicccedilotildees Na condiccedilatildeo de priacutetane sustenta ele deve

enfrentar o perigo ao lado da lei e da justiccedila em vez de se colocar ao lado do Conselho

por medo da prisatildeo ou da morte (Ibid 32b-c)

Com efeito Atenienses jamais exerci um cargo puacuteblico apenas fiz parte do Conselho Calhou que a pritania coube agrave minha tribo a Antioacutequida quando do processo dos dez capitatildees que deixaram de recolher os mortos da batalha naval voacutes os queriacuteeis julgar em bloco o que era ilegal como todos reconhecestes depois Naquela ocasiatildeo fui o uacutenico dos priacutetanes que me opus a qualquer accedilatildeo ilegal vossa votando contra os oradores estavam prontos a processar-me a mandar-me prender voacutes os incitaacuteveis a isso aos brados Embora Achei de meu dever correr perigo ao lado da lei e da justiccedila em vez de estar convosco numa decisatildeo injusta por medo da prisatildeo ou da morte

E no que tange agrave ordem dos tiranos Soacutecrates declara que mostrou natildeo com palavras

mas por atos que prefere a justiccedila e a verdade agrave sua proacutepria vida (Ibid 32d)

Nessa ocasiatildeo de novo por atos natildeo por palavras demonstrei que agrave morte ndash desculpai a rudeza da expressatildeo ndash natildeo ligo mais importacircncia que a um figo podre mas a natildeo cometer nenhuma injusticcedila ou impiedade a isso sim dou o maacuteximo valor A mim aquele governo poderoso como era natildeo conseguiu forccedilar-me a uma injusticcedila ao deixarmos a rotunda os quatro seguiram para Salamina e trouxeram Leatildeo mas eu voltei para casa

Pode-se assegurar entatildeo que para Soacutecrates a retoacuterica natildeo se identifica

simplesmente com uma teacutecnica de discurso ou com uma arte mas com a proacutepria vida

Em sua defesa ele propotildee comunicar o seu discurso numa linguagem ordinaacuteria que se

apresenta diretamente em sua alma em coerecircncia com o que acredita ser verdadeiro e se

for o caso em prejuiacutezo da proacutepria vida A propoacutesito a tarefa em apreccedilo natildeo foi confiada

a Soacutecrates pelo δαιμόνιον o qual se limita a dar ordens negativas mas pelo deus de Delfos

em relaccedilatildeo agrave qual ele ligou sua existecircncia e pela qual recusa todo tipo de pagamento16

(Ibid 21a-23b) Desse modo eacute por ordem do proacuteprio deus que Soacutecrates vai exortar (tanto

na cidade quanto no tribunal) os seus ouvintes a natildeo se preocuparem com as honras com

as riquezas ou com a gloacuteria mas a se ocuparem de si mesmos (Ibid 30b) Eacute inegaacutevel que

Soacutecrates age como um retoacuterico na medida em que procura influenciar os seus ouvintes

mas em vez de agradar e tentar obter a aprovaccedilatildeo deles ele abertamente procura exortaacute-

los a cuidar de suas almas Assim o principal alvo do discurso de Soacutecrates natildeo consiste

em persuadir seus ouvintes mas sim em encorajaacute-los a se tornarem pessoas mais

virtuosas Enfim Soacutecrates faz do seu processo judicial um processo filosoacutefico pois

entendia a si mesmo como um filoacutesofo incumbido de despertar a cidade de Atenas para o

16 De acordo com o relato de Xenofonte Soacutecrates natildeo aceitava dinheiro por seus ensinamentos porque ao aceitaacute-lo ele se privaria de sua proacutepria liberdade De outra forma ele estaria obrigado a conversar com todos os que podiam pagar pelos honoraacuterios de modo que preferia ficar livre para gozar da companhia de qualquer pessoa que escolhesse Soacutecrates tambeacutem chegou a declarar que cobrar para ensinar seria o equivalente agrave prostituiccedilatildeo porquanto vender a mente natildeo era algo melhor que vender o corpo Sendo assim a sabedoria era algo que devia ser partilhada gratuitamente entre os amigos e as pessoas amadas (Mem I II 6 I VI 13) ldquoCria com esta abstenccedilatildeo melhor resguardar a proacutepria liberdade chamando de escravizadores de si mesmos os que reclamam salaacuterios por suas palestras visto se imporem a obrigaccedilatildeo de conversar com os que lhes pagam [] Quem chatina com a beleza com que lha queira pagar se chama prostituiacutedo Mas aquele que conhecendo um homem amante da virtude procura fazer-se seu amigo consideram-no sensato O mesmo sucede em relaccedilatildeo agrave sabedoria os que com ela traficam com quem lha queira pagar se chamam sofistas ou prostituiacutedos Aquele poreacutem que reconhecendo em outrem um bom caraacuteter lhe ensina tudo o que sabe de bem e se faz seu amigo reputam-no fiel aos deveres do bom cidadatildeordquo

conhecimento de si e para o exerciacutecio das virtudes agrave maneira de um inseto que procura

picar um cavalo grande e de raccedila mas um pouco lerdo (Ibid 30e)

Conforme jaacute verificamos Soacutecrates nega que seu discurso seja premeditado isto eacute

previamente elaborado ou arquitetado para que tenha eficaacutecia retoacuterica Ele tambeacutem

associa por um lado a artificialidade do discurso agrave persuasatildeo e agrave mentira e por outro

associa o seu discurso extemporacircneo com a verdade e a justiccedila Sendo assim a persuasatildeo

(tiacutepica dos oradores) e a verdade satildeo colocadas em contraste pois Soacutecrates assegura que

falar a verdade natildeo significa que o juacuteri seraacute convencido e que a habilidade da retoacuterica

persuasiva com todos os seus ornamentos pode ateacute mesmo conduzir o juacuteri a acreditar em

mentiras injustas Soacutecrates conclui a principal parte do seu discurso dizendo que natildeo

desfilaraacute com sua famiacutelia para obter a piedade dos jurados mas confiaraacute na justiccedila do que

diz para receber sua absolviccedilatildeo E termina seu pleito afirmando acreditar nos deuses como

nenhum dos seus acusadores17 (Ibid 34c-35d) Mesmo assim a comissatildeo encarregada

de examinar o meacuterito da questatildeo vota por sua condenaccedilatildeo Deveras o proacuteprio Soacutecrates

julgava que seria condenado razatildeo pela qual a condenaccedilatildeo natildeo lhe causou surpresa O

que o surpreendeu foi o fato de que muitos votaram a favor de sua absolviccedilatildeo Ele ateacute

observou que com a mudanccedila de apenas 30 votos estaria absolvido (Ibid 36a-b) Se este

eacute o caso entatildeo a divisatildeo do juri em 500 membros foi a seguinte 280 votos a favor da

condenaccedilatildeo e 220 a favor da absolviccedilatildeo Sendo assim se os 30 jurados que votaram a

favor da condenaccedilatildeo tivessem se pronunciado pela absolviccedilatildeo Soacutecrates teria o

equivalente a 250 votos de cada lado e em Atenas em caso de empate o acusado era

automaticamente inocentado (STONE 2005 217)

Aleacutem da defesa de Soacutecrates registrada por Platatildeo existe a de Xenofonte que

tambeacutem era disciacutepulo de Soacutecrates Eacute importante trazer agrave baila a versatildeo de Xenofonte sobre

o discurso judicial de Soacutecrates porque existem nela alguns elementos que corroboram

17 Marina McCoy enfatiza que a defesa de Soacutecrates contra a acusaccedilatildeo de descrenccedila nos deuses poderia ter sido expressa em termos poliacuteticos e religiosos Se ele houvesse argumentado que eacute um homem devoto demonstrando sua participaccedilatildeo nos festivais ciacutevico-religiosos poderia ter facilmente persuadido os jurados que natildeo era uma ameaccedila agrave cidade Em vez disso ele recorreu a uma estrateacutegia inusitada ndash invocou exclusivamente ao oraacuteculo de Delfos jaacute que seu principal objetivo natildeo era mostrar que era um devoto de acordo com o padratildeo ateniense o que poderia garantir sua absolviccedilatildeo mas sim remodelar o conceito do que significa ser religioso Esta estrateacutegia foi arriscada porque ela exigia que os jurados entendessem a devoccedilatildeo de Soacutecrates em termos de sua praacutetica de filosofia o que natildeo ocorreu Na visatildeo de Soacutecrates a obediecircncia ao oraacuteculo jaacute seria uma demonstraccedilatildeo da verdadeira devoccedilatildeo mas esta estaria de acordo com um padratildeo divino e natildeo humano Tal atitude poderia ser facilmente interpretada como uma manifestaccedilatildeo de arrogacircncia e desrespeito em relaccedilatildeo aos jurados Desse modo o fato de Soacutecrates ter se elevado como uma pessoa numa missatildeo divina e como algueacutem que se considera o mais saacutebio de Atenas teria contribuiacutedo significativamente para a sua condenaccedilatildeo (MCCOY 2010 57-60)

algumas concepccedilotildees ateacute aqui expostas Xenofonte relata que ao ver Soacutecrates discorrer

sobre assuntos completamente alheios ao seu processo Hermoacutegenes questiona a

negligecircncia deste em elaborar uma defesa nos moldes da teacutecnica retoacuterica comumente

empregada pelos oradores Em resposta Soacutecrates afirma que o melhor meio de preparar

uma boa defesa natildeo seria atraveacutes de estrateacutegias retoacutericas ou pela grandiosidade do

discurso (μεγαληγορίαν) mas atraveacutes de uma vida justa (Apol Soacutec I 2-3) Hermoacutegenes

tambeacutem denuncia que muitos juiacutezes em Atenas aborrecidos por determinadas defesas

mal elaboradas condenaram agrave morte muitos inocentes e absolveram muitos culpados

cuja linguagem teve o poder de suscitar o sentimento de piedade e lisonjear os ouvidos

Soacutecrates replica que por duas vezes tentou elaborar uma defesa agrave maneira dos oradores

mais competentes poreacutem sua divindade pessoal natildeo o permitira (Ibid I 4) Sendo assim

o δαιμόνιον teria dissuadido Soacutecrates a preparar uma defesa quando todos achavam que

deveria por todos os meios buscar subterfuacutegios para obter a benevolecircncia dos juiacutezes e

por conseguinte livrar-se da condenaccedilatildeo (Ibid I 8) Entretanto ao sugerir aos juiacutezes a

prerrogativa de possuir a preferecircncia dos deuses Soacutecrates teria suscitado sua indignaccedilatildeo

e natildeo sua benevolecircncia e tal disposiccedilatildeo emocional certamente contribuiu para a decisatildeo

final que condenou o filoacutesofo (Ibid II 14-15)

Conveacutem salientar que a mesma atitude de desprezo que Soacutecrates nutre pela teacutecnica

retoacuterica em favor da filosofia presente nas fontes supramencionadas aparece no diaacutelogo

de Platatildeo chamado Goacutergias Nesse diaacutelogo um dos interlocutores de Soacutecrates chamado

Caacutelicles (que era disciacutepulo de Goacutergias) critica naquele a excessiva dedicaccedilatildeo agrave filosofia

dedicaccedilatildeo que custa a Soacutecrates o preccedilo de tornar-se inexperiente nas leis da cidade nos

discursos que se deve empregar nas relaccedilotildees puacuteblicas e privadas nos prazeres e apetites

humanos e nos costumes dos homens (Goacuterg 484d) Caacutelicles tambeacutem afirma que aquele

que se dedica agrave filosofia e natildeo agrave retoacuterica mesmo dotado de oacutetima natureza tornar-se-aacute

efeminado e fugiraacute do centro da cidade e das aacutegoras onde os homens se tornam distintos

Ele passaraacute o resto da vida escondido a murmurar coisas pelos cantos junto a trecircs ou

quatro jovens sem jamais proferir algo livre valoroso e suficiente (Ibid 485d-e) Aleacutem

do mais Caacutelicles aventa que se algueacutem capturasse Soacutecrates e o encarcerasse sob a

alegaccedilatildeo de injusticcedila ainda que Soacutecrates natildeo a tivesse cometido natildeo teria nada de

significativo para dizer em seu proacuteprio favor de modo que quando chegasse ao tribunal

diante de um acusador extremamente miacutesero e despreziacutevel certamente morreria uma vez

que sem o domiacutenio conveniente da teacutecnica retoacuterica ele seria incapaz de socorrer a si

mesmo ou qualquer outra pessoa (Ibid 486b-c)

Pois se hoje algueacutem te capturasse ou qualquer outro homem da sua estirpe e te encarcerasse sob a alegaccedilatildeo de que cometeste uma injusticcedila ainda que natildeo a tenhas cometido sabes que natildeo terias o que fazer contigo mesmo mas ficarias turvado e boquiaberto sem ter o que dizer quando chegasses ao tribunal diante de um acusador extremamente miacutesero e despreziacutevel tu morrerias caso ele quisesse te estipular a pena de morte Ademais como isto pode ser saacutebio Soacutecrates ldquoque a arte apossando-se de um homem de oacutetima natureza torna-o piorrdquo incapaz de socorrer a si mesmo ou qualquer outra pessoa dos riscos mais extremos despojado pelos inimigos de todos os seus bens e vivendo absolutamente desonrado na cidade Para ser ainda mais rude qualquer um poderia rachar a tecircmpora de um homem como esse sem pagar a justa pena

Do que foi exposto ateacute aqui pode-se concluir que a diferenccedila essencial entre

Soacutecrates e os demais oradores incluindo obviamente os sofistas natildeo consiste na

separaccedilatildeo entre a filosofia e a retoacuterica pois conforme examinamos Soacutecrates defende sui

generis uma concepccedilatildeo filosoacutefica da retoacuterica O uso que ele faz da retoacuterica estaria a seus

olhos a serviccedilo das virtudes da justiccedila da coragem e da devoccedilatildeo agrave divindade Aliaacutes parte

do argumento de Platatildeo no diaacutelogo Defesa de Soacutecrates visa estabelecer que as virtudes

em apreccedilo surgem e estatildeo intrinsecamente relacionadas ao compromisso de Soacutecrates com

a filosofia a qual eacute tida por ele como um modo de vida algo pelo qual ele estaria disposto

a morrer inuacutemeras vezes (Def Soacutec 30b-c) Entretanto aos olhos de Soacutecrates os sofistas

procediam amiuacutede como oportunistas e casuiacutestas oportunistas porque persuadiam sem se

importar se a perspectiva em questatildeo eacute verdadeira visando somente a vitoacuteria a qualquer

custo e casuiacutestas porque em relaccedilatildeo a um determinado assunto os argumentos proacute e

contra poderiam ser veiculados pelo mesmo orador conforme a utilidade e a

conveniecircncia Para esse tipo de orador a persuasatildeo natildeo somente triunfa sobre a verdade

mas reina na ausecircncia da verdade

3 A arte retoacuterica de Aristoacuteteles e o discurso judicial de Soacutecrates

31 O compromisso eacutetico-poliacutetico da persuasatildeo retoacuterica

Apesar de Soacutecrates reconhecer em seu discurso a eficaacutecia persuasiva dos recursos

retoacutericos empregados pelos oradores de sua eacutepoca nem por isso ele deixa de rejeitaacute-los

conforme enfatizado acima Aristoacuteteles por sua vez sustenta que os recursos retoacutericos

jamais devem ser negligenciados por qualquer orador judicial ponderando que a praacutetica

da arte retoacuterica com todos os seus ornamentos natildeo contradiz necessariamente a justiccedila e

a verdade Na visatildeo de Aristoacuteteles ao argumento de que o uso injusto (χρώμενος ἀδίκως)

da arte retoacuterica pode provocar graves danos pode-se objetar que o mesmo argumento

pode se aplicar a todos os bens que existem ndash sobretudo os mais uacuteteis aos seres humanos

como a forccedila a sauacutede a riqueza e o talento militar ndash os quais se utilizados

adequadamente poderatildeo ser muito uacuteteis para o benefiacutecio da cidade e se utilizados de

maneira inadequada poderatildeo causar agravequela enorme prejuiacutezo Diz ele (Ret 1355b 4-10)

Se algueacutem argumentar que o uso injusto dessa faculdade da palavra pode causar graves danos conveacutem lembrar que o mesmo argumento se aplica a todos os bens exceto agrave virtude principalmente aos mais uacuteteis como a forccedila a sauacutede a riqueza e o talento militar pois sendo usados justamente poderatildeo ser muito uacuteteis e sendo usados injustamente poderatildeo causar grande dano

De acordo com a definiccedilatildeo elaborada por Aristoacuteteles a arte retoacuterica consiste na

capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com a finalidade de persuadir e

esta natildeo eacute a funccedilatildeo de nenhuma arte porque cada uma das outras artes eacute apenas instrutiva

e persuasiva nos campos de sua competecircncia mas a retoacuterica parece ter a faculdade de

descobrir os meios de persuasatildeo sobre qualquer assunto (Ibid 1355b 32-42)

Entendemos por retoacuterica a capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com o fim de persuadir Esta natildeo eacute seguramente a funccedilatildeo de nenhuma outra arte pois cada uma das outras eacute apenas instrutiva e persuasiva nas aacutereas de sua competecircncia como por exemplo a medicina sobre a sauacutede e a doenccedila a geometria sobre as variaccedilotildees que afetam as grandezas e a aritmeacutetica sobre os nuacutemeros o mesmo se passando com todas as outras artes e ciecircncias Mas a retoacuterica parece ter por assim dizer a faculdade de descobrir os meios de persuasatildeo sobre qualquer questatildeo dada

Desse modo a arte retoacuterica natildeo parece se identificar com a simples faculdade de

persuadir18 mas essencialmente eacute a arte de encontrar os meios de persuasatildeo que cada caso

comporta O orador natildeo eacute capaz de persuadir qualquer pessoa acerca de qualquer assunto

mas pode sempre ver o que seraacute persuasivo nas circunstacircncias dadas sem nada omitir A

atividade do meacutedico por exemplo nada pode realizar para os doentes incuraacuteveis

tampouco a estes pode prometer a cura mas pode propiciar aos pacientes todas as

oportunidades para curar-se Similarmente a atividade do orador consiste em descobrir

os meios disponiacuteveis para promover a persuasatildeo embora ele natildeo seja capaz de persuadir

a todos Escreve Aristoacuteteles (Ibid 1355b 11-19)

Eacute pois evidente que a retoacuterica natildeo pertence a nenhum gecircnero particular definido antes se assemelha agrave dialeacutetica Eacute tambeacutem evidente que ela eacute uacutetil e que a sua funccedilatildeo natildeo eacute persuadir mas discernir os meios de persuasatildeo mais pertinentes a cada caso tal como acontece em todas as outras artes de fato natildeo eacute funccedilatildeo da medicina dar sauacutede ao doente mas avanccedilar o mais possiacutevel na direccedilatildeo da cura pois tambeacutem se pode cuidar bem dos que jaacute natildeo estatildeo em condiccedilotildees em recuperar a sauacutede

Diferentemente do que parece propor Soacutecrates no proecircmio de seu discurso judicial

ao estabelecer a oposiccedilatildeo entre a persuasatildeo e a verdade para Aristoacuteteles a persuasatildeo

ligada agrave teacutecnica retoacuterica pode ser eacutetica e politicamente uacutetil (χρήσιμος) A arte da

persuasatildeo pode ser uacutetil porque em que pese a verdade e a justiccedila sejam por natureza mais

fortes que seus contraacuterios se os juiacutezos natildeo se fizerem como conveacutem a verdade e a justiccedila

seratildeo necessariamente vencidas pelos seus opostos e isto eacute censuraacutevel (Ibid 1355a 28-

32) Por essa razatildeo o emprego das teacutecnicas retoacutericas que visam a persuasatildeo dos ouvintes

jamais deve ser negligenciado ou omitido por qualquer orador bem-intencionado

Para Aristoacuteteles a verdade (ἀλήθεια) consiste sumariamente em afirmar aquilo que

eacute e negar aquilo que natildeo eacute O falso (ψεῦδος) por sua vez consiste em dizer que o ser natildeo

eacute ou que o natildeo-ser eacute Por conseguinte quem diz de uma coisa que eacute ou que natildeo eacute ou

afirmaraacute o verdadeiro ou afirmaraacute o falso (Met 1011b 25-28) Aristoacuteteles tambeacutem afirma

que o ser verdadeiro e falso das asserccedilotildees eacute funccedilatildeo do modo como nelas se une ou separam

suas partes de sorte que estaraacute na verdade quem considera separadas as coisas que

efetivamente satildeo separadas e unidas as coisas que efetivamente satildeo unidas Em

18 Ao rejeitar a noccedilatildeo de que a retoacuterica consiste stricto sensu na arte de persuadir Aristoacuteteles parece reportar-se agrave concepccedilatildeo defendida por Goacutergias no diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (Goacuterg 453a) onde o sofista define a retoacuterica como πειθοῦς δημιουργός ou seja como artiacutefice da persuasatildeo (ῥητορικὴν ἥντινα τέχνην ἡγῇ εἶναι καὶ εἴ τι ἐγὼ συνίημι λέγεις ὅτι πειθοῦς δημιουργός)

contrapartida estaraacute no erro quem considerar unido o que estaacute separado ou separado o

que estaacute unido Aleacutem disso Aristoacuteteles assevera que o entendimento do que uma coisa eacute

precisa estar de acordo com o que de fato ocorre na realidade e isto garantiria ou atestaria

a apreensatildeo do verdadeiro (Sob alm 420b 27-28) Por exemplo algo natildeo pode ser

considerado branco pelo fato de algueacutem simplesmente afirmar que eacute branco mas pelo

fato de ser branco na realidade eacute possiacutevel afirmar que eacute branco e isto implicaria na posse

da verdade (Ibid 1051b 1-10)

Para o Estagirita uma proposiccedilatildeo eacute verdadeira se e somente se corresponder aos

fatos pois se for verdadeira ela se verifica quer se afirme ou natildeo que ela seja verdadeira

E se ela eacute falsa natildeo se verifica quer se afirme ou natildeo que ela seja falsa Segundo essa

perspectiva a verdade seria uma forma de correspondecircncia entre as representaccedilotildees de

afirmaccedilatildeo de fatos e os estados de coisas existentes de modo que a relaccedilatildeo produtora de

verdade entre o discurso e as coisas que articula o modo como estas fazem aquele ser

verdadeiro dependeria do correspondente ontoloacutegico Assim sendo a verdade filosoacutefica

consiste no reconhecimento da realidade ontoloacutegica eacute dizer as coisas como efetivamente

satildeo eacute afirmar aquilo que existe na realidade No entanto conveacutem frisar que diante da

inexequibilidade de se obter na praacutetica retoacuterica uma verdade absoluta Aristoacuteteles propotildee

contentar-se com o verossiacutemil (εἰκός) pois ainda que natildeo exista em relaccedilatildeo a um

determinado assunto a verdade absoluta existe certamente algo mais seguro e mais

veriacutedico (Met 1008b 31-1009a 5) No acircmbito da arte retoacuterica o εἰκός19 eacute tanto o discurso

que enuncia o estado de coisas como o proacuteprio estado de coisas Por um lado eacute uma

ldquoproposiccedilatildeo geralmente admitidardquo isto eacute um discurso e por outro eacute ldquoaquilo que sabemos

que ocorre a maior parte das vezesrdquo que corresponderia aos fatos Com efeito o

enunciado eacute verossiacutemil porque emite a opiniatildeo dos homens ao testemunhar um fato

provaacutevel que pode ser tanto social como natural Desse modo o discurso retoacuterico natildeo

estaacute apartado do estado de coisas ou da realidade pois se eacute possiacutevel um discurso

verossiacutemil eacute por causa de um fato que ocorre a maior parte das vezes que neste caso

recebe a denominaccedilatildeo de provaacutevel (YAMIN 2016 149-153)

A justiccedila (δικαιοσύνη)20 por sua vez designa uma disposiccedilatildeo intermediaacuteria uma

reta medida A justiccedila eacute entatildeo uma certa posiccedilatildeo intermeacutedia (μεσοτeacuteς) mas natildeo do

19 O conceito aristoteacutelico de εἰκός seraacute ulteriormente objeto de um estudo agrave parte mais pormenorizado que incluiraacute uma anaacutelise comparativa entre as premissas retoacutericas e as premissas cientiacuteficas 20 Em comparaccedilatildeo com as demais virtudes eacuteticas o Estagirita dedica especial atenccedilatildeo agrave justiccedila a qual eacute concebida por ele natildeo como um valor transcendente como queria Platatildeo mas como uma virtude humana Para tanto ele distingue a justiccedila concebida num sentido mais amplo de siacutentese de todas as virtudes (Eacutet

mesmo modo que o satildeo as demais virtudes eacuteticas como a temperanccedila ou a coragem A

injusticcedila inversamente eacute determinada pela violaccedilatildeo do princiacutepio de proporccedilatildeo pois se a

justiccedila eacute uma posiccedilatildeo intermeacutedia a injusticcedila (ἄδικος) corresponde aos dois limites

extremos (Eacutet Nic 1133b 30-1134a 2) E uma vez que a posiccedilatildeo intermeacutedia corresponde

agrave virtude em geral a justiccedila torna-se a virtude mais importante e admiraacutevel a ponto de

ser considerada por Aristoacuteteles a mais completa (τέλειος) das virtudes (Ibid1129b 5) A

justiccedila eacute a mais completa porque o indiviacuteduo que a possui tem o poder de a usar natildeo

apenas para beneficiar-se a si mesmo mas tambeacutem para beneficiar a cidade (Ibid 1129b

30-35) Desse modo a accedilatildeo justa em geral beneficia a todos incluindo aqueles que a

realizam pois quando todos se empenham em fazer o que eacute justo e se esforccedilam para fazer

as coisas mais justas a comunidade ganharaacute tudo o que deve e cada indiviacuteduo ganharaacute o

maior dos bens uma vez que eacute isto o que eacute a virtude E ao escolher deliberadamente o

uso da virtude mais completa por ela mesma a pessoa virtuosa estaacute deliberadamente

escolhendo o que beneficia os outros pois as accedilotildees que manifestam a justiccedila beneficiam

tanto o agente que as realiza como todos os outros na comunidade poliacutetica A justiccedila pois

eacute a uacutenica virtude que eacute um bem que pertence a outrem uma vez que envolve uma relaccedilatildeo

com outrem21 ou seja produz pela sua accedilatildeo o que eacute de interesse para outrem seja esse

algueacutem um superior ou um igual Inversamente a injusticcedila eacute considerada o pior viacutecio de

todos a mais completa perversatildeo (ὅλη κακία) porque constitui um mal para o indiviacuteduo

que o possui e tambeacutem para outrem (Ibid 1130a 5-10)

Outrossim Aristoacuteteles assegura que em relaccedilatildeo agraves pessoas a justiccedila eacute definida de

duas maneiras porquanto o que se deve e natildeo se deve fazer eacute definido ora em relaccedilatildeo agrave

comunidade ora em relaccedilatildeo a um de seus membros Isto posto eacute possiacutevel cometer a

injusticcedila e praticar a justiccedila de duas maneiras em relaccedilatildeo a um determinado indiviacuteduo e

em relaccedilatildeo agrave comunidade poliacutetica Pois quem comete adulteacuterio ou fere algueacutem comete

Nic 1139b 30) agrave maneira de Platatildeo e a justiccedila como virtude particular Esta eacute definida por Aristoacuteteles como uma posiccedilatildeo intermeacutedia mais precisamente como uma forma de igualdade intermediando duas opostas desigualdades Todavia a igualdade pode existir entre desiguais que nesse caso vai consistir numa igualdade de relaccedilotildees ou seja em uma certa proporccedilatildeo ao se tratar de distribuir honras entre seres humanos com meacuteritos desiguais tal igualdade vai consistir no ato de dar a cada um conforme os seus meacuteritos que Aristoacuteteles designa de justiccedila distributiva (Ibid 1131a 10-1131b 25) Ao se tratar de corrigir ofensas a igualdade vai consistir no ato de ressarcir a parte prejudicada em medida igual ao dano sofrido que recebe o nome de justiccedila corretiva (Ibid 1131b 25-1132b 20) Ele tambeacutem enfatiza a necessidade de retificar a justiccedila legal atraveacutes da equidade quando a universalidade da lei natildeo for capaz de considerar os casos particulares a que se aplica a qual recebe o nome de justiccedila equitativa (Ibid 1137b 1- 1138a 5) 21 A noccedilatildeo de que a δικαιοσύνη eacute uacutetil tanto para o indiviacuteduo quanto para a cidade jaacute estaacute presente no pensamento de Platatildeo (Rep 333d) ldquoE quando se tem de manter guardada uma foice a justiccedila eacute uacutetil tanto comunitaacuteria quanto individualmenterdquo

injusticcedila contra um dos indiviacuteduos mas os que natildeo cumprem os seus deveres militares

cometem-no contra toda a comunidade poliacutetica (Ret 1373b 23-31) Aristoacuteteles enfatiza

tambeacutem que a justiccedila parece ser a mais desejaacutevel das virtudes por ser ela uacutetil em todas as

ocasiotildees eventualmente dispensando outras Ele pondera que dentre duas coisas aquela

que se todos a possuiacutessem tornaria desnecessaacuteria a outra eacute mais desejaacutevel do que aquela

que todos poderiam possuir e mesmo assim sentir falta da outra Considerando-se o caso

da justiccedila e da coragem (ανδρεία) se todos fossem justos natildeo haveria necessidade de

coragem ao passo que se todos fossem corajosos ainda assim haveria necessidade de

justiccedila (Toacutep 117a 35-40)

Tendo em conta que a verdade e a justiccedila satildeo por natureza mais fortes que seus

contraacuterios e sendo evidente que os recursos retoacutericos podem favorecer as causas injustas

entatildeo muito mais eficazmente os mesmos recursos podem favorecer as causas justas

Assim sob o ponto de vista do meacutetodo retoacuterico elaborado por Aristoacuteteles natildeo somente

Soacutecrates mas tambeacutem todo orador judicial deveria sem constrangimento se utilizar de

todas as estrateacutegias retoacutericas possiacuteveis para livrar-se da condenaccedilatildeo e estabelecer a

verdade dos fatos Na visatildeo de Aristoacuteteles o orador eacute um homem que examina sua

situaccedilatildeo concreta e a ela aplica sua arte para fazer um inventaacuterio das possibilidades

existentes a fim de obter a persuasatildeo da audiecircncia Enquanto estaacute ocupado com tal

inventaacuterio ele pode atuar sem nenhum compromisso eacutetico agrave maneira dos sofistas posto

que a retoacuterica eacute uma arte moralmente neutra No entanto Aristoacuteteles natildeo adota essa

postura para o seu meacutetodo pois para ele a arte retoacuterica para ser completa precisa ter em

conta premissas retiradas da eacutetica e da poliacutetica ou seja tais premissas devem expressar o

compromisso do orador com a escolha moral (προαίρεσις)

Pode-se assegurar entatildeo que o compromisso eacutetico da arte retoacuterica ndash estabelecer a

verdade e a justiccedila na cidade ndash justificaria o emprego de todos os expedientes disponiacuteveis

para obter a persuasatildeo Ademais como observa E M Cope a natural superioridade da

verdade e da justiccedila sobre a falsidade e a injusticcedila culmina por pautar que o bom uso da

arte retoacuterica deve corroborar tal superioridade Isto porque visto que as decisotildees judiciais

satildeo sempre suscetiacuteveis de serem influenciadas por argumentos falaciosos cumpre agrave boa

retoacuterica trazer a verdade agrave luz detectar e expor o engano e os sofismas e debelar a

perversatildeo da verdade e da justiccedila E se porventura os maus oradores acabam

prevalecendo sobre os oradores honestos eacute porque estes natildeo conseguiram aproveitar-se

do poderoso instrumento da teacutecnica retoacuterica Enfim se aqueles que tecircm a verdade e a

justiccedila ao seu lado satildeo derrotados (tanto nos tribunais quanto nas assembleias) sua derrota

se atribui agrave sua proacutepria negligecircncia em relaccedilatildeo ao bom uso da arte retoacuterica (COPE 2006

22-23)

Conforme jaacute examinamos a retoacuterica constitui a contraparte da dialeacutetica pois ambas

se ocupam de questotildees mais ou menos ligadas ao conhecimento comum e natildeo se

relacionam a nenhuma ciecircncia especiacutefica Assim todas as pessoas participariam de

alguma forma de ambas as disciplinas porque todas elas procuram eventualmente

questionar e sustentar um argumento defender ou acusar (Ret 1354a 1-7) Mas apesar

de ser uma faculdade (δύναμις) neutra a dialeacutetica natildeo deve ser empregada

indiferentemente na defesa de teses opostas Pelo contraacuterio ela deve estar a serviccedilo da

verdade contra a sabedoria aparente dos sofistas que privilegiam a eriacutestica (ἐριστική) em

vez da dialeacutetica que fazem da arte do debate uma atividade que busca a vitoacuteria agraves custas

da verdade (Met 1004b 15-25) Todavia em adiccedilatildeo agrave habilidade intelectual a dialeacutetica

tambeacutem exige de seus praticantes uma disposiccedilatildeo eacutetica ndash o dialeacutetico tem de trazer consigo

a prontidatildeo de escolher o verdadeiro em detrimento do falso (Toacutep 163b 10-20)

Aleacutem disso como contribuiccedilatildeo para o saber filosoacutefico o poder de discernir e trazer diante dos olhos as consequecircncias de uma e outra de duas hipoacuteteses natildeo eacute um instrumento para se desprezar porque entatildeo soacute resta escolher acertadamente entre as duas Para uma tarefa desta espeacutecie requer-se uma certa habilidade natural aliaacutes a verdadeira habilidade natural consiste precisamente no poder de escolher o verdadeiro e rejeitar o falso Os homens que possuem essa habilidade satildeo capazes disso pois graccedilas a um instintivo agrado ou desagrado em face de tudo que se lhes propotildee eles escolhem corretamente o que eacute melhor

E tendo em vista que a arte retoacuterica eacute uma forma de argumentaccedilatildeo comparaacutevel agrave

dialeacutetica eacute manifesto que a probidade moral que caracteriza o dialeacutetico tambeacutem deve

estar presente na atividade do orador Dentre as aptidotildees que satildeo inerentes agrave atividade do

orador existe a capacidade de argumentar persuasivamente sobre coisas contraacuterias mas

ele nunca deve fazer uma e outra coisa porque o orador jamais deve persuadir as pessoas

a praticar o que eacute imoral Aliaacutes a capacidade de argumentar persuasivamente sobre coisas

contraacuterias eacute uacutetil para que natildeo escape ao orador o real estado da questatildeo e para que seja

possiacutevel refutar os argumentos daqueles que argumentam contra a justiccedila Isto posto o

Estagirita concebe uma utilizaccedilatildeo eticamente boa da arte retoacuterica por desejaacutevel e confia a

ela o poder de fortalecer a virtude dos cidadatildeos (Eacutet Nic 1179b 5-10) Outrossim conveacutem

enfatizar que para Aristoacuteteles seria um absurdo que a incapacidade de defesa fiacutesica fosse

vergonhosa e natildeo o fosse a incapacidade de defesa verbal tendo em vista que esta

caracteriza mais o homem do que o uso da forccedila fiacutesica (Ret 1355a 35-41 1355b 1-3)

Aleacutem disso eacute preciso ser capaz de argumentar persuasivamente sobre coisas contraacuterias como tambeacutem acontece nos silogismos natildeo para fazer uma e outra coisa ndash pois natildeo se deve persuadir o que eacute imoral ndash mas para que natildeo nos escape o real estado da questatildeo e para que sempre que algueacutem argumentar contra a justiccedila noacutes proacuteprios estejamos habilitados a refutar os seus argumentos [] Aleacutem disso seria absurdo que a incapacidade de defesa fiacutesica fosse desonrosa e natildeo o fosse a incapacidade de defesa verbal uma vez que esta eacute a mais proacutepria do homem do que o uso da forccedila fiacutesica

Aleacutem da disposiccedilatildeo eacutetica que indica que o orador jamais deve persuadir as pessoas

a praticar o que eacute imoral mas fortalecer a virtude da sua audiecircncia conveacutem levar em

consideraccedilatildeo o seu caraacuteter moral (ἦθος) em conexatildeo com as qualidades que o tornam

persuasivo sem a necessidade de argumentos racionais No que concerne ao ἦθος do

orador a persuasatildeo se efetiva quando o discurso eacute realizado de tal forma a tornar o orador

digno de creacutedito (Ibid 1356a 5-7) pois se orador parecer confiaacutevel o puacuteblico iraacute formar

o juiacutezo de que as proposiccedilotildees apresentadas satildeo igualmente confiaacuteveis Assim o puacuteblico

estaraacute inclinado a transferir para o conteuacutedo do discurso a credibilidade (ἀξιόπιστον)

pertencente ao caraacuteter do orador e isto ocorre amiuacutede nos assuntos em que natildeo eacute possiacutevel

obter nenhum conhecimento exato mas margem para duacutevidas (Ibid 1356a 7-10) Por

certo em decorrecircncia da moralidade que exibe para o seu auditoacuterio o orador adquire um

reservatoacuterio de argumentos e de respostas que veicula implicitamente As virtudes eacuteticas

a boa conduta e a confianccedila que o orador aparenta possuir conferem-lhe uma autoridade

em relaccedilatildeo aos assuntos que pronuncia principalmente sobre assuntos de difiacutecil soluccedilatildeo

Dessarte o ἦθος que constitui a eacutetica do orador sua moralidade se transforma num

princiacutepio de autoridade que em alguns contextos se torna um criteacuterio para elucidar uma

questatildeo controversa (MEYER 2007 34-36)

Aristoacuteteles menciona a tese do filoacutesofo Eudoxo acerca do bem a qual se tornou

persuasiva natildeo tanto pelos argumentos que veiculava mas pela virtude do seu caraacuteter

Eudoxo pensava que o prazer era o bem pelo fato de ver todos os seres tanto racionais

como irracionais tenderem para ele e porque em todas as coisas aquilo para que se dirige

a escolha eacute sempre o melhor de tudo O fato de tudo se movimentar numa mesma direccedilatildeo

parecia indicar a ele que o prazer constitui o melhor de tudo para todos os seres Sendo

assim seria o prazer o objetivo final que todos se esforccedilam por obter razatildeo pela qual ele

seria o bem supremo Aristoacuteteles enfatiza que essas concepccedilotildees filosoacuteficas tornaram-se

convincentes mais pela excelecircncia do caraacuteter de Eudoxo do que pelo teor de sua

argumentaccedilatildeo jaacute que Eudoxo era tido por algueacutem extraordinariamente temperado dando

a impressatildeo de falar natildeo enquanto amigo do prazer mas como as coisas se passam

verdadeiramente na realidade (Eacutet Nic 1173a 10-20)

No entanto isto natildeo significa que o ἦθος do orador por si soacute seja suficiente para

determinar a persuasatildeo pois eacute necessaacuterio que a confianccedila no discurso seja

fundamentalmente o resultado da argumentaccedilatildeo entimemaacutetica e natildeo de uma preacutevia

opiniatildeo acerca do caraacuteter do orador Escreve Aristoacuteteles sobre este assunto (Ret 1356a

5-15)

Persuade-se pelo caraacuteter quando o discurso eacute proferido de tal maneira que deixa a impressatildeo de o orador ser digno de feacute Pois acreditamos mais e bem mais depressa em pessoas honestas em todas as coisas em geral mas sobretudo nas que natildeo haacute conhecimento exato e que deixam margem para a duacutevida Eacute poreacutem necessaacuterio que esta confianccedila seja resultado do discurso e natildeo de uma opiniatildeo preacutevia sobre o caraacuteter do orador pois natildeo se deve considerar sem importacircncia para a persuasatildeo a probidade do que fala como aliaacutes alguns autores desta arte propotildeem mas quase se poderia dizer que o caraacuteter eacute o principal meio de persuasatildeo

Aleacutem do mais Aristoacuteteles assegura existir trecircs causas que tornam os oradores

persuasivos sem a necessidade de demonstraccedilotildees entimemaacuteticas E a fim de que o orador

conquiste a credibilidade de seu puacuteblico ele deve possuir a prudecircncia (φρόνησις) a

virtude (ἀρετὴ) e a benevolecircncia (εὔνοια) Quanto agrave φρόνησις deve o orador ser apto a

dar conselhos razoaacuteveis e pertinentes Quanto agrave ἀρετὴ ele nunca deve dissimular o que

pensa nem o que sabe E quanto agrave εὔνοια ele deve estar disposto a ajudar seu auditoacuterio

Aliaacutes o orador ainda deve refletir o caraacuteter moral que o seu puacuteblico espera mesmo que

natildeo o tenha de verdade pois seria moralmente censuraacutevel o fato de o orador simplesmente

parecer prudente virtuoso e benevolente sem realmente o ser e natildeo seria menos

censuraacutevel se possuiacutesse esses atributos morais sem aparentaacute-los publicamente (Ibid

1378a 9-22)

Trecircs satildeo as causas que tornam persuasivos os oradores e sua importacircncia eacute tal que por elas nos persuadimos sem necessidades de demonstraccedilotildees Satildeo elas a prudecircncia a virtude e a benevolecircncia Quando os oradores recorrem agrave mentira nas coisas que dizem ou sobre aquelas que datildeo conselhos fazem-no por todas estas causas ou por algumas delas Ou eacute por falta de prudecircncia que emitem opiniotildees erradas ou entatildeo embora dando uma opiniatildeo correta natildeo dizem o que

pensam por maldade ou sendo prudentes ou honestos natildeo satildeo benevolentes por isso eacute admissiacutevel que embora sabendo eles o que eacute melhor natildeo o aconselham Para aleacutem destas natildeo haacute nenhuma outra causa Forccediloso eacute pois que aquele que aparente possuir todas estas qualidades inspirem confianccedila nos que o ouvem

Note-se que o Soacutecrates do diaacutelogo Defesa de Soacutecrates manifesta as caracteriacutesticas

eacuteticas assinaladas por Aristoacuteteles ele propotildee comunicar o seu discurso em coerecircncia com

o que acredita ser verdadeiro ou seja sem dissimular o que pensa nem o que sabe sua

atitude consiste em ajudar seus ouvintes jaacute que procura encorajaacute-los a se tornarem

pessoas mais virtuosas e ao defender que os capitatildees da batalha das Arginusas deveriam

ser julgados individualmente demonstrou ser capaz de dar conselhos razoaacuteveis e

pertinentes como todos reconheceram depois Natildeo obstante Soacutecrates natildeo obteve ecircxito

no seu discurso judicial por uma seacuterie de razotildees que oportunamente seratildeo trazidas agrave baila

Na Poliacutetica Aristoacuteteles declara que por ser um animal social (πολιτικὸν ζῷον) o

homem eacute o uacutenico que possui o dom da fala (λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴων) o

qual natildeo deve ser identificado com os sons da voz com que satildeo agraciados tambeacutem os

animais Os sons emitidos pelos animais satildeo apenas a expressatildeo de sensaccedilotildees agradaacuteveis

ou desagradaacuteveis ao passo que ao homem a natureza concedeu a capacidade de expressar

por meio de sinais o sentimento do bem e do mal (ἀγαθοῦ καὶ κακοῦ) do conveniente e

do nocivo (συμφέρον καὶ τὸ βλαβερόν) do justo e do injusto (δικαίου καὶ ἀδίκου) objetos

para cuja expressatildeo foi concedido o instrumento da fala (Pol 1253a 7-18)

Agora eacute evidente que o homem muito mais que a abelha ou outro animal gregaacuterio eacute um animal social Como costumamos dizer a natureza nada faz sem um propoacutesito e o homem eacute o uacutenico entre os animais que tem o dom da fala Na verdade a simples voz pode indicar a dor e o prazer e outros animais a possuem (sua natureza foi desenvolvida somente ateacute o ponto de ter sensaccedilotildees do que eacute doloroso ou agradaacutevel e externaacute-las entre si) mas a fala tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo e portanto tambeacutem o justo e o injusto a caracteriacutestica especiacutefica do homem em comparaccedilatildeo com os animais eacute que somente ele tem o sentimento do bem e do mal do justo e do injusto e de outras qualidades morais e eacute a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a famiacutelia e a cidade

Outrossim o Estagirita assevera que o homem quando perfeito eacute o melhor dos

animais mas tambeacutem eacute o pior de todos quando afastado da lei e da justiccedila porquanto a

injusticcedila eacute mais perniciosa quando armada Deveras o homem foi dotado de armas para

serem bem usadas pela inteligecircncia e pelo talento mas tambeacutem podem ser utilizadas no

sentido contraacuterio (ὁ δὲ ἄνθρωπος ὅπλα ἔχων φύεται φρονήσει καὶ ἀρετῇ οἷς ἐπὶ τἀναντία

ἔστι χρῆσθαι μάλιστα) Agrave vista disso quando destituiacutedo de qualidades morais o homem

eacute o mais impiedoso e selvagem dos animais Por outro lado a justiccedila constitui a base da

sociedade de modo que sua aplicaccedilatildeo assegura a ordem na comunidade social por ser o

meio de determinar o que eacute justo (Ibid 1253a 49-57) A arma (ὅπλον) referida por

Aristoacuteteles a qual pode ser bem utilizada pela inteligecircncia e pelo talento natildeo eacute outra coisa

senatildeo a capacidade natural de falar (λόγος) em conexatildeo com os recursos persuasivos da

arte retoacuterica posto que a capacidade de discursar eacute mais proacutepria do gecircnero humano do

que o uso da forccedila fiacutesica Dessarte os recursos retoacutericos devem ser habilmente

empregados no discurso tendo em vista sua finalidade eacutetica porque se o orador se recusar

a empregaacute-los adequadamente a injusticcedila poderaacute prevalecer sobre a justiccedila pela ineficaacutecia

em persuadir os ouvintes

No iniacutecio da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles assegura que toda arte22 e todo processo

de investigaccedilatildeo assim como todo procedimento praacutetico e toda decisatildeo parecem dirigir-

se para algum bem (ἀγαθός) por isso o bem eacute concebido como aquilo por que tudo anseia

(Eacutet Nic 1094a 5) Ele continua assinalando uma diferenccedila entre os fins (τέλοι)

porquanto uns seriam atividades ao passo que outros seriam certos produtos que delas

resultam para aleacutem delas Entre os fins das accedilotildees humanas a serem levadas a cabo existe

aquele que eacute buscado em virtude de si proacuteprio os demais fins satildeo fins mas apenas por

causa do fim que eacute buscado por causa de si proacuteprio por isso esse fim natildeo eacute um bem

qualquer mas eacute o bem supremo (Ibid 1094a 15-20)

Se por conseguinte entre os fins das accedilotildees a serem levadas a cabo haacute um pelo qual ansiamos por causa de si proacuteprio e os outros fins satildeo fins mas apenas em vista desse se por outro lado nem tudo eacute escolhido em vista de qualquer outra coisa (porque desse modo prosseguir-se-ia ateacute ao infinito de tal sorte que tal intenccedilatildeo seria vazia e vatilde) eacute evidente entatildeo que esse fim seraacute o bem e na verdade o bem supremo

Na perspectiva de C D C Reeve o bem supremo eacute melhor do que qualquer outro

bem e por ser o melhor de todos implica que ele deve ser uma atividade terminal ou

seja sem nenhum fim adicional merecedor de escolha ou o fim adicional de uma atividade

22 A traduccedilatildeo da Eacutetica a Nicocircmaco utilizada neste trabalho eacute de Antoacutenio de Castro Caeiro o qual optou por traduzir a palavra ldquoτέχνηrdquo por ldquoperiacuteciardquo e natildeo por ldquoarterdquo mas visto que esta palavra eacute mais familiar e eacute utilizada por muitos tradutores do Corpus Aristotelicum optou-se pelo seu emprego em detrimento de ldquoperiacuteciardquo salvo em alguns casos em que se utiliza a palavra ldquoteacutecnicardquo

natildeo-terminal Mas se esse fim adicional fosse ele mesmo uma atividade natildeo-terminal ele

natildeo poderia ser o melhor jaacute que seu proacuteprio fim adicional seria melhor do que ele E se

uma atividade terminal eacute merecedota de escolha deve ser unicamente por causa dela

mesma porque ao contraacuterio de uma atividade natildeo-terminal ela natildeo eacute merecedora de

escolha por causa de um fim adicional Agrave vista disso o bem supremo constitui uma

atividade terminal que sendo o fim da ciecircncia maximamente arquitetocircnica da poliacutetica eacute

o aacutepice da hierarquia teacutelica (ou hierarquia entre os fins) uacutenica que inclui todos os outros

fins ou bens merecedores de escolha (REEVE 2014 265-269)

Para o Estagirita o bem supremo deve ser o objeto de estudo da mais

arquitetocircnica23 de todas as ciecircncias (μάλιστα ἀρχιτεκτονικῆς) a qual deve ser capaz de

projetar a partir de princiacutepios fundamentais Tal parece ser a ciecircncia poliacutetica pois eacute ela

mesma que determina quais satildeo as ciecircncias necessaacuterias aos Estados e quais satildeo aquelas

que cada classe de cidadatildeos deve aprender e ateacute que ponto (Ibid 1094a 25-1094b 1)

Com efeito as atividades que alcanccedilam o maior prestiacutegio na cidade como a estrateacutegia

militar a economia e a retoacuterica estatildeo subordinadas agrave ciecircncia poliacutetica (Ibid 1094b 1-5)

do mesmo modo como a arte de fazer lanccediladeiras estaacute subordinada agrave arte de tecer e a arte

de fundir o bronze estaacute subordinada agrave arte da escultura (Pol 1256a 5-7) Todavia a

ciecircncia poliacutetica faz uso natildeo apenas das demais ciecircncias que dizem respeito agrave accedilatildeo24 mas

tambeacutem legisla a respeito do que se deve fazer e que coisas eacute necessaacuterio evitar E tendo

em vista o bem humano a ciecircncia poliacutetica envolve os fins das restantes ciecircncias porque

o bem que cada indiviacuteduo adquire e conserva para si eacute suficiente para se dar a si proacuteprio

por satisfeito mas o bem que um povo e os Estados adquirem e conservam eacute mais nobre

e mais proacuteximo do que eacute divino Escreve Aristoacuteteles a este respeito (Ibid 1094b 5-10)

23 Para Aristoacuteteles uma ciecircncia eacute arquitetocircnica em relaccedilatildeo a uma outra quando os fins da segunda satildeo subordinados aos da primeira 24 A reflexatildeo contida na Eacutetica a Nicocircmaco pressupotildee a distinccedilatildeo exposta na Metafiacutesica (Met 1025b 20-30) entre as ciecircncias teoreacuteticas que satildeo formas de conhecimento puramente contemplativo as ciecircncias praacuteticas que satildeo formas de conhecimento do qual deriva uma accedilatildeo uacutetil e as ciecircncias produtivas que satildeo formas de conhecimento que buscam o saber em vista de produzir certos objetos Por dignidade as ciecircncias mais elevadas satildeo as primeiras compostas pela metafiacutesica fiacutesica e matemaacutetica E dentre estas a metafiacutesica (tambeacutem chamada de filosofia primeira ou teologia) eacute a mais sublime porque indaga as causas e os primeiros princiacutepios Pertencem agraves ciecircncias praacuteticas a poliacutetica a eacutetica e a retoacuterica Cada grupo se organiza em linhas hieraacuterquicas com uma ciecircncia arquitetocircnica que fornece o objetivo das ciecircncias subordinadas Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles assegura que a ciecircncia poliacutetica eacute a principal das ciecircncias praacuteticas por ser uma ciecircncia arquitetocircnica Todavia ele faz aparentemente um rebaixamento da filosofia contemplativa que por ser uma atividade essencialmente individual pareceria ocupar uma posiccedilatildeo inferior agrave ciecircncia poliacutetica que tem por objeto o bem comum No entanto a ciecircncia poliacutetica somente eacute arquitetocircnica em relaccedilatildeo agraves ciecircncias praacuteticas que estatildeo abaixo das ciecircncias teoreacuteticas Isto ocorre porque a ciecircncia poliacutetica jamais poderaacute ser uma ciecircncia exata que partiria de axiomas e princiacutepios como a matemaacutetica e a metafiacutesica pelo contraacuterio ela deve contentar-se em alcanccedilar o maacuteximo de exatidatildeo que sua mateacuteria permite

Porque mesmo que haja um uacutenico bem para cada indiviacuteduo em particular e para todos em geral num Estado parece que obter e conservar o bem pertencente a um Estado eacute obter e conservar um bem maior e mais completo O bem que cada um obteacutem e conserva para si eacute suficiente para se dar a si proacuteprio por satisfeito mas o bem que um povo e os Estados obteacutem e conservam eacute mais belo e mais proacuteximo do que eacute divino

Decerto para Aristoacuteteles o bem em consideraccedilatildeo natildeo pertence somente ao

indiviacuteduo mas eacute o bem de toda a cidade pois o singular faz parte dela por isso a ciecircncia

que dele se ocupa constitui a ciecircncia da cidade quer dizer a ciecircncia poliacutetica Esta tambeacutem

eacute chamada de ciecircncia arquitetocircnica em relaccedilatildeo a todas as outras artes ou ciecircncias praacuteticas

porque desempenha uma funccedilatildeo diretiva nas relaccedilotildees entre todas na medida em que se

ocupa do fim uacuteltimo

De acordo com a anaacutelise de C D C Reeve a arte retoacuterica tem por objetivo obter a

persuasatildeo a economia domeacutestica a obtenccedilatildeo de riquezas e as demais artes e ciecircncias

praacuteticas visam alcanccedilar os fins que a definem Todavia isto natildeo quer dizer que as artes e

as ciecircncias natildeo possam ser utilizadas para outros fins que natildeo os seus fins naturais soacute que

quando o satildeo elas estatildeo sendo controladas por alguma outra coisa que as utiliza para

propoacutesitos mais elevados E como as artes e ciecircncias tecircm essa caracteriacutestica elas satildeo

adequadas para inclusatildeo em hierarquias teacutelicas que estatildeo sob o domiacutenio da arte mais

arquitetocircnica da ciecircncia poliacutetica que prescreve e coordena todas as suas atividades com

o propoacutesito de promover a felicidade Dessarte a sabedoria ou ciecircncia praacutetica da qual a

ciecircncia poliacutetica eacute um ramo seria um ponto inicial natildeo soacute da ciecircncia praacutetica da eacutetica como

tambeacutem de todas as artes produtivas de modo que constroacutei-se casas confecciona-se

calccedilados acumula-se riquezas pratica-se a medicina e persuade-se auditoacuterios tendo em

vista alcanccedilar a felicidade que eacute o fim definidor da sabedoria praacutetica (REEVE 2014

127) Em virtude desta intenccedilatildeo a sabedoria praacutetica eacute tudo menos neutra nas relaccedilotildees

com a realidade humana pelo contraacuterio julga o valor desta uacuteltima examina o que nela eacute

bom e o que eacute mau a fim de aperfeiccediloaacute-la

Eacute manifesto que a arte retoacuterica enquanto disciplina subordinada agrave ciecircncia poliacutetica

que eacute arquitetocircnica em relaccedilatildeo agraves demais ciecircncias praacuteticas adquire a tarefa de auxiliar a

atividade poliacutetica no nobre fomento do bem comum o qual soacute eacute exequiacutevel pelo

fortalecimento das virtudes eacuteticas Sob a direccedilatildeo e o controle arquitetocircnicos da ciecircncia

poliacutetica a eacutetica a retoacuterica e demais artes e ciecircncias satildeo coordenados e harmonizados a

fim de melhor promover o bem humano que no domiacutenio da poliacutetica identifica-se com a

justiccedila (Pol 1283a 1-4)

Em todas as ciecircncias e artes o fim eacute um bem e o maior dos bens e bem no mais algo grau se acha principalmente na ciecircncia todo-poderosa esta ciecircncia eacute a poliacutetica e o bem em poliacutetica eacute a justiccedila ou seja o interesse comum

Com efeito a vida na melhor cidade eacute regulada cuidadosamente pela ciecircncia

poliacutetica pois o mundo social que o cidadatildeo herda deve ser projetado para desenvolver e

fortalecer as virtudes eacuteticas bem como proporcionar o ambiente ideal para o exerciacutecio

delas Todavia existem duas categorias de ouvintes para os quais mormente o discurso

eacutetico pode dirigir-se Os ouvintes da primeira categoria possuem disposiccedilotildees naturais para

a virtude ou simplesmente receberam uma boa educaccedilatildeo Para estes os discursos eacuteticos

podem ser uacuteteis visto que os ajudaratildeo a transformar suas virtudes naturais ou

transmitidas pelo haacutebito em virtudes racionais Os ouvintes pertencentes agrave segunda

categoria satildeo escravos de suas proacuteprias paixotildees por isso o discurso eacutetico para eles natildeo

teraacute nenhum proveito (Eacutet Nic 1095a 3-10)

Ora as aacutereas de saber em causa dependem dos sentidos fixados a partir da experiecircncia das situaccedilotildees da vida e satildeo estas mesmas situaccedilotildees da vida que em uacuteltima anaacutelise constituem o seu proacuteprio tema Para mais indo sempre atraacutes de suas paixotildees ouviraacute falar dessas mateacuterias em vatildeo e sem proveito porquanto o objetivo final dessa investigaccedilatildeo natildeo eacute constituir um saber teoacuterico mas agir E aqui natildeo haacute nenhuma diferenccedila se a juventude diz respeito agrave idade ou agrave natureza imatura do caraacuteter A deficiecircncia natildeo se constitui pelo tempo mas por se viver exposto agraves paixotildees e se deixar ir atraacutes de cada uma delas porque para pessoas desta natureza este saber natildeo tem qualquer proveito tal como natildeo o teraacute para os que natildeo tem domiacutenio de si Mas saber destas coisas traraacute uma grande vantagem para aqueles que fazem os seus desejos orientarem-se num determinado sentido e agem nessa conformidade

No entanto em relaccedilatildeo aos ouvintes que satildeo escravos de suas proacuteprias paixotildees em

relaccedilatildeo aos quais o discurso eacutetico natildeo possui nenhuma utilidade cabe agrave comunidade

poliacutetica atraveacutes de bons legisladores fomentar pela coaccedilatildeo de suas leis e pela coerccedilatildeo os

haacutebitos virtuosos Conveacutem sublinhar que a arte legisladora (νομοθετικέ) tambeacutem constitui

um importante ramo da ciecircncia poliacutetica cujo escopo eacute formular leis prescritivas para

promover a felicidade dos cidadatildeos inculcando neles as virtudes eacuteticas e dirigindo suas

accedilotildees Por isso aquele que pretende atraveacutes da sua preocupaccedilatildeo tornar melhores os

homens sejam muitos sejam poucos teraacute de tentar tornar-se um legislador competente

(Ibid 1180b 24-26)

Na visatildeo de Aristoacuteteles eacute funccedilatildeo da ciecircncia poliacutetica assegurar a virtude dos

cidadatildeos e por conseguinte sua felicidade porque eacute impossiacutevel que uma cidade seja feliz

se nela a honestidade estiver ausente Agrave vista disso Aristoacuteteles funda na atividade poliacutetica

a esperanccedila de transformar tanto os homens quanto a cidade Existe pois uma

interconexatildeo necessaacuteria da vida individual com a vida comunitaacuteria que implica na relaccedilatildeo

iacutentima entre eacutetica e poliacutetica E a conexatildeo eacute tatildeo estreita que o Estagirita eacute capaz de definir

a tarefa de um governo poliacutetico em termos exclusivamente eacuteticos pois o estadista ou o

poliacutetico (πολιτικός) precisa fundamentalmente realizar um certo caraacuteter moral em seus

cidadatildeos uma disposiccedilatildeo para a virtude e para a execuccedilatildeo de accedilotildees virtuosas Outrossim

o que as pessoas consideram accedilotildees virtuosas depende de haacutebitos que elas adquiriram no

processo de ser socializadas e educadas pois o que elas veem como geralmente justo eacute o

que a sua constituiccedilatildeo as educou para ver e fazer como tal E se posteriormente receberem

a educaccedilatildeo adicional apropriada e a constituiccedilatildeo em que viveram for adequada elas

aprenderatildeo que praticar a virtude promove a felicidade daqueles que o fazem bem como

de todos os outros cidadatildeos da comunidade poliacutetica No entanto para que isto ocorra o

πολιτικός deve ser capaz de persuasatildeo retoacuterica de outro modo ele natildeo conseguiraacute avanccedilar

em seus projetos eacutetico-poliacuteticos Aliaacutes ateacute mesmo os tiranos natildeo podem prescindir da

persuasatildeo e governar somente com base na coerccedilatildeo e na forccedila Mas se porventura o

πολιτικός carece do conhecimento ou dos dons da retoacuterica ele pode recorrer agrave cooperaccedilatildeo

de um orador (profissional) Este por conseguinte deve estar ao seu lado pronto para

atuar como seu porta-voz (RORTY 1997 23-25)

Decerto o primeiro princiacutepio da eacutetica aristoteacutelica eacute o de que ela se dirige agrave

consecuccedilatildeo da felicidade para o indiviacuteduo a qual consiste grosso modo na atividade da

alma de acordo com a virtude (Eacutet Nic 1098a 15-19) No entanto esta noccedilatildeo natildeo diz

respeito a um ideal inteiramente individualista porque o ser humano eacute um animal ciacutevico

mais social do que as proacuteprias abelhas Existe portanto uma iacutentima conexatildeo entre a vida

individual e a vida coletiva que se consubstancia na conexatildeo iacutentima entre eacutetica e poliacutetica

O homem com efeito eacute o uacutenico animal que possui o dom da palavra cujo uso

somente eacute liacutecito em concordacircncia com as virtudes eacuteticas E uma vez que eacute vergonhosa a

incapacidade de defesa verbal os homens poliacuteticos devem desenvolver a capacidade de

falar persuasivamente no mais elevado grau Todavia a obtenccedilatildeo dessa capacidade soacute eacute

possiacutevel atraveacutes de uma τέχνη que estuda e ensina de maneira sistemaacutetica o que eacute

adequado a cada caso com a finalidade de persuadir qual seja a arte retoacuterica Isto posto

se as atividades que alcanccedilam o maior prestiacutegio na cidade estatildeo submetidas agrave ciecircncia

poliacutetica cuja finalidade eacute o bem humano entatildeo a arte retoacuterica a qual se cobre com a figura

da poliacutetica (Ret 1356a 34-35) se transfigura num poderoso instrumento para promover

o bem da comunidade poliacutetica pois conforme verificamos sua funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica

consiste em trazer a verdade agrave luz detectar e expor os sofismas e combater a perversatildeo

da verdade e da justiccedila

Pode-se asseverar entatildeo que Aristoacuteteles compromete o discurso retoacuterico em

perspectiva praacutetica ao fim uacuteltimo do ser humano qual seja a felicidade (εὐδαιμονία) E

com base nesse comprometimento a arte retoacuterica pertenceria instrumentalmente agrave eacutetica e

agrave ciecircncia poliacutetica A retoacuterica eacute um tipo de ciecircncia auxiliar da eacutetica e da poliacutetica porque

ela natildeo visa simplesmente a persuasatildeo (atividade natildeo-terminal) mas contribuir para o

bem agir tanto na vida privada quanto na vida puacuteblica (atividade terminal) ou seja ela

visa a εὐπραξία que eacute o equivalente agrave felicidade e o mesmo que o bem viver em geral

(Eacutet Nic 1140b 10-11)

32 A ineficaacutecia persuasiva do discurso judicial de Soacutecrates

Observamos que pela divisatildeo do discurso em partes (τάξις) cujo escopo eacute

possibilitar a demonstraccedilatildeo entimemaacutetica o orador faz o auditoacuterio encaminhar-se pelas

vias e pelas etapas que escolheu guiando-o para o objetivo proposto na exposiccedilatildeo

(πρόθεσις) No que se refere ao proecircmio (προοίμιον) o Estagirita estabelece que eacute o

comeccedilo do discurso e serve como preparaccedilatildeo do caminho que se segue depois e sua

funccedilatildeo essencial consiste em tornar o auditoacuterio benevolente doacutecil e atencioso pois tanto

mais interesse existiraacute pelo discurso quanto mais for relevante causar surpresas despertar

admiraccedilatildeo e for agradaacutevel25 Sendo assim atraveacutes do proecircmio o orador deve conquistar a

boa disposiccedilatildeo do auditoacuterio ele pode ateacute suscitar a sua ira mas contra os adversaacuterios e

25 Marco Faacutebio Quintiliano enfatiza que a funccedilatildeo essencial do προοίμιον ndash tornar o auditoacuterio benevolente doacutecil e atencioso ndash tambeacutem precisa ser levada em consideraccedilatildeo nas demais partes do discurso mas principalmente no princiacutepio porque ela propicia a entrada no acircnimo dos juiacutezes sem a qual natildeo eacute possiacutevel avanccedilar passo algum para adiante (Inst orat II I)

nunca contra si e pode tornaacute-lo ora atento ora descontraiacutedo Escreve Aristoacuteteles sobre

este assunto (Ret 1415a 44-50 1015b 1-3)

Os elementos que se relacionam com o auditoacuterio consistem em obter a sua benevolecircncia suscitar a sua coacutelera e por vezes atrair a sua atenccedilatildeo ou o contraacuterio Na realidade nem sempre eacute conveniente pocircr o auditoacuterio atento razatildeo pela qual muitos oradores tentam levaacute-lo a rir Todos estes recursos se se quiser levam a uma boa compreensatildeo e a apresentar o orador como um homem respeitaacutevel pois a este os auditores prestam mais atenccedilatildeo Satildeo tambeacutem mais atentos a temas importantes a coisas que lhes digam respeito agraves que os encham de espanto agraves agradaacuteveis

O proecircmio cumpre tambeacutem a funccedilatildeo de ornamentar o discurso o que daacute a impressatildeo

de que o mesmo natildeo foi preparado agraves pressas (Ibid 1415b 54-56) E no que tange agrave

maneira pela qual o orador poderaacute obter a benevolecircncia dos ouvintes dispondo-os

afetivamente para aderirem agraves teses a serem veiculadas Aristoacuteteles estabelece alguns

princiacutepios jamais refutar os seus erros fazer gracejos sempre que possiacutevel elogiar suas

boas qualidades natildeo repreender suas faltas e imperfeiccedilotildees interessar-se por seus

interesses consideraacute-los honestos e demonstrar alegria por sua companhia entre outras

coisas Enfim cabe ao orador nessa parte crucial do discurso agir com uma certa dose de

bajulaccedilatildeo26 (Ibid 1381a 12-16 1381b 17-20)

26 Embora Aristoacuteteles sustente que o orador (ῥήτωρ) necessita comportar-se diante do seu auditoacuterio com uma certa dose de bajulaccedilatildeo (κολακεία) sua atitude natildeo deve confundir-se com a de um demagogo (δημαγωγός) Em sua visatildeo ambos procuram produzir pelo discurso certas disposiccedilotildees nos ouvintes em vista de persuadi-los mas enquanto o ῥήτωρ visa o bem comum o δημαγωγός aspira somente a popularidade e o domiacutenio sobre as massas Longe de opor-se aos haacutebitos dos ouvintes o δημαγωγός os reproduz e os lisonjeia porque eacute um verdadeiro adulador do povo (Pol 1305a 1-29) Ele tambeacutem se apoia na tipologia dos caracteres dos ouvintes e no apelo agraves emoccedilotildees natildeo para aconselhar seu auditoacuterio sobre o que eacute mais uacutetil ou conveniente para a cidade mas simplesmente para se fazer aplaudir Ele ainda tenciona manipular a opiniatildeo do auditoacuterio mas soacute o faz tornando-se um haacutebil adulador pronto para lhe comunicar tudo aquilo que tem o desejo de ouvir E tal atitude culmina amiuacutede no domiacutenio tiracircnico sobre o auditoacuterio jaacute que o δημαγωγός torna-se soberano sobre a opiniatildeo das massas (Ibid 1292a 21-34) Aliaacutes para Norberto Bobbio eacute com Aristoacuteteles que o termo ldquodemagogordquo adquire um significado negativo cuja praacutexis ele descreve nos seguintes termos (BOBBIO 2008 318) ldquoAssim era chamado demagogo na Antiga Greacutecia aquele que sendo homem de Estado ou haacutebil orador sabia conduzir o povo Eacute com Aristoacuteteles que o termo adquire um significado negativo em teoria poliacutetica [] Um tipo de accedilatildeo eacute o utilizado por algueacutem que explorando particulares situaccedilotildees histoacuterico-poliacuteticas dirigindo-se para os seus proacuteprios fins incita e guia as massas populares subjugando-as graccedilas a particulares capacidades oratoacuterias e psicoloacutegicas frequumlentemente instintivas que lhe permitem interpretar os humores e as exigecircncias mais imediatas juntando a estas qualidades dotes carismaacuteticos incomuns [] Quando poreacutem nos governos populares a lei estaacute subordinada ao arbiacutetrio de muitos surgem os demagogos que abrandando e adulando as massas exasperando seus sentimentos destruidores distraindo-as do seu compromisso poliacutetico [] Conseguem assim consolidar o proacuteprio poder com a eliminaccedilatildeo de toda e qualquer oposiccedilatildeo Aristoacuteteles define portanto o demagogo como um lsquoadulador do povorsquordquo

Entretanto conforme jaacute examinado no seu discurso judicial Soacutecrates natildeo se

importou minimamente com as orientaccedilotildees em apreccedilo nem no proecircmio onde estas

deveriam ser observadas com mais proeminecircncia tampouco no desenvolvimento de sua

defesa pois ele se propotildee a falar a verdade de maneira espontacircnea sem uma preparaccedilatildeo

preacutevia mesmo arriscando-se a natildeo agradar os ouvintes No proecircmio de sua defesa ele

ignora o estratagema retoacuterico de agradar os ouvintes pelo elogio de suas boas qualidades

evitando ao maacuteximo repreender suas faltas Em vez de apresentar um discurso

ornamentado e agradaacutevel com a finalidade de obter a benevolecircncia dos ouvintes Soacutecrates

atrai para si a ira desses pois exorta-os a cuidar de suas almas mesmo correndo o risco

de ser derrotado no tribunal Com efeito no seu discurso ele age como um orador jaacute que

procura influenciar os seus ouvintes mas em vez de agradar e tentar obter a aprovaccedilatildeo

deles ele procura explicitamente exortaacute-los a serem virtuosos Dessarte o principal

objetivo do seu discurso natildeo consistiu em persuadir seus ouvintes mas sim em encorajaacute-

los agrave praacutetica das virtudes

Soacutecrates tambeacutem se recusa a apelar para o sentimento de piedade de seus ouvintes

seja suplicando o perdatildeo com copiosas laacutegrimas seja se aproveitando dos seus amigos

para livrar-se das acusaccedilotildees seja por algum outro estratagema retoacuterico Isso porque como

jaacute visto ele rejeita a ideia de desonrar a si mesmo usando-se de ldquomeios injustosrdquo para

vencer o julgamento e reteacutem como princiacutepio apenas o convencimento dos jurados a partir

somente da exposiccedilatildeo da verdade E apesar de correr grande perigo Soacutecrates diz que natildeo

faraacute o que muitos oradores fazem como trazer os filhos para exibi-los diante do tribunal

com o intuito de lograr a absolviccedilatildeo por meio da clemecircncia Para ele apelos emocionais

dessa natureza seriam incompatiacuteveis com sua reputaccedilatildeo e com o seu modo de vida (Def

Soacutec 34c-34d)

Algum de voacutes talvez se indigne com a recordaccedilatildeo do seu caso se ele proacuteprio agraves voltas com uma lide embora menos grave que esta teve de pedir de suplicar aos juiacutezes com laacutegrimas copiosas de trazer para melhor movecirc-los agrave piedade os filhos outros parentes muitos amigos ao passo que eu ndash natildeo eacute ndash natildeo vou fazer nada disso apesar de estar correndo como posso imaginar o extremo perigo [] portanto Atenienses tenho parentes e filhos estes satildeo trecircs um jaacute taludo e dois pequeninos Natildeo obstante natildeo trouxe nenhum deles aqui com o fito de vos pedir absolviccedilatildeo [] mas em face da honra minha vossa e de toda a cidade eu considero uma noacutedoa aquele procedimento na minha idade e com a reputaccedilatildeo adquirida [] Evidentemente se com a forccedila da persuasatildeo de minhas suacuteplicas vos levasse ao perjuacuterio eu vos estaria levando a natildeo crer nos deuses e com tal defesa simplesmente me estaria acusando de natildeo crer em deuses

Em sua versatildeo sobre o discurso de defesa de Soacutecrates Xenofonte enfatiza a

preocupaccedilatildeo de Soacutecrates em sustentar que jamais fora iacutempio para com os deuses nem

injusto para com os homens mas que longe de pensar rebaixar-se com suacuteplicas de piedade

a fim de escapar da condenaccedilatildeo agrave morte pelo contraacuterio desde logo se persuadira haver

chegado a hora de morrer (Apol Soacutec 2 22) Cocircnscio de que poderia apelar para as

emoccedilotildees dos juiacutezes com o intuito de obter a absolviccedilatildeo Soacutecrates prefere poreacutem natildeo

depreciar a si mesmo como procediam em sua opiniatildeo a maioria dos oradores judiciais

do seu tempo Eacute manifesto portanto que tanto o Soacutecrates de Platatildeo quanto o de

Xenofonte reputa como indigna e imoral a ecircnfase dada ao aspecto afetivo da arte retoacuterica

praticada por todos os oradores do seu tempo que visa influenciar a opiniatildeo dos ouvintes

pela emotividade

Aristoacuteteles por seu turno apresenta aos que pretendem ser bons oradores a maneira

que considera eficaz para estimular nos ouvintes o sentimento de piedade (ἔλεος) No

capiacutetulo 8 do segundo livro da Retoacuterica ele defende o uso desse expediente com base na

ponderaccedilatildeo de que o orador deve transformar a emoccedilatildeo experimentada num recurso uacutetil

para induzir os juiacutezos dos ouvintes em direccedilatildeo agravequilo que eacute eticamente conveniente Desse

modo se a finalidade da arte retoacuterica eacute obter um julgamento favoraacutevel para a causa que

defende e se as emoccedilotildees constituem o agente da mudanccedila dos juiacutezos dos seres humanos

entatildeo a arte retoacuterica em conformidade com sua funccedilatildeo de fazer a justiccedila e a verdade

prevalecer sobre seus contraacuterios deve apelar para o sentimento de piedade dos ouvintes

E a maneira pela qual o orador seraacute capaz de suscitar o sentimento de piedade nos seus

ouvintes consiste basicamente no conhecimento da definiccedilatildeo de piedade dos padrotildees de

estiacutemulos que acompanham essa emoccedilatildeo e na capacidade de mobilizar essas noccedilotildees nos

discursos

Segundo ele a piedade eacute definida como sendo o sentimento de pesar em face de um

mal destrutivo e penoso que acomete algueacutem que natildeo merece e esse sentimento eacute gerado

em algueacutem a partir do juiacutezo que este faz de que qualquer indiviacuteduo ele inclusive ou

algum de seus entes queridos estaacute sujeito a sofrer o mesmo mal Eacute a capacidade

psicoloacutegica para sentir o sofrimento de outra pessoa caso estivesse na mesma situaccedilatildeo

penosa vivenciada por ela Ademais o sentimento de piedade eacute mais facilmente suscitado

no indiviacuteduo quando os males que satildeo temidos atingem pessoas que estatildeo proacuteximas (Ret

1385b 17-29)

Falaremos agora do tipo de coisas que satildeo dignas de piedade quem tem piedade e em que disposiccedilotildees experimentamos esse sentimento Vamos admitir que a ldquopiedaderdquo consista numa certa pena causada pela apariccedilatildeo de um mal destruidor e aflitivo afetando quem natildeo merece ser afetado podendo tambeacutem fazer sofrer a noacutes ou a algum dos nossos principalmente quando esse mal nos ameaccedila de perto Eacute evidente que por forccedila das circunstacircncias aquele que estaacute a ponto de sentir piedade se encontra numa situaccedilatildeo de tal ordem que haacute de pensar que ele proacuteprio ou algueacutem da sua proximidade acabaraacute por sofrer algum mal idecircntico ou muito semelhante ao que referimos na nossa definiccedilatildeo

Os indiviacuteduos tambeacutem sentem piedade em relaccedilatildeo agravequeles que tecircm pais filhos ou

esposas por serem os pais filhos e esposas em certa medida partes da proacutepria pessoa e

estarem desse modo sujeitos a diversos males (Ibid 1385b 41-43) e sentem piedade

ainda em relaccedilatildeo agravequeles em que identificam qualquer relaccedilatildeo de semelhanccedila como a

idade o caraacuteter as qualidades a dignidade o nascimento entre outras relaccedilotildees de

semelhanccedila factiacuteveis (Ibid 1386a 34-37) Assim delimitados aqueles por quem se sente

em geral piedade Aristoacuteteles passa a buscar que eventos suscitam essa emoccedilatildeo e conclui

serem aqueles que ocasionam dor ou pena tais como diferentes tipos de morte violecircncias

doenccedilas agressotildees e coisas semelhantes (Ibid 1386a 4-8) Aristoacuteteles arremata

considerando que a piedade se intensifica quando se percebe que a viacutetima da circunstacircncia

penosa ou dolorosa eacute uma pessoa honrada a qual sofre o mal imerecidamente (Ibid

1386b 7-10)

Aristoacuteteles passa entatildeo a tratar dos dispositivos por meio dos quais o orador pode

reforccedilar o apelo emocional agrave piedade ressaltando o poder dos gestos da voz e da

indumentaacuteria Ele observa que ao expor diante dos olhos dos ouvintes o mal faz com

que este pareccedila mais proacuteximo E para comover mais vivamente a assistecircncia ele sugere

a seguinte estrateacutegia retoacuterica exibir para os ouvintes algum objeto passiacutevel de suscitar o

sentimento de piedade como por exemplo as roupas dos que sofreram grande calamidade

(Ibid 1386a 44-47) Em sintonia com essa tese aristoteacutelica Chaiumlm Perelman sublinha o

fato de que o orador ao selecionar certos elementos e apresentaacute-los ao auditoacuterio jaacute implica

a importacircncia e a pertinecircncia deles no discurso Isto ocorre porque semelhante escolha

confere a esses elementos uma presenccedila A presenccedila de um objeto qualquer tem o condatildeo

de despertar a imaginaccedilatildeo e sensibilidade dos ouvintes e constitui assim um fenocircmeno

psicoloacutegico essencial na argumentaccedilatildeo Para Perelman certos mestres de retoacuterica

incluindo Aristoacuteteles preconizam para emocionar o auditoacuterio o recurso a objetos

concretos como a tuacutenica ensanguentada de Ceacutesar que Antocircnio brandiu perante os

romanos como os filhos do reacuteu que satildeo levados perante os juiacutezes para suscitar-lhes o

sentimento de piedade e coisas deste jaez (PERELMAN 2014 132-133) Pode-se

concluir que mesmo esse estratagema retoacuterico eacute rejeitado por Soacutecrates que em prejuiacutezo

de sua proacutepria defesa recusa-se a exibir seus filhos com abundantes laacutegrimas trazer

parentes ou muitos amigos diante do tribunal ateniense como um expediente para tentar

obter a absolviccedilatildeo por meio da piedade da audiecircncia

De acordo com Aristoacuteteles as emoccedilotildees satildeo aquilo que ao provocar uma alteraccedilatildeo

nos seres humanos fazem com que eles divirjam em seus juiacutezos na medida em que elas

comportam dor e prazer (Ret 1378a 29-31) Agrave vista disso conveacutem considerar que o

conteuacutedo do discurso por si soacute eacute incapaz de fomentar a persuasatildeo porque no discurso

retoacuterico natildeo basta observar abstratas regras loacutegicas e racionais mas eacute preciso envolver

tambeacutem as emoccedilotildees dos ouvintes porquanto se estes natildeo estiverem afetivamente

dispostos a aderir a uma determinada tese os argumentos e fatos considerados

isoladamente natildeo influenciam na tomada de decisatildeo Dessarte para existir a persuasatildeo eacute

imprescindiacutevel emocionar dispor as emoccedilotildees da assistecircncia de modo a aceitar o que

intenta transmitir o orador pelo seu discurso porque o meacuterito do orador natildeo reside

somente na sua capacidade de oferecer razotildees mas tambeacutem em emocionar e mover os

ouvintes para onde ele o deseja Escreve Aristoacuteteles sobre este assunto (Ibid 1377b 27-

37)

Uma vez que a retoacuterica tem por objetivo formar um juiacutezo (porque tambeacutem se julgam as deliberaccedilotildees e a accedilatildeo judicial eacute um juiacutezo) eacute necessaacuterio procurar natildeo soacute que o discurso seja demonstrativo e digno de creacutedito mas tambeacutem que o orador mostre possuir certas disposiccedilotildees e prepare favoravelmente o juiz Muito conta para a persuasatildeo sobretudo nas deliberaccedilotildees e naturalmente nos processos judiciais a forma como o orador se apresenta e como daacute a entender as suas disposiccedilotildees aos ouvintes fazendo com que da parte destes tambeacutem haja um determinado estado de espiacuterito em relaccedilatildeo ao orador

Outrossim na visatildeo de Aristoacuteteles os fatos natildeo se apresentam sob o mesmo ponto

de vista a quem ama e a quem odeia nem satildeo iguais para o homem que estaacute irado ou para

o calmo ou satildeo completamente diferentes ou diferem segundo criteacuterios de grandeza

Assim quem ama acha que o juiacutezo que deve emitir sobre quem eacute julgado eacute de inocecircncia

ou de pouca culpabilidade e quem odeia acha justamente o contraacuterio (Ibid 1377b 40-

44) Isto posto a interpretaccedilatildeo dos fatos e por conseguinte a tomada de decisatildeo depende

amiuacutede da maneira como o orador predispotildee emocionalmente os ouvintes porque se estes

estiverem ligados afetivamente ao orador seja por um sentimento de piedade ou mesmo

de amizade ainda que este tenha cometido um crime pode vir a ser inocentado O oposto

tambeacutem eacute verdadeiro e a este respeito a condenaccedilatildeo de Soacutecrates parece ser paradigmaacutetica

pois ainda que as declaraccedilotildees feitas pelo filoacutesofo fossem verdadeiras as mesmas foram

recebidas de maneira desfavoraacutevel em virtude do sentimento de hostilidade que o proacuteprio

Soacutecrates suscitou nos juiacutezes A este respeito Xenofonte declara que em sua defesa

Soacutecrates falando de si mesmo com tamanha sobranceria perante o tribunal aticcedilou o ciuacuteme

e conticcedilou a disposiccedilatildeo dos juiacutezes natildeo para absolvecirc-lo mas para condenaacute-lo (Apol Soacutec

IV 32 )

Observamos na Defesa de Soacutecrates que a linguagem retoacuterica de Soacutecrates eacute a mesma

que ele utiliza nas praccedilas puacuteblicas nos comeacutercios ou em qualquer outro local por isso

natildeo estaria em descontinuidade de vocabulaacuterio e de forma de construccedilatildeo com a linguagem

que se emprega cotidianamente Nesse sentido a visatildeo de Aristoacuteteles sobre a maneira

como se deve pronunciar um discurso contrasta terminantemente com o estilo

extemporacircneo praticado por Soacutecrates

Em sua anaacutelise da expressatildeo enunciativa (λέξις) desenvolvida por Aristoacuteteles no

terceiro livro da Retoacuterica (2-12) Maria F S Francisco destaca esse aspecto ao sustentar

que embora a semelhanccedila de objeto entre o discurso retoacuterico e o ordinaacuterio determine uma

proximidade estiliacutestica fundamental entre eles em termos da escolha de palavras a

expressatildeo retoacuterica distingue-se da linguagem comum Haja vista que a fala do orador

precisa desempenhar funccedilotildees proacuteprias ausentes da linguagem comum deve igualmente

lanccedilar matildeo de recursos estiliacutesticos proacuteprios A despeito da expectativa do puacuteblico por um

discurso espontacircneo que manifeste o sincero e imediato modo de pensar do orador este

perderia toda possibilidade de ser persuasivo caso se limitasse a falar espontaneamente

Desse modo o resultado de uma fala natural como o faria algueacutem que natildeo deteacutem

conhecimento da teacutecnica retoacuterica (que parece ser o caso de Soacutecrates) seria a ausecircncia de

forccedila expressiva e por conseguinte de comunicaccedilatildeo com o puacuteblico Deveras a funccedilatildeo

proacutepria da expressatildeo enunciativa consiste em trabalhar sobre o conteuacutedo de modo a

comunicar ao puacuteblico aquilo que por si mesmo poderia natildeo ser observado Todavia a

linguagem ordinaacuteria precisamente por ser demasiado familiar pouco pode atender agraves

necessidades especiacuteficas do falar a um puacuteblico determinado como o da assembleia e do

tribunal Assim em face de uma audiecircncia inculta numerosa e dotada de variadas

dificuldades (como a compreensatildeo a fixaccedilatildeo da atenccedilatildeo e o discernimento auditivo e

visual) uma fala natildeo-teacutecnica estaria pouco munida para chegar a comunicar algo e

persuadir E a fim de solucionar esse tipo de dificuldade Aristoacuteteles acrescenta a segunda

exigecircncia a ser satisfeita pela λέξις a desfamiliarizaccedilatildeo ou a exploraccedilatildeo do estranho no

plano do discurso O afastamento em relaccedilatildeo agraves formulaccedilotildees da linguagem ordinaacuteria o

rompimento da expectativa do ouvinte e o efeito surpresa meios pelos quais se produz a

desfamiliarizaccedilatildeo ou o estranhamento conferem ao discurso retoacuterico o poder de se

comunicar com seu puacuteblico proacuteprio na medida em que tornam o que se diz expressivo e

capaz de captar sua atenccedilatildeo Esta captaccedilatildeo eacute o resultado da produccedilatildeo de uma certa espeacutecie

de prazer decorrente do inesperado jaacute que o diferente o que foge ao ordinaacuterio tende a

suscitar prazer Aliaacutes o prazer eacute uma das dimensotildees mais importantes da expressatildeo

enunciativa e sempre com a funccedilatildeo de resolver as dificuldades de acompanhamento do

discurso por parte do puacuteblico Isto posto o ouvinte deve ter a impressatildeo de um discurso

algo mais grave e solene que o discurso ordinaacuterio o que ocasionaria os efeitos da

desfamiliarizaccedilatildeo a expressividade a atenccedilatildeo e o prazer (FRANCISCO 1999 30-31)

Com efeito segundo os paracircmetros do meacutetodo retoacuterico desenvolvido pelo

Estagirita Soacutecrates poderia ser considerado um orador judicial justo e veraz mas ao

mesmo tempo ineficiente porque em sua defesa em vez de agradar os seus jurados faz

justamente o oposto ao declarar que satildeo convencidos facilmente de inverdades (Def Soacutec

18b) que acreditam serem mais saacutebios do que realmente satildeo (Ibid 21d-23a) que

merecem reprimendas e questionamentos (Ibid 29e-30a 30e) que natildeo satildeo facilmente

convencidos da verdade (Ibid 38a-b) que natildeo agradaraacute ou obedeceraacute aos jurados mas

somente ao deus de Delfos (Ibid 29d) ele insinua que os jurados natildeo satildeo moralmente

idocircneos ao afirmar que um homem bom natildeo sobreviveraacute por muito tempo na cidade (Ibid

32e) ele ainda assevera que continuaria com as mesmas accedilotildees mesmo que tivesse de

enfrentar a morte muitas vezes (Ibid 30b-c) finalmente ele foge agrave regra ao propor como

sua contrapenalidade refeiccedilotildees gratuitas no Pritaneu como conveacutem a um heroacutei (Ibid

36c-d) ao inveacutes de pleitear o exiacutelio ou multas como era comum acontecer Depois disso

o juacuteri vota pela condenaccedilatildeo e o discurso de Soacutecrates apoacutes a votaccedilatildeo os exaspera tanto

que mesmo alguns dos que votaram pela absolviccedilatildeo se retratam e votam pela execuccedilatildeo

Apesar de utilizar uma linguagem cotidiana espontacircnea em coerecircncia com o que

se acredita ser verdadeiro Soacutecrates foi ineficiente para persuadir jaacute que natildeo estava

interessado na teacutecnica retoacuterica nem agradar os seus ouvintes tampouco apelar para as

emoccedilotildees mas restringia-se a tentar instruiacute-los sobre os valores da sabedoria e das virtudes

(Ibid 36c) Em nenhum momento do seu discurso Soacutecrates procura lisonjear os jurados

pelo contraacuterio de propoacutesito os irrita com o intuito de despertaacute-los para a importacircncia de

se preocupar com a virtude e o conhecimento em prejuiacutezo de outros assuntos Desse

modo o principal objetivo de Soacutecrates ao expor o seu discurso consiste em encorajar os

jurados a se tornarem melhores cidadatildeos e natildeo tem interesse em obter exclusivamente um

veredicto de inocecircncia Isto natildeo significa que ele natildeo desejasse vencer o caso mas a

vitoacuteria no tribunal natildeo constituiacutea o objetivo principal

Eacute manifesto que Soacutecrates estava disposto a fazer algum esforccedilo para persuadir os

juiacutezes No seu discurso de defesa principal ele apresenta a versatildeo popularmente mais

persuasiva de sua vida como missatildeo divina Ele natildeo se limita apenas a desenvolver

argumentos para mostrar que seu modo de vida eacute na verdade o sumo bem humano Ele

tambeacutem afirma de modo categoacuterico agravequeles que o condenaram agrave morte que poderia ter

forjado argumentos que o absolvessem Isto posto o que causou a condenaccedilatildeo do referido

filoacutesofo natildeo foi o fato de estar em falta com discursos mas sua relutacircncia em dizer e fazer

tudo aquilo que concebia ser vergonhoso no tipo de retoacuterica praticada no seu tempo bem

como sua convicccedilatildeo de que natildeo se pode usar qualquer artimanha para evitar a morte seja

no campo de batalha ou no tribunal de modo que ele possuiacutea a capacidade retoacuterica para

persuadir sua audiecircncia mas escolheu natildeo usaacute-la

Aristoacuteteles a este respeito adota uma perspectiva diametralmente contraacuteria agrave de

Soacutecrates pois ao contraacuterio deste considera que a vitoacuteria no contexto de uma disputa

juriacutedica natildeo pode ter um caraacuteter secundaacuterio porque seria absurdo que a incapacidade de

defesa fiacutesica fosse desonrosa e natildeo o fosse a incapacidade de defesa verbal haja vista

que esta caracteriza mais o homem do que a forccedila fiacutesica Dessarte o orador precisa

empregar todos os recursos retoacutericos disponiacuteveis para atingir os seus objetivos incluindo

o apelo agraves emoccedilotildees dos ouvintes Natildeo obstante Aristoacuteteles natildeo estaacute fazendo qualquer

concessatildeo aos sofistas para os quais eacute possiacutevel em relaccedilatildeo ao mesmo assunto defender

sem quaisquer escruacutepulos o proacute e o contra Pelo contraacuterio eacute justamente para que a justiccedila

e a verdade prevaleccedilam na cidade que se faz necessaacuterio empregar todos os recursos de

que dispotildee o orador para persuadir os seus ouvintes posto que o instrumento da fala

concedido aos homens pela natureza somente eacute liacutecito em conexatildeo com a virtude E se os

maus oradores acabam prevalecendo sobre os bons eacute porque estes natildeo conseguiram

aproveitar-se adequadamente do poderoso instrumento da arte retoacuterica de modo que sua

derrota se atribui agrave sua proacutepria negligecircncia em relaccedilatildeo ao bom uso desta arte

Em siacutentese como consequecircncia da escolha de falar a verdade sem ornamento isto

eacute depurando o discurso das estrateacutegias retoacutericas empregadas por seus contemporacircneos

Soacutecrates natildeo obteve ecircxito algum em persuadir a sua audiecircncia sendo por isso condenado

agrave morte Em vez de agradar e procurar obter a aprovaccedilatildeo dos ouvintes apelando para os

seus sentimentos o que era muito comum e ateacute apropriado nos tribunais Soacutecrates

subordina o discurso somente agrave verdade dos fatos em consonacircncia com a vontade do deus

de Delfos e natildeo hesita em ofender sua audiecircncia Enfim ele natildeo se importou com os

resultados do seu discurso mas unicamente com a veracidade de seu conteuacutedo e esta

atitude ocasionou inevitavelmente a sua condenaccedilatildeo

4 A concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo no diaacutelogo Fedro

41 A retoacuterica filosoacutefica de Platatildeo

Antes do seu encontro com Soacutecrates (que teria ocorrido provavelmente em 408

aC) Platatildeo estudara pintura e escrevera poesias cantos liacutericos e trageacutedias e por certo

interessou-se pela filosofia de Heraacuteclito e Parmecircnides mas o contato com Soacutecrates

quando tinha cerca de 20 anos transformou radicalmente sua vida como homem e como

pensador Posteriormente ao condenar Soacutecrates agrave morte os atenienses fizeram mais do

que realizar um ato injusto Pois ao perpetrar esse ato suscitaram profunda revolta no

jovem Platatildeo assim contribuindo para precipitar definitivamente sua vocaccedilatildeo filosoacutefica

Platatildeo passou entatildeo a dedicar-se com mais afinco agrave exposiccedilatildeo e ao desenvolvimento das

ideias de Soacutecrates A propoacutesito satildeo vaacuterios os diaacutelogos platocircnicos que testemunham o

impacto da morte de Soacutecrates sobre seu autor a Defesa de Soacutecrates ou defesa em seu

julgamento o Criacuteton no qual Soacutecrates apresenta os motivos para natildeo ter fugido de Atenas

depois da condenaccedilatildeo o que poderia ter ocorrido sem dificuldade o Eutiacutefron no qual

Soacutecrates dialoga com o vidente Eutiacutefron sobre o que eacute a piedade na iminecircncia do seu

julgamento e o Feacutedon no qual Soacutecrates passa as uacuteltimas horas de sua vida em defesa da

imortalidade da alma

A concepccedilatildeo de filosofia tal como eacute expressa nos diaacutelogos de Platatildeo nasceu

certamente por frequentar Soacutecrates de modo que toda a sua obra procura expor a

verdadeira filosofia de Soacutecrates que eacute o personagem central de quase todos os seus

diaacutelogos Mas apesar de procurar expor a filosofia de Soacutecrates em disputa com outros

interlocutores Platatildeo de fato apresenta sua proacutepria filosofia pois sua fidelidade ao ensino

de Soacutecrates natildeo consiste tanto em repetir a sua doutrina mas em reafirmar a validade do

meacutetodo de investigaccedilatildeo socraacutetico E haja vista a concepccedilatildeo de Platatildeo acerca da arte

retoacuterica expressa no diaacutelogo Fedro o qual provavelmente foi escrito na fase intermediaacuteria

do seu pensamento27 pode-se assegurar que natildeo somente a filosofia de Soacutecrates mas

27 Para Giovanni Casertano Platatildeo teria escrito o diaacutelogo Fedro no periacuteodo entre 387 e 367 aC ou seja entre os 41 e os 61 anos juntamente com os diaacutelogos Mecircnon Feacutedon Eutidemo Banquete Craacutetilo e A Repuacuteblica (CASERTANO 2011 8)

tambeacutem sua retoacuterica (manifesta no seu discurso judicial) significou para aquele pelo

menos nos seus aspectos essenciais um cacircnone a ser seguido

O diaacutelogo Fedro eacute comumente dividido em duas partes A parte eroacutetica (Fed 227a-

259d) a qual comeccedila com a leitura e a criacutetica de um discurso de Liacutesias que aiacute eacute

apresentado como o chefe da mais influente escola de retoacuterica de Atenas O discurso de

Liacutesias que eacute proferido por Fedro (Ibid 231a-234c) defende a tese paradoxal de que eacute

melhor usufruir dos prazeres eroacuteticos sem efetivamente entregar-se ao amor Para

sustentar essa tese ele alega que os que natildeo amam permaneceriam senhores de si natildeo

seriam censurados por uma maacute conduta e estariam isentos dos sofrimentos que amiuacutede

acometem os apaixonados Nessa parte do diaacutelogo Platatildeo confronta Liacutesias com dois

discursos de Soacutecrates sobre o mesmo tema a saber o valor de eros (ἔρως) O objetivo

desses discursos eacute mostrar como a partir das falsas premissas de Liacutesias sobre eros se pode

tratar melhor do que ele o mesmo assunto No primeiro discurso Soacutecrates (Ibid 237b-

241d) defende grosso modo que o amor eacute um desejo desprovido de razatildeo que arrasta o

amante para o prazer da beleza dos corpos e no outro discurso (Ibid 244a-257b)

Soacutecrates expotildee a teoria de que o amor eacute uma loucura concedida pelos deuses para o

benefiacutecio dos homens uma vez que por meio dela seraacute possiacutevel atingir a verdade

Dessarte alguns inteacuterpretes afirmam que o tema do amor eacute a preocupaccedilatildeo principal do

diaacutelogo Correto ou natildeo esse diagnoacutestico natildeo vela a importacircncia desse diaacutelogo para quem

deseja compreender como Platatildeo concebe a natureza da retoacuterica Como veremos a seguir

esse tema tambeacutem eacute destaque no diaacutelogo tendo inclusive ensejado Werner Jaeger a

identificar a retoacuterica como o assunto por excelecircncia do Fedro (JAEGER 2003 1256)

Na segunda parte do diaacutelogo (Fed 259e-279c) a qual nos interessa mais de perto

Platatildeo expotildee os defeitos da retoacuterica e dos sistemas retoacutericos em vigor no seu tempo para

poder destacar na sequecircncia os meacuteritos da dialeacutetica socraacutetica como condiccedilatildeo preacutevia de

uma verdadeira retoacuterica O escopo de Platatildeo eacute tiraacute-la de persuasores superficiais

especializados demonstrando que aplicada adequadamente e baseada no conhecimento

da verdade eacute coextensiva com a filosofia Nesse sentido o Fedro pode ser compreendido

como veiacuteculo de uma nova concepccedilatildeo de Platatildeo a respeito da arte retoacuterica visto contrastar

com o que lemos no diaacutelogo Goacutergias28 em que a retoacuterica eacute sumariamente rejeitada sob

28 Para Giovanni Casertano o diaacutelogo Goacutergias foi escrito entre 395 e 388 aC isto eacute entre os seus 33 e 40 anos periacuteodo em que escreveu os seus primeiros diaacutelogos Defesa de Soacutecrates Criacuteton Iacuteon Eutiacutefron Caacutermides Laques Liacutesias Hiacutepias Maior Hiacutepias Menor Protaacutegoras e o livro I de A Repuacuteblica (CASERTANO 2011 8)

a consideraccedilatildeo de que seria a suma de uma cultura que natildeo se baseia na verdade mas na

mera aparecircncia Nesse diaacutelogo Platatildeo nega simplesmente que a retoacuterica seja uma arte isto

eacute um discurso fundado num conhecimento cientiacutefico e concebe-a como uma simples

praacutetica empiacuterica que objetiva exclusivamente a persuasatildeo dos ouvintes sem qualquer

preocupaccedilatildeo com o conhecimento (Goacuterg 462b-c) O objetivo de tal retoacuterica natildeo eacute o bem

mas somente o deleite e o prazer por isso ele a define como uma espeacutecie de κολακεία ou

seja de adulaccedilatildeo (Ibid 462e-463a) Ele ataca a retoacuterica existente basicamente no que

tange agrave justiccedila a retoacuterica busca o prazer mediante a adulaccedilatildeo em vez de almejar o bem

genuiacuteno por meio da justiccedila Ele tambeacutem a compara com a culinaacuteria e a cosmeacutetica que

estatildeo voltadas para o prazer do corpo que seriam imitaccedilotildees baratas da medicina e da

ginaacutestica as quais estariam preocupadas com o verdadeiro bem tanto do corpo como da

alma (Ibid 463b-464c)

Outrossim o diaacutelogo Fedro tem lugar entre duas pessoas fora das muralhas da

cidade de Atenas (Fed 227a) em contraste com a grande reuniatildeo perante a qual Soacutecrates

conversa com Goacutergias e os demais no diaacutelogo homocircnimo A discussatildeo sobre a retoacuterica

no Fedro surge em conexatildeo com discursos sobre ἔρως Os assuntos substanciais aqui

discutidos satildeo amplamente privados com apenas breves referecircncias a algo poliacutetico A

propoacutesito no Fedro Soacutecrates estaacute longe de rejeitar longos discursos como o faz de

maneira ostensiva no Goacutergias (Goacuterg 449c-d) pois descreve a si mesmo como um

amante de discursos e profere um discurso muito mais longo do que qualquer outro

exposto no Goacutergias No Fedro natildeo se discute explicitamente a questatildeo do poder da

retoacuterica mas suas proacuteprias observaccedilotildees ao desenvolver uma genuiacutena arte retoacuterica

parecem visar fazecirc-la mais confiavelmente efetiva E quando desenvolve sua proacutepria

noccedilatildeo de retoacuterica natildeo se limita agrave retoacuterica poliacutetica mas propotildee uma arte universal da

psicagogia (ψυχαγωγία) a qual visa conduzir a almas dos ouvintes agrave praacutetica das virtudes

Assim a verdadeira arte retoacuterica natildeo seria algo contraacuterio agrave dialeacutetica mas precisaria ser

desenvolvida por algueacutem com habilidade dialeacutetica que tenha estabelecido em relaccedilatildeo agraves

almas humanas suas accedilotildees e paixotildees todas as definiccedilotildees e divisotildees analiacuteticas de acordo

com as articulaccedilotildees naturais dos objetos necessaacuterios ao desenvolvimento de uma genuiacutena

arte retoacuterica E a este respeito o filoacutesofo teria uma manifesta vantagem na execuccedilatildeo dessa

tarefa Aliaacutes a divindade natildeo estaacute menos presente no Fedro do que no Goacutergias pelo

contraacuterio estaacute ainda mais presente pois sua atuaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo para o filoacutesofo

contemplar o verdadeiramente belo

Pode-se assegurar entatildeo que ao escrever o diaacutelogo Fedro Platatildeo reabilita a arte

retoacuterica mas entendendo-a como uma praacutetica a serviccedilo da dialeacutetica que consiste no

proacuteprio meacutetodo da filosofia o qual capacita o orador a pensar e a falar (Fed 266b) uma

retoacuterica do verdadeiro e natildeo do verossiacutemil que natildeo procura agradar agraves multidotildees mas

somente os deuses (Ibid 273e) Agrave vista disso Platatildeo concebe duas retoacutericas distintas a

dos sofistas em geral que natildeo eacute genuiacutena arte mas simples adulaccedilatildeo e a filosoacutefica que

natildeo passa de expressatildeo da filosofia sem conteuacutedo proacuteprio e sem autonomia Depois da

apresentaccedilatildeo do panorama geral do que interessa ao estudo da concepccedilatildeo retoacuterica de

Platatildeo no diaacutelogo Fedro importa uma anaacutelise mais pormenorizada do seu conteuacutedo

Com efeito apoacutes ter reservado uma parte inicial do diaacutelogo para criticar Liacutesias e

por extensatildeo todos os oradores por natildeo falarem nem escreverem bem e sobretudo por

priorizarem o conhecimento do verossiacutemil Soacutecrates procura apresentar a Fedro uma

justificaccedilatildeo filosoacutefica da retoacuterica No iniacutecio da segunda parte do diaacutelogo em apreccedilo o

personagem Soacutecrates expotildee a Fedro o seu propoacutesito de examinar quais condiccedilotildees satildeo

necessaacuterias para proferir e escrever um bom discurso E a primeira condiccedilatildeo indicada por

Soacutecrates para se proferir e escrever um discurso com perfeiccedilatildeo eacute que o orador conheccedila a

verdade sobre o assunto de que iraacute tratar (Ibid 259e)

Ora era nosso propoacutesito examinar neste momento qual o criteacuterio para proferir e escrever um discurso com perfeiccedilatildeo ou sem ela pois passemos a fazecirc-lo [] Porventura natildeo eacute necessaacuterio para se falar bem e com perfeiccedilatildeo pressupor na mente do falante o conhecimento da verdade sobre o assunto a tratar

Para Soacutecrates o conhecimento que o orador deve possuir para proferir um bom

discurso natildeo deve limitar-se agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras para as multidotildees

conforme sugere Fedro mas o orador deve conhecer a realidade do que eacute justo bom e

belo (Ibid 260a)

A respeito disso meu caro Soacutecrates ouvi dizer o seguinte quem se quer tornar orador natildeo tem necessidade de conhecer o que realmente eacute justo mas o que aparente secirc-lo agrave multidatildeo que deve julgar natildeo o que na realidade eacute bom e belo mas quanto daacute essa aparecircncia jaacute que daiacute deriva a persuasatildeo e natildeo da verdade

Isto posto a primeira condiccedilatildeo estabelecida por Soacutecrates em relaccedilatildeo ao bom

discurso eacute que o orador deve ter um entendimento discursivo da verdade sobre o assunto

que tenciona discutir O bom orador natildeo deve se apropriar das crenccedilas do que pensam os

homens em geral sobre o que eacute justo bom e belo mas eacute forccediloso antes de pretender

comunicar alguma palavra que ele conheccedila a essecircncia dessas virtudes

Conveacutem ainda frisar que o ponto de partida do diaacutelogo Fedro em seu exame

temaacutetico da retoacuterica natildeo difere da retoacuterica sofiacutestica do diaacutelogo Goacutergias Em ambos

Soacutecrates duvida que a retoacuterica seja uma verdadeira τέχνη mas no Fedro em vez de

menosprezar simpliciter a retoacuterica como uma praacutetica voltada para a bajulaccedilatildeo dos

ouvintes (Goacuterg 463b) ele recomenda natildeo maltratar mas perdoar aqueles que por natildeo

conhecerem a dialeacutetica tornam-se incapazes de definir o que pode ser a retoacuterica (Fed

269b)

No Goacutergias Soacutecrates tambeacutem critica a retoacuterica praticada por seus contemporacircneos

considerando-a uma praacutetica irracional e um saber aparente Isso porque segundo ele ela

dispensaria o orador de conhecer aquilo sobre o que discursa na medida em que lhe

proporcionaria a habilidade de meramente parecer conhecer agrave multidatildeo para a qual

discursa Soacutecrates acrescenta que no tocante a todas as artes o orador e a retoacuterica

(praticada por Goacutergias) se encontram na condiccedilatildeo de natildeo conhecer as coisas em si

mesmas mas apenas descobrir algum mecanismo persuasivo de modo a parecer agrave

multidatildeo ignorante conhecer mais do que aquele que possui genuiacuteno conhecimento

(Goacuterg 459b-c) Segundo Soacutecrates a retoacuterica natildeo deve ser concebida como uma arte que

impotildee aos ouvintes certas opiniotildees que ensina a compor belos discursos a fim de deixar

vitoriosa a causa ruim e enfraquecer a boa mas deve ser psicagoacutegica ou seja um guia da

alma para que se alcance a verdadeira beleza e justiccedila que eacute o nuacutecleo de todo ensinamento

genuinamente filosoacutefico

Eis o que testemunha tambeacutem o diaacutelogo A Repuacuteblica Na ceacutelebre alegoria da

caverna (Rep 514a-517c) Platatildeo equipara as sombras na caverna agraves questotildees em disputa

judicial E uma vez que as disputas legais atenienses eram famosas pela sua retoacuterica (Fed

272d-e) Platatildeo identifica todas as sutilezas da teacutecnica retoacuterica com as imagens que mais

comumente atraem a atenccedilatildeo do puacuteblico Para ele por todas as suas vidas as pessoas

levam em conta simples alegaccedilotildees sobre questotildees importantes e cada performance

retoacuterica que por atrair mais atenccedilatildeo para a forma do discurso do que para o seu conteuacutedo

tende a deixar a sua audiecircncia mais ignorante do que saacutebia Desse modo os prisioneiros

da alegoria da caverna que tentam enxergar as sombras e disputam por elas representam

todos aqueles cidadatildeos que acreditam no que os oradores lhes dizem

Soacutecrates sustenta que amiuacutede a persuasatildeo dos ouvintes estaacute intrinsecamente

relacionada com o apelo agraves crenccedilas das multidotildees com aquilo que aparenta ser bom belo

e justo em detrimento do conhecimento da verdade Esta advertecircncia tem em vista

sobretudo os mercenaacuterios (ἕκαστος τῶν μισθαρνούντων ἰδιωτῶν) a quem o povo chama

de sofistas os quais natildeo tecircm outro objetivo de ensinamento senatildeo veicular as opiniotildees

que o vulgo expressa nas assembleias refletindo tambeacutem seus prazeres e suas paixotildees e

a isso designam de sabedoria (Rep 493a) Pois quando o orador desconhece o bem e o

mal e ao se apoiar somente no que aparenta ser bom para as multidotildees em conexatildeo com

o conhecimento de suas inclinaccedilotildees naturais pode exaltar o mal como se fosse o bem e

a consequecircncia dessa atitude seraacute inevitavelmente nefasta para a cidade (Fed 260c)

Pois quando um orador que desconhece o bem e o mal encontra uma cidade em igual situaccedilatildeo e tenta persuadi-la natildeo jaacute fazendo o elogio da ldquosombra de um asnordquo como se de um cavalo se tratasse mas exaltando o mal como se fosse o bem quando depois de estudar as inclinaccedilotildees da multidatildeo a convencer a praticar o mal em vez do bem depois disto que fruto julgas tu que a retoacuterica possa colher das sementes que lanccedilou

Vecirc-se por aiacute que para Soacutecrates haacute um tipo de ldquoarte retoacutericardquo espuacuteria falsa

ilegiacutetima e um outro que constitui uma verdadeira arte de falar (ἔτυμος τέχνη) a qual

necessariamente estaacute vinculada agrave verdade (ἀληθείας ἧφθαι) E a maneira pela qual o

orador seraacute capaz de comunicar a verdade no seu discurso em detrimento das opiniotildees

que aparentam ser verdadeiras agraves multidotildees dependeraacute exclusivamente do cultivo da

filosofia (καλλίπαιδά τε Φαῖδρον πείθετε ὡς ἐὰν μὴ ἱκανῶς φιλοσοφήσῃ) Escreve Platatildeo

a este respeito (Fed 261a)

Vinde pois nobres criaturas e convencei Fedro pai da bela progeacutenie de que se natildeo cultivar a filosofia como deve ser nunca seraacute capaz de falar coisa alguma

Soacutecrates separa a filosofia da retoacuterica apresentando-as como se a ordem de

preparaccedilatildeo para o bom discurso fosse o preacutevio domiacutenio de verdades filosoacuteficas A

exposiccedilatildeo que Soacutecrates faz da filosofia e da retoacuterica evidencia que ambas as disciplinas

satildeo distintas A filosofia seria a disciplina principal e a retoacuterica a secundaacuteria pois seria a

filosofia a disciplina que fornece agrave retoacuterica todas as condiccedilotildees para que esta se torne uma

arte legiacutetima Soacutecrates natildeo separa a descoberta da verdade pela filosofia da sua

apresentaccedilatildeo em discursos de modo que a retoacuterica constitui uma mera manifestaccedilatildeo

puacuteblica da filosofia um veiacuteculo de verdades filosoacuteficas destituiacuteda de conteuacutedo proacuteprio e

heterocircnoma Ele ainda afianccedila que o orador que natildeo cultivar a filosofia e por conseguinte

natildeo possuir o conhecimento da verdade mas persistir em caccedilar as opiniotildees das multidotildees

transformaraacute a retoacuterica numa coisa ridiacutecula destituiacuteda de arte (Ibid 262c)

Por conseguinte meu amigo a arte da palavra quem natildeo conhecer a verdade mas ande agrave caccedila de opiniotildees faraacute dela de certo modo coisa ridiacutecula desprovida de arte

Soacutecrates acrescenta que todo discurso deve ser como um organismo vivo de tal

maneira que as partes de um discurso devem guardar um ordenamento interno em relaccedilatildeo

ao todo Um bom discurso deve pois exibir uma harmonia em suas partes em que cada

uma contribui com algo para a estrutura geral do todo O orador deve considerar como

cada parte coopera para a estrutura geral de seu argumento ao mesmo tempo em que

manteacutem a discussatildeo vigorosa e energeacutetica Portanto para que a retoacuterica se torne uma arte

o assunto que se discute deve primeiro ser entendido como um todo (Ibid 264c)

Poderaacutes pelo menos admitir creio eu que todo o discurso deve ser constituiacutedo como um organismo vivo com corpo proacuteprio que natildeo seja aceacutefalo ou aacutepodo mas possua tronco e membros escritos de forma a convir entre si e ao seu todo

Intrinsecamente articulada a essa concepccedilatildeo orgacircnica do discurso e talvez um

desdobramento dela eacute a necessidade de que o orador reuacutena em uma uacutenica ideia as ideias

ou convicccedilotildees que antes estavam difusas em todas as direccedilotildees de tal modo que ao

estabelecer cada definiccedilatildeo resulte claro qualquer assunto que se queira explicar Tal

reuniatildeo em uma unidade conferiraacute ao discurso clareza e consistecircncia (Ibid 265d)

Soacutecrates oferece como exemplo sua definiccedilatildeo de amor (ἔρως) Ele define o amor como a

forccedila da paixatildeo separada da razatildeo que domina a opiniatildeo e se dirige ao prazer da beleza

especialmente a beleza do corpo (Ibid 238c)

Ora quando um desejo desprovido de razatildeo eacute arrastado para o prazer da beleza e prevalece sobre a reflexatildeo que tende para a justiccedila quando aleacutem disso robustecido vigorosamente por desejos anaacutelogos que tendem para a beleza corporal se torna senhor absoluto tal desejo toma o nome dessa forccedila e passa a chamar-se amor

Soacutecrates considera que se tanto o orador quanto o puacuteblico tiverem em mente uma

clara noccedilatildeo das fronteiras do assunto a ser tratado no discurso seraacute menor a probabilidade

de confusatildeo na comunicaccedilatildeo entre eles Se um orador quiser empregar ἔρως para designar

o amor pelo bem e seu puacuteblico em contrapartida definir ἔρως como luxuacuteria entatildeo

provavelmente haveraacute desentendimento Todavia a menccedilatildeo que Soacutecrates faz agrave clareza e

agrave consistecircncia sugere um interesse que supera a mera concordacircncia entre o orador e sua

assistecircncia Soacutecrates quer o proacuteprio orador consistente a respeito do seu assunto e capaz

de compreender a forma que o unifica Portanto se a retoacuterica deve ser uma τέχνη o orador

deve circunscrever o que integra uma definiccedilatildeo deixando entatildeo de fora o que natildeo faz

parte dela ou seja deve precisar os limites do que uma coisa eacute

Na visatildeo de Soacutecrates o orador tambeacutem deve entender a natureza da coisa como um

todo de modo a incluir o que realmente pertence a ela e excluir o que natildeo pertence Ele

diz que se deve juntar em uma uacutenica ideia as vaacuterias realidades dispersas em muitos pontos

para que pela definiccedilatildeo de cada unidade seja possiacutevel tornar evidente o assunto sobre

que se deseja ensinar em cada caso (Ibid 265d)

Um consiste em reduzir a uma ideia uacutenica que se possa abarcar de um relance as vaacuterias realidades dispersas por muitos pontos para que pela definiccedilatildeo de cada unidade se possa tornar evidente o toacutepico sobre que se deseja ensinar em cada caso Foi o que ainda agora se fez a propoacutesito do Amor de que demos a definiccedilatildeo quer a tenhamos apresentado bem quer mal possibilitou pelo menos ao discurso expor os factos duma forma clara e coerente

Todavia muito aleacutem dessa definiccedilatildeo insipiente que visa a princiacutepio expor os fatos

de uma maneira clara e coerente podendo ser remodelada conforme a investigaccedilatildeo

filosoacutefica se aprofunda o orador deve aspirar compreender as coisas de acordo com a

Ideia (ἰδέα) partindo da multiplicidade das sensaccedilotildees para uma unidade que eacute inferida

pela reflexatildeo filosoacutefica E esta atividade chama-se reminiscecircncia (ἀνάμνησις) das

realidades que outrora a alma do filoacutesofo contemplou quando seguia no cortejo de um

deus (Ibid 249b-c)

Mas a alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma que eacute a nossa E isto porque deve o homem compreender as coisas de acordo com o que chamamos Ideia que vai da multiplicidade das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existe Por isso eacute justo que apenas a inteligecircncia do filoacutesofo seja provida de asas jaacute que com a recordaccedilatildeo estaacute continuamente absorvido na medida do possiacutevel nas coisas a cuja contemplaccedilatildeo um deus deve a sua divindade

No diaacutelogo A Repuacuteblica Soacutecrates concebe as Ideias como entidades reais

existindo independentemente dos indiviacuteduos as quais a alma do filoacutesofo deseja

contemplar O filoacutesofo seria aquele que natildeo se entrega agrave multiplicidade das impressotildees

sensoriais nem se deixa levar durante sua vida pela instabilidade das simples opiniotildees

mas orienta a sua alma para a unidade do que existe E acerca do justo e do injusto do

bem e do mal de todas as Ideias o que se diraacute seraacute o mesmo ou seja cada uma delas eacute

uma mas aparecendo por toda parte ser muacuteltipla devido a comunhatildeo que elas mantecircm

com as accedilotildees e com os corpos entre si (Rep 476a) Agrave vista disso somente o filoacutesofo

possuiria um conhecimento no verdadeiro sentido dessa palavra porque mediante a

multiplicidade dos fenocircmenos eacute capaz de contemplar a imagem universal e imutaacutevel das

coisas ndash a Ideia E a partir de tal contemplaccedilatildeo ele pode dizer o que eacute justo e belo por si

enquanto que as opiniotildees das multidotildees a respeito dessas coisas oscilam na penumbra

entre o natildeo-ser e o verdadeiro ser (Ibid 469c-d) Aleacutem disso satildeo raros os que satildeo capazes

de buscar as Ideias como o proacuteprio belo em si e contemplaacute-las em sua essecircncia (Ibid

476c)

Para Giovanni Casertano o esforccedilo filosoacutefico de Platatildeo nos seus diaacutelogos baseia-

se na tentativa de fundar objetivamente a niacutetida contraposiccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso

e tal fundaccedilatildeo somente eacute possiacutevel admitindo a existecircncia das Ideias que satildeo entes ideais

que independem da subjetividade dos discursos Assim comunicar o verdadeiro significa

construir um discurso (retoacuterico) que reflita a existecircncia desses entes ideais independentes

do fluxo dos fenocircmenos e das sensaccedilotildees portanto natildeo contraditoacuterios de modo que as

Ideias imoacuteveis satildeo o criteacuterio para medir a mobilidade o eterno serve para medir o

temporal o objetivo o subjetivo o ser o devir Eacute justamente isso que faz o filoacutesofo e o

dialeacutetico (CASERTANO 2010 43)

Eacute importante destacar que na maior parte dos diaacutelogos platocircnicos as Ideias satildeo

valores morais que fundam os juiacutezos sobre as coisas da vida humana Trata-se de procurar

na vida do indiviacuteduo e da cidade a triacuteade de valores que aparece de uma ponta a outra dos

diaacutelogos (Eutiacutefron Criacuteton Teeteto Primeiro Alcibiacuteades Poliacutetico e Fedro) quais sejam

o justo o belo e o bom Estes conceitos e muitos outros tecircm existecircncia agrave parte da mente

humana como criteacuterios independentes e imutaacuteveis aos quais se devem reportar as

percepccedilotildees e as accedilotildees humanas Dessarte Soacutecrates exige que o orador seja capaz de

apreender a Ideia da justiccedila da beleza e do bem com o objetivo de coletaacute-la em uma

unidade antes de proferir o seu discurso Pode-se dizer entatildeo que Soacutecrates estabelece um

elevadiacutessimo padratildeo para o orador que deseja cumprir os requisitos de uma verdadeira

arte noutros termos Soacutecrates exige que o orador seja efetivamente um filoacutesofo

Tendo em vista a exigecircncia estabelecida por Platatildeo no Fedro segundo a qual o

orador deve necessariamente ser um filoacutesofo em conexatildeo com as caracteriacutesticas e a

atuaccedilatildeo do filoacutesofo em sua cidade ideal exposta no diaacutelogo A Repuacuteblica concluir-se-aacute

que somente uma diminuta classe de homens ilustrados estaraacute apta a exercer a arte

retoacuterica Conforme o registro de Platatildeo somente por volta dos 30 anos um grupo seleto

de indiviacuteduos que se mostrou capaz em todos os campos da educaccedilatildeo anterior como a

ginaacutestica a danccedila os jogos para o aprendizado dos rudimentos da matemaacutetica e da leitura

a poesia as artes marciais o treino militar a geometria a aritmeacutetica a astronomia e a

muacutesica (Rep 522c-e 525b 526c 537b-c) pode estar habilitado ao estudo da dialeacutetica

por um periacuteodo de 5 anos (Ibid 537c-d) Assim o aacutepice destas aprendizagens eacute a

dialeacutetica que culmina no conhecimento do bem (ἀγαθός) de modo que ela constitui a

coroaccedilatildeo de todos os estudos Todavia os futuros dialeacuteticos precisam possuir naturezas

bem dotadas de muitas qualidades diligecircncia amor pela verdade temperanccedila coragem

e magnificecircncia (Ibid 535d-536b) Apoacutes os 35 anos eles podem servir nos cargos

inferiores da cidade civis e militares durante 15 anos (Ibid 539e-540a) E somente aos

50 anos os melhores dentre eles satildeo compelidos a voltar os olhos da alma para o

verdadeiro bem revezando-se pelo resto da vida na organizaccedilatildeo da cidade dos cidadatildeos

e de si mesmos tendo sempre por modelo a Ideia do bem (Ibid 540a-b)

Chegados aos cinquenta anos os que sobreviveram e em tudo e de todos os pontos de vista foram os primeiros nos trabalhos e nas ciecircncias jaacute devem ser conduzidos ao seu termo final e forccedilados a abrir os olhos da alma e a contemplar aquilo que por si mesmo fornece a luz para todos Tendo em vista o proacuteprio bem servindo-se dele como modelo deveratildeo manter em ordem a cidade os que a habitam e a si mesmos durante o resto da vida cada uma por sua vez dedicando agrave filosofia a maior parte de seu tempo Quando poreacutem chegar sua vez cada um suportaraacute o peso da accedilatildeo poliacutetica e exerceraacute o governo em favor da cidade natildeo porque isso eacute algo honroso mas algo inevitaacutevel

No que concerne agrave educaccedilatildeo dos filoacutesofos Platatildeo estabelece que se deva submetecirc-

los ao mais excelente e rigoroso estudo (Ibid 503b-e) Mas ao ser pressionado a explicar

esta afirmaccedilatildeo ele lanccedila matildeo de uma seacuterie de imagens para sugerir a Ideia de bem que

constitui o auge da investigaccedilatildeo filosoacutefica a relaccedilatildeo dos seres humanos com a Ideia de

bem se assemelha agrave relaccedilatildeo dos prisioneiros em uma caverna com o sol (Ibid 514a-517c)

A alegoria da caverna descreve o processo do filoacutesofo que consegue elevar-se do mundo

sensiacutevel pela contemplaccedilatildeo das Ideias E eacute justamente esta contemplaccedilatildeo que lhe

permitiraacute depois descer novamente ao mundo concreto para guiar os outros homens

conforme a Ideia suprema de bem Mas por ser muito difiacutecil definir o que eacute a Ideia de

bem Platatildeo tenta elucidaacute-la por meio da imagem do sol Platatildeo estabelece entatildeo uma

analogia entre o sol e o bem tal como o sol mesmo dando vida cor e nutriccedilatildeo a todas as

coisas na terra a todos os objetos sensiacuteveis natildeo se identifica com eles da mesma forma

o bem propicia a verdade e a faculdade de conhecer daacute a todos os seres cognosciacuteveis a

sua existecircncia e o seu ser mas natildeo se identifica com nenhum deles pelo contraacuterio

transcende-os por sua dignidade e potecircncia E por ser o princiacutepio mais elevado a melhor

coisa do mundo e a mais real a Ideia de bem promete justificar o governo exercido por

filoacutesofos

Assim a menos que algueacutem seja capaz de dar uma explicaccedilatildeo da Ideia do bem

distingui-la de tudo o mais e possa sobreviver a todas as objeccedilotildees como se estivesse numa

batalha procurando examinar as coisas natildeo conforme a opiniatildeo mas de acordo com a

essecircncia e passar por tudo isso com sua explicaccedilatildeo ainda intacta natildeo poderaacute ser dito que

ele conhece o bem propriamente dito ou qualquer outro bem (Ibid 534c-d) Isto posto

aquele que domina a praacutetica filosoacutefica de procurar os princiacutepios mais gerais por detraacutes

dos fenocircmenos particulares conheceraacute a Ideia de bem que explica em que consiste a

bondade de tudo o mais de modo que sem o conhecimento dessa Ideia natildeo se pode pensar

coerentemente sobre questotildees morais e natildeo se pode planejar um padratildeo moral para a vida

humana (Ibid 505a-b)

Com efeito os poucos indiviacuteduos que resistirem aos rigorosos testes impostos aos

que pretendem ser governantes e destacarem-se nos trabalhos e nas ciecircncias sendo por

conseguinte privilegiados por poderem contemplar as Ideias seratildeo os uacutenicos capazes de

determinar que tipo de vida eacute virtuoso a educaccedilatildeo mais adequada agrave formaccedilatildeo moral e

intelectual dos cidadatildeos bem como a melhor maneira de proferir um bom discurso E

quando se trata de discursos deve-se admitir que existem especialistas assim como

ocorre na construccedilatildeo de navios na medicina ou em qualquer outra arte

No diaacutelogo Protaacutegoras Platatildeo enfatiza que quando nas assembleias procura-se

deliberar sobre assuntos de construccedilatildeo os arquitetos satildeo chamados para opinar sobre o

edifiacutecio a ser levantado e o mesmo se aplicaria na construccedilatildeo de navios (Prot 319b-c)

No diaacutelogo Criacuteton esta noccedilatildeo tambeacutem aparece quando Soacutecrates descreve um especialista

hipoteacutetico que atuaria no domiacutenio da moral como um meacutedico em relaccedilatildeo ao corpo

humano Sendo assim um especialista deve ser obedecido independentemente das

opiniotildees de natildeo especialistas e somente aquele merece ser ouvido (Criacutet 47a-48b) Platatildeo

procura estender a validade dessa noccedilatildeo ao uso do discurso retoacuterico no seio da cidade

por isso ele rejeita a pretensatildeo democraacutetica de fazer do discurso retoacuterico algo

universalmente partilhado pois na deliberaccedilatildeo acerca da administraccedilatildeo da cidade

qualquer indiviacuteduo poderia emitir suas opiniotildees mesmo natildeo possuindo competecircncia

alguma nos assuntos eacutetico-poliacuteticos (Prot 319d)

No entanto o criteacuterio de validade de um discurso natildeo deve relacionar-se com uma

regra majoritaacuteria qualquer pois a arte retoacuterica seraacute antes de mais nada um assunto que

compete aos filoacutesofos Em relaccedilatildeo a este assunto Werner Jaeger sublinha que o objetivo

visado no diaacutelogo A Repuacuteblica consiste na educaccedilatildeo do futuro governante enquanto que

no diaacutelogo Fedro a ecircnfase consiste na formaccedilatildeo do orador e do escritor E o que ambas

as obras comungariam seria a exigecircncia de uma espeacutecie de formaccedilatildeo integral do espiacuterito

Assim a ideia central do diaacutelogo A Repuacuteblica seria literalmente repetida no programa de

uma formaccedilatildeo filosoacutefica do orador elaborada no diaacutelogo Fedro Para chegar a essa meta

Platatildeo estabelece um percurso longo e trabalhoso Eacute sempre para a meta mais elevada

nunca a mais baixa que a filosofia educacional de Platatildeo se encaminha e vistas as coisas

dali natildeo haacute caminho mais curto nem mais cocircmodo para quem quiser cumprir plenamente

a missatildeo de ser um bom orador Aliaacutes natildeo haacute a miacutenima duacutevida de que eacute em sentido eacutetico

que Platatildeo concebe tal missatildeo de modo que o rodeio filosoacutefico seria inevitaacutevel ainda que

se julgasse elevada demais essa meta (JAEGER 2003 1270)

Embora Platatildeo estabeleccedila rigorosas condiccedilotildees para a formaccedilatildeo do orador ele

encontra no passado de Atenas o protoacutetipo de bom orador na figura do estadista e

estratego Peacutericles No Fedro o personagem Soacutecrates reconhece o interesse de Peacutericles

pelas ciecircncias29 e o considera a perfeita representaccedilatildeo do orador porque antes de adquirir

a excelecircncia na arte do discurso ele teria se dedicado a sublimes especulaccedilotildees filosoacuteficas

Peacutericles seria o mais perfeito de todos na arte retoacuterica porque todas as artes que satildeo

grandes exigem loquacidade e altas especulaccedilotildees sobre a natureza das coisas Na verdade

foi justamente isso que Peacutericles aleacutem dos seus dotes naturais soube adquirir E tendo

29 Ao redor de Peacutericles se reuniram filoacutesofos e sofistas de toda espeacutecie de passagem pela cidade de Atenas Os filoacutesofos Anaxaacutegoras e Zenatildeo de Eleia e o sofista Protaacutegoras foram os mais eminentes Aleacutem destes ele conviveu intimamente com grandes arquitetos escultores muacutesicos e tragedioacutegrafos (CASERTANO 201018)

encontrado Anaxaacutegoras Peacutericles embebeu-se de sublimes especulaccedilotildees e atingiu a

natureza do espiacuterito e da inteligecircncia assuntos de que Anaxaacutegoras muito se ocupava

extraindo da filosofia tudo o que lhe fosse uacutetil para o exerciacutecio da arte retoacuterica (Fed

269e-270a)

42 A retoacuterica e o meacutetodo dialeacutetico

Soacutecrates deveras reduz a retoacuterica agrave filosofia e concebe a essecircncia da boa retoacuterica

como dialeacutetica (διαλεκτική) Ele relaciona a boa retoacuterica com a necessidade de investigar

a natureza do assunto em questatildeo e a imagem de um corpo vivo serve para ligar a ordem

natural com a ordem do discurso Natildeo se pode por exemplo separar artificialmente a

disposiccedilatildeo das partes de um animal sem destruiacute-lo Semelhantemente Soacutecrates diz que o

arranjo de um discurso natildeo pode ser totalmente separado da reuniatildeo (συναγωγή) e divisatildeo

(διαίρεσις) adequadas de seu conteuacutedo de acordo com a natureza Dessarte a dialeacutetica

constituiria um elemento central para a boa retoacuterica pois o bom orador deve segundo ele

ter a capacidade de separar os assuntos em espeacutecies segundo as articulaccedilotildees naturais sem

causar roturas em nenhuma parte diferente do que faria um mau accedilougueiro (Ibid 265e)

Assim para dizer o que alguma coisa eacute conveacutem indicar seu gecircnero referindo-a a classe

de coisas na qual se reuniu tudo o que a ela se assemelha procedendo-se na sequecircncia agrave

divisatildeo do gecircnero em espeacutecies recortando o que distingue uma da outra E Soacutecrates

denomina aqueles que procedem desse modo de dialeacuteticos (Ibid 266c)

Dessas divisotildees e siacutenteses eu mesmo Fedro sou um apaixonado a fim de ser capaz de falar e de pensar E se eu julgar qualquer outro capaz de observar a unidade e a pluralidade nascida daquela a esse eu perguntarei no encalccedilo dos seus passos como se fora um deus Ora aos que satildeo capazes de o fazer eu chamo-lhes pelo menos ateacute este momento dialeacuteticos ndash se os nomeio retamente ou natildeo um deus o sabe

Aos olhos de Soacutecrates o processo de dividir e de reunir conduz agrave aprendizagem do

falar e do pensar O dialeacutetico (διαλεκτικoacuteς) eacute aquele capaz de realizar isso numa

perspectiva de unidade e multiplicidade A dialeacutetica no seu exerciacutecio de perguntar e

responder de dividir e de aproximar as partes chega agrave verdade das coisas Assim ela

busca a verdade enquanto que a retoacuterica preocupa-se apenas com a relaccedilatildeo entre o orador

e o puacuteblico E uma vez que a retoacuterica precisa retirar os seus conteuacutedos da filosofia que a

submete ldquodespoticamenterdquo privando-a de autonomia a genuiacutena retoacuterica ateacute poderia ser

chamada de dialeacutetica

A dialeacutetica que pode ser assimilada ao meacutetodo da divisatildeo (διαίρεσις) consiste na

teacutecnica de investigaccedilatildeo conjunta realizada mediante a colaboraccedilatildeo de duas ou mais

pessoas segundo o procedimento de perguntar e responder A dialeacutetica constitui o aacutepice

a que pode chegar a investigaccedilatildeo conjunta e compotildee-se basicamente de dois momentos

Remeter as coisas dispersas para uma ideia uacutenica e em definir a ideia de tal modo que

possa ser veiculada a todos a exemplo da definiccedilatildeo geral de amor esboccedilada por Soacutecrates

que consiste num desejo desprovido de razatildeo (loucura) que arrasta o amante para o prazer

da beleza E dividir novamente a ideia em suas espeacutecies seguindo suas interaccedilotildees naturais

evitando fragmentar suas partes No que tange agrave definiccedilatildeo de amor Soacutecrates reuacutene duas

coisas que antes natildeo estavam relacionadas a saber a loucura que adveacutem aos homens em

virtude do descontrole dos proacuteprios apetites (Ibid 237d-238c) e a loucura que eacute inspirada

pelos deuses (Ibid 244a-c) e ao identificar duas formas de loucura Soacutecrates distinguiu

nesta segunda classe outros quatro tipos especiacuteficos os quais ulteriormente seratildeo

analisados (Ibid 265b)

A esse respeito eacute oportuno trazer agrave baila a anaacutelise de Pierre Hadot sobre a formaccedilatildeo

dialeacutetica na Academia Ele ressalta que essa formaccedilatildeo era absolutamente necessaacuteria na

medida em que os disciacutepulos de Platatildeo eram destinados a desempenhar seu papel na

cidade pois numa civilizaccedilatildeo que tinha por centro o discurso poliacutetico era preciso formar

indiviacuteduos para um perfeito domiacutenio da palavra e do raciociacutenio No entanto a dialeacutetica

platocircnica natildeo se reduziria a um exerciacutecio puramente loacutegico mas correspondia a um

exerciacutecio espiritual que exige dos interlocutores uma espeacutecie de ascese Aliaacutes natildeo se trata

de uma luta entre dois indiviacuteduos na qual o mais haacutebil imporaacute seu ponto de vista mas de

um esforccedilo realizado em comum por dois interlocutores que desejam estar de acordo com

as exigecircncias racionais do discurso sensato Hadot tambeacutem enfatiza que os sofistas

pretenderam formar os jovens para a vida poliacutetica mas Platatildeo quis fazer isso dotando-os

de um saber bem superior agravequele que os sofistas poderiam ofertar de um saber que de

uma parte estaria fundado sobre um meacutetodo racional rigoroso e de outra seria

inseparaacutevel do amor do bem e da transformaccedilatildeo interior do homem Dessa forma Platatildeo

natildeo pretendia simplesmente formar poliacuteticos e oradores haacutebeis mas verdadeiros filoacutesofos

(HADOT 2014 94)

Hadot acrescenta que a dialeacutetica praticada na Academia de Platatildeo era uma teacutecnica

de discussatildeo submetida a regras precisas Uma ldquoteserdquo era apresentada ou seja uma

proposiccedilatildeo interrogativa do tipo pode-se ensinar a virtude Um interlocutor atacava a

tese e outro a defendia O primeiro atacava interrogando ou seja apresentando ao

defensor da tese questotildees habilmente escolhidas a fim de induzi-lo a admitir proposiccedilotildees

contraacuterias agrave tese proposta enquanto que o proacuteprio interrogador natildeo teria uma tese (Ibid

2014 98) No entanto a dialeacutetica ensinava natildeo somente a atacar mas tambeacutem a responder

com o intuito de frustrar as armadilhas do interrogador (Ibid 2014 99) Aleacutem disso a

dialeacutetica exigia que os interlocutores pretendessem efetivamente dialogar por isso jaacute natildeo

eacute um dos interlocutores que impotildee sua verdade ao outro pelo contraacuterio o diaacutelogo ensina

a se colocar no lugar do outro e a superar se for o caso o proacuteprio ponto de vista Assim

os interlocutores seriam capazes de descobrir por eles mesmos e neles mesmos uma

verdade independente deles na medida em que se submetessem a uma autoridade superior

(Ibid 2014 100)

Prosseguindo na elucidaccedilatildeo da dialeacutetica eacute pertinente destacar a exposiccedilatildeo que

Platatildeo faz desse meacutetodo de investigaccedilatildeo filosoacutefica no mais proeminente dos seus

diaacutelogos30 Ele afirma que soacute se pode determinar o caraacuteter ou a natureza da dialeacutetica em

relaccedilatildeo com os demais tipos de saberes humanos Primeiramente ele compara a dialeacutetica

com as chamadas τέχναι ou disciplinas empiacutericas as quais dizem respeito agraves opiniotildees e

anseios dos homens e servem para produzir algum objeto ou para cuidar do que proveacutem

de produtos naturais ou artificiais (Rep 533b)

Isso pelo menos disse eu ningueacutem nos contestaraacute se dissermos que nenhum outro meacutetodo tenta sistematicamente apreender em cada coisa o que ela eacute Ao contraacuterio todas as outras artes se referem a opiniotildees e desejos dos homens ou estatildeo todas elas voltadas para processos de geraccedilatildeo ou composiccedilatildeo ou para cuidados com produtos naturais ou artificiais

Platatildeo tambeacutem compara a dialeacutetica com todas as disciplinas matemaacuteticas Ele

afirma que as disciplinas matemaacuteticas como a geometria e as que dela derivam em certa

30 De acordo com Giovanni Casertano o diaacutelogo A Repuacuteblica pode ser considerado a obra mais capital de Platatildeo pois nele estatildeo presentes todos os temas e problemaacuteticas da filosofia platocircnica da teoria das Ideias agrave teoria da alma etc embora sejam tratados sob uma perspectiva poliacutetica e depois do diaacutelogo Leis eacute o mais extenso Aleacutem disso o diaacutelogo em apreccedilo eacute uma obra a que Platatildeo dedicou muitos anos de sua vida de escritor e filoacutesofo entre 360 e 348 aC isto eacute entre os 68 e 80 anos ele revecirc reescreve em parte e debruccedila-se sobre o diaacutelogo e segundo um antigo relato no momento de sua morte foi encontrada junto agrave sua cama uma taacutebua na qual estava a transcrever e a modificar o proecircmio de A Repuacuteblica (CASERTANO 2011 6 9)

medida se aproximam do verdadeiro ser poreacutem soacute o alcanccedilam como em sonhos pois

seriam incapazes de contemplaacute-lo despertas O seu princiacutepio com efeito eacute algo que elas

ignoram e tudo o mais que se conecta com as matemaacuteticas estaria entretecido por uma

certa ignoracircncia (Ibid 533c) por isso a mera aproximaccedilatildeo (ὁμολογία) das matemaacuteticas

com o ser natildeo poderia a rigor ser chamada de ἐπιστήμη ou seja natildeo seria um

conhecimento filosoacutefico stricto sensu Dessarte somente a dialeacutetica proporcionaria um

conhecimento das coisas eacuteticas e poliacuteticas e um conhecimento mais seguro do que as

disciplinas matemaacuteticas poderiam oferecer

Outrossim a dialeacutetica constitui a ciecircncia que arrasta e leva para o alto o olho da

alma que estaacute enterrado num pacircntano baacuterbaro e para este propoacutesito serve-se das

matemaacuteticas como um instrumento auxiliar ou como uma espeacutecie de propedecircutica (Ibid

533d) Aliaacutes o saber conferido por Platatildeo agrave dialeacutetica eacute tatildeo superior ao saber matemaacutetico

quanto ao conteuacutedo do ser como as coisas reais do mundo sensiacutevel o satildeo quanto agraves suas

sombras ou imagens refletidas O dialeacutetico portanto eacute aquele que compreende a essecircncia

de cada coisa pois do mesmo modo ele deve estar em condiccedilatildeo de discernir a Ideia do

bem distinguindo-a de todas as outras ou seja separar o bem em si das diversas coisas

que satildeo mormente chamadas boas (Ibid 534c-d)

Entatildeo acontece o mesmo a respeito do bem Se algueacutem natildeo for capaz de definir pela razatildeo a ideia do bem distinguindo-a de todas as outras e como num combate passando atraveacutes de todas as objeccedilotildees natildeo estiver disposto a natildeo refutaacute-las segundo a opiniatildeo mas segundo a essecircncia natildeo atravessar todas as dificuldades como uma razatildeo inabalaacutevel se for essa a postura dele natildeo afirmaraacutes que ele natildeo conhece nem o proacuteprio bem nem algum outro bem Mas se apreende uma imagem do bem eacute pela opiniatildeo que a apreende natildeo pela ciecircncia e a vida de agora passa-a sonhando e cochilando sem despertar antes de chegar ao Hades e laacute dormir completamente

Platatildeo sustentava tanto na Academia como nos seus diaacutelogos da maturidade que a

compreensatildeo dos fenocircmenos que ocorrem no mundo fiacutesico depende da hipoacutetese da

existecircncia de uma realidade superior que somente pode ser conhecida pela alma do

filoacutesofo constituiacuteda de arqueacutetipos eternos a saber as Ideias dos quais o mundo concreto

seria o simulacro imperfeito e pereciacutevel Todavia atraveacutes da dialeacutetica que constitui o

meacutetodo por excelecircncia da filosofia eacute possiacutevel ascender do mundo fiacutesico que eacute percebido

pelos oacutergatildeos dos sentidos e objeto apenas de opiniotildees muacuteltiplas e mutaacuteveis agrave

contemplaccedilatildeo dos modelos ideais que satildeo os objetos da verdadeira ciecircncia

Constatamos ateacute aqui que a dialeacutetica constitui um elemento central para a boa

retoacuterica mas existe outro aspecto igualmente importante que consiste no conhecimento

que o orador deve possuir a respeito da alma humana (ψυχή) O orador que pretende

ensinar a arte da palavra com rigor a qualquer pessoa deve estar apto a demonstrar a

essecircncia do objeto a que vai aplicar os seus discursos qual seja a alma humana (Fed

270e) Desse modo o orador deve compreender a natureza da alma natildeo agrave maneira dos

sofistas mas com rigorosa exatidatildeo (ἀκριβείᾳ) deve conhecer se a alma eacute simples ou

multiforme e o que ela tem a capacidade de fazer e de sofrer tanto como um todo quanto

em suas partes31 Noutros termos o orador deve mostrar qual seja a accedilatildeo que por sua

natureza a alma estaacute apta a exercer sobre outras coisas e por conseguinte qual a

influecircncia que pode sofrer por parte destas (Ibid 271a)

Eacute entatildeo evidente que Trasiacutemaco e todo aquele que se esforce por ensinar a arte oratoacuteria devem comeccedilar por descrever a alma com toda a exatidatildeo e por fazer ver se por ventura ela constitui uma coisa una e homogeacutenea ou se agrave maneira do corpo eacute multiforme Eis o que chamamos mostrar a natureza de alguma coisa

Depois de classificar tanto as almas quanto os discursos o orador deve adequar

cada tipo de alma com cada tipo de discurso explicando as razotildees pelas quais uma alma

eacute necessariamente persuadida pelos discursos de certo tipo e natildeo de outro (Ibid 271a-b)

Em segundo lugar descreve de que modo costuma o objeto produzir ou sofrer qualquer acccedilatildeo e sob o efeito de quecirc [] Em terceiro apoacutes ordenar os geacuteneros de discursos os geacuteneros da alma e suas modalidades deve referir todas as relaccedilotildees causais ajustando os geacuteneros de uns aos da outra e mostrando com que discursos e devido

31 A menccedilatildeo no Fedro agraves partes da alma pode ser melhor compreendida em relaccedilatildeo com um dos temas centrais do livro IV do diaacutelogo A Repuacuteblica no qual Platatildeo divide a alma humana em trecircs partes cada uma possuindo uma faculdade especiacutefica Escreve Platatildeo a este respeito (Rep 436a-b) ldquoMas jaacute que fica difiacutecil saber se realizamos cada atividade graccedilas a mesma faculdade ou sendo elas trecircs usamos cada uma delas para uma atividade diferente isto eacute se aprendemos com uma irritamo-nos graccedilas a outra faculdade que temos e noacutes ainda com uma terceira desejamos os prazeres da comida e da geraccedilatildeo de filhos e tudo o mais que tem afinidade com estes atos ou se com a alma inteira fazemos cada um desses atos quanto nos pomos em accedilatildeordquo Com efeito a primeira faculdade da alma eacute concupiscente A alma concupiscente eacute irracional estaacute situada no baixo ventre e busca a comida a bebida o sexo e os prazeres de maneira geral No entanto estas inclinaccedilotildees que satildeo irracionais podem ser dominadas atraveacutes da educaccedilatildeo moral e resultar na virtude da temperanccedila A segunda faculdade da alma eacute irasciacutevel e estaacute situada no peito porquanto se irrita e se enraivece contra tudo quanto possa vir a ameaccedilar a seguranccedila do corpo A alma irasciacutevel eacute responsaacutevel pela proteccedilatildeo do corpo e semelhantemente agrave alma concupiscente eacute irracional No entanto atraveacutes da educaccedilatildeo moral a inclinaccedilatildeo da alma irasciacutevel agrave agressividade pode resultar na virtude da coragem Finalmente a terceira faculdade da alma eacute racional situada na cabeccedila eacute a faculdade do conhecimento Eacute a parte espiritual e imortal da alma sua funccedilatildeo ativa superior e eacute essa parte da alma que deve exercer domiacutenio sobre as demais partes Isto posto para que seja possiacutevel a obtenccedilatildeo da justiccedila que constitui para Platatildeo a virtude fundamental tanto para o cidadatildeo quanto para a cidade eacute necessaacuterio que a alma racional domine a alma concupiscente e a alma irasciacutevel

a que causa uma alma se deixa necessariamente persuadir e outra desobedece

O orador deve pois estar apto para classificar o gecircnero dos discursos e das almas

mostrar as influecircncias que estas sofrem e as causas dessas influecircncias Precisa tambeacutem

saber comparar cada gecircnero do primeiro grupo com cada um do segundo e ensinar por

qual tipo de discurso cada gecircnero de alma eacute necessariamente persuadido destacar as

causas dessa persuasatildeo e as causas pelas quais os outros gecircneros natildeo se deixam persuadir

Assim o poder de persuasatildeo do orador se evidenciaria pela psicagogia (ψυχαγωγία) ou

seja pela faculdade de governar as almas (Ibid 261b) donde decorre que aquele que

deseja tornar-se orador necessariamente deve conhecer quantas formas existem na alma

(τὸν μέλλοντα ῥητορικὸν ἔσεσθαι ἀνάγκη εἰδέναι ψυχὴ ὅσα εἴδη ἔχει) Estas formas satildeo

em certo nuacutemero e tecircm suas proacuteprias qualidades por isso os homens possuem caracteres

distintos (Ibid 271d)

Depois de realizada a classificaccedilatildeo das almas deveraacute o orador fazer a distinccedilatildeo de

cada tipo de discurso em suas diferentes qualidades porquanto existem homens que satildeo

persuadidos por certos discursos enquanto que os mesmos discursos natildeo produziratildeo

nenhum efeito na alma de outrem Assim os ouvintes com um determinado estado de

espiacuterito ou dotados de caraacuteter firme soacute podem ser levados a agir em determinado sentido

por meio de recursos oratoacuterios escolhidos de acordo com sua maneira de ser Por essa

razatildeo descobrir os fundamentos psicoloacutegicos de toda a influecircncia sobre os homens eacute uma

das incumbecircncias do bom orador (Ibid 271d)

Entatildeo uma vez definidas essas o nuacutemero de espeacutecies de discursos eacute o mesmo e cada um com caracteriacutesticas especiacuteficas Por isso uns homens sob a accedilatildeo de determinados discursos e por determinado motivo tornam-se obedientes a certas convicccedilotildees outros poreacutem com natureza diferente natildeo de deixam persuadir pelas mesmas razotildees

Eacute manifesto que o orador precisa influir sobre a alma humana poreacutem natildeo eacute tanto

sobre o mero ornato formal do discurso que a verdadeira arte retoacuterica versa eacute antes sobre

a ψυχαγωγία porquanto se quiser dirigir adequadamente o auditoacuterio o orador deve

conhecer o mundo da alma humana com todas as suas emoccedilotildees e com todas as suas forccedilas

Aleacutem disso Platatildeo natildeo se contenta com a exigecircncia teoacuterica de elaborar um sistema

universal de categorias psicoloacutegicas em vista do seu uso na arte retoacuterica mas ele insiste

na aplicaccedilatildeo praacutetica desses conhecimentos nos casos concretos e de maneira determinada

(JAEGER 2003 1268-1269)

Depois que o orador tiver dominado todos esses assuntos eacute necessaacuterio aplicar o

conhecimento adquirido num contexto especiacutefico Soacutecrates enfatiza a noccedilatildeo de ldquotempo

exatordquo (καιρός) para aplicar esse conhecimento pois se o orador natildeo empregar o discurso

correto no momento oportuno todo o conhecimento retoacuterico natildeo teraacute nenhuma utilidade

Assim tendo em vista o benefiacutecio de sua audiecircncia o orador deve saber quando falar

mas tambeacutem quando natildeo dizer nada Eacute possiacutevel assegurar entatildeo que Soacutecrates natildeo estaacute

interessado somente no conhecimento intelectual de um determinado assunto e da

natureza da alma humana mas tambeacutem no conhecimento praacutetico que consiste em como

aplicar as diversas noccedilotildees necessaacuterias para a formaccedilatildeo do bom orador em contextos

especiacuteficos (Fed 272a) De acordo com a anaacutelise de Marina McCoy sobre o diaacutelogo

Fedro a atenccedilatildeo de Soacutecrates ao καιρός o momento certo e ao modo como ele fala mostra

sensibilidade agrave natureza situada do conhecimento humano Se o καιρός inclui uma noccedilatildeo

de improviso em como responder ao puacuteblico no momento mais adequado Soacutecrates seria

um verdadeiro mestre de improvisaccedilatildeo Natildeo obstante Soacutecrates estaacute sempre orientado

para as Ideias (ou Formas) ou seja as verdades imutaacuteveis agraves quais eacute atraiacutedo e agraves quais

ele espera atrair os seus interlocutores de modo que a atenccedilatildeo de Soacutecrates ao καιρός

reflete seu amor e sua preocupaccedilatildeo com aqueles Isto posto o seu uso na retoacuterica natildeo eacute

orientado somente agrave persuasatildeo de seu interlocutor de modo a acreditar nele mas ao amor

e agrave busca das Ideias O amor verdadeiro pelo puacuteblico requer amaacute-lo o suficiente para

conduzi-lo aleacutem de si mesmo como orador ou escritor em direccedilatildeo agraves Ideias Agrave vista disso

a retoacuterica filosoacutefica pode ser considerada uma ponte entre as Ideias eternas e imutaacuteveis

e a compreensatildeo parcial e limitada da verdade que caracteriza a natureza situada do

conhecimento humano (MCCOY 2010 211)

Em resumo para se ter domiacutenio da arte retoacuterica nos moldes aventados por Soacutecrates

deve-se cumprir os seguintes requisitos compreender a verdade sobre o assunto em

questatildeo tanto o todo quanto a articulaccedilatildeo de suas partes compreender com exatidatildeo

natureza da alma humana saber como conduzir uma audiecircncia especiacutefica agrave verdade

proferir um discurso claro e vigoroso de acordo com a natureza do material e finalmente

eacute necessaacuterio que a combinaccedilatildeo de todos esses elementos sejam eficazmente aplicados no

momento mais adequado

Aleacutem do mais conveacutem sublinhar um traccedilo da personalidade de Soacutecrates que se

destaca tanto no diaacutelogo Defesa de Soacutecrates (Def Soacutec 31c-d) quanto no diaacutelogo Fedro

(Fed 238e-241d) qual seja a influecircncia de sua divindade pessoal (δαιμόνιον) sobre sua

maneira de pronunciar um discurso e sobre sua maneira de agir Logo apoacutes a pronunciaccedilatildeo

do seu primeiro discurso (Ibid 238e-241d) Soacutecrates declara a Fedro que no momento em

que se preparava para atravessar o rio manifestou-se nele o costumeiro ldquosinal divinordquo

que amiuacutede o proiacutebe de fazer o que tem em mente (ἀεὶ δέ με ἐπίσχει ὃ ἂν μέλλω πράττειν)

Nesse contexto o δαιμόνιον natildeo deixou Soacutecrates partir antes de se purificar como se

tivesse cometido uma impiedade (ἡμαρτηκότα) contra a divindade A impiedade

mencionada por Soacutecrates refere-se ao primeiro discurso proferido por este a Fedro no qual

aquele natildeo havia exposto adequadamente as qualidades de Eros que eacute uma divindade

pois se Eros eacute filho da deusa Afrodite (Ibid 242c-243a) entatildeo Eros eacute um ser divino32

Assim Soacutecrates deixa para traacutes a etapa de tratar o amor como uma afecccedilatildeo humana

doentia e inicia-se uma nova etapa para revelar o amor como uma das quatro daacutedivas da

loucura advinda dos deuses Esta segunda etapa chama-se palinoacutedia (παλινῳδία) termo

que remonta agrave forma de purificar-se posta em praacutetica por Estesiacutecoro o qual evitou ser

punido com a cegueira compondo versos de retrataccedilatildeo (Ibid 243a-b)

Marina McCoy destaca que na palinoacutedia Soacutecrates segue estreitamente a abordagem

de Estesiacutecoro em seu proacuteprio discurso tanto em seu estilo liacuterico quanto no modo em que

ele se dedica a um tema eacutepico Soacutecrates faz alusatildeo a uma histoacuteria contada por Estesiacutecoro

de quem se diz acometido de cegueira apoacutes escrever uma histoacuteria caluniadora contra

Helena de Troia Ele teria obtido sua visatildeo somente depois de contar uma segunda versatildeo

na qual afirmava que apenas o fantasma de Helena foi levado a Troia Soacutecrates tambeacutem

descreve seu proacuteprio discurso como uma renuacutencia a seu primeiro discurso no qual critica

o amor O primeiro discurso de Soacutecrates corretamente identifica os males de amantes

egoiacutestas preocupados com sua proacutepria satisfaccedilatildeo O erro deste primeiro discurso eacute que

ele era muito simploacuterio e difamava Eros que eacute um ser divino (MCCOY 2010 190)

Aleacutem disso McCoy sublinha que a palinoacutedia mostra que Soacutecrates usa seu discurso

para conduzir a alma de Fedro para o amor Soacutecrates tambeacutem natildeo se esquiva de empregar

uma linguagem eroacutetica com Fedro Assim desde os primeiros momentos dramaacuteticos do

diaacutelogo Fedro Soacutecrates sugere que ele pode estar tentando seduzir Fedro Todavia a

seduccedilatildeo de Soacutecrates em relaccedilatildeo a Fedro tem o escopo de reorientar o amor que este tem

pelos discursos em direccedilatildeo agraves Ideias e agrave filosofia de modo que a seduccedilatildeo natildeo eacute de natureza

32 No diaacutelogo A Repuacuteblica Platatildeo apresenta basicamente o mesmo ponto de vista acerca dos deuses Para ele os deuses devem ser representados natildeo como a causa de todas as coisas que acontecem mas somente das coisas boas (Rep 379a-380c) os deuses natildeo mudam natildeo assumem formas multiplas tampouco enganam os homens (Ibid 380d-382a) eles natildeo mudam nem enganam os outros nem com apariccedilotildees nem com palavras nem com o envio de sinais em vigiacutelia ou em sonho (Ibid 382e) e quando se fala dos deuses eacute necessaacuterio que os discursos que se fazem enfatizem somente suas altas qualidades morais por exemplo de Hades natildeo se pode falar que tem falta de coragem pois se ele eacute um deus deve ser representado como destemido em relaccedilatildeo agrave morte (Ibid 386a-b)

sensiacutevel ou carnal Os discursos de Soacutecrates levam em consideraccedilatildeo o amor de Fedro

pelos discursos em seu uso de estilo que supera o discurso de Liacutesias E cada discurso por

seu turno tem por objetivo afastar Fedro do amor pelos discursos em si e aproximaacute-lo do

amor pelas Ideias O uso que Soacutecrates faz da linguagem eroacutetica para falar sobre filosofia

estimula Fedro a considerar o familiar anseio de amor sexual por outra pessoa numa

ligaccedilatildeo com as Ideias Soacutecrates ainda sugere que se Fedro cogitar que jaacute conhece a

extensatildeo do desejo eroacutetico por outra pessoa ele ainda natildeo mergulhou nas profundezas do

amor pois a sua descriccedilatildeo da profundidade do amor filosoacutefico constitui um desafio a

Fedro a vivenciaacute-lo por si mesmo (Ibid 2010 193-195)

Com efeito a tese geral da palinoacutedia de Soacutecrates consiste em provar que a loucura

(μανίας) natildeo eacute simplesmente um mal pois haacute grandes bens advindos aos seres humanos

mediante a loucura por daacutediva divina (θείᾳ μέντοι δόσει διδομένης) E a loucura inspirada

pelos deuses se manifesta de quatro maneiras distintas na profecia (e na adivinhaccedilatildeo)

daacutediva de Apolo na revelaccedilatildeo da cura de certas doenccedilas daacutediva de Dioniso na poesia

daacutediva das Musas e finalmente na contemplaccedilatildeo das Ideias daacutediva de Eros (que eacute a

precondiccedilatildeo para o verdadeiro discurso retoacuterico) Desse modo o amor para Soacutecrates eacute

uma possessatildeo uma loucura divina o que postula a necessidade de um deus uma forccedila

transcendente

De acordo com Soacutecrates eacute no estado de loucura que a profetisa de Delfos e as

sacerdotisas de Dodona tecircm proporcionado agrave Heacutelade inuacutemeros benefiacutecios tanto no

acircmbito privado como no puacuteblico (Fed 244b) Outrossim eacute no estado de loucura que

alguns indiviacuteduos dedicam-se agrave indagaccedilatildeo do futuro por meio de aves e de outros sinais

procurando para a opiniatildeo humana conhecimento e informaccedilatildeo (Ibid 244c) Soacutecrates

tambeacutem declara ser um tipo de adivinho (μαντικός) ou seja um sujeito inspirado pela

divindade (Ibid 242c)

Sou na verdade um adivinho natildeo muito haacutebil eacute certo mas agrave maneira das pessoas que conhecem mal as letras contudo para mim chega Eu tenho jaacute consciecircncia perfeita da minha falta Sem duacutevida amigo que a alma possui tambeacutem esse poder macircntico pelo menos em parte jaacute que ainda haacute pouco algo me perturbou quando pronunciava o discurso e como que me fez recear para dizer como Iacutebico

A segunda forma de loucura mencionada por Soacutecrates eacute aquela que revela a cura de

certas doenccedilas que recaem sobre certas famiacutelias por inveja dos deuses prescrevendo ritos

de expiaccedilatildeo ou de purificaccedilatildeo (Ibid 244e)

Outra forma de loucura se manifesta na poesia pois quando a inspiraccedilatildeo divina

encontra uma alma delicada e pura desperta-a e arrebata-a levando-a a expressar-se em

odes e outras formas de poesia embelezando as inuacutemeras accedilotildees dos antigos e educando

as futuras geraccedilotildees (Ibid 245a)

Finalmente o quarto tipo de loucura manifesta-se quando o filoacutesofo percebe a

beleza sensiacutevel como a beleza dos corpos e se recorda da verdadeira beleza da beleza

enquanto Ideia (Ibid 249d) Portanto para Soacutecrates a contemplaccedilatildeo das Ideias eacute a

melhor de todas as possessotildees divinas e a de melhor origem tanto para o que a possui

como para quem dela compartilha (Ibid 249d-e)

Ora eacute aqui que leva todo o desenvolvimento sobre o quarto tipo de loucura ndash pela qual o homem quando vecirc a beleza de caacute e recorda da verdadeira beleza eacute provido de asas e munido delas arde no desejo de voar sem forccedilas bastantes no entanto olha para cima agrave maneira de uma ave descura os assuntos terrenos e recebe entatildeo a acusaccedilatildeo de se encontrar em estado de loucura Leva ela assim agrave conclusatildeo de que em si mesma eacute a melhor de todas as possessotildees divinas e a de melhor origem tanto para o que a possui como para quem dela compartilha

No entanto natildeo eacute faacutecil para qualquer um lembrar-se das realidades suprassensiacuteveis

a partir dos objetos terrenos pois em relaccedilatildeo agraves diversas virtudes como a justiccedila a

sabedoria etc natildeo se encontra seu esplendor nas imagens da Terra Eacute com dificuldade

agrave custa de oacutergatildeos obscuros e recorrendo agraves representaccedilotildees desses objetos que poucos

iniciados conseguem contemplar as Ideias (Ibid 250b) Por essa razatildeo os objetos

supremos do conhecimento a saber as Ideias natildeo satildeo perfeitamente contempladas por

qualquer ser humano Somente os deuses podem contemplaacute-las com facilidade e a

maioria dos seres humanos pouco vecirc delas por isso a praacutetica da arte retoacuterica a qual

pressupotildee o conhecimento das Ideias natildeo pode constituir um empreendimento qualquer

(Ibid 272b) Enfim a genuiacutena arte retoacuterica natildeo eacute acessiacutevel a qualquer um que

simplesmente estude em manuais de retoacuterica admiraacuteveis artifiacutecios (παγκάλων

τεχνημάτων) tais como a maneira de apelar para as emoccedilotildees dos ouvintes a maneira de

dividir o discurso em vaacuterias partes de pronunciaacute-lo de forma concisa (βραχυλογιῶν) e

de se utilizar do estilo figurado (εἰκονολογιῶν) Escreve Platatildeo a este respeito (Ibid

268c-269b)

E que sucederia se agora algueacutem se aproximasse de Soacutefocles e de Euriacutepedes e lhes dissesse que sobre mateacuterias de pouca monta sabia compor longas tiradas e falas muito reduzidas a respeito de assuntos de grande importacircncia mover quando o desejar agrave piedade ou

inversamente causar terror e ameaccedila e tambeacutem outras do mesmo geacutenero ndash e se julgasse que ensinando esses processos transmitia a capacidade de compor trageacutedias [] Porventura natildeo responderia Soacutefocles do mesmo modo a quem lhes fizesse a ele e a Euriacutepedes ostentaccedilatildeo de conhecimentos preliminares da trageacutedia mas natildeo da trageacutedia E Acuacutemeno a quem declarasse conhecer os preliminares da medicina mas natildeo a medicina [] E que pensaremos de ldquoAdrasto da voz de melrdquo ou de Peacutericles se ouvissem os tatildeo admiraacuteveis artifiacutecios que agora mesmo acabamos de referir ndash braquilogias estilo figurado e tantos outros expedientes que passamos em resenha e declaramos necessitarem de ser examinados em plena luz

Conveacutem sublinhar que Soacutecrates natildeo reduz o valor de nenhuma das teacutecnicas acima

em vez disso ele afirma que elas satildeo incompletas sem a genuiacutena arte retoacuterica que

depende do domiacutenio do meacutetodo dialeacutetico Ele sugere que tais teacutecnicas satildeo insuficientes

do mesmo modo que qualquer um chamaria de louco um homem que afirmasse ser um

meacutedico depois de ler sobre como baixar a febre ou um homem que dissesse ser muacutesico

porque consegue alcanccedilar as notas mais altas ou mais baixas Desse modo uma pessoa

que estudou em manuais teacutecnicas retoacutericas apenas estudou os preacute-requisitos da retoacuterica

e natildeo a retoacuterica propriamente dita

43 O desprezo de Platatildeo pela retoacuterica do verossiacutemil

Com efeito Platatildeo rejeita no Fedro a verossimilhanccedila (εἰκός) como fonte da

argumentaccedilatildeo retoacuterica por serem opiniotildees aceitas pelo coletivo o que tornaria o orador

num simples bajulador pois ele se inclinaria a explorar o desejo pelo prazer que eacute

intriacutenseco agrave natureza humana Tal prazer limita-se ao acircmbito da opiniatildeo (δόξα) uma vez

que seu fundamento natildeo estaacute na Ideia que eacute una e estaacutevel mas nos sentidos instaacuteveis e

muacuteltiplos Aleacutem de criticar Liacutesias por natildeo falar nem escrever bem tambeacutem eacute alvo da

criacutetica platocircnica o orador Isoacutecrates o qual se posiciona explicitamente contra as teorias

de Platatildeo Para Isoacutecrates a moral e a poliacutetica estariam limitadas tatildeo somente ao acircmbito

da δόξα pois para ele natildeo existiria qualquer possibilidade de aquisiccedilatildeo de conhecimento

(ἐπιστήμη) relativo ao domiacutenio das accedilotildees praacuteticas nomeadamente as poliacuteticas E ao

contraacuterio de Platatildeo Isoacutecrates natildeo assume que o conhecimento (como o compreende

aquele) eacute um bem a ser adquirido mediante a educaccedilatildeo filosoacutefica porque o mesmo natildeo

proveria as necessidades das accedilotildees humanas33

Mas se eacute manifesto que Platatildeo despreza a opiniatildeo menos ainda faz concessatildeo agrave

opiniatildeo da maioria e isto porque ela se identifica com valores e crenccedilas que se baseiam

no consenso social Aleacutem do mais Platatildeo natildeo admite a verossimilhanccedila porque sua

admissatildeo se configuraria num instrumento sofiacutestico aplicado com dupla finalidade ora

para garantir a comunicaccedilatildeo assegurando valores jaacute conhecidos e aceitos ora para impor-

se fazendo crer que o veiculado constitui-se um saber autecircntico Nesse sentido o Soacutecrates

do Fedro afasta-se substancialmente de Liacutesias de Isoacutecrates e dos sofistas em geral ao dar

prioridade agraves Ideias como as verdadeiras condutoras das almas O bons oradores entatildeo

devem apenas imitar em maior e menor grau a verdade e a beleza que pertencem mais

completamente a elas Agrave vista disso as teses de Soacutecrates sobre a existecircncia das Ideias

revela um compromisso autecircntico de sua parte com a verdade em detrimento das

expressotildees individuais ou culturais dessas verdades que seriam espuacuterias Noutros termos

a boa retoacuterica e a boa filosofia natildeo podem fundamentar seus argumentos no consenso

social pois ambas tendem a buscar uma existecircncia real agrave parte das crenccedilas e valores

compartilhados pela maioria dos cidadatildeos

Todavia os escritores de manuais de retoacuterica criticados por Soacutecrates sustentam que

natildeo eacute necessaacuterio conhecer a verdade a respeito dos atos justos ou bons e acerca dos

homens que satildeo o que satildeo por natureza ou por educaccedilatildeo Eles tambeacutem asseguram que nos

tribunais natildeo interessa absolutamente a ningueacutem a verdade das coisas mas simplesmente

o que seja persuasivo E tal poder de persuasatildeo residiria no provaacutevel a que deve aplicar-

se quem deseja falar com arte porquanto existem casos em que de modo algum conveacutem

referir fatos que realmente aconteceram se natildeo se deram de forma verossiacutemil Os

oradores portanto devem falar de verossimilhanccedilas tanto na acusaccedilatildeo quanto na defesa

e de modo geral ao discursar eacute preferiacutevel que procurem o provaacutevel em desfavor do

verdadeiro porque eacute a probabilidade que presente no discurso abre caminho a toda arte

(Ibid 272d-273a)

33 De acordo com Isoacutecrates natildeo eacute possiacutevel agrave natureza humana adquirir o tipo de conhecimento atraveacutes do qual saberiacuteamos o que se deve fazer ou dizer Natildeo obstante ele considera saacutebios aqueles que pela opiniatildeo descobrem o que eacute o melhor e filoacutesofos aqueles que se ocupam com aquilo por meio do que obteratildeo tal tipo de sabedoria o mais raacutepido possiacutevel (Ant 271) ldquoἐπειδὴ γὰρ οὐκ ἔνεστιν ἐν τῇ φύσει τῇ τῶν ἀνθρώπων ἐπιστήμην λαβεῖν ἣν ἔχοντες ἂν εἰδεῖμεν ὅ τι πρακτέον ἤ λεκτέον ἐστίν ἐκ τῶν λοιπῶν σοφοὺς μὲν νομίζω τοὺς ταῖς δόξαις ἐπιτυγχάνειν ὡς ἐπὶ τὸ πολὺ τοῦ βελτίστου δυναμένους φιλοσόφους δὲ τοὺς ἐν τούτοις διατρίβοντας ἐξ ὧν τάχιστα λήψονται τὴν τοιαύτην φρόνησινrdquo

Em vez de procurarem a verdade os escritores de manuais de retoacuterica

contentavam-se fundamentalmente com o verossiacutemil e o provaacutevel mas Soacutecrates natildeo

procura convencecirc-los da necessidade de dizer a verdade pois como procede

frequentemente coloca-se no ponto de vista dos adversaacuterios para neste campo lhes

demonstrar que tambeacutem para eles o conhecimento da verdade eacute indispensaacutevel Assim

sendo a descoberta do εἰκός em que mormente se baseia a argumentaccedilatildeo retoacuterica

pressupotildee o conhecimento da verdade porque o εἰκός natildeo eacute outra coisa senatildeo o que

aparece semelhante agrave verdade (Ibid 273d)

Dentre os escritores de manuais censurados por Soacutecrates o siracusano Tiacutesias merece

especial destaque Tiacutesias foi disciacutepulo de Coacuterax (que eacute considerado o fundador da arte

retoacuterica) e mestre dos famosos sofistas Liacutesias e Goacutergias Para Tiacutesias a probabilidade seria

mais digna de estima do que a verdade (Τεισίαν δὲ Γοργίαν τε ἐάσομεν εὕδειν οἳ πρὸ

τῶν ἀληθῶν τὰ εἰκότα εἶδον ὡς τιμητέα μᾶλλον) Ele tambeacutem fazia com que os

argumentos pequenos parecessem grandes e os grandes parecessem pequenos em virtude

da forccedila da palavra (Ibid 267a) Tiacutesias ainda defendia que o verossiacutemil surge amiuacutede no

espiacuterito da maioria (πολλοῖς) devido agrave semelhanccedila com a verdade (Ibid 273d)

Entretanto para Soacutecrates unicamente a verdade deve ser objeto de investigaccedilatildeo e de

veiculaccedilatildeo e natildeo somente nos limites da filosofia mas tambeacutem no acircmbito da arte retoacuterica

Isto posto a retoacuterica que natildeo declara efetivamente a verdade natildeo faria outra coisa senatildeo

caccedilar opiniotildees e constituir-se-ia numa praacutetica ridiacutecula e natildeo numa autecircntica arte

Vecirc-se que Platatildeo persiste no antagonismo entre dois tipos de retoacuterica uma retoacuterica

que visa declarar a verdade a essecircncia das coisas e outra que visa somente produzir

aparecircncias e criar ilusotildees A primeira deve estar pautada na verdade indubitaacutevel pois

aquele que pronuncia determinada tese deve conhecer cabalmente aquilo do que vai falar

pois conforme jaacute examinado a primeira condiccedilatildeo estabelecida por Soacutecrates para o bom

discurso eacute que o orador conheccedila a verdade sobre o assunto que tenciona discutir (Ibid

259e)

Fedro contraporaacute a essa tese uma perspectiva diferente a existecircncia de uma retoacuterica

cuja base natildeo eacute a verdade mas a verossimilhanccedila Ele argumenta que cabe agrave audiecircncia

decidir se o discurso retoacuterico eacute eficaz ou natildeo porque ndash observa ele ndash o orador deve

conhecer natildeo a realidade do que eacute justo bom ou belo mas sim o que parece aos ouvintes

jaacute que satildeo estes afinal que iratildeo emitir o juiacutezo de valor sobre o que foi dito (Ibid 260a)

A respeito disso meu caro Soacutecrates ouvi dizer o seguinte quem se quer tornar orador natildeo tem necessidade de conhecer o que realmente eacute justo mas o que aparente secirc-lo agrave multidatildeo que deve julgar natildeo o que na realidade eacute bom e belo mas quanto daacute essa aparecircncia jaacute que daiacute deriva a persuasatildeo e natildeo da verdade

Para Soacutecrates em contrapartida o orador que ignora em estado de vigiacutelia ou em

sono a noccedilatildeo de justo ou injusto de mau ou de bom natildeo pode escapar nunca agrave censura

que merece ainda que a multidatildeo o louve (Ibid 277e) Soacutecrates rejeita a concepccedilatildeo de

Fedro sob o argumento de que no acircmbito da retoacuterica a demonstraccedilatildeo baseada na

verossimilhanccedila deve ceder lugar agrave demonstraccedilatildeo baseada unicamente na verdade E se

o uacutenico criteacuterio atraveacutes do qual o discurso retoacuterico torna-se legiacutetimo eacute a verdade entatildeo

natildeo conveacutem ao orador determinar segundo seus interesses a natureza dos assuntos

tratados no discurso mas deve sempre o orador pronunciar a verdade independentemente

se a mensagem agrade ou natildeo sua audiecircncia Ainda que o discurso conduza os ouvintes a

odiar o orador pelo teor das palavras que profere esta atitude deve caracterizar todo

aquele que se propotildee a esta atividade A retoacuterica digna do filoacutesofo aquela que

conquistaria por suas razotildees os proacuteprios deuses deve ser condicionada pela verdade e

natildeo pelo consenso social O orador portanto jamais deve preocupar-se em agradar os

homens mas somente os deuses e proferir um discurso digno deles (Ibid 273e 274b

274c)

E este resultado natildeo pode adquirir nunca sem muita aplicaccedilatildeo que quem for sensato deve exercitar natildeo com vista a falar e conviver com os homens mas para se tornar capaz duma linguagem e duma conduta que sejam o mais possiacutevel do agrado dos deuses [] Sabes na verdade qual eacute o melhor meio de agradar a divindade em mateacuteria de discursos quer na praacutetica quer na teoria [] No entanto se conseguiacutessemos descobri-la por noacutes mesmos acaso precisariacuteamos ainda nos preocupar com as opiniotildees dos homens

Um dos defeitos especiacuteficos da praacutetica retoacuterica censurada por Platatildeo nos seus

diaacutelogos consiste na tendecircncia a agradar os homens Ele rejeita essa noccedilatildeo em favor da

tese de que eacute necessaacuterio falar e agir a fim de agradar somente a divindade No diaacutelogo

Leis num expliacutecito contraste com a doutrina do homem-medida de Protaacutegoras Platatildeo

defende que deus eacute a medida de todas as coisas natildeo o homem (ὁ δὴ θεὸς ἡμῖν πάντων

χρημάτων μέτρον ἂν εἴη μάλιστα καὶ πολὺ μᾶλλον ἤ πού τις ὥς φασιν ἄνθρωπος)

Assim para ser amado pelos deuses todo homem teraacute necessariamente de tornar-se

semelhante a eles e isto na medida das suas possibilidades (Leis 716c) Conveacutem

sublinhar a este respeito a pertinente anaacutelise de Barbara Cassin segundo a qual a retoacuterica

defendida por Platatildeo no Fedro possuiria uma tarefa sem duacutevida infinita uma vez que ela

se aplica a todos e a tudo que ela natildeo existe sem o conhecimento da verdade e dos entes

e que seu momento-chave seria a τέχνη διαλεκτική De tal forma que um homem sensato

jamais deveria se esforccedilar para falar e agir em relaccedilatildeo com os homens mas para poder

fazer discursos que tecircm o favor dos deuses e agir tanto quanto possiacutevel de forma a obter

o favor deles Assim em sua relaccedilatildeo com o divino a arte retoacuterica seria o nome do projeto

pedagoacutegico infinito da filosofia ateacute mesmo para o proacuteprio filoacutesofo de tal modo que a

retoacuterica do Fedro ateacute poderia ser identificada com a proacutepria filosofia (CASSIN 2005

155)

Segundo Platatildeo o discurso retoacuterico que natildeo exprime o que a coisa necessariamente

eacute tambeacutem deixa de ser uma praacutetica moral e se afasta do dom dos deuses que avalia com

certeza os homens suas accedilotildees e aquilo que os cerca De dom divino ndash a recordaccedilatildeo da

Ideia do justo do belo e do bom que constitui a mais sublime das possessotildees divinas ndash o

discurso torna-se um simples instrumento de poder sobretudo para os sofistas que pela

seduccedilatildeo dos seus discursos atraem os favores das multidotildees O projeto de Platatildeo tenciona

restaurar com uma justificaccedilatildeo filosoacutefica uma crenccedila em criteacuterios absolutos e verdades

permanentes e invariaacuteveis existindo agrave parte da alma humana e natildeo afetadas por fenocircmenos

sensiacuteveis e accedilotildees individuais E acompanha-se isso por uma visatildeo do mundo como

produto da inteligecircncia divina A retoacuterica filosoacutefica de Platatildeo exposta no Fedro se oporia

agrave neutralidade da linguagem proposta pelos sofistas e estabeleceria como ideal uma

linguagem normativa a qual seria capaz de realizar a uniatildeo entre a eacutetica e a retoacuterica

Assim a diferenccedila entre a retoacuterica filosoacutefica e a retoacuterica sofiacutestica eacute normativa a retoacuterica

sofiacutestica eacute moralmente deficiente porque natildeo busca conduzir as multidotildees agraves Ideias ao

passo que a retoacuterica de Platatildeo sempre se nutre da preocupaccedilatildeo com seus interlocutores

uma preocupaccedilatildeo que em uacuteltima instacircncia se mostra em suas tentativas de aproximaacute-los

das Ideias que satildeo valores morais que fundam os juiacutezos sobre as coisas da vida humana

Por essa razatildeo os discursos escritos qualquer que seja o assunto natildeo merecem creacutedito

algum se neles inexiste a intenccedilatildeo de instruir moralmente os ouvintes tendo em vista

apenas a persuasatildeo (Fed 278a)

O que considerar que existe necessariamente uma dose abundante de divertimentos dos discursos escritos qualquer que seja o assunto e que nenhum deles em verso ou em prosa merece grande atenccedilatildeo ao ser escrito ou ao ser pronunciado como fazem os rapsodos sem espiacuterito criacutetico e sem intenccedilatildeo de instruir mas visando apenas a persuasatildeo que na realidade os melhores desses discursos constituem

um meio de suscitar a recordaccedilatildeo em quem jaacute sabe O que considerar pelo contraacuterio que os destinados ao ensino feitos para instruir e realmente escritos na alma a respeito do justo do belo e do bom satildeo os uacutenicos que mostram clareza perfeiccedilatildeo e merecem o nosso esforccedilo

Em conexatildeo com este assunto conveacutem reportar-se ao que Platatildeo escrevera no

diaacutelogo Goacutergias Soacutecrates pergunta ao sofista Goacutergias se a persuasatildeo que a retoacuterica

produz nos tribunais e nas aglomeraccedilotildees a respeito do justo ou do injusto eacute a que gera

crenccedila (ou opiniatildeo) sem o saber ou a que gera o saber A resposta de Goacutergias eacute categoacuterica

no sentido de sustentar que a persuasatildeo retoacuterica natildeo eacute geradora de saber mas de crenccedila

Isto posto a arte retoacuterica de Goacutergias seria simplesmente artiacutefice da persuasatildeo que infunde

crenccedila mas natildeo ensina nada a respeito do justo e do injusto Por isso o orador natildeo estaria

apto a ensinar nos tribunais e nas demais aglomeraccedilotildees a respeito do justo e do injusto

mas somente a fazecirc-los crer uma vez que ele natildeo seria capaz de ensinar a tamanha

multidatildeo em pouco tempo coisas tatildeo valiosas (Goacuterg 454e-455a)

Tendo em vista a concepccedilatildeo retoacuterica de Goacutergias exposta acima os oradores natildeo

teriam por objetivo alcanccedilar o supremo bem a fim de que os cidadatildeos sejam melhores ao

maacuteximo em virtude de seus discursos pelo contraacuterio eles deveriam devotar-se para o

deleite dos ouvintes negligenciando o interesse geral em vista do particular A despeito

de tudo isso Soacutecrates admite a possibilidade de uma boa retoacuterica ou seja uma retoacuterica

voltada natildeo para o deleite dos ouvintes mas para o seu benefiacutecio (Ibid 503b 504e)

Isso basta Se eacute duacuteplice uma parte dela seria adulaccedilatildeo e oratoacuteria puacuteblica vergonhosa ao passo que a outra seria bela que se dispotildee para tornar melhores ao maacuteximo as almas dos cidadatildeos e as defende dizendo o que eacute melhor seja isso mais apraziacutevel ou menos apraziacutevel aos ouvintes Mas retoacuterica como essa jamais viste ou melhor se pode nomear um reacutetor desse tipo por que natildeo me disseste quem ele eacute [] Ele teraacute sua mente continuamente fixa nesse escopo a fim de que a justiccedila surja nas almas de seus concidadatildeos e da injusticcedila se libertem a fim de que a temperanccedila surja e da intemperanccedila se libertem a fim de que toda e qualquer virtude surja e o viacutecio parta

Em outro passo do diaacutelogo em apreccedilo Soacutecrates declara para Polo que a retoacuterica soacute

seraacute uacutetil para a cidade se estiver vinculada com a defesa da justiccedila independente dos

prejuiacutezos que poderatildeo ocorrer com o orador em virtude de sua coragem de acusar de

injusticcedila os amigos os parentes ou ainda sua paacutetria (Ibid 480b-d)

Pois bem para a defesa da injusticcedila quer de sua proacutepria injusticcedila dos parentes dos amigos dos filhos ou de sua proacutepria paacutetria a retoacuterica natildeo nos eacute minimamente uacutetil Polo a natildeo ser que algueacutem conceba seu uso em sentido contraacuterio deve-se acusar

antes de tudo a si mesmo e entatildeo os familiares ou outro amigo qualquer sempre que se cometa alguma injusticcedila ao inveacutes de ocultaacute-lo deve-se trazer agrave luz o ato injusto a fim de pagar a justa pena e se tornar saudaacutevel deve-se constranger a si mesmo e aos demais a natildeo se acovardarem mas a se apresentarem de olhos cerrados correta e corajosamente [] deve-se ser primeiro a acusar a si proacuteprio e aos demais familiares e utilizar a retoacuterica com este escopo a fim de que uma vez fuacutelgidos os atos injustos cometidos se livrem do maior mal da injusticcedila

Ainda no diaacutelogo Goacutergias Soacutecrates sugere a Caacutelicles que o fato de ser expulso da

cidade ou na situaccedilatildeo limite perder a proacutepria vida natildeo eacute uma vergonha para o orador que

se propotildee falar a verdade para seus ouvintes O mais vergonhoso natildeo eacute ter a tecircmpora

rachada injustamente ou ter a bolsa ou o corpo lacerados mas o pior e mais vergonhoso

eacute cometer a injusticcedila (Ibid 508d-e) Sendo assim independente dos efeitos do discurso

dos seus resultados praacuteticos o orador deve acusar se for necessaacuterio natildeo somente a si

mesmo mas tambeacutem os familiares os amigos ou qualquer outra pessoa sempre que se

cometa alguma injusticcedila

Verificamos no iniacutecio do capiacutetulo 2 que o Soacutecrates da Defesa de Soacutecrates ndash

histoacuterico questionador moral e ironista ndash atua como um retoacuterico na medida em que

procura persuadir os seus ouvintes mas em vez de agradar e tentar obter a aprovaccedilatildeo

deles ele procura explicitamente encorajaacute-los a se tornarem pessoas mais virtuosas

Soacutecrates entatildeo faz do seu processo judicial um processo filosoacutefico pois entendia a si

mesmo como um indiviacuteduo incumbido de despertar a cidade de Atenas para o

conhecimento de si e para a praacutetica das virtudes tarefa que lhe foi confiada pelo deus de

Delfos em relaccedilatildeo agrave qual ele ligou sua existecircncia Outrossim Soacutecrates propotildee comunicar

o seu discurso judicial numa linguagem ordinaacuteria que se apresenta diretamente em sua

alma em coerecircncia com o que acredita ser verdadeiro e se for o caso em detrimento da

proacutepria vida A propoacutesito em duas ocasiotildees Soacutecrates revela o risco de ser morto em

decorrecircncia de suas convicccedilotildees filosoacuteficas Na condiccedilatildeo de priacutetane enfrentou o perigo ao

lado da lei e da justiccedila em vez de se colocar ao lado do Conselho por medo da prisatildeo ou

da morte E no tocante agrave ordem dos tiranos ele declara que mostrou natildeo com palavras

mas por atos que a morte natildeo tem a menor importacircncia quando esta se contrapotildee agrave justiccedila

e agrave verdade Divisamos ainda que tanto para o estudo da retoacuterica como para muitos outros

importantes temas da obra de Platatildeo o diaacutelogo Defesa de Soacutecrates constituiu um ponto

de partida fundamental Pode-se assegurar entatildeo que o discurso que Soacutecrates proferiu

em sua proacutepria defesa diante do tribunal de Atenas forneceu na medida do possiacutevel as

primeiras indicaccedilotildees para a compreensatildeo da posiccedilatildeo de Platatildeo acerca da arte retoacuterica

expressa sobretudo nos diaacutelogos Fedro e Goacutergias A partir de agora analisar-se-aacute a

concepccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles e seu contraste em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo retoacuterica de

Platatildeo bem como as presumiacuteveis razotildees pelas quais o Estagirita teria se afastado do

pensamento de seu mestre

5 A retoacuterica de Aristoacuteteles e seu contraste com a retoacuterica de Platatildeo

51 A distinccedilatildeo aristoteacutelica entre ciecircncia e arte retoacuterica

Considerando-se que houve no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles duas fases

distintas quais sejam a fase juvenil intimamente ligada agrave filosofia de Platatildeo e a fase que

refletiria a maturidade do seu pensamento a qual teria recebido forte influecircncia da

sofiacutestica pode-se assegurar que a arte retoacuterica de Aristoacuteteles situa-se equidistante tanto

em relaccedilatildeo agrave posiccedilatildeo dos sofistas quanto agrave posiccedilatildeo de Platatildeo Em relaccedilatildeo aos sofistas ele

rejeita explicitamente o relativismo eacutetico porque o orador jamais deve persuadir seus

ouvintes acerca do que eacute imoral mesmo sendo capaz de fazecirc-lo Portanto a fim de

preservar a retoacuterica da sofiacutestica e para que a poliacutetica seja devidamente protegida do

relativismo o Estagirita atribui agrave arte retoacuterica uma funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica Em relaccedilatildeo a

Platatildeo o Estagirita rejeita a identificaccedilatildeo pura e simples do discurso retoacuterico com a

verdade (ἀλήθεια) substituindo-a pela verossimilhanccedila (εἰκός) pois em sua visatildeo quem

se quer tornar orador natildeo tem necessidade de conhecer o que realmente eacute mas o que

aparente secirc-lo agrave multidatildeo que deve julgar Deveras o interesse de Aristoacuteteles pela retoacuterica

leva-o a concebecirc-la sob duas perspectivas que correspondem a dois compromissos

distintos mas coexistentes no interior do amplo campo das preocupaccedilotildees humanas a

defesa da verdade e da justiccedila na cidade e a admissatildeo e veiculaccedilatildeo das crenccedilas geralmente

aceitas pelo conjunto dos cidadatildeos Esses dois compromissos se afiguram grosso modo

no nuacutecleo da conciliaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo e a dos sofistas

Aristoacuteteles opotildeem-se aos sofistas para os quais tudo eacute relativo admitindo que

existe uma ciecircncia inteiramente exata E assim como Platatildeo ele admite uma ciecircncia que

por via demonstrativa parta do verdadeiro para chegar ao verdadeiro mas ao mesmo

tempo ele objeta que a ciecircncia mais exata tenha relevacircncia para persuadir certos

auditoacuterios aos quais falta a devida instruccedilatildeo filosoacutefica Dessarte no discurso retoacuterico natildeo

eacute preciso veicular verdades filosoacuteficas ou cientiacuteficas ao inveacutes disso eacute preciso utilizar

noccedilotildees que satildeo acessiacuteveis aos ouvintes comuns Isto posto eacute mister compreendermos o

que substancialmente distingue a concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo elaborada sobretudo no

diaacutelogo Fedro da concepccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles exposta nos trecircs livros da Retoacuterica

No seu tratado sobre a arte retoacuterica o Estagirita procura neutralizar o antagonismo

entre a verdade e a verossimilhanccedila que caracteriza a concepccedilatildeo platocircnica exposta no

diaacutelogo Fedro mediante a separaccedilatildeo de dois domiacutenios legitimamente autocircnomos ndash o

domiacutenio da filosofia (φιλοσοφία) ou da ciecircncia (ἐπιστήμη) que para Aristoacuteteles satildeo

termos equivalentes34 e o domiacutenio da retoacuterica (ῥητορική) Conveacutem lembrar que no Fedro

Platatildeo tambeacutem separa a filosofia da retoacuterica Ambas as disciplinas seriam distintas

poreacutem natildeo seriam autocircnomas Para ele a filosofia seria a disciplina principal e a retoacuterica

a secundaacuteria uma vez que eacute a filosofia que fornece agrave retoacuterica todas as condiccedilotildees para

tornar-se uma legiacutetima arte No entanto para Aristoacuteteles tanto a filosofia (cujo objeto eacute

a verdade) como a retoacuterica (cujo objeto eacute a verossimilhanccedila ou a probabilidade) adquirem

legitimidade no seu campo proacuteprio de atuaccedilatildeo sem que haja qualquer oposiccedilatildeo entre elas

Sendo assim Aristoacuteteles reabilita a arte retoacuterica ao integraacute-la numa visatildeo sistemaacutetica do

mundo onde ela ocupa o seu lugar sem ocupar o lugar todo como queriam os sofistas

tampouco submete-a inteiramente agrave eacutegide da filosofia como queria Platatildeo Enfim a arte

retoacuterica de Aristoacuteteles seria uma disciplina distinta e autocircnoma e a despeito de ser uma

arte (τέχνη) e uma faculdade (δύναμις) e ateacute mesmo um tipo de conhecimento

(ἐπιστήμη) posto que tambeacutem procura conhecer pela causa (αἰτία) ela certamente natildeo se

confunde com a sofiacutestica nem com a filosofia

Eacute manifesto que a filosofia tem por finalidade descobrir a verdade e natildeo eacute agrave toa

que Aristoacuteteles a designa como ldquoἐπιστήμην τῆς ἀληθείαςrdquo ou seja ldquoa ciecircncia da verdaderdquo

(Met 993b 20) A retoacuterica por sua vez preocupa-se com aquilo que pensam os homens

em geral com as crenccedilas compartilhadas pelo consenso social tendo como objetivo a

persuasatildeo A filosofia busca o conhecimento universal e necessaacuterio enquanto que a

retoacuterica volta-se para o particular plausiacutevel e como tal aceito pela maioria dos homens

Na condiccedilatildeo de uma disciplina praacutetica a retoacuterica deve preocupar-se em conhecer os

particulares pois a accedilatildeo humana tem a ver com os particulares e natildeo com os universais

E apesar de natildeo saber muitas coisas em geral o orador pode atuar de maneira mais eficaz

do que os saacutebios no que respeita agraves questotildees ligadas agraves accedilotildees humanas (Eacutet Nic 1141b

15-20) Aliaacutes a retoacuterica versa sobre questotildees que satildeo em certa medida da competecircncia

comum de todos os homens por isso a sua atuaccedilatildeo se exerce no campo conflitivo das

opiniotildees humanas Platatildeo entretanto estabelece um elevadiacutessimo padratildeo para o orador

34 Para C D C Reeve Aristoacuteteles aplica com frequecircncia o termo ldquoφιλοσοφίαrdquo a qualquer ciecircncia que mire a verdade e natildeo a accedilatildeo Nesse sentido todas as ciecircncias teoacutericas em geral contariam como ramos da φιλοσοφία a qual seria mais ou menos equivalente ao termo ldquoἐπιστήμηrdquo (REEVE 2014 296)

que deseja cumprir os requisitos de uma verdadeira arte ele exige que o orador seja

efetivamente um filoacutesofo Sendo assim o orador que natildeo cultivar a filosofia e natildeo possuir

o conhecimento universal e necessaacuterio relativo agrave verdade mas insistir em valorizar as

opiniotildees das multidotildees transformaraacute a retoacuterica numa praacutetica ridiacutecula desprovida de valor

artiacutestico

Pode-se assegurar que Aristoacuteteles (o qual foi o mais autecircntico disciacutepulo de Platatildeo

visto que partiu de suas aporias e procurou superaacute-las) leva em consideraccedilatildeo todas as

objeccedilotildees de seu mestre contra a retoacuterica nos diaacutelogos Goacutergias e Fedro Ele ateacute procura

cumprir algumas de suas exigecircncias mas como eacute natural o faz apenas de modo parcial

Isto ocorre porque as exigecircncias de Platatildeo especialmente no diaacutelogo Fedro incorrem no

postulado de que os verdadeiros oradores precisam ser genuiacutenos filoacutesofos No entanto

comprometido com a criacutetica de uma ciecircncia unitaacuteria o Estagirita rejeita a estrateacutegia

platocircnica no sentido de construir uma coextensatildeo entre a filosofia e a retoacuterica Em vez

disso ele atribui uma capacidade especiacutefica agrave retoacuterica que pode ser aprendida por todos

os cidadatildeos em termos de uma democratizaccedilatildeo e natildeo apenas por poucos iniciados apoacutes

um longo percurso formativo Dessarte todas as pessoas participariam em certa medida

da retoacuterica porque todas elas (seja por acaso ou por haacutebito) mormente procuram discutir

e sustentar teses realizar a proacutepria defesa e acusar os outros

Com efeito nos assuntos em que os sofistas estavam interessados o ponto de vista

aristoteacutelico parece estar de muitas formas mais proacuteximo ao deles que ao de Platatildeo Eacute

manifesto que o Estagirita partilha da perspectiva teleoloacutegica de Platatildeo pois embora

tivesse abandonado a transcendecircncia das Ideias platocircnicas continua acreditando na

existecircncia de substacircncias ou essecircncias permanentes correspondendo aos termos

universais Outrossim ele faz a distinccedilatildeo categoacuterica entre os fins e por conseguinte entre

os meacutetodos da pesquisa cientiacutefica de um lado e a inquiriccedilatildeo dos problemas ligados agraves

accedilotildees humanas de outro Em relaccedilatildeo agrave pesquisa cientiacutefica deve-se exigir os mais

rigorosos padrotildees de exatidatildeo poreacutem estes seriam inadequados para o estudo da arte

retoacuterica que eacute empreendido natildeo para fins teoacutericos mas para fins praacuteticos E no acircmbito da

eacutetica o abandono das normas ou modelos morais absolutos de Platatildeo teve consequecircncias

de longo alcance porquanto tornava possiacutevel a distinccedilatildeo entre teoria e praacutetica

conhecimento cientiacutefico e accedilatildeo que para o pensamento platocircnico satildeo coisas

indissociaacuteveis

A noccedilatildeo de que a filosofia e a retoacuterica possuem legitimidade no seu respectivo

campo de atuaccedilatildeo a primeira tendo por finalidade a verdade enquanto que segunda a

probabilidade assoma no registro histoacuterico de Dioacutegenes Laeacutercio de maneira bem

definida Este atribui a Aristoacuteteles a asserccedilatildeo de que a filosofia divide-se em duas grandes

partes a praacutetica e a teoacuterica A primeira incluiria a eacutetica e a poliacutetica agrave medida em que a

segunda incluiria a fiacutesica e a loacutegica Ele ainda explicita que a loacutegica a qual natildeo seria uma

ciecircncia independente mas um instrumento para as demais ciecircncias tem uma dupla

finalidade a probabilidade e a verdade E para cada uma dessas finalidades Aristoacuteteles

utilizaria duas faculdades a dialeacutetica e a retoacuterica para a probabilidade a anaacutelise e a

filosofia para a verdade sem nada negligenciar do que leva agrave descoberta ao juiacutezo ou agrave

utilidade Agrave descoberta ele teria dedicado os Toacutepicos os Metoacutedicos e numerosas

proposiccedilotildees atraveacutes das quais eacute possiacutevel dispor de argumentos provaacuteveis para resolver

certos problemas Para os juiacutezos ele teria composto tanto os Primeiros quanto os

Segundos Analiacuteticos Mediante os Primeiros Analiacuteticos julgar-se-iam as premissas e

atraveacutes dos Segundos Analiacuteticos provar-se-iam as conclusotildees E acerca do uso praacutetico

Aristoacuteteles teria deixado os preceitos sobre controversas sobre o procedimento mediante

perguntas e respostas sobre refutaccedilotildees sofiacutesticas sobre silogismos e muitas outras coisas

(Vid doutr fil il V 1 28-29)

Tendo em conta a separaccedilatildeo aristoteacutelica de dois domiacutenios legitimamente

autocircnomos o da filosofia e o da retoacuterica conveacutem compreendermos grosso modo a

natureza do conhecimento cientiacutefico a fim de comparaacute-lo ulteriormente com o tipo de

premissa que fundamenta os argumentos retoacutericos Conforme a anaacutelise de Robin Smith

Aristoacuteteles aborda o conhecimento cientiacutefico nos Segundos Analiacuteticos num sentido

preciso sentido para o qual ele usa a palavra ldquoἐπιστήμηrdquo Επιστήμη seria um corpo de

conhecimentos sobre determinado assunto organizado num sistema demonstrativo cujo

modelo satildeo as disciplinas matemaacuteticas da aritmeacutetica e da geometria que no seu tempo

eram apresentadas como seacuteries sistemaacuteticas de deduccedilotildees partindo de primeiros princiacutepios

baacutesicos35 Dessa maneira o conceito central dos Segundos Analiacuteticos consiste na

35 Para Enrico Berti a maior parte dos exemplos e termos dos quais Aristoacuteteles se serve nos Segundos Analiacuteticos satildeo extraiacutedos da geometria significando que esta ciecircncia representa o modelo de conhecimento cientiacutefico por ele teorizado Para Berti a geometria foi a primeira ciecircncia descoberta pelos gregos e a uacutenica que alcanccedilou no tempo do Estagirita um estatuto epistecircmico quase definitivo principalmente pelo impulso que recebera no seio da academia platocircnica por obra de matemaacuteticos como Eudoxo Teeteto e o proacuteprio Platatildeo Ademais natildeo seria casual que a realizaccedilatildeo plena das indicaccedilotildees contidas nos Segundos Analiacuteticos encontre-se nos Elementos de Euclides natildeo porque este dependa de Aristoacuteteles ao qual eacute posterior em alguns anos mas tambeacutem porque ele simplesmente sistematizou uma geometria jaacute existente no tempo de Aristoacuteteles a qual teria sido elaborada em grande medida por Eudoxo (BERTI 1998 10)

demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) que eacute uma espeacutecie de deduccedilatildeo Uma explicaccedilatildeo do

conhecimento que resulta de demonstraccedilotildees seria simplesmente uma explicaccedilatildeo do que eacute

conhecer as premissas e o conhecimento da conclusatildeo seguiria automaticamente Assim

ter conhecimento cientiacutefico de p eacute conhecer por que p eacute verdadeiro eacute saber a resposta agrave

questatildeo ldquopor que p eacute o casordquo Tal resposta teraacute a forma ldquoporque q e r do que decorre

prdquo Para que a resposta seja adequada as premissas q e r precisam ser verdadeiras e a

conclusatildeo p tem de seguir-se delas Isto posto uma ἀπόδειξις tem de ser um argumento

vaacutelido com premissas verdadeiras que se sabe serem verdadeiras (BARNES 2009 81-

82)

Aristoacuteteles assevera nos Segundos Analiacuteticos que pensamos conhecer

cientificamente alguma coisa natildeo agrave maneira dos sofistas quando pensamos conhecer

tanto a causa em funccedilatildeo da qual uma coisa eacute como tambeacutem que natildeo eacute possiacutevel que ela

seja de outra maneira Tal concepccedilatildeo parece excluir qualquer conhecimento de fatos

meramente contingentes Segue ipsis litteris a ceacutelebre asserccedilatildeo de Aristoacuteteles a respeito

da natureza do conhecimento cientiacutefico (Seg Anal 71b 9-15)

Julgamos conhecer cientificamente uma coisa qualquer sem mais (e natildeo de modo sofiacutestico por concomitacircncia) quando julgamos conhecer a respeito da causa pela qual a coisa eacute que ela eacute causa disso e que natildeo eacute possiacutevel ser de outro modo Eacute evidente que conhecer cientificamente eacute algo deste tipo pois tanto os que natildeo conhecem julgam estar assim dispostos como tambeacutem os que conhecem assim se dispotildeem de fato por conseguinte eacute impossiacutevel que seja de outro modo aquilo de que sem mais haacute conhecimento cientiacutefico

Tendo em consideraccedilatildeo a passagem supracitada eacute manifesto que Aristoacuteteles atribui

ao conhecimento cientiacutefico duas caracteriacutesticas fundamentais O conhecimento cientiacutefico

de um objeto qualquer envolve o conhecimento de sua causa (αἰτία) que deve ser

entendida como a razatildeo a explicaccedilatildeo de um fato de um comportamento ou de uma

propriedade O conhecimento cientiacutefico tambeacutem envolve a necessidade (ἀνάγκη) de suas

conclusotildees ou seja a impossibilidade de que quando se conhece cientificamente um

certo estado de coisas estas sejam diferentes de como satildeo conhecidas Essas

caracteriacutesticas por conseguinte satildeo asseguradas pela demonstraccedilatildeo ou pelo silogismo

cientiacutefico que tem lugar quando as premissas satildeo verdadeiras primeiras imediatas mais

cognosciacuteveis que a conclusatildeo anteriores a ela e causas dela (Ibid 271b 16-19) O

conhecimento cientiacutefico portanto natildeo pode ser constituiacutedo por simples experiecircncias as

quais se relacionam com fatos contingentes ou seja fatos que poderiam ser de uma

maneira ou de outra mas deve ser identificado com aquilo que eacute necessaacuterio E uma

proposiccedilatildeo eacute necessaacuteria quando em hipoacutetese alguma pode ser concebida de modo

diferente (Ibid 74b 5 74b 13)

Visto que o conhecimento demonstrativo proveacutem de princiacutepios necessaacuterios (pois aquilo que se conhece cientificamente natildeo pode ser de vaacuterios modos) [] Com efeito devemos afirmaacute-lo ou deste modo ou estabelecendo como princiacutepio que a demonstraccedilatildeo eacute necessaacuteria ou seja se algo estaacute demonstrado natildeo eacute possiacutevel que seja de outro modo portanto eacute preciso que tal silogismo proceda de itens necessaacuterios

Em conexatildeo com a definiccedilatildeo de conhecimento cientiacutefico exposta nos Segundos

Analiacuteticos o Estagirita explicita na Eacutetica a Nicocircmaco que todas as afirmaccedilotildees verdadeiras

tecircm de ser eternas porque natildeo pode haver conhecimento genuiacuteno de coisas que podem

ser modificadas ou destruiacutedas Para ele os objetos de conhecimento cientiacutefico possuem

intrinsecamente uma constituiccedilatildeo necessaacuteria por isso satildeo eternos ou seja natildeo satildeo

gerados nem destruiacutedos (Eacutet Nic 1139b 23-25) Todavia conveacutem frisar que o caraacuteter de

necessidade da ciecircncia compreendida em sentido aristoteacutelico eacute amiuacutede indicado atraveacutes

da afirmaccedilatildeo de que ἐπιστήμη constitui o conhecimento de coisas que existem sempre o

que natildeo significa que todos os objetos da ciecircncia sejam substacircncias eternas mas que satildeo

eternos os nexos entre certos objetos e certas propriedades suas das quais se obtecircm

ciecircncia O nexo entre o triacircngulo e a propriedade de ter a soma dos acircngulos internos igual

a dois retos eacute eterno O triacircngulo tem sempre essa propriedade ou seja qualquer triacircngulo

em qualquer situaccedilatildeo a tem (BERTI 1998 5) E assim como todo conhecimento

cientiacutefico parece ser suscetiacutevel de ser ensinado tambeacutem o que eacute objeto de conhecimento

cientiacutefico eacute suscetiacutevel de ser aprendido Outrossim o conhecimento cientiacutefico eacute uma

disposiccedilatildeo com capacidade demonstrativa mas se natildeo tiver os princiacutepios tatildeo bem

conhecidos quanto a conclusatildeo natildeo poderaacute ser considerado como tal mas apenas

acidentalmente (Eacutet Nic 1139b 25-35)

Aleacutem do mais assim como todo conhecimento cientiacutefico parece ser suscetiacutevel de ser ensinado tambeacutem o que eacute objeto de conhecimento cientiacutefico eacute suscetiacutevel de ser aprendido Todo o ensino se faz a partir daqueles conhecimentos que se adquiriram previamente tal como dissemos nos Analiacuteticos [] O conhecimento cientiacutefico eacute uma disposiccedilatildeo com capacidade demonstrativa ndash a qual acresce como definiccedilatildeo tudo aquilo que dissemos nos Analiacuteticos Quando algueacutem adquire de algum modo uma determinada convicccedilatildeo e os princiacutepios se lhe tornaram conhecidos esse algueacutem adquiriu um conhecimento cientiacutefico Se poreacutem natildeo tiver os princiacutepios tatildeo bem conhecidos quanto a conclusatildeo poderaacute ter um conhecimento cientiacutefico mas

apenas acidentalmente Foi deste modo definido o que eacute o conhecimento cientiacutefico

De acordo com C D C Reeve a demonstraccedilatildeo no sentido estrito ou seja a

ἀπόδειξις eacute encontrada somente nas ciecircncias teoreacuteticas cujos pontos iniciais e teoremas

aplicam-se com necessidade incondicional pois nelas o entendimento eacute dos termos e

definiccedilotildees que satildeo primaacuterios na ciecircncia os quais satildeo imutaacuteveis e eternos Por essa razatildeo

as demonstraccedilotildees das ciecircncias em questatildeo devem ser de natureza estrita e incondicional

No entanto Reeve enfatiza a existecircncia de demonstraccedilotildees praacuteticas pertencentes agraves

ciecircncias praacuteticas as quais satildeo de natureza menos estrita posto que satildeo aplicaacuteveis a coisas

que ocorrem em sua maior parte mas natildeo necessariamente Desse modo quando se

atribui agrave demonstraccedilatildeo praacutetica um papel que eacute restrito agraves coisas particulares ela eacute

caracterizada como natildeo voltada para o que ocorre sempre porquanto seu escopo eacute a accedilatildeo

particular a ser realizada nas circunstacircncias concretas (REEVE 2014 208-209)

Com efeito a ciecircncia poliacutetica a eacutetica e a retoacuterica em comum com outras ciecircncias

praacuteticas e produtivas tratam daquilo que ocorre no mais das vezes (ὡς ἐπὶ τὸ πολύ) e

assim chegam a conclusotildees que tambeacutem satildeo do mesmo tipo Assim muitos princiacutepios

eacutetico-poliacuteticos norteadores das accedilotildees humanas mesmo sendo verdadeiros em sua maior

parte trazem a possibilidade de exceccedilotildees Por exemplo Aristoacuteteles sustenta que na maior

parte dos casos eacute um dever maior dar a contrapartida pelos favores recebidos do que

favorecer os amigos Outrossim eacute um dever maior pagar as nossas diacutevidas aos nossos

credores do que emprestar dinheiro a algum amigo Todavia nem isso deve ser sempre

assim em todas as circunstacircncias pois natildeo eacute possiacutevel distinguir uma coisa ou outra de

uma forma rigorosamente cientiacutefica (Eacutet Nic 1164b 30-35) Dessarte eacute preciso

reconhecer que os princiacutepios eacutetico-poliacuteticos satildeo aplicados em sua maior parte mas natildeo

necessariamente

Olivier Reboul ressalta que na visatildeo de Aristoacuteteles a retoacuterica eacute uma arte situada

abaixo da filosofia e das ciecircncias exatas as quais satildeo demonstrativas e atingem verdades

necessaacuterias que como os teoremas soacute podem ser o que satildeo possibilitando compreender

e prever No entanto a arte retoacuterica soacute pode alcanccedilar o verossiacutemil ou seja aquilo que

acontece no mais das vezes mas que poderia acontecer de outra forma Reboul acrescenta

ainda que existem para Aristoacuteteles dois mundos O mundo divino (supralunar) que eacute

cognosciacutevel pela razatildeo demonstrativa a qual eacute capaz de conhecer tanto o divino invisiacutevel

quanto o divino visiacutevel ou seja os astros que satildeo objetos da astronomia matemaacutetica

posto que seus movimentos satildeo necessaacuterios Por serem necessaacuterios satildeo tambeacutem

perfeitamente calculaacuteveis e previsiacuteveis E o mundo terreno (sublunar) onde existem a

mudanccedila o acaso a contingecircncia a imprevisibilidade no qual a ciecircncia perfeita nunca eacute

possiacutevel onde existe o provaacutevel o verossiacutemil Por essa razatildeo este mundo seria mormente

aberto agrave accedilatildeo humana onde a previsatildeo eacute mais ou menos provaacutevel as decisotildees mais ou

menos justas no qual eacute mister contentar-se com provas mais ou menos convincentes e

com opccedilotildees mais ou menos razoaacuteveis (REBOUL 2004 40-41)

Aristoacuteteles assim como Platatildeo antes dele preocupou-se primordialmente com uma

compreensatildeo cientiacutefica do mundo que envolvesse o conhecimento pelas causas e tal

conhecimento tambeacutem teria por objeto o que natildeo pode ser de outra maneira Natildeo obstante

eacute inequiacutevoco que as condiccedilotildees em apreccedilo satildeo demasiadamente restritivas No que

concerne agrave arte retoacuterica Aristoacuteteles assevera que natildeo eacute conveniente ao orador veicular no

seu discurso proposiccedilotildees cientiacuteficas porquanto ainda que possuiacutesse a ciecircncia mais exata

ele natildeo seria capaz de persuadir um auditoacuterio natildeo especializado A comunicaccedilatildeo da

verdade cientiacutefica tornar-se-ia inuacutetil para um auditoacuterio composto de pessoas comuns

Portanto o discurso cientiacutefico soacute eacute adequado para o ensino enquanto que as provas por

persuasatildeo e os raciociacutenios retoacutericos satildeo formados de premissas comumente aceitas pelas

multidotildees (Ret 1355a 32-39)

Pois o discurso cientiacutefico eacute proacuteprio do ensino e o ensino aqui eacute impossiacutevel visto ser necessaacuterio que as provas por persuasatildeo e os raciociacutenios se formem de argumentos comuns como jaacute tivemos ocasiatildeo de dizer nos Toacutepicos a propoacutesito da comunicaccedilatildeo com as multidotildees

Considerando-se o ponto de vista de Aristoacuteteles de que o ensino seria adequado

somente no contexto especiacutefico da ciecircncia e natildeo no da retoacuterica Enrico Berti sustenta que

a situaccedilatildeo concreta na qual pensa Aristoacuteteles ao teorizar sobre a ciecircncia apodiacutectica seria

aquela constituiacuteda por um cientista que possuindo o domiacutenio de uma determinada

ciecircncia se propotildee a expocirc-la a outros ou seja a ensinaacute-la O discurso cientiacutefico seria

essencialmente um monoacutelogo ainda que direcionado aos ouvintes pois estes natildeo teriam

nada a dizer e deveriam somente aprender ou seja ser auxiliados a ver com clareza aquilo

que eacute obscuro Desse modo demonstrar cientificamente significaria mostrar a verdade de

alguma coisa a quem a ignora e isto significaria ensinar no sentido mais rigoroso do

termo (BERTI 1998 11) Eacute manifesto pois o caraacuteter essencialmente didaacutetico dos

silogismos apodiacutecticos os quais mesmo sob uma condiccedilatildeo de possiacutevel diaacutelogo como

exatamente eacute o ensino constituem por excelecircncia um monoacutelogo porque o discente

precisa confiar no docente (Ibid 1998 30-31) E uma vez que a demonstraccedilatildeo apodiacutectica

seja realizada por exemplo que a soma dos acircngulos internos de um triacircngulo equivale a

dois retos ela natildeo poderaacute jamais ser concebida pelo ouvinte de modo diferente a natildeo ser

que este entre em contradiccedilatildeo consigo mesmo

No entanto os assuntos tratados pela arte retoacuterica diferente do que ocorre na

ciecircncia ou nas demais artes podem receber uma soluccedilatildeo diferente ou seja podem ser de

uma maneira ou de outra porquanto no acircmbito do discurso retoacuterico delibera-se amiuacutede

sobre accedilotildees e todas elas apresentam em comum a ausecircncia de qualquer necessidade A

propoacutesito os temas mais importantes sobre os quais todos os oradores deliberativos

oferecem conselho em puacuteblico satildeo basicamente cinco financcedilas guerra e paz defesa

nacional importaccedilotildees e exportaccedilotildees e legislaccedilatildeo36

A deliberaccedilatildeo (βούλευσις) natildeo diz respeito a nenhum conhecimento cientiacutefico pois

quem estaacute a passar por um processo de deliberaccedilatildeo natildeo procura saber nada acerca de

coisas que jaacute conhece (Eacutet Nic 1142a 31-1142b 1) A βούλευσις eacute uma forma de

aconselhamento porque aquele que estaacute em processo deliberativo (a despeito do resultado

da deliberaccedilatildeo) procura mediante o caacutelculo de probabilidades (λογίζεσθαι) a melhor

soluccedilatildeo (Ibid 1142b 15) Outrossim nada do que jaacute ocorreu no passado poderaacute ser objeto

de deliberaccedilatildeo por exemplo ningueacutem pode ainda decidir se a cidade de Troia teraacute sido

destruiacuteda Desse modo ningueacutem eacute capaz de deliberar a respeito do que jaacute aconteceu mas

somente sobre o futuro e o que eacute possiacutevel (Ibid 1139b 5-10) Isto ocorre porque o ato

tipicamente deliberativo soacute eacute possiacutevel diante de fatos que admitem mais de uma soluccedilatildeo

jaacute que natildeo eacute possiacutevel deliberar senatildeo a respeito das questotildees que satildeo manifestamente

36 Conforme Aristoacuteteles o orador que se dispor a dar conselhos sobre financcedilas precisa conhecer os recursos que tem a cidade e qual o seu valor de tal modo que se algum for omitido fazer a reposiccedilatildeo e se algum for insuficiente o aumentar Deve ainda conhecer todas as despesas da cidade com o intuito de eliminar o que eacute supeacuterfluo e reduzir o que for excessivo A respeito da guerra e da paz ele precisa conhecer o poder da cidade quanta forccedila jaacute possui e a quanta pode chegar a natureza das forccedilas que tem agrave sua disposiccedilatildeo e as que pode acrescentar conhecer com que povos se pode esperar fazer a guerra a fim de manter a paz com os mais fortes e deflagrar a guerra contra os mais fracos e se os recursos militares da cidade satildeo iguais ou desiguais aos dos vizinhos Quanto agrave defesa do paiacutes o orador natildeo pode ignorar o modo como este eacute guardado mas conhecer o nuacutemero e a espeacutecie das tropas que o defendem e os lugares onde se localizam as fortalezas Acerca da provisotildees ele precisa conhecer quantos e quais os gastos suficientes agrave cidade que alimentos satildeo produzidos no seu solo e os que satildeo importados e que exportaccedilotildees e importaccedilotildees satildeo necessaacuterias tendo em vista os possiacuteveis tratados e acordos E sobre a legislaccedilatildeo eacute indispensaacutevel que ele saiba quantas satildeo as formas de governo o que conveacutem a cada uma e por quais razotildees se corrompem eacute uacutetil ainda para a legislaccedilatildeo que ele natildeo conheccedila somente qual eacute a forma de governo conveniente mas tambeacutem conhecer as dos outros paiacuteses e satildeo uacuteteis os relatos de viagens porque neles pode-se aprender as leis dos povos (Ret 1359b 33-1360a 44)

suscetiacuteveis de receber duas soluccedilotildees contraacuterias Escreve Aristoacuteteles sobre este assunto

(Ret 1356b 43-1357a 1-9)

Pois tambeacutem esta natildeo forma silogismos de premissas tomadas ao acaso (ainda que assim pareccedila aos insensatos) mas das que o raciociacutenio requer e a retoacuterica forma-os da mateacuteria sobre que estamos habituados a deliberar A funccedilatildeo desta consiste em tratar das questotildees sobre as quais deliberamos e para as quais natildeo dispomos de artes especiacuteficas e isto perante um auditoacuterio incapaz de ver muitas coisas ao mesmo tempo e de seguir uma longa cadeia de raciociacutenios Noacutes deliberamos sobre as questotildees que parecem admitir duas possibilidades de soluccedilatildeo jaacute que ningueacutem delibera sobre as coisas que natildeo podem ter acontecido nem vir a acontecer nem ser de maneira diferente pois nesses casos nada haacute a fazer

Conforme a anaacutelise de Pierre Aubenque sobre a βούλευσις natildeo se delibera sobre

todos os assuntos mas somente sobre aqueles que dependem da accedilatildeo humana o que

excluiria os seres imutaacuteveis e eternos (da ciecircncia) A deliberaccedilatildeo envolveria tudo aquilo

que eacute obra do homem e em oposiccedilatildeo a Platatildeo Aristoacuteteles aventaria a incompatibilidade

entre a ciecircncia e a iniciativa humana que seria a consequecircncia da separaccedilatildeo de seus

domiacutenios Para Aubenque a ciecircncia diz respeito ao necessaacuterio enquanto que a atividade

inteligente do homem concerne senatildeo ao acaso pelo menos a um domiacutenio intermediaacuterio

entre a necessidade e o acaso ndash as coisas que acontecem frequentemente cujo resultado

eacute incerto e comportam indeterminaccedilatildeo Dessarte a deliberaccedilatildeo representaria a via

humana ou seja aquela de um homem que natildeo eacute completamente saacutebio nem ignorante

num mundo que natildeo eacute absolutamente racional nem absurdo (AUBENQUE 2003 174-

175 188)

Outrossim a deliberaccedilatildeo seria da ordem da opiniatildeo de um saber aproximativo

como o eacute o seu objeto e fundado nesse saber nenhuma deliberaccedilatildeo pode ser considerada

infaliacutevel O homem de bom conselho anuncia o que eacute possiacutevel e o que natildeo eacute mas natildeo

pode fazer com que esse ldquopossiacutevelrdquo seja necessaacuterio Agrave vista disso ainda que a deliberaccedilatildeo

seja a melhor ou a mais razoaacutevel sempre comportaraacute o risco do insucesso Todavia o que

justificaria humanamente a deliberaccedilatildeo apesar da sua falibilidade eacute que uma accedilatildeo ideal

e cientiacutefica com a qual sonhava Platatildeo natildeo parece ser possiacutevel em virtude da resistecircncia

das mediaccedilotildees rebeldes da mateacuteria e da imprevisibilidade do tempo (Ibid 2003 184)

A verdade com a qual a retoacuterica estaacute comprometida natildeo se relaciona a estados de

coisas necessaacuterios mas agravequeles que tambeacutem podem comportar-se diferentemente e sobre

os quais satildeo possiacuteveis somente proposiccedilotildees vaacutelidas no mais das vezes (ὡς ἐπὶ τὸ πολύ)

E tal domiacutenio conteacutem exatamente as coisas sobre as quais se tem de entrar em conselho

consigo mesmo ou com os demais cidadatildeos da sociedade Isto posto o acircmbito da arte

retoacuterica eacute o da deliberaccedilatildeo e nesse domiacutenio predomina o verossiacutemil jaacute que natildeo se delibera

sobre aquilo que eacute evidente mas sobre fatos incertos que podem realizar-se atraveacutes das

accedilotildees humanas como a vitoacuteria numa guerra e coisas desse jaez

De fato soacute eacute possiacutevel deliberar sobre coisas que eacute possiacutevel influenciar mediante as

accedilotildees humanas razatildeo pela qual ningueacutem delibera sobre coisas eternas como o sistema

solar ou a incomensurabilidade da diagonal e do lado do quadrado Tambeacutem natildeo se

delibera sobre as coisas que estatildeo sempre num movimento regular a exemplo dos

solstiacutecios e do nascer do sol (Eacutet Nic 1112a 20-25) Pode-se estudar esses assuntos

contemplativamente mas eacute manifesto que elas natildeo podem ser afetadas pela deliberaccedilatildeo

ou pela escolha humana A deliberaccedilatildeo diz respeito agraves coisas que embora seguindo em

geral certas linhas definidas natildeo tecircm resultados previsiacuteveis Algumas coisas natildeo admitem

de modo algum ser de outro jeito porque como eternas e imutaacuteveis elas satildeo

incondicionalmente necessaacuterias Todos os assuntos ligados agrave matemaacutetica agrave astronomia

ou agrave teologia natildeo estatildeo dentro da esfera da deliberaccedilatildeo E sobre estes assuntos ningueacutem

com algum entendimento iria deliberar embora um tolo ou um louco pudesse fazecirc-lo

Aliaacutes natildeo se delibera sobre os fins mas somente sobre os meios um meacutedico jamais

delibera se efetuaraacute ou natildeo a cura de seu paciente o orador natildeo delibera se persuadiraacute ou

natildeo os seus ouvintes ou um poliacutetico se vai ou natildeo produzir uma boa legislaccedilatildeo mas eles

se ocupam dos meios a partir dos quais poderatildeo atingir seus objetivos (Ibid 1112b 12-

15)

Conveacutem ainda levar em consideraccedilatildeo que do ponto de vista da comunicaccedilatildeo com

as multidotildees o discurso retoacuterico deve apoiar-se nos valores comuns nas opiniotildees

geralmente aceitas como expedientes legiacutetimos a fim de obter a persuasatildeo poreacutem

Aristoacuteteles natildeo deixa de reconhecer que em termos absolutos a verdade eacute sempre

superior em relaccedilatildeo agrave opiniatildeo (Ret 1365a 47-1365b 1) No entanto nos contextos em

que eacute mister a deliberaccedilatildeo o emprego da argumentaccedilatildeo retoacuterica torna-se crucial para

encontrar a soluccedilatildeo mais adequada em face de um impasse qualquer Sendo assim numa

situaccedilatildeo destituiacuteda de evidecircncia onde natildeo eacute possiacutevel uma demonstraccedilatildeo cientiacutefica nem

qualquer previsatildeo exata a arte retoacuterica possui a funccedilatildeo de fazer a defesa de um

determinado ponto de vista e esclarecer aqueles que devem formular a decisatildeo definitiva

a saber os juiacutezes de um tribunal ou os membros de uma assembleia A este respeito Luiz

Rohden declara que uma das utilidades da arte retoacuterica consiste na tentativa de

fundamentar decisotildees praacuteticas que podem orientar em diferentes sentidos o agir humano

pois na condiccedilatildeo de um tipo de racionalidade a retoacuterica compotildeem-se do universo do

persuasivo em que os temas eacutetico-poliacuteticos satildeo organizados dentro de uma ldquoarquitetura

razoaacutevelrdquo em que haacute diferentes possibilidades para o agir humano A atividade retoacuterica

portanto vincula-se ao universo da deliberaccedilatildeo e do realizaacutevel Aliaacutes no acircmbito da

retoacuterica seria inuacutetil investigar o bem humano em si conforme preconiza o projeto

platocircnico mas eacute necessaacuterio considerar o bem enquanto referido a um puacuteblico em

particular cujo aspecto foi negligenciado por Platatildeo e eacute desconsiderado pela

racionalidade apodiacutectica (ROHDEN 1997167 169)

Para Aristoacuteteles todos os silogismos (cientiacutefico dialeacutetico e retoacuterico) satildeo formados

de premissas semelhantes Das premissas de que se formam os entimemas umas seratildeo

necessaacuterias mas a maior parte eacute apenas frequente Assim os silogismos retoacutericos

(ῥητορικοὶ συλλογισμοί) mormente derivam de probabilidades (εἰκότων) e de sinais

(σημείων) enquanto que os silogismos cientiacuteficos satildeo formados a partir de premissas

necessaacuterias (Ibid 1357a 34-43)

[] e como as coisas que acontecem agrave maioria e satildeo possiacuteveis apenas se podem provar mediante silogismos formados de premissas semelhantes tal como as necessaacuterias se concluem das necessaacuterias ( o que tambeacutem sabemos pelos Analiacuteticos) eacute evidente que das premissas de que se formam os entimemas umas seratildeo necessaacuterias mas a maior parte eacute apenas frequente E uma vez que os entimemas derivam de probabilidades e sinais eacute necessaacuterio que cada um destes se identifique com a classe de entimema correspondente

Pode-se assegurar entatildeo que a arte retoacuterica estaacute longe de ser uma ciecircncia exata

que partiria de axiomas e princiacutepios cujas conclusotildees seriam sempre necessaacuterias longe

disso o seu processo de inferecircncia deve limitar-se ao seu proacuteprio material as

probabilidades e os sinais Na maior parte dos casos as argumentaccedilotildees retoacutericas natildeo

possuem caraacuteter de ciecircncia ou seja de verdade necessaacuteria Por isso se um orador escolhe

as premissas dos seus argumentos de modo a defrontar-se com verdadeiros princiacutepios ele

jaacute natildeo faz mais retoacuterica mas ciecircncia Ademais o discurso cientiacutefico eacute um monoacutelogo de

modo que os ouvintes nada teriam a dizer devendo somente aprender ao passo que este

processo natildeo ocorreria no discurso retoacuterico o qual se abre agraves perspectivas individuais de

cada ser humano Por essa razatildeo o orador que ultrapassa os limites da retoacuterica e invade

o campo da ciecircncia ao demonstrar suas teses atraveacutes de silogismos regulares e conclusotildees

necessaacuterias perde a caracteriacutestica de orador e transforma-se num homem de ciecircncia ou

num filoacutesofo

Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles explicita que a investigaccedilatildeo sobre determinados

assuntos sobretudo os ligados agraves accedilotildees humanas apenas seraacute adequada se contiver tanta

exatidatildeo (ἀκριβής) quanto comportar o assunto de modo que natildeo se deve exigir precisatildeo

em todos os raciociacutenios nem eacute necessaacuterio procurar o mesmo grau de rigor para todas as

aacutereas cientiacuteficas nem para todas as artes Isto posto no acircmbito da arte retoacuterica conveacutem

contentar-se com a indicaccedilatildeo da verdade aproximadamente em linhas gerais e falar de

coisas que satildeo verdadeiras ὡς ἐπὶ τὸ πολύ ou seja no mais das vezes e natildeo em termos

absolutos Aleacutem disso eacute proacuteprio daquele que passou por um processo de educaccedilatildeo buscar

a precisatildeo em cada gecircnero de coisas mas somente na medida em que a admite a natureza

do assunto Dessarte eacute evidente que natildeo seria menos insensato aceitar um raciociacutenio

provaacutevel da parte de um matemaacutetico do que exigir demonstraccedilotildees cientiacuteficas de um

orador37 Escreve Aristoacuteteles sobre este assunto (Eacutet Nic 1094 b 20-30)

Damo-nos portanto por satisfeitos se ao tratarmos desses assuntos a partir de pressupostos que admitem margem de erro indicarmos a verdade grosso modo segundo uma sua caracterizaccedilatildeo apenas nos traccedilos essenciais Pois para o que acontece apenas no mais das vezes com pressupostos compreendidos apenas grosso modo e segundo uma caracterizaccedilatildeo nos seus traccedilos essenciais basta que as conclusotildees a que chegarmos tenham o mesmo grau de rigor Do mesmo modo eacute preciso pedir que cada uma das coisas tratadas seja aceite a partir dessa mesma base de entendimento Eacute que eacute proacuteprio daquele que passou por um processo de educaccedilatildeo requerer para cada passo particular de investigaccedilatildeo apenas tanto rigor quanto a natureza do tema em tratamento admitir Na verdade parece um erro equivalente aceitar conclusotildees aproximadas a um matemaacutetico e exigir demonstraccedilotildees a um orador

Com efeito quando as coisas numa determinada aacuterea sobretudo em relaccedilatildeo agraves

situaccedilotildees concretas da accedilatildeo humana aplicam-se em sua maior parte parece que a verdade

sobre elas precisa ser veiculada nos seus traccedilos essenciais em vez de rigorosamente

(Ibid 1104a 1-3) Nesse caso o tratamento de um assunto nos seus traccedilos essenciais

parece ser a funccedilatildeo do grau de rigor que o assunto impotildee agrave ciecircncia que o aborda Na arte

37 Semelhantemente o Estagirita contrapotildee na Metafiacutesica dois tipos opostos de discurso quais sejam o matemaacutetico caracterizado por um rigor absoluto e outro facilmente identificaacutevel com aquele da arte retoacuterica destituiacutedo de rigor e caracterizado pelo uso de exemplos e testemunhos poeacuteticos (Met 995a 5-10) ldquoOra alguns natildeo estatildeo dispostos a ouvir se natildeo se fala com rigor matemaacutetico outros soacute ouvem quem recorre a exemplos enquanto outros ainda exigem que se acrescente o testemunho de poetas Alguns exigem que se diga tudo com rigor para outros a contraacuterio o rigor incomoda seja por sua incapacidade de compreender os nexos do raciociacutenio seja por aversatildeo agraves sutilizas De fato algo do rigor pode parecer sutileza e por isso alguns o consideram um tanto mesquinho tanto nos discursos quanto nos negoacuteciosrdquo

retoacuterica (bem como na ciecircncia poliacutetica e na eacutetica) discute-se sobre coisas que se aplicam

ὡς ἐπὶ τὸ πολύ razatildeo pela qual essas disciplinas satildeo tratadas em linhas gerais e natildeo com

o rigor cientiacutefico que caracteriza as ciecircncias exatas Todavia este tratamento longe de

ser uma falha corrigiacutevel em uma ciecircncia parece ser um sinal de sua probidade intelectual

ou seja do entendimento de que seu grau de rigor deve corresponder ao seu proacuteprio

objeto Dessa maneira constitui uma marca de falta de instruccedilatildeo esperar maior rigor em

uma ciecircncia do que o seu assunto permite

Outrossim Aristoacuteteles assegura que o verdadeiro homem de accedilatildeo poliacutetica

(πολιτικός) deve de alguma forma conhecer a alma humana mas natildeo no sentido rigoroso

do termo conforme aventava Platatildeo mas ele deve apenas conhecer um conhecimento

teoacuterico dela nos seus aspectos gerais apenas na medida adequada para fins legislativos

uma vez que o conhecimento mais rigoroso demandaria mais esforccedilo do que o seu

propoacutesito requer (Ibid 1102a 1-10) Desse modo natildeo cabe ao homem de accedilatildeo poliacutetica

investigar com rigor cientiacutefico a natureza da alma humana porque tal incumbecircncia cabe

ao filoacutesofo A mesma concepccedilatildeo aplicar-se-ia ao orador pois este deve conhecer a alma

humana bem como outras mateacuterias somente na medida em que eacute uacutetil para os propoacutesitos

da persuasatildeo

Aristoacuteteles estabelece nos Toacutepicos que uma definiccedilatildeo eacute uma frase ou proposiccedilatildeo

que significa a essecircncia de uma coisa (Toacutep 102a 1) No entanto ele enfatiza na Retoacuterica

que as definiccedilotildees propostas para serem utilizadas nos argumentos retoacutericos satildeo suficientes

para a finalidade de persuadir se natildeo forem obscuras nem tecnicamente rigorosas (Ret

1369b 39-41) A retoacuterica por certo natildeo pode descer aos detalhes e determinar com

absoluta precisatildeo exatidatildeo ou rigor o que eacute belo justo e bom em toda e qualquer

circunstacircncia ou em qualquer caso particular mas deve indicar o que eacute belo justo e bom

em geral A distinccedilatildeo entre os niacuteveis de precisatildeo na abordagem da retoacuterica e da eacutetica a

tiacutetulo de exemplo pode ser encontrada no contraste entre o modo como Aristoacuteteles

procede na definiccedilatildeo de virtude (ἀρετή) na Retoacuterica e na Eacutetica a Nicocircmaco

Na Retoacuterica a ἀρετή consiste de um lado no poder de produzir e conservar os bens

e de outro na faculdade de prestar muitos e relevantes serviccedilos de toda sorte e em todos

os casos Os elementos da virtude satildeo a justiccedila a coragem a temperanccedila a magnificecircncia

a magnanimidade a liberalidade a mansidatildeo a prudecircncia e a sabedoria E as maiores

virtudes satildeo necessariamente as que satildeo mais uacuteteis aos outros uma vez que a virtude eacute a

faculdade de fazer o bem Por isso se honram principalmente os justos em vez dos

corajosos visto que aqueles satildeo uacuteteis natildeo somente no periacuteodo da guerra mas tambeacutem no

periacuteodo de paz (Ibid 1366b 1-8)

Na Eacutetica a Nicocircmaco aleacutem de aprofundar as noccedilotildees acima indicadas Aristoacuteteles

assegura que a ἀρετή eacute um haacutebito voluntaacuterio que consiste num meio-termo (μεσοτeacuteς)

estabelecido pela razatildeo e como a estabeleceria um homem dotado de prudecircncia (Eacutet Nic

1107a 1-4) Desse modo a virtude eacutetica seria uma disposiccedilatildeo do caraacuteter escolhida

antecipadamente a qual estaacute situada no meio e eacute definida relativamente aos agentes

morais E a situaccedilatildeo do meio existe entre dois viacutecios o excesso (ὑπερβολή) e o defeito

(ἔλλειψις) Aliaacutes sem muito rigor e aprofundamento em comparaccedilatildeo com a Eacutetica a

Nicocircmaco Aristoacuteteles define a justiccedila na Retoacuterica simplesmente como a virtude pela qual

cada um possui os bens em conformidade com a lei e a injusticcedila o viacutecio pelo qual se

reteacutem o que eacute dos outros em detrimento da lei (Ret 1366b 10-13)

Conforme a apreciaccedilatildeo de E M Cope sobre este assunto existiria na Eacutetica a

Nicocircmaco (Livro II cap 6) uma completa descriccedilatildeo de todos os pontos e caracteriacutesticas

essenciais pelas quais a virtude eacute distinta de outros estados intelectuais e morais poreacutem

na Retoacuterica (Livro I cap 9) as definiccedilotildees seriam superficiais e incompletas Ele tambeacutem

enfatiza que a mesma definiccedilatildeo de prazer exposta na Retoacuterica com o intuito de persuadir

o auditoacuterio (Livro I cap 11) seria rejeitada na Eacutetica a Nicocircmaco (Livro X cap 3) Aleacutem

disso o mesmo aconteceria em outras obras de Aristoacuteteles na anaacutelise feita acerca dos

tipos de governos na Poliacutetica (livro III) e na Retoacuterica (Livro I cap 8) e na definiccedilatildeo de

πάθη que eacute encontrada em Sobre a Alma (Livro I cap 1 15) e na Retoacuterica (Livro II cap

1) Enfim Cope justifica as dessemelhanccedilas em apreccedilo mediante a hipoacutetese de que as

definiccedilotildees retoacutericas soacute visam descrever as coisas como elas satildeo na comunicaccedilatildeo e no

intercacircmbio entre os homens por isso devem ser adequadas para o propoacutesito da

persuasatildeo enquanto que as definiccedilotildees cientiacuteficas se esforccedilam por penetrar na verdadeira

natureza das coisas e estabelecer a sua essecircncia (COPE 1867 13)

52 Entimema o silogismo retoacuterico

Para Aristoacuteteles um silogismo (συλλογισμός) eacute um argumento em que certas

coisas tendo sido estabelecidas algo diferente dessas coisas estabelecidas

necessariamente resulta em decorrecircncia delas (Anal Ant 24b 13-15) Para C D C

Reeve as coisas estabelecidas satildeo as premissas do argumento ao passo que o resultado

necessaacuterio constitui sua conclusatildeo Tais argumentos consistem em uma premissa maior

uma premissa menor e uma conclusatildeo em que as premissas tecircm exatamente um uacutenico

termo meacutedio em comum e a conclusatildeo conteacutem apenas os outros dois termos extremos

quais sejam o termo menor e o termo maior O termo predicado da conclusatildeo eacute o termo

maior oriundo da premissa maior seu sujeito eacute o termo menor oriundo da premissa

menor O termo meacutedio deve ser sujeito de ambas as premissas predicado de ambas as

premissas ou sujeito de uma e predicado da outra (REEVE 2014 91-92)

Semelhantemente agrave definiccedilatildeo exarada nos Analiacuteticos Anteriores o Estagirita

define o silogismo nos Toacutepicos como o discurso em que estabelecidas certas coisas

outras coisas diferentes se seguem necessariamente das primeiras O silogismo eacute uma

ἀπόδειξις ou seja uma demonstraccedilatildeo cientiacutefica quando suas premissas satildeo verdadeiras

primeiras imediatas mais cognosciacuteveis que a conclusatildeo anteriores a esta e que sejam

causas dela Assim o silogismo cientiacutefico tem lugar quando as premissas satildeo verdadeiras

isto eacute quando elas exprimem o que efetivamente satildeo as coisas natildeo sendo possiacutevel existir

ciecircncia de um estado de coisas que natildeo existe Quando satildeo primeiras e imediatas ou seja

quando satildeo indemonstraacuteveis pois se as premissas devessem ser sempre demonstradas ad

infinitum seria impossiacutevel a ciecircncia As premissas devem ser a causa da conclusatildeo porque

ter ciecircncia de algo significa conhecer pelas causas Devem ser anteriores para poder ser a

causa da conclusatildeo e ainda devem ser mais conhecidas que esta Escreve Aristoacuteteles a

este respeito (Seg Anal 71b 19-24)

Assim se o conhecer cientificamente eacute como propusemos eacute necessaacuterio que o conhecimento demonstrativo provenha de itens verdadeiros primeiros imediatos mais cognosciacuteveis que a conclusatildeo anteriores a ela e que sejam causas dela Pois eacute deste modo que os princiacutepios seratildeo de fato apropriados ao que se prova Eacute possiacutevel haver silogismo mesmo sem tais itens mas natildeo eacute possiacutevel haver demonstraccedilatildeo Pois tal silogismo natildeo poderia propiciar conhecimento cientiacutefico

No que tange ao silogismo dialeacutetico (διαλεκτικὸς συλλογισμός) que eacute semelhante

ao retoacuterico as suas premissas natildeo satildeo verdadeiras e primeiras mas satildeo endoxais ou seja

apoiam-se nas ἔνδοξα que grosso modo satildeo as opiniotildees geralmente aceitas Todavia satildeo

verdadeiras e primeiras aquelas coisas nas quais se acredita em virtude de nenhuma outra

coisa que natildeo seja elas proacuteprias pois acerca dos primeiros princiacutepios da ciecircncia eacute

descabido buscar mais aleacutem o porquecirc e as razotildees dos mesmos Aliaacutes cada um dos

primeiros princiacutepios deve impor a convicccedilatildeo da sua verdade em si mesmo e por si mesmo

(Toacutep 100a 28-100b 20) Ἔνδοξα por sua vez (Ibid 100b 22-24) satildeo aquelas opiniotildees

que todo mundo admite ou a maioria das pessoas ou os filoacutesofos e dentre estes os mais

notaacuteveis e eminentes (Ἔνδοξα δὲ τὰ δοκοῦντα πᾶσιν ἢ τοῖς πλείστοις ἢ τοῖς σοφοῖς καὶ

τούτοις ἢ πᾶσιν ἢ τοῖς πλείστοις ἢ τοῖς μάλιστα γνωρίμοις καὶ ἐνδόξοις)

Depois das breves consideraccedilotildees sobre o silogismo cientiacutefico e o silogismo

dialeacutetico conveacutem analisarmos mais detidamente o silogismo retoacuterico Este conforme jaacute

esboccedilado foi desenvolvido por Aristoacuteteles na Retoacuterica e eacute denominado de entimema

(ἐνθύμημα) cujas premissas satildeo derivadas das proposiccedilotildees que veiculam probabilidades

e sinais (τὰ δ᾽ ἐνθυμήματα ἐξ εἰκότων καὶ ἐκ σημείων) A probabilidade (εἰκός) eacute definida

por Aristoacuteteles como aquilo que geralmente acontece mas natildeo absolutamente antes versa

sobre coisas que podem ser de uma maneira ou de outra e relaciona-se no que concerne

ao provaacutevel como o universal se relaciona com o particular (Ret 1357a 45-48) Todavia

segundo o dicionaacuterio de Henry George Liddel e Robert Scott (A Greek-English Lexicon)

a palavra grega ldquoεἰκόςrdquo pode ser traduzida tanto pelo adjetivo ldquoverossiacutemilrdquo (likelihood)

como por ldquoprovaacutevelrdquo (probable) e muitos tradutores assim procederam empregando

distintamente ora uma ora outra sem se aperceberem que ambas as palavras podem ser

utilizadas no mesmo contexto rementendo-se ao termo original grego ldquoεἰκόςrdquo mas com

significados diferentes a primeira (verossiacutemil) designaria uma concepccedilatildeo loacutegica

enquanto que a segunda (provaacutevel) uma concepccedilatildeo ontoloacutegica

Em sua anaacutelise do fundamento do discurso verossiacutemil na retoacuterica de Aristoacuteteles

A M Yamin argumenta que a oscilaccedilatildeo da traduccedilatildeo da palavra εἰκός que ora eacute traduzida

por verossiacutemil ora por provaacutevel explica-se pela oscilaccedilatildeo entre o plano do discurso e o

plano dos fatos Assim como eacute possiacutevel falar de discurso e fato verdadeiros tambeacutem eacute

possiacutevel falar de discurso e fato εἰκός E uma vez que natildeo haveria dois termos diferentes

para discurso e fato verdadeiros emprega-se o mesmo termo para discurso verossiacutemil e

fato provaacutevel Para Yamin o εἰκός eacute tanto o discurso que enuncia o estado de coisas

como o proacuteprio estado de coisas por um lado eacute uma ldquoproposiccedilatildeo geralmente admitidardquo

ou seja um discurso um juiacutezo e por outro eacute ldquoaquilo que sabemos que acontece a maior

parte das vezesrdquo que corresponderia aos fatos Um discurso eacute verossiacutemil porque estaacute de

acordo com o que realmente acontece a maior parte das vezes em um determinado

domiacutenio O discurso εἰκός natildeo eacute de forma alguma independente do estado de coisas pois

se eacute possiacutevel um discurso εἰκός verossiacutemil eacute em virtude da possibilidade de um fato isto

eacute aquele que acontece a maior parte das vezes que neste caso recebe a designaccedilatildeo de

provaacutevel Aleacutem disso o εἰκός eacute definido como uma proposiccedilatildeo geralmente admitida o

que significa que natildeo eacute qualquer coisa regular que daacute lugar ao εἰκός jaacute que ele faz parte

do universo cultural ou de crenccedilas geralmente admitidas num determinado contexto

social Desse modo palavras verossiacutemeis seratildeo aquelas que correspondam agrave regularidade

proacutepria do universo poliacutetico ao qual pertence aquele auditoacuterio particular No entanto na

medida em que o εἰκός natildeo se limita ao plano do discurso mas relaciona-se com as coisas

que de fato acontecem nada impede que as coisas que ocorrem no domiacutenio da natureza

sejam consideradas εἰκός posto que tambeacutem ocorrem com regularidade Agrave vista disso o

εἰκός enquanto discurso eacute o enunciado endoacutexico que veicula um evento que acontece a

maior parte das vezes assim como tambeacutem eacute o proacuteprio evento de modo que se esse

enunciado eacute verossiacutemil eacute porque ele enuncia a opiniatildeo dos homens ao testemunhar um

evento provaacutevel que pode ser tanto social quanto natural (YAMIN 2016 149-153)

Com o fim de lograr maior esclarecimento sobre o significado da palavra εἰκός no

pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles cabe ainda salientar a visatildeo de Roland Barthes sobre

a mateacuteria Para este o εἰκός designaria uma ideia geral que repousa no conceito que os

homens criaram atraveacutes de experiecircncias e induccedilotildees imperfeitas No verossiacutemil aristoteacutelico

existiriam entatildeo dois nuacutecleos O primeiro nuacutecleo expressaria a ideia de geral enquanto

se opotildee agrave ideia de universal O universal seria necessaacuterio e constituiria um atributo da

ciecircncia O geral por sua vez significaria o natildeo-necessaacuterio seria um geral humano

determinado estatisticamente pela opiniatildeo do maior nuacutemero O segundo nuacutecleo

expressaria a possibilidade de contrariedade Efetivamente o entimema eacute recebido pelo

puacuteblico como um silogismo certo pois parece partir de uma opiniatildeo em que ele pode

acreditar como absolutamente certo Mas no que tange agrave ciecircncia o verossiacutemil admitiria

o contraacuterio porque nos limites da experiecircncia humana e da vida moral que se relacionam

diretamente com o εἰκός o oposto sempre seria possiacutevel (COHEN 1975 192-193)

Mas relativamente agrave ciecircncia o verossiacutemil admite o contraacuterio nos limites da experiecircncia humana e da vida moral que satildeo as do eikos o oposto nunca eacute impossiacutevel natildeo se pode prever de maneira certa (cientiacutefica) as resoluccedilotildees de um ser livre ldquoquem goza de boa sauacutede veraacute o dia de amanhatilderdquo ldquoum pai ama seus filhosrdquo ldquoum roubo cometido na casa sem arrombamento teraacute sido obra certamente de um familiarrdquo etc estaacute certo mas o contraacuterio eacute sempre possiacutevel O analista o retoacuterico sente bastante a forccedila dessas opiniotildees mas honestamente as manteacutem agrave distacircncia introduzindo-as por um esto (seja) que lhe tira a responsabilidade aos olhos da ciecircncia em que o contraacuterio jamais eacute possiacutevel

Agrave vista disso pode-se determinar que o εἰκός sumariamente significa que tendo em

vista a impossibilidade de se obter uma verdade universal e necessaacuteria eacute preciso contentar-

se com o verossiacutemil isto eacute com aquilo que parece provaacutevel por ser compartilhado pela

maioria das pessoas Desse modo quando natildeo se pode ter acesso agrave verdade cientiacutefica

conveacutem ficar satisfeito com aquelas opiniotildees que todo mundo admite ou a maioria das

pessoas ou os filoacutesofos e dentre estes os mais notaacuteveis e eminentes (que Platatildeo ordenava

descartar em benefiacutecio da ciecircncia) Pois quando natildeo se pode fazer uma demonstraccedilatildeo

pelos silogismos cientiacuteficos que partem de premissas admitidas ou demonstradas a

conclusotildees necessaacuterias deve-se ficar satisfeito com os silogismos retoacutericos que partem

de premissas verossiacutemeis para conclusotildees tambeacutem verossiacutemeis

No silogismo retoacuterico aleacutem das proposiccedilotildees que veiculam probabilidades existem

aquelas que veiculam sinais (σημεία) O sinal com efeito eacute um indiacutecio de que algo

aconteceu ou existe e supotildee a relaccedilatildeo entre dois fatos Se a relaccedilatildeo entre os fatos for

estimada necessaacuteria o sinal recebe o nome de tecmeacuterion (τεκμήριον) do contraacuterio a

conclusatildeo se reduz a uma simples possibilidade Dentre os sinais Aristoacuteteles distingue a

premissa que eacute verdadeira e necessaacuteria ndash o τεκμήριον ndash da premissa que apesar de ser

verdadeira natildeo eacute necessaacuteria (Ret 1357a 37) No tocante a esta uacuteltima Aristoacuteteles afirma

natildeo existir nome peculiar que traduza sua diferenccedila em relaccedilatildeo ao τεκμήριον mas pode-

se afirmar que ela expressa um indiacutecio mais ambiacuteguo mais incerto que o τεκμήριον Por

exemplo a marca de sangue na roupa de algum suspeito supotildee um homiciacutedio mas natildeo

com absoluta certeza pois o sangue pode proceder de um sangramento no nariz ou de um

sacrifiacutecio (COHEN 1975 193) Os sinais natildeo necessaacuterios satildeo aqueles que natildeo sendo por

si soacute suficientes a tirar toda a duacutevida mas juntos com outros indiacutecios possuem muita forccedila

probatoacuteria Desse modo o sangue parece ser um forte sinal de homiciacutedio mas porque o

tal sangue pocircde ter caiacutedo nas roupas do suspeito ou da viacutetima ou do nariz ou coisa que

o valha natildeo se segue necessariamente que quem tem as roupas ensanguentadas cometeu

um assassinato

Para Aristoacuteteles o τεκμήριον se evidencia quando se julga impossiacutevel refutar o que

foi enunciado Eacute um indiacutecio que se caracteriza por um tipo de necessidade em contraste

com um indiacutecio possiacutevel o qual pode ser de uma maneira ou de outra O τεκμήριον eacute o

indiacutecio certo o sinal necessaacuterio e indestrutiacutevel aquele que eacute e natildeo pode ser de outra forma

O τεκμήριον entatildeo implica que o nexo que liga dois fatos eacute de natureza necessaacuteria38

Aristoacuteteles lanccedila matildeo de dois exemplos para elucidar o significado de τεκμήριον como

sinal necessaacuterio ldquoeacute sinal de uma pessoa estar doente o ter febrerdquo ou ldquode uma mulher ter

dado agrave luz o ter leiterdquo Tais proposiccedilotildees aproximam-se muito daquelas que inauguram o

silogismo cientiacutefico embora se fundamentem numa universalidade de experiecircncia Isto

posto o τεκμήριον eacute um indiacutecio que possui efetivamente o caraacuteter de necessidade e por

essa razatildeo eacute irrefutaacutevel (Ret 1357 b 3-9 16-21)

Destes sinais os necessaacuterios satildeo argumentos irrefutaacuteveis os natildeo necessaacuterios natildeo tecircm nome peculiar que traduza a diferenccedila Chamo portanto necessaacuterios agravequeles sinais a partir dos quais se pode formar um silogismo E por isso eacute argumento irrefutaacutevel o que entre os sinais eacute necessaacuterio pois quando se pensa que natildeo eacute possiacutevel refutar uma tese entatildeo pensa-se que se aduz um argumento concludente ou irrefutaacutevel [tekmeacuterion] como se o assunto jaacute estivesse demonstrado e concluiacutedo [] O outro o sinal necessaacuterio eacute como algueacutem dizer que eacute sinal de uma pessoa estar doente o ter febre ou de uma mulher ter dado agrave luz o ter leite E dos sinais este eacute o uacutenico que eacute um tekmeacuterion um argumento concludente pois eacute o uacutenico que se for verdadeiro eacute irrefutaacutevel

E a fim de ilustrar uma proposiccedilatildeo possiacutevel em contraste com uma proposiccedilatildeo

necessaacuteria Aristoacuteteles se utiliza de outro exemplo ldquoum sinal de que os saacutebios satildeo justos

eacute que Soacutecrates era saacutebio e justordquo Este eacute um sinal mas refutaacutevel pois embora seja verdade

o que se diz natildeo eacute possiacutevel demonstrar de maneira inexoraacutevel que os saacutebios sejam justos

Aristoacuteteles ainda fornece o seguinte exemplo ldquoeacute sinal de febre ter a respiraccedilatildeo raacutepidardquo

Para ele mesmo que esta proposiccedilatildeo seja verdadeira eacute passiacutevel de refutaccedilatildeo porque a

despeito da febre pode a respiraccedilatildeo ser ofegante (Ibid 1357b 14-18)

Outrossim diferente da espeacutecie de silogismo ligada agrave demonstraccedilatildeo cientiacutefica o

entimema eacute um silogismo incompleto truncado jaacute que natildeo possui tantas partes nem estas

satildeo tatildeo distintas como no silogismo cientiacutefico De acordo com Aristoacuteteles para concluir

que Dorieu recebeu uma coroa como precircmio da sua vitoacuteria basta dizer que foi vencedor

em Oliacutempia sem que haja necessidade de acrescentar agrave Oliacutempia a menccedilatildeo da coroa

porque os ouvintes jaacute saberiam Portanto se alguma das premissas retoacutericas for bem

38 De acordo com Marco Faacutebio Quintiliano o τεκμήριον se distingue em trecircs tempos passado presente e futuro ldquoUma mulher que pariu necessariamente teve trato com homemrdquo Este sinal seria do tempo passado ldquoEacute necessaacuterio haver ondas quando ventos fortes caem sobre o marrdquo Este sinal seria do tempo presente Enfim ldquohaacute de morrer infalivelmente aquele cujo coraccedilatildeo estaacute feridordquo Este sinal pertenceria ao futuro (Inst orat I VII sect II)

conhecida pelo puacuteblico nem sequer eacute necessaacuterio enunciaacute-la porque o proacuteprio ouvinte a

supre Escreve Aristoacuteteles a este respeito (Ibid 1357a 18-28)

De sorte que eacute necessaacuterio que o entimema e o exemplo se ocupem de coisas que podem ser para a maior parte tambeacutem de outro modo o exemplo como induccedilatildeo e o entimema como silogismo e em geral menos do que as do silogismo primaacuterio Porque se alguma dessas premissas for bem conhecida nem sequer eacute necessaacuterio enunciaacute-la pois o proacuteprio ouvinte a supre Como por exemplo para concluir que Dorieu recebeu uma coroa como precircmio da sua vitoacuteria basta dizer pois foi vencedor em Oliacutempia sem que haja necessidade de acrescentar agrave Oliacutempia a menccedilatildeo da coroa porque toda a gente o sabe

Com efeito aleacutem da funccedilatildeo de veicular probabilidades e sinais o entimema possui

outra importante caracteriacutestica a premissa maior a premissa menor ou ateacute ambas as

premissas podem estar subentendidas na argumentaccedilatildeo retoacuterica sem nenhum prejuiacutezo

para a persuasatildeo (MEYER 2007 72) A admissatildeo preacutevia de alguma premissa pode ser

classificada em trecircs ordens distintas segundo a premissa suprimida o entimema de

primeira de segunda e de terceira ordens O entimema de primeira ordem ocorre quando

a premissa maior do silogismo natildeo eacute enunciada O entimema de segunda ordem ocorre

quando a premissa suprimida eacute a premissa menor E no entimema de terceira ordem

tanto a premissa maior quanto a premissa menor satildeo suprimidas (SOARES 2003 103)

Tendo como exemplo o entimema de primeira ordem pode ser elucidado atraveacutes do

seguinte argumento ldquoa justiccedila eacute uma virtude por isso eacute boardquo A premissa maior ldquotoda a

virtude eacute boardquo foi suprimida deste argumento cuja disposiccedilatildeo formal conforme o

esquema da primeira figura do silogismo sob o modo BARBARA39 seria a seguinte ldquotoda

a virtude eacute boa toda a justiccedila eacute virtude logo toda justiccedila eacute boardquo A propoacutesito este tipo

de silogismo eacute o que Aristoacuteteles considera o protoacutetipo dos silogismos vaacutelidos tambeacutem

chamado de ldquosilogismo perfeitordquo (Anal Ant 26b 37)

39 A figura de um silogismo eacute definida em funccedilatildeo da posiccedilatildeo do termo meacutedio nas duas premissas (maior e menor) E como o termo meacutedio natildeo pode entrar na conclusatildeo sua posiccedilatildeo se restringe somente agraves premissas nas quais pode ocupar o lugar de sujeito ou predicado Desse modo existem trecircs figuras vaacutelidas do silogismo segundo a exposiccedilatildeo de Aristoacuteteles nos capiacutetulos 4 a 6 do primeiro livro dos Analiacuteticos Anteriores No tocante agrave primeira figura do silogismo o termo meacutedio ocupa a posiccedilatildeo de sujeito na premissa maior e predicado na premissa menor cujos modos vaacutelidos dependendo da quantidade e da qualidade das proposiccedilotildees podem ser de quatro maneiras BARBARA CELARENT DARII e FERIO A segunda figura do silogismo consiste em possuir o termo meacutedio como predicado em ambas as premissas cujos modos satildeo CESARE CAMESTRES FESTINO e BAROCO Finalmente a terceira figura do silogismo consiste em possuir o termo meacutedio como sujeito em ambas as premissas cujos modos satildeo DARAPTI DISAMIS DATISI FELAPTON FESAPO e FERISON

Eacute manifesto que o entimema eacute um silogismo mas um silogismo imperfeito posto

que pode suprimir uma das duas premissas ou ateacute ambas Todavia se o entimema eacute um

silogismo imperfeito isso soacute pode ocorrer no acircmbito da loacutegica formal pois no acircmbito da

comunicaccedilatildeo com as multidotildees cujo escopo eacute a persuasatildeo ele permanece irretocaacutevel

Portanto no acircmbito do discurso retoacuterico os raciociacutenios completos e formalmente

elaborados que veiculassem aos ouvintes todas as premissas de um argumento aleacutem de

serem enfadonhos correriam o risco de cair no ridiacuteculo haja vista que algumas delas

seriam oacutebvias Aliaacutes utilizam-se as premissas ausentes que satildeo oacutebvias no cotidiano pela

linguagem natural e natildeo somente no discurso retoacuterico e reiteraacute-las poderiam cansar

inutilmente os interlocutores

Com o escopo de se obter melhor esclarecimento sobre a estrutura loacutegica do

entimema seria proveitoso o exame minucioso da maneira pela qual algumas premissas

satildeo subentendidas no acircmbito de um discurso retoacuterico Forbes I Hill analisa uma seacuterie de

entimemas tal como poderiam surgir num discurso retoacuterico em comparaccedilatildeo com

silogismos cujas premissas natildeo satildeo subentendidas Ele assim procede a fim de mostrar

que as regras formais da loacutegica no interior da argumentaccedilatildeo entimemaacutetica corresponde agraves

regras formais da silogiacutestica em geral exposta por Aristoacuteteles nos Analiacuteticos Anteriores

Segue o exemplo de entimemas alvitrado por Hill ldquoPor que deveriacuteamos marchar ateacute

Queroneso e combater contra Filipe A proacutepria conservaccedilatildeo esta eacute a razatildeo Porque se

natildeo fazermos ele venceraacute nossos aliados um atraacutes do outro ateacute que restemos somente noacutes

para lutarrdquo Segundo Hill ao se colocar todas as premissas que estatildeo subentendidas nestes

entimemas sob a forma dos silogismos vaacutelidos expressa por Aristoacuteteles nos Analiacuteticos

Anteriores entatildeo os entimemas se desdobrariam nos seguintes termos ldquoTodos os meios

de autoconservaccedilatildeo constituem o maior dos bens para Estado Possuir aliados eacute um dos

meios de autoconservaccedilatildeo Logo possuir aliados eacute um dos maiores bens para o Estado

Possuir aliados constitui um dos maiores bens para o Estado Filipe eacute um homem que

destruiraacute nossos aliados Portanto Filipe eacute um homem que destruiraacute um dos maiores bens

para o Estado Todos os homens que querem destruir um dos maiores bens para o Estado

satildeo homens que devemos combater Filipe eacute um homem que quer destruir um dos maiores

bens para o Estado Sendo assim Filipe eacute um homem que devemos combaterrdquo

(MURPHY 1989 45-47)

A disposiccedilatildeo dos argumentos na forma geral do silogismo permitiu-nos examinar

a validez estrutural que se encontra nas ldquoentrelinhasrdquo da exortaccedilatildeo ao combate exposto

no primeiro caso pelos entimemas poreacutem sua exposiccedilatildeo completa como jaacute frisado natildeo

seria exequiacutevel num discurso efetivo Aleacutem disso com base nas regras formais

estabelecidas por Aristoacuteteles nos Analiacuteticos Anteriores as quais foram verificadas

sumariamente no desdobramento dos entimemas foi possiacutevel assegurar que os

argumentos entimemaacuteticos satildeo logicamente vaacutelidos

53 A relevacircncia persuasiva da opiniatildeo geral e da adaptaccedilatildeo agrave mentalidade do auditoacuterio

Aleacutem dos aspectos do entimema ateacute aqui considerados conveacutem ainda destacar que

ele consiste num tipo de raciociacutenio desenvolvido unicamente para o niacutevel da mentalidade

do puacuteblico tendo como ponto de partida suas proacuteprias crenccedilas e valores Eacute um raciociacutenio

voltado para ouvintes comuns os quais natildeo obtiveram um treinamento especiacutefico em

loacutegica formal nem em filosofia por isso natildeo estariam em condiccedilotildees de abarcar com um

uacutenico olhar muitos assuntos e raciocinar a partir de coisas distantes A retoacuterica portanto

trata de questotildees sobre as quais se delibera e para as quais natildeo existem artes especiacuteficas

e isto perante um puacuteblico insipiente que seria incapaz de ver muitas coisas ao mesmo

tempo ou de seguir uma longa cadeia de raciociacutenios (Ret 1356b 43-47) Dessarte natildeo

seria apropriado ao orador empregar no seu discurso uma extensa cadeia de silogismos

pois seus ouvintes satildeo pessoas simples e as premissas a serem empregadas precisam ser

admitidas por todos (Ibid 1357a 1-18)

Para M F Burnyeat a funccedilatildeo da arte retoacuterica consiste em falar de assuntos

passiacuteveis de deliberaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos quais natildeo existem especialistas ou peritos para

determinar qualquer coisa com precisatildeo cujos resultados satildeo incertos e podem ser

determinados pela decisatildeo humana Aleacutem do orador natildeo ser um especialista sobre as

questotildees a serem decididas ele se dirige para uma audiecircncia de pessoas que natildeo podem

facilmente seguir uma longa sucessatildeo de raciociacutenios por isso uma das atribuiccedilotildees da

retoacuterica consiste em ajustar o discurso agraves limitaccedilotildees intelectuais da audiecircncia Portanto o

ldquobom entimemardquo eacute aquele que pode ser efetivamente compreendido por uma audiecircncia

de limitada capacidade mental (RORTY 1997 100)

E M Cope enfatiza que no acircmbito da argumentaccedilatildeo entimemaacutetica tudo deve ser

inteligiacutevel e popular sem longas cadeias de raciociacutenio que as pessoas comuns natildeo podem

seguir sendo tambeacutem dispensaacutevel o uso de definiccedilotildees rigorosamente exatas No entanto

eacute imprescindiacutevel que o orador leve em consideraccedilatildeo as premissas que satildeo popularmente

admitidas e reconhecidas em detrimento do emprego de axiomas ou princiacutepios das

ciecircncias exatas e especiais as quais requerem treinamento e estudo especiacuteficos Sendo

assim no discurso retoacuterico devem ser utilizados apenas princiacutepios gerais comuns a todo

o raciociacutenio aceitos e compreendidos por todas as pessoas (COPE 1867 12)

Jonathan Barnes salienta que na retoacuterica de Aristoacuteteles a audiecircncia e o assunto

determinam conjuntamente a espeacutecie de argumento que o orador deve empregar No que

concerne agrave audiecircncia eacute necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo que os discursos retoacutericos satildeo

ouvidos natildeo lidos e os ouvintes natildeo satildeo compostos de loacutegicos sutis Por essa razatildeo os

argumentos de um orador tecircm de ser curtos e simples podendo omitir o material que a

assistecircncia supriraacute sem dificuldade Aleacutem do que o orador precisa persuadir uma

audiecircncia efetiva por isso seus argumentos devem basear-se nas proposiccedilotildees que esta

provavelmente acreditaraacute e aceitaraacute E a respeito do assunto os oradores natildeo argumentam

sobre questotildees teacutecnicas ou seja eles natildeo tentaratildeo provar teoremas geomeacutetricos ou coisas

deste jaez Os oradores natildeo estatildeo preocupados com o que eacute conhecimento firme e certo

mas com o que os homens pensam em geral pois no mundo da accedilatildeo natildeo existem regras

sem exceccedilatildeo e as coisas natildeo acontecem de maneira invariaacutevel Portanto as premissas do

argumento de um orador devem consistir predominantemente de proposiccedilotildees que

possuem validade no mais das vezes mas natildeo absolutamente (BARNES 2009 342)

Por certo o entimema eacute um tipo de deduccedilatildeo mas eacute uma deduccedilatildeo de valor concreto

feita para uma apresentaccedilatildeo popular em oposiccedilatildeo a uma deduccedilatildeo abstrata e analiacutetica

proacutepria do ensino cientiacutefico Eacute um raciociacutenio de faacutecil manejo entre homens incultos

porque visa produzir a persuasatildeo e natildeo uma ἀπόδειξις ou seja uma demonstraccedilatildeo de

natureza cientiacutefica Isto posto diferentemente do silogismo cientiacutefico o entimema natildeo

possui por fundamento premissas verdadeiras e primeiras mas premissas verossiacutemeis e

algumas delas satildeo subentendidas no discurso retoacuterico

Em contraste com a tese defendida por Platatildeo no Fedro o Estagirita sustenta que o

conhecimento que o orador deve possuir para proferir um bom discurso deve limitar-se

agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras e uacuteteis para as multidotildees Nesse sentido

conveacutem sublinhar que Aristoacuteteles o qual na sua juventude condenou a retoacuterica isocraacutetica

por natildeo ser uma genuiacutena arte aproxima-se agora em alguns aspectos do pensamento

retoacuterico de Isoacutecrates

A filosofia platocircnica grosso modo eacute um estudo teoacuterico que se dedica a

investigaccedilotildees de toda sorte mediante o meacutetodo dialeacutetico cujo escopo eacute conhecer a

verdadeira essecircncia de certas ideias abstratas Todavia no pensamento de Isoacutecrates tais

ideias natildeo se relacionam agraves questotildees mais relevantes para a cidade quer dizer as questotildees

poliacuteticas A filosofia isocraacutetica portanto volta-se para a praacutetica discursiva fundamenta-

se no estudo das opiniotildees e sua finalidade suprema eacute a formaccedilatildeo dos jovens atenienses

para a vida poliacutetica democraacutetica (SCHIAPPA 1999 174) Natildeo obstante cabe frisar que

a distinccedilatildeo geralmente traccedilada por Platatildeo entre as palavras ldquoδόξαrdquo e ldquoἐπιστήμηrdquo a

primeira significando ldquoopiniatildeordquo e a segunda ldquoconhecimentordquo natildeo eacute precisamente aquela

feita por Isoacutecrates A concepccedilatildeo isocraacutetica de δόξα natildeo constitui uma opiniatildeo leviana ou

irresponsaacutevel traccedilo que eacute fortemente criticado nos sofistas os quais mereceriam todo o

desprezo por se dedicarem agraves disputas eriacutesticas em detrimento da busca pela verdade

(Contr Sof 1) mas eacute uma noccedilatildeo baseada na experiecircncia praacutetica dos homens e na

vivecircncia dos fatos (Ant 184) Noutros termos eacute o que se pode designar de opiniatildeo

compartilhada o bom senso ou a ponderaccedilatildeo vigente na vida comum Ademais a δόξα

eacute um tipo de juiacutezo que lida com as contingecircncias incertas de qualquer situaccedilatildeo humana

que se apresente (Ibid 184) Nessa perspectiva a δόξα natildeo representaria qualquer

opiniatildeo sem qualificaccedilatildeo mas ao mesmo tempo estaria longe de ser uma ciecircncia exata

Aristoacuteteles com efeito sustenta que a massa do povo possui em sua capacidade

coletiva qualidade de virtude e mesmo de prudecircncia que a torna no mais das vezes capaz

de exercer com suas opiniotildees melhor julgamento do que a minoria E sobre este assunto

Aristoacuteteles discorda categoricamente de Platatildeo o qual natildeo atribuiacutea nenhum meacuterito nem

via nenhuma utilidade no julgamento popular Platatildeo tambeacutem rejeita no Fedro a

verossimilhanccedila como fonte da argumentaccedilatildeo retoacuterica por serem opiniotildees aceitas pelo

coletivo o que transformaria o orador num mero bajulador Desse modo na visatildeo

platocircnica o bom orador natildeo deve se apropriar das crenccedilas do que pensam os homens em

geral sobre o que eacute justo bom e belo mas eacute necessaacuterio que ele conheccedila a essecircncia dessas

virtudes

No entanto o Estagirita sempre considera bom (ἀγαθός) o que a maioria deseja

assim como o que parece digno de ser disputado pois o que todos desejam eacute sem duacutevida

bom e a ldquomaioriardquo representaria ldquotodosrdquo (Ret 1363a 8-10) Para ele o que todos

preferem eacute melhor do que o que nem todos preferem e o que a maioria prefere eacute melhor

do que o que prefere a minoria (Ibid 1364b 48-50) E o que as pessoas sensatas todas

muitas a maioria ou as mais qualificadas julgariam ou tecircm julgado como um bem ou

um bem maior corresponderia necessariamente agrave realidade senatildeo em absoluto pelo

menos na medida da sensatez com que emitiram o seu juiacutezo (Ibid 1364b 13-17) Aleacutem

disso Aristoacuteteles sustenta que o orador ou qualquer outra pessoa dotada de prudecircncia

deve no mais das vezes acatar as palavras e opiniotildees (cientificamente) natildeo demonstradas

de pessoas mais experientes e mais idosas ou de pessoas com sabedoria praacutetica natildeo

menos que a prestada a declaraccedilotildees e opiniotildees demonstradas Porquanto as pessoas mais

experientes agem como se tivessem obtido pela experiecircncia um olho com o qual veem

corretamente (Eacutet Nic 1136b 10-15)

Ao explicar na Eacutetica a Nicocircmaco o conceito de felicidade Aristoacuteteles incorpora

intencionalmente elementos de outras crenccedilas sobre ela crenccedilas que amiuacutede podem ser

consideradas populares Estas por serem atraentes para a maioria ou para os saacutebios

contam como ἔνδοξα sobre a felicidade que o seu meacutetodo de investigaccedilatildeo (meacutetodo

doxaacutestico) deve respeitar Aliaacutes a ciecircncia praacutetica eacute um tipo de saber menos rigoroso do

que a ciecircncia teoreacutetica de modo que uma demonstraccedilatildeo suficiente naquele campo

consiste em identificar as proposiccedilotildees compatiacuteveis com as opiniotildees compartilhadas por

todos ou pela maioria Embora o Estagirita natildeo identifique a felicidade exclusivamente

com a virtude a prudecircncia o prazer ou as riquezas ele deixa expliacutecito que qualquer

definiccedilatildeo da felicidade precisa levar em consideraccedilatildeo as crenccedilas geralmente aceitas sobre

a mateacuteria Algumas dessas satildeo mantidas por muitos e satildeo antigas ao passo que outras satildeo

mantidas por alguns poucos homens de boa reputaccedilatildeo de modo que nenhuma delas falha

completamente sobre o significado da felicidade pelo contraacuterio acerta pelo menos numa

parte ou ateacute na maior parte (Ibid 1098b 23-30) Desse modo em contraposiccedilatildeo a Platatildeo

o Estagirita reabilita as opiniotildees compartilhadas pela maioria as quais podem tanto ser

aceitas e veiculadas no acircmbito do discurso retoacuterico em que o rigor cientiacutefico estaacute ausente

como podem ser utilizadas como fonte da investigaccedilatildeo cientiacutefica na forma de

conhecimento preliminar

Outrossim no capiacutetulo 23 do segundo livro da Retoacuterica Aristoacuteteles elenca 31

lugares-comuns (τόποι κοινοί) que satildeo tipos de argumentos que podem ser facilmente

localizados visto que foram devidamente memorizados pelo orador com o intuito de

serem empregados em todas as circunstacircncias possiacuteveis Os lugares-comuns tambeacutem

podem ser aplicados em questotildees de direito de fiacutesica de poliacutetica e demais disciplinas O

11ordm lugar-comum exposto por Aristoacuteteles diz respeito ao apelo agraves ἔνδοξα ou seja agraves

crenccedilas geralmente aceitas as quais satildeo consideradas pelo Estagirita como um importante

recurso persuasivo Este recurso deveras eacute obtido de um juiacutezo sobre um caso idecircntico

igual ou contraacuterio principalmente se for um juiacutezo de todos os homens e de todos os

tempos se natildeo for de todos pelo menos da maior parte deles ou dos saacutebios de todos

eles ou da maior parte ou ainda das pessoas de bem (Ret 1398b 26-30)

O fato das ἔνδοξα serem as premissas das argumentaccedilotildees retoacutericas fica mais claro

quando Aristoacuteteles fala de argumentaccedilotildees que natildeo satildeo persuasivas indicando por

conseguinte as caracteriacutesticas daquelas que o satildeo Para ele eacute possiacutevel formar silogismos

e tirar conclusotildees tanto de coisas antes estabelecidas pelo silogismo (cientiacutefico) como de

premissas de que natildeo se formou silogismo mas que o requerem por natildeo serem

comumente aceitas Destas duas linhas de raciociacutenio a primeira cadeia de silogismos eacute

necessariamente difiacutecil de seguir devido agrave sua extensatildeo enquanto que a segunda natildeo eacute

persuasiva pelo fato de natildeo derivar de premissas sobre as quais existe acordo ou que

participam da opiniatildeo comum (Ibid 1357a 10-18) Pode-se assegurar entatildeo que as

argumentaccedilotildees retoacutericas satildeo persuasivas simplesmente por estarem fundadas nas crenccedilas

ou opiniotildees geralmente aceitas

A despeito disso eacute preciso levar em consideraccedilatildeo que os oradores natildeo devem falar

tomando como ponto de partida da argumentaccedilatildeo retoacuterica todas as opiniotildees como se

todas elas fossem igualmente vaacutelidas mas somente as certas e determinadas por exemplo

as opiniotildees dos juiacutezes ou as opiniotildees daqueles que gozam de reputaccedilatildeo (Ibid 1395b 43-

45) Agrave vista disso Aristoacuteteles rejeita as opiniotildees contraacuterias ao senso comum como

legiacutetimas fontes da argumentaccedilatildeo retoacuterica ou seja ele rejeita aquilo que recebe o nome

de paradoxo (παράδοξος)

Com efeito se a ἔνδοξα consiste no que parece ser verdadeiro a todo o mundo ou

agrave maioria das pessoas ou ainda aos indiviacuteduos mais competentes a noccedilatildeo de παράδοξος

representa justamente a perspectiva contraacuteria O παράδοξος designa todas as proposiccedilotildees

que satildeo contraacuterias agrave opiniatildeo da maioria ao senso comum ou ao sistema de crenccedilas a que

se faz referecircncia (ABBAGNANO 2003 742) Por exemplo a defesa de Helena de Troia

empreendida por Goacutergias no Elogio de Helena mulher unanimemente reputada maacute e

injusta (El Hel sect 2) ou ainda a defesa de uma causa considerada por todos injusta e

fazecirc-la prevalecer sobre uma causa justa como procede Fidiacutepides na comeacutedia As Nuvens

que bem instruiacutedo pela arte retoacuterica acha-se autorizado a bater no pai e sustenta atraveacutes

de sutis argumentos que natildeo hesitaria em fazer o mesmo com sua matildee (Nuv 1405-1415

1440)

Na obra Dos Argumentos Sofiacutesticos o Estagirita orienta tanto o dialeacutetico como o

orador a induzir o adversaacuterio a cair em afirmaccedilotildees paradoxais ou seja afirmaccedilotildees

contraacuterias agrave opiniatildeo geral (Arg Sof 172b 10-173a 30) poreacutem se eles forem forccedilados a

enunciar algum tipo de paradoxo devem fazecirc-lo com a maior cautela acrescentando que

ldquoassim parecerdquo pois dessa forma evitam dar a impressatildeo de que foram refutados ao

afirmar um paradoxo (Ibid 176a 25-27) No entanto em situaccedilotildees especiais o paradoxo

pode ser o objeto de uma prova dialeacutetica se por exemplo ela for sustentada por um saacutebio

reputado no assunto Eacute justamente o que ocorre com a negaccedilatildeo da falta de domiacutenio

(ἀκρασία) por parte de Soacutecrates que apesar de contrariar o que eacute geralmente aceito eacute

tomada seriamente por Aristoacuteteles A teoria de Soacutecrates contestava completamente a de

Aristoacuteteles pois para aquele natildeo havia sentido a noccedilatildeo de ldquofalta de domiacuteniordquo de tal modo

que ningueacutem agiria contra a noccedilatildeo que tem do que eacute o melhor de tudo mas quando assim

procede faria simplesmente por ignoracircncia Entretanto na visatildeo de Aristoacuteteles esta

teoria seria paradoxal por estar manifestamente em contradiccedilatildeo com os fatos da vida (Eacutet

Nic 1145b 25-28)

Aristoacuteteles tambeacutem declara que os oradores natildeo devem tirar conclusotildees a partir de

premissas necessaacuterias mas das premissas que satildeo pertinentes na maior parte das vezes

(Ret 1396a 1-5) Por essa razatildeo os oradores incultos seriam mais persuasivos do que os

cultos diante das multidotildees porque amiuacutede enunciam premissas comuns e gerais (Ibid

1395b 37-43)

Eacute esta a razatildeo pela qual os oradores incultos satildeo mais persuasivos do que os cultos diante das multidotildees como dizem os poetas os incultos satildeo mais inspirados pelas musas diante da multidatildeo Com efeito os primeiros enunciam premissas comuns e gerais os segundos se baseiam no que sabem e no que estaacute proacuteximo do seu auditoacuterio

Em oposiccedilatildeo ao que preconiza Platatildeo no diaacutelogo Fedro o Estagirita afirma que o

orador natildeo precisa conhecer a realidade ou a essecircncia do que eacute justo bom e belo ou coisas

deste jaez nem possuir um entendimento discursivo da verdade sobre o assunto que

tenciona discutir Pelo contraacuterio nos limites da arte retoacuterica eacute necessaacuterio que o orador

contente-se com a indicaccedilatildeo da verdade aproximadamente em linhas gerais e fale de

coisas que satildeo verdadeiras na maioria das vezes e natildeo absolutamente Aleacutem do que na

visatildeo de Platatildeo a genuiacutena arte retoacuterica natildeo deve ser concebida como uma teacutecnica que

impotildee aos ouvintes certas opiniotildees que ensina a compor belos discursos com o intuito de

deixar vitoriosa a causa ruim e enfraquecer a boa mas deve ser um guia da alma para que

se alcance a verdadeira beleza e justiccedila Em certa medida Aristoacuteteles subscreve a funccedilatildeo

psicagoacutegica da arte retoacuterica defendida por Platatildeo qual seja a funccedilatildeo de guiar a alma dos

cidadatildeos para a praacutetica das virtudes poreacutem sua psicagogia natildeo pressupotildee o conhecimento

universal e necessaacuterio que somente o filoacutesofo seria capaz de apreender mas justamente

aquilo que eacute negado por Platatildeo qual seja a opiniatildeo geral (Arg Sof 175a 30-33)

Em primeiro lugar pois assim como dizemos que agraves vezes eacute preferiacutevel provar as coisas com plausibilidade a fazecirc-lo com verdade tambeacutem agraves vezes devemos dar soluccedilatildeo aos argumentos de acordo com a opiniatildeo geral e natildeo de acordo com a verdade

Aristoacuteteles assegura nos Toacutepicos que se algueacutem atua com pretenccedilotildees filosoacuteficas

precisa ter em vista a verdade mas os que atuam segundo a dialeacutetica (e a retoacuterica)

precisam ter em vista natildeo mais a verdade mas a opiniatildeo geral (Toacutep 105b 30-32) Isto

significa que tanto a dialeacutetica quanto a retoacuterica que utilizam como premissas de suas

argumentaccedilotildees as ἔνδοξα natildeo pretendem estabelecer a verdade nos moldes da ciecircncia

mas apenas argumentar no plano da opiniatildeo As ἔνδοξα natildeo valem como criteacuterio para o

estabelecimento do que eacute verdadeiro mas certamente como uma pressuposiccedilatildeo com base

na qual se prova a verdade de proposiccedilotildees Desse modo todo debate dialeacutetico e todo

discurso retoacuterico tem de comeccedilar com pontos de vista que os interlocutores e os ouvintes

partilham uns com os outros E se a finalidade da arte retoacuterica eacute obter um juiacutezo favoraacutevel

ao conteuacutedo do discurso e se o discurso cientiacutefico eacute impossiacutevel de ser compreendido pela

maioria dos ouvintes entatildeo torna-se imprescindiacutevel ao orador descer ao niacutevel intelectual

do auditoacuterio e fundamentar seu discurso na opiniatildeo puacuteblica do contraacuterio ele natildeo seraacute

capaz de persuadir acerca daquilo que eacute justo e verdadeiro

Os filoacutesofos como soacute procuram investigar a verdade e isto tratando com outros

filoacutesofos entram amiuacutede em discussotildees sutis e miuacutedas ateacute apreender a uacuteltima evidecircncia

e convicccedilatildeo Os oradores poreacutem precisam adaptar os seus discursos agraves ideias dos

ouvintes e falar no mais das vezes diante de homens inteiramente insipientes de modo

que se estes natildeo forem aliciados com o prazer e algumas vezes afetados com as emoccedilotildees

natildeo seraacute possiacutevel persuadi-los sobre aquilo mesmo que eacute justo e verdadeiro Por essa

razatildeo todo o objeto da persuasatildeo eacute relativo aos ouvintes e eacute de acordo com suas opiniotildees

que o orador deve ajustar o seu discurso

Tendo em vista a necessidade do orador descer ao niacutevel intelectual do auditoacuterio

satisfazecirc-lo e por conseguinte persuadi-lo sobre aquilo que eacute justo e verdadeiro

Aristoacuteteles leva em consideraccedilatildeo o emprego da maacutexima (γνώμη) Ele define a maacutexima

como uma afirmaccedilatildeo geral que natildeo se aplica a aspectos particulares mas ao universal

natildeo a todas as coisas mas agraves que envolvem as accedilotildees humanas (Ret 1394a 29-35)

Aristoacuteteles declara que a maacutexima eacute de grande utilidade nos discursos retoacutericos em virtude

da mente tosca (φορτικότητα) dos ouvintes que ficam contentes quando algueacutem falando

em termos gerais vai de encontro agraves opiniotildees que eles sustentam sobre assuntos

particulares E quando Aristoacuteteles utiliza o termo ldquoφορτικότηταrdquo ele pretende indicar o

espiacuterito rude a vulgaridade e a falta de cultura dos ouvintes de um discurso puacuteblico (Ibid

1395b 1-9)

Para Aristoacuteteles as maacuteximas prestam um grande auxiacutelio aos oradores puacuteblicos por

duas razotildees principais A primeira eacute a vaidade grosseira dos ouvintes que sentem prazer

quando o orador falando em geral vai ao encontro das opiniotildees que cada um sustenta

individualmente Assim o orador deve conjecturar quais satildeo as coisas que os ouvintes

tecircm subentendidas e falar dessas coisas em geral Por exemplo caso o ouvinte tivesse de

tratar com maus vizinhos ou maus filhos o orador oportunamente deveria enunciar as

seguintes maacuteximas ldquonada mais insuportaacutevel que a vizinhanccedilardquo ou ldquonada mais estuacutepido

do que ter filhosrdquo A segunda razatildeo seria a mais importante pois confere ao discurso um

caraacuteter eacutetico ao exprimir de forma geral as intenccedilotildees daquele que as veicula de modo

que se as maacuteximas satildeo honestas tambeacutem faratildeo que o caraacuteter do orador pareccedila honesto

(Ibid 1395b 1-23)

Conveacutem sublinhar que a segunda funccedilatildeo da maacutexima pode ser um elemento

complementar agrave prova psicoloacutegica ligada ao caraacuteter do orador (ἦθος) segundo a qual a

persuasatildeo se efetiva quando o discurso eacute proferido por um orador que goze de prestiacutegio

pois se ele parecer confiaacutevel o auditoacuterio iraacute formar o juiacutezo de que as proposiccedilotildees

apresentadas satildeo igualmente confiaacuteveis A utilizaccedilatildeo adequada da maacutexima por sua vez

reforccedilaria o ἦθος do orador no sentido inverso ou seja atraveacutes de maacuteximas honestas

cuidadosamente escolhidas e comunicadas ao puacuteblico o caraacuteter do orador pareceria

honesto

A metaacutefora retoacuterica tambeacutem atesta com precisatildeo o princiacutepio segundo o qual a

estrutura da expressatildeo enunciativa se explica inteiramente pelo fato de estar voltada para

um puacuteblico pouco capaz de bom discernimento por isso a metaacutefora constitui a uacutenica

aprendizagem possiacutevel a todos e sem duacutevida a que se efetiva com relativa facilidade A

metaacutefora entatildeo eacute ela proacutepria uma instruccedilatildeo porque natildeo exige grandes esforccedilos

intelectuais do puacuteblico e proporciona igualmente satisfaccedilatildeo Aliaacutes eacute prazerosa a proacutepria

sensaccedilatildeo de atividade que acompanha a busca de resoluccedilatildeo do enigma envolvido na

metaacutefora como dizer que ldquoum homem de bem eacute um quadradordquo posto que ambos

significam alguma coisa perfeita (Ibid 1411b 30-33) Sendo assim em virtude do baixo

niacutevel intelectual do puacuteblico a demonstraccedilatildeo entimemaacutetica deve estar acompanhada do

prazer cuja funccedilatildeo auxiliar eacute neutralizar as vaacuterias dificuldades dos ouvintes

Aristoacuteteles sublinha que o que eacute mais agradaacutevel eacute maior que o menos agradaacutevel jaacute

que todos os seres humanos buscam o prazer e por ele se deixam seduzir e este seria o

criteacuterio que amiuacutede o senso comum utiliza para identificar o bem humano (Ibid 1364b

29-32) E uma vez que a retoacuterica precisa ter em vista a opiniatildeo geral o uso da metaacutefora

ou de qualquer outro recurso estiliacutestico deve levar em consideraccedilatildeo a tendecircncia natural

dos seres humanos agrave obtenccedilatildeo do prazer A capacidade de suscitar o prazer eacute precisamente

o que faz da metaacutefora um recurso estiliacutestico de sucesso entre o puacuteblico Ela eacute apta para

neutralizar suas dificuldades de compreensatildeo fixaccedilatildeo da atenccedilatildeo e indisposiccedilatildeo em

relaccedilatildeo ao discurso Dessarte a expressatildeo enunciativa na retoacuterica de Aristoacuteteles procura

por diferentes meios o prazer do auditoacuterio pois com aqueles que apresentam dificuldade

em aprender a dimensatildeo do prazer constitui para o que ensina um aliado indispensaacutevel

(Ibid 1410b 13-20)

Uma aprendizagem faacutecil eacute por natureza agradaacutevel a todos por seu turno as palavras tecircm determinado significado de tal forma que as mais agradaacuteveis satildeo todas as palavras que nos proporcionam tambeacutem conhecimento Eacute certo que haacute palavras que nos satildeo desconhecidas embora as conheccedilamos no seu sentido ldquoapropriadordquo mas sobretudo a metaacutefora que provoca tal

Isto posto a metaacutefora retoacuterica possui dois aspectos que estatildeo intrinsecamente

ligados os quais favorecem substancialmente a persuasatildeo ela serve como um eficiente

recurso didaacutetico e como via para se obter a atenccedilatildeo do auditoacuterio por estar relacionada com

o prazer Aliaacutes seu uso seria muito apropriado no proecircmio ou seja na parte do discurso

que visa fundamentalmente seduzir o auditoacuterio e conquistar imediatamente sua simpatia

tornando-o doacutecil benevolente e atencioso

O importante na argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo eacute saber o que o proacuteprio orador considera

verdadeiro ou persuasivo mas qual eacute o parecer daqueles a quem o discurso se dirige

Nenhum orador poderia descuidar do esforccedilo de adaptaccedilatildeo ao auditoacuterio uma vez que o

bom orador precisa pautar sua argumentaccedilatildeo no consenso geral Por isso ao auditoacuterio

cabe o papel principal para determinar tanto a qualidade da argumentaccedilatildeo como o

comportamento dos oradores Todavia ao aceitar que a opiniatildeo da maioria possa ser

veiculada pelo discurso retoacuterico Aristoacuteteles natildeo estaacute subscrevendo a concepccedilatildeo dos

sofistas os quais em sua maioria identificavam a retoacuterica com o verdadeiro saber mas

apenas separando o acircmbito da filosofia onde se busca a verdade do acircmbito da retoacuterica

cujo ponto de partida natildeo eacute a verdade mas a opiniatildeo geral E agrave maneira de Platatildeo ele

admite uma ciecircncia que por via demonstrativa parta de premissas verdadeiras para

chegar agrave conclusotildees verdadeiras mas ao mesmo tempo ele rejeita que a ciecircncia mais exata

tenha alguma importacircncia na persuasatildeo de um auditoacuterio composto de ouvintes comuns

Portanto o discurso retoacuterico natildeo deve pautar-se em axiomas e princiacutepios que

caracterizam as ciecircncias exatas as quais visam atingir verdades necessaacuterias mas deve

considerar como fontes legiacutetimas para levar a cabo a persuasatildeo os valores comuns e as

opiniotildees dignas de confianccedila

Com efeito a diferenccedila entre as premissas cientiacuteficas e as premissas retoacutericas

consiste no fato de que as primeiras valem por forccedila de si mesmas ou seja independem

de qualquer reconhecimento exterior como o consenso do auditoacuterio enquanto que as

segundas valem por forccedila do reconhecimento que lhe eacute atribuiacutedo da parte de todos da

maioria dos mais saacutebios ou dos filoacutesofos As ἔνδοξα satildeo premissas ou opiniotildees natildeo

quaisquer opiniotildees mas somente as autorizadas as importantes as qualificadas agraves quais

se deve dar credibilidade por isso natildeo precisam ser verdadeiras no sentido estrito do

termo mas devem ser compartilhadas reconhecidas e aceitas por todos senatildeo por todos

ao menos pela maioria Agrave vista disso as opiniotildees que satildeo candidatas por assim dizer ao

tiacutetulo de ἔνδοξα estatildeo dispostas em ordem de autoridade decrescente Eacute manifesto que

nem todas as opiniotildees satildeo ἔνδοξα mas se a respeito de um assunto qualquer existir uma

opiniatildeo aceita por todos esta seraacute a princiacutepio considerada uma ἔνδοξα e se natildeo existir

uma opiniatildeo aceita por todos mas apenas pela maioria das pessoas a ἔνδοξα seraacute esta e

caso natildeo haja uma opiniatildeo aceita pela maioria delas eacute a opiniatildeo dos mais saacutebios que deve

ser aceita como ἔνδοξα se natildeo existir uma unanimidade entre os saacutebios a opiniatildeo da

maioria deles deve ser considerada ἔνδοξα se porventura a opiniatildeo natildeo for aceita pela

maioria deles eacute a opiniatildeo dos filoacutesofos que deve ser aceita como ἔνδοξα e se natildeo existir

unanimidade entre eles eacute a opiniatildeo dos filoacutesofos mais eminentes que precisa ser

considerada como tal

Aristoacuteteles persiste no valor daquilo que denomina ldquoopiniotildees dignas de confianccedilardquo

porque uma coisa que constitua objeto de crenccedila de todos os homens ou da maioria deles

ou pelo menos de todos os homens inteligentes ou da maioria deles eacute digna de confianccedila

e merece que se diga algo a seu favor E o que fundamenta em termos epistemoloacutegicos

esta concepccedilatildeo consiste no fato de que para o Estagirita os homens por sua proacutepria

natureza tendem ao saber (Met 980a 20) Mas aleacutem dessa tendecircncia natural que impele

o ser humano ao saber ele afirma que todas as coisas na natureza (φύσις) parecem estar

organizadas com vistas a um τέλος ou seja a um fim ou cumprimento de alguma coisa

(de onde deriva a expressatildeo teleologia) Por isso a explicaccedilatildeo de qualquer evento do

mundo tanto no aspecto natural como no artificial consistiria em aduzir o fim ou causa

final para o qual esse evento se dirige

Com efeito Aristoacuteteles declara que a natureza natildeo faz coisa alguma

mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria

cada coisa com um uacutenico propoacutesito de modo que cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

(Pol 1252b 11-14) Noutro passo da mesma obra ele afirma que a natureza natildeo faz coisa

alguma sem uma finalidade ou em vatildeo de modo que haacute um propoacutesito para tudo o que

existe (Ibid 1256b 37-38) E na obra Partes dos Animais ele estabelece sua concepccedilatildeo

teleoloacutegica da natureza de maneira categoacuterica aventando que as causas finais ocorrem

tanto nas obras da natureza como nas produccedilotildees artiacutesticas (Part An 369b 15-27)

Mais ainda uma vez que constatamos a existecircncia de causas diversas nos processos naturais caso por exemplo do objectivo e da origem de uma mudanccedila eacute preciso tambeacutem determinar qual delas eacute naturalmente a primeira e qual a segunda A primeira parece ser aquela que implica o ldquopara quecircrdquo de um processo ou seja a sua razatildeo de ser que eacute um princiacutepio comum agraves produccedilotildees artiacutesticas e agraves da natureza Eacute soacute depois de determinar o meacutedico pela reflexatildeo o que seja a sauacutede e o arquitecto pela constataccedilatildeo o que seja uma casa que um e outro podem explicar as razotildees e as causas das iniciativas que tomam e o porquecirc das suas opccedilotildees Mas haacute um objectivo mais forte e uma maior perfeiccedilatildeo nas obras da natureza do que nas de qualquer arte

Jonathan Barnes sustenta que na passagem acima das Partes dos Animais

Aristoacuteteles estabelece de maneira bem definida o que recebe o nome de ldquoconcepccedilatildeo

teleoloacutegica da naturezardquo segundo a qual a explicaccedilatildeo pelas causas finais ocorrem tanto

nas obras da natureza como nos produtos da habilidade humana A explicaccedilatildeo em termos

de causas finais seria tambeacutem uma explicaccedilatildeo em termos do ldquobemrdquo porque se as aves

nadadoras como os patos tecircm peacutes com membranas natatoacuterias em vista da nataccedilatildeo entatildeo

eacute bom para as aves ter peacutes com membranas natatoacuterias Aliaacutes as causas finais satildeo

primordiais porque se identificariam com ldquoa explicaccedilatildeo da coisardquo de modo que ser

nadador eacute parte da essecircncia do pato e uma explicaccedilatildeo adequada do que eacute ser um pato

requer a referecircncia a nadar Desse modo as causas finais natildeo seriam impostas agrave natureza

por consideraccedilotildees teoreacuteticas mas seriam observaccedilotildees da natureza (BARNES 2005 118)

A concepccedilatildeo teleoloacutegica de Aristoacuteteles parece ser uma consequecircncia do princiacutepio

de Anaxaacutegoras de que a Inteligecircncia (νόος) eacute a causa ordenadora do mundo e se a

Inteligecircncia ordena todas as coisas ela o faz do melhor modo possiacutevel (Met 984b 15-18)

Disso resulta que a natureza natildeo iria conceder aos homens o desejo pelo saber e tornar

impossiacutevel a sua realizaccedilatildeo haja vista que a natureza natildeo realiza coisa alguma em vatildeo

Assim se eacute natural o desejo epistecircmico tambeacutem eacute possiacutevel sua realizaccedilatildeo E apesar da

investigaccedilatildeo pela verdade constituir uma tarefa difiacutecil de realizar principalmente quando

as pessoas procuram apreendecirc-la de maneira isolada natildeo eacute possiacutevel que todos falhem

tentativa (Ibid 993a 30-993b 5)

Sob certo aspecto a pesquisa da verdade eacute difiacutecil sob outro eacute faacutecil Prova disso eacute que eacute impossiacutevel apreender adequadamente a verdade e igualmente impossiacutevel natildeo apreendecirc-la de modo nenhum de fato se cada um pode dizer algo a respeito da realidade e se tomada individualmente essa contribuiccedilatildeo pouco ou nada acrescenta ao conhecimento da verdade todavia da uniatildeo de todas as contribuiccedilotildees decorre um resultado consideraacutevel Assim se a respeito da verdade ocorre o que eacute afirmado no proveacuterbio ldquoQuem poderia errar uma portardquo entatildeo sob este aspecto ela seraacute faacutecil ao contraacuterio poder alcanccedilar a verdade em geral e natildeo nos particulares mostra a dificuldade da questatildeo

Para o Estagirita a aquisiccedilatildeo da verdade eacute aacuterdua e lento o progresso da ciecircncia O

primeiro passo eacute o mais difiacutecil porque natildeo se dispotildee de nada que possa guiar a

investigaccedilatildeo mas posteriormente o progresso torna-se mais faacutecil De fato enquanto

indiviacuteduos contribui-se pouco para a massa crescente do conhecimento mas

coletivamente isto eacute realizaacutevel Aleacutem do mais os seres humanos tecircm uma inclinaccedilatildeo

natural para a verdade e a maior parte das vezes satildeo capazes de alcanccedilaacute-la (Ret 1355a

19-21)

Com base nas noccedilotildees apresentadas sobre a tendecircncia natural do ser humano para o

conhecimento e a possibilidade cognoscitiva de alcanccedilaacute-lo pode-se assegurar que as

pessoas em geral quando acreditam em alguma coisa ou quando datildeo o seu assentimento

a uma determinada crenccedila seria jaacute um indiacutecio de que a mesma eacute mais verdadeira que

falsa e por conseguinte digna de ser considerada uma ἔνδοξα Esta perspectiva aparece

de maneira expliacutecita numa passagem da Eacutetica a Eudemo na qual Aristoacuteteles declara que

pelo fato de todos os homens possuiacuterem algo de apropriado em relaccedilatildeo agrave verdade o

consenso entre eles natildeo seria apenas a condiccedilatildeo necessaacuteria mas tambeacutem um indiacutecio quase

suficiente da verdade por isso qualquer investigaccedilatildeo racional precisa partir dos

fenocircmenos como testemunhos e exemplos (μαρτυρίοις καὶ παραδείγμασι χρώμενον τοῖς

φαινομένοις) quer dizer dos juiacutezos ou das opiniotildees geralmente aceitas (Eacutet Eud 1216b

26-35) Portanto uma afirmaccedilatildeo que pode ser repetida por todas as pessoas ou pela

maioria delas deve corresponder ao que tem de ser ou seja eacute certamente um princiacutepio

geral natildeo sendo possiacutevel que este indiacutecio seja um erro cometido por todas as pessoas

Jonathan Lear enfatiza que na visatildeo de Aristoacuteteles todas as crenccedilas representam

uma ldquoestocada na verdaderdquo ou seja representam uma aproximaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave verdade

E haja vista que as crenccedilas satildeo formadas agrave base de interaccedilatildeo com o mundo Aristoacuteteles

acharia muito improvaacutevel ou raro que uma crenccedila qualquer seja completamente

equivocada e natildeo encerre qualquer elemento de verdade Aliaacutes natildeo somente o

conhecimento se acumularia com os humildes esforccedilos de pensadores e pesquisadores

como tambeacutem ateacute as falsas crenccedilas seriam normalmente formadas a partir de noccedilotildees

razoaacuteveis Esta seria uma das razotildees pelas quais Aristoacuteteles acreditava ser necessaacuterio

investigar as crenccedilas dos homens mesmo as mais imprecisas pois vendo-se como eles

tropeccedilam seria possiacutevel obter um apanhado mais claro da verdade (LEAR 2006 21)

Em concordacircncia as noccedilotildees apresentadas Otfried Houmlffe sustenta que quanto mais

Aristoacuteteles relaciona-se com as visotildees correntes tanto mais vecirc nelas um paracircmetro de

verdade Agraves opiniotildees universalmente partilhadas ele atribuiria uma suposiccedilatildeo de verdade

uma vez que todos os seres humanos trazem em si algo que estaacute em relaccedilatildeo com a verdade

e como totalidade elas natildeo poderiam desviar-se da verdade No entanto algumas vezes

as opiniotildees dos especialistas contradizem aquelas da maioria e para a exigida escolha

Aristoacuteteles aduziria como criteacuterio a ampla divulgaccedilatildeo uma certa medida de

fundamentaccedilatildeo a idade condigna e o suporte atraveacutes das opiniotildees de autoridades

reconhecidas E apesar das opiniotildees reconhecidas serem amiuacutede verdadeiras elas ainda

permaneceriam obscuras e imprecisas o que natildeo impediria o Estagirita de recusar em

algumas ocasiotildees a opiniatildeo da maioria Por exemplo a opiniatildeo corrente identifica a

felicidade com algo visiacutevel como o prazer a riqueza ou a honra mas ele a concebe como

a vida dedicada agrave atividade teoreacutetica Pode-se assegurar entatildeo que o pensamento de

Aristoacuteteles estaria fortemente ligado ao senso comum mas a um tipo de senso comum

que eacute qualificado e aberto agrave criacutetica (HOumlFFE 2008 90-92)

De acordo com Aristoacuteteles o discurso retoacuterico comporta trecircs elementos quais

sejam o orador o assunto de que se fala e o ouvinte Existe entatildeo uma relaccedilatildeo

indissociaacutevel entre o orador o ouvinte e o conteuacutedo do discurso e estes trecircs elementos

formam uma unidade mas eacute o ouvinte (ἀκροατής) que constitui o fim para o qual todos

os esforccedilos do orador precisam dirigir-se (Ret 1358a 47-51) Assim ao vincular os

fatores referentes ao orador e ao ouvinte o Estagirita atribui agrave retoacuterica uma funccedilatildeo

sumamente interpessoal de cujos componentes depende igualmente o vigor persuasivo do

discurso E no acircmbito da persuasatildeo o εἰκός representa um fator crucial pois ele se abre

agrave comunidade poliacutetica na medida em que se fundamenta nos valores compartilhados pela

maioria dos cidadatildeos razatildeo pela qual Aristoacuteteles inclui a retoacuterica no acircmbito da ciecircncia

poliacutetica (Ibid 1356a 25-34)

Entretanto conforme a concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo ao ser neutralizada a via do

εἰκός estaraacute tambeacutem neutralizada toda e qualquer participaccedilatildeo tanto do emissor quanto

do receptor do discurso Desse modo toda concessatildeo feita ao ouvinte seraacute interpretada

por Platatildeo como imposiccedilatildeo descabida de um ponto de vista como prestidigitaccedilatildeo

enganadora ou pura adulaccedilatildeo Mas para Aristoacuteteles o orador o ouvinte e o assunto do

discurso constituem realidades indissociaacuteveis determinando unitariamente a mensagem

global E a esses trecircs elementos correspondem outros tantos tipos de πίστεις ἔντεχνοι ou

seja aquelas provas que podem ser fornecidas pelo meacutetodo retoacuterico ndash umas referentes ao

ἦθος ou ao caraacuteter do orador outras a respeito do πάθος que consiste na disposiccedilatildeo

afetiva em que se coloca o ouvinte e finalmente as que se referem ao λόγος ou seja as

provas que se relacionam com o proacuteprio discurso enquanto demonstra ou parece

demonstrar alguma coisa Isto posto Aristoacuteteles enfatiza tanto a relaccedilatildeo fundamental

tripartite de orador conteuacutedo do discurso e ouvinte quanto os chamados trecircs meios de

persuasatildeo ἦθος πάθος e λόγος Em sua parte especiacutefica ele tambeacutem aborda o objeto dos

trecircs gecircneros de discurso puacuteblico συμβουλευτικός δικανικός e o ἐπιδεικτικός juntamente

com o seu lugar na vida puacuteblica e com o seu fim uacuteltimo Aleacutem do que ele considera as

condiccedilotildees psicoloacutegicas eacuteticas e poliacuteticas com cujo auxiacutelio um orador pode despertar a

capacidade de juiacutezo da assistecircncia e obter sua aprovaccedilatildeo

Pode-se assegurar entatildeo que no sistema retoacuterico de Aristoacuteteles o homem ocupa o

centro natildeo o homem enquanto ser individual mas o homem que tem suas crenccedilas

compartilhadas por seus concidadatildeos a saber o homem poliacutetico E conforme as

premissas verossiacutemeis satildeo chanceladas pelo grupo social configuram-se num patrimocircnio

cultural compartilhado por todos Assim no acircmbito da arte retoacuterica tanto o

desenvolvimento como o ponto de partida da argumentaccedilatildeo pressupotildeem o acordo ou o

consenso do auditoacuterio pois do princiacutepio ao fim a anaacutelise da argumentaccedilatildeo versa sobre o

que eacute possivelmente admitido pelos cidadatildeos

Eacute manifesto que a perspectiva ldquoantropocecircntricardquo da arte retoacuterica defendida por

Aristoacuteteles eacute diametralmente oposta agrave concepccedilatildeo ldquoteocecircntricardquo presente tanto na

concepccedilatildeo retoacuterica de Soacutecrates (na Defesa de Soacutecrates de Platatildeo e na Apologia de

Soacutecrates de Xenofonte) como na que eacute exposta de maneira incontestaacutevel por Platatildeo no

diaacutelogo Fedro

No seu discurso judicial Soacutecrates declara que a ordem para que natildeo se envolvesse

em assuntos poliacuteticos foi dada pelo δαιμόνιον ou seja por sua divindade pessoal Ele

tambeacutem propotildee comunicar o seu discurso de defesa numa linguagem ordinaacuteria que se

apresenta diretamente em sua alma em coerecircncia com o que acredita ser verdadeiro e

esta tarefa teria sido outorgada pelo deus de Delfos Ele ainda assegura que por duas vezes

tentou elaborar uma defesa agrave maneira dos oradores mais competentes poreacutem sua

divindade pessoal natildeo o permitiu Desse modo a arte retoacuterica para Soacutecrates natildeo deve

depender do que eacute admitido pelos cidadatildeos tampouco deve comprometer-se em agradaacute-

los pelo contraacuterio deve depender do que interessa agrave divindade e por conseguinte agradaacute-

la acima de tudo

No que tange a Platatildeo a retoacuterica genuiacutena eacute aquela que conquistaria por suas razotildees

os proacuteprios deuses Por essa razatildeo o orador jamais deveria preocupar-se em agradar os

homens mas somente os deuses e proferir um discurso digno da divindade o qual deve

ser condicionado pela ἀλήθεια e natildeo pelo εἰκός Outrossim ele registra no Fedro que o

δαιμόνιον natildeo deixou Soacutecrates partir antes de se purificar como se tivesse cometido uma

impiedade contra a divindade A impiedade atribuiacuteda a Soacutecrates refere-se ao primeiro

discurso proferido por este a Fedro no qual aquele natildeo havia exposto adequadamente as

qualidades de Eros que eacute uma divindade Ademais a contemplaccedilatildeo das Ideias que eacute uma

daacutediva concedida por Eros na forma de uma possessatildeo ou loucura divina constitui a

precondiccedilatildeo para o verdadeiro discurso retoacuterico

Werner Jaeger subscreve a tese de que a atitude de Platatildeo acerca da arte retoacuterica eacute

essencialmente teocecircntrica Todavia essa teoria natildeo seria exclusiva do Fedro pois

tambeacutem estaria presente em outros de seus diaacutelogos Para ele Platatildeo demonstra no Fedro

a necessidade do saber para o retoacuterico salientando que a descoberta do εἰκός em que se

baseia quase sempre a argumentaccedilatildeo retoacuterica pressupotildee o conhecimento da verdade O

εἰκός entatildeo natildeo seria outra coisa senatildeo o que aparece semelhante agrave verdade E como

Platatildeo reconhece a verdadeira finalidade da retoacuterica natildeo consistiria em falar para agradar

aos homens mas sim em agradar a Deus Eacute a teoria conhecida de a A Repuacuteblica do

Teeteto e das Leis Agrave vista disso todas as aporias das suas obras anteriores

desembocariam na atitude rigorosamente teocecircntrica que caracteriza a paideia de sua

uacuteltima fase (JAEGER 2003 1271)

Mediante a atuaccedilatildeo dos filoacutesofos Platatildeo cogita apagar e redesenhar na cidade os

costumes dos homens ateacute que sejam criados os caracteres humanos o mais possiacutevel de

acordo com o θεῖος παράδειγμα ou seja o modelo divino que ele elaborou pelo discurso

de Soacutecrates no decorrer do diaacutelogo A Repuacuteblica O filoacutesofo agrave maneira de um pintor

(ζώγραφος) apoacutes apanhar na cidade e nos caracteres humanos como se fosse um quadro

deve por conseguinte purificaacute-los depois disso conveacutem que ele trace o esquema da

constituiccedilatildeo para que em seguida com mistura e diluiccedilatildeo formar a tez humana

(ἀνδρείκελον) das vaacuterias ocupaccedilotildees de aspecto divino e semelhante aos deuses (Rep

501a-c)

[] jamais uma cidade seraacute feliz se natildeo a desenharem pintores que sigam o modelo divino [] Tomariam disse eu a cidade e os costumes dos homens e como se fosse um quadro comeccedilariam fazendo-a limpa tarefa natildeo muito faacutecil [] Em seguida penso eu ao se porem ao trabalho voltariam amiuacutede de olhos para os dois lados para aquilo que por natureza eacute justo belo temperante ou tem qualidades semelhantes e para aquilo que estivessem criando no meio dos homens misturando e temperando cores a partir das ocupaccedilotildees deles para chegar ao tom da tez humana tomando como base aquilo que quando existente entre os homens tambeacutem Homero chamou de divino e semelhante aos deuses [] E ora creio apagariam um traccedilo ora incluiriam outro ateacute conseguirem fazer que os caracteres humanos fossem tanto quanto possiacutevel agradaacuteveis aos deuses

Visto que para Platatildeo o criteacuterio atraveacutes do qual o discurso retoacuterico torna-se legiacutetimo

eacute sua vinculaccedilatildeo com o modelo divino entatildeo natildeo compete ao orador determinar segundo

seus interesses particulares a natureza dos assuntos tratados no discurso mas deve

sempre pronunciar a verdade em detrimento das crenccedilas compartilhadas pelos ouvintes

Mas para isto ser possiacutevel o orador deve compreender as coisas de acordo com as Ideias

que partem da multiplicidade das sensaccedilotildees para uma unidade (conceito universal) que eacute

inferida pela reflexatildeo filosoacutefica Assim os conceitos universais contidos em todo

conhecimento humano existem como Ideias ou seja como entidades eternas e imutaacuteveis

que existem separadas das coisas particulares e oferecem a estas o seu modelo coisas

essas que obtecircm o seu ser por participaccedilatildeo (μέθεξις) nas Ideias Estas portanto satildeo

aqueles modelos ideais das coisas particulares que natildeo dispotildeem apenas de uma realidade

proacutepria mas de uma realidade no sentido estrito do termo que existem

independentemente da opiniatildeo dos indiviacuteduos e que as almas filosoacuteficas desejam

contemplar acima de qualquer coisa

Conforme analisamos anteriormente Platatildeo exige que o orador seja capaz de

apreender as Ideias antes de proferir o seu discurso pois o orador que ignora a essecircncia

do que eacute justo ou injusto mau ou bom natildeo pode escapar nunca agrave censura que merece

ainda que a multidatildeo o louve Mas eacute com grande dificuldade que poucos iniciados

conseguem contemplar as Ideias E agrave maneira das diversas artes e ciecircncias Platatildeo exige

que existam especialistas altamente capacitados em mateacuteria de discurso razatildeo pela qual

ele rejeita a pretensatildeo da democracia de fazer do discurso retoacuterico algo universalmente

partilhado

Outrossim Platatildeo critica a democracia pelo fato dela sempre pressupor o desacordo

entre os cidadatildeos natildeo como um mal temporaacuterio a ser superado numa unanimidade futura

(como tenciona o empreendimento dialeacutetico) mas como uma condiccedilatildeo inerente agrave proacutepria

sociedade democraacutetica Para ele nenhum valor permanente poderia predominar em tal

sociedade jaacute que os cidadatildeos por possuiacuterem a παρρησία ou seja o direito de livre

expressatildeo podem concordar somente em discordar eles tecircm a licenccedila para fazer o que

querem e ainda podem organizar o modo de vida que mais lhes agrade (Ibid 557b) O

regime democraacutetico eacute comparado por Platatildeo a um manto multicolorido com muitas flores

bordadas capaz de seduzir crianccedilas e mulheres mas eacute somente belo na aparecircncia porque

esta forma de governo que privilegia a liberdade eacute bordada com todo tipo de caraacuteter de

modo que os cidadatildeos natildeo recorrem a nenhum valor comum e natildeo estimulam qualquer

virtude puacuteblica (Ibid 557c) Pelo contraacuterio com soberba a democracia tende a neutralizar

o estudo necessaacuterio para a formaccedilatildeo do bom governante que desde a infacircncia deve

envolver-se somente com belas atividades (Ibid 558b) Aleacutem do mais a proacutepria

concepccedilatildeo de um governante superior aos cidadatildeos que seja capaz de transmitir pelo seu

discurso a noccedilatildeo do justo do belo e do bom constituiria algo repugnante num regime

democraacutetico que por sua proacutepria natureza eacute isento de chefes (Ibid 558c) Sendo assim

na visatildeo de Platatildeo o criteacuterio de validade de um discurso natildeo deve relacionar-se com uma

regra majoritaacuteria qualquer como a opiniatildeo da maioria pois a arte retoacuterica deve ser antes

de mais nada um assunto da competecircncia de filoacutesofos

Entretanto para Aristoacuteteles a arte retoacuterica natildeo eacute o patrimocircnio exclusivo de uma

elite de especialistas ou filoacutesofos longe disso ela se abre agraves perspectivas individuais de

cada ser humano configura-se num instrumento de afirmaccedilatildeo da liberdade de expressatildeo

valoriza o jogo de interesses e motivaccedilotildees humanos e tambeacutem destaca o caraacuteter

interpessoal do discurso Para Aristoacuteteles a persuasatildeo retoacuterica eacute melhor que o uso da

forccedila fiacutesica e a retoacuterica eacute por excelecircncia a ldquoarte democraacuteticardquo a qual natildeo pode quer em

sua forma deliberativa quer em sua forma judicial desenvolver-se sob um regime

autoritaacuterio ou tiracircnico razatildeo pela qual ele enfatiza que o nascimento da arte retoacuterica na

Siciacutelia coincidiu com a expulsatildeo dos tiranos (Ret 1402a 23-24) Aliaacutes Aristoacuteteles

explicita que ordinariamente a maioria das pessoas exerce a retoacuterica mesmo que ao acaso

ou mediante a praacutetica que resulta do haacutebito A retoacuterica portanto natildeo pode ser uma praacutetica

exclusiva de poucos especialistas visto que os cidadatildeos comuns jaacute participam dela

(mesmo desconhecendo seus princiacutepios e regras gerais) na medida em que procuram

eventualmente questionar e sustentar um argumento defender ou acusar

No diaacutelogo Fedro o filoacutesofo Platatildeo subordinou a arte retoacuterica agrave filosofia

Aristoacuteteles por sua vez separou uma da outra apresentando-as como disciplinas distintas

e complementares E diferente de Platatildeo o interesse de Aristoacuteteles natildeo se limitou a

apresentar uma conexatildeo entre o discurso retoacuterico e a verdade das proposiccedilotildees poreacutem

levou em consideraccedilatildeo a dimensatildeo da comunicaccedilatildeo e do uso puacuteblico da linguagem Isto

posto a referecircncia do discurso natildeo se encontra em objetos ideais transcendentes e

acessiacuteveis a um pequena classe de privilegiados mas constitui-se pelas opiniotildees ou pelo

conjunto das crenccedilas da comunidade as quais configuram-se tanto na mateacuteria prima como

no criteacuterio da argumentaccedilatildeo retoacuterica

Decerto as crenccedilas da comunidade possuem para Aristoacuteteles um papel fundamental

na argumentaccedilatildeo retoacuterica porque esta natildeo tem por objetivo expor a verdade cientiacutefica

mas a verossimilhanccedila a qual soacute eacute vaacutelida naquilo que concebe o auditoacuterio A arte retoacuterica

de Aristoacuteteles eacute adaptada ao niacutevel intelectual dos ouvintes ao senso comum agrave opiniatildeo

corrente por isso conveacutem aos produtos da cultura de massa em que impera as crenccedilas que

o puacuteblico julga verdadeiras Porquanto ainda que o orador possua a ciecircncia mais exata

natildeo seria capaz de persuadir com ela um auditoacuterio composto por pessoas comuns (Ibid

1355a 32-34) Desse modo parece ser mais uacutetil veicular aquilo que o puacuteblico acha

verdadeiro mesmo que seja cientificamente impreciso do que expor o que na realidade

eacute cientificamente verdadeiro e ser rejeitado pela opiniatildeo puacuteblica Pode-se assegurar

entatildeo que o poder persuasivo da arte retoacuterica estaacute limitado agraves opiniotildees oficiais existentes

e as crenccedilas que prevalecem numa determinada sociedade Essa dimensatildeo da realidade

poliacutetica ou social como limitante do poder da retoacuterica eacute o que fundamenta a asserccedilatildeo de

Soacutecrates no diaacutelogo Defesa de Soacutecrates de que uma maneira de persuadir sua audiecircncia

seria mais faacutecil do que a outra embora esta outra expresse a verdade dos fatos Portanto

as crenccedilas existentes numa sociedade satildeo tatildeo cruciais para a persuasatildeo puacuteblica que nem

o mais habilidoso orador seria capaz de persuadir seus ouvintes contrariando

explicitamente crenccedilas arraigadas de maneira poderosa e profunda

Examinamos ateacute aqui a concepccedilatildeo platocircnica acerca da arte retoacuterica assim como o

seu contraste em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo retoacuterica sustentada por Aristoacuteteles Dessa avaliaccedilatildeo

foi possiacutevel ressaltar subjacentemente algumas noccedilotildees que aproximam o pensamento

retoacuterico de Aristoacuteteles da sofiacutestica sobretudo a noccedilatildeo de que os argumentos retoacutericos

devem ser formados de opiniotildees comuns tendo em vista a comunicaccedilatildeo com as

multidotildees Todavia a partir do proacuteximo capiacutetulo analisar-se-aacute a concepccedilatildeo retoacuterica dos

sofistas Goacutergias e Protaacutegoras e por conseguinte sua contraposiccedilatildeo relativamente a

Aristoacuteteles Esta investigaccedilatildeo natildeo visa somente evidenciar a discordacircncia entre

Aristoacuteteles e a sofiacutestica mas trazer agrave baila em termos mais definidos os pontos nos quais

o Estagirita se aproxima do seu mestre mormente em relaccedilatildeo agrave funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da

arte retoacuterica cujo corolaacuterio seraacute a visatildeo de um quadro mais completo da tese que

tencionamos demonstrar

6 A concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas Goacutergias e Protaacutegoras

61 Aspectos gerais do movimento sofista

De acordo com G B Kerferd certos aspectos da vida de Atenas na segunda metade

do seacuteculo V aC poderiam sugerir que estava ocorrendo uma mudanccedila bastante

fundamental em direccedilatildeo a uma sociedade na qual o que as pessoas pensavam e falavam

comeccedilava a ser mais relevante do que os proacuteprios fatos reais Assim a mentalidade que

teria emergido no seacuteculo V aC baseava-se na compreensatildeo de que a relaccedilatildeo entre o

discurso e o fato real estava longe de ser um acontecimento simples E apesar de ser

provaacutevel que os pensadores do seacuteculo em apreccedilo estivessem preparados para aceitar que

haacute e deve haver sempre uma relaccedilatildeo entre os dois havia um crescente entendimento de

que o que estaacute envolvido no conhecimento humano natildeo eacute simplesmente a apresentaccedilatildeo

dos fatos em palavras mas antes uma representaccedilatildeo das coisas (KERFERD 2003 135)

Conveacutem ainda considerar que nessa eacutepoca a cidade de Atenas havia conquistado o

domiacutenio poliacutetico e exercia tambeacutem uma espeacutecie de hegemonia cultural sobre toda a

Heacutelade por isso tornou-se rapidamente um centro cultural para onde convergiram muitos

pensadores que aspiravam por notoriedade incluindo os sofistas (σοφισταί) Estes vieram

de toda parte do mundo grego e alguns continuaram a viajar por toda parte em funccedilatildeo de

sua atividade profissional Todavia a maioria se dirigiu para Atenas a qual representou

o verdadeiro centro do movimento sofista por pelo menos sessenta anos (Ibid 2003 31-

32) Mas antes de prosseguirmos no exame do movimento sofista eacute pertinente a anaacutelise

sumaacuteria do significado etimoloacutegico da palavra ldquosofistardquo

Segundo W K C Guthrie a palavra ldquosofistardquo (σοφιστής) que significa

literalmente ldquosaacutebiordquo a qual ateacute o seacuteculo V aC natildeo tinha adquirido um sentido pejorativo

se aplicava aos sete saacutebios (σοφοί) da tradiccedilatildeo grega40 cuja sabedoria consistia sobretudo

na arte praacutetica de estadista As palavras gregas σοφός e σοφία que mormente satildeo

traduzidas por ldquosaacutebiordquo e ldquosabedoriardquo foram usadas desde os tempos mais antigos para

designar uma qualidade intelectual ou espiritual Este sentido passou facilmente para o de

40 Na lista oferecida por Platatildeo a respeito dos sete saacutebios da tradiccedilatildeo grega menciona-se Piacutetaco de Mitilene Periandro de Corinto Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Quiacutelon de Esparta Cleoacutebulo de Lindos e Bias de Priene (Prot 343a)

conhecedor geral ou prudente Nesse sentido as palavras ldquoσοφιστήςrdquo e ldquoσοφόςrdquo por

muito tempo foram consideradas como sinocircnimas Σοφιστής tambeacutem se aplicava muitas

vezes a poetas pois no modo de ver dos gregos instruccedilatildeo praacutetica e conselho moral

constituiacuteam a funccedilatildeo preciacutepua do poeta Todavia no seacuteculo V aC a palavra comeccedilou a

ser usada para escritores em prosa em contraste a poetas quando a funccedilatildeo didaacutetica veio a

se exercer cada vez mais por este meio Por conseguinte um σοφιστής eacute aquele que

escreve e ensina porque tem especial periacutecia ou conhecimento para comunicar-se mas

sua σοφία eacute eminentemente praacutetica quer nos campos da conduta e poliacutetica quer nas artes

teacutecnicas Natildeo obstante os atenienses tendiam a desconficar de intelectuais versados

professores e coisas deste jaez cujas qualidades sintetizam-se na palavra δεινότης com o

adjetivo δεινός Degenerando como acontece com as palavras no uso popular δεινότης

se torna vinculada com σοφός para significar astuto ou esperto principalmente aquele

que eacute perito em discursos e na argumentaccedilatildeo Sendo assim temos a partir de seacuteculo V

aC o adjetivo δεινός ligado expressamente a σοφιστής para ser sentido como insulto

cuja esperteza eacute utilizada para objetivos errados (GUTHRIE 2007 31-36)

A segunda metade do seacuteculo V aC foi o tempo em que se produziu por parte dos

sofistas uma reaccedilatildeo contra toda especulaccedilatildeo fiacutesica Eles teriam deflagrado uma

verdadeira rebeliatildeo contra a distacircncia e a incompreensibilidade do mundo tal como os

fiacutesicos o representavam e iniciado as investigaccedilotildees sobre os assuntos ligados agrave vida

humana Para Guthrie isto teria ocorrido porque as teorias dos filoacutesofos da natureza natildeo

eram satisfatoacuterias nem particularmente criacuteveis porquanto o que eles chamavam de

ldquonatureza real das coisasrdquo era algo extremamente remoto em relaccedilatildeo ao mundo concreto

no qual as pessoas viviam Agrave vista disso a natureza do mundo real resultava de pouca

importacircncia para indiviacuteduos que tinham de lidar todos os dias com um mundo

completamente distinto (Id 2010 74) Importa ainda considerar que apesar da oposiccedilatildeo

dos sofistas em relaccedilatildeo agraves especulaccedilotildees dos primeiros filoacutesofos eles natildeo constituiacuteram

uma escola filosoacutefica particular Na verdade eles eram sobretudo mestres ambulantes

que se orientavam para os assuntos praacuteticos da vida motivados pelas crescentes

oportunidades para tomar parte na vida poliacutetica pela insatisfaccedilatildeo cada vez maior a

respeito das doutrinas dos filoacutesofos da natureza e pelo crescente ceticismo acerca da

validez do ensino religioso tradicional com suas representaccedilotildees dos deuses toscamente

antropomoacuterficos (Ibid 2010 77)

Os sofistas com efeito natildeo podem ser considerados membros de uma escola posto

que eram muito individualistas para admitir um mestre fundador de quem seriam

seguidores Ademais como todo conhecimento implica na aprendizagem que depende

das circunstacircncias do mestre e do disciacutepulo natildeo se poderia transformar a sofiacutestica num

corpo doutrinaacuterio transferiacutevel de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo Os sofistas natildeo formaram uma

corrente filosoacutefica mas certamente constituiacuteram uma profissatildeo a qual teria o seguinte

aspecto em comum a natureza essencialmente praacutetica dos seus ensinamentos Aliaacutes um

assunto em especial que pelo menos todos os sofistas praticavam e ensinavam em comum

era a retoacuterica ou arte do λόγος Um claro exemplo da natureza praacutetica dos ensinamentos

dos sofistas eacute a anedota atribuiacuteda por Platatildeo ao sofista Hiacutepias o qual teria se apresentado

no jogos oliacutempicos levando coisas que ele mesmo havia fabricado (Hip Men 368b-c)

Soacutecrates ndash Adiante pois Hiacutepias Deixa-me levar-te a fazer um exame semelhante em todas as ciecircncias para te assegurares de que em nenhuma se passam as coisas de maneira diferente Ora tu eacutes entre todos os homens o mais saacutebio nas mais numerosas artes como um dia ouvi gabares-te na Aacutegora quando diante das bancas do mercado descrevias a extensatildeo do saber que possuis Tu afirmavas ter uma vez vindo a Oliacutempia trazendo sobre o corpo coisas feitas por ti proacuteprio sem excepccedilatildeo primeiro ndash pois eacute por aiacute que comeccedilavas ndash o anel que trazias era da tua lavra em seguida o sinete obra tua tambeacutem e a tua raspadeira e a tua acircnfora de azeite eram tambeacutem fabricadas pelas tuas matildeos Depois os sapatos que levavas eras tu que tinhas moldado o couro o teu manto eras tu quem o tinha tecido tal como a tua tuacutenica O que enfim em verdade no juiacutezo de todos era o facto mais desconcertante e um testemunho probatoacuterio de um saber sem limites era o cinto que tinhas na tua tuacutenica semelhante dizias tu agraves faixas mais sumptuosas da Peacutersia entranccedilado pelas tuas matildeos Natildeo eacute tudo tinhas vindo declaravas com um arsenal de poemas versos eacutepicos trageacutedias ditirambos e uma variedade de composiccedilotildees oratoacuterias em prosa

Conforme a anaacutelise de Werner Jaeger desde o princiacutepio a finalidade do movimento

educacional comandado pelos sofistas natildeo era a educaccedilatildeo do povo mas a dos chefes Eles

foram os primeiros intelectuais a fazerem do ldquoconhecimentordquo uma profissatildeo pois

ofereciam aulas de retoacuterica e conhecimentos gerais (poesia muacutesica dialeacutetica e gramaacutetica)

aos jovens cidadatildeos da classe dirigente de Atenas que pretendiam dedicar-se agrave carreira

poliacutetica (JAEGER 2003 339 342) Os sofistas ofereciam o seu conhecimento aos filhos

dos aristocratas abastados ou dos novos ricos por isso o que estavam aptos a oferecer natildeo

era de forma alguma uma contribuiccedilatildeo para a educaccedilatildeo das massas uma vez que

ofereciam um produto caro para os que estavam buscando fazer carreira na poliacutetica e na

vida puacuteblica em geral A despeito disso uma das consequecircncias da educaccedilatildeo oferecida

por eles foi superar os privileacutegios da antiga educaccedilatildeo a qual era acessiacutevel somente aos

que tinham ldquosangue divinordquo ou seja a partir da sofiacutestica a educaccedilatildeo formal natildeo se

limitava mais agrave nobreza de sangue mas tambeacutem se estendia a todos que podiam pagar

(Ibid 2003 337) E tendo em vista que a finalidade principal da educaccedilatildeo oferecida

pelos sofistas consistia em preparar homens para uma carreira na poliacutetica uma parte

essencial da educaccedilatildeo oferecida por eles incidia no treinamento do discurso persuasivo

Giovanni Casertano sublinha que os institutos da democracia ateniense

representavam o espaccedilo poliacutetico no qual se mediavam as tensotildees e lutas econocircmicas e

sociais da sociedade grega de modo que tal mediaccedilatildeo poliacutetica obrigava novas exigecircncias

e habilidades ndash a exigecircncia de homens capazes de sustentar e de fazer prevalecer uma

tese impondo-a agrave maioria da assembleia e por conseguinte a exigecircncia de homens que

possuem uma teacutecnica do discurso natildeo mais ligada a uma determinada classe social Agrave

vista disso os sofistas se apresentavam como os ldquonovos mestresrdquo que poderiam satisfazer

a essa nova exigecircncia do saber falar que natildeo consistia numa exigecircncia exclusivamente

retoacuterica mas possuiacutea um claro valor poliacutetico e social (CASERTANO 2010 17)

A habilidade dos sofistas no domiacutenio da arte retoacuterica permitia sem duacutevida

conquistar uma vasta clientela entre os jovens atenienses desejosos de galgar o posto de

magistrados nas assembleias onde se tomavam as decisotildees poliacuteticas e diante dos

tribunais onde ocorriam as acusaccedilotildees e as defesas (onde tambeacutem era necessaacuterio censurar

ou louvar) Assim a importacircncia da persuasatildeo em Atenas na segunda metade do seacuteculo

V aC explicaria o grande ecircxito obtido pelos sofistas No entanto eacute certo que as

qualidades essenciais de um homem de Estado natildeo poderiam ser adquiridos pelo

treinamento porque satildeo inatos o tato a presenccedila de espiacuterito e a previsatildeo Por outro lado

pode-se desenvolver o dom de pronunciar discursos convincentes e oportunos porquanto

no Estado democraacutetico as assembleias puacuteblicas e a liberdade da palavra tornaram-se

imprescindiacuteveis os dotes oratoacuterios Dessarte toda a educaccedilatildeo poliacutetica dos chefes devia

basear-se na eloquecircncia que se converteu na formaccedilatildeo baacutesica do orador por isso eacute

compreensiacutevel o fato de ter surgido uma classe inteira de educadores que publicamente

ofereceram por dinheiro o ensino da virtude que no contexto da eacutepoca claacutessica era

concebida sobretudo como aptidatildeo intelectual e oratoacuteria (JAEGER 2003 340)

Natildeo obstante o poder atribuiacutedo agrave retoacuterica no seacuteculo V aC natildeo teria sido

exclusivamente uma descoberta da geraccedilatildeo dos sofistas visto que sua importacircncia era jaacute

conhecida de Homero e nenhum dos primeiros poetas subestimava a importacircncia de sua

proacutepria atividade no emprego das palavras Mas a teoria acerca da retoacuterica foi em grande

medida uma criaccedilatildeo do periacuteodo sofista E ao lado da sofiacutestica que para Jaeger constitui

um fenocircmeno meramente pedagoacutegico a retoacuterica representaria um fenocircmeno de cunho

poliacutetico que se orienta praticamente para o Estado razatildeo pela qual o ῥήτωρ continuaria

ainda na eacutepoca claacutessica a ser o nome para designar o estadista que num regime

democraacutetico precisaria ser um orador (Ibid 2003 650)

Outrossim os sofistas eram todos estrangeiros (μέτοικος) residentes em Atenas por

esse motivo estavam excluiacutedos da vida puacuteblica e dos direitos garantidos pela posse da

cidadania razatildeo pela qual natildeo tiveram nenhuma oportunidade de tornarem-se figuras

poliacuteticas o que efetivamente foi compensado pelo ensino que ofertavam Platatildeo refere-se

a isso no diaacutelogo Defesa de Soacutecrates onde Soacutecrates afirma que os sofistas satildeo muito bons

fazedores de discursos poliacuteticos mas o seu haacutebito de andar de cidade em cidade e natildeo

possuir uma moradia fixa constitui uma desvantagem quando se refere ao ensino de

assuntos de cidadania Aleacutem disso os sofistas exigiam notaacuteveis somas de dinheiro por

seus ensinamentos a exemplo de Eveno de Paros que cobrava o equivalente a cinco

minas por suas aulas (Def Soacutec 19e-20b)

Conveacutem enfatizar que o ensino constituiacutea na Greacutecia um modo respeitaacutevel de ganhar

a vida de modo que natildeo havia nenhum preconceito contra ganhar a vida como tal Os

poetas eram pagos por seus trabalhos e de artistas e intelectuais se esperava que fossem

pagos por sua atividade e tambeacutem por ensinaacute-la aos outros Portanto a rejeiccedilatildeo que os

sofistas sofreram parece ter-se voltado para a espeacutecie de assunto que eles professavam

ensinar que na visatildeo de W K C Guthrie consistia especialmente na instruccedilatildeo da virtude

(GUTHRIE 2007 41) G B Kerferd tambeacutem compartilha desse ponto de vista ao

sustentar natildeo era o fato dos sofistas cobrarem honoraacuterios que desagradava a maioria mas

o fato de venderem instruccedilatildeo em sabedoria e virtude a todo tipo de gente simplesmente

por dinheiro E o que agravava mais a situaccedilatildeo consistia em que eles vendiam ldquosabedoriardquo

e ldquovirtuderdquo a todos sem nenhuma discriminaccedilatildeo posto que ao cobrarem honoraacuterios

abriam matildeo do direito de escolher seus alunos Esta seria pois a fonte da poderosa

atraccedilatildeo exercida pelos sofistas em Atenas e talvez a principal causa do oacutedio que

fomentou os ataques dos autores de comeacutedias os processos judiciais e finalmente a

morte do proacuteprio Soacutecrates (KERFERD 2003 47-48) Ateacute mesmo Isoacutecrates num de seus

famosos discursos critica tal aspecto da atividade dos sofistas ao declarar que eles foram

tatildeo longe em sua falta de escruacutepulos que tentam persuadir os jovens de que se estudassem

apenas com eles saberiam o que fazer na vida e por meio desse conhecimento se

tornariam felizes e proacutesperos Aleacutem disso embora os sofistas se estabeleccedilam como

mestres e distribuidores de bens tatildeo preciosos natildeo se envergonham de pedir a seus alunos

um preccedilo de trecircs ou quatro minas (Contr Sof 3)

Para W K C Guthrie eacute manifesto que os sofistas natildeo formaram uma vertente

filosoacutefica definida mas no seu entendimento isto natildeo significa que suas reflexotildees natildeo

possuiacuteam grosso modo um conteuacutedo filosoacutefico Para ele os sofistas compartilharam algo

que com propriedade pode chamar-se uma atitude filosoacutefica o ceticismo e a desconfianccedila

a respeito da possibilidade do conhecimento absoluto que era o resultado natural do

impasse a que havia chegado a filosofia natural Todos eles com efeito sustentavam a

ausecircncia total de valores e princiacutepios absolutos e desprezavam todas as consideraccedilotildees

teoloacutegicas Na perspectiva deles toda accedilatildeo humana se baseava unicamente na

experiecircncia a qual era mormente determinada por sua utilidade e eficaacutecia Aleacutem do mais

as noccedilotildees de sabedoria de justiccedila e de bondade eram concebidas como meros nomes

(GUTHRIE 2010 78-79 83)

Outrossim natildeo podendo eliminar o dilema eleaacutetico que forccedilava uma escolha entre

o ser e o tornar-se a estabilidade e o fluxo a realidade e a aparecircncia os sofistas acabaram

por abandonar a ideia de uma realidade permanente por detraacutes das aparecircncias em favor

do fenomenismo do relativismo e do subjetivismo extremos Eles compartilhavam da

perspectiva filosoacutefica geral do empirismo e com este o ceticismo comum sobre a

possibilidade do conhecimento certo Eles sustentavam esta perspectiva em virtude da

inadequaccedilatildeo e falibilidade das faculdades humanas bem como da ausecircncia de uma

realidade estaacutevel para ser conhecida Todos igualmente acreditavam na antiacutetese entre

natureza e convenccedilatildeo Divergiam ainda na avaliaccedilatildeo do valor relativo de cada uma mas

nenhum deles sustentava que leis costumes e crenccedilas religiosas eram inabalaacuteveis por

estarem enraizados numa ordem natural imutaacutevel (Idem 2007 49)

Seguindo a mesma perspectiva interpretativa Giovanni Casertano enfatiza que

aquilo que na obra dos sofistas veio agrave luz pela primeira vez com clareza foi a consciecircncia

da relatividade dos valores ndash a consciecircncia de que natildeo eacute mais possiacutevel falar em termos de

verdade absoluta nem eacute mais aceita a velha figura do saacutebio investido de um saber divino

cuja sabedoria deve ser transmitida aos mortais Depois do advento da sofiacutestica a relaccedilatildeo

entre o homem e a realidade que o circunda e por conseguinte a proacutepria vida humana

com suas tensotildees e organizaccedilotildees natildeo satildeo mais concebidas num esquema fixo e imutaacutevel

A experiecircncia relativista dos sofistas faz nascer tambeacutem um novo sentido para a sabedoria

oficial de modo que as cogitaccedilotildees fiacutesicas astronocircmicas e meacutedicas retomadas dos antigos

saacutebios tornam-se menos abstratas e mais aderentes agrave vida concreta do homem Os

antigos portanto natildeo representam mais o texto da sabedoria oficial dos quais eacute preciso

haurir com reverecircncia noccedilotildees e preceitos de vida Pelo contraacuterio a sabedoria do homem

natildeo eacute mais a absorccedilatildeo passiva de uma tradiccedilatildeo e dos seus ensinamentos mas sua

utilizaccedilatildeo na consciecircncia da diversidade das eacutepocas dos costumes das situaccedilotildees no

processo contiacutenuo da vida humana que eacute ao mesmo tempo relativa e devida somente agraves

forccedilas do homem E para a formaccedilatildeo dessa consciecircncia relativista contribuiu fortemente

o amor dos sofistas pelas viagens e as descobertas de povos e costumes distintos fator

constante da cultura grega mas que foi fortemente potenciado no periacuteodo das guerras

persianas (CASERTANO 2010 19-20)

Todavia antes da conclusatildeo da tocircnica sobre a posiccedilatildeo epistemoloacutegica dos sofistas

acerca da possibilidade do conhecimento humano eacute pertinente o exame das consideraccedilotildees

gerais de Victor Brochard sobre o assunto Brochard sustenta que a passagem do

dogmatismo mecanicista e materialista para o ceticismo se explica sem dificuldade Os

filoacutesofos preacute-socraacuteticos completamente ocupados com suas investigaccedilotildees fiacutesicas teriam

constatado a insuficiecircncia da experiecircncia sensiacutevel mas sua confianccedila ingecircnua na razatildeo

natildeo chegou a ser abalada A diversidade dos resultados aos quais eles chegaram teria

inspirado a desconfianccedila em seus sucessores e os espiacuteritos penetrantes natildeo tardariam a

compreender que se pode dirigir contra a proacutepria razatildeo argumentos anaacutelogos aos que

arruinaram a confianccedila inicialmente concedida aos dados dos sentidos No entanto os

filoacutesofos preacute-socraacuteticos teriam parado no meio do caminho enquanto que os sofistas

avanccedilaram na criacutetica do conhecimento Agrave vista disso os sofistas teriam sido pioneiros em

manifestar uma postura ceacutetica diante do conhecimento eles certamente abriram o

caminho para os demais ceacuteticos mas natildeo foram capazes de formar uma escola filosoacutefica

Brochard destaca ainda que os sofistas quando falavam e agiam como se natildeo houvesse a

possibilidade de apreender a verdade natildeo se dedicavam a oferecer as razotildees teoacutericas para

sustentar sua duacutevida ceacutetica por isso o seu ceticismo se caracterizava por ser

eminentemente praacutetico porque pensavam mais em exploraacute-lo do que em explicaacute-lo

Assim a asserccedilatildeo de que a verdade eacute incognosciacutevel teria sido tomada pelos sofistas como

um axioma que natildeo se discute Eles teriam negligenciado a compreensatildeo dos princiacutepios

que fundamentam o ceticismo buscando apenas suas aplicaccedilotildees praacuteticas tais como

confundir os interlocutores arruinar os adversaacuterios e ganhar as causas mais nefastas

Ademais os argumentos ceacuteticos seriam apresentados pelos sofistas sem nenhuma ordem

e sem nenhum cuidado quanto ao meacutetodo (BROCHARD 2009 29 33)

Eacute manifesto que a filosofia desde a sua origem com Tales de Mileto eacute

permanentemente animada pela controveacutersia e todo novo avanccedilo teoacuterico representa

amiuacutede uma reaccedilatildeo contra as ideias anteriores (Met 983b 19-21) Pode-se verificar esta

atitude tanto em Platatildeo quanto em Aristoacuteteles sobretudo em relaccedilatildeo agrave filosofia moral e

poliacutetica que na sua eacutepoca estava envolta por influecircncia da sofiacutestica numa atmosfera de

ceticismo E foi com o intuito de combater tal posicionamento epistemoloacutegico o qual

parecia ser intelectualmente errocircneo e moralmente pernicioso que os filoacutesofos em apreccedilo

consagraram suas vidas Giovanni Casertano sublinha que no seacuteculo V aC o termo

ldquosofistardquo eacute utilizado em Atenas num sentido mais teacutecnico indicando determinada figura

de saacutebio de intelectual poreacutem no seacuteculo IV aC o termo adquire especialmente por

influecircncia de Platatildeo e Aristoacuteteles um sentido mais exato e proacuteprio distinguindo-se do

termo ldquofiloacutesofordquo e obtendo por conseguinte uma caracterizaccedilatildeo negativa a qual teria sido

conservada ateacute os dias atuais Ele enfatiza com efeito que ser sofista eacute sinocircnimo de

homem sagaz pronto para sustentar uma tese indiferentemente bem como a tese

contraacuteria ardiloso mais ou menos pedante e mais ou menos de maacute-feacute homem que

ldquoadulterardquo discursos com excessivas sutilezas que se agarra teimosa e arrogantemente a

toda palavra ou conceitos expressos por seu interlocutor e sobre cada um deles tem o que

falar pelo mero prazer de contradizer homem fraudulento que recorre a todos os truques

e artimanhas da linguagem para ter sucesso na discussatildeo ou simplesmente para ser

aplaudido pelo auditoacuterio por fim ser sofista eacute ser um homem aborrecedor que natildeo tem

nada a dizer e que apesar disso natildeo faz outra coisa senatildeo falar (CASERTANO 2010 9)

A hostilidade de Platatildeo em relaccedilatildeo aos sofistas eacute notoacuteria e sempre foi reconhecida

Em todos os diaacutelogos platocircnicos flui sempre de maneira expliacutecita ou impliacutecita

frequentemente oculta por uma sofisticada ironia uma tenaz polecircmica contra os sofistas

No diaacutelogo Goacutergias ele distingue de um lado uma seacuterie de atividades cientiacuteficas

chamadas de τέχναι cujos objetivos satildeo o mais alto grau de virtude em cada uma das suas

proacuteprias esferas e de outro lado diversas atividades empiacutericas (ἐμπειρίαν ἔγωγέ τινα)

Estas na verdade natildeo satildeo cientiacuteficas posto que natildeo estatildeo baseadas em princiacutepios

racionais e satildeo incapazes de dar explicaccedilotildees pelo contraacuterio elas soacute objetivam ao

agradaacutevel em vez da virtude e fazem isso sendo complacentes com as expectativas e os

desejos das pessoas (χάριτός τινος καὶ ἡδονῆς ἀπεργασίας) As atividades empiacutericas satildeo

portanto imitaccedilotildees enganadoras de genuiacutenas atividades cientiacuteficas E no acircmbito geral de

preocupaccedilatildeo com a alma humana (ψυχή) Platatildeo inclui a declaraccedilatildeo de normas de

comportamento e isso ele considera uma genuiacutena τέχνη e o que difere disso corresponde

a uma atividade espuacuteria conhecida como sofiacutestica (Goacuterg 462b-465e)

No diaacutelogo A Repuacuteblica Platatildeo descreve os sofistas como uma espeacutecie de

ldquodomadoresrdquo que dedicam toda a vida a estudar os caprichos do ldquoanimal grande e

robustordquo (οἷόνπερ ἂν εἰ θρέμματος μεγάλου καὶ ἰσχυροῦ) que seria a representaccedilatildeo

metafoacuterica das multidotildees Eles conhecem suas reaccedilotildees e desejos como devem aproximar-

se dele e tocaacute-lo quando e por que ele se torna mais agressivo e mais doacutecil qual a razatildeo

do tom que daacute a cada um dos seus urros e a que tom de voz se amansa ou enfurece E a

estas noccedilotildees os sofistas chamam de sabedoria e potildeem-se a ensinaacute-la desconhecendo por

completo o que aquelas opiniotildees e aqueles desejos tecircm na realidade de belo ou feio de

justo ou de injusto Aleacutem disso eles sempre seguem as opiniotildees do grande animal

chamando de bom o que o alegra e de mau o que o aflige justificando-se depois que tudo

isto eacute necessaacuterio porque eacute assim que sucede na realidade Portanto a adaptaccedilatildeo aos

caprichos das multidotildees constitui para os sofistas a pauta suprema da conduta poliacutetica E

esta adaptaccedilatildeo exclui a possibilidade de uma autecircntica educaccedilatildeo dos cidadatildeos orientada

conforme os valores imutaacuteveis e eternos do belo do bom e do justo que somente o

filoacutesofo eacute capaz de apreender (Rep 493a-c)

Verifica-se no pensamento de Aristoacuteteles uma atitude muito semelhante agrave de Platatildeo

dado que para aquele a arte do sofista consiste em aparente sabedoria Para o Estagirita

os dialeacuteticos e os sofistas tecircm o mesmo aspecto do filoacutesofo poreacutem a sofiacutestica eacute uma

sabedoria apenas aparente Outrossim a dialeacutetica e a sofiacutestica dirigem-se ao mesmo

gecircnero de objetos aos quais se dirige a filosofia mas a filosofia difere da primeira pelo

modo de especular e da segunda pela finalidade da especulaccedilatildeo A dialeacutetica move-se agraves

cegas nas coisas que a filosofia conhece verdadeiramente enquanto a sofiacutestica se reduz a

um conhecimento aparente natildeo real (Met 1004b 15-25) E na obra Dos Argumentos

Sofiacutesticos Aristoacuteteles descreve o sofista como algueacutem que ganha muito dinheiro com a

sabedoria aparente e natildeo real porque para ele eacute mais proveitoso parecer saacutebio do que secirc-

lo realmente A arte sofiacutestica consiste entatildeo num simulacro da sabedoria sem qualquer

vinculaccedilatildeo com a realidade e o sofista eacute aquele que faz comeacutercio de uma sabedoria

aparente Aleacutem do que eacute essencial para o sofista desempenhar em aparecircncia o papel de

um homem saacutebio em lugar de secirc-lo efetivamente (Arg Sof 165a 20-25)

62 Goacutergias a retoacuterica como artiacutefice da persuasatildeo

A despeito das criacuteticas que Aristoacuteteles teceu contra a sofiacutestica conveacutem lembrar sua

declaraccedilatildeo de que atraveacutes de alguns sofistas como Goacutergias Protaacutegoras e Trasiacutemaco a

arte retoacuterica pocircde atingir dimensotildees consideraacuteveis de modo que os grandes oradores do

seu tempo seriam os beneficiaacuterios de uma longa sucessatildeo de homens que a aprimoraram

ateacute que atingisse a forma corrente Todavia a arte retoacuterica natildeo foi uma invenccedilatildeo dos

sofistas nem nasceu em Atenas mas na Siciacutelia grega por volta de 465 aC depois da

expulsatildeo dos tiranos (Gelatildeo e Hieratildeo) e sua origem eacute judiciaacuteria Os cidadatildeos despojados

pelos tiranos em apreccedilo reclamaram seus bens e agrave guerra civil seguiram-se diversos

conflitos judiciaacuterios Corax que era disciacutepulo do filoacutesofo Empeacutedocles e seu proacuteprio

disciacutepulo chamado Tiacutesias publicaram uma coletacircnea de preceitos praacuteticos que continha

exemplos para as pessoas que recorressem agrave justiccedila E uma vez que naquela eacutepoca natildeo

havia advogados os litigantes recorriam aos logoacutegrafos que eram como escrivatildees

puacuteblicos que escreviam as queixas que eles teriam de ler diante do tribunal Nesse

contexto de disputas juriacutedicas os retores teriam oferecido aos logoacutegrafos e litigantes um

instrumento de persuasatildeo que alegavam ser infaliacutevel a ponto de ser capaz de persuadir

qualquer um sobre qualquer assunto (REBOUL 2004 2)

Todavia atraveacutes do sofista Goacutergias de Leontini surge uma nova fonte da retoacuterica

qual seja esteacutetica e propriamente literaacuteria Nascido em 385 aC ele tambeacutem era siciliano

e disciacutepulo de Empeacutedocles Em 327 aC ele teria visitado Atenas como embaixador e

sua eloquecircncia teria encantado os atenienses de tal modo que teve de prometer-lhes o seu

retorno Goacutergias foi considerado um dos fundadores do discurso epidiacutectico o qual criou

para esta finalidade uma prosa eloquente multiplicando as figuras de linguagem que a

tornam uma composiccedilatildeo erudita e ritmada tatildeo bela quanto a poesia Aliaacutes suas figuras

de linguagem satildeo tanto de palavras como assonacircncias rimas paranomaacutesias e ritmo da

frase quanto de sentido e pensamento como periacutefrases metaacuteforas e antiacuteteses (Ibid 2004

4) E as melhores informaccedilotildees a este respeito encontram-se plasmadas numa obra de

Goacutergias escrita em forma de declamaccedilatildeo retoacuterica chamada Elogio de Helena (Ἑλένης

ἐγκώμιον)

A obra gorgiana Elogio de Helena eacute um excelente exemplo de como as anaacutelises dos

sofistas alcanccedilaram uma sutileza e riqueza de articulaccedilotildees natildeo somente no acircmbito da

loacutegica mas tambeacutem no acircmbito da investigaccedilatildeo psicoloacutegica e no da explicaccedilatildeo dos

comportamentos praacuteticos dos seres humanos Sumariamente a obra procura demonstrar

a posiccedilatildeo privilegiada do λόγος ou seja do discurso retoacuterico natildeo soacute em relaccedilatildeo a

realidade das coisas mas tambeacutem em relaccedilatildeo a realidade dos seres humanos dos seus

prazeres das suas dores e de todos os seus sentimentos O propoacutesito inicial da obra

consiste em libertar Helena de Troia da culpa por ter feito o que fez ao deixar seu lar sua

filha e seu marido para ir ateacute Troia com Paacuteris mostrar que os que a condenam estatildeo

falando falsamente e ao indicar a verdade neutralizar a ignoracircncia deles Escreve

Goacutergias a este respeito (El Hel sect 2 )

Cabe ao mesmo homem dizer tambeacutem o que conveacutem com justiccedila e convencer do erro os que criticam Helena mulher em relaccedilatildeo agrave qual tornou-se uniacutessona e unacircnime tanto a crenccedila que ouvem os poetas quanto a fama de seu nome que se tornou memoacuteria de infortuacutenios Eu anseio oferecendo com o discurso uma explicaccedilatildeo e revelando a verdade suprimir a responsabilidade dela que tem erradamente uma maacute reputaccedilatildeo e suprimir a ignoracircncia denunciando os que enganados a criticam

O acento na ldquoverdaderdquo na passagem acima eacute enfaacutetico e revela que natildeo haacute em

Goacutergias a intenccedilatildeo de negar a existecircncia do fato concreto haja vista que soacute pode existir

o engano em relaccedilatildeo ao que realmente existe Isto posto Goacutergias aventa quatro possiacuteveis

explicaccedilotildees para o comportamento de Helena que era considerado ignoacutebil pela opiniatildeo

geral o decreto dos deuses e da necessidade o sequestro agrave forccedila a persuasatildeo pelo poder

do discurso e o resultado da forccedila da paixatildeo No primeiro caso os deuses representariam

uma forccedila mais poderosa que o homem resultando daiacute que satildeo eles os culpados e natildeo o

ser humano que naturalmente eacute mais fraco Por natureza natildeo seria o mais forte a ser

dominado pelo mais fraco mas o mais fraco pelo mais forte E se o mais forte deve

dominar entatildeo ao mais fraco soacute restaria obedecer O divino portanto seria mais forte

que o homem tanto pela forccedila como pela sabedoria por isso conveacutem atribuir a

responsabilidade agrave Fortuna e ao divino e libertar por conseguinte Helena da ignomiacutenia

(Ibid sect 6 )

No segundo caso seria necessaacuterio ter pena da mulher em vez de censuraacute-la e

condenar o baacuterbaro que a teria sequestrado pois se Helena foi arrebatada agrave forccedila

ilegalmente submetida e injustamente tratada com insolecircncia eacute evidente que agiu

ilegalmente quem a arrebatou enquanto ela sendo raptada e ultrajada obteve

indevidamente uma maacute fortuna Assim seria o baacuterbaro o merecedor da condenaccedilatildeo tanto

pelo discurso e pela lei quanto por sua accedilatildeo e ao ser submetida agrave forccedila privada da paacutetria

e afastada dos amigos Helena deveria inspirar a piedade em vez da difamaccedilatildeo (Ibid sect

7)

Algumas dificuldades poreacutem podem ser levantadas na terceira situaccedilatildeo quando eacute

o discurso (λόγος) que persuade e a resposta eacute desenvolvida um tanto longamente por

Goacutergias A soluccedilatildeo de Goacutergias parece ser dupla Em primeiro lugar Goacutergias argumenta

que se o discurso a persuadiu e sua alma enganou natildeo seria difiacutecil defendecirc-la e por

conseguinte liberaacute-la da responsabilidade visto que o λόγος seria como um grande e

soberano senhor que com um corpo pequeniacutessimo e invisibiliacutessimo eacute capaz de operar

diviniacutessimas accedilotildees (Ibid sect 8) A propoacutesito o poder de persuasatildeo atribuiacutedo por Goacutergias agrave

arte retoacuterica tambeacutem eacute reconhecido por Soacutecrates o qual declara que de acordo com o

sofista a arte retoacuterica revelar-se-ia como um poder quase divino (Goacuterg 456a)

Outrossim Goacutergias enfatiza o enorme poder do λόγος que se manifestaria pelas

experiecircncias emocionais que produz tanto pela poesia como pela maestria da prosa ndash um

estremecimento de medo repleto de espanto uma compaixatildeo que provocaria abundantes

laacutegrimas e um sentimento de nostalgia que entraria no espiacuterito dos que a ouvem (El Hel

sect 9-10)

Eacute necessaacuterio tambeacutem demonstrar pela opiniatildeo aos ouvintes considero e designo toda poesia como discurso metrificado Um estremecimento de medo repleto de espanto uma compaixatildeo que provoca laacutegrimas abundantes um sentimento de nostalgia entra no espiacuterito dos que a ouvem A alma eacute afetada (uma afecccedilatildeo que lhe eacute proacutepria) atraveacutes das palavras pelos sucessos e insucessos que concernem a outras coisas e outros seres animados Mas passemos de um a outro discurso Pois os maacutegicos e sedutores cantos atraveacutes das palavras inspirados pelos Deuses produzem prazer afastando a dor Pois o poder do maacutegico canto que nasce com a opiniatildeo da alma encanta-a persuade-a e modifica-a por fascinaccedilatildeo

Giovanni Casertano salienta que esta passagem do Elogio de Helena apresenta os

dois aspectos do λόγος gorgiano o aspecto natural e aspecto teacutecnico De um lado ele eacute

natural porque pertence por natureza agrave espeacutecie do homem mas de outro eacute teacutecnico porque

natildeo possuindo uma consistecircncia fiacutesica comparaacutevel agrave das outras coisas constitui uma

realidade natildeo menos verdadeira do que as outras e seria ainda mais real que as outras na

vida do homem Nesse sentido mediante o discurso a alma sofre uma forma proacutepria de

sofrimento que eacute artificial construiacuteda com arte como na poesia ou em qualquer discurso

que se dirige a outrem A despeito disso natildeo eacute por sua superficialidade que ele eacute menos

verdadeiro ou real do que as demais coisas que existem no mundo Todas as paixotildees

humanas como alegria e dor dependem do discurso Ele eacute aquilo que faz ser as coisas

que natildeo satildeo justamente porque eacute aquilo que leva agrave consciecircncia do homem o significado

das coisas nas quais ele estaacute imerso Por isso ele eacute tambeacutem um grande e soberano senhor

porque o homem natildeo pode viver sem significados (CASERTANO 2010 96-97)

Haveria para Goacutergias uma outra maneira pela qual o λόγος eacute capaz de agir sobre a

alma humana Para ele a maioria dos homens eacute incapaz de recordar o que de fato

aconteceu ou de investigar o presente ou de advinhar o futuro De modo que na maioria

das questotildees os homens usam a opiniatildeo (δοξα) como um conselheiro para suas almas A

δοξα poreacutem natildeo eacute confiaacutevel e pode fazer a pessoa tropeccedilar e cair com consequecircncias

danosas para si mesma Todavia o λόγος eacute capaz de agir persuasivamente sobre a δοξα

porque a δοξα natildeo eacute conhecimento (ἐπιστήμη) e por essa razatildeo seria faacutecil de mudar (El

Hel sect 11)

Quantos persuadiram e persuadem outros tantos a propoacutesito de outras tantas coisas forjando um falso discurso Se pois todos sobre todas as coisas tivessem tanto a memoacuteria das coisas passadas quanto a noccedilatildeo das coisas presentes e as presciecircncias das coisas futuras o discurso natildeo seria o mesmo para os que agora natildeo podem facilmente nem lembrar o passado nem examinar o presente nem predizer o futuro De modo que os muitos sobre muitas coisas buscam com a alma a opiniatildeo conselheira A opiniatildeo sendo incerta e inconstante lanccedila a incertos e inconstantes sucessos os que a ela se confiam

Eacute preciso levar em consideraccedilatildeo que as praacuteticas da retoacuterica de Goacutergias se baseavam

numa concepccedilatildeo relativista acerca do conhecimento semelhante a de Protaacutegoras e por ela

se justificavam porquanto se houvesse uma verdade universalmente vaacutelida que se

pudesse comunicar a outrem entatildeo tal verdade devia ser transmitida por estar apoiada

numa evidecircncia absoluta Assim somente o conhecimento baseado numa prova

irrefutaacutevel poderia se opor ao poder inerente agrave persuasatildeo mas na condiccedilatildeo de ceacutetico

Goacutergias aventa natildeo existir algo desta natureza razatildeo pela qual na maioria dos assuntos

os homens tecircm apenas δόξα e natildeo ἐπιστήμη Eles vivem num mundo onde a δοξα eacute

suprema e natildeo existe um criteacuterio mais elevado atraveacutes do qual se possa verificar o

contraacuterio Isto deixa o orador que eacute exiacutemio na arte da persuasatildeo (tanto privada como

puacuteblica) no controle de todo o campo da experiecircncia humana jaacute que a δόξα por ser incerta

e inconstante sempre pode mudar Goacutergias ainda declara que o modo de ser da persuasatildeo

de maneira alguma se parece agrave necessidade (ἀνάγκη) mas certamente tem o mesmo poder

(δύναμις) Isto ocorre porque o discurso persuasivo ao agir sobre a alma eacute capaz de

constrangecirc-la tanto a crer nas coisas enunciadas quanto a concordar com as coisas feitas

(Ibid sect 12) Agrave vista disso o efeito do discurso eacute sempre a persuasatildeo mas a maioria das

pessoas conserva firmemente na alma natildeo a verdade mas apenas a opiniatildeo de modo que

eacute faacutecil dominaacute-la com o discurso da mesma forma que com violecircncia fiacutesica dominam-se

os corpos E se eacute verdade que eacute o λόγος quem daacute significado agravequilo que o homem eacute e faz

eacute necessaacuterio pois que os homens aprendam a usaacute-lo adequadamente

O ensino retoacuterico de Goacutergias natildeo se restringia agrave forma e ao estilo mas referia-se

tambeacutem a substacircncia do que se dizia Para ele a verdade seria individual e temporaacuteria e

natildeo universal e permanente jaacute que a verdade para o homem consiste simplesmente em

que podia ser persuadido pelo λόγος e seria possiacutevel persuadir qualquer um sobre

qualquer coisa E a fim de justificar sua concepccedilatildeo de que a opiniatildeo eacute incerta e

inconstante e a persuasatildeo aliada a palavras modela a mente dos homens como quiser

Goacutergias aduziu trecircs exemplos Primeiramente ele menciona os que discutem os corpos

celestes a saber os meteorologistas (μετεωρολόγοι) ou os cientistas naturais que

acreditando possuir o segredo do universo substituem uma opiniatildeo por outra removendo

uma e formando outra em seu lugar e fazem com que as coisas que natildeo se veem agraves quais

faltam credibilidade se tornem aparentes aos olhos da opiniatildeo O segundo exemplo

consiste no caso em que o λόγος estaacute em debate com outro λόγος como as disputas que

ocorrem nas assembleias (λόγων ἀγῶνας) onde um discurso pela habilidade de sua

composiccedilatildeo natildeo pela verdade de suas afirmaccedilotildees ao mesmo tempo delicia e persuade

uma grande multidatildeo de ouvintes E em terceiro lugar os combates dos discursos dos

filoacutesofos (φιλοσόφων λόγων) nos quais a rapidez do pensamento se evidencia ao

modificar facilmente a crenccedila da opiniatildeo (Ibid sect 13)

Com efeito o resultado a que chega Goacutergias eacute que o poder do λόγος em relaccedilatildeo agrave

condiccedilatildeo da alma eacute comparaacutevel ao poder inerente a uma droga (φάρμακον) pois eacute

manifesto que diferentes drogas tecircm diferentes efeitos sobre o corpo Algumas curam

doenccedilas e outras potildeem fim agrave vida do mesmo modo tambeacutem entre as palavras umas

afligem outras encantam outras amedrontam outras estabelecem confianccedila nos

ouvintes outras atraveacutes de soacuterdida persuasatildeo envenenam e enganam a alma (Ibid sect 14)

Desse modo o discurso para Goacutergias eacute como um φάρμακον ou seja natildeo eacute nem bom nem

mau em si mesmo nem verdadeiro nem falso de modo que a bondade do discurso

depende necessariamente do uso que se faz dele visto que ele sempre tem um efeito sobre

a alma assim como o φάρμακον sobre o corpo

A comparaccedilatildeo da persuasatildeo com o termo ldquoφάρμακονrdquo sugere que Goacutergias deseja

distinguir dois tipos de persuasatildeo ou seja uma boa e outra maacute Seria entatildeo a maacute

persuasatildeo que operou no caso de Helena levando-a a abandonar sua famiacutelia e seguir Paacuteris

Tal concepccedilatildeo se ajusta perfeitamente com a posiccedilatildeo atribuiacuteda a Goacutergias por Platatildeo no

diaacutelogo Goacutergias ndash a retoacuterica para Goacutergias seria simplesmente uma arte que pode ser usada

para produzir tanto a crenccedila falsa como a crenccedila verdadeira embora ele e seus defensores

no diaacutelogo em apreccedilo defendam que ela natildeo deve ser empregada para propoacutesitos imorais

Goacutergias tambeacutem propotildee que enquanto mestre de retoacuterica ele transmite a sua arte a seus

disciacutepulos para ser empregada de maneira justa embora eles possam empregaacute-la de

maneira contraacuteria Contudo isso seria de responsabilidade moral do orador o qual deve

responder por suas proacuteprias accedilotildees e natildeo do mestre que lhe transmitiu a arte retoacuterica

atraveacutes da qual ele comete injusticcedila (Goacuterg 457a-c)

Pois eles lhe transmitiram o uso justo dessas coisas contra inimigos e pessoas injustas para se defender e natildeo para atacar ao passo que seus transgressores usam a forccedila e a arte incorretamente Assim ignoacutebeis natildeo satildeo os mestres tampouco culpada e ignoacutebil eacute a arte por tal motivo mas as pessoas que natildeo a usam corretamente como presumo O mesmo argumento tambeacutem vale para a retoacuterica o reacutetor eacute capaz de falar contra todos e a respeito de tudo de modo a ser mais persuasivo em meio agrave multidatildeo em suma acerca do que quiser poreacutem nem mesmo por esse motivo ele deve furtar a reputaccedilatildeo dos meacutedicos ndash pois seria capaz de fazecirc-lo ndash nem a de qualquer outro artiacutefice mas usar a retoacuterica de forma justa como no caso da luta E se algueacutem julgo eu tornar-se reacutetor e cometer posteriormente alguma injusticcedila por meio desse poder e dessa arte se deve odiar expulsar ou matar quem os usou incorretamente e natildeo quem os ensinou

No iniacutecio do Elogio de Helena Goacutergias afirma que sua intenccedilatildeo natildeo eacute outra coisa

senatildeo indicar a verdade pois para ele a boa ordem da cidade consistiria na coragem dos

seus cidadatildeos (Κόσμος πόλει μὲν εὐανδρία) a boa ordem do corpo a beleza (σώματι δὲ

κάλλος) a boa ordem da alma a sabedoria (ψυχῆι δὲ σοφία) a boa ordem da accedilatildeo a

virtude (πράγματι δὲ ἀρετή) e a boa ordem do discurso a verdade (λόγωι δὲ ἀλήθεια)

Entretanto o contraacuterio dessas coisas resultaria na desordem na cidade Assim em relaccedilatildeo

a um homem e a uma mulher a um discurso e a uma accedilatildeo a uma cidade e a um negoacutecio

de Estado eacute necessaacuterio tanto honrar pelo elogio puacuteblico aquele que o merece quanto

infligir repreensatildeo ao que eacute indigno uma vez que eacute erro e ignoracircncia reprovar as coisas

louvaacuteveis e louvar as coisas criticaacuteveis (El Hel sect 1)

A despeito disso Goacutergias fala do λόγος que persuade a alma produzindo engano

(ἀπατή) e da persuasatildeo que eacute bem sucedida porque moldou um λόγος falso Para ele a

persuasatildeo age por engano porque se o discurso persuadiu Helena e enganou sua alma

natildeo seria difiacutecil quanto a este assunto defendecirc-la e por conseguinte isentaacute-la da

responsabilidade Dessarte pode-se entender que na visatildeo de Goacutergias a uacutenica maneira

pela qual a persuasatildeo age na opiniatildeo eacute por engano O λόγος seria entatildeo um grande e

soberano senhor capaz de operar diviniacutessimas accedilotildees sendo possiacutevel atraveacutes dele suscitar

o medo a calma a alegria afastar a dor e estimular a compaixatildeo (Ibid sect 8)

Conforme a anaacutelise de G B Kerferd eacute possiacutevel compreender o verdadeiro

significado de ἀπατή no pensamento de Goacutergias levando em consideraccedilatildeo o que eacute dito na

segunda e na terceira partes do seu tratado chamado Sobre a natureza Na segunda parte

Goacutergias afirma que mesmo se as coisas existirem natildeo poderatildeo ser conhecidas pensadas

ou apreendidas pelos seres humanos E na terceira parte ele afirma que mesmo que

pudessem ser apreendidas ainda assim natildeo poderiam ser comunicadas a uma outra

pessoa Isto ocorreria porque o meio atraveacutes do qual as pessoas se comunicam eacute o

discurso o qual jamais poderaacute se identificar com os objetos externamente subsistentes

que existem na realidade Sendo assim aquilo que se comunica a uma outra pessoa nunca

satildeo as coisas existentes na realidade mas apenas um λόγος e este eacute sempre outra coisa

diferente das coisas em si mesmas (KERFERD 2003 139) Isto posto se para Goacutergias

as coisas natildeo existem ou natildeo satildeo cognosciacuteveis nem comunicaacuteveis ele estaria por esse

motivo apregoando a onipotecircncia do λόγος o qual natildeo estaria mais submetido a nenhum

criteacuterio extriacutenseco e do qual nem mesmo se pode dizer que eacute falso de sorte que no

conhecimento humano o que estaacute envolvido natildeo eacute simplesmente a apresentaccedilatildeo dos fatos

em palavras mas uma representaccedilatildeo subjetiva das coisas existentes na realidade

De acordo com a interpretaccedilatildeo de Kerferd o sofista Goacutergias teria introduzido uma

espeacutecie de fosso entre o λόγος e as coisas agraves quais ele se refere (πράγματα) que chegariam

aos seres humanos de uma fonte externa a eles Assim tal fosso deve ser compreendido

pelo fato de o λόγος (pelo menos quando exposto em sons vocais audiacuteveis) natildeo ser ele

mesmo algo da mesma categoria das πράγματα Em vez disso as coisas chegariam aos

seres humanos de fora deles mesmos mediante um oacutergatildeo do sentido diferente daquele

pelo qual recebemos as impressotildees visuais razatildeo pela qual o λόγος jamais teria a funccedilatildeo

de exibir o objeto externo tal como eacute na realidade (Ibid 2003 167-168) Uma vez

reconhecido o fosso compreender-se-ia entatildeo muito facilmente o sentido em que todo

discurso envolve uma falsificaccedilatildeo da coisa agrave qual se refere o λόγος jamais seria capaz de

reproduzir a realidade em si mesma a qual estaria irreparavelmente fora dele Aleacutem disso

essa doutrina lanccedilaria luz sobre a afirmaccedilatildeo do paraacutegrafo 11 do Elogio de Helena no qual

Goacutergias afirma que se os homens possuiacutessem mesmo o conhecimento o λόγος natildeo seria

visivelmente similar agrave aquilo do qual eles possuem o conhecimento (Ibid 2003 140) E

na medida em que Goacutergias declara a intenccedilatildeo de reproduzir fielmente a realidade ao

mostrar que os que condenam Helena estatildeo falando falsamente e ao indicar a verdade

neutralizar a ignoracircncia deles (El Hel sect 2) isto natildeo passaria de ἀπατή daiacute que todo

discurso que objetiva persuadir eacute nada mais nada menos que puro engano

Eacute manifesto que Goacutergias acreditava na existecircncia de um mundo real objetivo que

amiuacutede eacute concebido como a verdade ou aquilo que eacute verdadeiro A apreensatildeo desse

mundo real se identificaria efetivamente com o conhecimento mas o estado cognitivo

mais comum seria δόξα e natildeo ἐπιστήμη ao passo que o λόγος que seria mais poderoso

que a δόξα teria o poder ilimitado de influenciaacute-la Ambos seriam falsos em contraste

com a verdade e o conhecimento mas eacute possiacutevel apelar dos enganos do λόγος e da δοξα

para o conhecimento e a verdade O efeito desse apelo embora propiciasse algum

conhecimento natildeo eliminaria o incuraacutevel caraacuteter falso do λόγος visto que ele jamais

poderia exprimir a realidade que pretende expor

Na perspectiva de Goacutergias a distinccedilatildeo entre o niacutevel da realidade e o niacutevel do

discurso sobre a realidade natildeo expressa uma relaccedilatildeo de estrita correspondecircncia jaacute que ela

acontece apenas num dos niacuteveis ou seja no niacutevel do discurso Eacute sempre e somente o

discurso que determina a relaccedilatildeo entre a linguagem e a realidade diferenciando-os e

conectando-os Poder-se-ia dizer (invertendo a concepccedilatildeo aristoteacutelica acerca da verdade)

que algo natildeo pode ser considerado branco pelo fato de ser branco na realidade mas

simplesmente por ser afirmado por algueacutem que assim o percebe Agrave vista disso natildeo seria

possiacutevel determinar a realidade de algo de maneira independente do λόγος de modo que

a afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo da realidade de algo o inevitaacutevel atribuir predicados a algum

objeto por exemplo que ldquoa neve eacute brancardquo dependem sempre das percepccedilotildees subjetivas

acerca da realidade Estas percepccedilotildees natildeo seriam neutras pois exprimiriam sempre a

perspectiva individual de cada sujeito sobre a realidade justamente porque satildeo a

representaccedilatildeo em palavras das coisas Pode-se assegurar entatildeo que Goacutergias procura

demonstrar que existe um verdadeiro fosso entre as coisas e a percepccedilatildeo assim como

entre a percepccedilatildeo e o discurso razatildeo pela qual as palavras natildeo teriam qualquer

correspondecircncia com as coisas que vez por outra elas imitam

A despeito da inconsonacircncia entre a realidade a percepccedilatildeo e o discurso as palavras

para Goacutergias podem persuadir os outros a mudar suas opiniotildees o que confere um poder

quase ilimitado ao discurso retoacuterico Este por conseguinte eacute capaz de imprimir o ser agraves

coisas que natildeo satildeo levar agrave consciecircncia do homem o significado das coisas alterar tanto

as emoccedilotildees como as opiniotildees daqueles que o ouvem e submeter os ouvintes ao poder do

orador Ele ainda pode persuadir a alma constrangendo-a tanto a crer nas coisas

enunciadas quanto a concordar com as coisas feitas Dessarte Goacutergias define a arte

retoacuterica como πειθοῦς δημιουργός ou seja como artiacutefice da persuasatildeo (Goacuterg 453a)

Agora sim Goacutergias tua indicaccedilatildeo parece-me muito mais propiacutenqua agrave qual arte consideras ser a retoacuterica e se compreendo alguma coisa afirmas que a retoacuterica eacute artiacutefice da persuasatildeo e todo seu exerciacutecio e cerne convergem a esse fim Ou tens algo mais a acrescentar ao poder da retoacuterica aleacutem de incutir na alma dos ouvintes a persuasatildeo

Enquanto artiacutefice da persuasatildeo a retoacuterica eacute capaz de persuadir mediante o discurso

os juiacutezes no tribunal os conselheiros no Conselho os membros da Assembleia e em toda

e qualquer reuniatildeo que seja uma reuniatildeo poliacutetica E atraveacutes dela eacute possiacutevel submeter os

ouvintes ao poder do orador a ponto deste ter o meacutedico como escravo e como escravo o

treinador (Ibid 452e)

A meu ver ser capaz de persuadir mediante o discurso os juiacutezes no tribunal os conselheiros no Conselho os membros da Assembleia na Assembleia e em toda e qualquer reuniatildeo que seja uma reuniatildeo poliacutetica Ademais por meio desse poder teraacutes o meacutedico como escravo e como escravo o treinador Tornar-se-aacute manifesto que aquele negociante negocia natildeo para si proacuteprio mas para outra pessoa para ti que tens o poder de falar e persuadir a multidatildeo

Aleacutem do mais para Goacutergias se porventura algum meacutedico fosse incapaz de

persuadir um doente qualquer a seguir cabalmente suas orientaccedilotildees como por exemplo

cortar ou cauterizar algum membro enfermo o orador haacutebil jaacute natildeo teria tal dificuldade e

isto soacute seria possiacutevel atraveacutes do domiacutenio da arte retoacuterica E no caso de um orador e um

meacutedico que se dirigissem a uma cidade e laacute se requeresse uma disputa entre eles atraveacutes

do discurso sobre quem deveria ser eleito meacutedico certamente seria o orador e natildeo o

meacutedico a obter a vaga pleiteada (Ibid 456c)

Ah Se soubesses de tudo Soacutecrates todos os poderes por assim dizer elas os manteacutem sob sua eacutegide Vou te contar uma grande prova disso muitas vezes eu me dirigi em companhia de meu irmatildeo e de outros meacutedicos a um doente que natildeo queria tomar remeacutedio nem permitir ao meacutedico que lhe cortasse ou cauterizasse algo sendo o meacutedico incapaz de persuadi-lo eu enfim o persuadi por meio de nenhuma outra arte

senatildeo a da retoacuterica E digo mais se um reacutetor e um meacutedico se dirigirem a qualquer cidade que quiseres e laacute requerer uma disputa entre eles mediante o discurso na Assembleia ou em qualquer outra reuniatildeo sobre quem deve ser eleito como meacutedico quem se apresentaraacute jamais seraacute o meacutedico mas seraacute eleito aquele que tenha o poder de falar se assim ele o quiser E se disputasse com qualquer outro artiacutefice o reacutetor ao inveacutes de qualquer um deles persuadiria as pessoas a elegerem-no pois natildeo haacute nada sobre o que o reacutetor natildeo seja mais persuasivo do qualquer outro artiacutefice em meio agrave multidatildeo Esse eacute o tamanho e o tipo de poder dessa arte

Em sua explanaccedilatildeo acerca da arte retoacuterica Goacutergias a apresenta como uma disciplina

separada e distinta das demais aacutereas do conhecimento humano Para ele um orador natildeo

deveria estar preocupado com o conhecimento teacutecnico dos assuntos de seus discursos

pois apesar de natildeo conhecer a arte da medicina poderia facilmente persuadir um paciente

desobediente agraves ordens de seu meacutedico41 Desse modo natildeo seria necessaacuterio o domiacutenio de

um conhecimento teacutecnico sobre um assunto especiacutefico no qual o orador objetivasse a

persuasatildeo Pelo contraacuterio o orador saberia como produzir a persuasatildeo nos ouvintes

independente de qualquer conhecimento especializado E se o meacutedico e o orador satildeo

capazes de persuadir o resultado praacutetico seria o mesmo em seus ouvintes com a diferenccedila

de que o orador eacute mais eficiente em atingir seu objetivo

Com efeito Goacutergias natildeo nega que o conhecimento teacutecnico exista mas sim a

existecircncia de uma conexatildeo necessaacuteria entre o conhecimento e a persuasatildeo E quando

Soacutecrates no diaacutelogo em apreccedilo aventa que os especialistas numa determinada arte satildeo os

melhores para dar conselhos sobre a construccedilatildeo de um porto ou de uma muralha Goacutergias

argumenta que satildeo os oradores que sempre tecircm ecircxito para persuadir a Assembleia a

aprovar as leis mais relevantes e jamais os especialistas (Ibid 455b-c) Para ele os

estaleiros as muralhas de Atenas e o aparelhamento dos portos seriam o resultado do

conselho de Temiacutestocles e de Peacutericles e natildeo dos artiacutefices (Ibid 455e) Aliaacutes Goacutergias natildeo

se utiliza de raciociacutenios para provar sua tese sobre a onipotecircncia do discurso mas de

exemplos que seriam suficientemente fortes para questionar a pretensatildeo dos especialistas

e refutaacute-la

Embora Goacutergias reconheccedila que meacutedicos e outros especialistas tenham

conhecimento parece que tanto o Goacutergias do Elogio de Helena quanto o personagem

41 Goacutergias teria sido disciacutepulo de Empeacutedocles que o levou a dedicar-se agraves artes do discurso persuasivo e da medicina O seu irmatildeo Heroacutedico tambeacutem era meacutedico de modo que pretendeu ajudar a medicina utilizando seus poderes de persuasatildeo sobre os pacientes recalcitrantes de seu irmatildeo bem como de outros meacutedicos (GUTHRIE 2007 251)

forjado por Platatildeo no diaacutelogo Goacutergias concordam que o conhecimento especializado eacute

irrelevante quando se trata da eficaacutecia da persuasatildeo Por essa razatildeo Goacutergias pode declarar

que por meio do poder da retoacuterica eacute possiacutevel submeter tanto o meacutedico como o treinador agrave

condiccedilatildeo de escravos Isto significa que todos os especialistas que natildeo possuem a

habilidade retoacuterica satildeo menos poderosos do que aqueles que sabem como persuadir as

multidotildees (Ibid 452e) As decisotildees poliacuteticas entatildeo natildeo seriam tomadas por

especialistas porque quem realmente decide natildeo satildeo os especialistas mas aqueles que

em virtude de sua habilidade persuasiva satildeo capazes de fazer-se ouvir e arbitrar Werner

Jaeger salienta a este respeito que Goacutergias natildeo se sentiria capaz de definir a retoacuterica senatildeo

pelos seus efeitos persuasivos Assim a tentativa de defini-la a partir de um conteuacutedo

material como se pode fazer com outras disciplinas que igualmente se servem da palavra

como meio fracassaria porque a retoacuterica seria somente palavra e arte da palavra a qual

tenderia a persuadir por meio da forma oratoacuteria (JAEGER 2003 650)

Com o propoacutesito de compreendermos a concepccedilatildeo retoacuterica de Goacutergias analisamos

ateacute aqui algumas de suas doutrinas expostas no Elogio de Helena e nas doxografias

exaradas por Platatildeo no diaacutelogo Goacutergias Cabe examinarmos adiante seguindo o mesmo

procedimento as doutrinas do sofista Protaacutegoras

63 Protaacutegoras a teacutecnica dos argumentos opostos e o relativismo

De acordo com o registro histoacuterico de Dioacutegenes Laeacutercio o sofista Protaacutegoras era

um mestre itinerante originaacuterio da cidade de Abdera que ensinava a arte de persuadir e

conhecimentos gerais o que lhe garantia fabulosas quantias de dinheiro a tiacutetulo de

honoraacuterios No entanto ele teria sido mais arrojado que o sofista Goacutergias pois ao chegar

na cidade de Atenas teria declarado a seguinte profissatildeo de feacute agnoacutestica ldquoπερὶ μὲν θεῶν

οὐκ ἔχω εἰδέναι οὔθ᾽ ὡς εἰσίν οὔθ᾽ ὡς οὐκ εἰσίν πολλὰ γὰρ τὰ κωλύοντα εἰδέναι ἥ τ᾽

ἀδηλότης καὶ βραχὺς ὢν ὁ βίος τοῦ ἀνθρώπουrdquo segundo a qual natildeo existiriam meios de

saber se os deuses existem ou natildeo existem uma vez que satildeo muitos os obstaacuteculos

impeditivos de tal conhecimento como a obscuridade do assunto e a brevidade da vida

humana Em virtude dessa declaraccedilatildeo ele teria sido banido de Atenas e suas obras

queimadas na praccedila do mercado (Vid doutr fil il IX 8 52-53)

Quando Protaacutegoras declara que natildeo se pode afirmar que os deuses existem nem que

natildeo existem apelando primeiramente para a obscuridade do assunto provavelmente ele

estaacute falando da impossibilidade de fazer um discurso sobre os deuses em virtude de uma

ausecircncia de experiecircncia Sobre os deuses nada se pode falar porque o seu eventual ser natildeo

se transforma num objeto de experiecircncia imediata e sensiacutevel de modo que qualquer

discurso sobre eles natildeo seria de fato evidente E a referecircncia agrave brevidade da vida humana

eacute uma concessatildeo puramente exterior agraves opiniotildees e crenccedilas tradicionais fato comum em

Protaacutegoras que em seus discursos se utilizava tambeacutem dos mitos para veicular suas ideias

eacuteticas e poliacuteticas No entanto quando ele declara que natildeo sabe se os deuses existem ou

natildeo existem natildeo estaacute efetivamente negando sua existecircncia o que configuraria o crime de

impiedade (ἀσέβεια) pela qual ele foi condenado mas apenas suspendendo qualquer

julgamento sobre a questatildeo Natildeo obstante parece que os atenienses interpretaram o fato

de Protaacutegoras dizer natildeo saber nada acerca da existecircncia dos deuses como um modo menos

expliacutecito mas igualmente claro de afirmar saber que os deuses natildeo existem

Ainda segundo Dioacutegenes Laeacutercio o sofista Protaacutegoras teria sido o primeiro

indiviacuteduo a afirmar que em relaccedilatildeo a qualquer assunto existem duas afirmaccedilotildees

contraditoacuterias e argumentava em concordacircncia com este princiacutepio Ele teria sido o

primeiro a exigir cem minas a tiacutetulo de honoraacuterios a distinguir os tempos e os verbos a

destacar a importacircncia de aproveitar o momento oportuno a organizar debates oratoacuterios

a ensinar os contendores o uso dos sofismas a relegar a plano secundaacuterio a significaccedilatildeo

dos termos atendo-se unicamente ao jogo de palavras a criar as discussotildees eriacutesticas e a

descobrir o meacutetodo de aprovar e refutar um mesmo tema proposto Ele tambeacutem teria

distinguido quatro tipos de discursos a narraccedilatildeo a pergunta a resposta a enumeraccedilatildeo a

suacuteplica e a invocaccedilatildeo que sustentou serem as bases fundamentais do discurso Tambeacutem

existiriam no seu tempo alguns textos conservados que eram atribuiacutedos a Protaacutegoras tais

como Da arte eriacutestica Da luta Das ciecircncias Do Estado Da ambiccedilatildeo Das virtudes Da

ordem antiga das coisas Dos que habitam no Hades Sobre as maacutes accedilotildees do homens

Preceitos Dos discursos forenses mediante honoraacuterios e Antilogias em dois livros (Ibid

IX 8 52-53)

No que tange agrave afirmaccedilatildeo de que em relaccedilatildeo a qualquer assunto existem duas

afirmaccedilotildees contraditoacuterias ou dois argumentos opostos (δισσοὶ λόγοι) e de que eacute possiacutevel

aprovar e refutar um mesmo tema proposto Protaacutegoras queria dizer com isso que se pode

tomar qualquer lado de uma questatildeo e defendecirc-la com igual convicccedilatildeo Eacute manifesto que

desde que os homens comeccedilaram a argumentar sempre existiram argumentos opostos

Aristoacuteteles ateacute declara que todas as pessoas em certa medida questionam e sustentam

argumentos defendem ou acusam (Ret 1354a 5-7) poreacutem o que caracteriza o

pensamento protagoacuterico natildeo eacute simplesmente a ocorrecircncia de argumentos opostos mas o

fato de que ambos os argumentos (proacute e contra) podem ser veiculados pelo mesmo orador

sem se levar em consideraccedilatildeo o absurdo de negar o princiacutepio loacutegico de natildeo-contradiccedilatildeo

No diaacutelogo Fedro Platatildeo censura esta praacutetica chamada por ele de antiloacutegica

(ἀντιλογική) a qual consiste em fazer com que a mesma coisa seja vista pelas mesmas

pessoas ora possuindo um predicado ora possuindo o predicado contraacuterio a exemplo do

justo e do injusto Para Platatildeo o executor da ἀντιλογικὴ seria capaz de fazer com que a

mesma coisa apareccedila agraves mesmas pessoas umas vezes justa outras injusta Nos discursos

na Assembleia ele seria capaz de fazer que as mesmas coisas pareccedilam agrave cidade algumas

vezes boas e outras vezes maacutes (Fed 261d) Todavia a ἀντιλογικὴ ou a arte de combater

com palavras aprovando ou refutando um mesmo tema proposto natildeo se limitaria apenas

aos tribunais e agrave Assembleia mas abrangeria todo gecircnero oratoacuterio Aliaacutes a ἀντιλογικὴ

possibilitaria a uma pessoa tornar cada coisa semelhante a qualquer outra (Ibid 261e)

No diaacutelogo A Repuacuteblica Platatildeo estabelece uma clara distinccedilatildeo entre a ἀντιλογικὴ e

a dialeacutetica (διαλεκτικὴ) ao assegurar que falta ao executor da ἀντιλογικὴ uma

caracteriacutestica que eacute essencial ao debate filosoacutefico qual seja a capacidade de discutir com

base na divisatildeo objetiva das coisas em espeacutecies uma vez que a ἀντιλογικὴ procede

somente com base em contradiccedilotildees verbais (Rep 454a) E no Protaacutegoras ele atribui ao

sofista Protaacutegoras a crenccedila de que qualquer discussatildeo equivale a uma ldquoluta de palavrasrdquo

(λόγων ἀφικόμην) da qual um deve sair como vitorioso e outro o derrotado em

detrimento do ideal expresso por Soacutecrates da investigaccedilatildeo em comum um auxiliando o

outro para que ambos possam chegar mais facilmente ao conhecimento da verdade (Prot

335a)

Tal ldquoluta de palavrasrdquo tambeacutem recebe o nome de eriacutestica (εριστική) que pode ser

caracterizada como a habilidade em refutar e sustentar ao mesmo tempo teses

contraditoacuterias cujo objetivo eacute somente a persuasatildeo dos interlocutores O sucesso da

εριστική estaacute intrinsecamente vinculado agrave habilidade retoacuterica de sorte que vencia a

discussatildeo o mais forte em argumentos e natildeo necessariamente aquele que veiculasse

argumentos verdadeiros Na visatildeo de Chaumlim Perelman em oposiccedilatildeo ao ponto de vista

eriacutestico a discussatildeo dialeacutetica consiste no instrumento ideal para chegar a conclusotildees

objetivamente vaacutelidas pois nela supotildee-se que os interlocutores natildeo se preocupam senatildeo

em mostrar e provar todos os argumentos a favor ou contra atinentes agraves diversas teses

em presenccedila Desse modo ao ser levada a bom termo a discussatildeo dialeacutetica deveria

conduzir os interlocutores a uma conclusatildeo inevitaacutevel e unanimemente admitida

Entretanto no debate eriacutestico cada interlocutor soacute aventaria argumentos convenientes

para sua tese e soacute se preocuparia com os argumentos contraacuterios se lhe fossem favoraacuteveis

ora para refutaacute-los ora para limitar-lhes o alcance O interlocutor com posiccedilatildeo tomada eacute

sempre parcial tanto por ter tomado posiccedilatildeo como por jaacute natildeo poder fazer senatildeo a parte

dos argumentos pertinentes que lhe eacute favoraacutevel os quais apareceratildeo no debate se o

adversaacuterio os aventar Compreende-se entatildeo que a discussatildeo dialeacutetica se apresenta como

uma busca sincera pela verdade ao passo que no debate eriacutestico cada qual se preocupa

sobretudo com o triunfo de sua proacutepria tese (PERELMAN 2014 41-42)

Com base nas duas referecircncias em apreccedilo acerca do significado de ἀντιλογικὴ no

pensamento platocircnico pode-se concluir que o termo designa de um lado a praacutetica sofiacutestica

de defender indiferentemente teses que satildeo contraacuterias e de outro o combate verbal cujo

objetivo principal eacute vencer o adversaacuterio sem qualquer compromisso com a apreensatildeo da

verdade Todavia conveacutem levar em consideraccedilatildeo que apesar de haver uma longa tradiccedilatildeo

nos estudos platocircnicos de tratar as palavras antiloacutegica e eriacutestica como simplesmente

intercambiaacuteveis G B Kerferd sustenta que esta interpretaccedilatildeo eacute um tanto ou quanto

imprecisa42

Existe um fragmento conhecido como Discursos Duplos (Δισσοὶ λόγοι) que foi

datado do iniacutecio do seacuteculo IV aC cujo autor eacute desconhecido (SPRAGUE 1968 155-

167) A despeito disso o fragmento em apreccedilo certamente possui um caraacuteter sofista e

42 Conforme a anaacutelise de G B Kerferd Platatildeo frequentemente usa os termos ldquoεριστικήrdquo e ldquoἀντιλογικὴrdquo para se referir ao mesmo procedimento e da mesma forma emprega ocasionalmente adjetivos derivados de ldquoεριστικόςrdquo e ldquoαντιλογικόςrdquo para se referir agraves mesmas pessoas mas da mesma forma ocasionalmente aplica um soacute termo sem o outro E agraves vezes o segundo termo que falta eacute simplesmente omitido mas em outras situaccedilotildees o contexto sugere que teria sido inadequado usar o segundo termo Todavia quer Platatildeo use um termo ou os dois reportando-se agrave mesma coisa ou agrave mesma pessoa eles nunca teriam o mesmo significado O termo ldquoεριστικήrdquo seria derivado do substantivo ldquoἔριςrdquo que significa luta disputa ou controveacutersia e quando Platatildeo o emprega significa ldquobuscar a vitoacuteria na argumentaccedilatildeordquo e a arte que cultiva e propicia os meios e estratagemas para obtecirc-la Portanto a εριστική natildeo seria stricto sensu uma teacutecnica de argumentaccedilatildeo pois ela pode usar uma ou mais de uma seacuterie de teacutecnicas com o intuito de atingir seu objetivo qual seja o sucesso no debate ou sua aparecircncia A ἀντιλογικὴ por sua vez seria um procedimento mais especiacutefico pois consistiria em opor um λόγος a outro ou em descobrir ou chamar atenccedilatildeo para a presenccedila de uma oposiccedilatildeo em um argumento ou em uma coisa ou situaccedilatildeo Assim sua caracteriacutestica essencial seria a oposiccedilatildeo de um λόγος a outro por contrariedade ou oposiccedilatildeo e ao contraacuterio da εριστική a palavra ldquoἀντιλογικὴrdquo constituiria uma teacutecnica bem especiacutefica que a partir de um determinado λόγος procura estabelecer um λόγος contraacuterio ou contraditoacuterio (KERFERD 2003 108-110)

muitos estudiosos como Heinrich Gomperz (GOMPERZ 1965) e T M Robinson

(ROBINSON 1979) sustentaram que a estrutura antiloacutegica do fragmento relaciona-se ao

meacutetodo protagoacuterico por isso eles o atribuiacuteram agrave escola do sofista Protaacutegoras O fragmento

Δισσοὶ λόγοι eacute composto por uma seacuterie de discursos de natureza antiloacutegica pois seu autor

examina cinco toacutepicos propondo para cada um deles discursos contraacuterios sobre o bom e

o ruim (Περὶ ἀγαθῶ καὶ κακῶ) sobre o bonito e o feio (Περὶ καλοῦ καὶ αἰσχροῦ) sobre

o justo e o injusto (Περὶ δικαίου καὶ ἀδίκου) sobre o falso e o verdadeiro (Περὶ ἀλαθέος

καὶ ψεύδεος) e sobre a sabedoria e a virtude (Περὶ τᾶς σοφίας καὶ τᾶς ἀρετᾶς)

Ao abordar o tema sobre o bom e o ruim o autor desconhecido assevera que duplos

discursos sobre o bom e o ruim satildeo proferidos na Greacutecia pelos pensadores Para ele

alguns dizem que o bom eacute uma coisa e o ruim outra ao passo que outros sustentam que

eacute a mesma coisa Na verdade ela pode ser boa para uns mas ruim para outros e para a

mesma pessoa ora eacute boa ora eacute ruim O autor deixa claro que prefere tomar o partido destes

uacuteltimos e pretende expor tal raciociacutenio comeccedilando pela anaacutelise da vida humana Em sua

visatildeo certas coisas satildeo ruins para os que estatildeo doentes mas satildeo boas para os que estatildeo

saudaacuteveis e delas tecircm necessidade Semelhantemente a doenccedila eacute ruim para os que

adoecem mas eacute boa para os meacutedicos que lucram com os honoraacuterios A morte tambeacutem eacute

ruim para os que morrem todavia eacute boa para os que vendem serviccedilos funeraacuterios bem

como para os fabricantes de caixotildees Quando os cargueiros colidem e se quebram

certamente eacute ruim para seus proprietaacuterios mas eacute bom para os construtores de barcos

Aleacutem do mais quando uma ferramenta corroe-se perde o fio ou se quebra eacute ruim para os

proprietaacuterios mas para o ferreiro eacute uma coisa boa O mesmo acontece quando os potes se

quebram jaacute que eacute ruim para os outros mas eacute bom para o ceramista (Disc Dup 1 1-5)

No que tange ao bonito e ao feio o autor tambeacutem declara que satildeo proferidos dois

discursos opostos Para ele alguns dizem que o bonito seria uma coisa e o feio outra

diferente tanto na realidade como no nome Todavia existem outros que asseveram que

a mesma coisa eacute bonita e feia Para as mulheres eacute bonito banhar-se dentro de casa e feio

fazecirc-lo fora dela mas para os homens tanto em casa quanto no ginaacutesio eacute bonito Ter

relaccedilotildees sexuais com o marido em lugar tranquilo onde se estaacute protegida por paredes eacute

algo bonito mas eacute feio fazecirc-lo publicamente Ter relaccedilotildees sexuais com o proacuteprio marido

eacute bonito mas com o marido de outra eacute muito feio Igualmente para o homem eacute bonito se

deitar com sua mulher mas eacute feio que o faccedila com a de outro homem Enfeites maquiagens

e o uso de joias parece feio para o homem ao passo que eacute bonito para a mulher Fazer o

bem aos amigos tambeacutem eacute bonito mas aos inimigos eacute feio Correr dos inimigos em plena

guerra eacute feio mas correr dos competidores numa pista de corrida eacute bonito Assassinar os

amigos e concidadatildeos eacute feio mas matar os inimigos eacute algo bonito (Ibid 2 1-8)

Outrossim para os traacutecios eacute um ornamento o fato das meninas tatuarem-se mas para os

outros povos a tatuagem constitui um castigo para os criminosos Os citas consideram

bonito que o homem que assassina seu inimigo arranque seu couro cabeludo e leve o

escalpo diante de seu cavalo e que apoacutes ter recoberto de ouro ou prata o cracircnio do morto

beba nele e faccedila libaccedilotildees aos deuses Entretanto ningueacutem entre os gregos iria querer ficar

debaixo do mesmo teto com uma pessoa que tivesse cometido tais atos Os massagetas

cortam seus pais em pedaccedilos e os comem e ser comido por seus filhos parece-lhes a mais

bela sepultura Mas se algueacutem fizesse isso entre os gregos morreria miseravelmente ou

seria expulso da Greacutecia por ter cometido atos tatildeo feios e terriacuteveis Os persas acham bonito

que os homens se maquiem como as mulheres e que tenham relaccedilotildees sexuais com as

filhas matildees e irmatildes mas para os gregos isso eacute considerado feio e contraacuterio agrave lei E entre

os liacutedios considera-se bonito que as jovens se prostituam faccedilam dinheiro e depois se

casem ao passo que entre os gregos ningueacutem desejaria desposar tais mulheres (Ibid 2

13-16) O autor conclui este toacutepico sustentando a seguinte hipoacutetese se reunissem tudo

que eacute considerado feio pelos povos em geral e em seguida eles tivessem de levar dali o

que consideram bonito todas as coisas seriam levadas embora como bonitas pois natildeo

tecircm todos as mesmas opiniotildees Eacute improvaacutevel que reunidas as coisas feias elas venham a

ser bonitas jaacute que natildeo chegaram desse modo E caso tivessem trazido cavalos bois

ovelhas ou homens certamente natildeo tirariam algo diferente de modo que trazendo ouro

natildeo levariam ferro e se trouxessem prata natildeo levariam chumbo ou coisas desde jaez

(Ibid 2 26-27)

Para o autor desconhecido duplos discursos tambeacutem satildeo proferidos sobre o justo

e o injusto Segundo ele algumas pessoas asseveram que uma coisa seria o justo e outra

coisa o injusto mas para outros a mesma coisa eacute ao mesmo tempo justa e injusta Na

tentativa de defender esta uacuteltima posiccedilatildeo ele declara que pode ser justo mentir e enganar

de modo que fazer isso com os inimigos eacute feio e baixo mas natildeo com os mais proacuteximos

a exemplo dos pais Se o pai ou a matildee precisa tomar um remeacutedio que natildeo quer eacute justo

colocaacute-lo em sua bebida ou comida e natildeo contar o ocorrido Desse modo mentir para os

pais e enganaacute-los eacute realmente justo e tambeacutem roubar o que eacute do amigo e ateacute usar a forccedila

contra os entes queridos Caso um familiar transtornado e abatido com algo estiver prestes

a cometer o suiciacutedio com um punhal corda ou outro instrumento qualquer eacute justo roubaacute-

lo Ou ainda no caso de algueacutem chegar tarde e ele jaacute o tiver em matildeos eacute justo empregar a

forccedila para arrancaacute-lo dele E se o pai de algueacutem ao ser condenado agrave morte estiver preso

tendo sido capturado por inimigos poliacuteticos tambeacutem seria justo invadir o local para salvaacute-

lo No tocante ao perjuacuterio se algueacutem ao ser capturado por inimigos jurar que trairia sua

cidade ao ser libertado natildeo deveria manter sua palavra jaacute que nesse caso o melhor eacute

praticar o perjuacuterio para salvar a cidade (Ibid 3 1-6) Enfim sobre o toacutepico em apreccedilo o

autor acredita ter demonstrado que a mesma coisa eacute tanto justa quanto injusta pois o fato

de ser justo roubar o que eacute do inimigo demonstraria que a mesma coisa eacute justa e injusta

e isto tambeacutem seria vaacutelido para todas as outras afirmaccedilotildees (Ibid 3 15-16)

Sobre o falso e o verdadeiro tambeacutem satildeo proferidos discursos duplos Para o autor

uns dizem que o discurso verdadeiro eacute diferente do falso tanto no nome quanto na

realidade No entanto existem aqueles que afirmam que satildeo o mesmo discurso A fim de

justificar esta perspectiva o autor aventa que os loucos e os sensatos os saacutebios e os

ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas Primeiramente eles usam os mesmos nomes

como terra homem cavalo fogo etc Eles tambeacutem fazem as mesmas coisas como sentar

comer beber dormir e tudo o mais do mesmo jeito Ademais ele afirma que a mesma

coisa eacute tanto maior quanto menor mais e menos mais pesada e mais leve razatildeo pela qual

as mesmas coisas satildeo tudo O talento eacute mais pesado que a mina e mais leve que dois

talentos indicando que a mesma coisa eacute mais leve e mais pesada O mesmo homem vive

e natildeo vive e as mesmas coisas satildeo e natildeo satildeo As coisas que estatildeo num determinado lugar

natildeo estatildeo na Liacutebia e aquilo que estaacute na Liacutebia natildeo estaacute no Chipre E o raciociacutenio de que

as coisas satildeo e natildeo satildeo se aplicaria a todas as demais coisas Todavia existem os que

veiculam a opiniatildeo contraacuteria ou seja que eacute incorreto que os loucos e os sensatos os

saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas porquanto eles sustentam que a

loucura difere da sensatez e a sabedoria da ignoracircncia Natildeo obstante eacute manifesto para o

autor que eles concordariam que cada um age de acordo com o que eacute pois se fazem as

mesmas coisas os saacutebios seriam loucos e os loucos seriam saacutebios e todas as coisas assim

misturadas confundir-se-iam de maneira que elas precisam ser compreendidas em

sentido relativo (Ibid 5 1-8 15)

Por fim o escritor anocircnimo do Δισσοὶ λόγοι aborda o toacutepico a respeito da sabedoria

e da virtude43 bem como a asserccedilatildeo de que elas natildeo podem ser ensinadas nem aprendidas

43 No decorrer dessa obra traduziu-se a palavra grega ldquoἀρετήrdquo por ldquovirtuderdquo uso que a tradutora do Δισσοὶ λόγοι (Joseane Mara Prezotto) procurou evitar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade ou correccedilatildeo moral optando entatildeo por ldquoexcelecircnciardquo Por falar nisso a traduccedilatildeo da Eacutetica a Nicocircmaco

Ele aventa que os que dizem isso mormente se apoiam nas seguintes provas natildeo seria

possiacutevel preservar consigo o que se transmite a algueacutem se fosse possiacutevel ensinar

sabedoria e virtude haveria professores conhecidos como tais a exemplo dos professores

de muacutesica os homens na Greacutecia que se tornaram saacutebios teriam a capacidade de ensinar

seus proacuteprios filhos e amigos existem pessoas que jaacute frequentaram os sofistas e natildeo

obtiveram disso proveito algum em contrapartida muitos que natildeo se associaram aos

sofistas tornaram-se indiviacuteduos notaacuteveis Todavia o autor considera que esse discurso eacute

demasiado simplista jaacute que os professores que ensinam letras conhecem-nas tambeacutem eles

proacuteprios e o mesmo ocorre com os professores de ciacutetara E se natildeo existem professores de

sabedoria e virtude seria necessaacuterio explicar o fato de sofistas anaxagoacutericos e pitagoacutericos

ensinarem seus disciacutepulos Policleto com efeito ensinou seu filho a fazer estaacutetuas E se

porventura algueacutem natildeo foi capaz desse feito natildeo se prova nada de modo que se um foi

capaz de ensinar isto jaacute seria uma prova de que o ensino eacute possiacutevel E se porventura junto

aos sofistas saacutebios alguns natildeo se tornam saacutebios tambeacutem muitos quando estudantes

sequer aprenderam as letras Aleacutem do mais existe certa disposiccedilatildeo natural graccedilas agrave qual

algueacutem que natildeo estudou com um sofista se torna capaz de compreender facilmente a

maioria dos assuntos depois de ter aprendido um pouco junto agravequeles com quem se

aprende a liacutengua incluindo os pais E caso algueacutem natildeo acredita que se aprende a liacutengua

mas que jaacute se nasce sabendo deve considerar que se uma crianccedila receacutem-nascida for

enviada para a Peacutersia e ali for criada sem ouvir a liacutengua grega certamente falaria persa

Depois de opor dois argumentos contraacuterios o autor conclui seu discurso sem afirmar que

a sabedoria e a virtude podem ser ensinadas mas que os argumentos contraacuterios satildeo

insuficientes para impor-se como verdade absoluta (Ibid 6 1-13)

A praacutetica de argumentos opostos eacute mormente atribuiacuteda a Protaacutegoras mas eacute

provaacutevel que natildeo estivesse confinada a ele pois eacute trazida agrave baila por Aristoacutefanes na

comeacutedia As Nuvens razatildeo pela qual natildeo se pode afirmar que todos os casos de δισσοὶ

λόγοι procedam exclusivamente de Protaacutegoras Na comeacutedia em apreccedilo o personagem

chamado Estrepsiacuteades estaacute cheio de diacutevidas em virtude de sua paixatildeo por cavalos e para

natildeo pagar seus credores decide frequentar o pensatoacuterio (φροντιστήριον) que eacute o nome da

escola onde Soacutecrates ensina qualquer pessoa a triunfar uma causa maacute graccedilas aos artifiacutecios

frequentemente utilizada neste trabalho eacute de Antoacutenio de Castro Caeiro o qual tambeacutem optou por traduzir a palavra grega ldquoἀρετήrdquo por ldquoexcelecircnciardquo e natildeo por ldquovirtuderdquo Todavia visto que esta palavra eacute mais familiar e tradicionalmente utilizada por muitos tradutores do Corpus Aristotelicum como procede Manuel Alexandre Juacutenior em sua traduccedilatildeo da Retoacuterica preferiu-se pois empregaacute-la em todos os casos em que se faz referecircncia ao termo grego

e sutilezas da arte retoacuterica Quando Estrepsiacuteades se apresenta ao φροντιστήριον a fim de

ser admitido encontra Soacutecrates pendurado num cesto estudando os fenocircmenos celestes

Mas como se revela um mal aluno pouco dotado para seguir os ensinamentos de

Soacutecrates Estrepsiacuteades insiste que seu filho Fidiacutepides frequente o pensatoacuterio e receba a

formaccedilatildeo retoacuterica na espectativa de que ela o ajudaraacute contra seus credores Estrepsiacuteades

orienta o seu filho Fidiacutepides nos seguintes termos (Nuv 95 115)

Laacute moram homens que quando falam do ceacuteu querem convencer de que eacute um abafador que estaacute em nosso redor e noacutessomos os carvotildees Se a gente lhes der algum dinheiro eles ensinam a vencer com discursos nas causas justas e injustas [] Dizem que no meio deles os raciociacutenos satildeo dois o forte seja ele qual for e o fraco Eles afirmam que o segundo raciociacutenio isto eacute o fraco discursando vence nas causas mais injustasOra se vocecirc me aprender esse raciociacutenio injusto do dinheiro que agora estou devendo por sua culpa dessas diacutevidas eu natildeo pagaria nem um oacutebulo a ningueacutem

Com efeito mais dotado que o pai Fidiacutepides segue com sucesso as aulas de

Soacutecrates o que possibilita Estrepsiacuteades livrar-se dos seus credores Mas a vitoacuteria contra

os credores volta-se contra Estrepsiacuteades porque o seu filho bem instruiacutedo pelos

ensinamentos de Soacutecrates que lhe dispensou o raciociacutenio injusto acha autorizado a bater

no pai e afirma (atraveacutes de sutis argumentos e sem nenhum escruacutepulo) que natildeo hesitaria

em fazer o mesmo com sua matildee Pode-se assegurar que todo o enredo da comeacutedia As

Nuvens gira em torno da pretensatildeo de Soacutecrates de ensinar seus alunos a como escapar das

penalidades legais referente ao agir mal Instruiacutedo por ele Fidiacutepides defende abertamente

agredir o seu proacuteprio pai justificando que eacute doce conviver com ideias novas e engenhosas

e poder desprezar as leis tradicionais estabelecidas (Ibid 1404) Portanto atraveacutes da arte

retoacuterica transmitida por Soacutecrates na forma de sentenccedilas palavras e pensamentos seria

possiacutevel defender uma causa considerada injusta e fazecirc-la prevalecer sobre uma causa

justa (Ibid 1405-1415 1440)

E antes vou dizer-lhe o seguinte quando eu era crianccedila vocecirc me batia [] Entatildeo diga-me natildeo eacute justo que eu tenha boas intenccedilotildees e da mesma forma lhe bata jaacute que ldquoter boas intenccedilotildeesrdquo eacute ldquobaterrdquo Mas como eacute que seu corpo deve sair ileso dos golpes e o meu natildeo E no entanto bem que eu nasci livre ldquoas crianccedilas choram e pensas que um pai natildeo deve chorar Mas vocecirc diraacute que se considera esse ato como proacuteprio das crianccedilas e eu responderei que os ldquo Velhos satildeo duas vezes crianccedilasrdquo e que eacute natural que os velhos chorem mais do que os jovens tanto quanto eacute menos razoaacutevel que cometam erros [] Tambeacutem vou bater na minha matildee como lhe bati

Mediante o auxiacutelio da arte retoacuterica ensinada por Soacutecrates seria possiacutevel a Fidiacutepides

em proveito proacuteprio fazer o argumento mais forte transformar-se no argumento mais

fraco na Assembleia popular no tribunal ou em qualquer outro lugar Atraveacutes da teacutecnica

retoacuterica as crenccedilas e os valores tradicionais poderiam ser confundidos no debate entre os

argumentos ldquojustordquo e ldquoinjustordquo posto que nele o que vale como justo poderia ser

transformado no seu oposto Assim dois discursos se enfrentam a fim de conquistar o

favor de Fidiacutepides o discurso mais forte que reivindica o valor da educaccedilatildeo do passado

a qual estaria fundada sobre a justiccedila a temperanccedila a honestidade o dever de venerar os

deuses e o respeito pelos pais e o discurso mais fraco que reivindica ser o primeiro em

absoluto a ter a ideia de contradizer as crenccedilas e os valores tradicionalmente aceitos

Aliaacutes o discurso mais fraco oferece o quadro de uma vida inclinada agraves diversotildees e aos

viacutecios de modo que eacute justamente com este tipo de formaccedilatildeo educacional que o jovem

Fidiacutepides poderaacute tornar-se um sofista perfeito Depois que Estrepsiacuteades percebe que a

retoacuterica sofiacutestica corrompeu completamente seu filho tornando-o rebelde contra toda

autoridade incluindo a sua proacutepria ele decide entatildeo acabar com esta educaccedilatildeo retoacuterica

incendiando o pensatoacuterio acontecimento que encerra a peccedila (Ibid 1490)

Aleacutem de enfatizar no seu registro histoacuterico a profissatildeo de feacute agnoacutestica e a doutrina

dos dois λόγοι Dioacutegenes Laeacutercio tambeacutem faz menccedilatildeo agrave ceacutelebre declaraccedilatildeo de Protaacutegoras

ldquoπάντων χρημάτων μέτρον ἄνθρωπος τῶν μὲν ὄντων ὡς ἔστιν τῶν δὲ οὐκ ὄντων ὡς οὐκ

ἔστινrdquo cuja traduccedilatildeo significa ldquoo homem eacute a medida de todas as coisas das coisas que

satildeo que elas satildeo das coisas que natildeo satildeo que elas natildeo satildeordquo (Vid doutr fil il IX 8 51)

Pode-se assegurar que a declaraccedilatildeo acima significa basicamente duas coisas o homem

(ἄνθρωπος) que eacute a medida (μέτρον) seria cada homem individualmente e natildeo a raccedila

humana como um todo tomada como uma entidade em si e o que eacute medido nas coisas

natildeo seria sua existecircncia e sua natildeo-existecircncia mas o modo como satildeo e o modo como natildeo

satildeo Sendo assim a frase ldquoπάντων χρημάτων μέτρον ἄνθρωποςrdquo expressa

categoricamente o relativismo de Protaacutegoras segundo o qual natildeo haveria nenhuma

verdade absoluta nem universalmente vaacutelida poreacutem toda a verdade seria relativa ao

sujeito que conhece e julga Protaacutegoras certamente natildeo tem a pretensatildeo de alcanccedilar pela

teoria do homem-medida uma verdade objetiva e vaacutelida para todos pois se o homem eacute a

medida de todas as coisas natildeo existiria um criteacuterio de verdade extriacutenseco a ele Portanto

as percepccedilotildees sensiacuteveis as leis as regras morais os valores as crenccedilas religiosas a

cultura e tudo o mais soacute poderiam ser definidos subjetivamente

Agrave parte do registro de Dioacutegenes Laeacutercio muitas das informaccedilotildees sobre o

pensamento protagoacuterico derivam dos diaacutelogos platocircnicos por isso a avaliaccedilatildeo de suas

ideias depende em grande medida do valor histoacuterico atribuiacutedo aos registros de Platatildeo

Que este tenha reproduzido o pensamento de Protaacutegoras com rigorosa exatidatildeo eacute algo

questionaacutevel mas eacute possiacutevel aduzir que seu objetivo nunca foi denegrir a reputaccedilatildeo do

sofista pelo contraacuterio eacute manifesto em muitas passagens o respeito com que aborda suas

ideias Aliaacutes as contribuiccedilotildees pessoais de Protaacutegoras para as discussotildees filosoacuteficas nos

diaacutelogos sempre se mantecircm num niacutevel intelectual e moral elevado natildeo deixando duacutevida

sobre o respeito que lhe devotava Platatildeo E o fato de praticamente natildeo existir contradiccedilatildeo

entre o que Platatildeo diz e o restante das informaccedilotildees sobre Protaacutegoras oriundas de outras

fontes reforccedila ainda mais a confiabilidade de suas declaraccedilotildees

No diaacutelogo Teeteto Platatildeo interpreta o sofista Protaacutegoras a partir da tese segundo a

qual cada coisa eacute para cada um conforme lhe parece Ele tambeacutem atribui ao sofista a

doutrina de que a aparecircncia (φαντασία) e a percepccedilatildeo (αἴσθησις) satildeo a mesma coisa E

no que respeita ao calor ou ao frio a maneira como cada um se apercebe assim tambeacutem

eacute para cada um Ademais a percepccedilatildeo para Protaacutegoras eacute sempre daquilo que eacute por isso

natildeo pode ser falsa (ἀψευδής) pelo contraacuterio ela constitui o verdadeiro saber (Teet 152b-

c) Pode-se assegurar entatildeo que a perspectiva epistecircmica de Protaacutegoras eacute marcantemente

relativista jaacute que faz depender a atribuiccedilatildeo de qualidades nas coisas natildeo de uma fonte

objetiva de verdade mas daquilo que parece a cada um

Com efeito a doutrina protagoacuterica do homem-medida natildeo eacute um criteacuterio para a

existecircncia mas um criteacuterio para determinar como as coisas satildeo no sentido de quais

predicados podem a elas ser atribuiacutedos Ao declarar que a percepccedilatildeo eacute sempre daquilo

que eacute (αἴσθησις ἄρα τοῦ ὄντος ἀεί ἐστιν) pode-se entender que isto significa que para

Protaacutegoras a percepccedilatildeo de um objeto branco seria sempre a percepccedilatildeo de que ele eacute

branco e tal percepccedilatildeo seria infaliacutevel Isto indica que cada percepccedilatildeo individual em cada

pessoa individual e em cada situaccedilatildeo individual jamais poderia ser corrigida atraveacutes da

comparaccedilatildeo com a percepccedilatildeo de outra pessoa Outrossim Platatildeo afirma que Protaacutegoras

teria declarado que o homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo enquanto satildeo

das que natildeo satildeo enquanto natildeo satildeo querendo dizer com isto que cada coisa seria para

determinado indiviacuteduo tal como lhe aparece Ele ainda atribui a Protaacutegoras a tese

relativista de que quando o mesmo vento estaacute soprando ele poderia ser percebido como

frio por uma certa pessoa mas natildeo por outra (Ibid 152a-b)

Contudo arriscas-te a natildeo teres emitido uma definiccedilatildeo trivial sobre o saber mas sim aquela que diz tambeacutem Protaacutegoras O modo eacute algo diferente mas diz a mesma coisa pois afirma que ldquoa medida de todas as coisasrdquo eacute o homem ldquodas que satildeo enquanto satildeo das que natildeo satildeo enquanto natildeo satildeordquo Leste isto em algum lado [] De certa maneira o que diz eacute isto que cada coisa eacute para mim do modo que a mim me parece por outro lado eacute para ti do modo que a ti te parece [] No entanto eacute provaacutevel que um homem saacutebio natildeo fale ao acaso sigamo-lo entatildeo Natildeo acontece por vezes um de noacutes sentir um mesmo sopro de vento frio e outro natildeo E um sentir pouco frio e outro muito [] Entatildeo como dizemos que eacute o sopro de vento em si mesmo Que eacute frio ou que natildeo eacute frio Ou persuadidos por Protaacutegoras diremos que eacute frio para quem sente frio e natildeo eacute frio para quem natildeo o sente frio

Em conformidade com a doutrina protagoacuterica do homem-medida se o vento parece

muito frio para determinada pessoa entatildeo para ela eacute muito frio e isso natildeo poderia ser

refutado pela experiecircncia subjetiva de outra pessoa que natildeo o perceberia como muito

frio mas como pouco frio Assim se o vento parece ser muito frio para alguns e pouco

frio para outros entatildeo ele seria muito frio para aqueles aos quais parece muito frio e

pouco frio para aqueles aos quais parece pouco frio Para G B Kerferd a teoria de

Protaacutegoras parece implicar na rejeiccedilatildeo da percepccedilatildeo cotidiana ligada ao senso comum

segundo a qual o vento em si mesmo ou eacute frio ou natildeo eacute frio e aquele que o sente se

enganaria caso afirmasse que o vento (objetivamente) eacute tal como lhe parece Dessarte

haveria para Protaacutegoras um vento em si mesmo real objetivo e independente o qual natildeo

seria nem frio nem quente pois a frieza do vento soacute existiria particularmente para o sujeito

que tem a sensaccedilatildeo de frio O vento em si mesmo existiria independentemente da

percepccedilatildeo que algueacutem possa ter dele mas natildeo a sua frialdade a qual seria puramente

subjetiva A percepccedilatildeo do vento e das coisas em geral basear-se-ia de modo causal nos

aspectos de fato presentes na realidade objetiva Os fatores causativos podem numa

opiniatildeo normalmente sustentada ser a fonte dos conteuacutedos da percepccedilatildeo de um indiviacuteduo

mas sua percepccedilatildeo das coisas natildeo se identificaria com os proacuteprios fatores causativos mas

com os resultados subjetivos desses fatores E uma vez que os resultados seriam

determinados pela atuaccedilatildeo dos fatores causativos necessariamente teriam de variar de

pessoa para pessoa e de acordo com as particularidades de cada sujeito (KERFERD 2003

148-150)

Segundo a anaacutelise de Giovanni Casertano a afirmaccedilatildeo protagoacuterica de que o homem

eacute a medida de todas as coisas tem um claro sentido antidogmaacutetico e antimetafiacutesico Isto

quer dizer que a verdade para o sofista natildeo eacute algo dado uma vez para sempre natildeo eacute algo

que possa ser revelado por saacutebios ou profetas nem pode consistir de tradiccedilotildees miacuteticas

transmitidas de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo Pelo contraacuterio a verdade consiste numa relaccedilatildeo

dialeacutetica com a realidade que cada homem em particular instaura segundo sua idade

suas disposiccedilotildees e sua situaccedilatildeo histoacuterica Cada homem em particular tem a capacidade de

sentir e de julgar posto que suas sensaccedilotildees e os seus juiacutezos representam a cada vez o tipo

de relaccedilatildeo todo particular no qual ele se potildee em relaccedilatildeo com a realidade relaccedilatildeo que natildeo

pode ser fixa constante posto que a realidade e o proacuteprio homem natildeo satildeo estaacuteticos

Assim numa realidade perenemente mutaacutevel cada indiviacuteduo capta aqueles aspectos que

lhe satildeo mais congeniais ou seja aqueles aspectos que satildeo mais proacuteprios agrave sua natureza

particular No entanto isto natildeo acontece porque eacute o homem que imprime realidade agraves

coisas segundo o modo no qual se relaciona com ele mas justamente porque as coisas

que existem antes e independentemente do homem encerra em si a possibilidade das

diversas sensaccedilotildees Aleacutem do que no pensamento de Protaacutegoras existe a plena valorizaccedilatildeo

da experiecircncia sensiacutevel da verdade das aparecircncias do fenocircmeno e por conseguinte da

relatividade da verdade ndash cada um tem sua proacutepria verdade porque cada um tem as suas

sensaccedilotildees diferentes das dos outros sobre as quais constroacutei os seus juiacutezos e os seus

discursos E se cada um sente num certo modo e no seu discurso expressa sempre esta

percepccedilatildeo enunciaraacute sempre sua relativa verdade razatildeo pela qual natildeo pode existir um

discurso falso pois cada uma diz o que eacute verdadeiro para ele num determinado momento

situaccedilatildeo e disposiccedilatildeo (CASERTANO 2010 51-52)

Eacute manifesto que a doutrina protagoacuterica do homem-medida produz o mais absoluto

relativismo porque se uma coisa parece bela a um e feia a outro fria a um quente a

outro grande a um pequena a outro inevitavelmente seraacute as duas coisas ao mesmo

tempo Natildeo haveria mais qualquer objetividade nem mesmo loacutegica pois o princiacutepio

loacutegico da natildeo-contradiccedilatildeo natildeo teria mais validade ndash cada indiviacuteduo teria sua proacutepria

verdade e todos os pontos de vista seriam simultaneamente verdadeiros Outrossim esta

concepccedilatildeo aplicar-se-ia agrave cidade que em nome do seu proacuteprio interesse decidiria sobre

os valores e as verdades de modo que as leis as ciecircncias os valores esteacuteticos e morais

natildeo passariam de simples convenccedilotildees que mudariam de uma cidade para outra de acordo

com a histoacuteria e a geografia O desafio protagoacuterico agraves crenccedilas e valores tradicionalmente

aceitos fundamenta-se em teorias relativistas e subjetivistas de ontologia e epistemologia

Todavia agrave medida que eacute aplicada a valores morais o relativismo protagoacuterico significa que

natildeo existe nada a que se possam aplicar a designaccedilatildeo de bom ou mau de maneira absoluta

de sorte que aquilo que eacute bom para determinado indiviacuteduo pode ser mau para outro e o

que eacute bom para um em certas circunstacircncias pode ser mau para ele em outras Aliaacutes o

fragmento Δισσοὶ λόγοι pelos seus diversos exemplos de argumentos opostos expressa

de forma categoacuterica o relativismo moral que caracteriza o pensamento de Protaacutegoras

Desse modo quando ele sustenta que o bem e o mau satildeo apenas relativos significa

simplesmente que natildeo existe nada de bom ou mau em si mesmos mas eacute o pensamento

que o torna tal Eacute justamente tal posiccedilatildeo que natildeo eacute aceita por Platatildeo e Aristoacuteteles que de

fato a criticaram duramente enfatizando que se tudo aquilo que parece para o indiviacuteduo

eacute verdadeiro entatildeo todos os discursos seratildeo verdadeiros e falsos simultaneamente e por

conseguinte tambeacutem bons e maus

Platatildeo tambeacutem atribui a Protaacutegoras a crenccedila de que acerca das coisas da cidade

belas e feias justas e injustas piedosas e iacutempias e quantas forem as normas em que cada

cidade acredite e estabeleccedila para si nelas ningueacutem seria mais saacutebio nem um indiviacuteduo

em relaccedilatildeo a outro nem uma cidade em relaccedilatildeo a outra (καὶ ἐν τούτοις μὲν οὐδὲν

σοφώτερον οὔτε ἰδιώτην ἰδιώτου οὔτε πόλιν πόλεως εἶναι) No estabelecimento daquilo

que conveacutem ou natildeo conveacutem Protaacutegoras sustentaria que um conselheiro difere de outro e

que a opiniatildeo de uma cidade difere de outra no que diz respeito agrave verdade E a respeito

dos casos de justiccedila e de injusticcedila de piedade ou de impiedade o sofista sustentaria que

nenhuma destas coisas eacute por natureza possuidora de uma realidade proacutepria (οὐκ ἔστι

φύσει αὐτῶν οὐδὲν οὐσίαν) tornando-se entatildeo verdade o que parece agrave comunidade

sempre que lhe parecer e enquanto que lhe parecer (Teet 172a-c)

Protaacutegoras sustentava como a maioria dos sofistas a inexistecircncia de uma verdade

objetiva e vaacutelida para todos mas ele defendia a necessidade do estudo e da educaccedilatildeo na

medida em que se natildeo existem proposiccedilotildees verdadeiras deve-se saber distinguir entre as

opiniotildees melhores e piores mais ou menos uacuteteis ao indiviacuteduo e agrave sociedade e seria o

orador que teria esse crucial papel a desempenhar na cidade E conforme o registro de

Platatildeo o sofista Protaacutegoras natildeo negaria a existecircncia da sabedoria nem do homem saacutebio

mas o saacutebio seria aquele que quando as coisas satildeo e lhe aparecem maacutes eacute capaz de

ldquoμεταβάλλων ποιήσῃ ἀγαθὰ φαίνεσθαί τε καὶ εἶναιrdquo ou seja eacute capaz de mudaacute-las pela

persuasatildeo a fim de que apareccedilam e sejam boas a seus interlocutores Porquanto para o

indiviacuteduo que estaacute doente (ἀσθενέω) aquilo que come aparece e eacute amargo (πίκρα) mas

para quem estaacute saudaacutevel (ὑγιαίνω) acontece justamente o contraacuterio de sorte que nenhum

dos dois seria saacutebio acerca do real sabor do alimento por isso natildeo se deve acusar o doente

de ser ignorante (ἀμαθής) por ter sua opiniatildeo particular nem o saudaacutevel de saacutebio (σοφός)

por ter outra (Ibid 166 d-167a)

Pois afirmo que a verdade eacute como eu escrevi Pois cada um de noacutes eacute a medida do que eacute e do que natildeo eacute e no entanto cada um difere infinitamente do outro para um eacute uma coisa e assim aparece a outro eacute e aparece outra coisa E estou longe de negar que exista a sabedoria e o homem saacutebio Mas este mesmo a quem chamo saacutebio eacute aquele de noacutes que quando as coisas satildeo e lhe aparecem maacutes as muda de modo a aparecerem e serem boas [] Recorda-te pois do que foi dito atraacutes que para quem estaacute doente aquilo que come aparece e eacute amargo mas para quem estaacute saudaacutevel aparece e eacute o contraacuterio E natildeo eacute preciso fazer mais saacutebio nenhum dos dois ndash pois natildeo eacute possiacutevel ndash nem se deve acusar o doente de ser ignorante por ter esta opiniatildeo nem o saudaacutevel de saacutebio por ter outra

A despeito disso deve-se fazer uma mudanccedila no doente pois eacute melhor (βελτίων) o

estado do indiviacuteduo saudaacutevel Pela educaccedilatildeo (παιδεία) deve-se fazer uma mudanccedila de um

estado para outro melhor o meacutedico faz a mudanccedila com remeacutedios (φαρμάκοις) ao passo

que o sofista a faz com discursos (λόγοις) E a quem tem uma opiniatildeo afim ao defeituoso

estado de alma em que se acha um beneacutefico estado de alma faraacute ter outras opiniotildees

imagens a que alguns por ignoracircncia chamariam verdadeiras mas Protaacutegoras chama a

umas melhores que as outras poreacutem natildeo mais verdadeiras (Ibid 167a-b) Ele tambeacutem

teria sustentado que os oradores saacutebios e bons (σοφούς τε καὶ ἀγαθοὺς ῥήτορας) fazem

com que as coisas beneacuteficas (χρήστης) pareccedilam ser justas agraves cidades em vez de

defeituosas (πονηρός) posto que aquilo que a cada cidade parece justo e belo eacute assim para

ela durante o tempo que determinar Agrave vista disso o saacutebio eacute aquele que eacute capaz de fazer

com que sejam e pareccedilam beneacuteficas cada uma das coisas que para os demais indiviacuteduos

satildeo defeituosas E pelo mesmo raciociacutenio tambeacutem o sofista que eacute capaz de instruir os

que satildeo ensinados por ele deve ser considerado saacutebio e merecedor de muito dinheiro

(Ibid 167c-d)

E afirmo que os oradores saacutebios e bons fazem com que as coisas beneacuteficas pareccedilam ser justas agraves cidades em vez de defeituosas Pois aquilo que a cada cidade parece justo e belo eacute isso para ela enquanto assim o determinar Mas o saacutebio eacute aquele que faz serem e parecerem beneacuteficas cada uma das coisas que para os outros satildeo defeituosas E pela mesma ordem de ideias tambeacutem o sofista assim capaz de instruir os que satildeo ensinados por ele eacute saacutebio e merece muito dinheiro da parte dos que educa E deste modo uns satildeo mais saacutebios que outros e ningueacutem tem uma opiniatildeo falsa

Pode-se assegurar entatildeo que para o sofista Protaacutegoras o que realmente existe e

importa eacute aquilo que eacute mais uacutetil ou mais conveniente O bem e o mal ou ainda o

verdadeiro e o falso seriam respectivamente o uacutetil e o prejudicial Todavia o uacutetil tambeacutem

se apresentaria como um conceito relativo porque para ele a sabedoria consistiria em

reconhecer aquilo que eacute nocivo e uacutetil agrave conveniecircncia eacutetica e poliacutetica dos homens e em

saber demonstraacute-los persuasivamente44 Agrave vista disso sua doutrina pode ser denominada

grosso modo de ldquorelativismo pragmaacuteticordquo porque natildeo haveria uma verdade em si mesma

objetiva e vaacutelida para todos mas a verdade dependeria de cada indiviacuteduo ou de cada

cidade de sorte que o mais importante seria aquilo que possibilita fazer-se valer e impor-

se funccedilatildeo que ele atribui agrave arte retoacuterica As leis e os costumes vigentes na cidade satildeo

corretos e louvaacuteveis enquanto forem impostos ou socialmente aprovados mas o orador

pode persuadi-la de que outros lhe seriam mais vantajosos ou convenientes pois embora

todas as crenccedilas sejam verdadeiras nem todas satildeo igualmente boas Desse modo se cada

indiviacuteduo vive num mundo privado proacuteprio a tentativa de alterar o seu mundo interior

parece ser impossiacutevel mas na visatildeo de Protaacutegoras tal dificuldade eacute superada substituindo

um padratildeo de verdade e falsidade por um padratildeo de vantagem e desvantagem

Conforme a apreciaccedilatildeo de Giovanni Casertano a este respeito parece natildeo existir

qualquer contradiccedilatildeo entre o relativismo gnosioloacutegico e a visatildeo eacutetico-poliacutetica de

Protaacutegoras Para este o bem e o uacutetil satildeo conceitos certamente relativos natildeo existe o bem

e o uacutetil em si mesmos pois aquilo que pode ser bem para alguns pode ser mal para outros

Desse modo os discursos que os homens fazem contrapostos uns com os outros satildeo

tambeacutem eles relativos porque natildeo existe um discurso mais verdadeiro que outro mas

certamente existe um discurso que seja convenientemente mais uacutetil E se cada indiviacuteduo

ou cada grupo de indiviacuteduos tem uma verdade nem todas as verdades satildeo uacuteteis do mesmo

modo agrave vida em sociedade Aliaacutes para Protaacutegoras ldquoo discurso melhorrdquo natildeo constitui o

discurso puramente loacutegico mas sim o discurso poliacutetico o qual se demonstra mais idocircneo

a um pacto de aceitaccedilatildeo por parte da coletividade No entanto ele eacute melhor

provisoriamente ateacute que natildeo apareccedila e se afirme outro discurso ainda melhor E o

discurso melhor eacute o νόμος ou seja a lei que constitui a realizaccedilatildeo dinacircmica de um

44 Ao ser interrogado por Soacutecrates sobre o que Hipoacutecrates poderia aprender do seu ensino Protaacutegoras declara que eacute o cuidado adequado de seus proacuteprios negoacutecios a fim de administrar com prudecircncia sua casa e famiacutelia e tambeacutem o cuidado dos assuntos do Estado para se tornar uma figura poderosa na cidade seja mediante a arte do discurso persuasivo seja como homem de accedilatildeo (Prot 318e) ldquoNa minha companhia Hipoacutecrates natildeo teraacute de suportar as maccediladas a que ficaria sujeito se viesse a frequumlentar outro sofista [] vindo ele poreacutem estudar comigo natildeo se ocuparaacute senatildeo com o que se propusera estudar quando resolveu procurar-me Essa disciplina eacute a prudecircncia nas suas relaccedilotildees familiares que o poraacute em condiccedilotildees de administrar do melhor modo sua proacutepria casa e nos negoacutecios da cidade o deixaraacute mais do que apto a dirigi-los e para discorrer sobre elesrdquo

consenso humano procurado e imposto com a persuasatildeo agrave cidade pelo sofista que eacute

considerado saacutebio e meacutedico da sociedade (CASERTANO 201080)

Decerto a aprovaccedilatildeo ou desaprovaccedilatildeo de certas praacuteticas seria correta e apropriada

numa cidade enquanto tem o apoio da opiniatildeo puacuteblica e eacute imposta legalmente Os

massagetas cortam seus pais em pedaccedilos e os comem e ser comido por seus filhos

parece-lhes a mais bela sepultura mas entre os gregos tal praacutetica mereceria a condenaccedilatildeo

agrave morte Outrossim os persas acham bonito que os homens tenham relaccedilotildees sexuais com

as filhas matildees e irmatildes mas para os gregos isso eacute considerado feio e contraacuterio agrave lei (Disc

Dup 2 14-15) No entanto para que essas condiccedilotildees se alterem eacute necessaacuterio que

oradores haacutebeis tenham ecircxito em difundir ideias distintas sejam quais forem E somente

podem fazecirc-lo persuadindo a cidade de que a alteraccedilatildeo de suas leis e costumes redundaraacute

numa vantagem praacutetica se natildeo para todos ao menos para a maioria Todavia conveacutem

frisar que para Protaacutegoras as leis existentes na cidade existem para a preservaccedilatildeo da

ordem social e que sua manutenccedilatildeo embora elas natildeo sejam as melhores satildeo justas e

louvaacuteveis porque as alternativas de desobediecircncia e subversatildeo destruiriam os laccedilos de

amizade e uniatildeo de que depende a sobrevivecircncia da cidade E somente depois de

aprovadas novas leis por consentimento comum posto que a noccedilatildeo de pudor e de justiccedila

pertencem igualmente a todos os cidadatildeos eacute que a mudanccedila pode ocorrer para melhor

(Prot 322b-c) Apesar do seu relativismo eacute manifesto pois o respeito de Protaacutegoras pelas

virtudes democraacuteticas da justiccedila do respeito pela opiniatildeo dos outros e pelos processos de

persuasatildeo paciacutefica que satildeo tidos como o esteio da vida comunitaacuteria tendo em vista sua

sobrevivecircncia

Com base nos assuntos ateacute aqui examinados pode-se concluir que uma das mais

importantes liccedilotildees ensinadas nos manuais escritos pelos sofistas era a habilidade de falar

com igual poder de convicccedilatildeo sobre ambos os lados de uma dada questatildeo Protaacutegoras

teria sido o primeiro a postular a tese de que existem dois argumentos sobre cada assunto

Eacute possiacutevel reconhecer as virtudes de ver ambos os lados de uma questatildeo mas esta

doutrina na visatildeo de Aristoacuteteles seria politicamente perigosa nas matildeos de oradores

inescrupulosos Outrossim verificamos na anaacutelise da doutrina de Goacutergias que o discurso

retoacuterico equivale a um tirano que pode realizar qualquer intento E a convicccedilatildeo de que os

homens podiam ser persuadidos de qualquer coisa harmoniza-se naturalmente com o

relativismo de Protaacutegoras cuja doutrina tambeacutem eacute considerada por Aristoacuteteles como

imoral e epistemicamente subversiva de sorte que natildeo somente doce e amargo quente e

frio existiriam subjetivamente ou por convenccedilatildeo mas tambeacutem justiccedila e injusticcedila certo e

errado Agrave vista disso se existe algo que se pode chamar de uma visatildeo sofiacutestica geral eacute a

concepccedilatildeo de que natildeo existe nenhum criteacuterio de verdade extriacutenseco ao ser humano duas

pessoas discutindo e comparando suas proacuteprias experiecircncias natildeo poderiam corrigi-las e

alcanccedilar o conhecimento de uma realidade extriacutenseca a ambos conforme propotildee o

meacutetodo dialeacutetico jaacute que natildeo haveria uma realidade estaacutevel que pudesse ser apreendida

Semelhantemente no domiacutenio da eacutetica natildeo haveria nenhum apelo a padrotildees gerais ou a

princiacutepios gerais de qualquer natureza de modo que o uacutenico criteacuterio soacute pode ser o agir e

o falar em qualquer momento como pareccedila mais conveniente

7 A funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da retoacuterica de Aristoacuteteles e a refutaccedilatildeo da sofiacutestica

71 A retoacuterica de Aristoacuteteles e a dos sofistas

Eacute manifesto que os sofistas foram os principais responsaacuteveis pelo florescimento

da retoacuterica enquanto arte do discurso persuasivo pois eacute a eles que a retoacuterica deve os

primeiros esboccedilos de gramaacutetica a divisatildeo do discurso em partes as teacutecnicas de elocuccedilatildeo

a noccedilatildeo de que existe o momento oportuno para expor um argumento o ideal de prosa

ornada e erudita etc E muitos dos elementos que compotildeem a arte retoacuterica de Aristoacuteteles

jaacute se encontravam disseminados na retoacuterica dos sofistas razatildeo pela qual ele reconhece

que alguns deles foram os que descobriram os primeiros princiacutepios desta arte e os fizeram

avanccedilar aperfeiccediloando-os ateacute sua forma atual Aliaacutes se Aristoacuteteles eacute grato para com os

filoacutesofos que o antecederam sem os quais o desenvolvimento de sua filosofia natildeo seria

possiacutevel o mesmo ocorre com os oradores que o precederam

No entanto Aristoacuteteles natildeo se aproxima dos sofistas somente em virtude de alguns

elementos ou princiacutepios que deles foram apropriados e utilizados para compor o seu

proacuteprio meacutetodo retoacuterico expresso nos trecircs livros da Retoacuterica mas ainda por outras razotildees

O Estagirita designa o λόγος como um traccedilo dominante da condiccedilatildeo poliacutetica do homem

Ele declara que por ser um πολιτικὸν ζῷον ou seja um animal social o homem eacute o uacutenico

que possui o dom da palavra a partir do qual eacute capaz de expressar por meio de sinais a

noccedilatildeo do bem e do mal do uacutetil e do prejudicial do justo e do injusto objetos para cuja

expressatildeo foi concedido o dispositivo da fala Outrossim a aproximaccedilatildeo com os sofistas

ocorre pela maneira como ele articula a pluralidade das diferenccedilas e dos pontos de vista

na unidade plural da cidade pois na medida em que sua arte retoacuterica se abre agraves

perspectivas individuais e valoriza o jogo de interesses de cada cidadatildeo ela se transforma

num expediente de afirmaccedilatildeo da liberdade de opiniatildeo Dessarte o conhecimento que o

orador deve possuir para proferir o seu discurso natildeo deve necessariamente fundamentar-

se em verdades filosoacuteficas conforme postulava Platatildeo mas deve amiuacutede limitar-se agraves

ἔνδοξα isto eacute agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras para o consenso geral porque

conveacutem que os argumentos retoacutericos sejam formados de argumentos comuns tendo em

vista a comunicaccedilatildeo com as multidotildees

Com efeito a perspectiva epistecircmica assumida pela maioria dos sofistas aventa

que o mundo estaacute destituiacutedo de qualquer verdade objetiva razatildeo pela qual o discurso

retoacuterico natildeo teria um referente extriacutenseco ao sujeito ou seja natildeo existiria outro criteacuterio

de verdade senatildeo o proacuteprio sujeito e suas percepccedilotildees que mediante o triunfo da palavra

eacute capaz de persuadir pela loacutegica aparente e pelo encantamento do estilo qualquer um

sobre qualquer assunto O sofista Goacutergias levou a efeito um certo modo de conceber a

retoacuterica que tanto Platatildeo quanto Aristoacuteteles reputaram por dever ser rechaccedilado Esse

modo particular de conceber a arte do discurso persuasivo era baseado na proacutepria

perspectiva epistecircmica de Goacutergias segundo a qual natildeo existiria uma verdade objetiva

mas ainda que existisse ela natildeo seria apreendida e se porventura o fosse jamais poderia

ser expressa pelo discurso Pode-se assegurar sumariamente que o corolaacuterio dessas trecircs

proposiccedilotildees significa que o discurso retoacuterico natildeo teria a funccedilatildeo de tornar possiacutevel a

comunicaccedilatildeo das coisas como realmente satildeo Pelo contraacuterio ao preconizar que existe um

fosso intransponiacutevel entre as coisas e a percepccedilatildeo assim como entre a percepccedilatildeo e o

discurso as palavras jaacute natildeo teriam nenhuma correspondecircncia com a realidade de sorte

que todo discurso que objetiva persuadir eacute ἀπατή ou puro engano Apesar desse ceticismo

Goacutergias sustenta que as palavras quando adequadamente empregadas tecircm o poder de

persuadir as pessoas a modificar suas opiniotildees outorgando ao orador um poder quase

ilimitado As palavras tambeacutem poderiam alterar tanto as emoccedilotildees como as opiniotildees dos

ouvintes submetendo-os despoticamente ao domiacutenio do orador (El Hel sect 12)

Em conformidade com o pensamento de Goacutergias e Protaacutegoras o discurso retoacuterico

natildeo pode pretender ser verdadeiro nem mesmo verossiacutemil tampouco comprometer-se

rigidamente com princiacutepios eacuteticos mas soacute pode ser proacuteprio para persuadir as pessoas a

mudar suas opiniotildees para alterar as emoccedilotildees daqueles que o ouvem submetendo os

ouvintes ao domiacutenio daquele que fala para fazer as coisas pequenas parecerem grandes

e as grandes parecerem pequenas para defender uma causa considerada injusta e fazecirc-la

prevalecer sobre uma causa justa transformando assim o argumento mais fraco no mais

forte e para mudar as coisas que satildeo consideradas maacutes de modo a aparecerem boas agraves

multidotildees De fato a finalidade dessa arte retoacuterica natildeo estaria a serviccedilo daquilo que

Aristoacuteteles chama de εὐπραξία ou seja o bem agir na vida puacuteblica e na vida privada mas

a serviccedilo do anseio de dominar os ouvintes por intermeacutedio da palavra Conquanto o

Estagirita se aproxime da sofiacutestica na escolha do λόγος como caracteriacutestica dominante da

condiccedilatildeo poliacutetica do homem ele eacute declaradamente anti-sofista tanto na compreensatildeo

quanto na utilizaccedilatildeo dessa faculdade humana45 Isto ocorre sobretudo porque no contexto

de seu meacutetodo retoacuterico o λόγος tem um significado bem definido ele se identifica com o

bloco das provas loacutegicas compostas pelo entimema e pelo exemplo as quais estatildeo

destinadas a persuadir atraveacutes de argumentos racionais cujo uso eacute liacutecito somente em

conexatildeo com a sabedoria e a virtude

Por seu turno o λόγος de Aristoacuteteles (a partir da sua relaccedilatildeo com o justo e o

injusto) eacute significativamente mais poliacutetico que o λόγος dos sofistas isso porque ele

funciona sempre como um τέλος ou seja como uma finalidade eacutetico-poliacutetica e natildeo

simplesmente como uma τέχνη Nessa perspectiva o λόγος ou o discurso retoacuterico sem

o qual natildeo pode existir verdadeira vida poliacutetica pode tornar-se um instrumento de

manipulaccedilatildeo demagoacutegica quando eacute utilizado sem a preocupaccedilatildeo com o bem comum Ao

mesmo tempo em que a arte retoacuterica permite tornar inteligiacutevel aos membros da

comunidade poliacutetica soluccedilotildees engenhosas e novas para os problemas eacutetico-poliacuteticos

prementes ela tambeacutem pode cegar o entendimento dos ouvintes com proposiccedilotildees

demagoacutegicas Sendo assim o λόγος aristoteacutelico natildeo eacute em momento algum apenas um

meio de comunicaccedilatildeo com as massas nem se limita a uma teacutecnica neutra de discurso

pois ele implica num movimento teleoloacutegico em direccedilatildeo agrave εὐπραξία

Para Aristoacuteteles existem aqueles que apesar de natildeo possuiacuterem um conhecimento

compreensivo (διάνοια) sobre assuntos de poliacutetica de Estado o colocam em praacutetica

atraveacutes de certa capacidade que lhes eacute intriacutenseca ou pelo conhecimento obtido pela

experiecircncia (ἐμπειρία) mas os sofistas que proclamam ensinar os assuntos ligados agrave

ciecircncia poliacutetica natildeo a conhecem pelas causas nem a colocam efetivamente em praacutetica46

Para ele os sofistas afirmam ser professores na aacuterea da poliacutetica mas estariam muito longe

disso porque natildeo possuiriam nem o conhecimento empiacuterico tampouco o conhecimento

compreensivo Aleacutem disso eles ignorariam totalmente qual eacute a qualidade essencial da

ciecircncia poliacutetica bem como seus objetos Se natildeo fosse assim eles natildeo a colocariam no

mesmo niacutevel da arte retoacuterica ou num niacutevel ainda mais baixo nem achariam que eacute faacutecil

legislar apenas reunindo aquelas leis que satildeo consideradas as melhores sem qualquer

discernimento do que haacute de bom e de mau nelas (Eacutet Nic 1180b 35-1181a 20)

45 Aristoacuteteles teria escrito uma obra exoteacuterica com o intuito de refutar as doutrinas do sofista Goacutergias chamada Contra a Doutrina de Goacutergias (Πρὸς τὰ Γοργίου) Esta obra foi registrada por Dioacutegenes Laeacutercio no seu cataacutelogo de obras atribuiacutedas ao Estagirita (Vid doutr fil il V 1 25) 46 Aristoacuteteles faz alusatildeo agrave condiccedilatildeo civil de μέτοικος pertencente aos sofistas Por serem estrangeiros residentes em Atenas eles estavam excluiacutedos da possibilidade de exercer a atividade poliacutetica

Conforme examinamos Aristoacuteteles declara nas linhas iniciais da Eacutetica a Nicocircmaco

que toda arte processo de investigaccedilatildeo procedimento praacutetico e decisatildeo parecem dirigir-

se para certo bem (ἀγαθός) por isso o bem eacute concebido como aquilo por que tudo anseia

Todavia entre os fins das accedilotildees humanas a serem levadas a cabo existe aquele que eacute

buscado em virtude de si proacuteprio Esse fim natildeo eacute um bem qualquer mas eacute o bem supremo

ou seja a felicidade (εὐδαιμονία) Outrossim no iniacutecio da Poliacutetica ele diz que toda cidade

eacute uma espeacutecie de comunidade a qual se forma tendo em vista algum bem pois todas as

accedilotildees de todos os homens satildeo praticadas com vistas ao que lhes parece o bem E se todas

as comunidades visam alcanccedilar algum bem eacute manifesto que a mais importante de todas ndash

a cidade ou a comunidade poliacutetica ndash e que inclui todas as outras possui mais que todas

tal objetivo e aspira ao mais importante de todos os bens qual seja o bem supremo (Pol

1252a 1-7) O bem supremo eacute o objeto de estudo da eacutetica mas eacute sobretudo o objeto de

estudo da mais arquitetocircnica de todas as ciecircncias qual seja a ciecircncia poliacutetica a qual por

sua vez submete os fins de todas as atividades humanas E se todas as atividades humanas

na cidade estatildeo submetidas agrave ciecircncia poliacutetica cuja finalidade eacute o bem humano entatildeo a

arte retoacuterica (que eacute um ramo da eacutetica) adquire naturalmente a incumbecircncia de promover

o bem da comunidade poliacutetica Esta com efeito constitui um organismo eacutetico razatildeo pela

qual a ciecircncia poliacutetica representa a condiccedilatildeo e o complemento da atividade moral

individual bem como o fundamento primeiro da suprema atividade contemplativa

Para o Estagirita a finalidade da existecircncia da comunidade poliacutetica natildeo consiste

simplesmente no ldquoviver juntosrdquo (ἀλλήλων) conforme ocorre com outros animais que

vivem em sociedade mas para a obtenccedilatildeo de uma ldquovida melhorrdquo (ζῆν καλῶς) e todas as

instituiccedilotildees poliacuteticas incluindo as artes e as ciecircncias seriam meios para a obtenccedilatildeo desse

fim (Ibid 1281a 35-37) O interesse comum tambeacutem une os membros da sociedade posto

que cada um aiacute encontra meios de viver melhor e isto constituiria o seu fim principal

comum a todos e a cada um em particular (Ibid 1278b 49-53) Aleacutem disso a cidade eacute

formada natildeo somente com vistas a assegurar a vida mas para assegurar uma vida melhor

de outro modo um grupo de escravos ou animais irracionais poderia constituir uma

cidade (Ibid 1280b 22-25) Sendo assim o escopo da comunidade poliacutetica eacute a vida

melhor e a proacutepria cidade seria apenas uma grande comunidade de clatildes e povoados em

que a vida encontraria todos os meios para uma vida perfeita e independente e esta seria

a maneira feliz e nobilitante de viver (τὸ ζῆν εὐδαιμόνως καὶ καλῶς) A comunidade

poliacutetica deve pois existir para a praacutetica de accedilotildees nobilitantes e natildeo somente para a

convivecircncia (Ibid 1281a 37-41) Aristoacuteteles tambeacutem sustenta que natildeo haacute nenhuma

duacutevida de que a verdadeira cidade ou seja aquela que natildeo o eacute somente de nome deve

estimar acima de tudo as virtudes de seus cidadatildeos dado que eacute impossiacutevel que uma cidade

seja feliz se dela a honestidade for abolida (Ibid 1280b 40-44) Na verdade natildeo existiria

nada de bom a esperar dela nem tampouco de um indiviacuteduo em particular pois a

coragem a justiccedila a prudecircncia e demais virtudes tecircm na comunidade poliacutetica o mesmo

caraacuteter e a mesma influecircncia que nos indiviacuteduos particulares Agrave vista disso a melhor

existecircncia para cada um em particular e para todas as cidades dependeria necessariamente

do conhecimento e da praacutetica das virtudes eacuteticas

O orador puacuteblico cuja missatildeo eacute promover o bem da cidade natildeo deve jamais

preocupar-se em dominar nos moldes sofiacutesticos os seus ouvintes atraveacutes da palavra em

detrimento do bem geral mas deve fundamentalmente cultivar e aparentar a prudecircncia

(φρόνησις) a virtude (ἀρετὴ) e a benevolecircncia (εὔνοια) Mediante a φρόνησις ele deve

estar apto a dar conselhos razoaacuteveis e pertinentes pela ἀρετὴ ele eacute obrigado a nunca

dissimular o que pensa nem o que sabe e pela εὔνοια ele deve estar sempre disposto a

ajudar seu auditoacuterio (Ret 1378a 9-22) Ademais o orador deve comprometer-se em

trazer a verdade agrave baila identificar e refutar os argumentos falaciosos e combater a

perversatildeo da verdade e da justiccedila A propoacutesito na obra Dos argumentos Sofiacutesticos

Aristoacuteteles explicita que ao homem que possui conhecimento de uma determinada

mateacuteria como a arte retoacuterica cabe evitar ele proacuteprio os viacutecios de raciociacutenio nos assuntos

que conhece e ao mesmo tempo ser apto a desmascarar aquele que lanccedila matildeo de

argumentos falaciosos Dessas capacidades a primeira consiste em ser apto a oferecer as

razotildees do que se diz e a segunda em fazer com que o adversaacuterio as apresente (Arg Sof

164b 25-30)

Haja vista que para Aristoacuteteles a verdade e a justiccedila satildeo por natureza mais fortes

que seus contraacuterios e sendo manifesto que a teacutecnica retoacuterica pode favorecer as causas

injustas entatildeo muito mais eficientemente a mesma teacutecnica pode favorecer as causas

justas Sendo assim o orador natildeo deve hesitar em se utilizar de todas as estrateacutegias

retoacutericas possiacuteveis natildeo simplesmente para vencer uma disputa ou para infundir o seu

ponto de vista subjetivo aos ouvintes mas a fim de orientaacute-los para o conhecimento e a

praacutetica das virtudes Ele ainda como o dialeacutetico possui a capacidade de argumentar sobre

coisas contraacuterias mas ele nunca deve fazer uma e outra coisa indiferentemente posto que

jamais deve persuadir seu auditoacuterio a praticar uma conduta imoral pelo contraacuterio deve

ele refutar os argumentos daqueles que argumentam contra a verdade e a justiccedila

O orador deve esforccedilar-se por implantar a justiccedila na alma dos seus concidadatildeos e

eliminar o viacutecio A retoacuterica deve ser entatildeo um instrumento educacional eacutetico-poliacutetico e

nisso consistiria sua legiacutetima funccedilatildeo na cidade razatildeo pela qual Aristoacuteteles censura o uso

que os sofistas faziam das palavras os quais incorriam (em decorrecircncia do seu

relativismo) tanto no mal moral quanto no erro epistecircmico O mal moral seria a ecircnfase

dada pelos sofistas na excitaccedilatildeo das paixotildees dos ouvintes e por visarem somente o

interesse proacuteprio que em nada favoreceria o bem da cidade Enquanto que o erro

epistecircmico consistiria na defesa de um relativismo conceitual nos moldes do pensamento

protagoacuterico Nesse aspecto Aristoacuteteles se afasta de todos os sofistas que praticavam e

defendiam a doutrina dos δισσοὶ λόγοι cujo principal representante foi Protaacutegoras o qual

aventava que em relaccedilatildeo a qualquer assunto existem dois argumentos opostos e que eacute

possiacutevel aprovar e refutar um mesmo tema proposto Ele queria dizer com isso que se

pode tomar qualquer lado de uma questatildeo e defendecirc-la com igual sucesso de sorte que o

mesmo orador poderia defender teses que satildeo contraditoacuterias Aliaacutes tal concepccedilatildeo se

relaciona com a ideia de que eacute possiacutevel tornar mais forte o argumento mais fraco (Ret

1402a 34-35)

Verificamos que a concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo exposta nos diaacutelogos Fedro e

Goacutergias contrasta com a tese da neutralidade da linguagem proposta pelos sofistas posto

que Platatildeo estabelece como ideal uma linguagem normativa a qual seria capaz de realizar

na cidade a uniatildeo perdida entre a eacutetica e a retoacuterica Para ele o discurso retoacuterico enquanto

ferramenta educacional natildeo merece nenhum creacutedito se nele inexistir a intenccedilatildeo de instruir

moralmente os ouvintes qualquer que seja o assunto Todavia Luiz Rohden enfatiza que

contrapondo-se a Platatildeo o Estagirita sustenta que a arte retoacuterica eacute por natureza amoral no

sentido de que em muitos momentos da vida humana o homem pode fazer uso da

palavra sem colocar o poder da linguagem sob a eacutegide da moral Ela ainda seria amoral

no sentido de poder ser autocircnoma dos conselhos morais para desenvolver-se ou seja

independentemente da cultura de um povo seus costumes e haacutebitos a retoacuterica possuiria

um valor proacuteprio A despeito do caraacuteter amoral ou neutro da arte retoacuterica ela precisa

comprometer-se com a moral no sentido que diferente dos sofistas natildeo se deve persuadir

um auditoacuterio para praticar algum mal Aleacutem disso a retoacuterica precisa estar associada agrave

moral porque na visatildeo de Aristoacuteteles esta arte estaria primeiramente vinculada agrave eacutetica e

depois agrave ciecircncia poliacutetica (ROHDEN 1997166-167)

E apesar de Aristoacuteteles afirmar que atraveacutes da retoacuterica eacute possiacutevel favorecer tanto

as causas justas como as injustas e que o orador precisa ser apto de argumentar

persuasivamente sobre coisas contraacuterias ele rejeita agrave maneira de Platatildeo a neutralidade da

linguagem que caracteriza a sofiacutestica uma vez que o orador mesmo sendo capaz de

defender teses opostas jamais deve persuadir acerca do que eacute incorreto Em suma para

Aristoacuteteles a retoacuterica eacute uma arte amoral ou mesmo neutra e neste ponto ele aproxima-se

da sofiacutestica mas ao mesmo tempo ele defende que a retoacuterica enquanto ferramenta eacutetico-

poliacutetica natildeo deve ser neutra mas comprometida com a moral o que por sua vez o

aproxima de Platatildeo

Deveras para que se possa fazer a precisa distinccedilatildeo entre o orador e o sofista seria

preciso definir o orador natildeo somente pela teacutecnica retoacuterica que por sua natureza eacute neutra

(como ocorre com a medicina e a estrateacutegia militar) mas fundamentalmente por sua

disposiccedilatildeo moral em face dela A arte retoacuterica pode ter dois usos distintos um para

alcanccedilar uma finalidade nobre e outro para alcanccedilar uma finalidade ignoacutebil assim como

um olho pode ser usado para ver bem ou para ver mal como quando se distorce o formato

da pupila ateacute que uma coisa pareccedila ser duas Desse modo ambos os usos satildeo intriacutensecos

aos assuntos em questatildeo pois a arte retoacuterica funciona como tal mesmo quando utilizada

para realizar algo ruim ou ignoacutebil assim como um olho funciona como tal mesmo quando

sua visatildeo eacute deliberadamente distorcida

Na visatildeo de Aristoacuteteles o orador distinguir-se-ia do sofista pelo fato de empregar

o discurso retoacuterico tendo em vista o triunfo natural do verdadeiro e do justo e tambeacutem

por ser capaz de separar o argumento aparente do argumento verdadeiro Desse modo eacute

quando se apela agrave intenccedilatildeo ou quando se acrescenta algo como uma vontade criacutetica (que

natildeo poderia fazer parte dos requisitos da arte retoacuterica enquanto tal) que se poderia

distinguir mais claramente pela boa e maacute intenccedilatildeo o orador do sofista E para evitar os

efeitos danosos da sofiacutestica sobre a accedilatildeo poliacutetica assunto que tambeacutem eacute longamente

explorado por Platatildeo em seus diaacutelogos o Estagirita atribui agrave arte retoacuterica uma funccedilatildeo

eacutetica razatildeo pela qual ela seria crucial para o bem da cidade Pode-se dizer portanto que

eacute o criteacuterio eacutetico-poliacutetico que coloca nos extremos o orador e o sofista o orador e o sofista

se distinguem realmente pelos diferentes postos que ocupam na cidade pois seus

discursos sobre o bem para a cidade para a vida do homem sobre como viver e sobre

como se pode ser feliz satildeo realmente distantes entre si

Para Aristoacuteteles os sofistas arrogam poder ensinar os diversos assuntos ligados agrave

ciecircncia poliacutetica mas eles natildeo a conheceriam efetivamente Eles a colocam no mesmo

niacutevel da arte retoacuterica ou ainda num niacutevel inferior ao passo que para o Estagirita a retoacuterica

eacute um instrumento auxiliar da ciecircncia poliacutetica inferior a esta na hierarquia teacutelica ou seja

na hierarquia entre os fins A ciecircncia poliacutetica eacute o aacutepice da hierarquia teacutelica porque eacute a

uacutenica que inclui todos os outros fins ou bens merecedores de escolha Os sofistas tambeacutem

acham que eacute possiacutevel legislar apenas compilando leis que satildeo consideradas as melhores

sem qualquer criteacuterio para discernir o que haacute de bom e de mau nelas Este equiacutevoco

ocorreria porque eles ignoram que o estudo da natureza da legislaccedilatildeo eacute um componente

da arte legisladora (νομοθετικέ) a qual constitui um dos ramos da ciecircncia poliacutetica que

por sua vez submete os fins de todas as ciecircncias praacuteticas Portanto para se obter o

domiacutenio da νομοθετικέ que habilita ao orador distinguir a boa lei daquela que eacute maacute eacute

necessaacuterio como condiccedilatildeo preacutevia o estudo da eacutetica e da ciecircncia poliacutetica

Aristoacuteteles assevera que todos aqueles que exercem algum tipo de autoridade na

cidade podem beneficiar muita gente tais como os estrategos os oradores e todos os que

possuem poderes idecircnticos (Ret 1388b 26-28) Eacute manifesto que a arte retoacuterica pode

beneficiar muita gente porque se os juiacutezos natildeo se fizerem como conveacutem (natildeo somente

nos tribunais mas tambeacutem nas assembleias) a verdade e a justiccedila seratildeo necessariamente

vencidas pelos seus opostos e isto seria prejudicial para comunidade poliacutetica Isto posto

Aristoacuteteles compromete o discurso retoacuterico em perspectiva praacutetica ao fim uacuteltimo do ser

humano e com base nesse comprometimento a retoacuterica pertenceria tanto agrave eacutetica quanto agrave

ciecircncia poliacutetica Pode-se dizer que a retoacuterica seria um tipo de arte auxiliar da eacutetica e da

poliacutetica porque ela natildeo visa simplesmente a persuasatildeo (atividade natildeo-terminal) mas

contribuir para o bem agir tanto na vida privada quanto na vida puacuteblica (atividade

terminal) Aristoacuteteles chega a enfatizar que a retoacuterica eacute como um rebento (παραφυής) da

dialeacutetica e do saber praacutetico sobre os caracteres a que eacute justo chamar poliacutetica (Ibid 1356a

32-42)

De sorte que a retoacuterica eacute como um rebento da dialeacutetica e daquele saber praacutetico sobre os caracteres que eacute justo chamar de poliacutetica Eacute por isso tambeacutem que a retoacuterica se cobre com a figura da poliacutetica e igualmente aqueles que tecircm a pretensatildeo de a conhecer quer por falta de educaccedilatildeo quer por jactacircncia quer ainda por outras razotildees inerentes agrave natureza humana A retoacuterica eacute de fato uma parte da dialeacutetica e a ela se assemelha como dissemos no princiacutepio pois nenhuma das duas eacute ciecircncia de definiccedilatildeo de um assunto especiacutefico mas mera faculdade de proporcionar razotildees para os argumentos

Com base na passagem supracitada pode-se assegurar que as provas loacutegicas da

argumentaccedilatildeo retoacuterica ou seja o entimema e o exemplo (λόγος) pertenceriam mediante

a vinculaccedilatildeo com a dialeacutetica ao domiacutenio da loacutegica formal47 posto que uma das

caracteriacutesticas mais marcantes da retoacuterica de Aristoacuteteles eacute a sua vinculaccedilatildeo com a

dialeacutetica a qual constitui um notoacuterio ramo da loacutegica Aleacutem do mais a retoacuterica natildeo eacute

apenas anaacuteloga agrave dialeacutetica pelas razotildees que jaacute destacamos mas tambeacutem o seu ldquorebentordquo

jaacute que uma parte das provas artiacutesticas eacute constituiacuteda pelos entimemas ou sumaacuterios de

silogismos dialeacuteticos A arte retoacuterica entatildeo pertenceria em parte ao domiacutenio da loacutegica

formal desenvolvida nos Analiacuteticos Anteriores porque ela estuda silogismos e induccedilotildees

(Ibid 1356b 5-12)

Todavia a arte retoacuterica vincula-se natildeo somente agrave dialeacutetica mas tambeacutem agrave ciecircncia

poliacutetica pois ela se ocupa dos mesmos conteuacutedos dos quais esta se ocupa ndash os caracteres

e as paixotildees ndash mas unicamente com vistas a persuadir Os meios psicoloacutegicos da

argumentaccedilatildeo retoacuterica ou seja o caraacuteter do orador (ἦθος) e o apelo emocional (πάθος)

estariam por mediaccedilatildeo da eacutetica ligados ao domiacutenio da ciecircncia poliacutetica O conhecimento

especulativo do caraacuteter e das virtudes pertenceria por definiccedilatildeo agrave disciplina que trata dos

caracteres A disciplina que trata dos caracteres que mormente recebe o nome de eacutetica

subordina-se conforme jaacute examinamos agrave ciecircncia poliacutetica Dessarte pela mediaccedilatildeo da

eacutetica a arte retoacuterica pertenceria ao domiacutenio da ciecircncia poliacutetica A retoacuterica ao lidar com as

accedilotildees humanas caracteres virtudes e emoccedilotildees estaacute intimamente ligada agrave poliacutetica que

por sua vez inclui a eacutetica Ambas as disciplinas tratam do mesmo assunto mas de um

ponto de vista diferente Ambas lidam com a felicidade e a virtude mas o escopo da

ciecircncia poliacutetica consiste grosso modo em comparar as diferentes formas de governo e

encontrar aquela na qual o homem seraacute mais virtuoso A eacutetica por seu turno eacute um

instrumento importante na educaccedilatildeo individual do cidadatildeo e dos membros da comunidade

poliacutetica como um todo por isso pode ser considerada como uma ramificaccedilatildeo da poliacutetica

E conforme a pertinente anaacutelise de Barbara Cassin sobre esse toacutepico seria por intermeacutedio

da eacutetica que tem razatildeo de chamar-se ldquopoliacuteticardquo que a retoacuterica entraria na aacutervore da

poliacutetica Mas enquanto os conhecimentos dos ecircthecirc (ἤθη) constituiria para a retoacuterica algo

como uma toacutepica das almas uma compilaccedilatildeo que permite inventar premissas adaptadas

com o intuito de suscitar paixotildees e arrebatar a convicccedilatildeo a eacutetica contribuiria para

47 A loacutegica formal que tambeacutem eacute conhecida por ldquosilogiacutestica geralrdquo refere-se agrave forma do raciociacutenio a qual leva em consideraccedilatildeo a existecircncia ou a inexistecircncia do nexo entre o antecedente e o consequente se eacute correto o raciociacutenio em suas duas formas silogismo e induccedilatildeo

conhecer e sem duacutevida para educar tanto os indiviacuteduos como as cidades tendo em vista

a finalidade de bem viver (CASSIN 1999 74)

Conforme jaacute observamos o ideal platocircnico aspirava absorver a vida praacutetica no

conceito cientiacutefico da dialeacutetica ao passo que a sofiacutestica procurava dissolver todas as

normas morais no relativismo Aristoacuteteles estava cocircnscio de que natildeo havia um modelo

loacutegico que pudesse oferecer conhecimentos cientiacuteficos com base em crenccedilas sempre

passiacuteveis de discussatildeo pois a forccedila da retoacuterica natildeo consiste no conteuacutedo da verdade

cientiacutefica que possui mas por ser um instrumento argumentativo para melhor viver em

sociedade A arte retoacuterica enquanto ramificaccedilatildeo da dialeacutetica e da eacutetica pode servir de

ferramenta educacional para os cidadatildeos e fornecer-lhes os meios teacutecnicos para defender

a verdade e a justiccedila na cidade O exerciacutecio da arte retoacuterica tambeacutem eacute uacutetil para conduzir

a comunidade a resolver seus problemas pela discussatildeo racional e natildeo pelo uso da forccedila

fiacutesica considerando o maior nuacutemero possiacutevel de aspectos dos problemas eacutetico-poliacuteticos

em questatildeo No entanto ela restringe-se a tornar mais ou menos plausiacuteveis opiniotildees ou

pontos de vista sem fornecer a garantia da verdade absoluta sobre as questotildees eacutetico-

poliacuteticas A despeito disso a retoacuterica de Aristoacuteteles tem como pressuposto um caraacuteter

eacutetico-normativo e muito mais do que um simples jogo de linguagem ela implica na

concretizaccedilatildeo do bem supremo ou da felicidade

De acordo com a definiccedilatildeo elaborada por Aristoacuteteles a arte retoacuterica consiste na

capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com a finalidade de persuadir e

esta natildeo seria a funccedilatildeo de nenhuma outra arte No entanto conveacutem sublinhar que a

persuasatildeo natildeo eacute uma atividade terminal ou um fim em si mesma conforme propalavam

os sofistas porquanto na condiccedilatildeo de instrumento eacutetico-poliacutetico a retoacuterica submete-se a

uma finalidade mais sublime a qual eacute buscada em virtude de si mesma Eacute manifesto que

a persuasatildeo eacute o fim da atividade retoacuterica mas aquela eacute uma atividade natildeo-terminal ou

seja o seu fim eacute buscado em funccedilatildeo de outro fim mais elevado o qual eacute buscado em

virtude de si proacuteprio Este fim supremo natildeo eacute outro senatildeo a felicidade de sorte que cada

homem em particular e todos em conjunto tecircm este fim em vista tanto no que escolhem

fazer como no que evitam E eacute dela mesma das accedilotildees que para ela tendem e daquelas que

lhe satildeo contraacuterias que versam todos os conselhos e dissuasotildees razatildeo pela qual a felicidade

constitui o fim da deliberaccedilatildeo (Ret 1360b 4-8)

72 A refutaccedilatildeo da retoacuterica gorgiana

Goacutergias foi um dos fundadores do discurso epidiacutectico (o qual tem por objetivo o

elogio puacuteblico de um homem de uma mulher de uma divindade ou ateacute de animais) e o

melhor exemplo de como ele concebia este gecircnero de discurso se encontra no Elogio de

Helena Embora ele afirme no iniacutecio desta obra que sua intenccedilatildeo natildeo eacute outra senatildeo indicar

a verdade conveacutem considerar que sua retoacuterica eacute marcantemente falaciosa A propoacutesito

ldquofalaacuteciardquo eacute o termo que os escolaacutesticos atribuiacuteram ao ldquoargumento sofiacutesticordquo condenado

veementemente por Aristoacuteteles na sua obra Dos Argumentos Sofiacutesticos e pode ser definida

como o argumento que possui a aparecircncia de ser verdadeiro mas sob uma anaacutelise

rigorosamente loacutegica se revela falso Na definiccedilatildeo de Aristoacuteteles os argumentos

sofiacutesticos satildeo os que parecem ser argumentos ou refutaccedilotildees mas em realidade natildeo passam

de ilogismos Para ele alguns raciociacutenios satildeo genuiacutenos ao passo que outros apenas

aparentam secirc-lo mas natildeo o satildeo e isso ocorre natildeo soacute com os argumentos mas tambeacutem

em outros campos devido a uma certa semelhanccedila entre o genuiacuteno e o falso (Arg Sof

164a 20-25)

O discurso de Goacutergias no Elogio de Helena pode ser considerado falacioso pelo

fato de fundamentar-se na falaacutecia petitio principii tambeacutem conhecida como peticcedilatildeo de

princiacutepio Isto ocorre porque as uacutenicas causas possiacuteveis por ele atribuiacutedas ao ato de Helena

satildeo justamente as que a inocentam Ele natildeo considera em nenhum momento a

possibilidade de que Helena tenha partido expontaneamente com Paacuteris pelo contraacuterio

ele inventa atraveacutes de uma enumeraccedilatildeo completa todas as possiacuteveis causas do rapto de

Helena ou ele ocorreu em virtude do decreto dos deuses e do destino ou ela foi arrebatada

agrave forccedila ou foi persuadida por discursos ou foi vencida pelo desejo Desse modo em

nenhum dos casos Helena teria agido livremente mas em todos foi subjugada por uma

forccedila superior agrave sua razatildeo pela qual ela natildeo poderia ser considerada culpada Conveacutem

salientar ainda que nos Toacutepicos a falaacutecia petitio principii eacute considerada um erro na teacutecnica

de demonstraccedilatildeo que consiste no fato de postular o que se quer provar (Toacutep 162b 35-

37) Noutros termos a falaacutecia petitio principii consiste no tipo de argumentaccedilatildeo que

objetiva provar uma tese jaacute partindo do princiacutepio que essa mesma tese seja verdadeira48

48 De acordo com Chaumlim Perelman no plano da loacutegica formal a petitio principii eacute desprovida de sentido haja vista que toda deduccedilatildeo formalmente correta consistiria em postular o que se quer provar o princiacutepio de identidade segundo o qual toda proposiccedilatildeo implica a si proacutepria seria um exemplo de petitio principii

Goacutergias comete explicitamente este ilogismo no Elogio de Helena ao supor que o

interlocutor jaacute aderiu a uma tese que ele justamente se esforccedila por fazecirc-lo admitir

Com efeito Aristoacuteteles coloca ao lado dos gecircneros oratoacuterios deliberativo e

judiciaacuterio aquele gecircnero que para Goacutergias eacute tatildeo caro mas ele o faz de uma maneira um

tanto ou quanto distinta O gecircnero epidiacutectico tem por escopo manifestar a grandeza de

uma virtude efetivamente existente (ἔστιν δ᾽ ἔπαινος λόγος ἐμφανίζων μέγεθος ἀρετῆς)

e universalmente reconhecida pelo auditoacuterio (Ret 1367b 35) Ele tambeacutem visa

reconhecer valores e natildeo transformar mediante argumentos falaciosos uma accedilatildeo perversa

numa accedilatildeo virtuosa O contraacuterio desse procedimento incorreria num paradoxo

(παράδοξος) que designa todas as proposiccedilotildees que satildeo contraacuterias agrave opiniatildeo geral Eacute dessa

forma que procede Goacutergias ao enaltecer Helena apesar da opiniatildeo puacuteblica acreditar em

sua deslealdade e adulteacuterio contra Menelau em sua fuga consciente para Troia com Paacuteris

e no cruel abandono de sua filha Hermiacuteone com apenas nove anos de idade

Na visatildeo de Aristoacuteteles existem accedilotildees como o adulteacuterio (μοιχεία) que Goacutergias

procurou relativizar no Elogio de Helena que satildeo perversas de maneira absoluta e natildeo

por constituiacuterem excessos e defeitos Para ele as accedilotildees perversas como o adulteacuterio satildeo

sempre erradas e natildeo existe nunca a respeito delas uma maneira de acertar razatildeo pela

qual seriam indefensaacuteveis por qualquer orador bem-intencionado Escreve Aristoacuteteles a

este respeito (Eacutet Nic 1107a 15-25)

Ou seja natildeo haacute uma maneira certa de cometer adulteacuterio como se houvesse a mulher certa com quem se pudesse praticaacute-lo como se houvesse a altura certa ou a maneira certa de o fazer porque praticar adulteacuterio estaacute sempre absolutamente errado [] Portanto tal como natildeo haacute excesso nem defeito na temperanccedila nem na coragem porque o meio eacute de algum modo um extremo (e a temperanccedila e a coragem satildeo posiccedilotildees extremas) assim tambeacutem se passa a respeito daquelas accedilotildees perversas porque natildeo admitem posiccedilatildeo intermeacutedia entre o excesso e o defeito Isto eacute simplesmente praticaacute-las eacute jaacute errar absolutamente

Ao abordar na Retoacuterica as virtudes que pertencem agraves mulheres Aristoacuteteles leva

em consideraccedilatildeo as virtudes do corpo (σῶμα) e as da alma (ψυχή) As virtudes do corpo

satildeo a beleza (κάλλος) e a estatura (μέγεθος) enquanto que as virtudes da alma satildeo a

temperanccedila (σωφροσύνη) e o amor ao trabalho (φιλεργία) mas sem servilismo (Ret

1361a 8-10) Outrossim ele examina na Poliacutetica algumas virtudes que precisam ser

formalizada Todavia a falaacutecia em apreccedilo que natildeo diz respeito agrave verdade mas agrave adesatildeo dos interlocutores agraves premissas que se supotildeem natildeo seria um erro de loacutegica mas de retoacuterica (PERELMAN 2014 127)

observadas pelas mulheres as quais satildeo distintas das virtudes que pertencem aos homens

Nesse sentido Aristoacuteteles critica a concepccedilatildeo socraacutetica de que a virtude eacutetica seria uacutenica

para todas as pessoas pelo contraacuterio a temperanccedila de uma mulher e de um homem natildeo

satildeo a mesma coisa nem a coragem (ἀνδρεία) ou o sentimento de justiccedila Porquanto uma

eacute a coragem de comando (ἀρχικός) a outra eacute de obediecircncia (ὑπηρετικός) e o mesmo

sucederia com as outras qualidades Assim aqueles que relacionam separadamente as

qualidades de pessoas diferentes conforme faz Goacutergias estariam mais certos que aqueles

que definem as qualidades genericamente (Pol 1260a 32-1260b 7)

Outrossim a coragem de um homem se aproximaria da covardia (δέος) se fosse

apenas igual agrave de uma mulher ao passo que a mulher passaria por tagarela se natildeo fosse

mais reservada do que um homem em suas palavras (Ibid 1277b 25-29) Assim cada

indiviacuteduo e a sociedade como um todo sobretudo os oradores devem procurar

desenvolver essas qualidades nos cidadatildeos pois os povos em que haacute imoralidade nas

mulheres a exemplo dos lecedemocircnios natildeo podem ser considerados plenamente felizes

(Ret 1361a 10-15) Enfim na visatildeo de Aristoacuteteles o gecircnero epidiacutectico precisa manifestar

a grandeza de uma virtude efetivamente existente e reconhecida pelo consenso geral

como as virtudes das mulheres acima mencionadas e jamais transformar uma accedilatildeo

considerada perversa numa accedilatildeo virtuosa

Para Aristoacuteteles o orador se propotildee a atingir segundo o gecircnero especiacutefico de

discurso finalidades que satildeo distintas no gecircnero deliberativo ele aconselha acerca do que

eacute uacutetil ou prejudicial no gecircnero judiciaacuterio ele tem em vista o justo ou o injusto e no gecircnero

epidiacutectico que aborda o elogio ou a censura ocupa-se com o que eacute belo ou feio Pode-se

assegurar entatildeo que no acircmbito do gecircnero epidiacutectico o orador ocupa-se essencialmente

de reconhecer valores (Ibid 1366a 29-40)

Depois disto falemos da virtude e do viacutecio do belo e do vergonhoso pois estes satildeo os objetivos de quem elogia ou censura Com efeito sucederaacute que ao mesmo tempo que falarmos destas questotildees estaremos tambeacutem mostrando os meios pelos quais deveremos ser considerados como pessoas de um certo caraacuteter Esta era a segunda prova pois eacute pelos mesmos meios que poderemos inspirar confianccedila em noacutes proacuteprios e nos outros no que respeita agrave virtude Mas como muitas vezes acontece que por brincadeira ou a seacuterio louvamos natildeo soacute um homem ou um deus mas ateacute seres inanimados ou qualquer animal que se apresente devemos de igual modo prover-nos de premissas sobre estes assuntos

O Estagirita define o belo como aquilo que sendo preferiacutevel por si mesmo eacute digno

de louvor ou aquilo que sendo bom eacute agradaacutevel porque eacute bom (καλὸν μὲν οὖν ἐστιν ὃ ἂν

δι᾽ αὑτὸ αἱρετὸν ὂν ἐπαινετὸν ᾖ ἢ ὃ ἂν ἀγαθὸν ὂν ἡδὺ ᾖ ὅτι ἀγαθόν) E se isto eacute belo

tambeacutem a virtude eacute bela porquanto sendo boa eacute digna de louvor A virtude por sua vez

consiste de um lado no poder de produzir e conservar os bens e de outro na faculdade

de prestar muitos e relevantes serviccedilos de toda sorte e em todos os casos (ἀρετὴ δ᾽ ἐστὶ

μὲν δύναμις ὡς δοκεῖ ποριστικὴ ἀγαθῶν καὶ φυλακτική καὶ δύναμις εὐεργετικὴ πολλῶν

καὶ μεγάλων καὶ πάντων περὶ πάντα) Os componentes da virtude (μέρη δὲ ἀρετῆς) satildeo

a justiccedila a coragem a temperanccedila a magnificecircncia a magnanimidade a liberalidade a

mansidatildeo a prudecircncia e a sabedoria (Ibid 1366a 43-1366b 6) Sendo assim o elogio

(ἔπαινος) que distingue-se do encocircmio (ἐγκώμιον)49 eacute um discurso que visa manifestar a

grandeza de uma determinada virtude por isso eacute necessaacuterio demonstrar atraveacutes do

discurso epidiacutectico que certas accedilotildees satildeo efetivamente virtuosas Nesse sentido Aristoacuteteles

se afasta do modo como Goacutergias compreende e emprega o gecircnero epidiacutectico Goacutergias

utiliza o discurso epidiacutectico natildeo para reconhecer valores como a justiccedila a coragem ou a

temperanccedila mas para defender de maneira falaciosa e ateacute imoral comportamentos que

seriam indefensaacuteveis por qualquer orador bem-intencionado de sorte que um homem de

maacute iacutendole poderia transfigurar-se num homem virtuoso e vice-versa Esta atitude tambeacutem

foi criticada por Platatildeo no Fedro ao mencionar que existem oradores que desconhecendo

o bem e o mal satildeo capazes de fazer um elogio tatildeo eloquente de um miacutesero asno a ponto

de transformaacute-lo num belo e nobre cavalo (Fed 260c)

Outrossim os tipos de argumentaccedilatildeo dos trecircs gecircneros do discurso retoacuterico natildeo satildeo

os mesmos O judiciaacuterio que dispotildee de leis e se dirige a um auditoacuterio especializado se

utiliza amiuacutede do entimema (ἐνθύμημα) proacuteprio para esclarecer uma questatildeo judicial O

deliberativo dirige-se a um puacuteblico menos esclarecido por isso utiliza preferencialmente

argumentos pelo exemplo (παράδειγμα) Enquanto que o gecircnero epidiacutectico recorre

principalmente agrave amplificaccedilatildeo (αὐξητικός) pois os fatos satildeo conhecidos pelo auditoacuterio

e cabe ao orador dar-lhes valor mostrando sua importacircncia e nobreza (Ret1368a 37-46)

Entre as espeacutecies comuns a todos os discursos a amplificaccedilatildeo eacute em geral a mais apropriada aos epidiacutecticos pois estes tomam em consideraccedilatildeo as accedilotildees por todos aceitas de sorte que apenas resta revesti-las de grandeza e de beleza Os exemplos por seu turno satildeo mais apropriados aos discursos deliberativos pois eacute com base no

49 Para Aristoacuteteles o termo ldquoἔπαινοςrdquo diz respeito agraves virtudes das accedilotildees tais como a justiccedila a coragem a temperanccedila etc enquanto que o ldquoἐγκώμιονrdquo refere-se agraves obras realizadas em benefiacutecio de algueacutem ou de uma cidade

passado que adivinhamos e julgamos o futuro E os entimemas convecircm mais aos discursos judiciais pois o que se passou por ser obscuro requer sobretudo causa e demonstraccedilatildeo

A argumentaccedilatildeo proacutepria do discurso epidiacutectico se propotildee entatildeo a aumentar a

intensidade de adesatildeo a certos valores em relaccedilatildeo aos quais natildeo existiriam duacutevidas No

discurso epidiacutectico o orador procura criar uma concordacircncia em torno de certos valores

reconhecidos pelo auditoacuterio valendo-se do conjunto de meios de que a retoacuterica dispotildee

para amplificar e valorizar Por exemplo pela αὐξητικός o orador precisa levar em

consideraccedilatildeo se um homem agiu soacute ou em primeiro lugar ou com poucas pessoas ou se

teve a parte mais relevante de uma accedilatildeo porquanto todas estas circunstacircncias satildeo

consideradas belas (Ibid 1367a 14-17) Agrave vista disso a retoacuterica epidiacutectica natildeo estaria

menos ligada agrave experiecircncia eacutetica e poliacutetica do que os demais gecircneros de discurso

porquanto deve partir de conceitos do belo e da virtude para poder realizar o tipo de

persuasatildeo que lhe caracteriza A propoacutesito no capiacutetulo 9 do primeiro livro da Retoacuterica

Aristoacuteteles se delonga em discussotildees de caraacuteter eacutetico natildeo muito diferentes daquelas da

Eacutetica a Nicocircmaco redimindo a arte retoacuterica da falsa acusaccedilatildeo de superficialidade e

imoralidade que lhe fizera Platatildeo

No entanto eacute manifesto que o estudo das virtudes eacuteticas empreendido por

Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco serve a um propoacutesito que eacute distinto do desiacutegnio exposto

na Retoacuterica o qual se relaciona fundamentalmente com a persuasatildeo Para o Estagirita

(Ibid 1369b 39-41) as definiccedilotildees das virtudes a serem utilizadas nos argumentos

retoacutericos satildeo suficientes para a finalidade de persuadir se natildeo forem obscuras nem

tecnicamente rigorosas (ἑκάστου μήτε ἀσαφεῖς μήτε ἀκριβεῖς) E aleacutem de ser mais

acurada e extensa a anaacutelise das virtudes na Eacutetica a Nicocircmaco natildeo tem por objetivo

proporcionar uma ajuda praacutetica para os oradores puacuteblicos mas um conhecimento que

possibilite a todos viver bem e virtuosamente Dessarte ele declara que o objetivo final

de sua investigaccedilatildeo natildeo eacute constituir um saber teoacuterico mas agir (Eacutet Nic 1095a 5-7)

Com efeito uma breve apreciaccedilatildeo da natureza da virtude na Eacutetica a Nicocircmaco eacute

pertinente para compreendermos mais adiante de que maneira (e por qual razatildeo) o

Estagirita parece reduzir o discurso epidiacutectico a uma manipulaccedilatildeo sofiacutestica quando

recomenda ao orador transformar (se for conveniente) um viacutecio numa virtude e vice-

versa haja vista sua sutil proximidade Sumariamente a virtude para Aristoacuteteles eacute

definida atraveacutes de gecircnero e espeacutecie Segundo o gecircnero a virtude equivale a um haacutebito

(ἕξις) e de acordo com a espeacutecie ela consiste numa posiccedilatildeo intermeacutedia (μεσότης) a qual

deve ser estabelecida pela razatildeo como a estabeleceria um homem dotado de prudecircncia

(φρόνησις)

Para Aristoacuteteles as virtudes eacuteticas natildeo surgem no homem por uma determinaccedilatildeo da

natureza mas esta propicia a capacidade de desenvolvecirc-las desde que o agente moral se

habitue a praticaacute-las Todos os fatos que resultam da natureza tecircm uma causa interna e

regular posto que se produzem sempre ou geralmente da mesma maneira (Ret 1369b 1-

2) Todavia em relaccedilatildeo agraves virtudes eacuteticas ele as assemelha com as artes uma vez que

ambas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio repetitivo Assim a virtude eacutetica seria uma

consequecircncia do haacutebito visto que o ser humano se transforma naquilo que repetidamente

pratica sendo o haacutebito uma espeacutecie de segunda natureza de modo que o agente moral

torna-se justo praticando accedilotildees justas ou corajoso praticando accedilotildees corajosas (Eacutet Nic

1103a 14-1103b 25)

Outrossim a virtude consiste na posiccedilatildeo intermeacutedia entre dois extremos viciosos

um deles se caracteriza pelo excesso (ὑπερβολή) e outro pela falta (ἔλλειψις) A coragem

constitui o meio-termo entre o medo e a audaacutecia a temperanccedila entre a insensibilidade e

a devassidatildeo a generosidade entre o esbanjamento e a avareza a gentileza entre

passividade e a ira a sinceridade entre a fanfarronice e a falsa modeacutestia a afabilidade

entre a bajulaccedilatildeo e rabugice e a espirituosidade entre a palhaccedilada e a rudeza (Ibid 1107a

28-1108b 35) O μεσότης ou a posiccedilatildeo intermeacutedia constitui um dos princiacutepios

fundamentais da eacutetica aristoteacutelica por isso a accedilatildeo correta do ponto de vista eacutetico deve

sempre evitar os extremos isto eacute tanto o excesso quanto a falta

O μεσότης pode ser compreendido tanto em relaccedilatildeo a algum objeto como em

relaccedilatildeo aos agentes morais Em relaccedilatildeo a algum objeto Aristoacuteteles entende o que eacute

equidistante de cada um dos seus extremos sendo um soacute e mesmo para todos conforme

ocorre a respeito da proporccedilatildeo numeacuterica ndash se dez eacute muito e dois eacute pouco seis seria

considerado o meio-termo em relaccedilatildeo ao objeto No entanto a posiccedilatildeo intermeacutedia em

relaccedilatildeo aos agentes morais que eacute o enfoque da eacutetica aristoteacutelica natildeo pode ser entendida

como uma proporccedilatildeo numeacuterica (Ibid 1106a 30-1106b 1) A posiccedilatildeo intermeacutedia soacute pode

ser determinada pela φρόνησις ou virtude da prudecircncia que consiste na capacidade de

discernir a justa medida cuja determinaccedilatildeo poderaacute variar de acordo com as circunstacircncias

e situaccedilotildees envolvidas (Ibid 1141b 15-20) Por exemplo o sentimento de ira suscitado

por alguma ofensa leva naturalmente um homem a querer a vinganccedila mas esta deve ser

proporcional agrave ofensa de modo que ele agiraacute de acordo com a posiccedilatildeo intermeacutedia se ele

irar-se como deveria sobre as coisas apropriadas em relaccedilatildeo agraves pessoas apropriadas pelo

fim devido e da maneira correta

Aleacutem do exposto para o Estagirita existem trecircs gecircneros de fenocircmenos que surgem

na alma e somente um deles estaria intimamente ligado agraves virtudes eacuteticas as afecccedilotildees

(πάθη) as capacidades (δυνάμεις) e as disposiccedilotildees (ἕξεις) As afecccedilotildees dizem respeito

ao desejo agrave ira ao medo agrave coragem agrave inveja agrave alegria agrave amizade ao oacutedio agrave saudade

ao ciuacuteme agrave piedade e em geral a tudo aquilo que eacute acompanhado por prazer ou

sofrimento Tais afecccedilotildees satildeo fenocircmenos involuntaacuterios que surgem na alma por isso

existem independentemente dos indiviacuteduos As capacidades satildeo as condiccedilotildees de

possibilidade dos seres humanos serem afetados ou influenciados pelas afecccedilotildees E as

disposiccedilotildees que satildeo gecircneros de fenocircmenos de acordo com os quais as pessoas se

comportam bem ou mal relativamente agraves afecccedilotildees Relativamente ao estado em que se

fica irado comporta-se mal aquele que fica nesse estado emocional em excesso ou ainda

em falta Desse modo sentir medo ser corajoso ficar irritado ou ter piedade admitem

um mais e um menos ou seja admitem modos errados de se relacionar com tais afecccedilotildees

Todavia o sentir as afecccedilotildees no tempo em que se deve nas ocasiotildees em que se deve em

vista do que se deve e do modo em que se deve constitui a medida da virtude eacutetica As

virtudes eacuteticas portanto natildeo satildeo afecccedilotildees porque natildeo depende do indiviacuteduo ser afetado

ou natildeo por elas as virtudes tambeacutem natildeo satildeo capacidades as quais satildeo inerentes aos seres

humanos mas certamente satildeo disposiccedilotildees de caraacuteter isto eacute as virtudes dependem de uma

decisatildeo preacutevia As pessoas satildeo acometidas pelo medo pela ira ou por qualquer outra

afecccedilatildeo sem qualquer decisatildeo preacutevia enquanto que as virtudes eacuteticas resultam de certas

decisotildees tomadas de antematildeo em face das afecccedilotildees Dessarte as pessoas satildeo louvadas

por suas virtudes ou censuradas por seus viacutecios em decorrecircncia de uma escolha

deliberada (Ibid 1105b 19-1106a 10)

Verificamos que Aristoacuteteles estabelece a distinccedilatildeo entre o orador e o sofista

sobretudo pela disposiccedilatildeo ou intenccedilatildeo moral o primeiro distingue-se do segundo por

empregar a arte retoacuterica tendo em vista o triunfo natural do verdadeiro e do justo e natildeo

simplesmente para persuadir sua audiecircncia conforme o que lhe conveacutem Entretanto

Aristoacuteteles parece reduzir o gecircnero do discurso epidiacutectico a uma manipulaccedilatildeo digna dos

maiores sofistas quando recomenda ao orador considerar idecircnticas certas qualidades

existentes e as que lhes estatildeo proacuteximas Ele pode apresentar o indiviacuteduo coleacuterico como

franco o arrogante como magnificente e digno e os que mostram algum tipo de excessso

como se possuiacutessem as virtudes correspondentes (Ret 1367a 42-47) O audacioso pode

ser apresentado como corajoso e o esbanjador como generoso porque dessa forma

pareceraacute agrave maioria que natildeo tem a perspicaacutecia de distinguir a sutil diferenccedila entre a virtude

e o viacutecio (Ibid 1367b 1-4) Portanto em cada caso o orador pode tirar proveito dessas

qualidades semelhantes no sentido mais favoraacutevel

Aleacutem da aparente ldquocumplicidaderdquo de Aristoacuteteles com a sofiacutestica ele ainda sugere

ao orador o que eacute necessaacuterio dizer ao defender uma determinada causa primeiro se a lei

lhe for desfavoraacutevel teraacute de lanccedilar matildeo de um criteacuterio que esteja acima da lei escrita

apelando a uma lei natildeo escrita depois se a lei lhe for favoraacutevel teraacute de rejeitar todo

criteacuterio extriacutenseco agrave lei escrita Agrave primeira vista tem-se a impressatildeo de que o Estagirita

estaacute subscrevendo todas as desonestidades e manipulaccedilotildees que sempre caracterizaram os

sofistas W K C Guthrie sustenta (um tanto ou quanto superficialmente) que Aristoacuteteles

deveras rendeu-se agraves tramoacuteias de Goacutergias e seus comparsas os quais ensinavam em seus

manuais os modos como os conceitos eacuteticos podem ser submetidos agraves conveniecircncias do

momento Ele sustenta esta visatildeo com a justificativa de que no momento em que

Aristoacuteteles escreveu seu manual de retoacuterica baseou-se nos manuais anteriores

confeccionados em sua maioria pelos mais eminentes sofistas Por essa razatildeo ele teria

simplesmente reproduzido os estratagemas retoacutericos dos sofistas sem preocupar-se no

toacutepico em questatildeo em fazer com que a lei eterna da natureza prevaleccedila sobre a convenccedilatildeo

mas mostrar que um advogado pode jogar com a noccedilatildeo de lei escrita e natildeo escrita da

maneira que conveacutem ao seu caso (GUTHRIE 2007 118)

Com efeito se por casualidade a lei escrita for desfavoraacutevel ao discurso do orador

ele precisa lanccedilar matildeo dos seguintes estratagemas recorrer agrave lei comum uma vez que

esta possuiria razotildees mais equacircnimes e mais justas dizer que a foacutermula ldquona melhor

consciecircnciardquo significa natildeo nos atermos estritamente agrave lei escrita declarar que os

princiacutepios de equidade satildeo permanentes e nunca mudam tampouco a lei comum que estaacute

baseada na natureza e ateacute citar a lei natildeo escrita de Antiacutegona que seria o uacutenico criteacuterio de

justiccedila das leis escritas as quais satildeo amiuacutede transitoacuterias ambiacuteguas e contraditoacuterias entre

si dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita

natildeo deve ser considerada uma lei se natildeo cumprir efetivamente a sua funccedilatildeo de lei e que

eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se adequar mais

do que agraves leis escritas Aleacutem do mais Aristoacuteteles orienta que se verifique se existe alguma

ambiguidade na lei com o intuito de contornar e ver a que sentido ela se acomoda se ao

justo ou ao conveniente e na sequecircncia utilizar a interpretaccedilatildeo mais favoraacutevel (Ret

1375a 41-49) E se porventura as circunstacircncias que motivaram a lei jaacute natildeo existem mas

a lei ainda permanece entatildeo conveacutem demonstraacute-lo ao juiz e lutar contra a lei vigente por

este estratagema (Ibid 1375b 3-19)

No entanto se a lei escrita for favoraacutevel ao orador Aristoacuteteles recomenda que a

foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo natildeo tem por objetivo obter uma sentenccedila contraacuteria agrave lei

mas escusar o juiz de perjuacuterio caso ele tivesse ignorado o verdadeiro sentido da lei que

eacute preciso explicar que ningueacutem escolhe o bem absoluto mas sim o seu proacuteprio bem que

natildeo existe nenhuma diferenccedila entre natildeo haver lei e natildeo se fazer uso dela que nas outras

artes natildeo existe vantagem em ser mais haacutebil do que o meacutedico porquanto o erro de um

meacutedico eacute menos prejudicial do que o haacutebito de desobedecer agrave autoridade e que procurar

ser mais saacutebio do que as leis eacute precisamente o que eacute proibido pelas leis que satildeo louvadas

(Ibid 1375b 20-31)

Ao orientar sobre os casos em que a lei escrita eacute desfavoraacutevel ao orador Aristoacuteteles

recusa o legalismo em benefiacutecio da equidade (ἐπιεικής) que estabelece a justiccedila acima do

direito positivo e faz do juiz um aacuterbitro o qual pode retificar a lei quando esta deixar de

desempenhar devidamente sua funccedilatildeo No segundo caso Aristoacuteteles recomenda a recusa

do arbitraacuterio haja vista que cada um pode invocar a lei natildeo escrita de Antiacutegona para

revogar a lei que natildeo lhe conveacutem Desse modo a atitude ldquorelativistardquo de Aristoacuteteles ao

aconselhar o orador a adotar segundo sua conveniecircncia ora uma tese ora o seu contraacuterio

parece um tanto ou quanto imoral

No entanto se levarmos em consideraccedilatildeo que as accedilotildees humanas natildeo procedem de

verdades absolutamente necessaacuterias que a arte retoacuterica soacute pode ser exercida em situaccedilotildees

de divergecircncia e incerteza e que o orador pode deparar-se com um adversaacuterio mal-

intencionado a quem importa fazer de tudo para desmentir sua argumentaccedilatildeo (haja vista

que sua missatildeo eacute lutar para o bem da comunidade poliacutetica) entatildeo as estrateacutegias retoacutericas

supramencionadas parecem ser apropriadas nas circunstacircncias especiacuteficas nas quais o

orador dotado de prudecircncia (φρόνιμος) estaraacute apto a empregaacute-las50 Eacute inegaacutevel que o

50 Guardadas as devidas proporccedilotildees pode-se comparar a asserccedilatildeo aristoteacutelica de que o orador pode relativizar certas noccedilotildees eacuteticas com a ldquomentira uacutetilrdquo de Platatildeo a qual soacute poderia ser exercida por governantes justos (Rep 331c 382c 389-391c 414b 459c-d) Decerto a eventual mentira dos governantes natildeo visa o seu proacuteprio bem mas o bem de todos os cidadatildeos Ela natildeo tem como fim obter riqueza poder ou manter a condiccedilatildeo privilegiada da proacutepria classe mas sim alcanccedilar o bem-estar de toda a cidade Portanto a mentira do governante natildeo eacute funcional agrave conservaccedilatildeo do seu poder sobre todos os outros homens mas agrave de uma vida justa e feliz com todos os outros homens Semelhantemente os oradores

debate entre Creonte e Antiacutegona51 (entre a razatildeo de Estado que exige a ordem para

estabelecer a paz e a lei divina) ainda natildeo se encerrou e pode-se assegurar que nunca vai

se encerrar A uacutenica coisa que se pode fazer na ausecircncia de uma demonstraccedilatildeo rigorosa

ou apodiacutectica eacute confiar no debate contraditoacuterio em que cada orador emprega todo o

esforccedilo para encontrar os meios de efetivar a persuasatildeo Assim nos contextos onde eacute

premente a deliberaccedilatildeo torna-se fundamental o emprego da argumentaccedilatildeo retoacuterica com

o intuito de encontrar a soluccedilatildeo mais plausiacutevel em face de um impasse qualquer porque

numa situaccedilatildeo destituiacuteda de evidecircncia onde natildeo eacute possiacutevel demonstraccedilatildeo cientiacutefica nem

qualquer previsatildeo exata a arte retoacuterica possui o papel fundamental de fazer a justa defesa

de uma determinada causa e esclarecer aqueles que devem emitir a palavra definitiva e

disso depende a proacutepria subsistecircncia da cidade

Eacute manifesto que a condiccedilatildeo do orador eacute a de um sujeito que natildeo estaacute isolado ou

sozinho mas ele tem diante de si um adversaacuterio a quem compete fazer de tudo para

desmentir sua argumentaccedilatildeo caso seja falaciosa tendo sempre em vista o combate contra

a perversatildeo da verdade e da justiccedila Num contexto juriacutedico por exemplo ambas as partes

de um litiacutegio tecircm a missatildeo de fazer valer tudo o que possa servir agrave sua proacutepria causa mas

quem deteacutem a palavra final eacute sempre o juiz E uma vez que a verdade e a justiccedila satildeo por

natureza mais fortes que seus contraacuterios e sendo evidente que os estratagemas retoacutericos

podem favorecer as causas injustas entatildeo com mais eficaacutecia os mesmos estratagemas

podem favorecer as causas justas Desse modo sob o ponto de vista do meacutetodo retoacuterico

desenvolvido de Aristoacuteteles o orador judicial deve empregar sem nenhum melindre todas

as estrateacutegias retoacutericas disponiacuteveis a fim de triunfar sobre o adversaacuterio e estabelecer a

verdade dos fatos Outrossim as accedilotildees humanas fundamentam-se sobre juiacutezos que

poderiam ser de uma maneira ou de outra e normalmente natildeo procedem de verdades

absolutamente necessaacuterias Por isso ningueacutem pode deliberar sobre coisas que natildeo podem

ser de outra maneira nem acerca daquelas coisas sobre as quais natildeo tem o poder de agir

(Eacutet Nic 1140a 31-34) Na hipoacutetese de que as estrateacutegias retoacutericas sejam quais forem

verdadeiramente ilibados e bem-intencionados teriam a prerrogativa de submeter agraves conveniecircncias do momento certas noccedilotildees tendo em vista seu compromisso eacutetico-poliacutetico com o bem da cidade 51 De acordo a trageacutedia chamada Antiacutegona escrita por Soacutefocles em 442 aC Antiacutegona era irmatilde de Polinice que morreu lutando contra Creonte que era o rei de Tebas Este por conseguinte decidiu que como puniccedilatildeo por seus erros o corpo do rebelde Polinice natildeo poderia ser sepultado Entretanto Antiacutegona entendeu que ningueacutem poderia deixar insepulto o corpo de seu proacuteprio irmatildeo ainda que para isso tivesse de contrariar a lei que foi escrita e sancionada pelo rei Para tanto ela procura apelar para as leis natildeo escritas estabelecidas pelos deuses as uacutenicas que na sua opiniatildeo mereceriam ser observadas Dessarte ela foi julgada e condenada por Creonte que decide aprisionaacute-la numa caverna escavada na rocha para que tivesse uma morte lenta e angustiante

satildeo pertinentes em situaccedilotildees de divergecircncia e incerteza mormente nas ocasiotildees em que

o orador dotado de prudecircncia enfrenta um adversaacuterio mal-intencionado e

descomprometido com o bem da cidade entatildeo torna-se premente a compreensatildeo dessa

virtude tal como a relevacircncia de sua vinculaccedilatildeo com a persuasatildeo retoacuterica

O Estagirita define brevemente a prudecircncia (Ret 1366b 23-25) como a virtude da

inteligecircncia mediante a qual se pode deliberar adequadamente sobre os bens e os males

que conduzem agrave felicidade (φρόνησις δ᾽ ἐστὶν ἀρετὴ διανοίας καθ᾽ ἣν εὖ βουλεύεσθαι

δύνανται περὶ ἀγαθῶν καὶ κακῶν τῶν εἰρημένων εἰς εὐδαιμονίαν) A prudecircncia que eacute

uma das qualidades morais que compotildeem o ἦθος do orador a partir da qual ele estaraacute

apto a dar conselhos razoaacuteveis e pertinentes possui um componente dianoeacutetico mas natildeo

pode ser um conhecimento cientiacutefico stricto sensu nem uma arte pois o que acontece no

horizonte das accedilotildees humanas pode ser sempre de outra maneira (Eacutet Nic 1140b 1-5)

Apesar disso natildeo eacute possiacutevel nenhuma argumentaccedilatildeo nem decisatildeo verossiacutemil se o orador

natildeo for dotado de prudecircncia

A prudecircncia faz os agentes morais agirem tendo em vista um fim o qual se

identifica em uacuteltima instacircncia com o bem supremo ou a felicidade No entanto a

prudecircncia natildeo se relaciona diretamente com o fim da accedilatildeo o qual natildeo pode ser objeto de

deliberaccedilatildeo mas com os meios de atingi-lo E aquele que possui a prudecircncia sabe-se

numa deliberaccedilatildeo comprometida com o fim uacuteltimo da felicidade e o homem prudente

(φρόνιμος) eacute capaz de calcular de forma correta a fim de chegar a este objetivo final (Ibid

1140a 28-30) Mediante a prudecircncia chega-se em parte ao bem do indiviacuteduo em parte ao

bem da comunidade poliacutetica razatildeo pela qual Peacutericles eacute considerado por Aristoacuteteles o

modelo de φρόνιμος porque ele foi capaz de ver as coisas que eram boas para si proacuteprio

em particular e para os homens em geral (Ibid 1140b 5-10) O homem prudente

portanto eacute aquele que tem o poder de deliberar corretamente acerca das coisas que satildeo

boas e vantajosas tanto para si como para o viver bem em geral

Aristoacuteteles enfatiza que a investigaccedilatildeo sobre as accedilotildees humanas somente seraacute

adequada se contiver tanta exatidatildeo quanto comportar o assunto haja vista que natildeo se

deve exigir precisatildeo cientiacutefica em todos os raciociacutenios O acircmbito do raciociacutenio eacutetico

constitui-se sobre o sistema de opiniotildees geralmente aceitas e sobre o que sucede a maior

parte das vezes com o reconhecimento da comunidade poliacutetica ou pelo menos dos

homens mais eminentes E as opiniotildees que constituem o mundo cultural satildeo justamente

os valores que a arte retoacuterica leva em consideraccedilatildeo em suas anaacutelises e no seu poder de

persuasatildeo e nesse aspecto retoacuterica e eacutetica satildeo disciplinas intimamente relacionadas

No entanto quando se examina as accedilotildees humanas parece impossiacutevel detectar de

forma definitiva e cabal a distinccedilatildeo entre a coragem e a audaacutecia ou entre a generosidade

e o esbajamento pois a justa medida entre as qualidades em consideraccedilatildeo natildeo eacute

rigidamente aritmeacutetica ela difere de uma pessoa para outra depende dos temperamentos

de cada um e das circunstacircncias envolvidas Mas eacute justamente esta obscuridade que

possibilita ao orador judicial dotado de prudecircncia apresentar como corajoso aquele que eacute

acusado de ser audacioso ou generoso aquele que eacute considerado esbanjador e vice-versa

sem ser confundido com o sofista cuja motivaccedilatildeo natildeo estaria vinculada a interesses eacutetico-

poliacuteticos mas somente agraves disputas eriacutesticas Sendo assim Aristoacuteteles natildeo considera um

orador virtuoso enquanto ele natildeo optar por agir em conformidade com o que a virtude

aconselha Mantendo este criteacuterio ele aconselha ao orador que suas accedilotildees se manifestem

como resultado de uma προαίρεσις ou seja uma escolha moral bem intencionada

Conveacutem tambeacutem salientar que Aristoacuteteles utiliza a palavra cacircnone (κανών) para

caracterizar a pessoa virtuosa (σπουδαῖος) cujos sentimentos e juiacutezos estatildeo nesta

condiccedilatildeo Assim o que distinguiria o orador dotado de prudecircncia daquele que natildeo o eacute

seria sua capacidade de ver o que eacute verdadeiro em cada caso sendo ele proacuteprio um κανών

ou seja um padratildeo ou medida desses casos (Ibid 1113a 30-1113b 1) Ele tambeacutem declara

que quando coisas vis e injustas parecem agradaacuteveis para alguns indiviacuteduos isso se deve

ao tipo de defeito na parte desiderativa da alma que ao mesmo tempo evidencia que seu

possuidor natildeo possui um caraacuteter virtuoso razatildeo pela qual ele constitui um κανών ruim

para distinguir adequadamente as coisas que satildeo boas para si proacuteprio em particular e

para os homens em geral (Ibid 1176a 16-19) Nessa perspectiva se o orador natildeo possuir

genuiacutena virtude de caraacuteter o seu juiacutezo moral sobre as coisas natildeo seraacute correto ou confiaacutevel

assim como a visatildeo que natildeo pode distinguir corretamente os objetos se for afetada por

alguma doenccedila E uma vez que ele tenha um caraacuteter virtuoso o mundo dos prazeres das

dores e dos valores em geral seraacute imediatamente acessiacutevel e compreensiacutevel como o das

cores dos sons e dos objetos perceptiacuteveis para aquele que possui os oacutergatildeos dos sentidos

em boas condiccedilotildees

De fato as observaccedilotildees de Aristoacuteteles sobre o orador como aquele que eacute capaz de

considerar idecircnticas certas qualidades existentes e as que estatildeo proacuteximas sugerem que

ele natildeo tivesse uma visatildeo muito elevada da moral mas estaacute hipoacutetese estaacute longe de

corresponder agraves suas convicccedilotildees No seu comentaacuterio agrave Retoacuterica Forbes I Hill procura

certificar que o fato do orador poder tirar proveito de qualidades semelhantes no sentido

mais favoraacutevel natildeo comprometeria a elevada visatildeo moral do Estagirita Para tanto ele

utiliza o exemplo do soldado que saiu de suas proacuteprias linhas sem nenhuma necessidade

e conseguiu matar trecircs soldados inimigos Em sua perspectiva o que definiria para

Aristoacuteteles a conduta do soldado seria a intenccedilatildeo moral que o fez lutar haja vista que ele

percebeu o perigo que corria No entanto a resposta agrave pergunta se o soldado escolheu

realizar a accedilatildeo porque era um homem corajoso ou simplesmente porque desejava a gloacuteria

eacute uma empreitada que ultrapassa a capacidade humana Eacute possiacutevel entatildeo graccedilas agrave

limitada condiccedilatildeo epistecircmica dos seres humanos nomear os fatos de uma maneira ou de

outra segundo a conveniecircncia Contudo eacute mister levar em consideraccedilatildeo que a

superioridade eacutetica da visatildeo aristoteacutelica em comparaccedilatildeo com a dos sofistas consiste na

defesa de um modelo correto de escolha moral (MURPHY 1989 60)

Aristoacuteteles tambeacutem admite a existecircncia de uma capacidade chamada ldquoδεινότηςrdquo

cujo termo pode ser traduzido por ldquoespertezardquo sem a qual a prudecircncia natildeo poderia

subsistir Por isso diz-se que tanto os prudentes quanto os maldosos satildeo dotados de

esperteza No entanto quando a esperteza objetiva alcanccedilar uma finalidade eacutetica associa-

se agrave prudecircncia e por conseguinte torna-se louvaacutevel haja vista seu comprometimento com

o bem comum mas isoladamente ela designa um poder de juiacutezo tendencialmente egoiacutesta

e imoral Portanto esta tecircnue diferenccedila entre a esperteza associada agraves causas justas e a

esperteza engajada em vis propoacutesitos parece ser mais um razoaacutevel motivo para ressalvar

Aristoacuteteles de todas as velhacarias e desonestidades que mancharam a reputaccedilatildeo dos

sofistas (Eacutet Nic 1144a 20-35)

A esperteza eacute o elemento que como o resultado de uma deliberaccedilatildeo correta

assegura a promoccedilatildeo do fim incondicional da accedilatildeo qual seja a felicidade (geral) pois o

que faz a prudecircncia boa em calcular eacute justamente a esperteza E se a meta a que algueacutem

visa eacute nobre seu caraacuteter deve ser virtuoso e por conseguinte louvaacutevel posto que a virtude

de caraacuteter eacute o que assegura a escolha deliberada correta de fins nobres e louvaacuteveis (Ibid

1144a 9-10) Entretanto uma pessoa imoral e amante de si proacutepria (φίλαυτος) eacute algueacutem

que toma quanto puder de dinheiro honras prazeres corporais e outros bens de

competiccedilatildeo que satildeo os fins particulares da avidez em detrimento do bem comum e

independente de a quem a pertenccedilam (Ibid 1168b 15-20) Todavia aleacutem da vinculaccedilatildeo

entre a prudecircncia e a esperteza na visatildeo de Troels Engberg-Pedersen haveria tambeacutem

uma vinculaccedilatildeo entre a esperteza e a retoacuterica de Aristoacuteteles dado que ambas satildeo por

natureza habilidades moralmente neutras A arte retoacuterica envolveria pois conhecimentos

especiacuteficos e a habilidade de encontrar argumentos persuasivos sobre os assuntos eacutetico-

poliacuteticos No entanto ela natildeo pressupotildee por si soacute qualquer caraacuteter moral particular ou

motivaccedilatildeo de modo que a habilidade retoacuterica eacute formalmente idecircntica agrave esperteza quer

dizer uma habilidade neutra que ao inclinar-se para objetivos moralmente bons pode

tornar-se louvaacutevel caso contraacuterio pode culminar na perversatildeo e na vilania (RORTY

1997 120)

De acordo com John B Morrall a interconexatildeo entre a eacutetica e a poliacutetica eacute

demonstrada pela preeminecircncia em ambas da faculdade da prudecircncia Para ele a eacutetica se

preocupa em fazer asserccedilotildees que podem servir de guia uacutetil para a aquisiccedilatildeo e preservaccedilatildeo

de tal faculdade a exemplo da utilizaccedilatildeo de uma posiccedilatildeo central entre opostos como regra

de medida No entanto em sua perspectiva Aristoacuteteles insiste que o meio-termo natildeo se

identifica com uma foacutermula maacutegica pelo contraacuterio ele conteacutem todas as incertezas do

mundo do conhecimento praacutetico juntamente com os perigos especiacuteficos que a posse da

livre escolha atribui ao comportamento humano por meio de um resiacuteduo final de

imprevisibilidade A prudecircncia que eacute a virtude suprema tanto na poliacutetica como na eacutetica

teria por escopo encontrar a soluccedilatildeo mais judiciosa e apropriada possiacutevel em meio a um

milhatildeo de circunstacircncias variaacuteveis e imprevisiacuteveis Desse modo no acircmbito das accedilotildees

humanas natildeo seria possiacutevel formular regras riacutegidas jaacute que a soluccedilatildeo estaria no

treinamento do intelecto praacutetico mediante a experiecircncia adquirida e o haacutebito de escolher

o curso correto de accedilatildeo em cada caso especiacutefico que ocorra (MORRALL 2000 42-43)

Morrall tambeacutem salienta que embora Aristoacuteteles rejeite o relativismo (absoluto)

na eacutetica e denuncie os sofistas como guias poliacuteticos o atributo fundamental do seu

pensamento no que se refere agrave poliacutetica consiste na adoccedilatildeo de um tipo mitigado de

relativismo que eacute ditado tanto pela flexibilidade da mateacuteria tratada como pelos

instrumentos humanos que atuam sobre ela Em sua opiniatildeo este relativismo se deve em

certa medida agrave influecircncia do ensino meacutedico que Aristoacuteteles recebera A conexatildeo de

Aristoacuteteles com a tradiccedilatildeo meacutedica de Hipoacutecrates que precedeu o seu periacuteodo na

Academia de Platatildeo teria uma forte afinidade com a corrente de ensinamento sofista pois

ambos os movimentos tinham o programa de abandonar as explicaccedilotildees abstratas e gerais

para os fenocircmenos e em vez disso concentrar-se no comportamento observaacutevel dos

fenocircmenos e nas previsotildees baseadas nesse conhecimento empiacuterico Morrall alude ao

tratado chamado Da Medicina Antiga no qual o meacutedico Hipoacutecrates sustenta que em

mateacuteria de sauacutede nada eacute absolutamente bom nem absolutamente mau de modo que o

valor dos alimentos remeacutedios e outros meios de sauacutede seria condicionado pelo estado de

cada indiviacuteduo uma refeiccedilatildeo de carne pode ser boa para um homem no gozo de perfeita

sauacutede e pode ser inadequada para um doente etc (Ibid 2000 44 76)

Com efeito a concepccedilatildeo de um tipo especial de relativismo aparece de maneira

expliacutecita no pensamento eacutetico do Estagirita quando ele fala a respeito das coisas que satildeo

justas de acordo com as convenccedilotildees e a conveniecircncia comparando-as agrave unidades de

medida (τὰ δὲ κατὰ συνθήκην καὶ τὸ συμφέρον τῶν δικαίων ὅμοιά ἐστι τοῖς μέτροις) As

medidas de vinho e cereais natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares mas maiores nos

mercados por atacado ao passo que satildeo menores no varejo Semelhantemente as coisas

que natildeo satildeo justas por natureza mas meramente por decisatildeo humana natildeo satildeo as mesmas

em todos os lugares (ὁμοίως δὲ καὶ τὰ μὴ φυσικὰ ἀλλ᾽ ἀνθρώπινα δίκαια οὐ ταὐτὰ

πανταχοῦ) Isto tambeacutem se aplicaria agraves constituiccedilotildees as quais natildeo satildeo as mesmas em toda

parte (ἐπεὶ οὐδ᾽ αἱ πολιτεῖαι ἀλλὰ μία μόνον πανταχοῦ κατὰ φύσιν ἡ ἀρίστη) A despeito

disso Aristoacuteteles estaacute longe de ser considerado um relativista ordinaacuterio pois ele se

distingue dos sofistas por afirmar (Eacutet Nic 1135a 1-8) a existecircncia de um tipo de

constituiccedilatildeo uacutenica em todo lado que eacute a melhor de todas por estar fundada na justiccedila por

natureza cujo sentido eacute uacutenico e universal (τῶν δὲ δικαίων καὶ νομίμων ἕκαστον ὡς τὰ

καθόλου πρὸς τὰ καθ᾽ ἕκαστα ἔχει)

Conforme jaacute verificamos o sofista Goacutergias define a arte retoacuterica como πειθοῦς

δημιουργός ou seja ela eacute artiacutefice ou a criadora da persuasatildeo razatildeo pela qual seria capaz

de persuadir pelo discurso a despeito de qualquer assunto52 os juiacutezes no tribunal os

conselheiros no Conselho os membros da Assembleia e em toda e qualquer reuniatildeo de

natureza poliacutetica (Goacuterg 452e) Goacutergias tambeacutem assevera que todos os especialistas que

natildeo possuem a habilidade retoacuterica de persuadir satildeo menos poderosos do que aqueles que

52 Conforme sugere James J Murphy a concepccedilatildeo gorgiana segundo a qual a teacutecnica retoacuterica possui intrinsecamente a eficaacutecia de persuadir qualquer um sobre qualquer assunto jaacute estava em germe na retoacuterica de Coacuterax Este com efeito teria manifestado uma extrema confianccedila no seu meacutetodo retoacuterico ao propor a seu disciacutepulo Tiacutesias que pagasse por suas aulas somente apoacutes obter alguma vitoacuteria no tribunal Tiacutesias teria de pagar pelas aulas de Coacuterax somente se vencesse caso contraacuterio estaria desobrigado do pagamento Tiacutesias natildeo querendo pagar pelas aulas levanta um processo contra o proacuteprio Coacuterax sustentando que nada deve Este foi o primeiro processo de Tiacutesias Se este porventura ganhasse o processo entatildeo natildeo teria de pagar pelas aulas mas se perdesse natildeo pagaria da mesma forma pois a derrota provaria que as aulas de Coacuterax natildeo foram eficientes para habilitaacute-lo a persuadir qualquer um sobre qualquer assunto Coacuterax por sua vez constroacutei um contra-argumento se Tiacutesias ganhar o processo teraacute de pagar pelas aulas segundo o acordo feito entre eles Perdendo o processo teraacute de pagar consoante a decisatildeo dos juiacutezes (MURPHY 1989 15)

a possuem de tal modo que por meio do poder do discurso seria possiacutevel submeter

qualquer indiviacuteduo agrave condiccedilatildeo de escravo No Elogio de Helena ele declara que o λόγος

eacute um grande e soberano senhor uma espeacutecie de encantador ou de mago que nenhum ser

humano eacute capaz de resistir (El Hel sect 3) Aliaacutes a crenccedila no poder irrestrito da persuasatildeo

era tal entre os sofistas a ponto de Polo de Agrigento (que era disciacutepulo de Goacutergias)

afirmar que os oradores haacutebeis podiam como os tiranos fazer com que condenassem agrave

morte agrave confiscaccedilatildeo ou ao exiacutelio quem lhes desagradasse (Goacuterg 469c)

Entretanto para o Estagirita o objetivo da retoacuterica natildeo se reduz ao simples poder

de persuadir mas fundamentalmente eacute a arte de achar os meios de persuasatildeo que cada

caso comporta tal como acontece em todas as outras artes Para ele natildeo eacute funccedilatildeo da

medicina dar sauacutede ao doente mas avanccedilar o mais possiacutevel na direccedilatildeo da cura uma vez

que se pode cuidar bem dos que jaacute natildeo estatildeo em condiccedilotildees de recuperar a sauacutede (Ret

1355b 13-19) O meacutedico (ἰατρὸς) por exemplo possui menos seguranccedila do que faz pois

ele nada pode realizar para os doentes incuraacuteveis nem mesmo aos demais pacientes pode

prometer a cura (a natildeo ser que se comporte como um charlatatildeo) mas certamente pode

propiciar a eles todas as oportunidades de obtecirc-la De modo semelhante o bom orador

natildeo eacute aquele que promete a vitoacuteria a qualquer custo mas eacute aquele que encontra para a sua

causa todas as possibilidades de obter a vitoacuteria estando cocircnscio de que o seu discurso

possui limites que natildeo podem ser superados53

Nos Toacutepicos Aristoacuteteles natildeo define o orador como aquele que eacute capaz de persuadir

qualquer um sobre qualquer assunto mas sim como aquele que pode sempre ver o que

seraacute persuasivo nas diversas circunstacircncias sem nada omitir (Toacutep 149b 25-28) E

quando o orador possui uma compreensatildeo completa de seu meacutetodo ele estaraacute apto a

descobrir os meios disponiacuteveis para persuadir os seus ouvintes poreacutem ele jamais teraacute o

poder de persuadir a todos Desse modo Aristoacuteteles nega a tese gorgiana da onipotecircncia

do discurso retoacuterico uma vez que o orador natildeo seria conforme aventa Goacutergias o portador

do discurso como ldquoum grande e soberano senhor que com um corpo pequeniacutessimo e

invisibiliacutessimo eacute capaz de operar diviniacutessimas accedilotildeesrdquo (El Hel sect 8)

A perspectiva aristoteacutelica acerca da arte retoacuterica eacute ao mesmo tempo modesta e

realista porquanto rejeita que a retoacuterica possui o poder absoluto para convencer qualquer

53 Platatildeo tambeacutem enfatiza as reais limitaccedilotildees do poder da retoacuterica Agrave proposta de Polemarco de que Soacutecrates e Glauco deveriam se provar mais fortes que o grupo dele ou entatildeo permanecer no Pireu Soacutecrates sugere a alternativa da persuasatildeo No entanto Polemarco declara que a persuasatildeo natildeo teraacute nenhum efeito nos ouvintes que natildeo estatildeo dispostos ao ouvir (Rep 327c)

um sobre qualquer assunto e nega que a palavra persuasiva conforme defendia Goacutergias

eacute um senhor absoluto sobre todas as coisas Tanto Goacutergias como Aristoacuteteles tecem elogios

agrave arte retoacuterica mas enquanto Goacutergias enaltece o poder do discurso sobre os ouvintes o

Estagirita sublinha sua utilidade eacutetico-poliacutetica Por essa razatildeo Aristoacuteteles natildeo a apresenta

como o expediente a partir do qual eacute possiacutevel dominar os ouvintes agrave maneira de um tirano

mas sim como o meio a partir do qual eacute possiacutevel defender a verdade e a justiccedila na cidade

Ambos tambeacutem admitem que pelo fato de ser neutra ela pode ser utilizada

desonestamente o que em nada subtrai o seu valor mas se Goacutergias e Aristoacuteteles falam da

mesma coisa certamente natildeo falam da mesma maneira

Com efeito a arte retoacuterica desenvolvida por Aristoacuteteles se distingue

significativamente dos tratados escritos por seus predecessores pois ao redigirem seus

manuais eles teriam se afastado do que o Estagirita considera o mais importante para a

persuasatildeo ndash a argumentaccedilatildeo atraveacutes do entimema (ἐνθύμημα) e do exemplo

(παράδειγμα) Para ele os que compuseram tratados de retoacuterica (incluindo obviamente

muitos sofistas) ocuparam-se somente de uma parte desta arte posto que soacute os

argumentos retoacutericos satildeo parte essencial dela e tudo o resto seria acessoacuterio Assim sendo

os predecessores de Aristoacuteteles nada diziam dos entimemas que satildeo o corpo da prova

(σῶμα τῆς πίστεως) antes dedicavam-se a maior parte dos seus tratados a questotildees

exteriores ao assunto tais como o ataque verbal o apelo agrave piedade o apelo agrave ira e outras

paixotildees semelhantes a estas que natildeo visam o assunto mas apenas manipular

emocionalmente o juiz (Ret 1354a 16-23)

Ao mesmo tempo em que Aristoacuteteles defendia uma retoacuterica racional com base na

demonstraccedilatildeo teacutecnica do verossiacutemil Goacutergias e seus disciacutepulos teorizavam e praticavam

uma retoacuterica elocutiva e emocional Este tipo de retoacuterica valorizava no discurso natildeo os

argumentos racionais mas o ritmo a harmonia o tom de voz sobretudo os efeitos

emocionais do discurso e a seduccedilatildeo irracional que a palavra habilmente usada exerce

sobre a alma dos ouvintes O discurso retoacuterico que Goacutergias designa por λόγος teria

fundamentalmente a capacidade de suscitar o medo a calma a alegria afastar a dor e ateacute

estimular a compaixatildeo (El Hel sect 8) Mediante o discurso retoacuterico seria possiacutevel ao

orador suscitar o medo repleto de espanto a compaixatildeo que provoca laacutegrimas abundantes

e um sentimento de nostalgia que afeta o espiacuterito dos ouvintes (Ibid sect 9)

Outrossim o sofista Goacutergias desenvolveu para a retoacuterica uma expressatildeo linguiacutestica

eloquente excedendo-se no uso das figuras de linguagem transformando-a numa

composiccedilatildeo erudita e ritmada no niacutevel esteacutetico da poesia O cuidado de Goacutergias com o

estilo foi o que conferiu a ele a fama de haver misturado a prosa com a poesia de tal

modo que o seu estilo chamado de gorgiazein (γοργιαζειν) foi considerado pelos antigos

como sinocircnimo de prosa poeacutetica incluindo o proacuteprio Aristoacuteteles (Ret 1404a 34-36) E a

principal razatildeo pela qual ele optou pela linguagem poeacutetica e natildeo pela linguagem corrente

eacute porque aquela possui mais eficazmente a capacidade de comover os ouvintes

Dimos Spatharas destaca que na concepccedilatildeo retoacuterica de Goacutergias existem dois tipos

de discursos que satildeo aduzidos como manifestaccedilatildeo do poder do λόγος a poesia e o

encantamento A poesia eacute descrita grosso modo como o discurso com meacutetrica e eacute

justamente esta caracteriacutestica que a distingue de todos os outros tipos de discurso Para

ele a expressatildeo poeacutetica de Goacutergias natildeo seria fruto de um mero capricho mas teria sido

desenvolvida para atender a uma crescente necessidade pelo discurso persuasivo Goacutergias

estaria cocircnscio de que fundara uma nova e sofisticada ldquoprosardquo similar agrave habilidade que a

poesia possui de seduzir e de moldar a alma dos ouvintes E as emoccedilotildees suscitadas pela

retoacuterica poeacutetica de Goacutergias seguiria regularmente o padratildeo utilizado no Elogio de Helena

pois ao entrar na alma dos ouvintes o discurso poeacutetico possuiria o poder de suscitar o

medo a compaixatildeo e uma seacuterie de outras emoccedilotildees Ademais os sinais psicoloacutegicos

atraveacutes dos quais a alma expressaria suas emoccedilotildees seriam as laacutegrimas e o temor

manifestado pela audiecircncia Para Spatharas o segundo exemplo do poder exercido pelo

λόγος adviria do domiacutenio do encantamento que sob o ponto de vista do senso comum

significa que as palavras exercem o poder de conduzir algueacutem a agir de uma maneira que

natildeo corresponde agraves suas intenccedilotildees originais Quando o poder de encantamento do λόγος

alcanccedila a opiniatildeo da alma esta seria encantada e uma vez persuadida seria levada a

mudar suas opiniotildees ou seja ela adotaria pontos de vista que anteriormente recusava

Sendo assim ao ser seduzida pelo λόγος a alma estaria alienada em relaccedilatildeo a si mesma

e suas accedilotildees estariam de acordo com o comando proveniente do encantamento

(SPATHARAS 2001 100-101)

Na visatildeo de Aristoacuteteles a funccedilatildeo da arte retoacuterica permanece sendo a persuasatildeo

puacuteblica poreacutem os meios de persuasatildeo natildeo devem ser redutiacuteveis ao apelo emocional e agrave

expressatildeo enunciativa ao inveacutes disso devem caracterizar-se essencialmente por formas

de argumentaccedilatildeo Sendo assim em oposiccedilatildeo a Goacutergias a concepccedilatildeo de Aristoacuteteles

estabelece que a retoacuterica constitui a arte da comunicaccedilatildeo racional e natildeo do puro

encantamento ou da pura sugestatildeo emotiva Aristoacuteteles tambeacutem critica Goacutergias por

vincular agrave retoacuterica a expressatildeo poeacutetica que este teria originalmente inventado (Ret 1404a

30-39)

Os poetas foram os primeiros como seria natural a dar um impulso a este aspecto Efetivamente palavras satildeo imitaccedilotildees e a voz eacute de todos os nossos oacutergatildeos o mais apropriado agrave imitaccedilatildeo Por isso as artes entatildeo estabelecidas foram a rapsoacutedia e a representaccedilatildeo teatral aleacutem de outras mais E uma vez que os poetas embora dizendo coisas fuacuteteis pareciam obter renome graccedilas agrave sua expressatildeo por esta mesma razatildeo foi um tipo de expressatildeo poeacutetica o primeiro a surgir como a de Goacutergias E ainda agora muitas pessoas sem instruccedilatildeo pensam que estes oradores os falam da forma mais bela

Para o Estagirita a expressatildeo proacutepria da poesia distingue-se da expressatildeo que eacute

apropriada ao discurso retoacuterico a qual se caracteriza por empregar a linguagem na sua

forma corrente e usual Aliaacutes seria ridiacuteculo empregar a extravagante expressatildeo poeacutetica

no discurso retoacuterico em detrimento da linguagem corrente e usual cuja principal

caracteriacutestica eacute a σαφής ou seja a clareza (Ibid 1404a 34-48) Desse modo a virtude

suprema da expressatildeo enunciativa (λέξις) a qual diz respeito agrave maneira pela qual o

conteuacutedo do discurso deve ser apresentado ao auditoacuterio eacute a clareza (ἔστω οὖν ἐκεῖνα

τεθεωρημένα καὶ ὡρίσθω λέξεως ἀρετὴ σαφῆ εἶναι) porque se no discurso retoacuterico natildeo

se comunicar algo com nitidez e inteligibilidade natildeo seraacute possiacutevel cumprir a sua funccedilatildeo

proacutepria qual seja provocar a adesatildeo dos ouvintes agraves teses que se lhes apresentam ao

consentimento atraveacutes de argumentos racionais (Ibid 1404b 1-5) Posto que a funccedilatildeo

proacutepria da linguagem consiste em remeter adequadamente para aquilo que significa a

clareza seraacute uma condiccedilatildeo imposta ao discurso retoacuterico O refinamento da expressatildeo

poeacutetica comum a exemplo das metaacuteforas distantes de Goacutergias (Ibid 1406b 8-16) aleacutem

de ser inadequado na arte retoacuterica por fazer o discurso parecer artificial e teacutecnico tende

a suprimir deste a clareza Portanto o objetivo maior do orador eacute esclarecer os ouvintes

acerca da investigaccedilatildeo a que se procede (Ibid 1357a 24) e instruiacute-los sobre o assunto

em discussatildeo a fim de que possam elaborar o melhor julgamento

Tendo em vista a importacircncia dada por Aristoacuteteles ao uso da linguagem na sua

forma corrente e usual eacute pertinente a anaacutelise de Maria F S Francisco sobre este assunto

Observamos que a expressatildeo poeacutetica de Goacutergias teria sido desenvolvida para atender a

uma crescente necessidade pelo discurso persuasivo mas conforme a interpretaccedilatildeo de

Francisco o Estagirita acharia pouco persuasivo o discurso que eacute veiculado conforme a

expressatildeo poeacutetica Ela destaca que na retoacuterica de Aristoacuteteles a limitaccedilatildeo na elevaccedilatildeo do

vocabulaacuterio deve ser levada muito a seacuterio pelo orador do contraacuterio o seu discurso perderaacute

o poder de persuasatildeo e natildeo obteraacute a adesatildeo dos ouvintes em relaccedilatildeo agrave opiniatildeo defendida

A exigecircncia por parte de Aristoacuteteles da escolha de vocabulaacuterio iria ao encontro de uma

expectativa do ouvinte em relaccedilatildeo ao orador o ouvinte espera que assuntos semelhantes

aos da vida comum sejam tratados e do ponto de vista lexical da mesma forma como se

faz na linguagem da vida cotidiana ele ainda espera que a fala do orador seja apropriada

ou verossiacutemil como condiccedilatildeo para lhe parecerem persuasivos seus argumentos Sendo

assim a despeito das opiniotildees sensatas defendidas pelo orador se ele natildeo as apresentar

com o vocabulaacuterio adequado proacuteximo da linguagem comum seu discurso pareceraacute pouco

convincente e com pouca probabilidade de ganhar a adesatildeo do auditoacuterio (FRANCISCO

1999 30)

Na retoacuterica de Aristoacuteteles o perfil proacuteprio da expressatildeo enunciativa consiste no fato

de ser delineado por referecircncia agrave poesia e ao discurso ordinaacuterio em relaccedilatildeo a cada um

dos quais verifica-se aproximaccedilotildees e distanciamentos No decorrer de sua exposiccedilatildeo

sobre a λέξις Aristoacuteteles faz inuacutemeras alusotildees agrave poesia e a linguagem do homem comum

que adquirem desse modo o papel de balizas situadas em extremos opostos a meia

distacircncia das quais se localiza o campo proacuteprio da expressatildeo retoacuterica Conforme

examinamos um dos princiacutepios fundamentais da eacutetica aristoteacutelica eacute o μεσοτeacuteς ou seja

ou o meio-termo ou a justa medida por esse motivo a accedilatildeo correta do ponto de vista eacutetico

deve sempre evitar os extremos tanto o excesso quanto a falta Todavia o mesmo

princiacutepio se aplica agrave arte retoacuterica pois tendo em vista a expressatildeo enunciativa o orador

deve perseguir a justa medida entre dois extremos viciosos natildeo deve utilizar uma

linguagem demasiadamente rasteira ou trivial tampouco uma linguagem acima do seu

valor mas deve visar aquilo que eacute adequado ou seja uma linguagem que veicule nomes

e verbos que satildeo ldquoproacutepriosrdquo Os nomes e os verbos proacuteprios que produzem clareza ao

discurso satildeo aqueles que designam cada objeto em linguagem comum por exemplo num

discurso dirigido a um puacuteblico comum seria mais adequado utilizar o verbo ldquocomprarrdquo

em vez de ldquomercarrdquo ou a palavra ldquoroupardquo em vez de ldquoindumentaacuteriardquo O discurso poeacutetico

por sua vez natildeo produz uma expressatildeo corrente mas ornamentada Eacute manifesto que a

expressatildeo poeacutetica natildeo eacute rasteira ou trivial mas estaacute longe de ser apropriada para um

discurso de prosa (Ret 1404b 5-12) Assim aqueles que se expressam poeticamente de

forma inapropriada introduzem no discurso retoacuterico o ridiacuteculo e o friacutevolo e em virtude

da esterilidade dessa forma de expressatildeo erram por falta de clareza Todavia conveacutem

sublinhar que nem todos os recursos linguiacutesticos que caracterizam a expressatildeo poeacutetica

satildeo rejeitados por Aristoacuteteles

Dos nomes e dos verbos de que o discurso eacute composto devem utilizar-se

pouquiacutessimas vezes e em situaccedilotildees muito especiacuteficas as palavras raras ou seja os

termos inusitados e obsoletos de difiacutecil compreensatildeo para o ouvinte comum Outrossim

os termos compostos comumente utilizados por Goacutergias como ldquoengenhosos-no-

mendigarrdquo ou ldquojurando-em-falso falsordquo e ldquojurando-com-sinceridaderdquo (Ibid 1405b 50-

1406a 1) Aristoacuteteles ainda recomenda que devem ser evitados no discurso retoacuterico por

serem demasiadamente poeacuteticos a utilizaccedilatildeo de glosas tal como a de Liacutecofron que

apelida Xerxes de ldquohomem-monstrordquo (Ibid 1406a 8-10) Da mesma forma os epiacutetetos

extensos inoportunos ou muito repetidos por exemplo em vez de dizer ldquocorrendordquo diz-

se ldquocorrendo com o impulso da almardquo ou em vez de dizer ldquoinspiraccedilatildeo das Musasrdquo diz-

se ldquorecebendo da Natureza a inspiraccedilatildeo das Musasrdquo (Ibid 1406a 30-32) Deve-se

tambeacutem evitar as metaacuteforas quando natildeo satildeo claras por derivarem de algo muito afastado

tal como praticava Goacutergias ao formular ldquosemeaste vergonhosamente improficuamente

ceifasterdquo e coisas deste jaez (Ibid 1406b 13-15)

Eacute manifesto que o sofista Goacutergias eacute censurado por Aristoacuteteles pela ecircnfase de sua

expressatildeo poeacutetica que carecia de simplicidade e clareza a qual natildeo objetivava provar

teses de maneira loacutegica e direta mas aspirava apenas os efeitos pateacuteticos do discurso e a

seduccedilatildeo irracional que a palavra habilmente manipulada eacute capaz de exercer sobre a

audiecircncia Todavia natildeo somente Goacutergias mas os sofistas em geral procuravam persuadir

sua audiecircncia apelando para os desejos puramente irracionais (άλογοι επιθυμίαι) da alma

humana que para o Estagirita satildeo todos aqueles que natildeo procedem de um ato preacutevio da

compreensatildeo Satildeo desse tipo todos os que se dizem ser naturais como os que procedem

do corpo (σώματος ὑπάρχουσαι) Dentre os desejos naturais destacam-se o desejo por

alimento a sede e a fome o desejo relativo a cada espeacutecie de alimento os desejos ligados

ao gosto e aos prazeres sexuais e em geral os desejos relativos ao tato ao olfato ao

ouvido e agrave vista Entretanto em relaccedilatildeo aos desejos racionais (μετὰ λόγου) os quais

procedem de um ato preacutevio do entendimento o Estagirita recomeda ao orador priorizaacute-

los em sua argumentaccedilatildeo visto que existem muitas coisas que as pessoas desejam adquirir

simplesmente porque ouviram falar delas e foram racionalmente persuadidas de que satildeo

agradaacuteveis (Ibid 1370a 24-34) Para tanto o bom orador precisa compreender e aplicar

a estrutura loacutegica do argumento retoacuterico constituiacuteda pelo entimema e pelo exemplo que

satildeo os dispositivos fundamentais para o exerciacutecio da arte retoacuterica

De acordo com a anaacutelise de E M Cope a argumentaccedilatildeo atraveacutes do entimema (e

do exemplo) designa o essencial no discurso retoacuterico e tudo o mais pode ser considerado

acessoacuterio porquanto todos os tipos de provas indiretas ou argumentos fora do assunto

seriam secundaacuterios como as roupas ou os ornamentos que cobrem um corpo Isto posto

o entimema na arte retoacuterica de Aristoacuteteles seria equivalente ao ldquocorpordquo que eacute o meio

artiacutestico de provar certas teses de maneira loacutegica e direta Para ele a expressatildeo aristoteacutelica

σῶμα τῆς πίστεως que traduzida quer dizer o ldquocorpo da provardquo significaria a substacircncia

ou a essecircncia da arte em detrimento a tudo aquilo que eacute considerado acessoacuterio no discurso

retoacuterico54 Desse modo a arte retoacuterica para Aristoacuteteles consistiria fundamentalmente no

procedimento de provocar ou aumentar a adesatildeo dos ouvintes agraves teses que se lhes

apresentam ao assentimento atraveacutes de argumentos racionais (λόγος) enquanto que o

caraacuteter do orador (ἦθος) o apelo agraves emoccedilotildees (πάθος) e a expressatildeo enunciativa (λέξις)

deveriam ser empregados somente como recursos auxiliares

Aristoacuteteles explicita que aqueles que anteriormente compuseram tratados de

retoacuterica ocuparam-se de uma pequena parte desta arte haja vista que somente os

argumentos retoacutericos fazem parte dela e tudo o mais seriam considerados acessoacuterios Ele

prossegue afirmando que seus predecessores nada escreveram acerca dos entimemas que

significa o corpo da prova em vez disso dedicaram-se amiuacutede a questotildees extriacutensecas ao

assunto (Ibid 1354a 16-21) E ao censuraacute-los por se concentrarem principalmente no

estiacutemulo de uma resposta emocional Aristoacuteteles estaacute declarando que eles apenas

escreveram sobre uma pequena parte da arte retoacuterica o que natildeo implica obviamente na

sua total desconsideraccedilatildeo Com efeito em exceccedilatildeo do entimema e do exemplo tudo o

mais parece ser acessoacuterio (προσθήκη) dentre as provas artiacutesticas (πίστεις ἔντεχνοι) pois

embora despertar as emoccedilotildees possa ser eficiente para colocar a audiecircncia ao lado do

orador e a expressatildeo enunciativa uacutetil e necessaacuteria em virtude do baixo niacutevel intelectual

do auditoacuterio o seu estudo natildeo seria o elemento mais importante da retoacuterica de Aristoacuteteles

nem seria rigorosamente um modo de persuasatildeo porque os modos de persuasatildeo satildeo

formas de argumentaccedilatildeo Pode-se concluir entatildeo que no sistema retoacuterico de Aristoacuteteles

somente a demonstraccedilatildeo entimemaacutetica designa a substacircncia das provas artiacutesticas

Eacute manifesto que no meacutetodo retoacuterico desenvolvido por Aristoacuteteles o entimema

possui a prioridade mais alta enquanto que os elementos exteriores agrave demonstraccedilatildeo satildeo

54 Escreve E M Cope a este respeito (COPE 1867 160) ldquoOf enthymeme the form of syllogism which rhetoric employs in drawing its conclusions which is in fact lsquothe bodyrsquo the solid substantial matter of proof ndash to which all other kinds of indirect proof such as the influence of character or appeals to the feelings interests passions of judge or audience are subsidiary and subordinate standing to the other in the relation of mere adjuncts or external appendageshelliplike dress or ornaments to the personrdquo

considerados supeacuterfluos E dado que quase todos os assuntos concernentes a arte retoacuterica

relacionam-se com a opiniatildeo puacuteblica o orador precisa levar em conta os elementos

exteriores ao conteuacutedo do discurso natildeo porque este procedimento eacute justo mas porque

em termos pragmaacuteticos eacute algo necessaacuterio Ele ainda assegura que aquilo que deve ser

almejado num discurso (judicial) eacute a demonstraccedilatildeo do que eacute justo mais do que natildeo

desagradar ou agradar os ouvintes O correto eacute competir com os fatos por si soacute de forma

que os demais elementos exteriores agrave demonstraccedilatildeo poderiam ser dispensados Contudo

eles satildeo relevantes no discurso retoacuterico em virtude do baixo niacutevel intelectual do auditoacuterio

sem os quais natildeo seria possiacutevel persuadi-lo acerca do que eacute justo e verdadeiro (Ibid

1404a 1-10)

Ao assegurar que se conquista a persuasatildeo retoacuterica atraveacutes de trecircs meios ndash λόγος

ἦθος e πάθος ndash o Estagirita estabelece a disposiccedilatildeo das provas artiacutesticas em ordem de

importacircncia (Ibid 1356a 27-32) a comeccedilar pela demonstraccedilatildeo racional ligada ao

entimema e ao exemplo em relaccedilatildeo a qual se pode servir quem for capaz de formar

silogismos (συλλογίσασθαι δυναμένου) que eacute o mesmo que raciocinar logicamente E

visto que Aristoacuteteles afirma categoricamente que a demonstraccedilatildeo entimemaacutetica eacute o corpo

das provas artiacutesticas entatildeo esta prova possui preeminecircncia sobre as demais Logo abaixo

da prova por demonstraccedilatildeo mediante o entimema e o exemplo reside a prova ligada ao

caraacuteter do orador cuja finalidade consiste em teorizar sobre os caracteres e as virtudes

(θεωρῆσαι περὶ τὰ ἤθη καὶ περὶ τὰς ἀρετὰς) E sob esta repousa a que estaacute ligada ao apelo

emocional que se ocupa das paixotildees o que cada uma eacute as suas qualidades que origem

tecircm e como se produzem (περὶ τὰ πάθη τί τε ἕκαστόν ἐστιν τῶν παθῶν καὶ ποῖόν τι καὶ

ἐκ τίνων ἐγγίνεται καὶ πῶς)

Aristoacuteteles assegura que o meacutetodo artiacutestico (ἔντεχνος μέθοδος) eacute o que se refere agraves

provas por persuasatildeo (πίστεις) e a prova por persuasatildeo eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo

(ἀπόδειξίς) pois os ouvintes satildeo mais eficazmente persuadidos quando entendem que

algo foi demonstrado (ἀποδεδεῖχθαι) Por isso o que Aristoacuteteles condena nos seus

predecessores consiste na ecircnfase dada aos discursos fora do assunto em questatildeo em

detrimento daquilo que eacute essencial na arte retoacuterica isto eacute a demonstraccedilatildeo da verdade ou

o que parece ser a verdade Dessarte os meios de persuasatildeo exteriores ao assunto se

configurariam num erro e mereceria sua reprovaccedilatildeo caso fossem empregados como o

principal meio de obter a persuasatildeo dos ouvintes (Ibid 1355a 5-1419-28) Aleacutem disso

Aristoacuteteles assegura que natildeo resta a menor duacutevida de que mateacuterias extriacutensecas ao assunto

satildeo descritas como artes por aqueles que definem outras coisas por exemplo o que deve

conter o proecircmio ou a narraccedilatildeo e cada uma das partes do discurso Ao ocuparem-se

dessas mateacuterias o escritores de manuais de retoacuterica natildeo se preocupavam senatildeo em como

poderiam criar no juiz uma certa disposiccedilatildeo emocional mas acerca das provas

propriamente artiacutesticas ou seja sobre aquilo que efetivamente torna o leitor haacutebil no uso

do entimema (ἐνθυμηματικός) eles natildeo produziram coisa alguma (Ibid 1354b 17)

Outra razatildeo que levou Aristoacuteteles a lanccedilar sua criacutetica contra seus predecessores foi

o fato deles privilegiarem um dos gecircneros da arte retoacuterica a saber o judicial (δικανικός)

e negligenciarem o gecircnero mais puro e nobre ou seja o deliberativo (συμβουλευτικός)

Embora o mesmo meacutetodo retoacuterico convenha tanto ao gecircnero judicial como ao

deliberativo e apesar da retoacuterica deliberativa ser mais nobre (καλλίονος) e mais uacutetil agrave

comunidade poliacutetica (πολιτικωτέρας) que a relativa a contratos os autores criticados por

Aristoacuteteles a desconsideravam e se esforccedilavam por elaborar a arte do discurso judicial

Na verdade isto ocorria porque eacute menos uacutetil dizer algo fora do assunto nos discursos

deliberativos e porque a retoacuterica poliacutetica eacute menos nociva que a judicial por ser de

interesse mais geral (κοινότερον) Outrossim os oradores criticados por Aristoacuteteles

primavam pelo gecircnero judicial porque nas cortes legais havia uma possibilidade maior de

se utilizar eficazmente de argumentos falaciosos a fim de influenciar a decisatildeo dos juiacutezes

No gecircnero deliberativo o ouvinte julga sobre assuntos que pessoalmente o afetam por

essa razatildeo aquele que aconselha soacute precisa demonstrar com exatidatildeo as suas teses Mas

nos discursos judiciais isso natildeo basta em vez disso existe toda a vantagem de cativar o

ouvinte pois os juiacutezes julgam sobre questotildees alheias e pelo fato de buscarem o seu

interesse e escutando parcialmente tendem satisfazer a vontade dos litigantes (Ibid

1354b 31-46)

Eacute manifesto pois que os oradores criticados por Aristoacuteteles (Ibid 1354a 19-23)

nada diziam dos entimemas que representam o corpo das provas artiacutesticas em vez disso

dedicavam-se a maior parte dos seus tratados a questotildees exteriores ao assunto (περὶ δὲ

τῶν ἔξω τοῦ πράγματος τὰ πλεῖστα πραγματεύονται) Estas dizem respeito agrave enfase dada

pelos oradores ao apelo emocional em detrimento da demonstraccedilatildeo racional E no

discurso retoacuterico o apelo agraves emoccedilotildees manifestava-se atraveacutes do ataque verbal calunioso

do apelo agrave piedade do apelo agrave ira e demais emoccedilotildees da alma semelhantes a estas que natildeo

visam o assunto mas influenciar afetivamente o juiz (διαβολὴ γὰρ καὶ ἔλεος καὶ ὀργὴ καὶ

τὰ τοιαῦτα πάθη τῆς ψυχῆς οὐ περὶ τοῦ πράγματός ἐστιν ἀλλὰ πρὸς τὸν δικαστήν)

A palavra grega διαβολὴ55 empregada por Aristoacuteteles na passagem acima a qual

foi traduzida pela expressatildeo ldquoataque verbalrdquo consiste em substituir a argumentaccedilatildeo

entimemaacutetica por um apelo simplesmente afetivo em vez de revelar que algo aconteceu

ou natildeo ou que as proposiccedilotildees do adversaacuterio natildeo satildeo logicamente consistentes o orador

procura atacar a sua personalidade o seu caraacuteter etc O ataque verbal caracteriza-se entatildeo

por introduzir na argumentaccedilatildeo retoacuterica elementos que natildeo satildeo relevantes na discussatildeo

como as consideraccedilotildees pessoais sobre o adversaacuterio Tal estratagema retoacuterico (tambeacutem

conhecido por argumentum ad hominem) era comumente empregado quando natildeo se podia

ou natildeo se queria oferecer razotildees sobre uma determinada questatildeo e ao inveacutes de atacar o

argumento do adversaacuterio atraveacutes de entimemas voltava-se contra a sua pessoa Pode-se

dizer que a artimanha do ataque verbal contra o adversaacuterio eacute o equivalente negativo da

prova psicoloacutegica referente ao caraacuteter do orador pois se esta visa conferir credibilidade

ao discurso do orador estribando-se no seu caraacuteter moral aquele procura desconstruir a

credibilidade do discurso mediante a depreciaccedilatildeo do caraacuteter daquele que o veicula

Aristoacuteteles ainda critica os oradores do seu tempo pelo emprego exagerado do apelo

agrave piedade (ἔλεος) Este estratagema retoacuterico (que tambeacutem eacute conhecido por argumentum

ad misericordiam) ocorre quando se apela aos sentimentos de compaixatildeo dos ouvintes

em detrimento dos fatos Em contextos carregados de emotividade o apelo agrave piedade pode

ser muito eficaz por isso nos tribunais de Atenas era utilizado com muita regularidade

Todavia o enfoque do apelo agrave piedade natildeo era a demonstraccedilatildeo de que determinado ato

foi justo ou natildeo ou se aconteceu ou natildeo mas unicamente o empenho em influir no acircnimo

da audiecircncia visando conduzi-la a emitir juiacutezos favoraacuteveis agrave causa do orador Por

exemplo diante de um tribunal o advogado de defesa negligenciando o meacuterito da

questatildeo procuraria enfatizar que seu cliente estaacute doente que eacute uma pobre viuacuteva ou coisas

deste jaez com o uacutenico objetivo de cegar os juiacutezes e manipular sua decisatildeo Disso conclui-

se que o grande equiacutevoco apontado por Aristoacuteteles na praacutetica retoacuterica de seus

predecessores consistiu no fato de confinarem-se no modo indireto de provar seus casos

bem como na negligecircncia do correto modo de apelar para as emoccedilotildees Por isso o desprezo

manifestado por Aristoacuteteles contra a retoacuterica afetiva natildeo possui um sentido absoluto mas

aplica-se apenas em certo sentido ou sob certo ponto de vista

55 O dicionaacuterio de Henry Georg Liddell e Robert Scott (A Greek-english Lexicon) indica os seguintes significados da palavra διαβολὴ falsa acusaccedilatildeo (false accusation) difamaccedilatildeo (slander) caluacutenia (calumny) e criar preconceito contra um adversaacuterio (create prejudice against an antagonist)

W W Fortenbaugh enfatiza que a anaacutelise de Aristoacuteteles (no segundo livro da

Retoacuterica) tornou clara a relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a argumentaccedilatildeo racional pois ao

interpretar o pensamento ou a crenccedila como a causa eficiente daquelas ele teria mostrado

que a resposta emocional constitui um comportamento inteligente e aberto agrave persuasatildeo

racional Aristoacuteteles teria se concentrado no lado cognitivo da resposta emocional e

deixado claro que qualquer emoccedilatildeo pode ser alterada por argumentos de modo que natildeo

eacute mais necessaacuterio confinar o apelo emocional ao proecircmio e ao epiacutelogo porque as emoccedilotildees

podem e devem ser suscitadas no discurso (como um todo) mediante argumentos

racionais O Estagirita entatildeo lanccedilaria matildeo da persuasatildeo pautada nos ouvintes e somada

a esta atitude introduziria a persuasatildeo atraveacutes da demonstraccedilatildeo entimemaacutetica numa

espeacutecie de coordenaccedilatildeo (FORTENBAUGH 200817-18)

No meacutetodo retoacuterico desenvolvido por Aristoacuteteles tal coordenaccedilatildeo faz com que o

apelo emocional seja empregado no discurso de maneira muito diferente do modo como

era empregado por muitos oradores incluindo Goacutergias e seus seguidores Pois enquanto

eles empregavam o apelo emocional de maneira exagerada e sem qualquer compromisso

com o caso em questatildeo o meacutetodo do Estagirita conecta o apelo agraves emoccedilotildees com a

argumentaccedilatildeo entimemaacutetica na medida em que enfatiza o emprego racional de cada

emoccedilatildeo particular em termos definicionais Ele natildeo nega que as emoccedilotildees podem mover

as pessoas em direccedilatildeo de um determinado juiacutezo ou mesmo alterar o seu rigor mas as

emoccedilotildees devem ser suscitadas pelo orador atraveacutes dos seus argumentos e natildeo mediante

assuntos fora de questatildeo Sendo assim o orador que pretende apelar para as emoccedilotildees dos

ouvintes de forma legiacutetima deve fazer por meio de argumentos racionais segundo os

princiacutepios que regem a demonstraccedilatildeo entimemaacutetica56 Por exemplo para suscitar o

sentimento de piedade ndash pesar em face de um mal destrutivo e penoso que acomete algueacutem

que natildeo merece ndash num determinado auditoacuterio e conduzi-lo a fazer doaccedilotildees financeiras a

uma instituiccedilatildeo de caridade que presta assistecircncia a idosos natildeo seria adequado ao orador

exibir idosos caqueacuteticos em laacutegrimas ou maltrapilhos a fim de comover os ouvintes

56 E M Cope corrobora esta interpretaccedilatildeo ao sustentar que haveria na retoacuterica de Aristoacuteteles duas maneiras distintas de suscitar as emoccedilotildees dos ouvintes A primeira seria o apelo emocional de forma cientiacutefica e a segunda o apelo emocional de forma natildeo-cientiacutefica No primeiro caso o apelo emocional eacute feito por meio do proacuteprio discurso ao passo que no segundo o apelo ocorre pela introduccedilatildeo de consideraccedilotildees fora do assunto em questatildeo (COPE 1867 4-5) ldquoNow this may be in two ways scientifically through the medium of the speech itself which is indeed one of modes of proof ndash of which there are three ndash and therefore forms part of the art of rhetoric in its strictest sense And unscientifically by introduction of considerations ab extra or beside the real point arguments ad hominem and ad captandum such as direct appeals to the feelings impassioned and exaggerated language or even as was often done the actual production of the widow and orphans or friends of a deceased person to excite and blind the judges to the real merits of the caserdquo

embora isto possa ser feito como um recurso auxiliar mas argumentar (com base nas

noccedilotildees sobre a piedade) que os idosos poderiam ser os pais dos ouvintes ou ainda que

estes poderatildeo estar no lugar daqueles caso sejam abandonados por seus filhos etc Tais

argumentos teriam efetivamente o objetivo de influenciar as emoccedilotildees dos ouvintes e por

conseguinte obter um juiacutezo favoraacutevel ao conteuacutedo do discurso poreacutem natildeo apelariam

diretamente para assuntos fora de questatildeo

Aristoacuteteles apresenta entatildeo aos que pretendem ser oradores a maneira que

considera eficaz para estimular nos ouvintes as diversas emoccedilotildees Ele defende o uso desse

expediente com base na noccedilatildeo de que o orador deve transformar a emoccedilatildeo experimentada

num recurso uacutetil para induzir os juiacutezos dos ouvintes em direccedilatildeo agravequilo que eacute conveniente

Pois em conformidade com a funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da arte retoacuterica que consiste em fazer

a justiccedila e a verdade prevalecer sobre seus contraacuterios o orador natildeo deve hesitar em apelar

para as emoccedilotildees de sua audiecircncia O modo de persuasatildeo ligado ao apelo emocional natildeo

eacute descartado simplesmente por Aristoacuteteles mas pode ser empregado no discurso retoacuterico

como acessoacuterio cuja funccedilatildeo eacute tornar mais eficiente a exposiccedilatildeo dos entimemas Sendo

assim natildeo foi o mero emprego da retoacuterica afetiva que Aristoacuteteles censurou em seus

predecessores sobretudo em relaccedilatildeo a Goacutergias haja vista que ele dedicou grande parte

do segundo livro da Retoacuterica a esse tema mas o seu emprego exagerado conjugado com

o desprezo daquilo que eacute mais relevante na arte retoacuterica ndash a demonstraccedilatildeo loacutegica na forma

do entimema e do exemplo

73 A refutaccedilatildeo da retoacuterica protagoacuterica

Aleacutem do desprezo agrave demonstraccedilatildeo loacutegica expresso tanto nos manuais de retoacuterica

como na praacutetica discursiva alguns predecessores de Aristoacuteteles foram tenazmente

censurados por negarem o fundamento de todo e qualquer discurso racional Na

Metafiacutesica o Estagirita enuncia o primeiro princiacutepio da ciecircncia do ser enquanto ser e das

ciecircncias em geral transmitido agrave posteridade sob o nome de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo

Este princiacutepio que na verdade eacute o mais firme e seguro de todos (βέβαιος) tambeacutem eacute o

mais conhecido natildeo dependendo de coisa alguma para subsistir Aristoacuteteles explicita o

princiacutepio em apreccedilo nos seguintes termos (Met 1005b 18-30)

Depois do que foi dito devemos definir esse princiacutepio Eacute impossiacutevel

que a mesma coisa ao mesmo tempo pertenccedila e natildeo pertenccedila a uma mesma coisa segundo o mesmo aspecto (e acrescentem-se tambeacutem todas as outras determinaccedilotildees que se possam acrescentar para evitar dificuldades de iacutendole dialeacutetica) Este eacute o mais seguro de todos os princiacutepios de fato ele possui as caracteriacutesticas acima indicadas Efetivamente eacute impossiacutevel a quem quer que seja acreditar que uma mesma coisa seja e natildeo seja como segundo alguns teria dito Heraacuteclito Com efeito natildeo eacute preciso admitir como verdade tudo o que ele diz E se natildeo eacute possiacutevel que os contraacuterios subsistam juntos no mesmo sujeito (e acrescente-se a esta premissa as costumeiras explicaccedilotildees) e se uma opiniatildeo que estaacute em contradiccedilatildeo com outra eacute o contraacuterio dela eacute evidentemente impossiacutevel que ao mesmo tempo a mesma pessoa admita verdadeiramente que a mesma coisa exista e natildeo exista

Natildeo obstante Aristoacuteteles assegura que existem alguns indiviacuteduos que recusam o

princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo os quais sustentam o disparate de que eacute possiacutevel que a

mesma coisa seja e natildeo seja Os indiviacuteduos mencionados por Aristoacuteteles certamente que

satildeo os sofistas mas ele tambeacutem declara que existem alguns filoacutesofos naturalistas que

tambeacutem negam o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo (Ibid 1006a 1-5) Em defesa do princiacutepio

de natildeo-contradiccedilatildeo e por conseguinte em defesa da proacutepria verdade Aristoacuteteles ataca os

sofistas mas o seu combate ocorreraacute dentro do proacuteprio campo destes qual seja o do

discurso Nesse sentido ao refutar os que sustentam a legitimidade de afirmaccedilotildees

contraditoacuterias como a que afirma que ldquoa mesma coisa ao mesmo tempo pertenccedila e natildeo

pertenccedila a uma mesma coisa segundo o mesmo aspectordquo ele os alinha em dois grupos

distintos ndash uns assim pensam por ignoracircncia e outros por convicccedilatildeo Aos primeiros ele

declara que natildeo se deve combater sua maneira de falar mas conveacutem dirigir sua

inteligecircncia ao passo que em relaccedilatildeo aos segundos conveacutem combater pela refutaccedilatildeo do

seu discurso (Ibid 1009a 15-20)

Todavia natildeo se deve discutir com todos do mesmo modo alguns precisam ser persuadidos outros devem ser forccedilados De fato os que escolheram este modo de ver por causa das dificuldades encontradas tecircm uma ignoracircncia facilmente sanaacutevel Com efeito na discussatildeo com estes natildeo nos defrontamos com discursos vazios mas com verdadeiros raciociacutenios Ao contraacuterio os que discorrerm exclusivamente por amor ao discurso soacute podem ser corrigidos com a refutaccedilatildeo do seu discurso tomando-o tal como eacute constituiacutedo soacute de nomes e de palavras

Dentre os sofistas que satildeo o alvo principal do ataque de Aristoacuteteles destaca-se

Protaacutegoras de Abdera com quem o Estagirita procura natildeo somente dialogar mas tambeacutem

refutar Na verdade a ignoracircncia (ἀπαιδευσία) de Protaacutegoras a respeito dos rudimentos

da loacutegica (que nasceria da ausecircncia de um conhecimento preliminar dos Analiacuteticos)

obriga Aristoacuteteles ldquodemonstrarrdquo o princiacutepio que por si soacute eacute indemonstraacutevel porque de

um lado eacute formalmente primeiro e de outro em razatildeo de implicar na possibilidade de

todas as demonstraccedilotildees (Ibid 1005b 1-5)

Na perspectiva de Aristoacuteteles pode-se demonstrar por meio da refutaccedilatildeo (ἀποδεῖξαι

ἐλεγκτικῶς) a impossibilidade de que o mesmo seja e natildeo seja desde que o adversaacuterio

diga alguma coisa Se porventura ele nada falar torna-se ridiacuteculo procurar dizer algo a

algueacutem que natildeo possui nada a dizer e na medida em que natildeo tem nada a dizer tal

indiviacuteduo seria semelhante a uma planta (ὅμοιος γὰρ φυτῷ) Todavia demonstrar algo e

demonstrar por refutaccedilatildeo (ἔλεγχος) satildeo coisas bem diferentes se algueacutem pretende

demonstrar o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo cairia inevitavelmente numa petitio principii

ndash postular o que se quer provar ndash mas se a causa da demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) fosse a

afirmaccedilatildeo de outro entatildeo haveria uma refutaccedilatildeo e natildeo propriamente uma demonstraccedilatildeo

Nesse sentido o adversaacuterio do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo eacute instigado a fazer um

desempenho epistecircmico miacutenimo ndash significar algo para si e para outro ndash e entatildeo eacute ensinado

sobre o fato de que com sua simples atitude ele jaacute pressupotildee o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo A demonstraccedilatildeo torna-se refutaccedilatildeo (ἔλεγχος) ao evidenciar que ao negar o

princiacutepio o proacuteprio adversaacuterio o supocircs ao comunicar algo pois a demonstraccedilatildeo por

refutaccedilatildeo deduz o princiacutepio de sua proacutepria negaccedilatildeo Aristoacuteteles identificaria nessa atitude

uma petitio principii pois quem afirma qualquer estado de coisas jaacute postula o princiacutepio

de natildeo-contradiccedilatildeo como verdadeiro Sendo assim o ponto de partida em todos os casos

desse gecircnero consiste simplesmente em exigir que o adversaacuterio signifique algo tanto para

si mesmo quanto para seu interlocutor (ἀλλὰ σημαίνειν γέ τι καὶ αὑτῷ καὶ ἄλλῳ) E se

porventura algueacutem aceita significar qualquer coisa que seja tanto para si quanto para

outro entatildeo haveraacute demonstraccedilatildeo por refutaccedilatildeo (Ibid 1006a 1-30)

A estrateacutegia de Aristoacuteteles consiste em substituir a demonstraccedilatildeo do princiacutepio em

apreccedilo que por sua natureza eacute impossiacutevel por outro tipo de demonstraccedilatildeo que lanccedila toda

a responsabilidade sobre o adversaacuterio A condiccedilatildeo de significar algo para si e para outro

constitui o ponto inicial da demonstraccedilatildeo por refutaccedilatildeo pois se aquele que nega o

princiacutepio satisfaz a condiccedilatildeo ele assume imediatamente a total responsabilidade

permitindo a seu interlocutor fugir do ocircnus de pressupor justamente o que estaacute em

questatildeo O adversaacuterio do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo ao cumprir a condiccedilatildeo de

significar algo para si e para outro deve confirmar involuntariamente seu compromisso

com o mesmo princiacutepio Tal empenho ocorre pela mera exigecircncia de falar sugerida ao

adversaacuterio ou ele se cala renunciando o seu caraacuteter especiacutefico de ser humano que eacute um

ser dotado de palavra ou entatildeo ele fala ou mesmo significa e por essa razatildeo renuncia agrave

possibilidade de negar o princiacutepio Sendo assim caso o adversaacuterio comprometa-se em

significar algo para si e para outro uma refutaccedilatildeo fundamental ocorre no mesmo

momento em que ele o faz considerando-se que certa porccedilatildeo delimitaacutevel da realidade eacute

o que se quer comunicar e natildeo uma outra

Consoante a anaacutelise de Enrico Berti se aquele que nega o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo diz uma uacutenica palavra e admite que ela tenha um uacutenico significado neste

exato momento jaacute haveraacute alguma coisa de definido de modo que ele significaraacute aquela

coisa e natildeo outra admitindo com isso que aquela coisa natildeo eacute outra Ele admitiraacute a

oposiccedilatildeo entre ser e natildeo ser certa coisa expressa pela afirmaccedilatildeo e negaccedilatildeo em que

consiste o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Assim no momento mesmo em que se chega a

defender sua tese quer dizer a negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo quem contradiz

natildeo nega mas o admite ou seja sustenta sua tese destruindo-a porque admitir o princiacutepio

equivale a destruir sua negaccedilatildeo Eacute manifesto pois que neste procedimento ocorre uma

peticcedilatildeo de princiacutepio mas nela cai apenas quem sustenta a tese isto eacute quem nega o

princiacutepio o qual por conseguinte se pode considerar refutado (BERTI 1998 97-98)

Em conformidade com a doutrina protagoacuterica do homem-medida se uma coisa

parece bela a um e feia a outro fria a um quente a outro grande a um pequena a outro

entatildeo inevitavelmente seraacute as duas coisas ao mesmo tempo Natildeo existiria mais qualquer

objetividade nas coisas cada indiviacuteduo teria sua proacutepria noccedilatildeo de verdade e todos os

pontos de vista seriam igualmente verdadeiros No entanto Aristoacuteteles sustenta que se a

respeito do mesmo sujeito satildeo verdadeiras ao mesmo tempo todas as afirmaccedilotildees

contraditoacuterias eacute manifesto que todas as coisas se reduziratildeo a uma soacute (ἔτι εἰ ἀληθεῖς αἱ

ἀντιφάσεις ἅμα κατὰ τοῦ αὐτοῦ πᾶσαι δῆλον ὡς) E na hipoacutetese de que determinado

predicado pode ser tanto negado quanto afirmado de todas as coisas conforme defende

Protaacutegoras e seus seguidores entatildeo seratildeo a mesma coisa um ldquotrirremerdquo (τριήρης) uma

ldquoparederdquo (τοῖχος) e um ldquohomemrdquo (ἄνθρωπος) consequecircncia que eles efetivamente natildeo

admitiriam (Ibid 1007b 18-23)

Uma vez que todas as coisas se reduzem a uma soacute por exemplo ldquohomemrdquo ldquo Deusrdquo

e ldquotirremerdquo e suas respectivas negaccedilotildees entatildeo inevitavelmente seratildeo a mesma coisa E

se de cada coisa pode-se igualmente predicar afirmaccedilatildeo (κατάφασις) e negaccedilatildeo

(ἀπόφασις) como ldquobrancordquo e ldquonatildeo-brancordquo nada poderaacute distinguir-se de outra pois caso

se distinguisse tal diferenccedila constituiria algo verdadeiro e peculiar agravequela coisa A

propoacutesito a verdade consiste em afirmar aquilo que eacute e negar aquilo que natildeo eacute ou ainda

em afirmar que o ser eacute e que o natildeo-ser natildeo eacute enquanto que o falso consiste em afirmar

que o ser natildeo eacute ou que o natildeo-ser eacute Por isso quem diz de uma coisa que eacute ou que natildeo eacute

ou afirmaraacute o verdadeiro ou afirmaraacute o falso Mas no caso em que natildeo se diz a verdade

distingindo afirmaccedilatildeo e negaccedilatildeo natildeo se diz nada e natildeo pode existir nada Posto dessa

forma a discussatildeo com um adversaacuterio que nega o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo tornar-se-

ia inviaacutevel porque ele nada diria ndash nem que a coisa eacute assim nem que natildeo eacute assim mas

afirmaria que eacute assim e natildeo-assim (Ibid 1008a 24-35)

Outrossim quando ocorre a oposiccedilatildeo entre duas opiniotildees propriamente

contraditoacuterias uma em relaccedilatildeo agrave outra como no exemplo jaacute enunciado de ldquobrancordquo e natildeo-

brancordquo conforme outro princiacutepio loacutegico trazido a baila por Aristoacuteteles qual seja o

princiacutepio do terceiro excluiacutedo necessariamente uma opiniatildeo seraacute verdadeira e a outra

falsa sendo pois logicamente impossiacutevel que ambas sejam simultaneamente verdadeiras

ndash ou ldquoa neve eacute brancardquo ou ldquoa neve natildeo eacute brancardquo sendo pois impossiacutevel uma terceira

alternativa Assim entre os dois opostos da contradiccedilatildeo natildeo existiria um termo

intermediaacuterio (τῶν δ᾽ ἀντικειμένων ἀντιφάσεως μὲν οὐκ ἔστι μεταξύ) de sorte que o

conhecimento de qual eacute a opiniatildeo falsa coincidiria imediatamente com o conhecimento

de qual eacute a verdadeira e vice-versa (Ibid 1057a 34-35) Isto posto Protaacutegoras negaria

tanto o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo como o princiacutepio do terceiro excluiacutedo porque

negaria a proacutepria oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso admitindo que duas posiccedilotildees entre si

contraditoacuterias podem ser ambas verdadeiras ou ambas falsas

Com efeito caso se sustente que todos igualmente se enganam e todos digam a

verdade entatildeo quem sustentar tal tese natildeo poderaacute abrir a boca nem falar posto que

afirmaria certas coisas e ao mesmo tempo as negaria E se porventura algueacutem natildeo pensa

nada e indiferentemente crecirc e natildeo crecirc natildeo seraacute diferente das plantas (Ibid 1008b 8-12)

Todavia Aristoacuteteles sustenta que entre aqueles que negam o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo fica muito evidente que nenhum deles efetivamente coloca-se nessa posiccedilatildeo

(ὅθεν καὶ μάλιστα φανερόν ἐστιν ὅτι οὐδεὶς οὕτω διάκειται οὔτε τῶν ἄλλων οὔτε τῶν

λεγόντων τὸν λόγον τοῦτον) ou seja eles negam o princiacutepio pelo menos

discursivamente mas natildeo com suas accedilotildees (Ibid 1008b 12-17)

Daiacute deriva com a maacutexima evidecircncia que ningueacutem estaacute nessa condiccedilatildeo nem os que sustentam essa doutrina nem os outros De fato por que motivo quem raciocina desse modo vai verdadeiramente agrave

Megara e natildeo fica em casa tranquumlilo contentando-se simplesmente com pensar em ir E por que logo de manhatilde natildeo se deixa cair num poccedilo ou num precipiacutecio quando os depara mas evita isso cuidadosamente como se estivesse convencido de que cair ali natildeo eacute absolutamente coisa natildeo-boa e boa Eacute claro portanto que ele considera a primeira coisa melhor e a outra pior

Com base na passagem supracitada Aristoacuteteles afirma que os que em teoria negam

o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo mas o pressupotildeem por suas accedilotildees ndash porque eles natildeo se

deixam cair num poccedilo (φρέαρ) ou num precipiacutecio (φάραγξ) quando estes satildeo percebidos

ndash devem tambeacutem admitir que algo determinado eacute um homem e que outra coisa natildeo o eacute

(ἄνθρωπον τὸ δ᾽ οὐκ ἄνθρωπον) e que algo eacute doce e que outra coisa natildeo o eacute (γλυκὺ τὸ δ᾽

οὐ γλυκὺ) Eles tambeacutem natildeo admitem em seu comportamento praacutetico que todas as coisas

satildeo iguais sendo manifesto que natildeo agem conforme este pressuposto ao considerarem

que seja melhor beber aacutegua ou ver um homem eles vatildeo imediatamente em busca dessas

coisas e natildeo o contraacuterio (Ibid 1008b 17-23)

Aristoacuteteles com efeito natildeo se limita a enunciar a foacutermula geral de sua

demonstraccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo mas a desdobra articularmente tomando

em exame as posiccedilotildees concretas dos que negavam direta ou indiretamente o princiacutepio em

apreccedilo e refutando-as com argumentaccedilotildees de tipo pragmaacutetico que consistem em

enfatizar uma discrepacircncia entre a tese sustentada discursivamente e o comportamento

praacutetico Pode-se assegurar entatildeo que o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo natildeo se evidencia

somente como a condiccedilatildeo de possibilidade do pensamento teoacuterico (θεωρητικῆς διανοίας)

mas na circunstacircncia de que todo falar e todo agir subsiste e tem sucedimento em

concordacircncia com ele

De acordo com Aristoacuteteles o pensamento teoacuterico o qual se ocupa de todos aqueles

entes com princiacutepios que natildeo podem ser de outro modo natildeo visa a accedilatildeo (πρακτικῆς) nem

a produccedilatildeo (ποιητικῆς) mas eacute executado de uma forma correta ou incorreta conforme

detecta a verdade ou a falsidade pois esta eacute em geral a funccedilatildeo de todo o pensamento

Todavia a funccedilatildeo do pensamento praacutetico (πρακτικῆς διανοίας) que considera aqueles

entes com princiacutepios que podem ser de outra maneira eacute obter a verdade que corresponde

agrave accedilatildeo correta Agrave vista disso a εὐπραξία que significa o bem agir tanto na vida puacuteblica

como na vida privada natildeo existe na accedilatildeo sem o pensamento teoacuterico e a disposiccedilatildeo eacutetica

(Eacutet Nic 1139a 25-35) Cabe ainda frisar a este respeito que o Estagirita define a

prudecircncia como ldquoἀρετὴ διανοίαςrdquo ou seja como a virtude da inteligecircncia do pensamento

ou da razatildeo atraveacutes da qual se pode tanto deliberar adequadamente sobre os bens e os

males que conduzem agrave felicidade quanto discernir a justa medida a fim de evitar os

extremos do excesso e da falta

No diaacutelogo Teeteto Platatildeo atribui a Protaacutegoras a tese segundo a qual para quem estaacute

doente aquilo que come aparece e eacute amargo mas para quem estaacute saudaacutevel aparece e eacute o

contraacuterio e nenhum dois dois seria saacutebio razatildeo pela qual natildeo se deve acusar o doente de

ser ignorante em virtude de sua opiniatildeo nem o saudaacutevel de saacutebio por ter uma opiniatildeo

contraacuteria (Teet 166e) Entretanto a posiccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre este assunto eacute a de

aquele que defende tal doutrina natildeo o faz com base na ciecircncia mas na pura opiniatildeo por

isso ele deveria se preocupar em procurar a verdade assim como deve preocupar-se com

a sauacutede quem estaacute enfermo e natildeo quem eacute saudaacutevel Porquanto quem possui somente

opiniatildeo em comparaccedilatildeo com aquele que possui ciecircncia certamente natildeo estaacute em

condiccedilotildees de sauacutede relativamente agrave verdade (Met 1008b 27-30) E a fim de descobrir o

que efetivamente eacute natural o Estagirita sublinha que eacute necessaacuterio conduzir as

investigaccedilotildees de preferecircncia para as coisas em seu estado natural e natildeo para as

deterioradas (διεφθαρμένοις) Assim para estudar o homem conveacutem considerar aquele

que estaacute nas melhores condiccedilotildees possiacuteveis (βέλτιστα διακείμενον) de corpo e alma (Pol

1254b 5-9)

Eacute obvio que Aristoacuteteles natildeo nega que duas pessoas possam ter percepccedilotildees opostas

em relaccedilatildeo ao mesmo objeto o indiviacuteduo saudaacutevel pode perceber o mel como doce

enquanto que o doente pode percebecirc-lo como amargo poreacutem natildeo significa que ambas as

percepccedilotildees estejam em peacute de igualdade quanto agrave sua veracidade Pois a percepccedilatildeo de um

homem em estado natural seria mais certa ou mais preferiacutevel do que a percepccedilatildeo de um

homem doente Assim o criteacuterio epistecircmico das percepccedilotildees em geral que garantiria que

uma percepccedilatildeo eacute mais certa ou mais preferiacutevel que outra eacute essencialmente o mesmo que

fundamenta as ἔνδοξα uma percepccedilatildeo que pode ser repetida por todas as pessoas

(saudaacuteveis) ou pela maioria delas deve corresponder ao que tem de ser natildeo sendo possiacutevel

que este fato seja um engano e se a maioria das pessoas percebe o mel como doce e natildeo

como amargo isto jaacute seria um indiacutecio de que esta percepccedilatildeo eacute mais verdadeira que falsa

Ao explicar como a percepccedilatildeo opera Aristoacuteteles assegura que no caso de sensiacuteveis

proacuteprios de cada sentido a verdade atribuiacutedo a ela deve ser quase absoluta Por sensiacutevel

proacuteprio de cada sentido ele se refere a um que natildeo possa ser percebido por outro sentido

ndash a visatildeo em relaccedilatildeo agraves cores a audiccedilatildeo em relaccedilatildeo aos diversos sons etc ndash e sobre o qual

natildeo se pode estar em erro Assim cada sentido tem discernimento quanto a seus sensiacuteveis

proacuteprios e natildeo comete erros quanto a se haacute cor ou quanto a se haacute som mas somente sobre

o que a coisa colorida eacute ou onde se localiza ou o que a coisa que emite som eacute e onde se

localiza (Sob alm 418a 1-16) Todavia essas asserccedilotildees seguras pressupotildeem que os

sentidos estejam operando adequadamente em condiccedilotildees que natildeo os impeccedilam de alcanccedilar

seu fim natural (Eacutet Nic 1153a 14-16) Portanto a percepccedilatildeo de sensiacuteveis proacuteprios eacute

verdadeira ou tem o miacutenimo grau possiacutevel de erro (Sob alm 428b 18-20) ao menos

enquanto o objeto sensiacutevel continua a efetar o sentido da mesma maneira (Ibid 428b 25-

30)

Aleacutem do exposto eacute manifesto para Aristoacuteteles que diferenccedilas de graus satildeo

inerentes agrave natureza das coisas (ἀλλὰ τό γε μᾶλλον καὶ ἧττον ἔνεστιν ἐν τῇ φύσει τῶν

ὄντων) de sorte que natildeo se pode dizer que satildeo pares o dois e o trecircs nem se pode dizer

que erra do mesmo modo quem confunde o quatro com o mil e visto que eles natildeo erram

do mesmo modo eacute certo que um dos dois erra menos e estaacute mais na verdade Ele tambeacutem

sustenta que se estar mais na verdade significa proacuteximo (ἐγγύτερος) da verdade deveraacute

existir uma verdade absoluta em relaccedilatildeo a qual o que estaacute mais proacuteximo eacute tambeacutem o mais

verdadeiro (εἴη γε ἄν τι ἀληθὲς οὗ ἐγγύτερον τὸ μᾶλλον ἀληθές) Mas ainda que natildeo

exista tal verdade absoluta existe certamente algo mais seguro e mais veriacutedico

(βεβαιότερον καὶ ἀληθινώτερον) ndash a verossimilhanccedila ndash que refutaria a doutrina de

Protaacutegoras segundo a qual o pensamento estaria impedido de determinar qualquer coisa

como certa (Met 1008b 31-1009a 5)

Com efeito longe do conhecimento humano e suas sensaccedilotildees serem a medida da

realidade conforme apregoa a doutrina subjetivista de Protaacutegoras eacute a realidade que deve

medir objetivamente a soma e o valor do conhecimento O conhecimento humano natildeo

pode determinar a natureza das coisas pois sua tarefa eacute justamente adaptar-se agrave natureza

delas a fim de atingir a verdade Desse modo na visatildeo de Aristoacuteteles quando o sofista

Protaacutegoras afirma que o homem eacute a medida de todas as coisas referindo-se ao indiviacuteduo

que conhece e percebe sustentaria algo absurdo embora aparente ser engenhoso (Ibid

1053a 31-1053b 3) Aristoacuteteles concebe isso do ponto de vista de sua epistemologia

segundo a qual existe uma realidade independente dos nossos conhecimentos e opiniotildees

(Ibid 1051b 5-10) e contrastando com ela a doutrina de Protaacutegoras de acordo com a

qual nada existiria objetivamente salvo o que cada um conhece e percebe

Visto que para Protaacutegoras o calor e o frio ou o doce e o amargo natildeo existem

efetivamente na natureza mas dependem da percepccedilatildeo de cada indiviacuteduo em particular

pode-se alvitrar por conseguinte que a justiccedila e a injusticcedila ou o certo e o errado tambeacutem

possuem uma existecircncia subjetiva e irreal Nesse sentido natildeo pode haver na natureza

princiacutepios absolutos que determinem as relaccedilotildees entre os homens por isso tudo

dependeria daquilo que aparece no momento a cada indiviacuteduo (GUTHRIE 2010 79)

Cabe ainda lembrar que o fragmento Δισσοὶ λόγοι atribuiacutedo a Protaacutegoras rejeita a tese

segundo a qual uma coisa eacute o justo e outra o injusto distinto tanto na realidade como no

discurso Ao considerar o tema sobre o justo e o injusto o autor do fragmento assevera

que para algumas pessoas haveria uma diferenccedila entre o justo e o injusto mas para outras

a mesma coisa seria justa e injusta e eacute justamente esta perspectiva que ele tenciona

defender O mesmo ponto de vista relativista se aplicaria ao que eacute considerado bom e

ruim verdadeiro e falso etc E se o homem eacute medida de todas as coisas significa que a

maneira como as coisas se apresentam a um homem para ele constitui a verdade e o

modo como se apresenta a um outro para este tambeacutem eacute a verdade Todavia nenhum

deles pode atribuir erro agrave opiniatildeo do outro pois se um concebe as coisas de uma certa

maneira para ele eacute assim o que significa simplesmente que a verdade eacute relativa ao ponto

de vista de cada um O ceacutelebre dito de Protaacutegoras significa que o conhecimento humano

natildeo depende de normas absolutas mas de exigecircncias situacionais com que se depara o

homem tanto como indiviacuteduos quanto como espeacutecie Ademais natildeo haveria um padratildeo

eacutetico absoluto em favor do tipo de julgamento eacutetico situacional que varia conforme os

indiviacuteduos e as circunstacircncias

A despeito disso Protaacutegoras concedia no seu pensamento um certo espaccedilo agraves

opiniotildees convencionais sobre a verdade e a moral mas nenhuma delas seria mais

verdadeira do que outra de tal modo que se para algum homem parece sinceramente que

eacute bom roubar a ele pareceraacute que essa eacute a verdade Todavia a grande maioria dos homens

que amiuacutede condena o roubo como uma praacutetica imoral poderaacute ser persuadida pelo orador

no sentido contraacuterio pois ele pode sustentar que tal crenccedila natildeo eacute em si mesma verdadeira

e enfatizar aquilo que momentacircneamente aparenta ser o melhor Sendo assim Protaacutegoras

opta por abandonar a prova da verdade ou da falsidade e a substitui pela prova pragmaacutetica

(Ibid 2010 80-81) Em conformidade com esta noccedilatildeo natildeo haveria uma verdade em si

mesma objetiva e universalmente vaacutelida mas a verdade dependeria de cada indiviacuteduo e

o mais relevante para o orador seria reconhecer aquilo que eacute nocivo e uacutetil agrave conveniecircncia

eacutetica e poliacutetica dos homens e persuadi-los disso

Aristoacuteteles tambeacutem atribui um espaccedilo consideraacutevel agraves opiniotildees convencionais sobre

a verdade e a moral mas diferente de Protaacutegoras ele natildeo estaacute disposto a subscrever a

concepccedilatildeo de que as opiniotildees satildeo igualmente vaacutelidas pelo contraacuterio eacute necessaacuterio que o

orador procure em cada caso a verdade da melhor maneira possiacutevel (Eacutet Nic 1139b 13-

14) Isto ocorre porque natildeo eacute necessaacuterio procurar o mesmo grau de rigor para todas as

aacutereas cientiacuteficas nem para todas as artes mas isto natildeo significa abrir matildeo do que eacute mais

seguro e mais veriacutedico Assim no terreno da arte retoacuterica eacute necessaacuterio satisfazer-se com

a indicaccedilatildeo da verdade aproximadamente em linhas gerais e falar de coisas que satildeo

verdadeiras no mais das vezes e natildeo absolutamente

Considerando-se entatildeo a impossibilidade de se obter na vida praacutetica uma verdade

absoluta o Estagirita propotildee contentar-se com o verossiacutemil isto eacute com aquilo que parece

o mais provaacutevel porque ainda que natildeo exista em relaccedilatildeo a um dado assunto a verdade

absoluta existe certamente algo mais seguro e mais veriacutedico Aleacutem do mais o verossiacutemil

(no acircmbito natural) natildeo eacute de forma alguma independente do estado de coisas pois se ele

eacute possiacutevel eacute em virtude da existecircncia de um fato isto eacute aquele que acontece a maior parte

das vezes que neste caso recebe a designaccedilatildeo de provaacutevel O verossiacutemil tambeacutem pode

ser compreendido (no acircmbito social) como uma proposiccedilatildeo geralmente admitida o que

significa que natildeo eacute qualquer opiniatildeo ou crenccedila que conta jaacute que ele faz parte do universo

cultural ou de crenccedilas geralmente admitidas num determinado contexto social

Para o Estagirita no caso de algueacutem atuar com pretenccedilotildees filosoacuteficas precisa ter

em vista a verdade mas os que atuam segundo a retoacuterica precisam ter em vista natildeo mais

a verdade mas as opiniotildees qualificadas bem-fundamentadas que todo mundo admite ou

a maioria das pessoas ou os filoacutesofos e dentre estes os mais notaacuteveis e eminentes

Porquanto se as pessoas em geral acreditam em algo por exemplo que o roubo e o

incesto satildeo praacuteticas imorais isto jaacute seria um indiacutecio que de as opiniotildees a este respeito satildeo

mais verdadeiras que falsas e por essa razatildeo dignas de anuecircncia Dessarte o bom orador

agrave maneira do dialeacutetico precisa ser capaz de ao fazer frente a um argumento defender suas

teses por meio de opiniotildees tatildeo geralmente aceitas quanto possiacutevel (Arg Sof 183b 5-7)

Em conexatildeo com este assunto eacute pertinente salientar a distinccedilatildeo feita por Aristoacuteteles

entre a lei particular e a lei comum (νόμος δ᾽ ἐστὶν ὁ μὲν ἴδιος ὁ δὲ κοινός) Ele define a

que eacute particular (ἴδιος) como o conjuito de leis escritas atraveacutes das quais se rege cada

cidade enquanto que a comum (κοινός) constitui o conjunto das leis natildeo escritas (ἄγραφοι

νόμοι) sobre as quais parece haver um consenso (παρὰ πᾶσιν ὁμολογεῖσθαι δοκεῖ) entre

todos os homens (Ret 1368b 10-13) Em outro passo (Ibid 1373b 4-10) ele assegura

que a lei particular eacute a que foi definida por cada povo quer seja escrita ou natildeo escrita ao

passo que a lei comum a que eacute segundo a natureza (κατὰ φύσιν) Agrave vista disso haveria na

natureza um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos os homens de algum

modo reconheceriam mesmo que natildeo haja entre eles comunicaccedilatildeo ou acordo Aliaacutes todos

os que observam as leis comuns natildeo poderiam eventualmente ter-se encontrado e se

porventura se encontraram natildeo falavam a mesma liacutengua razatildeo pela qual elas devem ter

uma origem na natureza e natildeo por convenccedilatildeo

Com efeito dentre as leis que natildeo foram forjadas pela convenccedilatildeo mas pela natureza

Aristoacuteteles destaca a gratidatildeo a quem nos faz algum bem o pagamento do bem recebido

com o mesmo bem e o auxiacutelio aos amigos nas suas necessidades (Ibid 1374a 30-33)

Aleacutem dessas poder-se-ia acrescentar o dever de cultuar os deuses e de honrar os pais a

hospitalidade para com os estrangeiros ou ainda a proibiccedilatildeo do incesto (GUTHRIE

2007 113 115) as quais em hipoacutetese alguma poderiam ser relativizadas posto que a

violaccedilatildeo das leis natildeo escritas satildeo um delito mais grave do que a violaccedilatildeo das leis escritas

(Ret 1375a 27-31) Pode-se assegurar entatildeo que a lei da natureza existe porque haacute

efetivamente um conceito natural e universal de certo e errado um padratildeo eacutetico absoluto

independente de um julgamento eacutetico situacional que varia conforme os indiviacuteduos e as

circunstacircncias que poderia ser (indiferentemente) de uma maneira ou de outra

Apesar de ser inexequiacutevel ao orador o acesso agrave verdade absoluta (cuja prerrogativa

pertence ao filoacutesofo) natildeo conveacutem que ele se renda ao relativismo e fique satisfeito com

qualquer opiniatildeo desqualificada como se todas as opiniotildees fossem igualmente

verdadeiras Porquanto se todas as percepccedilotildees e todos os juiacutezos morais devem ser aceitos

como igualmente verdadeiros entatildeo nenhum argumento que expresse juiacutezos perceptivos

e morais seria superior a um outro o que seria um equiacutevoco posto que existem aqueles

juiacutezos que representam uma aproximaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave verdade ao passo que outros satildeo

expressamente falsos Portanto se o relativismo protagoacuterico prevalecer tornaraacute a poliacutetica

inteiramente impraticaacutevel e poderaacute fomentar consequecircncias danosas para a cidade haja

vista que a justiccedila e a injusticcedila poderatildeo ser defendidas indiferentemente opondo-se agrave

funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da arte retoacuterica que consiste em combater a perversatildeo da verdade e

da justiccedila

Segundo a visatildeo relativista de Protaacutegoras mediante a percepccedilatildeo imaginaccedilatildeo e

pensamento todas as coisas produzidas pela natureza satildeo meras opiniotildees variando no

tempo e no espaccedilo de indiviacuteduo para indiviacuteduo ou ainda no mesmo indiviacuteduo Todavia

o fato do homem ser a medida de todas as coisas natildeo significa que ele tem o poder total

para fazer com que as coisas em geral sejam ou natildeo sejam mas tem o poder pleno para

decidir o que elas satildeo ou que elas podem ou devem ser e quais natildeo deveratildeo passar agrave

existecircncia ndash eacute justamente isso que significa ldquodas coisas que satildeo que elas satildeo das coisas

que natildeo satildeo que elas natildeo satildeordquo Por certo dois homens podem ter percepccedilotildees e opiniotildees

opostas sobre coisas que parecem idecircnticas ou iguais e as duas opiniotildees seriam

verdadeiras segundo o ponto de vista de cada indiviacuteduo que as tem Desse modo natildeo

haveria espaccedilo em sua teoria para o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo porque tanto as

percepccedilotildees quanto as opiniotildees sempre seriam verdadeiras ainda que opostas entre si

razatildeo pela qual as pessoas soacute poderiam mudar suas opiniotildees ao serem persuadidas por

outras melhores ou mais fortes Aleacutem disso as ideias gerais sobre a justiccedila o bem o uacutetil

as leis os deuses etc satildeo para Protaacutegoras meras convenccedilotildees nascidas de um consenso

entre os homens para a utilidade da vida em comum Por isso natildeo haveria nenhuma

verdade universal e necessaacuteria nem sequer uma aproximaccedilatildeo em relaccedilatildeo a ela mas

apenas as opiniotildees e as teacutecnicas nascidas da experiecircncia e da observaccedilatildeo para o uso e a

accedilatildeo humana Tendo isto em conta a arte retoacuterica deve persuadir as pessoas de quais satildeo

as melhores opiniotildees e as melhores teacutecnicas para cada cidade

Eacute manifesto que ao elaborar sua teoria acerca da arte retoacuterica o Estagirita rejeita a

concepccedilatildeo de que no acircmbito dessa arte seja possiacutevel veicular verdades absolutas Por

certo a funccedilatildeo essencial da retoacuterica consiste em obter a anuecircncia dos ouvintes agraves teses

que se lhes apresentam ao assentimento mediante argumentos racionais mas sem as

exigecircncias excessivas da racionalidade cientiacutefica Contudo sem degringolar para o seu

extremo oposto qual seja o do relativismo Aristoacuteteles natildeo considera todos os ideais

sociais legais poliacuteticos e morais sem sentido ou sem nenhum valor de modo que todas

as opiniotildees sejam igualmente vaacutelidas Sua retoacuterica tambeacutem natildeo proclama agraves pessoas que

parem com seus conflitos de opiniotildees supondo que todas as coisas satildeo igualmente boas

ou maacutes Pelo contraacuterio ele submete as opiniotildees sua interpretaccedilatildeo e sua aplicaccedilatildeo agrave uma

anaacutelise criacutetica incessante de modo que seu pensamento retoacuterico estaria fortemente ligado

ao senso comum mas a um tipo de senso comum que eacute qualificado e aberto agrave criacutetica Fica

claro entatildeo que embora a retoacuterica seja uma forma de racionalidade especificamente

distinta da ciecircncia ela eacute estruturada por argumentaccedilotildees o que natildeo apenas lhe confere um

caraacuteter teacutecnico preciso mas permite-lhe em algum grau aproximar-se da verdade

Outrossim a retoacuterica de Aristoacuteteles eacute explicitamente favoraacutevel ao pluralismo de

ideias agrave liberdade de opiniatildeo ao jogo de interesses e motivaccedilotildees humanos As

argumentaccedilotildees retoacutericas precisam ser formadas com base em premissas geralmente

aceitas pelo auditoacuterio poreacutem os ideais e os fins aprovados por este natildeo devem ser tratados

como valores absolutos Isto ocorre porque a realidade social e poliacutetica no interior da

qual a arte retoacuterica opera mais eficazmente extrapola os estreitos limites da demonstraccedilatildeo

cientiacutefica Natildeo obstante a arte retoacuterica pode funcionar como a ferramenta mais adequada

na permanente luta pelo progresso e felicidade da sociedade Aleacutem de tudo ela eacute um

instrumento indispensaacutevel para o subrepujamento da bipolaridade existente entre o

conhecimento cientiacutefico e o relativismo objetivando na medida de sua capacidade a

tomada razoaacutevel de decisotildees na vida praacutetica Pois tendo em vista a impossibilidade de se

obter nos assuntos da vida praacutetica uma verdade universal e necessaacuteria eacute preciso contentar-

se com o verossiacutemil ou seja com aquilo que parece provaacutevel por ser compartilhado pela

maioria dos ouvintes

O Estagirita prossegue em sua condenaccedilatildeo ao relativismo ao identificar a doutrina

de Protaacutegoras (de que eacute possiacutevel tornar o argumento mais fraco no argumento mais forte)

com uma argumentaccedilatildeo falaciosa chamada de silogismo aparente (φαινόμενος

συλλογισμός) Considerando-se que pode haver um silogismo verdadeiro e outro

aparente do mesmo modo pode haver um entimema verdadeiro e outro que o seja

somente na aparecircncia (Ibid 1400b 45-50) Aristoacuteteles cataloga pois dez tipos de

entimemas aparentes que seriam os equivalentes retoacutericos dos sofismas expostos

minuciosamente na obra Dos Argumentos Sofiacutesticos 1ordm o que proveacutem da expressatildeo 2ordm o

que procede da homoniacutemia 3ordm o que consiste em argumentar combinando o que estava

dividido ou dividindo o que estava combinado 4ordm o que consiste em estabelecer ou refutar

um argumento por meio do exagero 5ordm o que procede do signo 6ordm o que decorre do

acidente 7ordm o que eacute retirado da consequecircncia 8ordm o que consiste em apresentar o que natildeo

eacute causa como causa 9ordm o que consiste na omissatildeo do quando e do como 10ordm e o que

consiste em considerar uma coisa absolutamente e natildeo absolutamente mas soacute em relaccedilatildeo

a uma coisa (Ibid 1401a 1-1402a 39) Todavia somente este uacuteltimo tipo de entimema

aparente seraacute objeto de anaacutelise devido agrave sua ligaccedilatildeo imediata com a doutrina do sofista

Protaacutegoras

Com efeito a promessa de tornar mais forte o argumento mais fraco natildeo ficou

restrita a Protaacutegoras e sua escola mas tambeacutem tornou-se ceacutelebre com os autores

posteriores Na comeacutedia As Nuvens escrita por Aristoacutefanes existe uma referecircncia a esta

doutrina onde o personagem Estrepsiacuteades afirma que no φροντιστήριον onde Soacutecrates

ensina a triunfar as causas maacutes devido aos artifiacutecios e sutilezas da arte retoacuterica existem

ambos os argumentos o mais forte natildeo importa qual seja e o mais fraco e desses dois o

mais fraco pode tornar-se vitorioso apesar de expressar a tese mais injusta (Nuv 95

115) Aristoacuteteles tambeacutem oferece exemplos reais do seacuteculo V aC especialmente o

argumento de Goacutergias de que o natildeo ser existe porque negar o natildeo ser seria afirmar sua

existecircncia bem como a citaccedilatildeo de Aacutegaton de maneira que o que ele diz a respeito do

provaacutevel poderia ser plausivelmente retirado dos textos de Protaacutegoras (Ret 1402a 4-15)

E ainda tal como na eriacutestica do fato de se poder considerar uma coisa absolutamente e natildeo absolutamente mas soacute em relaccedilatildeo a uma coisa resulta um silogismo aparente Por exemplo na dialeacutetica afirmar que o natildeo ser existe porque o natildeo ser eacute natildeo ser e que o desconhecido eacute objeto de conhecimento porque o incognosciacutevel enquanto incognosciacutevel constitui objeto de conhecimento cientiacutefico Assim tambeacutem na retoacuterica haacute um entimema aparente do natildeo absolutamente provaacutevel mas do provaacutevel em relaccedilatildeo a algo Esta probabilidade natildeo eacute universal como tambeacutem diz Aacutegaton Bem se poderia dizer que o uacutenico provaacutevel eacute que aos mortais aconteccedilam muitas coisas improvaacuteveis

Para Aristoacuteteles o φαινόμενος συλλογισμός resulta do fato de se poder considerar

na dialeacutetica uma coisa absolutamente e natildeo absolutamente mas soacute em relaccedilatildeo a uma

coisa Semelhantemente na retoacuterica existe um entimema aparente (φαινόμενον

ἐνθύμημα) do natildeo absolutamente provaacutevel mas soacute do provaacutevel em relaccedilatildeo a algo Isto

ocorre porque aquilo que estaacute agrave margem da probabilidade pode eventualmente produzir-

se de tal maneira que eacute provaacutevel o que estaacute fora da probabilidade Por exemplo eacute

altamente provaacutevel que um homem com histoacuterico de agressatildeo domeacutestica seja culpado por

ferir sua esposa a qual o leva a julgamento por agressatildeo fiacutesica mas eacute tambeacutem possiacutevel

que a mulher tenha ferido a si mesma a fim de incriminar o marido que neste caso

especiacutefico seria inocente No entanto esforccedilar-se a fim de que esta probabilidade relativa

suplante a primeira qual seja a probabilidade absoluta (ἁπλῶς εἰκὸς) constitui para

Aristoacuteteles uma atitude reprovaacutevel na praacutetica retoacuterica bem como uma falsidade Sendo

assim no entimema aparente o improvaacutevel seraacute ateacute provaacutevel conforme o exemplo acima

mas natildeo de maneira absoluta porque possui um grau de probabilidade quase que

insignificante E como ocorre na eriacutestica o natildeo acrescentar em que medida em relaccedilatildeo a

quecirc e de que modo torna o argumento capcioso na arte retoacuterica acontece o mesmo

porquanto o improvaacutevel (ou pouco provaacutevel) eacute tomado pelo orador como provaacutevel natildeo

de maneira absoluta mas somente de maneira relativa E Aristoacuteteles acrescenta que eacute

deste toacutepico que se compotildee a arte de Coacuterax (Ibid 1402a 3-24)

Sabe-se que Coacuterax foi o primeiro de que se tem registro a teorizar com um meacutetodo

e preceitos uma arte retoacuterica E a despeito do desconhecimento documental das regras

propriamente ditas e dos processos de composiccedilatildeo que Coacuterax elaborara eacute possiacutevel

sustentar que um dos seus preceitos fundamentais consistia em propor a argumentaccedilatildeo de

que algo poderia ser considerado improvaacutevel por ser proacutevavel demais Este argumento

carrega seu nome ou seja o κόραξ Aristoacuteteles explicita este argumeno nos seguintes

termos (Ibid 1402a 24-28) caso o reacuteu suspeito de agressatildeo seja forte e se todas as

evidecircncias lhe forem contraacuterias proporaacute o argumento de que seria tatildeo provaacutevel que

tivesse realmente praticado o ato de que eacute acusado que natildeo pode ser provaacutevel que ele o

tenha feito (ἔστι δ᾽ ἐκ τούτου τοῦ τόπου ἡ Κόρακος τέχνη συγκειμένη ldquoἄν τε γὰρ μὴ

ἔνοχος ᾖ τῇ αἰτίᾳ οἷον ἀσθενὴς ὢν αἰκίας φεύγει [οὐ γὰρ εἰκός] κἂν ἔνοχος ᾖ οἷον

ἰσχυρὸς ὤν [οὐ γὰρ εἰκός ὅτι εἰκὸς ἔμελλε δόξειν]rdquo)

Aristoacuteteles aventa que ambos os casos acima mencionados parecem ser provaacuteveis

poreacutem o primeiro caso o de que o reacuteu forte (ἰσχυρός) eacute legitimamente suspeito de

agressatildeo seria absolutamente provaacutevel poreacutem o outro caso o de que o reacuteu forte eacute

inocente porque pareceria altamente provaacutevel que fosse o agressor do eacute fraco (ἀσθενής)

natildeo o eacute em absoluto mas de maneira relativa Este tipo de argumentaccedilatildeo que o Estagirita

atribui ao sofista Protaacutegoras parece implicar que a causa mais fraca seria realmente

idecircntica agrave pior de modo que apoiaacute-la seria o mesmo que apoiar a injusticcedila Aleacutem disso

os raciociacutenios que visam tornar o argumento mais fraco no argumento mais forte tambeacutem

satildeo chamados de eriacutesticos ou contenciosos ou seja os que raciocinam ou parecem

raciocinar a partir de opiniotildees que parecem ser geralmente aceitas mas em realidade natildeo

satildeo (Arg Sof 156b 7-8)

Todavia com o intuito de lograr maior esclarecimento sobre o significado do

entimema aparente no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles eacute pertinente inteirar-se da

abalizada anaacutelise de A M Yamin sobre este toacutepico Ela sustenta que uma coisa eacute mais

provaacutevel quanto maior o nuacutemero de casos similares de tal maneira que a verossimilhanccedila

ou a probabilidade de algo eacute diretamente proporcional ao nuacutemero de vezes que este

mesmo tipo de coisa costuma acontecer Assim o enunciado eacute verossiacutemil porque enuncia

a opiniatildeo dos homens ao testemunhar um evento provaacutevel que pode ser tanto social como

natural E quanto maior seja a frequecircncia dos fatos mais provaacuteveis eles seratildeo e mais

verossiacutemil seraacute o discurso a seu respeito Eacute manifesto que no mais das vezes o homem de

compleiccedilatildeo forte tende a prevalecer e a bater naquele que eacute mais fraco e este fenocircmeno

refletiria a regularidade proacutepria do mundo das accedilotildees humanas e tal afirmaccedilatildeo pode ser

feita com seguranccedila por qualquer orador porque efetivamente eacute isto que costuma

acontecer O discurso natildeo-verossiacutemil que o Estagirita designa de entimema aparente

seria aquele que enunciasse um estado de coisas que natildeo fosse provaacutevel ou que fugisse

da regularidade das accedilotildees humanas Dessarte soacute eacute digno de credibilidade o discurso que

eacute verdadeiro ou o que eacute provaacutevel pois assim como o discurso verdadeiro eacute digno de ser

acreditado por veicular o que eacute o discurso verossiacutemil tambeacutem o eacute por enunciar o que

acontece no mais das vezes Todavia no que se refere ao mundo das accedilotildees humanas a

regularidade de que o homem de compleiccedilatildeo forte prevalece e tende a bater naquele que

eacute mais fraco tem a peculiaridade de natildeo ser a uacutenica (ou seja pode ocorrer exceccedilotildees) mas

ela sempre seraacute uacutenica para um auditoacuterio determinado ao passo que os argumentos mais

verossiacutemeis seratildeo aqueles que correspondam agrave regularidade proacutepria do contexto poliacutetico

ao qual pertence aquele auditoacuterio particular (YAMIN 2006 150-151)

Na perspectiva de Yamin ao se ocupar dos diferentes tipos de falaacutecias Aristoacuteteles

trata do entimema aparente e o define como o argumento que pode resultar daquilo que

natildeo eacute absolutamente verossiacutemil mas somente eacute verossiacutemil em casos particulares

Aristoacuteteles faria uma analogia com o silogismo aparente ou seja aquele que resulta de

considerar uma coisa primeiro absolutamente e em seguida natildeo absolutamente mas

somente num caso particular O silogismo aparente ocorreria quando se afirma que aquilo

que natildeo eacute absolutamente enquanto eacute desconhecido em um caso particular eacute o caso O

εἰκός enquanto discurso eacute o enunciado endoacutexico que enuncia um evento que acontece a

maior parte das vezes assim como tambeacutem eacute o proacuteprio evento (natural ou social) O εἰκός

eacute verossiacutemil porque ele enuncia a opiniatildeo dos homens ao testemunhar um evento provaacutevel

cuja opiniatildeo estaacute de acordo com um estado de coisas que corresponde agrave regularidade de

um determinado domiacutenio (Ibid 2006 152-153)

Por certo tanto um enunciado (verossiacutemil) como um evento (provaacutevel) soacute seratildeo

εἰκός na medida em que efetivamente correspondam ou faccedilam parte de uma regularidade

No entanto eacute possiacutevel fazer com que um enunciado que natildeo eacute absolutamente verossiacutemil

pareccedila dessa forma e a este Aristoacuteteles designa de verossiacutemil relativo o qual eacute atribuido

agrave praacutetica retoacuterica de Protaacutegoras O entimema aparente surge entatildeo a partir de um discurso

que natildeo eacute absolutamente verossiacutemil mas somente num caso particular ao passo que um

enunciado absolutamente verossiacutemil teraacute que estar de acordo com uma certa regularidade

E haja vista que o entimema aparente eacute de alguma maneira anaacutelogo ao silogismo

aparente a condiccedilatildeo para identifcar o entimema aparente deveraacute ser a identificaccedilatildeo de

uma certa regularidade aparente ou seja uma regularidade que soacute eacute tal em um contexto

particular (Ibid 2006 153-154)

Com efeito o verossiacutemil relativo seria simplesmente falso e sobretudo inuacutetil um

discurso vazio jaacute que natildeo teria uma referecircncia e a ningueacutem poderia convencer A despeito

disso se o verossiacutemil relativo pode ser veiculado (por um sofista como Protaacutegoras) eacute

precisamente porque no domiacutenio humano as coisas acontecem furtuitamente de maneira

contraacuteria ao esperado Isto significa que neste domiacutenio eacute possiacutevel explicar um mesmo fato

por mais de um entimema verossiacutemil Por exemplo eacute absolutamente verossiacutemil que o

capitatildeo do navio natildeo jogue a carga ao mar poreacutem eacute verossiacutemil que quando houver uma

tormenta que ameace a vida dos passageiros relativamente a essas circunstacircncias

particulares seria liacutecito e razoaacutevel que o capitatildeo decida jogar a carga ao mar Por isso

estaria vedado para Aristoacuteteles argumentar pelo verossiacutemil relativo em toda a extensatildeo

do domiacutenio onde a regularidade eacute a marca dos seus objetos isto eacute em todo o domiacutenio das

coisas que acontecem a maior parte das vezes (Ibid 2006 156-157) Isto posto o

verossiacutemil pode ter duas modalidades distintas A primeira diz respeito ao verossiacutemil

absoluto que estaacute de acordo com as expectativas normais aquelas com as quais os

ouvintes estatildeo acostumados como quando um homem forte tenha agredido algueacutem

fisicamente mais fraco E a outra o verossiacutemil relativo que insere o fato acontecido em

coordenadas diferentes daquelas nas quais se teria pensado naturalmente por exemplo

leva em consideraccedilatildeo o fato da naturalidade de levantar suspeita que um homem forte

tenha batido em um fraco e declara que esse mesmo fato torna inverossiacutemil que o homem

forte seja culpado (Ibid 2006 161-162)

Com base na argumentaccedilatildeo falaciosa chamada de entimema aparente o orador

mal-intencionado pode apresentar um fato que normalmente pareceria de uma certa

maneira (na medida em que estaria inserido numa certa regularidade) como exatamente

o contraacuterio do que parece ser o caso introduzindo-o em uma outra regularidade Assim

se determinado indiviacuteduo pareceria culpaacutevel no quadro de expectativas ao qual se estaacute

acostumado considerado de um outro ponto de vista (ou seja em relaccedilatildeo a uma outra

forma de regularidade) sua inocecircncia poderia ser suposta como verossiacutemil No entanto

tal argumentaccedilatildeo caracterizaria o verossiacutemil relativo e natildeo o absoluto o qual segundo

Aristoacuteteles deveria ser veiculado por todo orador bem-intencionado Aliaacutes o que

determina um entimema aparente natildeo eacute o simples fato do orador argumentar a partir do

verossiacutemil relativo mas por apresentaacute-lo como se fosse absoluto em detrimento do que

geralmente acontece

Pode-se assegurar entatildeo que eacute verossiacutemil absolutamente que um homem de

compleiccedilatildeo forte tenha batido naquele que eacute fraco porque de acordo com aquilo que se

estaacute acostumado a presenciar eacute isso que amiuacutede acontece ou seja tal fato estaria de

acordo com a regularidade do domiacutenio no qual se vive Natildeo obstante poder-se-ia

perfeitamente considerar esse mesmo fato como fazendo parte de uma outra regularidade

qual seja aquela na qual os homens fortes soubessem que facilmente se tornariam

suspeitos razatildeo pela qual evitariam bater em homens fracos A investigaccedilatildeo sobre o

verossiacutemil relativo teria levado o Estagirita a constatar que embora no domiacutenio dos

homens que vivem na comunidade poliacutetica certas coisas comportam-se ὡς ἐπὶ τὸ πολύ

quer dizer comportam-se no mais das vezes tal situaccedilatildeo natildeo seria a uacutenica e isto teria

como consequecircncia a possibilidade de persuadir os ouvintes mediante argumentos

falaciosos Por fim Aristoacuteteles encerra sua anaacutelise do entimema aparente (Ret 1402a 30-

37) afirmando que com justiccedila os homens se indignaram contra a doutrina de Protaacutegoras

pois ela constitui um logro e uma probabilidade natildeo verdadeira mas aparente (καὶ

ἐντεῦθεν δικαίως ἐδυσχέραινον οἱ ἄνθρωποι τὸ Πρωταγόρου ἐπάγγελμα ψεῦδός τε γάρ

ἐστιν καὶ οὐκ ἀληθὲς ἀλλὰ φαινόμενον εἰκός)

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Tendo em vista os assuntos tratados na presente investigaccedilatildeo pode-se concluir que

a hipoacutetese de que no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles encontra-se uma conciliaccedilatildeo

entre duas perspectivas tidas como antagocircnicas ndash a de Platatildeo e a dos sofistas ndash resulta

confirmada Inicialmente diagnosticamos dois momentos distintos no pensamento

retoacuterico do Estagirita quais sejam a juvenil filiaccedilatildeo em relaccedilatildeo a filosofia de Platatildeo e

ulteriormente numa fase mais madura a adoccedilatildeo da heranccedila retoacuterica dos mais importantes

sofistas Todavia antes da indicaccedilatildeo da intrincada relaccedilatildeo entre a filosofia de Platatildeo e a

sofiacutestica na retoacuterica de Aristoacuteteles foi necessaacuterio uma breve anaacutelise da concepccedilatildeo retoacuterica

do Soacutecrates histoacuterico a fim de entrevermos em que medida a retoacuterica sui generis deste

filoacutesofo definiu a visatildeo retoacuterica de Platatildeo Na sequecircncia comparamos a concepccedilatildeo retoacuterica

de Soacutecrates com a de Aristoacuteteles que permitiu concluir que agrave diferenccedila daquele

Aristoacuteteles natildeo estimava haver uma incompatibilidade intriacutenseca entre a persuasatildeo

retoacuterica e a comunicaccedilatildeo da verdade de sorte que os mais engenhosos recursos retoacutericos

poderiam ser uacuteteis para o bem da cidade mas com a condiccedilatildeo de serem empregados

segundo um compromisso eacutetico-poliacutetico Depois investigamos na obra de Platatildeo

sobretudo no diaacutelogo Fedro a linha mestra do pensamento retoacuterico deste filoacutesofo que

consiste substancialmente na adoccedilatildeo de uma retoacuterica filosoacutefica apoiada no meacutetodo

dialeacutetico cujo objetivo natildeo eacute adular nem reproduzir a opiniatildeo dos ouvintes mas instruiacute-

los moralmente de acordo com a Ideia do bem em conexatildeo com um modelo divino Mais

uma vez contrastamos duas visotildees distintas acerca da arte retoacuterica a de Platatildeo e a de

Aristoacuteteles Esse contraste permitiu ressaltar as noccedilotildees que aproximam Aristoacuteteles dos

sofistas daiacute atestando que este separa o domiacutenio da filosofia do domiacutenio da retoacuterica

conferindo-lhe uma autonomia que natildeo eacute ponderada por Platatildeo Desse modo a arte

retoacuterica de Aristoacuteteles natildeo precisa levar em conta a comunicaccedilatildeo da verdade filosoacutefica

mas deveria apenas ater-se agrave opiniatildeo geral razatildeo pela qual ela deveria abrir matildeo de

qualquer demonstraccedilatildeo apodiacutectica para limitar-se a argumentar a partir de probabilidades

e sinais em conformidade com o niacutevel da mentalidade do puacuteblico

Outrossim investigamos a concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas Goacutergias e Protaacutegoras a

qual estaria epistemicamente estribada no mais absoluto relativismo segundo o qual natildeo

seria possiacutevel veicular no discurso retoacuterico a apresentaccedilatildeo dos fatos em palavras mas

somente sua representaccedilatildeo subjetiva No toacutepico sobre a doutrina do sofista Goacutergias

observamos que ele enaltece exageradamente a capacidade persuasiva do discurso

retoacuterico que ele designa de λόγος conferindo-lhe um poder quase absoluto sobre os

ouvintes a ponto de comparaacute-lo com um grande e soberano senhor Aliaacutes para Goacutergias

o discurso soacute pode comunicar a opiniatildeo e natildeo o conhecimento porque conforme sua

posiccedilatildeo ceacutetica as palavras natildeo teriam qualquer correspondecircncia com as coisas Natildeo

obstante as palavras podem alterar pelo engano tanto as emoccedilotildees como as opiniotildees dos

ouvintes submetendo-os ao poder do orador No que toca agrave concepccedilatildeo retoacuterica de

Protaacutegoras consideramos a doutrina de que sobre qualquer assunto existem sempre duas

opiniotildees contraacuterias de maneira que orador pode defender indiferentemente ambos os

lados de uma questatildeo Nesse sentido natildeo haveria espaccedilo em sua teoria para o princiacutepio

de natildeo-contradiccedilatildeo porque tanto as percepccedilotildees quanto as opiniotildees sempre seriam

verdadeiras ainda que opostas entre si O sofista ainda concebe o homem como a medida

de todas as coisas o que significa que a verdade soacute pode ser relativa ao sujeito que

conhece e julga Mas se para Protaacutegoras natildeo existem proposiccedilotildees universalmente vaacutelidas

compete ao orador saber distinguir entre as opiniotildees melhores e piores e persuadir seus

ouvintes a respeito disso No entanto em contraste com a perspectiva de Goacutergias vimos

que Aristoacuteteles limita o poder de persuasatildeo da retoacuterica ndash ela pode descobrir os meios

disponiacuteveis para a persuasatildeo mas natildeo eacute capaz de persuadir a todos Aristoacuteteles tambeacutem

rejeita na retoacuterica gorgiana o emprego paradoxal do discurso epidiacutectico que deve acima

de tudo reconhecer valores bem como sua expressatildeo poeacutetica que carecia de simplicidade

clareza e aspirava apenas os efeitos pateacuteticos do discurso em detrimento da demonstraccedilatildeo

loacutegica na forma do entimema e do exemplo No que tange a Protaacutegoras verificamos que

Aristoacuteteles faz a defesa do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que para ele constitui o

fundamento tanto do pensamento teoacuterico como do praacutetico Este uacuteltimo que nos interessou

sobremaneira dispotildee-se a obter a verdade que corresponde agrave accedilatildeo eacutetico-poliacutetica mais

correta e neste aspecto aferimos a filiaccedilatildeo de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo a Platatildeo No entanto

o Estagirita rejeita a concepccedilatildeo de que no acircmbito da arte retoacuterica seja possiacutevel veicular

verdades absolutas como queria seu mestre mas nem por isso ele anui o relativismo

absoluto dos sofistas porque se este prevalecer na poliacutetica por certo fomentaraacute

consequecircncias nefastas para a cidade haja vista que a justiccedila e a injusticcedila poderatildeo ser

defendidas indiferentemente Mas ainda que natildeo exista em referecircncia aos assuntos eacutetico-

poliacuteticos a verdade absoluta existe certamente algo mais seguro e mais veriacutedico ndash as

opiniotildees geralmente aceitas ndash cujo expediente eacute vital para a superaccedilatildeo da bipolaridade

existente entre o conhecimento cientiacutefico e o relativismo

REFEREcircNCIAS

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FICHA CATALOGRAacuteFICA ELABORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECASUFPR ndash BIBLIOTECA DE CIEcircNCIAS HUMANAS COM OS DADOS FORNECIDOS PELO AUTOR

Fernanda Emanoeacutela Nogueira ndash CRB 91607 Santos Moiseacutes do Vale dos A arte retoacuterica de Aristoacuteteles uma conciliaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo

retoacuterica de Platatildeo e dos Sofistas Moiseacutes do Vale dos Santos ndash Curitiba 2019

Tese (Doutorado em Filosofia) ndash Setor de Ciecircncias Humanas da

Universidade Federal do Paranaacute Orientadora Profordf Drordf Vivianne de Castilho Moreira

1 Aristoacuteteles ndash Criacutetica e interpretaccedilatildeo 2 Eacutetica - Filosofia 3 Loacutegica 4 Retoacuterica antiga 5 Dialeacutetica 6 Sofistas (Filosofia grega) I Tiacutetulo CDD ndash 184

Agraves minhas preciosas filhas Gabriela e Alice

AGRADECIMENTOS

Por meio dos agradecimentos que se seguem desejo manifestar minha terna e

sincera gratidatildeo a todos aqueles que em maior ou menor grau contribuiacuteram para a

realizaccedilatildeo da presente tese Primeiramente agradeccedilo a inspiradora e brilhante professora

Drordf Vivianne de Castilho Moreira que no decurso dos meses que se seguiram desde a

elaboraccedilatildeo do projeto de doutorado ateacute a conclusatildeo da tese mostrou-se sempre soliacutecita

confiante e comprometida com o objeto da minha pesquisa Estendo meu reconhecimento

agrave professora Drordf Inara Zanuzzi e ao professor Dr Bernardo Guadalupe dos Santos Lins

Brandatildeo pelas perspicazes orientaccedilotildees sem as quais dificilmente teria ecircxito no meu

trabalho de pesquisa Tambeacutem sou grato aos nobiliacutessimos amigos Luiz Francisco Garcia

Lavanholi Carlos Eduardo Contreras Villayzan e Viniacutecius Joseacute da Costa Leonard bem

como agraves dedicadas secretaacuterias do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Filosofia Aurea

Junglos e Marianne Nigro Reconheccedilo ainda o meacuterito do suporte acadecircmico que me foi

concedido pela Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES)

Agradeccedilo igualmente a todos os professores do Departamento de Filosofia da

Universidade Federal do Paranaacute (UFPR) cuja contribuiccedilatildeo agrave minha formaccedilatildeo intelectual

e moral tem produzido inestimaacuteveis frutos E por fim sou grato agrave minha famiacutelia pela

complacecircncia e apoio afetivo dispensados nos momentos mais cruciais da minha

caminhada

Que isto de meacutetodo sendo como eacute uma coisa indispensaacutevel Todavia eacute melhor tecirc-lo sem

gravata nem suspensoacuterios mas um pouco agrave fresca e agrave solta como quem natildeo se lhe daacute da

vizinha fronteira nem do inspetor de quarteiratildeo Eacute como a eloquecircncia que haacute uma

genuiacutena e vibrante de uma arte natural e feiticeira e outra tesa engomada e chocha

Machado de Assis

RESUMO

Esta tese procura demonstrar que no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles existe uma conciliaccedilatildeo entre duas concepccedilotildees antagocircnicas acerca da arte retoacuterica a de Platatildeo e a dos sofistas Sob a influecircncia de Platatildeo o Estagirita procura preservar a praacutetica retoacuterica do relativismo moral atribuindo agrave arte do discurso persuasivo um compromisso eacutetico-poliacutetico que consiste tanto na defesa da verdade e da justiccedila na cidade como no fortalecimento das virtudes eacuteticas dos cidadatildeos cuja finalidade eacute o bem viver em geral ou a felicidade A retoacuterica portanto deve ser um instrumento educacional eacutetico-poliacutetico e nisso consistiria sua legiacutetima funccedilatildeo social Todavia em relaccedilatildeo agrave aproximaccedilatildeo com os sofistas Aristoacuteteles sustenta que o compromisso eacutetico-poliacutetico da arte retoacuterica justificaria o emprego de todos os estratagemas retoacutericos disponiacuteveis para obter a persuasatildeo dos ouvintes como o apelo emocional e a ecircnfase na expressatildeo enunciativa porque eacute censuraacutevel que a verdade e a justiccedila sejam vencidas pelos seus opostos Poreacutem tais expedientes natildeo podem ser mais relevantes para a argumentaccedilatildeo que o uso do entimema ndash espeacutecie de silogismo que se fundamenta sobre probabilidades e sinais Ele ainda limita a atuaccedilatildeo da arte retoacuterica agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras para o consenso geral rejeita a identificaccedilatildeo pura e simples do discurso retoacuterico com a verdade cientiacutefica separa o domiacutenio da filosofia do domiacutenio da retoacuterica e pretere a demonstraccedilatildeo apodiacutectica pela verossimilhanccedila Esta no entanto natildeo designa qualquer opiniatildeo sem qualificaccedilatildeo como se todas as opiniotildees fossem igualmente vaacutelidas de modo que seja possiacutevel argumentar o proacute e o contra sobre qualquer tema proposto mas caracteriza os fatos que acontecem a maior parte das vezes e as crenccedilas e valores geralmente aceitos pelo consenso social que amiuacutede indicam uma aproximaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave verdade

Palavras-chave Arte retoacuterica Dialeacutetica Conhecimento cientiacutefico Eacutetica Verossimilhanccedila Poliacutetica Sofiacutestica Loacutegica Relativismo Persuasatildeo Silogismo Entimema

ABSTRACT

This thesis tries to demonstrate that in the rhetorical thought of Aristotle there is a conciliation between two antagonistic conceptions about rhetorical art that of Plato and that of the Sophists Under Platorsquos influence the Stagirite seeks to preserve the rhetorical practice from moral relativism by attributing to the art of persuasive discourse an ethical-political commitment which consists both in the defense of truth and justice in the city and in the strengthening of the ethical virtues of citizens whose purpose is to live well in general or happiness Rhetoric therefore must be an ethical-political educational instrument and in this would be its legitimate social function However in relation to the Sophists Aristotle maintains that the ethical-political commitment of rhetorical art would justify the use of all available rhetorical devices for persuading listeners such as emotional appeal and the emphasis on elocution because it is blameworthy that truth and justice be overcome by their opposites Nevertheless such means should not be more relevant to the argument than the use of the enthymeme ndash a kind of syllogism that is based on probabilities and signs He still limits the performance of rhetorical art to opinions which appear to be true to general consensus rejects the pure and simple identification of rhetorical discourse with scientific truth separates the domain of philosophy from the domain of rhetoric and precludes the apodictic demonstration by likelihood This however does not designate any opinion without qualification as if all opinions were equally valid so that it is possible to argue the pro and the contra on any proposed theme but characterize the facts that happen most of the times and the beliefs and values generally accepted by social consensus which often indicate an approximation to the truth

Keywords Rhetorical art Dialectic Scientific knowledge Ethics Likelihood Politics Sophistry Logic Relativism Persuasion Syllogism Enthymeme

LISTA DE ABREVIATURAS

Anal Ant = Analiacuteticos Anteriores

Ant= Antiacutedose

Apol Soacutec = Apologia de Soacutecrates

Arg Sof = Dos Argumentos Sofiacutesticos

Criacutet = Criacuteton

Contr Sof = Contra os Sofistas

Def Soacutec = Defesa de Soacutecrates

Disc Dup = Discursos Duplos

El Hel = Elogio de Helena

Eacutet Eud = Eacutetica a Eudemo

Eacutet Nic = Eacutetica a Nicocircmaco

Fed = Fedro

Goacuterg = Goacutergias

Hip Men = Hiacutepias Menor

Inst orat = Instituiccedilotildees oratoacuterias

Leis= Leis

Mem = Ditos e Feitos Memoraacuteveis de Soacutecrates

Met = Metafiacutesica

Nuv = As Nuvens

Part An = Partes dos Animais

Pol = Poliacutetica

Prot = Protaacutegoras

Rep = A Repuacuteblica

Ret = Retoacuterica

Seg Anal = Segundos Analiacuteticos

Sob alm = Sobre a alma

Sof = O Sofista

Teet = Teeteto

Toacutep = Toacutepicos

Vid doutr fil il = Vidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustres

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO12

1 Aspectos gerais da arte retoacuterica Aristoacuteteles25

11 Experiecircncia arte e o primeiro esboccedilo da retoacuterica dAristoacuteteles25

12 Breve anaacutelise dos trecircs livros da Retoacuterica34

2 A concepccedilatildeo de retoacuterica no diaacutelogo platocircnico Defesa de Soacutecrates52

21 O problema da fidedignidade do discurso judicial de Soacutecrates52

22 As caracteriacutesticas da retoacuterica de Soacutecrates58

3 A arte retoacuterica de Aristoacuteteles e o discurso judicial de Soacutecrates67

31 O compromisso eacutetico-poliacutetico da persuasatildeo retoacuterica67

32 A ineficaacutecia persuasiva do discurso judicial de Soacutecrates81

4 A concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo no diaacutelogo Fedro 91

41 A retoacuterica filosoacutefica de Platatildeo91

42 A retoacuterica e o meacutetodo dialeacutetico103

43 O desprezo de Platatildeo pela retoacuterica do verossiacutemil113

5 A retoacuterica de Aristoacuteteles e seu contraste com a retoacuterica de Platatildeo121

51 A distinccedilatildeo aristoteacutelica entre ciecircncia e arte retoacuterica121

52 Entimema o silogismo retoacuterico135

53 A relevacircncia persuasiva da opiniatildeo geral e da adaptaccedilatildeo agrave mentalidade do

auditoacuterio143

6 A concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas Goacutergias e Protaacutegoras162

61 Aspectos gerais do movimento sofista162

62 Goacutergias a retoacuterica como artiacutefice da persuasatildeo171

63 Protaacutegoras a teacutecnica dos argumentos opostos e o relativismo181

7 A funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da retoacuterica de Aristoacuteteles e a refutaccedilatildeo da sofiacutestica199

71 A retoacuterica de Aristoacuteteles e a dos sofistas199

72 A refutaccedilatildeo da retoacuterica gorgiana209

73 A refutaccedilatildeo da retoacuterica protagoacuterica235

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS253

REFEREcircNCIAS255

INTRODUCcedilAtildeO

Eacute manifesto que em sua vasta obra escrita Aristoacuteteles tratou praticamente de todos

os temas de pesquisa de sua eacutepoca mas poucos sabem que foi sobre o tema da retoacuterica

que ele iniciou-se como escritor Ele foi motivado por Platatildeo que lhe conferiu a

incumbecircncia de ministrar liccedilotildees sobre retoacuterica no interior da Academia Nesse periacuteodo

Aristoacuteteles compocircs e publicou o diaacutelogo exoteacuterico Grilos dedicado ao assunto No

diaacutelogo em apreccedilo ele discute se a retoacuterica eacute ou natildeo eacute uma arte donde conclui que a

retoacuterica de tipo gorgiano agrave qual se filiava tambeacutem o orador Isoacutecrates natildeo poderia ser

considerada uma genuiacutena arte A despeito das pouquiacutessimas informaccedilotildees doxograacuteficas

disponiacuteveis sobre o Grilos pode-se afirmar com certa seguranccedila que ele representa a

primeira fase do pensamento retoacuterico do Estagirita enquanto que o pensamento da sua

maturidade e da sua uacuteltima produccedilatildeo eacute expresso pelos trecircs livros da Retoacuterica

Nas uacuteltimas linhas da obra Dos Argumentos Sofiacutesticos Aristoacuteteles explicita o

procedimento utilizado para a composiccedilatildeo da Retoacuterica uma longa pesquisa sobre os

manuais de retoacuterica elaborados por seus predecessores a partir dos quais compocircs o seu

proacuteprio meacutetodo de persuasatildeo No decorrer da Retoacuterica ele menciona alguns autores de

manuais de retoacuterica e suas respectivas contribuiccedilotildees para o aprimoramento desta arte

dentre os quais eacute oportuno mencionar os eminentes sofistas Goacutergias de Leontini

Protaacutegoras de Abdera Trasiacutemaco de Calcedocircnia e Alcidamante de Eleacuteia Eacute inequiacutevoco

portanto que a arte retoacuterica de Aristoacuteteles em sua uacuteltima fase conteacutem muitos elementos

da concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas

Na hipoacutetese de assumirmos que houve no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles duas

diferentes fases quais sejam a fase juvenil intimamente ligada agrave filosofia de Platatildeo e a

fase que refletiria a maturidade do seu pensamento a qual teria recebido a inegaacutevel

influecircncia da sofiacutestica pode-se aventar que a arte retoacuterica de Aristoacuteteles situa-se

equidistante da posiccedilatildeo de Platatildeo e da posiccedilatildeo dos sofistas Aproximando-se do

pensamento de Platatildeo ele rejeita explicitamente na sofiacutestica o relativismo eacutetico porque

em sua visatildeo o orador bem-intencionado jamais deve persuadir seus ouvintes acerca do

que eacute imoral mesmo sendo capaz de fazecirc-lo Pelo contraacuterio deve ele comprometer-se

com a defesa da verdade e da justiccedila na cidade tendo por fim terminal a εὐπραξία que

significa o bem agir na vida puacuteblica e na vida privada E com o escopo de evitar os efeitos

danosos da sofiacutestica sobre a accedilatildeo poliacutetica tema que eacute longamente explorado por Platatildeo

do decorrer dos seus diaacutelogos o Estagirita atribui agrave arte retoacuterica uma funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica

No entanto eacute importante sublinhar que Aristoacuteteles natildeo subscreve todas as teses

platocircnicas acerca da arte retoacuterica jaacute que ele rejeita no pensamento de Platatildeo a

identificaccedilatildeo pura e simples do discurso retoacuterico com a veiculaccedilatildeo da verdade (ἀλήθεια)

substituindo-a pela verossimilhanccedila ou probabilidade (εἰκός) porquanto quem aspira se

tornar orador natildeo precisa forccedilosamente ser um filoacutesofo nem tem a obrigaccedilatildeo de conhecer

o que realmente eacute mas apenas o que aparenta ser verdadeiro agraves multidotildees Por falar nisso

a palavra grega ldquoεἰκόςrdquo pode ser traduzida tanto por ldquoverossiacutemilrdquo como por ldquoprovaacutevelrdquo

Por certo ambas as palavras seratildeo utilizadas neste trabalho mas com significados

diferentes a primeira designando uma concepccedilatildeo loacutegica ao passo que a segunda uma

concepccedilatildeo ontoloacutegica Isto posto um discurso eacute considerado verossiacutemil porque estaacute de

acordo com fatos que realmente acontecem a maior parte das vezes e com as crenccedilas

geralmente admitidas num determinado contexto social que neste caso recebe a

designaccedilatildeo de provaacutevel

No que tange agrave aproximaccedilatildeo com os sofistas Aristoacuteteles limita a atuaccedilatildeo da arte

retoacuterica agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras para o consenso geral porque os

argumentos retoacutericos devem ser formados de premissas comuns tendo em vista a

comunicaccedilatildeo com as multidotildees e natildeo com um auditoacuterio especializado Todavia em

oposiccedilatildeo aos sofistas para os quais tudo eacute relativo ele admite que existe uma ciecircncia

inteiramente exata (ἐπιστήμη) E assim como Platatildeo ele admite uma ciecircncia que por via

demonstrativa eacute capaz de alcanccedilar a verdade apodiacutectica mas ao mesmo tempo ele objeta

que a ciecircncia mais exata eacute relevante para persuadir certos auditoacuterios aos quais falta a

devida instruccedilatildeo filosoacutefica Por essa razatildeo no discurso retoacuterico natildeo eacute preciso comunicar

verdades filosoacuteficas ou cientiacuteficas ao inveacutes disso eacute preciso utilizar noccedilotildees que satildeo

acessiacuteveis aos ouvintes comuns Decerto a filosofia tem por finalidade descobrir a

verdade por isso Aristoacuteteles a designa com a expressatildeo ldquoἐπιστήμην τῆς ἀληθείαςrdquo que

traduzida significa ldquoa ciecircncia da verdaderdquo A retoacuterica por seu lado preocupa-se com

aquilo que pensam os homens em geral com as crenccedilas compartilhadas pelo consenso

social tendo como objetivo a persuasatildeo (πείθω)

Agrave vista disso o interesse de Aristoacuteteles pela retoacuterica leva-o a concebecirc-la sob duas

perspectivas que correspondem a dois compromissos distintos mas coexistentes no

interior do amplo campo das preocupaccedilotildees humanas de um lado a defesa da verdade e

da justiccedila na cidade e de outro a admissatildeo e veiculaccedilatildeo das crenccedilas geralmente aceitas

pelo conjunto dos cidadatildeos (ἔνδοξα) Esses dois compromissos se afiguram grosso modo

no nuacutecleo da conciliaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo e a dos sofistas Eacute

justamente em torno de tal nuacutecleo que a presente pesquisa gravitaraacute a fim de demonstrar

na medida do possiacutevel a maneira pela qual Aristoacuteteles concilia os elementos da filosofia

de Platatildeo mormente sua perspectiva retoacuterica com a concepccedilatildeo retoacuterica teorizada e

praticada pelos mais eminentes sofistas

Conforme veremos ulteriormente em pormenor a concepccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles

expressa nos trecircs livros da Retoacuterica se afasta substancialmente do pensamento retoacuterico de

Platatildeo notadamente em relaccedilatildeo ao periacuteodo em que aquele frequentava a Academia e

aproxima-se em muitos aspectos da retoacuterica praticada pelos sofistas Dessarte seraacute

preciso por um lado compreendermos as possiacuteveis razotildees pelas quais Aristoacuteteles teria se

afastado de Platatildeo e o que efetivamente caracteriza o seu meacutetodo retoacuterico e por outro

analisar em que medida a sofiacutestica influenciou o pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles uma

vez que este menciona os sofistas como os descobridores dos primeiros princiacutepios da arte

retoacuterica os quais teriam contribuiacutedo para o seu desenvolvimento

Com efeito a anaacutelise da concepccedilatildeo platocircnica acerca da arte retoacuterica assim como o

seu contraste em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo retoacuterica sustentada por Aristoacuteteles visa ainda

ressaltar algumas noccedilotildees que aproximam Aristoacuteteles dos sofistas sobretudo a noccedilatildeo de

que os argumentos retoacutericos devem ser formados das opiniotildees geralmente aceitas tendo

por alvo a persuasatildeo Todavia a anaacutelise da concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas mais

precisamente de Goacutergias e de Protaacutegoras e sua contraposiccedilatildeo relativamente a Aristoacuteteles

natildeo visa somente evidenciar a discordacircncia entre Aristoacuteteles e a sofiacutestica mas trazer agrave

tona em termos mais definidos os pontos nos quais o Estagirita se aproxima do seu

mestre mormente em relaccedilatildeo agrave funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da arte retoacuterica cujo corolaacuterio seraacute

a visatildeo de um quadro mais completo da tese que se tenciona demonstrar

A presente investigaccedilatildeo seraacute dividida de sorte a concretizar as tarefas sumarizadas

acima E para levaacute-las a cabo seraacute oportuno elucidar os termos as noccedilotildees e os conceitos

pertencentes agrave arte retoacuterica de Aristoacuteteles cuja compreensatildeo eacute requisito para

acompanharmos subsequentemente a argumentaccedilatildeo aristoteacutelica sobre o tema Eis por que

o primeiro capiacutetulo seraacute dedicado ao exame de concepccedilotildees como a de experiecircncia

(ἐμπειρία) e arte (τέχνη) a vinculaccedilatildeo da retoacuterica de Aristoacuteteles com a dialeacutetica

(διαλεκτικῇ) bem como a compreensatildeo desta as provas artiacutesticas (πίστεις ἔντεχνοι) que

residem de um lado nas provas loacutegicas isto eacute no entimema e no exemplo (λόγος) e de

outro nas provas psicoloacutegicas compostas pelo caraacuteter do orador (ἦθος) e o apelo

emocional (πάθος) os trecircs gecircneros de discursos retoacutericos o deliberativo

(συμβουλευτικός) o judicial (δικανικός) e o epidiacutectico (ἐπιδεικτικός) a anaacutelise e a

classificaccedilatildeo do caraacuteter dos ouvintes (ἦθος) que visam construir os argumentos mais

adequados a cada um deles dividindo-os em grupos segundo a idade e a condiccedilatildeo social

os lugares-comuns (τόποι κοινοί) que satildeo tipos de argumentos que podem ser facilmente

localizados pelo orador tendo em vista sua utilizaccedilatildeo em diversas situaccedilotildees a expressatildeo

enunciativa (λέξις) que diz respeito agrave maneira pela qual o conteuacutedo do discurso deve ser

apresentado ao auditoacuterio e finalmente o breve estudo das partes do discurso (τάξις)

Depois de cumprida essa primeira etapa de iacutendole propedecircutica o capiacutetulo 2 seraacute

reservado ao exame do diaacutelogo platocircnico Defesa de Soacutecrates cujo propoacutesito eacute elucidar

algumas noccedilotildees do assim chamado ldquoSoacutecrates histoacutericordquo e sua respectiva compreensatildeo sui

generis da arte retoacuterica Esta investigaccedilatildeo pode proporcionar em certa medida as

primeiras indicaccedilotildees para o oportuno discernimento das posiccedilotildees de Platatildeo e de

Aristoacuteteles a respeito da arte retoacuterica Ela tambeacutem eacute esclarecedora no que concerne agraves

razotildees pelas quais Aristoacuteteles teria se afastado da concepccedilatildeo retoacuterica defendida por

Platatildeo bem como na explicitaccedilatildeo do efeito que o movimento sofista teria exercido sobre

o pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles Pode-se desde jaacute adiantar que o discurso judicial de

Soacutecrates proferido em sua proacutepria defesa no diaacutelogo em apreccedilo natildeo corresponde

exatamente agravequilo que ele pronunciou mas existem fortes indiacutecios para sustentar a

hipoacutetese de que o Soacutecrates histoacuterico natildeo pronunciaria um discurso em sua defesa nos

moldes da teacutecnica retoacuterica empregada pelos oradores de sua eacutepoca que em grande parte

incluiacutea os sofistas A retoacuterica socraacutetica como eacute exposta na Defesa de Soacutecrates (e na

Apologia de Soacutecrates escrita por Xenofonte) natildeo se identifica simplesmente com uma

teacutecnica de discurso ou com uma arte mas com sua proacutepria vida E a fim de demonstrar

isso Soacutecrates decide comunicar o seu discurso numa linguagem ordinaacuteria que se

apresenta diretamente em sua alma em coerecircncia com o que acredita ser verdadeiro em

obediecircncia agrave sua divindade pessoal (δαιμόνιον) e se for o caso em prejuiacutezo da proacutepria

vida Ele ainda nega que seu discurso seja premeditado quer dizer previamente elaborado

ou arquitetado para que tenha eficaacutecia persuasiva

De fato a linguagem retoacuterica comum eacute dependente de certo nuacutemero de princiacutepios

regras e teacutecnicas mas a linguagem que eacute inerente ao tipo de retoacuterica defendida e praticada

por Soacutecrates caracteriza-se pela simplicidade estaacute em conformidade com o proacuteprio

movimento do pensamento que sem ornamento eacute adequada ao que se refere e eacute conforme

ao que pensa e acredita quem a emprega Ele tambeacutem associa por um lado a

artificialidade do discurso agrave persuasatildeo e agrave mentira e por outro associa o seu discurso

improvisado com a verdade e a justiccedila Por essa razatildeo ele natildeo produziu uma boa defesa

quando todos achavam que deveria por todos os meios disponiacuteveis persuadir os juiacutezes

nem preocupou-se em buscar subterfuacutegios (como desfilar com sua esposa e filhos) para

obter a benevolecircncia deles e por conseguinte livrar-se da condenaccedilatildeo A despeito disso

eacute inegaacutevel que Soacutecrates age no tribunal como um orador na medida em que procura

influenciar os seus ouvintes mas em vez de apresentar um discurso ornamentado e

agradaacutevel com a finalidade de obter a condescendecircncia dos ouvintes ele atrai para si a

sua ira pois exorta-os a cuidar de suas almas mesmo correndo o risco de ser derrotado

no tribunal Aleacutem disso ele busca persuadir acerca do que acredita ser verdadeiro em

contraste com os demais oradores que natildeo parecem comprometidos com a honestidade e

a boa-feacute nos seus discursos Tal atitude suscitou a indignaccedilatildeo dos juiacutezes e natildeo sua

benevolecircncia o que certamente contribuiu para a decisatildeo final que condenou o filoacutesofo agrave

morte

O capiacutetulo 3 daraacute prosseguimento ao exame da posiccedilatildeo retoacuterica atribuiacuteda a Soacutecrates

mas levando em consideraccedilatildeo o contraste com as teses aristoteacutelicas Pode-se adiantar que

a despeito de reconhecer a eficaacutecia persuasiva da teacutecnica retoacuterica Soacutecrates nem por isso

a emprega no seu discurso judicial o que lhe vale a objeccedilatildeo por parte de Aristoacuteteles de

que os recursos retoacutericos jamais devem ser negligenciados por qualquer orador judicial

bem-intencionado porque a praacutetica da arte retoacuterica com todos os seus ornamentos e

sutilezas natildeo contradiz necessariamente a justiccedila e a verdade Por exemplo ele apresenta

aos que pretendem ser bons oradores a maneira que considera eficaz para estimular nos

ouvintes o sentimento de piedade (ἔλεος) recurso utiliacutessimo para induzir os juiacutezos dos

ouvintes em direccedilatildeo agravequilo que conveacutem eticamente E diferente do que parece propor

Soacutecrates no proecircmio de seu discurso judicial ao estabelecer a oposiccedilatildeo entre a persuasatildeo

(πειθώ) e a verdade (ἀλήθεια) Aristoacuteteles assevera que a persuasatildeo ligada agrave teacutecnica

retoacuterica pode ser politicamente uacutetil razatildeo pela qual ela jamais deve ser negligenciada por

qualquer orador bem-intencionado Ademais a arte retoacuterica enquanto disciplina

subordinada agrave ciecircncia poliacutetica que eacute arquitetocircnica (αρχιτεκτονική) em relaccedilatildeo agraves demais

ciecircncias praacuteticas adquire a tarefa de auxiliar a atividade poliacutetica no nobre fomento do

bem comum o qual soacute eacute exequiacutevel pela consolidaccedilatildeo das virtudes eacuteticas Outrossim a

persuasatildeo retoacuterica pode ser uacutetil porque a verdade e a justiccedila satildeo por natureza mais fortes

que seus contraacuterios E o fato da verdade e da justiccedila possuiacuterem uma superioridade natural

sobre a falsidade e a injusticcedila implica que o bom uso da arte retoacuterica deve corroborar tal

superioridade Isto ocorre porque as decisotildees judiciais e poliacuteticas satildeo sempre susceptiacuteveis

de serem influenciadas por argumentos falaciosos Agrave vista disso a arte retoacuterica se

transfigura num poderoso instrumento para promover o bem da cidade jaacute que sua funccedilatildeo

eacutetico-poliacutetica consiste em trazer a verdade agrave luz identificar e expor os sofismas e

combater a perversatildeo da verdade e da justiccedila Pode-se concluir pois que segundo os

paracircmetros do meacutetodo retoacuterico desenvolvido pelo Estagirita Soacutecrates poderia ser

considerado (sob o ponto de vista moral) um orador judicial justo e veraz poreacutem foi

ineficiente em persuadir jaacute que natildeo estava interessado na teacutecnica retoacuterica nem agradar

os seus ouvintes tampouco apelar para suas emoccedilotildees mas restringia-se a tentar instruiacute-

los sobre os valores da sabedoria e das virtudes funccedilatildeo que aliaacutes eacute reservada ao ensino

e natildeo ao discurso puacuteblico

No capiacutetulo 4 analisar-se-aacute a perspectiva propriamente platocircnica acerca da arte

retoacuterica ou seja a do Platatildeo dos diaacutelogos da fase intermediaacuteria (387-367 aC) A anaacutelise

em questatildeo estaraacute focada sobretudo no diaacutelogo Fedro no qual Platatildeo sustenta a tese de

que aquele que pretende pronunciar determinado assunto deve conhecer cabalmente

aquilo do que vai falar pois a primeira e mais fundamental condiccedilatildeo para o bom discurso

eacute que o orador conheccedila a verdade sobre o assunto que tenciona discutir Desse modo o

orador que ignora a noccedilatildeo de justo ou injusto de mau ou de bom etc natildeo pode escapar

nunca agrave censura que merece ainda que a multidatildeo o estime Platatildeo tambeacutem rejeita a

concepccedilatildeo propalada pela maioria dos oradores de que a demonstraccedilatildeo baseada na

verossimilhanccedila deve ocupar o lugar da demonstraccedilatildeo baseada na verdade Ele rejeita a

verossimilhanccedila como fonte da argumentaccedilatildeo retoacuterica por consistir de opiniotildees e valores

conhecidos e aceitos pelo coletivo de modo que subscrevecirc-los transformaria o orador

num mero bajulador Aleacutem do mais o orador que desconhece o bem e o mal e ao se

apoiar somente no que aparenta ser bom para as multidotildees pode exaltar o mal como se

fosse o bem e a consequecircncia dessa atitude seraacute inevitavelmente prejudicial para a cidade

Ele ainda rejeita a pretensatildeo democraacutetica de fazer do discurso retoacuterico algo

universalmente partilhado Assim o criteacuterio de validade de um discurso natildeo deve

relacionar-se com uma regra majoritaacuteria qualquer porque a arte retoacuterica deve ser um

assunto que compete exclusivamente aos filoacutesofos E tendo em vista a exigecircncia

estabelecida por Platatildeo no Fedro segundo a qual o orador deve necessariamente ser um

filoacutesofo em conexatildeo com as caracteriacutesticas e a atuaccedilatildeo deste em sua cidade ideal exposta

no diaacutelogo A Repuacuteblica concluir-se-aacute que somente uma pequena classe de homens muito

esclarecidos estaraacute habilitada a exercer a arte retoacuterica pois quando se trata de discursos

Platatildeo assevera que existem especialistas assim como ocorre na construccedilatildeo de navios na

medicina ou em qualquer outra arte Nessa perspectiva apenas o filoacutesofo possuiria um

conhecimento no verdadeiro sentido dessa palavra que por meio da multiplicidade dos

fenocircmenos eacute capaz de contemplar a imagem universal e imutaacutevel das coisas ndash a Ideia A

partir da contemplaccedilatildeo da Ideia ele pode dizer o que eacute justo e belo por si enquanto que

as opiniotildees das multidotildees a respeito dessas coisas natildeo teriam nenhuma validade Decerto

a contemplaccedilatildeo das Ideias eacute a melhor de todas as ldquopossessotildees divinasrdquo um tipo de loucura

(μανίας) que se manifesta quando o filoacutesofo percebe a beleza sensiacutevel como a beleza dos

corpos e se recorda da beleza enquanto Ideia que eacute a verdadeira beleza E aquele que

domina a praacutetica filosoacutefica de procurar os princiacutepios mais gerais por detraacutes dos fenocircmenos

particulares ndash a dialeacutetica ndash conheceraacute a Ideia suprema de bem (ἀγαθός) que explica em

que consiste a bondade de tudo o mais Sem o conhecimento dessa Ideia natildeo se pode

pensar coerentemente sobre questotildees morais natildeo se pode planejar um padratildeo moral para

a vida humana nem proferir um verdadeiro discurso retoacuterico

No capiacutetulo 5 o objetivo seraacute mostrar que no seu tratado sobre a arte retoacuterica

Aristoacuteteles neutraliza o antagonismo entre a verdade e a verossimilhanccedila que caracteriza

a concepccedilatildeo platocircnica exposta no diaacutelogo Fedro por meio da separaccedilatildeo de dois domiacutenios

legitimamente autocircnomos ndash o domiacutenio da filosofia ou da ciecircncia que para o Estagirita

satildeo termos equivalentes e o domiacutenio da retoacuterica Para ele tanto a filosofia (cujo objeto eacute

a verdade) como a retoacuterica (cujo objeto eacute a verossimilhanccedila) adquirem legitimidade no

seu campo especiacutefico de atuaccedilatildeo sem que haja qualquer oposiccedilatildeo entre elas Todavia a

retoacuterica eacute uma arte situada abaixo da filosofia e das ciecircncias exatas que satildeo

demonstrativas ou apodiacutecticas e visam atingir verdades necessaacuterias A retoacuterica por seu

lado soacute pode alcanccedilar o verossiacutemil isto eacute aquilo que por ser compartilhado pela maioria

das pessoas afigura-se razoaacutevel ou provaacutevel E diferente da espeacutecie de silogismo ligada

agrave demonstraccedilatildeo cientiacutefica o silogismo retoacuterico eacute incompleto truncado jaacute que natildeo possui

tantas partes nem estas satildeo tatildeo distintas como no silogismo cientiacutefico Agrave vista disso a

retoacuterica de Aristoacuteteles estaacute longe de ser uma ciecircncia exata que partiria de axiomas e

princiacutepios cujas conclusotildees satildeo sempre necessaacuterias Pelo contraacuterio no acircmbito da arte

retoacuterica conveacutem contentar-se com a indicaccedilatildeo da verdade aproximadamente em linhas

gerais e falar de coisas que satildeo verdadeiras no mais das vezes (ὡς ἐπὶ τὸ πολύ) Em

contraste com a tese defendida por Platatildeo no Fedro segundo a qual o bom orador deve

conhecer a essecircncia do eacute que justo bom e belo o Estagirita aproxima-se das teses

sofiacutesticas ponderando que o conhecimento que o orador deve possuir para proferir um

bom discurso deve limitar-se agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras para as multidotildees

Tal procedimento se explica pelo fato de Aristoacuteteles sustentar que natildeo se deve exigir

precisatildeo em todos os raciociacutenios nem eacute necessaacuterio procurar o mesmo grau de rigor para

todas as ciecircncias e artes Ele tambeacutem assegura que se algueacutem atua com pretensotildees

filosoacuteficas precisa ter em vista a verdade mas os que atuam segundo a retoacuterica precisam

ter em vista natildeo mais a verdade mas a opiniatildeo geral Isto ocorre porque Aristoacuteteles

persiste no valor das ἔνδοξα ou seja das opiniotildees geralmente aceitas jaacute que na sua visatildeo

uma coisa que constitua objeto de crenccedila de todos os homens ou da maioria deles ou pelo

menos de todos os homens inteligentes ou da maioria deles eacute digna de confianccedila e

merece que se diga algo a seu favor Todavia as ἔνδοξα natildeo satildeo quaisquer opiniotildees mas

as autorizadas as importantes agraves quais se deve dar credibilidade por isso natildeo precisam

ser verdadeiras no sentido estrito do termo mas devem ser compartilhadas e aceitas pela

maioria Aleacutem disso o silogismo retoacuterico que recebe o nome de entimema (ἐνθύμημα)

consiste num tipo de raciociacutenio desenvolvido unicamente para o niacutevel da mentalidade do

puacuteblico tendo como ponto de partida suas proacuteprias crenccedilas e isto perante um puacuteblico

insipiente que natildeo recebeu um treinamento especiacutefico em loacutegica formal e que seria

incapaz de ver muitas coisas ao mesmo tempo ou de seguir uma longa cadeia de

raciociacutenios O orador portanto precisa adaptar o seu discurso agraves ideias dos ouvintes e

falar amiuacutede diante de homens inteiramente ignorantes de sorte que se estes natildeo forem

aliciados pelo prazer nem influenciados pelas emoccedilotildees natildeo seraacute possiacutevel persuadi-los

sobre aquilo mesmo que eacute justo e verdadeiro

Essas convicccedilotildees de Aristoacuteteles conduzem-nos naturalmente ao pensamento

atribuiacutedo aos sofistas que seraacute tema do capiacutetulo 6 Aiacute se buscaraacute reconstruir com base

nas doxografias e fragmentos disponiacuteveis a concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas Goacutergias de

Leontini e Protaacutegoras de Abdera Goacutergias por certo foi considerado um dos inventores

do discurso epidiacutectico para o qual criou uma prosa eloquente e com muacuteltiplas figuras de

linguagem que o transformaram numa composiccedilatildeo erudita e ritmada nos moldes da

poesia As melhores informaccedilotildees a este respeito se encontram numa obra de Goacutergias

escrita em forma de declamaccedilatildeo retoacuterica chamada Elogio de Helena (Ἑλένης ἐγκώμιον)

O propoacutesito desta obra consiste em libertar Helena da culpa por deixar seu lar sua filha

e seu marido para ir para Troia com Paacuteris Uma das explicaccedilotildees de Goacutergias para o

comportamento de Helena consiste no poder que eacute inerente ao discurso retoacuterico (λόγος)

Ele argumenta que se o discurso a persuadiu e sua alma enganou natildeo seria difiacutecil livraacute-

la da responsabilidade pois o λόγος seria um grande e soberano senhor capaz de operar

diviniacutessimas accedilotildees sendo possiacutevel atraveacutes dele suscitar o medo a calma a alegria afastar

a dor e estimular a compaixatildeo Dessarte Goacutergias define a arte retoacuterica como artiacutefice da

persuasatildeo (πειθοῦς δημιουργός) de modo que as palavras quando adequadamente

empregadas podem alterar tanto as emoccedilotildees como as opiniotildees dos ouvintes outorgando

ao orador um poder quase ilimitado Nessa perspectiva natildeo seria necessaacuterio o domiacutenio

de um conhecimento teacutecnico sobre um certo assunto porque o orador saberia como

produzir a persuasatildeo independente de qualquer conhecimento especializado Aliaacutes para

Goacutergias satildeo os oradores que sempre tecircm sucesso em persuadir a Assembleia a aprovar

as leis mais relevantes e natildeo os especialistas

No que tange ao sofista Protaacutegoras ver-se-aacute sua doutrina dos δισσοὶ λόγοι segundo

a qual em relaccedilatildeo a qualquer assunto eacute possiacutevel formular dois argumentos opostos isto

eacute que sustentam respectivamente duas afirmaccedilotildees contraditoacuterias e por via de

consequecircncia que eacute possiacutevel aprovar e refutar um mesmo tema proposto Ele queria dizer

com isso que se pode tomar qualquer lado de uma questatildeo e defendecirc-la com igual sucesso

Um fragmento conhecido como Discursos Duplos (Δισσοὶ λόγοι) atribuiacutedo a Protaacutegoras

e sua escola ilustra bem essa habilidade O fragmento eacute composto por uma seacuterie de

discursos de natureza antiloacutegica no qual o autor examina cinco toacutepicos propondo para

cada um deles discursos contraacuterios sobre o bom e o ruim sobre o bonito e o feio sobre

o justo e o injusto sobre o falso e o verdadeiro e sobre a sabedoria e a virtude Protaacutegoras

tambeacutem teria declarado que ldquoo homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo

enquanto satildeo das que natildeo satildeo enquanto natildeo satildeordquo Tal declaraccedilatildeo significa que a medida

(μέτρον) de todas as coisas seria cada homem (ἄνθρωπος) considerado individualmente

enquanto que o que eacute medido nas coisas natildeo seria sua existecircncia e sua natildeo-existecircncia

mas o modo como satildeo e o modo como natildeo satildeo percebidas Decerto a declaraccedilatildeo em

apreccedilo reflete o mais absoluto relativismo segundo o qual natildeo haveria qualquer verdade

absoluta nem universalmente vaacutelida mas ela seria relativa ao sujeito que conhece e julga

Protaacutegoras natildeo tem a pretensatildeo de alcanccedilar uma verdade objetiva e vaacutelida para todos pois

se o homem eacute a medida de todas as coisas natildeo existiria um criteacuterio de verdade extriacutenseco

a ele ndash as percepccedilotildees sensiacuteveis as leis as regras morais os valores a cultura e tudo o

mais soacute poderiam ser definidos subjetivamente De acordo com a doutrina do homem-

medida se uma coisa parece bela a um e feia a outro fria a um e quente a outro etc

inevitavelmente seraacute as duas coisas simultaneamente de sorte que natildeo haveria mais

qualquer objetividade nem mesmo o princiacutepio loacutegico da natildeo-contradiccedilatildeo teria validade

Mas se natildeo existe um discurso mais verdadeiro que outro certamente existe um discurso

que seja convenientemente mais uacutetil Nesse sentido a verdadeira sabedoria para

Protaacutegoras consiste em reconhecer aquilo que eacute nocivo e uacutetil agrave conveniecircncia eacutetica e

poliacutetica dos cidadatildeos e fazer prevalecer pela persuasatildeo o melhor discurso No entanto o

melhor discurso tem uma validade provisoacuteria ou seja ele perdura ateacute que natildeo apareccedila e

se afirme outro discurso ainda melhor Portanto o que realmente existe e importa para

Protaacutegoras natildeo eacute a verdade ou algo mais veriacutedico mas os expedientes que possibilitam

ao orador impor-se sobre os demais cidadatildeos cuja faculdade ele atribui agrave arte retoacuterica

No uacuteltimo capiacutetulo iremos discorrer sobre o compromisso eacutetico-poliacutetico da arte

retoacuterica de Aristoacuteteles bem como o seu contraste com a retoacuterica eriacutestica e relativista

praticada pelos sofistas Decerto a perspectiva epistecircmica assumida pela maioria dos

sofistas pressupotildee que o mundo estaacute destituiacutedo de verdade objetiva por isso o discurso

retoacuterico natildeo teria um referente extriacutenseco ao sujeito ou seja natildeo existiria outro criteacuterio

de verdade senatildeo o proacuteprio sujeito que mediante o triunfo da palavra eacute capaz de persuadir

qualquer um sobre qualquer assunto Entretanto numa expliacutecita alusatildeo a Goacutergias o

Estagirita declara que o bom orador natildeo eacute aquele que promete a vitoacuteria a qualquer custo

mas eacute aquele que encontra para a sua causa todas as chances de obter a vitoacuteria Ele deve

estar apto a descobrir os meios disponiacuteveis para persuadir mas ele jamais teraacute o poder de

persuadir todo e qualquer ouvinte

E no que poderiacuteamos divisar como uma expliacutecita afinidade em relaccedilatildeo agraves teses

platocircnicas Aristoacuteteles sustenta que o orador deve esforccedilar-se por implantar a justiccedila na

alma dos seus concidadatildeos e eliminar os viacutecios Nesse ponto de vista ele subscreve a

funccedilatildeo psicagoacutegica da arte retoacuterica defendida por Platatildeo ndash guiar a alma dos ouvintes para

a praacutetica das virtudes A arte retoacuterica deve pois ser um instrumento educacional eacutetico-

poliacutetico e nisso consistiria a atividade terminal agrave qual se subordina quer dizer a

finalidade uacuteltima para a qual afigura-se como meio razatildeo pela qual Aristoacuteteles censura o

uso leviano que os sofistas faziam das palavras que incorria tanto no mal moral quanto

no erro epistecircmico Desse modo a persuasatildeo natildeo possuiria um fim em si mesmo

conforme propalavam os sofistas porque na condiccedilatildeo de instrumento eacutetico-poliacutetico a

retoacuterica submete-se a uma finalidade mais sublime a qual precisa ser buscada em virtude

de si mesma qual seja a felicidade (εὐδαιμονία) Com efeito para que se possa fazer a

distinccedilatildeo entre o orador e o sofista seraacute preciso a seus olhos identificar aquele natildeo

somente pela teacutecnica retoacuterica que por natureza eacute neutra (como a medicina a estrateacutegia

militar e demais artes) mas fundamentalmente por sua disposiccedilatildeo moral Portanto o bom

orador distinguir-se-ia do sofista pelo fato de empregar a teacutecnica retoacuterica para o triunfo

natural do verdadeiro e do justo e tambeacutem por ser capaz de separar o argumento aparente

do argumento verdadeiro

Aristoacuteteles reafirma o engajamento eacutetico de sua retoacuterica ao criticar o uso que

Goacutergias e os sofistas faziam do discurso epidiacutectico este precisaria manifestar a grandeza

de uma virtude efetivamente existente e reconhecida pelo consenso geral e nunca

transformar uma accedilatildeo perversa numa accedilatildeo virtuosa Porquanto existem accedilotildees que por

serem perversas de maneira absoluta tornam-se indefensaacuteveis a exemplo do adulteacuterio

(μοιχεία) E ao mesmo tempo em que Aristoacuteteles defendia uma retoacuterica racional com

base na demonstraccedilatildeo teacutecnica do verossiacutemil Goacutergias teorizava e praticava uma retoacuterica

elocutiva e emocional Goacutergias desenvolveu para a retoacuterica uma expressatildeo linguiacutestica

eloquente transformando-a numa composiccedilatildeo erudita e ritmada no niacutevel esteacutetico da

poesia Por certo a principal razatildeo pela qual ele optou pela linguagem poeacutetica e natildeo pela

linguagem corrente eacute que aquela possui mais eficazmente a capacidade de apelar para os

desejos irracionais da alma humana Entretanto Aristoacuteteles argumenta que aqueles que

se expressam poeticamente de forma inapropriada introduzem no discurso retoacuterico o

ridiacuteculo e o friacutevolo e em virtude da esterilidade dessa forma de expressatildeo erram por falta

de clareza (σαφής) Sendo assim a virtude suprema da expressatildeo enunciativa seria a

clareza porque se no discurso retoacuterico natildeo se comunicar algo com nitidez e

inteligibilidade natildeo seraacute possiacutevel cumprir a sua respectiva funccedilatildeo ndash persuadir atraveacutes de

argumentos racionais Aliaacutes natildeo foi o mero emprego da retoacuterica afetiva que Aristoacuteteles

censurou em Goacutergias mas o seu emprego exagerado associado com o desprezo da

demonstraccedilatildeo loacutegica na forma do entimema e do exemplo

Veremos tambeacutem que os sofistas mereceram de Aristoacuteteles a reprovaccedilatildeo por

desconsiderar o fundamento de todo e qualquer discurso racional ndash o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo Este princiacutepio que ele considera o mais firme de todos (βέβαιος) expressa

que eacute impossiacutevel que a mesma coisa ao mesmo tempo pertenccedila e natildeo pertenccedila a uma

mesma coisa segundo o mesmo aspecto Protaacutegoras nega este princiacutepio loacutegico ao

sustentar que cada indiviacuteduo possui sua proacutepria verdade e que todos os pontos de vista

satildeo ao mesmo tempo verdadeiros Todavia para Aristoacuteteles pode-se demonstrar tal

princiacutepio por meio da refutaccedilatildeo desde que o adversaacuterio signifique algo para si e para

outro pois com esta simples atitude ele jaacute pressuporia o princiacutepio Ele ainda o pressuporia

por suas accedilotildees porque ele natildeo se deixa cair num poccedilo quando este eacute percebido nem

afirma que cair ali eacute coisa natildeo-boa e boa E visto que para Protaacutegoras o calor e o frio ou

o doce e o amargo natildeo existem efetivamente na natureza mas dependem da percepccedilatildeo de

cada indiviacuteduo em particular a justiccedila e a injusticcedila ou o certo e o errado tambeacutem

possuiriam uma existecircncia igualmente subjetiva A despeito disso ele concedia um certo

espaccedilo agraves opiniotildees convencionais sobre a verdade e a moral mas nenhuma delas seria

mais verdadeira do que outra Aproximando-se de Protaacutegoras o Estagirita propotildee que o

orador deve ser capaz de argumentar persuasivamente sobre coisas contraacuterias poreacutem ele

nunca deve fazer uma e outra coisa posto que o orador jamais deve persuadir as pessoas

a praticar um ato imoral Do mesmo modo Aristoacuteteles atribui um espaccedilo consideraacutevel agraves

opiniotildees convencionais sobre a verdade e a moral mas diferente de Protaacutegoras ele natildeo

estaacute disposto a subscrever a concepccedilatildeo de que as opiniotildees satildeo igualmente vaacutelidas pelo

contraacuterio eacute necessaacuterio que o orador procure nas opiniotildees geralmente aceitas a verdade

da melhor maneira possiacutevel Porquanto ainda que natildeo seja possiacutevel obter sobre os

assuntos eacutetico-poliacuteticos uma verdade absoluta certamente eacute possiacutevel obter algo mais

seguro e mais veriacutedico perspectiva que refutaria o relativismo protagoacuterico Aliaacutes a noccedilatildeo

aristoteacutelica de lei comum implica que efetivamente existe um conceito natural e universal

de certo e errado que todos os homens de algum modo reconheceriam independente de

um julgamento eacutetico situacional que varia conforme os indiviacuteduos e as circunstacircncias

Aristoacuteteles prossegue em sua condenaccedilatildeo do relativismo ao identificar a doutrina de

Protaacutegoras (de que eacute possiacutevel tornar o argumento mais fraco no argumento mais forte)

com uma argumentaccedilatildeo falaciosa chamada de entimema aparente (φαινόμενον

ἐνθύμημα) que constitui um logro e uma verossimilhanccedila natildeo verdadeira Os raciociacutenios

que visam tornar o argumento mais fraco no argumento mais forte ndash que o reacuteu forte eacute

inocente porque pareceria altamente provaacutevel que fosse o agressor ndash parecem raciocinar

a partir de opiniotildees que parecem ser geralmente aceitas mas em realidade natildeo satildeo por

isso satildeo simplesmente falsos e sobretudo inuacuteteis jaacute que natildeo refletiria a regularidade

proacutepria do mundo das accedilotildees humanas Nessa perspectiva se o relativismo for

disseminado poderaacute fomentar consequecircncias danosas para a cidade haja vista que a

justiccedila e a injusticcedila poderatildeo ser defendidas indiferentemente opondo-se agrave funccedilatildeo eacutetico-

poliacutetica da arte retoacuterica que consiste justamente em fortalecer as virtudes dos cidadatildeos

Sendo assim para o Estagirita a verdadeira cidade quer dizer aquela que natildeo o eacute

somente de nome deve estimar acima de tudo as virtudes de seus cidadatildeos porque eacute

impossiacutevel que uma cidade seja feliz se dela a moralidade for abolida

1 Aspectos gerais da retoacuterica de Aristoacuteteles

11 Experiecircncia arte e o primeiro esboccedilo da retoacuterica de Aristoacuteteles

De acordo com o registro histoacuterico de Dioacutegenes Laeacutercio o filoacutesofo Aristoacuteteles tinha

cerca de dezessete anos de idade quando se dirigiu para Atenas com o intuito de

aperfeiccediloar a sua formaccedilatildeo intelectual e imediatamente ingressou na Academia de Platatildeo

Na Academia ele amadureceu e consolidou sua vocaccedilatildeo filosoacutefica de maneira definitiva

permanecendo na escola de Platatildeo por cerca de vinte anos (Vid doutr fil il V 1 9)

Laeacutercio tambeacutem assevera que nesse periacuteodo o Estagirita ensinava seus disciacutepulos a se

exercitarem sobre um tema proposto ao mesmo tempo que os preparava para o exerciacutecio

da arte retoacuterica (Ibid V 1 3) Aleacutem de ministrar liccedilotildees de retoacuterica Aristoacuteteles teria sido

o primeiro a compor em sua proacutepria defesa um discurso judicial quando Eurimedon

hierofante dos misteacuterios de Deoacute o acusou de impiedade (Ibid V 1 8)

Outrossim foram fundamentais suas contribuiccedilotildees nas numerosas discussotildees em

torno dos temas que mormente ocupavam a Academia Decerto no decorrer dos anos

passados na Academia Aristoacuteteles absorveu os princiacutepios platocircnicos e fez defesa deles

em alguns escritos ao mesmo tempo em que submeteu-os a rigorosas criacuteticas A despeito

disso Dioacutegenes Laeacutercio sustenta que o Estagirita foi o mais genuiacuteno (γνήσιος) disciacutepulo

de Platatildeo (Ibid V 1 1) E conforme sublinha Giovanni Reale eacute exato o juiacutezo de Laeacutercio

de que Aristoacuteteles foi o disciacutepulo mais genuiacuteno de Platatildeo mas para ele conveacutem dar a

ldquodisciacutepulordquo e ldquogenuiacutenordquo um significado correto o genuiacuteno disciacutepulo de um grande mestre

natildeo eacute aquele que simplesmente o repete restringindo-se a conservar intacta a sua doutrina

mas eacute aquele que partindo das aporias do mestre procura superaacute-las Aristoacuteteles portanto

revela-se como o disciacutepulo que repensa e ao inveacutes de meramente repetir o mestre

esforccedila-se para ir muito aleacutem dele (REALE 2015 10)

Dioacutegenes Laeacutercio exara que quando Aristoacuteteles tomou a decisatildeo de se afastar da

Academia Platatildeo teria declarado o seguinte ldquoAristoacuteteles deu-me um pontapeacute como

fazem os potros com a matildee que os gerourdquo (Vid doutr fil il V 1 2) Todavia ao referir-

se agraves teorias de Platatildeo na Eacutetica a Nicocircmaco o Estagirita assegura que eacute preferiacutevel e

mesmo a obrigaccedilatildeo de todo o filoacutesofo enquanto amante da sabedoria preterir os laccedilos

mais iacutentimos quando eles rivalizam com a preservaccedilatildeo da verdade Embora ambos sejam

preciosos seria necessaacuterio amar mais a verdade do que os amigos (Eacutet Nic 1096a 14-

17)

E contudo parece ser melhor ateacute talvez um dever que pela salvaccedilatildeo da verdade se destruam os laccedilos que temos com os que nos estatildeo proacuteximos sobretudo se formos filoacutesofos Sendo ambos queridos para noacutes eacute mais de acordo com a lei divina preferir a verdade

Aristoacuteteles afirma que a pesquisa pela verdade eacute difiacutecil mas sob outro aspecto eacute

faacutecil eacute impossiacutevel a um homem apreender adequadamente a verdade e igualmente

impossiacutevel natildeo a apreender de maneira nenhuma Para ele qualquer um pode dizer algo

sobre a realidade mas individualmente essa contribuiccedilatildeo pouco acrescenta ao

conhecimento da verdade Seria a uniatildeo de todas as contribuiccedilotildees individuais o que

produz um resultado consideraacutevel Eacute necessaacuterio pois que o filoacutesofo seja grato a todos

aqueles que compartilham de suas opiniotildees mas tambeacutem com aqueles que expressaram

opiniotildees ateacute mesmo superficiais pois tambeacutem eles deram alguma contribuiccedilatildeo agrave pesquisa

filosoacutefica (Met 993a 30-993b 15)

Aristoacuteteles com efeito natildeo quer transmitir a impressatildeo de que eacute com ele que a

pesquisa filosoacutefica acontece pela primeira vez de modo fundamental pelo contraacuterio ele

dedica agraves opiniotildees doutrinais (δόξαι) anteriores um espaccedilo consideraacutevel A metodologia

que ele emprega no Liceu com o seu respeito ao cabedal de conhecimento proporcionado

pelos saacutebios do passado em qualquer campo do conhecimento necessitava mais do que

qualquer outra escola filosoacutefica de uma biblioteca como ferramenta de trabalho

indispensaacutevel De modo geral as pesquisas de Aristoacuteteles incluiacuteam um abrangente

programa de leitura Sabe-se que ele estudava com tamanha dedicaccedilatildeo a ponto de sua casa

ser chamada de ldquoa casa do leitorrdquo Ele tinha uma grande biblioteca em funccedilatildeo disso teria

sido o primeiro homem a ter reunido livros cujo exemplo teria inspirado o reis do Egito

a montar uma biblioteca (BARNES 2005 30) Em contraste com Platatildeo que natildeo

acreditava na possibilidade de expressar de maneira escrita a verdade filosoacutefica (Fed

275a-276a) o Estagirita compreendera desde os tempos em que frequentou a Academia

a importacircncia do contato contiacutenuo com o pensamento reflexivo do passado que somente

o estudo de sua heranccedila escrita poderia proporcionar

A dedicaccedilatildeo de Aristoacuteteles agraves opiniotildees doutrinais anteriores tambeacutem leva em

consideraccedilatildeo a natureza da legislaccedilatildeo que eacute um componente da arte legisladora

(νομοθετικέ) a qual por sua vez constitui um dos ramos da ciecircncia poliacutetica Para tanto

ele sustenta que eacute necessaacuterio percorrer tudo o que particularmente foi dito com relevacircncia

pelos investigadores do passado sobre a mateacuteria em questatildeo Ele ainda enfatiza que eacute

preciso analisar teoricamente a partir das compilaccedilotildees de constituiccedilotildees quais delas

conservam as suas cidades-Estados e quais delas as destruiacuteram quais os diferentes tipos

de constituiccedilatildeo particular e quais os motivos pelos quais umas governam corretamente e

outras procedem de maneira contraacuteria Ao abordar cada um desses assuntos o Estagirita

supotildee obter uma melhor compreensatildeo de qual eacute a melhor constituiccedilatildeo de todas que tipo

de ordem traz cada constituiccedilatildeo e de que tipo de leis e costumes se serve (Eacutet Nic 1181b

13-25) Praticamente natildeo existe nenhuma obra na qual ele natildeo venha a falar dos seus

predecessores e tal procedimento que apropriadamente pode receber o nome de ldquomeacutetodo

doxaacutesticordquo natildeo diz respeito somente ao estudo da filosofia ou da ciecircncia poliacutetica mas

tambeacutem ao estudo da arte retoacuterica

Na obra Dos Argumentos Sofiacutesticos Aristoacuteteles assegura que fizera uma longa

pesquisa sobre os manuais de retoacuterica elaborados por seus predecessores a partir dos

quais desenvolveu o seu proacuteprio meacutetodo retoacuterico Para ele em todos os casos os

descobrimentos filosoacuteficos resultaram do trabalho daqueles que se debruccedilaram e

reelaboraram os trabalhos jaacute iniciados por seus predecessores O mesmo sucedeu tambeacutem

no campo da arte retoacuterica e praticamente no de todas as demais artes Desse modo os que

descobriram os primeiros princiacutepios da arte retoacuterica os fizeram avanccedilar apenas um pouco

enquanto que os renomados oradores do seu tempo seriam os herdeiros de uma longa

sucessatildeo de homens que os fizeram avanccedilar gradualmente e os desenvolveram ateacute que

alcanccedilassem a sua forma atual Sucedendo-se Tiacutesias aos primeiros fundadores e

Trasiacutemaco a Tiacutesias e a seguir Teodoro e vaacuterios outros oradores que fizeram as suas

diversas contribuiccedilotildees a arte retoacuterica pocircde atingir dimensotildees consideraacuteveis (Arg Sof

182b 20-35)

Eacute bem possiacutevel que em todas as coisas como diz o refratildeo popular o primeiro passo seja o mais importante e por essa mesma razatildeo tambeacutem o mais difiacutecil pois quanto mais poderosa se destina a ser a sua influecircncia mais pequenas satildeo as suas proporccedilotildees e portanto mais difiacuteceis de perceber mas depois que foi descoberto o primeiro comeccedilo eacute mais faacutecil fazer-lhe acreacutescimos e desenvolver o resto Isso tem acontecido no campo da retoacuterica e praticamente no de todas as demais artes pois os que descobriram os seus primeiros princiacutepios os fizeram avanccedilar um pouquinho apenas enquanto as celebridades de hoje satildeo os herdeiros (por assim dizer) de uma longa sucessatildeo de homens que os fizeram avanccedilar polegada por polegada e os desenvolveram ateacute que alcanccedilassem a sua forma presente sucedendo-se Tiacutesias aos primeiros fundadores e Trasiacutemaco a Tiacutesias

e a seguir Teodoro enquanto vaacuterias pessoas faziam as suas diversas contribuiccedilotildees e assim natildeo eacute de surpreender que a arte tenha atingido dimensotildees consideraacuteveis

Outrossim no decorrer da Retoacuterica Aristoacuteteles faz referecircncias a alguns autores de

manuais de retoacuterica e suas respectivas contribuiccedilotildees Dentre esses autores eacute oportuno

mencionar Goacutergias de Leontini Pacircnfilo Isoacutecrates e seu disciacutepulo Calipo Empeacutedocles

Protaacutegoras de Abdera Alcidamante Poliacutecrates Liacutecofron Liciacutemnio de Quios Trasiacutemaco

de Calcedocircnia Hermaacutegoras de Temnos Eacutesquines de Samos Eutidemo de Quios

Andoacutecion Esiacuteon Cefisoacutedoto Glaacuteucon de Teo Coacuterax e Tiacutesias A propoacutesito Aristoacuteteles

teria feito uma coletacircnea de tratados de retoacuterica que circulavam em seu tempo que recebia

o nome de Coletacircnea das Artes a qual teria exposto o tratado do orador Teoacutedotos

chamado de A arte de Teoacutedotos E como se evidencia por estes tiacutetulos e tambeacutem por seu

proacuteprio tratado intitulado de Τέχνη ρητορική Aristoacuteteles utilizava o termo ldquoarterdquo para

designar natildeo somente a atividade praticada pelos oradores mas tambeacutem o seu ensino

(BERTI 1998 170)

Conforme a definiccedilatildeo formulada por Aristoacuteteles a retoacuterica consiste na capacidade

(δύναμις) de descobrir o que eacute adequado a cada caso quando se tem por finalidade

persuadir (Ret 1355b 32-42) Os oradores haacutebeis por conseguinte devem desenvolver

a capacidade de persuadir no mais elevado grau Outrossim a retoacuterica deve estudar e

ensinar de maneira sistemaacutetica essa capacidade pois a retoacuterica soacute poderaacute ser efetivamente

considerada uma arte (τέχνη)1 se atingir tais objetivos Embora a argumentaccedilatildeo de

Aristoacuteteles seja sucinta e objetiva ao sustentar que a retoacuterica eacute uma arte porque eacute possiacutevel

descobrir a razatildeo pela qual satildeo bem-sucedidos os oradores na sua praacutetica discursiva sua

posiccedilatildeo eacute peremptoacuteria segundo ele a retoacuterica eacute uma arte (Ibid 1354a 8-15)

Simplesmente na sua maioria umas pessoas fazem-no ao acaso e outras mediante a praacutetica que resulta do haacutebito E porque os dois modos satildeo possiacuteveis eacute oacutebvio que seria tambeacutem possiacutevel fazer a mesma coisa seguindo um meacutetodo Pois eacute possiacutevel estudar a razatildeo pela qual tanto satildeo bem-sucedidos os que agem por haacutebito como os que agem espontaneamente e todos facilmente concordaratildeo que tal estudo eacute tarefa de uma arte

Na qualidade de uma τέχνη a retoacuterica constituiria para Aristoacuteteles um corpo de

regras e princiacutepios gerais que a razatildeo pode conhecer ou seja uma forma de conhecimento

1 O sentido geral de ldquoarterdquo parece coincidir com o sentido geral de ldquoteacutecnicardquo quer dizer o conjunto de regras aptas a dirigir eficazmente uma atividade humana qualquer por isso ambas as palavras seratildeo oportunamente empregadas como sinocircnimas

que ultrapassa a mera experiecircncia de tal modo que a retoacuterica estaria num grau

intermediaacuterio entre a simples experiecircncia praacutetica e o conhecimento cientiacutefico Essa

caracterizaccedilatildeo da retoacuterica pode ser compreendida agrave luz da Metafiacutesica onde Aristoacuteteles

apresenta uma descriccedilatildeo de graus consecutivos de conhecimento O primeiro grau de

conhecimento se identifica com a percepccedilatildeo (αἴσθησις) de um objeto sensiacutevel O segundo

grau consiste na memoacuteria (μνήμη) O terceiro grau consiste na experiecircncia (ἐμπειρία) E

o quarto grau do saber eacute constituiacutedo pela arte (τέχνη) e pela ciecircncia (ἐπιστήμη) o qual diz

respeito ao conhecimento pela causa (αἰτία) e a pessoa detentora desse grau de saber eacute

considerada mais saacutebia do que aquele que possui simplesmente uma experiecircncia (Met

980a 25-980b 10) Pode-se assegurar entatildeo que o caminho pelo qual o intelecto apreende

qualquer conhecimento eacute a induccedilatildeo (ἐπαγωγή) a qual comeccedila com a percepccedilatildeo de objetos

particulares o que leva agrave retenccedilatildeo de conteuacutedo perceptivo na memoacuteria e depois que

muitos desses conteuacutedos foram retidos a uma experiecircncia e depois desta surge o

conhecimento da arte e da ciecircncia quando de muitos objetos inteligiacuteveis que derivam da

experiecircncia uma suposiccedilatildeo universal sobre objetos similares eacute produzida Sendo assim

o conhecimento da arte e da ciecircncia se produz quando de muitas observaccedilotildees da

experiecircncia forma-se um juiacutezo geral e uacutenico passiacutevel de ser referido a todos os casos

semelhantes (Ibid 981a 1-5 )

Com efeito do ponto de vista do conhecimento natildeo haveria uma diferenccedila

substancial entre a arte e a ciecircncia considerando-se que ambas procuram conhecer pela

causa A uacutenica diferenccedila entre elas eacute que a primeira se ocupa de realidades contingentes

as quais se relacionam com as accedilotildees humanas ao passo que a segunda se ocupa daquilo

que eacute das realidades necessaacuterias as quais seriam independentes dos seres humanos (Seg

Anal 100a 4-7) Todavia eacute importante observar que a palavra ldquocausardquo deve ser

compreendida num sentido mais abrangente pois o termo grego ldquoαἰτίαrdquo traduzido

normalmente por ldquocausardquo tambeacutem designa o que nomeamos por ldquoexplicaccedilatildeordquo Assim

explicar alguma coisa eacute demonstrar por que ela eacute assim e demonstrar por que alguma

coisa eacute assim eacute expor a sua causa (BARNES 2005 58) Dessarte a retoacuterica se identifica

com uma legiacutetima arte porque eacute possiacutevel explicar a razatildeo pela qual satildeo bem sucedidos os

oradores na sua praacutetica discursiva e por conseguinte produzir um corpo de regras e

princiacutepios gerais que podem ser conhecidos e aplicados por qualquer indiviacuteduo dotado de

razatildeo

Os oradores que satildeo o alvo da criacutetica de Aristoacuteteles na Retoacuterica possuiacuteam segundo

ele somente uma ἐμπειρία e natildeo uma τέχνη (Ret 1354a 16-26) De acordo com a

exposiccedilatildeo de Aristoacuteteles na Metafiacutesica jaacute aludida precedentemente a palavra grega

ldquoἐμπειρίαrdquo se relaciona com as sensaccedilotildees a memoacuteria e o haacutebito ao passo que como jaacute

dito a palavra ldquoτέχνηrdquo reporta-se ao conhecimento das causas A sensaccedilatildeo eacute o sinal

comum entre os homens e os animais A repeticcedilatildeo das sensaccedilotildees uma apoacutes a outra eacute

organizada na alma pela faculdade da memoacuteria e a esta ordem estabelecida pela memoacuteria

nas sensaccedilotildees Aristoacuteteles denomina de ἐμπειρία que eacute o termo grego que designa a

experiecircncia A ἐμπειρία entatildeo designa a ordem que a memoacuteria estabelece nas sensaccedilotildees

passageiras constituindo-se um modo imperfeito de conhecer haja vista que eacute comum ao

homem e ao animal2 Pois enquanto os animais vivem de imagens sensiacuteveis e com

recordaccedilotildees e pouco participam da experiecircncia o ser humano vive da arte e de

raciociacutenios (Met 980a 5-980b 7)

Outrossim existe mais conhecimento na τέχνη do que na ἐμπειρία de modo que

os homens de arte satildeo mais saacutebios do que os empiacutericos Isto ocorre porque estes conhecem

o ldquoquerdquo mas natildeo conhecem o ldquoporquecircrdquo das coisas Assim aquele que tem a direccedilatildeo nas

diferentes artes (ἀρχιτέκτων) eacute superior ao trabalhador manual (χειροτέχνης) pelo fato de

conhecer as causas do que se faz podendo transmitir por demonstraccedilatildeo o seu

conhecimento ao passo que o trabalhador manual age simplesmente por haacutebito (ἔθος)

ignorando o que faz Aristoacuteteles considera o ἀρχιτέκτων mais digno de honra e possuidor

de maior conhecimento do que o χειροτέχνης na medida em que aquele conhece as causas

das coisas que satildeo feitas ao contraacuterio deste que age sem saber o que faz Aliaacutes o

trabalhador manual age como alguns dos seres inanimados a exemplo do fogo quando

queima pois cada um dos seres inanimados age por certo impulso natural enquanto que

o trabalhador manual age por haacutebito Agrave vista disso o Estagirita considera o primeiro mais

saacutebio natildeo porque eacute capaz de produzir alguma coisa mas porque eacute conhecedor das causas

Aleacutem do mais ele sustenta que a diferenccedila entre quem sabe e quem natildeo sabe consiste na

2 Apesar da experiecircncia constituir um modo imperfeito de conhecer Aristoacuteteles sustenta que as pessoas que possuem um saber empiacuterico em determinadas aacutereas satildeo mais praacuteticas do que aquelas que possuem um saber cientiacutefico Por exemplo aquele que possui o conhecimento geral de que carnes leves satildeo digeriacuteveis e saudaacuteveis mas natildeo sabe que tipos de carne satildeo leves natildeo seraacute capaz de produzir sauacutede ao passo que aquele que sabe quais tipos de carnes de aves satildeo saudaacuteveis certamente produziraacute sauacutede Por essa razatildeo natildeo se deve possuir um conhecimento (cientiacutefico) em detrimento do outro (empiacuterico) mas ambos os tipos de conhecimento (Eacutet Nic 1141b 18-23) ldquoDe resto os mais sensatos a respeito da accedilatildeo satildeo tambeacutem os mais experimentados nas circunstacircncias particulares em que de cada vez nos podemos encontrar Por exemplo se algueacutem souber que as carnes leves satildeo de mais faacutecil digestatildeo e por isso mais saudaacuteveis mas desconhecer quais satildeo os animais com carne mais leve natildeo conseguiraacute restabelecer sua proacutepria sauacutede Contudo quem souber que as aves satildeo animais leves e portanto que tecircm carne mais leve restabelececirc-la-aacute mais facilmente A sensatez eacute uma disposiccedilatildeo atuante sobre o horizonte praacutetico de tal forma que se deve possuir ambas as formas de saber (o universal e o particular)rdquo

capacidade de ensinar pois o que possui a arte eacute capaz de ensinar enquanto o que possui

a experiecircncia natildeo o eacute (Ibid 981a 30-981b 1-9)

Aristoacuteteles daiacute conclui que os oradores que distribuiacuteam discursos para serem

aprendidos de memoacuteria ou sob a forma de perguntas e respostas que ensinavam as regras

sobre a melhor maneira de transmiti-los em partes e as estrateacutegias para criar no juiz certa

disposiccedilatildeo emocional natildeo estariam transmitindo atraveacutes de seus manuais uma verdadeira

τέχνη com um meacutetodo e preceitos mas unicamente uma ἐμπειρία3 (Ret 1354b 21-30)

E se o que dizemos eacute exato natildeo resta a menor duacutevida de que mateacuterias externas ao assunto satildeo descritas como artes por aqueles que definem outras coisas por exemplo o que devem conter o proecircmio ou a narraccedilatildeo e cada uma das partes do discurso pois ao se ocuparem destas questotildees nada mais os preocupa senatildeo o modo como poderatildeo criar no juiz uma certa disposiccedilatildeo Mas sobre as provas propriamente artiacutesticas nenhuma indicaccedilatildeo avanccedilam isto eacute sobre aquilo que afinal torna o leitor haacutebil no uso do entimema

Na obra Dos Argumentos Sofiacutesticos Aristoacuteteles assegura que o treinamento

proporcionado pelos professores remunerados para ensinar a produzir argumentos

sofiacutesticos era similar agrave maneira como Goacutergias tratou do asssunto porquanto o que eles

faziam era distribuir discursos para serem aprendidos de memoacuteria alguns deles retoacutericos

e outros na forma de perguntas e respostas na suposiccedilatildeo de que os argumentos de cada

uma das partes estivessem todos de modo geral incluiacutedos ali (Arg Sof 183b 35-184a

1) Assim o ensino que eles transmitiam aos seus alunos era raacutepido mas rudimentar e

imaginavam adestrar as pessoas transmitindo-lhes natildeo a arte stricto sensu mas

simplesmente os seus produtos Aristoacuteteles ilustra esse diagnoacutestico afirmando que a arte

retoacuterica praticada por seus predecessores era como se um homem que pretendesse ser

capaz de transmitir o conhecimento de como evitar as dores nos peacutes natildeo ensinasse a seu

aluno a arte do sapateiro nem indicasse as fontes onde poderia adquiri-la mas

apresentasse calccedilados de todos tipos Tal homem o teria ajudado a satisfazer a sua

necessidade poreacutem jamais teria transmitido uma autecircntica arte (Ibid 184a 1-10)

3 No diaacutelogo Goacutergias Platatildeo tambeacutem critica a retoacuterica praticada por seus contemporacircneos por natildeo ser uma τέχνη mas simplesmente uma ἐμπειρία uma vez que ela natildeo possuiria nenhuma compreensatildeo racional da natureza daquilo a que se aplica ou daquilo que aplica e por conseguinte natildeo teria nada a dizer sobre o conhecimento das causas (Goacuterg 465a) ldquoIsso eu chamo de adulaccedilatildeo e afirmo que coisa desse tipo eacute vergonhosa Polo ndash e isto eu digo a ti ndash porque visa o prazer a despeito do supremo bem Natildeo afirmo que ela eacute arte mas experiecircncia porque natildeo possui nenhuma compreensatildeo racional da natureza daquilo a que se aplica e consequentemente natildeo tem nada a dizer sobre a causa de cada um deles Eu natildeo denomino arte algo que seja irracional mas se tiveres algum ponto a contestar desejo colocar agrave prova o argumentordquo

Enquanto praacutetica retoacuterica conveacutem levar em consideraccedilatildeo a anaacutelise de E M Cope

acerca do significado da ἐμπειρία Para ele a ἐμπειρία constitui um procedimento

irracional Eacute irracional porque manifesta-se num modo de operaccedilatildeo meramente mecacircnico

exibindo uma habilidade que natildeo resulta de nada aleacutem do haacutebito e eacute adquirida pela simples

repeticcedilatildeo E seria assim porque a ἐμπειρία trata apenas de casos individuais em

detrimento de concepccedilotildees ou regras gerais E ainda que ocasionalmente seja capaz de

elaborar alguma noccedilatildeo geral ela nunca estaacute separada dos objetos particulares nem eacute

definida com precisatildeo Desse modo a ἐμπειρία torna-se incapaz de transmitir o

conhecimento de uma verdadeira arte Esta por conseguinte pode ser definida como um

corpo de regras gerais visando um resultado praacutetico cuja aplicaccedilatildeo assegura a previsatildeo

de um certo resultado (COPE 1867 22-23)

Os estudiosos de Aristoacuteteles normalmente dividem seus escritos em dois grandes

grupos os escritos exoteacutericos que eram compostos na sua maioria em forma dialoacutegica e

destinados a um puacuteblico mais amplo E os escritos esoteacutericos que eram destinados

somente ao ciacuterculo iacutentimo de disciacutepulos O primeiro grupo de escritos perdeu-se

completamente e o que resta deles satildeo alguns fragmentos e tiacutetulos vazios Todavia

estima-se que o primeiro escrito exoteacuterico tenha sido o diaacutelogo juvenil chamado Grilos

ou Da Retoacuterica no qual Aristoacuteteles defende a posiccedilatildeo de Platatildeo acerca da retoacuterica em

detrimento da posiccedilatildeo de Isoacutecrates (REALE 2015 9) Aleacutem do mais segundo o registro

de Dioacutegenes Laeacutercio Aristoacuteteles teria escrito outras obras sobre temas especiacuteficos ligados

agrave arte retoacuterica as quais tambeacutem foram perdidas tais como Prefaacutecio aos Lugares-Comuns

Das Paixotildees Entimemas Retoacutericos Divisotildees dos Entimemas e Da Dicccedilatildeo (Vid doutr fil

il V 1 22 24)

Com efeito foi justamente sobre temas de retoacuterica que Aristoacuteteles lanccedilou-se como

escritor compondo e publicando o Grilos redigido em torno de 360 aC a propoacutesito dos

elogios retoacutericos compostos por vaacuterios oradores em virtude da morte de Grilos que era

filho de Xenofonte no ano de 362 aC 4 Tal motivaccedilatildeo viria de Platatildeo que lhe incumbiu

4 Dioacutegenes Laeacutercio refere-se agrave morte de Grilos nos seguintes termos (Vid doutr fil il II 6 54-55) ldquoDe acordo com Dioacutecles em suas Vidas dos Filoacutesofos eles se educaram na proacutepria Esparta Diocircdoros sobreviveu agrave batalha sem fazer nada de extraordinaacuterio (ele tinha um filho com o mesmo nome que o irmatildeo) Grilos ao contraacuterio servia na cavalaria e na batalha travada nas proximidades de Mantinea combateu bravamente e tombou segundo o relato de Eacuteforos no vigeacutessimo quinto livro de sua obra Cefisocircdoros era o comandante da cavalaria e Hegesiacutelaos o comandante-em-chefe Nessa batalha tambeacutem morreu Epamecircinondas Dizem que na ocasiatildeo Xenofon estava realizando um sacrifiacutecio com uma coroa na cabeccedila e a removeu ao receber a notiacutecia da morte de seu filho Mais tarde tendo sabido que ele tombara gloriosamente repocircs a coroa na cabeccedila Alguns altores dizem que Xenofon natildeo derramou uma laacutegrima sequer mas exclamou lsquoeu sabia que ele nasceu mortalrsquo Aristoacuteteles menciona que incontaacuteveis autores de

de ministrar liccedilotildees sobre essa disciplina na Academia5 No diaacutelogo em apreccedilo Aristoacuteteles

toma posiccedilatildeo contra Isoacutecrates ao defender o ideal filosoacutefico da paideia platocircnica e parece

acolher a perspectiva que o proacuteprio Platatildeo defendera sobre a retoacuterica sobretudo no

diaacutelogo Fedro (REALE 2015 163) A Academia de Platatildeo reservava um espaccedilo

consideraacutevel agrave retoacuterica e foi por tratar deste toacutepico no diaacutelogo Grilos que o Estagirita

comeccedilou a criar o seu renome como filoacutesofo no qual ele atacava as concepccedilotildees de

Isoacutecrates que era respeitado orador educador e especialista profissional Um dos

disciacutepulos de Isoacutecrates chamado Cefisoacutedoro elaborou uma longa reacuteplica a primeira de

muitas polecircmicas em que Aristoacuteteles esteve envolvido Aliaacutes anos depois em seu

Protreacuteptico Aristoacuteteles defendeu o ideal da Academia platocircnica contra as noccedilotildees mais

pragmaacuteticas da escola isocraacutetica tendo o proacuteprio Isoacutecrates dado uma resposta a ela em

sua obra Antiacutedose (BARNES 2005 37-38) E conforme o exame de George A Kennedy

a afinidade dos pontos de vista de Platatildeo e do jovem Aristoacuteteles sobre o tema da retoacuterica

estaria indicada pelo ataque de Cefisoacutedoro a ambos os filoacutesofos Cefisoacutedoro era um

disciacutepulo de Isoacutecrates que viu no Grilos uma invectiva tanto ao seu trabalho quanto ao

trabalho do seu mestre Kennedy ainda salienta que a polecircmica sobre a natureza da

retoacuterica envolvendo de um lado Isoacutecrates e Cefisoacutedoro e de outro Platatildeo e Aristoacuteteles

teria surgido em virtude do sucesso da escola de retoacuterica fundada por Isoacutecrates

(KENNEDY 1963 83-84)

Outrossim os primeiros esboccedilos da Retoacuterica que ao contraacuterio do Grilos e do

Protreacuteptico ainda permanece intacto podem muito bem remontar aos primeiros anos da

Academia ao passo que os retoques finais desse trabalho soacute foram dados no uacuteltimo

periacuteodo da vida de Aristoacuteteles Aliaacutes a retoacuterica e o estudo da literatura se acham

estreitamente ligados Aristoacuteteles escreveu um livro histoacuterico-criacutetico Sobre os poetas e

uma coletacircnea de Problemas homeacutericos os quais podem ter sido escritos no interior da

Academia Estes estudos mostraram que o Estagirita era um seacuterio estudioso de filologia

e de criacutetica literaacuteria tendo constituiacutedo parte do trabalho preparatoacuterio para a Poeacutetica (onde

ele esboccedilou seu celebrado relato sobre a trageacutedia) assim como para o terceiro livro da

epitaacutefios e elogios escreveram a propoacutesito de Grilos em parte para serem agradaacuteveis ao pai Em sua obra Vida dos filoacutesofos Hecircrmipos tambeacutem afirma que o proacuteprio Isocrates escreveu um elogio de Grilosrdquo 5 Existe um documento escrito pelo epicurista Filodemo que enfatiza o interesse de Aristoacuteteles pela retoacuterica desde os primeiros anos na Academia de Platatildeo Segundo tal documento Aristoacuteteles teria ministrado um curso de retoacuterica durante o qual havia estabelecido um viacutenculo estreito entre a retoacuterica e a poliacutetica Aliaacutes Aristoacuteteles consideraria a retoacuterica uma verdadeira arte digna de ser ensinada mas ao mesmo tempo rejeitava aquele de tipo gorgiano ensinada tambeacutem por Isoacutecrates substituindo-a pelo tipo desejado por Platatildeo no Fedro qual seja uma retoacuterica baseada na dialeacutetica e articulada com a poliacutetica (BERTI 1998169-170)

Retoacuterica o qual versa sobre a linguagem e o estilo A retoacuterica de Aristoacuteteles ainda

manteacutem laccedilos com a loacutegica de modo que uma das principais alegaccedilotildees de Aristoacuteteles no

Grilos foi que a retoacuterica natildeo deveria apelar para as emoccedilotildees com uma linguagem

elaborada devendo antes persuadir os ouvintes mediante argumentos racionais

(BARNES 2005 38) E apesar das parcas informaccedilotildees disponiacuteveis sobre o diaacutelogo

Grilos pode-se concluir com muita probabilidade que ele representa a primeira fase do

pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles enquanto que o pensamento da sua maturidade e da

sua uacuteltima produccedilatildeo eacute expresso pelos trecircs livros da Retoacuterica os quais seratildeo examinados

a seguir nos seus aspectos gerais

12 Breve anaacutelise do trecircs livros da Retoacuterica

A teoria mais aceita sobre a composiccedilatildeo dos trecircs livros da Retoacuterica eacute que satildeo notas

das aulas do proacuteprio Aristoacuteteles muitas das quais escritas durante sua primeira estadia na

cidade de Atenas que teriam sido revisadas vaacuterias vezes durante os anos em que lecionou

Muito provavelmente as aulas foram publicadas e editadas depois de sua morte pelos

membros da Escola Peripateacutetica fundada por Aristoacuteteles (em 335 aC) Com base nas

sucessivas revisotildees os conceitos tomados de Platatildeo e dos sofistas chegaram a constituir

um todo novo e coerente Isto posto tal como chegou aos leitores de Aristoacuteteles a

Retoacuterica estaria perfeitamente estruturada e entre suas partes haveria uma genuiacutena

unidade passando de um tema a outro com naturalidade e cuidado Eacute certo que algumas

dessas divisotildees poderiam ter sido obra dos editores a divisatildeo do Livro I e do Livro II

por exemplo poderia ter sido realizada por pura conveniecircncia na confecccedilatildeo dos rolos

Natildeo obstante o conjunto da obra eacute muito completo e muitas passagens remetem-se

explicitamente a outras partes do tratado (MURPHY 1989 35-36)

No iniacutecio do primeiro livro da Retoacuterica o Estagirita afirma que a arte retoacuterica eacute uma

forma de argumentaccedilatildeo comparaacutevel agrave dialeacutetica ndash ἡ ῥητορική ἐστιν ἀντίστροφος τῇ

διαλεκτικῇ Isso porque ambas se ocupam de questotildees mais ou menos ligadas ao

conhecimento comum e natildeo se relacionam a nenhuma ciecircncia em particular Conforme

observa Barbara Cassin a retoacuterica seria ἀντιστροφή da dialeacutetica porque elas guardariam

uma relaccedilatildeo de analogia a retoacuterica seria o anaacutelogo no campo do persuasivo da dialeacutetica

no campo do demonstrativo A analogia entre as duas disciplinas seria ainda indicada pelo

caraacuteter comum de universalidade ao fato de que suas premissas satildeo provaacuteveis e apenas

provaacuteveis e ao fato de que ambas tecircm a capacidade de argumentar os contraacuterios

(CASSIN 2005 161-162) Aristoacuteteles declara que todas as pessoas praticam de alguma

forma ambas as disciplinas porque elas procuram eventualmente questionar e sustentar

um argumento defender ou acusar Ademais a retoacuterica e a dialeacutetica natildeo seriam ciecircncias

(ἐπιστῆμαι) mas faculdades (δυνάμεις) mentais as quais se relacionam somente a

discursos (λόγοι) e natildeo a determinadas mateacuterias estabelecidas (Ret 1354a 1-7 1359b15-

20)

A retoacuterica eacute a outra face da dialeacutetica pois ambas se ocupam de questotildees mais ou menos ligadas ao conhecimento comum e natildeo correspondem a nenhuma ciecircncia em particular De fato todas as pessoas de alguma maneira participam de uma e de outra pois todas elas tentam em certa medida questionar e sustentar um argumento defender-se ou acusar [] E quanto mais se tentaram imaginar a dialeacutetica ou a retoacuterica natildeo apenas como faculdades mentais mas como ciecircncias tanto mais se estaraacute inadvertidamente obscurecendo a sua real natureza passando-se com isso a construir ciecircncias relativas a determinadas mateacuterias estabelecidas e natildeo soacute a discursos

Segundo o exame de E M Cope a caracteriacutestica mais distintiva e peculiar da

retoacuterica de Aristoacuteteles eacute a sua vinculaccedilatildeo com a dialeacutetica Seria a ligaccedilatildeo da retoacuterica com

a dialeacutetica que habilitaria a primeira propiciar uma exposiccedilatildeo sistemaacutetica e cientiacutefica de

seus conteuacutedos podendo por conseguinte ser classificada como um tipo especial de

raciociacutenio e modo de prova (COPE 1867 6) Aleacutem do mais ele considera a retoacuterica e a

dialeacutetica como espeacutecies de um mesmo gecircnero como artes irmatildes as quais possuiriam

diferenccedilas especiacuteficas e semelhanccedilas gerais As diferenccedilas especiacuteficas consistiriam em

duas maneiras diferentes de provar seus raciociacutenios ao passo que a dialeacutetica concluiria

suas proposiccedilotildees mediante o silogismo formal e pela induccedilatildeo regular a retoacuterica por sua

vez realizaria suas inferecircncias a partir dos entimemas os quais satildeo argumentos

abreviados imperfeitos e nunca formalmente completos e atraveacutes do exemplo que eacute o

equivalente a um argumento por analogia (Id 2006 2) No que diz respeito agrave

compreensatildeo das semelhanccedilas gerais entre a retoacuterica e a dialeacutetica conveacutem salientar o que

o proacuteprio Aristoacuteteles expocircs acerca das duas disciplinas

Ambas satildeo capazes de provar uma tese bem como a tese que lhe eacute contraacuteria

poreacutem isto natildeo deve implicar na equivalecircncia entre elas equivalecircncia que redundaria na

doutrina dos dissoi logoi (δισσοὶ λόγοι) atribuiacuteda a Protaacutegoras e aos sofistas em geral

segundo a qual eacute possiacutevel tomar qualquer lado de uma questatildeo e defendecirc-la com igual

sucesso Antes o que Aristoacuteteles parece pretender assinalar eacute que atraveacutes da retoacuterica e da

dialeacutetica eacute possiacutevel argumentar em favor de uma tese fraca (Ret 1355a 39-45) Essas

disciplinas natildeo pertencem a nenhum gecircnero particular definido satildeo faculdades universais

pela caracteriacutestica de natildeo implicarem nenhuma especializaccedilatildeo e possibilitarem a

discussatildeo de tudo quanto eacute controverso (Ibid 1355b 11-12) Ambas podem ser praticadas

tanto por haacutebito como por acaso mas tambeacutem podem ser ensinadas de acordo com um

meacutetodo por isso ambas satildeo consideradas artes (Ibid 1354a 1-4) E finalmente ambas

as disciplinas se utilizam de dois tipos de argumentaccedilatildeo (Ibid 1356b 1-5) induccedilatildeo

(ἐπαγωγή) e silogismo (συλλογισμός)

No iniacutecio dos Toacutepicos Aristoacuteteles define a dialeacutetica como um meacutetodo de

investigaccedilatildeo a partir do qual eacute possiacutevel raciocinar partindo de opiniotildees geralmente

aceitas sobre qualquer tipo de problema (Toacutep 100a 18-20) Com efeito ao discorrer

sobre a dialeacutetica Aristoacuteteles faz referecircncia a uma situaccedilatildeo concreta de discussatildeo entre dois

interlocutores na qual um sustenta determinada tese enquanto que o outro esforccedila-se por

contestaacute-la O instrumento que se usa em tal discussatildeo eacute a argumentaccedilatildeo por silogismo e

induccedilatildeo O objeto ao qual tal argumentaccedilatildeo se aplica eacute o problema (πρόβλημα) que

consiste numa alternativa de tipo interrogativo entre duas proposiccedilotildees contraacuterias A

discussatildeo tem iniacutecio com a formulaccedilatildeo de uma pergunta que estaacute aberta agrave possibilidade

de duas respostas entre si contraditoacuterias por exemplo ldquoeacute lsquoanimal que caminha com dois

peacutesrsquo a definiccedilatildeo de homem ou natildeo eacuterdquo (Ibid 101b 30-35) Agrave pergunta inicial um dos dois

interlocutores deve sustentar uma determinada tese ao passo que o outro tem a

incumbecircncia de contestar a tese defendida O interlocutor encarregado de contestar faraacute

uma seacuterie de perguntas a fim de obter do proponente da tese as premissas com as quais

esteja de acordo atraveacutes das quais seraacute possiacutevel levaacute-lo agrave contradiccedilatildeo consigo mesmo

Todavia aquele que responde deve evitar ao maacuteximo ser conduzido agrave contradiccedilatildeo consigo

mesmo A argumentaccedilatildeo que conclui numa contradiccedilatildeo eacute denominada por Aristoacuteteles de

refutaccedilatildeo (ἔλεγχος) Outrossim a discussatildeo dialeacutetica supotildee que os dois interlocutores

discutam na presenccedila de um puacuteblico que decidiraacute qual dos dois teve sucesso ndash conseguir

refutar o outro ou natildeo fazer-se refutar pelo outro As premissas utilizadas pelos

interlocutores satildeo as opiniotildees geralmente aceitas (ἔνδοξα) as quais satildeo partilhadas por

todos os ouvintes e servem de ponto de referecircncia comum para a discussatildeo Tambeacutem eacute

partilhada pelos ouvintes a regra segundo a qual a contradiccedilatildeo eacute o equivalente de falsidade

de uma tese de modo que aquele que nela incorre deve ser considerado o perdedor da

discussatildeo dialeacutetica E para este meacutetodo de investigaccedilatildeo Aristoacuteteles destaca trecircs fins uacuteteis

o adestramento do intelecto as disputas casuais e as ciecircncias filosoacuteficas (Ibid 101a 25-

26) Vejamos separadamente cada uma dessas trecircs utilidades

A primeira utilidade da dialeacutetica consiste no seu mero exerciacutecio ou treino intelectual

(πρὸς γυμνασίαν) porquanto o domiacutenio do seu meacutetodo capacita a argumentar o proacute e o

contra sobre qualquer tema proposto Este primeiro uso tem caraacuteter pessoal ou privado

ou seja de estudo de preparo de aprimoramento de uma praacutetica largamente disseminada

mas natildeo adequadamente disciplinada a fim de que se a pratique mais eficazmente Nas

disputas dialeacuteticas argumenta-se para avaliar as forccedilas com o propoacutesito de exercitar-se e

provar-se natildeo simplesmente para instruir-se E se dessa atividade natildeo for possiacutevel extrair

qualquer verdade pelo menos obter-se-aacute um treinamento intelectual um adestramento no

uso da linguagem que possibilite argumentar sobre qualquer tipo de assunto (Ibid101a

28-30)

A segunda utilidade da dialeacutetica refere-se aos encontros casuais (πρὸς τὰς

ἐντεύξεις) pois ao fornecer uma lista de opiniotildees geralmente aceitas facilita a persuasatildeo

ao discutir a partir das teses do proacuteprio oponente Trata-se natildeo mais do uso privado da

dialeacutetica mas sim do seu uso puacuteblico o qual eacute mais proacuteprio a ela no qual entram as

discussotildees poliacuteticas desenvolvidas nas assembleias deliberativas e consultivas e os

debates judiciaacuterios que ocorrem nos tribunais Todavia os argumentos utilizados para

este propoacutesito natildeo devem ser extraiacutedos das opiniotildees alheias mas das opiniotildees defendidas

pela maioria das pessoas (Ibid 101a 31-34)

No que tange ao estudo das ciecircncias filosoacuteficas (πρὸς τὰς κατὰ φιλοσοφίαν

ἐπιστήμας) a dialeacutetica eacute uacutetil porque a capacidade de suscitar dificuldades significativas

sobre ambos os aspectos de um assunto permite ao dialeacutetico detectar mais facilmente a

verdade e o erro nos diversos pontos e questotildees que surgirem (Ibid 101a 35-40)

Outrossim ela serve como um processo de criacutetica onde se encontra o caminho que conduz

aos princiacutepios de todas as investigaccedilotildees (Ibid 101b 3-12) E os assuntos investigados

pela dialeacutetica podem ser problemas loacutegicos fiacutesicos ou eacuteticos (Ibid 105b 20-25)

Das proposiccedilotildees e problemas mdash encarando-se a questatildeo em linhas gerais mdash existem trecircs grupos algumas satildeo proposiccedilotildees eacuteticas outras versam sobre a filosofia natural e outras enfim satildeo loacutegicas Proposiccedilotildees como a seguinte satildeo eacuteticas deve um homem obedecer antes aos seus genitores ou agraves leis quando estatildeo em desacordo um exemplo de proposiccedilatildeo loacutegica eacute o conhecimento dos opostos eacute ou natildeo eacute o mesmo enquanto proposiccedilotildees como esta dizem respeito agrave filosofia natural eacute ou natildeo eacute eterno o universo E do mesmo modo no

que tange aos problemas A natureza de cada uma das supraditas espeacutecies de proposiccedilatildeo natildeo se expressa facilmente numa definiccedilatildeo mas devemos esforccedilar-nos por reconhecer cada uma delas graccedilas a uma familiaridade conquistada atraveacutes da induccedilatildeo examinando-as agrave luz dos exemplos dados acima

Pode-se depreender dessa sumaacuteria anaacutelise que a dialeacutetica eacute reduzida por Aristoacuteteles

agrave condiccedilatildeo de exerciacutecio intelectual que se ocupa natildeo com as proacuteprias coisas mas com as

opiniotildees geralmente aceitas sobre as coisas que natildeo podendo atingir pelo seu meacutetodo a

verdade cientiacutefica permanece no acircmbito da probabilidade Sua abordagem eacute uacutetil quer

para o livre exerciacutecio na arte de argumentar quer para se ter sucesso em qualquer tipo de

discussatildeo puacuteblica quer para conhecer a verdade ou a falsidade de uma certa proposiccedilatildeo

Sendo a dialeacutetica uma praacutetica interrogativa ou examinativa ela tambeacutem desempenharia

um papel epistecircmico por permitir estabelecer atraveacutes de um exame contraditoacuterio os

primeiros princiacutepios de cada ciecircncia e os primeiros princiacutepios comuns agraves ciecircncias em

geral E posto que todas as ciecircncias em que se articula a filosofia aristoteacutelica satildeo

substancialmente pesquisas de princiacutepios e de causas ela se utiliza da dialeacutetica a qual

natildeo garante o conhecimento seguro dos princiacutepios da ciecircncia porque natildeo eacute uma ciecircncia

mas certamente facilita a busca e a posse destes princiacutepios Ela natildeo eacute por si mesma tal

conhecimento mas constitui a investigaccedilatildeo o caminho que se realiza para chegar a ele

Portanto em certos casos a dialeacutetica pode fazer conhecer ou seja pode ser um

instrumento ou meacutetodo da ciecircncia

No entanto a dialeacutetica de Aristoacuteteles natildeo deve ser confundida com a dialeacutetica no

sentido platocircnico cujo escopo consiste em apreender os fundamentos da realidade como

um todo Pelo contraacuterio conforme frisa Otfried Houmlffe o Estagirita teria expandido o

domiacutenio de aplicaccedilatildeo da dialeacutetica e ao mesmo tempo nivelado para baixo o seu estatuto

epistecircmico Desse modo a dialeacutetica aristoteacutelica se ocuparia de um determinado tipo de

debates intelectuais natildeo sendo competente nem para conduzir a uma verdade de niacutevel

supremo nem para a filosofia Por outro lado ela seria seguramente proveitosa para a arte

para atacar a tese de um oponente ou para defender as proacuteprias teses Para a filosofia ela

seria importante e uacutetil mas somente como um tipo de ciecircncia auxiliar E tal como a

demonstraccedilatildeo cientiacutefica (ἀπόδειξις) a dialeacutetica tambeacutem se serve do silogismo A

diferenccedila no uso do silogismo em um caso e em outro natildeo reside no caraacuteter loacutegico-formal

estrito mas no estatuto epistecircmico das premissas ndash a demonstraccedilatildeo cientiacutefica repousa em

proposiccedilotildees verdadeiras e primeiras enquanto que as demonstraccedilotildees dialeacuteticas nas

chamadas ἔνδοξα Por essas Aristoacuteteles entende proposiccedilotildees que diferentemente dos

princiacutepios de uma ciecircncia natildeo satildeo criacuteveis por si mesmas e consistem em parte (como na

arte retoacuterica) de opiniotildees comuns de concepccedilotildees da maioria de opiniotildees qualificadas

bem-fundamentadas (HOumlFFE 2008 56)

De sua longa pesquisa sobre os manuais de retoacuterica existentes em sua eacutepoca

Aristoacuteteles conclui que todos eles satildeo incompletos porque amiuacutede negligenciam a

argumentaccedilatildeo loacutegica enfatizando a retoacuterica judicial (Ret 1354a 16-23) A maioria dos

autores de manuais censurados por Aristoacuteteles se esforccedilava por elaborar a arte do discurso

judicial (δικανικός) em detrimento de outros gecircneros de discurso como o deliberativo

(συμβουλευτικός) e o epidiacutectico (ἐπιδεικτικός) porque seria mais uacutetil pronunciar algo

exterior ao assunto nos discursos judiciais bem como criar no juiz uma certa disposiccedilatildeo

emocional (Ibid 1354b 31-49) Agrave vista disso o orador precisaria compreender a estrutura

loacutegica do argumento retoacuterico constituiacuteda pelo entimema (ἐνθύμημα) e pelo exemplo

(παράδειγμα) Estes seriam entatildeo os dispositivos fundamentais para o exerciacutecio da arte

retoacuterica

De acordo com Aristoacuteteles o entimema eacute uma espeacutecie de silogismo que se

fundamenta sobre probabilidades e sinais (τὰ δ᾽ ἐνθυμήματα ἐξ εἰκότων καὶ ἐκ σημείων)

e natildeo propriamente sobre o verdadeiro e imediato Para ele a probabilidade eacute o que

geralmente acontece mas natildeo absolutamente antes diz respeito a coisas que podem ser

de uma maneira ou de outra e relaciona-se no que concerne ao provaacutevel (Ibid 1357a 44-

47) O sinal (σημείων) por sua vez eacute um indicativo de que algo aconteceu ou existe e

supotildee a relaccedilatildeo entre dois fatos Se a relaccedilatildeo entre os fatos for julgada necessaacuteria o sinal

recebe o nome de tecmeacuterion (τεκμήριον) do contraacuterio limita-se a uma simples

possibilidade O entimema eacute um raciociacutenio eficaz com respeito a homens incultos

porquanto visa produzir a persuasatildeo e natildeo uma demonstraccedilatildeo de natureza cientiacutefica Em

vista disso conveacutem considerar outra caracteriacutestica do entimema a premissa maior a

premissa menor ou ateacute ambas podem estar pressupostas na argumentaccedilatildeo retoacuterica Eacute

necessaacuterio pois que o entimema se ocupe de coisas que podem ser para a maior parte de

outro modo e seja formado de poucas premissas e em geral menos do que as do silogismo

primaacuterio e caso alguma dessas premissas for bem conhecida natildeo eacute necessaacuterio comunicaacute-

la pois o proacuteprio ouvinte a supre (Ibid 1357a 18-24) Aleacutem do mais existem duas

espeacutecies de entimemas quais sejam os entimemas demonstrativos de algo que eacute ou natildeo

eacute e os entimemas refutativos A diferenccedila eacute igual agrave que existe na dialeacutetica entre refutaccedilatildeo

e silogismo O entimema demonstrativo eacute aquele em que se obteacutem a conclusatildeo com base

nas premissas com as quais se estaacute de acordo ao passo que o refutativo conduz a

conclusotildees que o adversaacuterio natildeo aceita (Ibid 1396b 30-35)

Para Aristoacuteteles a demonstraccedilatildeo de alguma coisa com base em muitos casos

semelhantes chama-se na dialeacutetica induccedilatildeo (ἐπαγωγή) e na arte retoacuterica chama-se

exemplo (παράδειγμα) Pode-se assegurar entatildeo que o exemplo eacute um tipo particular de

induccedilatildeo (Ibid 1356b 3-6) No entanto diferentemente do argumento indutivo o exemplo

retoacuterico natildeo procede dos casos particulares ndash sejam todos sejam muitos ndash para o conceito

universal mas parte do particular e conclui algo particular (Ibid 1357b 35-38) Dessarte

o exemplo eacute uma espeacutecie de correspondente indutivo do entimema enquanto propotildee

generalizaccedilotildees que satildeo persuasivas por si mesmas ou satildeo premissas plausiacuteveis de um

silogismo Aliaacutes existem dois tipos distintos de exemplos O primeiro consiste em aludir

a fatos histoacutericos anteriores como quando se afirma que Dioniacutesio procura adquirir a

tirania porque solicita uma guarda pois tambeacutem antes Pisiacutestrato ao intentaacute-la pediu uma

guarda e se transformou em tirano mal a conseguiu assim como Teaacutegenes em Meacutegara

Estes e outros fatos semelhantes servem de exemplo para Dioniacutesio de quem ainda natildeo se

sabe se eacute essa a razatildeo pela qual a pede Estes casos particulares se enquadram na mesma

noccedilatildeo geral de que quem aspira agrave tirania solicita uma guarda pessoal (Ibid 1357b 40-

48) O segundo tipo de exemplo consiste em invenccedilotildees mobilizadas pelo orador que

podem ser uma paraacutebola ou uma faacutebula (Ibid 1393a 37-40) A paraacutebola eacute um exemplo

inventado e implica uma comparaccedilatildeo com alguma coisa com que tenha semelhanccedila e da

qual sirva de ilustraccedilatildeo como quando Soacutecrates afirma que os governantes natildeo devem ser

escolhidos por um sorteio assim como natildeo satildeo escolhidos por sorteio os atletas para uma

competiccedilatildeo (Ibid 1393b 8-15) A faacutebula por sua vez consiste de narrativa curta e

imaginaacuteria com um objetivo pedagoacutegico e moral geralmente protagonizada por animais

a exemplo da faacutebula de Estesiacutecoro apresentada por Aristoacuteteles6

6 Aristoacuteteles escreve a respeito da faacutebula de Estesiacutecoro nos seguintes termos (Ret 1393b 17-33) ldquoUm exemplo de faacutebula eacute a que se refere Estesiacutecoro a respeito de Faacutelaris e a de Esopo a favor de um demagogo Tendo os cidadatildeos de Hiacutemera escolhido Faacutelaris como estratego com plenos poderes a ponto de lhe atribuir uma escolta pessoal Estesiacutecoro entre outras consideraccedilotildees contou-lhes a faacutebula seguinte um cavalo tinha um prado soacute para si mas chegou um veado e estragou-lhe o pasto o cavalo entatildeo querendo vingar-se do veado perguntou a um homem se o podia ajudar a punir o veado O homem consentiu com a condiccedilatildeo de lhe pocircr um freio e o montar armado com dardos Feito o acordo o homem montou o cavalo e este em vez de se vingar tornou-se escravo do homem lsquoAssim tambeacutem voacutesrsquo disse ele lsquoacautelai-vos natildeo vaacute acontecer que querendo vingar os vossos inimigos venhais a sofrer a sorte do cavalo jaacute tendes o freio ao eleger um estratego pleno de poderes se lhe dais uma guarda pessoal e permitis que vos monte entatildeo sereis escravos de Faacutelarisrsquordquo

Segundo Aristoacuteteles o estudo da arte retoacuterica deve levar em consideraccedilatildeo trecircs

componentes quais sejam o orador o assunto que eacute tratado no discurso e o ouvinte a

quem o discurso eacute endereccedilado (Ibid 1358a 47-51) Trecircs tambeacutem satildeo os tipos de provas

artiacutesticas (πίστεις ἔντεχνοι) que objetivam a persuasatildeo Assim as provas artiacutesticas da

persuasatildeo retoacuterica (Ibid 1356a 1-5) residem de um lado nas provas loacutegicas isto eacute no

entimema e no exemplo (λόγος)7 e de outro nas provas psicoloacutegicas compostas pelo

caraacuteter do orador (ἦθος) e o apelo emocional (πάθος) Com efeito as provas artiacutesticas

da persuasatildeo retoacuterica devem ser fornecidas pelo proacuteprio orador enquanto que os

elementos que estatildeo disponiacuteveis preacutevia e independentemente do orador a saber os

juramentos as leis as testemunhas os documentos e as confissotildees por tortura pertencem

agraves provas inartiacutesticas (πίστεις ἄτεχνοί) uma vez que natildeo podem ser elaboradas pelo

orador Escreve Aristoacuteteles a respeito (Ibid 1355b 36-42)

Das provas de persuasatildeo umas satildeo proacuteprias da arte retoacuterica e outras natildeo Chamo provas inartiacutesticas a todas as que natildeo satildeo produzidas por noacutes antes jaacute existem provas como testemunhos confissotildees sob tortura documentos escritos e outras semelhantes e provas artiacutesticas todas as que se podem preparar pelo meacutetodo e por noacutes proacuteprios De sorte que eacute preciso utilizar as primeiras mas inventar as segundas

Outro relevante assunto que eacute abordado por Aristoacuteteles no livro I da Retoacuterica (Ibid

1358a 45-1359a 33) diz respeito aos trecircs gecircneros de discursos o deliberativo o judicial

e o epidiacutectico Esta triacuteplice divisatildeo dos gecircneros de discursos que era corrente no seacuteculo

V aC foi tomada dos sofistas sem qualquer modificaccedilatildeo Todavia Aristoacuteteles oferece

uma justificativa teoacuterica para dividir os discursos em trecircs partes os possiacuteveis tipos de

ouvintes e os momentos possiacuteveis para tomar decisotildees

No discurso deliberativo existe tanto o conselho quanto a dissuasatildeo porque os que

procuram persuadir seja em puacuteblico ou em privado sempre fazem uma destas duas

coisas Para o que delibera o fim diz respeito ao conveniente e o prejudicial pois aquele

que aconselha recomenda-o como o melhor e aquele que desaconselha dissuade dele

como o pior O tempo para aquele que delibera eacute o futuro porquanto aconselha sobre

eventos futuros ora persuadindo ora dissuadindo Ademais o discurso deliberativo

7 Aristoacuteteles natildeo emprega diretamente o termo ldquoλόγοςrdquo para designar as provas loacutegicas (entimema e exemplo) mas eacute frequentemente utilizado pelos estudiosos da arte retoacuterica com o intuito de simplificar

dirige-se a um puacuteblico menos esclarecido para tanto o orador deve utilizar

preferencialmente argumentos pelo exemplo

No discurso judicial existe tanto a acusaccedilatildeo quanto a defesa porque eacute necessaacuterio

que os que pleiteiam faccedilam uma destas duas coisas Para os que falam no tribunal o fim

diz respeito ao justo e o injusto O tempo para aquele que acusa ou defende eacute o passado

pois eacute sempre sobre atos acontecidos que um acusa e outro defende Outrossim o discurso

judicial que dispotildee de leis e se dirige a um auditoacuterio mais especializado exige que o

orador empregue o entimema que eacute proacuteprio para esclarecer uma questatildeo judicial

No discurso epidiacutectico existe tanto o elogio quanto a censura Para os que elogiam

ou censuram o fim eacute o belo e o feio O tempo principal eacute o presente visto que todos

louvam ou censuram eventos atuais embora seja possiacutevel evocar o passado e conjecturar

sobre o futuro E quanto ao principal argumento a ser utilizado o gecircnero epidiacutectico

recorre principalmente agrave amplificaccedilatildeo (αὐξητικός) porque os fatos satildeo conhecidos pelo

auditoacuterio e conveacutem ao orador dar-lhes valor mostrando sua importacircncia e nobreza (Ibid

1367a 37-46)

Apoacutes ter discorrido no livro I sobre o bloco das provas loacutegicas (entimema e

exemplo) isto eacute aquelas destinadas a persuadir atraveacutes de argumentos racionais

Aristoacuteteles analisa no livro II o bloco das provas psicoloacutegicas que satildeo aquelas cujo vigor

persuasivo natildeo depende diretamente da razatildeo mas do apelo emocional O ἦθος que

consiste no caraacuteter do orador e o πάθος que designa o apelo agraves emoccedilotildees formam o bloco

de provas que natildeo satildeo demonstrativas mas psicoloacutegicas Isso porque os meios de

persuasatildeo de que se valem estatildeo fora do assunto a ser tratado no discurso isto eacute natildeo se

relacionam com os conteuacutedos da argumentaccedilatildeo propriamente dita Isto posto no livro II

da Retoacuterica o Estagirita procura explanar como os elementos da argumentaccedilatildeo

psicoloacutegica podem ser utilizados como parte da argumentaccedilatildeo entimemaacutetica

Com efeito a arte retoacuterica tem como objetivo fundamental encontrar teoricamente

os modos pelos quais se efetiva a persuasatildeo e por conseguinte produzir na alma dos

ouvintes um juiacutezo favoraacutevel ao conteuacutedo do discurso Dessarte precisam ser levados em

consideraccedilatildeo natildeo somente os efeitos intelectuais do discurso mas tambeacutem a imagem que

o orador exibe e a maneira pela qual a audiecircncia poderaacute inclinar-se emocionalmente em

favor do que foi veiculado (Ibid 1377b 29-32) E ao ponderar sobre a importacircncia do

caraacuteter do orador e do apelo agraves emoccedilotildees dos ouvintes o Estagirita introduz no seu meacutetodo

retoacuterico ao lado de uma retoacuterica demonstrativa ainda outra que pode ser cognominada

de retoacuterica afetiva porquanto no discurso retoacuterico natildeo basta observar abstratas regras

loacutegicas e racionais para obter a persuasatildeo mas eacute preciso envolver tambeacutem os sentimentos

os afetos a emotividade

No que concerne ao caraacuteter moral do orador a persuasatildeo se efetiva quando o

discurso eacute proferido por um orador que goze de prestiacutegio (Ibid 1356a 6-8) pois se

orador parecer confiaacutevel o puacuteblico iraacute formar o juiacutezo de que as proposiccedilotildees apresentadas

satildeo igualmente confiaacuteveis Noutros termos o puacuteblico se sentiraacute inclinado a transferir para

o conteuacutedo do discurso a credibilidade que confere ao caraacuteter do orador e isto ocorre

muito frequentemente nos casos em que natildeo haacute um conhecimento certo e definitivo sobre

determinado assunto mas margem para duacutevidas Natildeo obstante o ἦθος do orador por si

soacute natildeo eacute suficiente para efetivar a persuasatildeo pois eacute necessaacuterio que a confianccedila no discurso

seja fundamentalmente o resultado da argumentaccedilatildeo entimemaacutetica e natildeo de uma opiniatildeo

a priori acerca do caraacuteter do orador (Ibid 1356a 8-13) Aleacutem do mais Aristoacuteteles afirma

existir trecircs causas que tornam os oradores persuasivos sem a necessidade de

demonstraccedilotildees entimemaacuteticas (Ibid 1378a 9-22) Assim para que o orador obtenha a

credibilidade diante do seu puacuteblico deve aparentar possuir a prudecircncia (φρόνησις) a

virtude (ἀρετὴ) e a benevolecircncia (εὔνοια)

Para Aristoacuteteles a consideraccedilatildeo do πάθος eacute relevante para a investigaccedilatildeo das

condiccedilotildees de persuasatildeo porque as emoccedilotildees podem mover as pessoas em direccedilatildeo de um

determinado juiacutezo ou mesmo alterar o seu rigor Isto ocorre porque os fatos natildeo se

apresentam sob a mesma perspectiva a quem ama e a quem odeia nem satildeo iguais para o

homem que estaacute irado ou para o calmo Quem ama acha que o juiacutezo que deve emitir sobre

quem eacute julgado eacute de natildeo culpabilidade ou de pouca culpabilidade e quem odeia amiuacutede

pensa o contraacuterio (Ibid 1377b 40-1378a 4) Pode-se assegurar entatildeo que a influecircncia

das emoccedilotildees sobre os ouvintes de um discurso pode determinar de um lado a natureza

de um juiacutezo e de outro o grau de sua severidade

A maneira pela qual o orador torna-se apto a suscitar certas emoccedilotildees nos seus

ouvintes depende basicamente do conhecimento circunstanciado de cada emoccedilatildeo em

particular ndash vale dizer o conhecimento da definiccedilatildeo que expressa sua natureza ndash e dos

padrotildees de estiacutemulos que acompanham cada situaccedilatildeo afetiva ndash o que requer a explanaccedilatildeo

desses padrotildees Eacute a partir dessas noccedilotildees que o orador pode elaborar seus argumentos com

o intuito de persuadir seu auditoacuterio de acordo com sua conveniecircncia (Ibid 1378a 34-

43) Desse modo para conquistar este relevante efeito no pensamento e na postura

assumida pelos ouvintes Aristoacuteteles descreve (nos capiacutetulos 2 a 11 de Retoacuterica II) treze

emoccedilotildees na seguinte ordem ira (ὀργή) calma (πραότης) amizade (φίλος) inimizade

(μῖσος) temor (φόβος) confianccedila (θαρσαλέος) vergonha (αἰσχύνη) desvergonha

(ἀναισχυντία) amabilidade (χάρις) piedade (ἔλεος) indignaccedilatildeo (νέμεσις) inveja

(φθόνος) e emulaccedilatildeo (ζῆλος)

Dos capiacutetulos 12 a 17 do mesmo livro Aristoacuteteles empreende uma anaacutelise do caraacuteter

dos ouvintes (ἦθος) dividindo-os em grupos segundo a idade e a condiccedilatildeo social o caraacuteter

do jovem (νέος) o caraacuteter do idoso (πρέσβυς) o caraacuteter dos que estatildeo no auge da vida

(ἀκμάζοντες) o caraacuteter do nobre (εὐγενής) o caraacuteter do rico (πλοῦτος) e o caraacuteter dos

poderosos (δυνάμεως) Esta parte do seu tratado supotildee um esforccedilo de Aristoacuteteles por levar

a cabo o desejo manifestado por Platatildeo8 de chegar a uma classificaccedilatildeo do caraacuteter dos

ouvintes com o intuito de construir os argumentos mais adequados a cada um deles9 No

entanto as observaccedilotildees de Aristoacuteteles que subsequentemente seratildeo resumidas natildeo

possuem um cunho eminentemente cientiacutefico visto que limitam-se a subscrever o que

propala o senso comum ou a sabedoria convencional

Para Aristoacuteteles os jovens satildeo propensos aos desejos passionais e inclinados a

fazer o que desejam Satildeo impulsivos irritadiccedilos e deixam-se arrastar pela ira Satildeo

confiantes e otimistas porque ainda natildeo foram muitas vezes enganados nem sofreram

muitas decepccedilotildees na vida Satildeo magnacircnimos porque ainda natildeo foram feridos pela vida e

satildeo inexperientes acerca das necessidades materiais Eles em tudo pecam por excesso e

violecircncia Acham que sabem de tudo e satildeo obstinados Preferem o belo em detrimento do

que eacute uacutetil Mais do que todas as idades amam os amigos e companheiros porque gostam

de conviver com os outros Tambeacutem gostam de rir e fazer gracejos No que tange aos

idosos ele destaca que em tudo avanccedilam com cautela e em tudo dizem menos do que

conveacutem Preferem o uacutetil em detrimento do que eacute belo Tambeacutem tecircm mau caraacuteter pois ter

mau caraacuteter consiste em supor sempre o pior em tudo Satildeo de espiacuterito mesquinho por

8 Escreve Platatildeo a respeito da classificaccedilatildeo do caraacuteter dos ouvintes (Fed 271d) ldquoVisto que eacute funccedilatildeo do discurso conduzir as almas quem deseja vir a ser orador necessita conhecer quantas formas tem a alma Ora haacute tantas e tais que tornam uns homens de determinada natureza e outros de natureza diferente Entatildeo uma vez definidas essas o nuacutemero de espeacutecies de discursos eacute o mesmo e cada um com caracteriacutesticas especiacuteficas Por isso uns homens sob a acccedilatildeo de determinados discursos e por determinado motivo tornam-se obedientes a certas convicccedilotildees outros poreacutem com natureza diferente natildeo de deixam persuadir pelas mesmas razotildeesrdquo 9 Segundo Armando Plebe a faculdade de encontrar os diversos modos de expressatildeo convenientes a cada tipo de ouvinte a qual recebe a designaccedilatildeo de polytropiacutea (πολυτροπία) teria sua origem na vertente retoacuterica do primeiro pitagorismo (PLEBE 1978 3-4)

terem sido maltratados pela vida razatildeo pela qual natildeo aspiram a nada de grande nem de

extraordinaacuterio mas somente ao que eacute indispensaacutevel agrave vida Ademais satildeo mais egoiacutestas

do que o necessaacuterio satildeo pessimistas em razatildeo da sua experiecircncia mas tambeacutem devido agrave

sua covardia satildeo faladores pois vivem a falar de coisas passadas estatildeo sempre se

queixando e natildeo gostam de brincadeiras nem de rir E sobre os que estatildeo no auge (ακμή)

da vida (dos 30 aos 35 anos) ele sustenta que mantecircm a justa medida em todas as

situaccedilotildees Nem confiantes em tudo nem totalmente desconfiados Natildeo vivem para o belo

nem para o uacutetil mas para as duas coisas Enfim tudo o que de uacutetil estaacute repartido entre a

juventude e a velhice encontra-se reunido no auge da vida

Tendo em conta a anaacutelise das classes sociais o Estagirita sublinha que o caraacuteter

proacuteprio da nobreza eacute tornar mais ambicioso aquele que a possui Os nobres que possuem

uma dignidade transmitida pelos antepassados tecircm uma tendecircncia para o desprezo

mesmo em relaccedilatildeo aqueles que satildeo semelhantes aos seus antepassados Ele entende por

nobre aquele cujas virtudes satildeo inerentes a uma estirpe e natildeo perde suas qualidades

naturais Todavia existem indiviacuteduos de boa linhagem que se degeneram e adquirem um

caraacuteter vil a exemplo dos descendentes de Peacutericles e Soacutecrates Os ricos por sua vez satildeo

descritos como soberbos e orgulhosos porque estatildeo afetados pelas riquezas Satildeo

efeminados e petulantes Efeminados porque vivem do luxo e fazem ostentaccedilatildeo da sua

felicidade Petulantes porque estatildeo acostumados a que toda gente se ocupe dos seus

desejos e os admire E quando eles cometem injusticcedila natildeo o fazem por maldade mas

por insolecircncia ou intemperanccedila Enfim os poderosos que na visatildeo de Aristoacuteteles satildeo por

temperamento mais ambiciosos e mais viris que os ricos pois ambicionam realizar atos

que podem cumprir devido ao poder de que dispotildeem Eles satildeo mais diligentes porque

tecircm responsabilidades obrigando-se a velar por tudo que se relaciona ao seu poder Satildeo

mais dignos do que graves porque a sua dignidade lhes confere mais respeito E se

porventura cometem injusticcedilas essas injusticcedilas natildeo alvejam as pessoas pequenas mas

sim para as grandes

Tambeacutem satildeo analisados no presente livro os lugares-comuns (κοινοί τόποι)

Aristoacuteteles natildeo oferece uma definiccedilatildeo expliacutecita dos κοινοί τόποι mas pode-se assegurar

que satildeo fontes de argumentaccedilatildeo que podem ser facilmente localizados uma vez que

foram devidamente memorizados pelo orador tendo em vista sua utilizaccedilatildeo em diversas

situaccedilotildees Os lugares-comuns podem ser aplicados em questotildees de direito de fiacutesica de

poliacutetica e demais disciplinas que diferem em espeacutecie (Ret 1358a 15-18) Dentre os 28

tipos de lugares-comuns expostos no capiacutetulo 23 os quais tambeacutem satildeo abordados nos

Toacutepicos conveacutem a exposiccedilatildeo de alguns deles Vejamos primeiramente o lugar do mais e

o do menos Na hipoacutetese de que um atributo natildeo se aplica ao que eacute mais aplicaacutevel tambeacutem

natildeo se aplica ao que eacute menos aplicaacutevel de modo que se nem os deuses sabem de tudo

menos ainda os homens Ou ainda o argumento de que uma pessoa que agride os vizinhos

tambeacutem agride o pai visto que se assenta no raciociacutenio de que se haacute o menos tambeacutem haacute

o mais pois amiuacutede se agride menos os pais do que os vizinhos Uma variaccedilatildeo deste lugar

consiste no argumento de que se os demais artistas natildeo satildeo despreziacuteveis certamente os

filoacutesofos tambeacutem natildeo satildeo (Ibid 1397b 16-23 36-37) Outro lugar consiste em apropriar-

se das palavras pronunciadas contra o orador e voltaacute-las contra o adversaacuterio Este

argumento tem por objetivo desacreditar o adversaacuterio atribuindo-lhe tudo aquilo que foi

recriminado no orador (Ibid 1398a 7-24) Existe tambeacutem o lugar-comum referente agrave

induccedilatildeo por exemplo natildeo se pode confiar os proacuteprios cavalos agravequeles que cuidam mal

dos cavalos dos outros e natildeo se pode confiar os proacuteprios navios aos que fizeram afundar

os navios alheios Disso conclui-se que a quem zela mal pela seguranccedila alheia natildeo eacute

proveitoso confiar-lhe a proacutepria (Ibid 1398b 7-13)

No livro III da Retoacuterica o Estagirita expotildee outro motivo pelo qual eacute necessaacuterio levar

em consideraccedilatildeo o πάθος na praacutetica retoacuterica qual seja a atenccedilatildeo que deve ser

necessariamente conferida agrave expressatildeo enunciativa10 (λέξις)11 A λέξις diz respeito agrave

maneira pela qual o conteuacutedo do discurso deve ser apresentado ao auditoacuterio uma vez que

natildeo basta ter domiacutenio o teoacuterico do assunto mas tambeacutem eacute necessaacuterio expocirc-lo de forma

conveniente (Ibid 1403b 17-20) Aleacutem disso trecircs aspectos gerais precisam ser

observados a fim de que a expressatildeo enunciativa possa ser empregada de maneira

eficiente a saber o volume (μέγεθος) a harmonia (ἁρμονία) e o ritmo (ῥυθμός) Por isso

aqueles que entre os competidores de recitaccedilatildeo de poesias empregavam estes trecircs

aspectos tendiam a conquistar quase todos os precircmios e assim como os atores possuiacuteam

mais influecircncia nas competiccedilotildees poeacuteticas do que os proacuteprios autores o mesmo ocorreria

10 Para E M Cope o uso da expressatildeo enunciativa se justificaria em certa medida pelo julgamento depravado e pelo gosto de um puacuteblico comum que demandaria algum tipo de ldquolisonjardquo (COPE 1867 5) ldquoBut besides this scientific use of them there is another reason for not excluding appeals to the feelings from the practice of rhetoric they are justified to a cert extent like the attention which must necessarily be paid to composition and language harmony and rhythm of the speech (III15) the depraved judgment and taste of an ordinary audience requires this kind of lsquoflatteryrsquo as Plato calls it and the speaker is therefore obliged to give away to relax the rigorous observance of the rules of his art and humor their perverted inclinationsrdquo

11 Alguns autores optam por traduzir a palavra grega ldquoλέξιςrdquo por ldquoestilordquo ou ldquoelocuccedilatildeordquo

nos debates retoacutericos (Ibid 1403b 38-44)

Com efeito a expressatildeo enunciativa quando eacute empregada corretamente abrangendo

os trecircs aspectos jaacute considerados estaraacute inserida no plano da representaccedilatildeo teatral cuja

inserccedilatildeo ocorre em virtude da pronunciaccedilatildeo (ὑπόκρισις) Esta refere-se propriamente ao

ato de pronunciar um discurso em puacuteblico incluindo um cabedal de teacutecnicas que vatildeo

desde a projeccedilatildeo da voz ao proacuteprio movimento corporal do orador A pronunciaccedilatildeo que

identifica-se com a arte do ator eacute um elemento indispensaacutevel na praacutetica retoacuterica porque

uma boa pronunciaccedilatildeo pode suscitar o mesmo efeito nos ouvintes de um discurso que a

representaccedilatildeo teatral causaria numa plateia (Ibid 1404a 17-18) Nos concursos de

poesias a maioria dos precircmios era conquistada por aqueles que empregavam eficazmente

a pronunciaccedilatildeo razatildeo pela qual alguns poetas embora proferindo coisas fuacuteteis

adquiriram renome em decorrecircncia da vivacidade com que expressavam o seu conteuacutedo

(Ibid 1404a 25-36)

Na verdade haacute discursos escritos que obtecircm muito mais efeito pelo enunciado do que pelas ideias Os poetas foram os primeiros como seria natural a dar um impulso a este aspecto Efetivamente palavras satildeo imitaccedilotildees e a voz eacute de todos os nossos oacutergatildeos o mais apropriado agrave imitaccedilatildeo Por isso as artes entatildeo estabelecidas foram a rapsoacutedia e a representaccedilatildeo teatral aleacutem de outras mais E uma vez que os poetas embora dizendo coisas fuacuteteis pareciam obter renome graccedilas agrave sua expressatildeo por esta mesma razatildeo foi um tipo de expressatildeo poeacutetica o primeiro a surgir como a de Goacutergias

Na visatildeo de Aristoacuteteles assim como alguns poetas conquistaram a fama atraveacutes de

sua performance teatral os bons oradores tambeacutem deveriam buscar a adesatildeo de seus

ouvintes atraveacutes da boa pronunciaccedilatildeo posto que os discursos tornam-se persuasivos natildeo

somente pelas ideias que veiculam mas pela forma como satildeo pronunciados Todavia

todos os esforccedilos do Estagirita no estudo da expressatildeo enunciativa vatildeo no sentido de

mostrar sua relevacircncia para o ultrapassamento das dificuldades que obstam o bom

esclarecimento do ouvinte que amiuacutede eacute de baixo niacutevel intelectual (Ibid 1404a 9) a fim

de que o exerciacutecio de julgamento possa ocorrer em condiccedilotildees favoraacuteveis agrave vitoacuteria da

verdade e da justiccedila

Por fim Aristoacuteteles dedica os uacuteltimos sete capiacutetulos da Retoacuterica ao estudo das

partes do discurso (τάξις) O objetivo de dividir o discurso em partes eacute possibilitar a

demonstraccedilatildeo entimemaacutetica jaacute que de outra forma seria difiacutecil recordar num momento

tudo o que se disse a respeito de um tema ao passo que em partes eacute mais faacutecil A

disposiccedilatildeo do discurso em partes tambeacutem possui uma funccedilatildeo econocircmica pois facilita a

tarefa do orador de nada omitir sem fazer qualquer repeticcedilatildeo Aliaacutes pela divisatildeo do

discurso o orador faz o auditoacuterio encaminhar-se pelas vias e pelas etapas que escolheu

conduzindo-o para o objetivo proposto Para tanto Aristoacuteteles segue a divisatildeo claacutessica do

discurso jaacute presente na concepccedilatildeo retoacuterica de Isoacutecrates a saber o proecircmio (προοίμιον)12

a exposiccedilatildeo (πρόθεσις) as provas (πίστεις) e o epiacutelogo (ἐπίλογος)

O προοίμιον equivale ao comeccedilo do discurso e serve como preparaccedilatildeo do caminho

que se segue depois Sua funccedilatildeo eacute essencialmente faacutetica tornar o auditoacuterio doacutecil

benevolente e atencioso pois tanto mais interesse existiraacute pelo discurso quanto mais ele

for relevante causar surpresas despertar admiraccedilatildeo e soar agradaacutevel Desse modo no

proecircmio o papel do ἦθος assume toda sua importacircncia pois o escopo principal desta

etapa eacute seduzir os ouvintes e conquistar imediatamente sua simpatia Enfim a funccedilatildeo do

proecircmio consiste em apresentar o orador como uma pessoa respeitaacutevel (Ibid 1415a 48-

51)

Para Aristoacuteteles ficariam sem efeito tanto o discurso que expotildee algo sem fazer uma

demonstraccedilatildeo quanto o discurso que demonstra algo sem ter previamente exposto o

assunto Por isso eacute imprescindiacutevel a πρόθεσις ou seja a exposiccedilatildeo ou comunicaccedilatildeo do

assunto a ser desenvolvido na parte subsequente do discurso a qual se refere agraves πίστεις

Eacute necessaacuterio para Aristoacuteteles que as πίστεις sejam demonstrativas (Ibid 1417b 29) razatildeo

pela qual precisam estar pautadas no emprego do entimema e do exemplo O entimema

conforme jaacute examinado eacute uma espeacutecie de silogismo que se fundamenta sobre

probabilidades e sinais ao passo que o exemplo consiste na demonstraccedilatildeo de alguma tese

particular com base na consideraccedilatildeo de muitos casos semelhantes Nas πίστεις satildeo os

fatos que entram em causa os quais satildeo concebidos unicamente sob o ponto de vista das

provas loacutegicas (λόγος) No entanto a ecircnfase que deve ser dada ao λόγος natildeo exclui nesta

etapa do discurso o emprego do πάθος ou seja o apelo emocional conquanto natildeo se

demore muito neste tipo de prova Assim ainda que o ἦθος e o πάθος tenham

respectivamente seu assento proacuteprio no proecircmio e no epiacutelogo onde satildeo mais comuns

possuem tambeacutem lugar nas demais partes do discurso

A uacuteltima parte do discurso consiste no ἐπίλογος que basicamente deve encerrar

12 Alguns autores preferem empregar o termo ldquoexoacuterdiordquo em vez de ldquoproecircmiordquo para referir-se ao iniacutecio do discurso

quatro caracteriacutesticas (Ibid 1419b 14-1420a 10) 1) tornar o ouvinte favoraacutevel agrave causa

do orador e desfavoraacutevel para agrave causa do adversaacuterio o que o orador busca por um lado

apresentando-se como homem de bem diante dos ouvintes e por outro apresentando o

adversaacuterio como perverso 2) amplificar ou minimizar 3) trazer agrave memoacuteria o que foi

exposto pelo discurso isto eacute retomar o que foi dito resumir e finalmente 4) provocar

determinadas emoccedilotildees como a piedade a ira o oacutedio a inveja a emulaccedilatildeo entre outras

Embora o apelo agraves emoccedilotildees seja predominante no epiacutelogo este natildeo exclui a argumentaccedilatildeo

entimemaacutetica pelo contraacuterio eacute a uniatildeo das provas loacutegicas com as provas psicoloacutegicas que

caracteriza a etapa final do discurso pois eacute o momento por excelecircncia em que a

afetividade se une com a argumentaccedilatildeo (REBOUL 2004 60)

Ateacute aqui foi possiacutevel constatar duas redaccedilotildees distintas pertencentes a dois periacuteodos

diferentes do pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles Uma primeira que pode ser designada

por ldquoretoacuterica antigardquo intimamente ligada ao pensamento de Platatildeo a qual eacute expressa

atraveacutes do diaacutelogo exoteacuterico Grilos e demais textos que natildeo foram conservados dos quais

soacute restaram poucas doxografias A segunda por contraste com a anterior poderia ser

denominada ldquoretoacuterica recenterdquo Esta que eacute expressa nos trecircs livros da Retoacuterica se afasta

substancialmente do pensamento de Platatildeo e aproxima-se em muitos aspectos da sofiacutestica

Isto posto conveacutem adiante compreendermos as possiacuteveis razotildees desse afastamento e o

que distingue a retoacuterica de Platatildeo da retoacuterica de Aristoacuteteles Outrossim seraacute necessaacuterio

analisar em que medida a sofiacutestica influenciou o pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles uma

vez que o filoacutesofo menciona uma seacuterie de sofistas como os descobridores dos primeiros

princiacutepios da arte retoacuterica os quais teriam contribuiacutedo para o seu progresso enquanto que

o proacuteprio Aristoacuteteles se posiciona como um simples herdeiro dessa longa sucessatildeo de

homens Considerando-se pois que houve no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles duas

fases distintas uma fase juvenil intimamente ligada agrave filosofia de Platatildeo e uma fase que

representaria a maturidade do seu pensamento a qual teria recebido forte atuaccedilatildeo do

movimento sofista pode-se sustentar com plausibilidade que a arte retoacuterica de Aristoacuteteles

situa-se equidistante tanto em relaccedilatildeo agrave posiccedilatildeo de Platatildeo quanto agrave posiccedilatildeo dos sofistas

Esta perspectiva eacute endossada por Barbara Cassin a qual aventa que a retoacuterica

recente de Aristoacuteteles apareceria como uma espeacutecie de conciliaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo

retoacuterica de Platatildeo e a dos sofistas No entanto com o intuito de preservar a retoacuterica da

sofiacutestica que eacute sempre alvo de suas objeccedilotildees e para que a poliacutetica seja devidamente

resguardada do relativismo o Estagirita teria atribuiacutedo agrave arte retoacuterica uma funccedilatildeo eacutetico-

poliacutetica que consistiria no triunfo natural do verdadeiro e do justo Para Cassin

Aristoacuteteles define a linguagem de forma a que a sofiacutestica seja definitivamente privada de

palavra de filosofia e ateacute de humanidade Ao mesmo tempo o sistema e as doutrinas

aristoteacutelicas apareceriam como o resultado de uma difiacutecil negociaccedilatildeo entre Platatildeo e a

sofiacutestica que permite por exemplo a exclusatildeo bem-sucedida da sofiacutestica para a literatura

mas que o obriga a compartilhar teses com ela principalmente sobre o valor atribuiacutedo ao

consenso dos cidadatildeos (CASSIN 1999 14) Assim o pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles

aproximar-se-ia da sofiacutestica e deliberadamente seria antiplatocircnico por duas razotildees

principais pela escolha do λόγος como traccedilo dominante da condiccedilatildeo poliacutetica do homem

e pela maneira de articular a pluralidade das diferenccedilas dos pontos de vista e de fala na

unidade plural da cidade No entanto o pensamento de Aristoacuteteles eacute antisofista em sua

interpretaccedilatildeo do λόγος e no que se pode designar de autosubordinaccedilatildeo do retoacuterico ao

poliacutetico do linguageiro e do discursivo ao loacutegico e ao racional (Ibid 1999 48) Aleacutem

disso Cassin sustenta que para Aristoacuteteles o sofista que falaria simplesmente pelo prazer

de falar seria e natildeo seria um homem pois se ele persevera deveria ser comparado com

uma planta jaacute que seria necessaacuterio ao Estagirita natildeo soacute decidir de uma vez por todas que

falar eacute significar mas ainda fazer no λόγος um enxerto eacutetico ndash a introduccedilatildeo na arte retoacuterica

de um suplemento de boa intenccedilatildeo a fim de que a retoacuterica escape agrave sofiacutestica e para que a

poliacutetica seja preservada do relativismo (Ibid 199916)

Pode-se concluir que a envergadura eacutetico-poliacutetica da retoacuterica de Aristoacuteteles que

consiste na defesa da verdade e da justiccedila na cidade e na admissatildeo das crenccedilas geralmente

aceitas pelos cidadatildeos se afigura no nuacutecleo da conciliaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo retoacuterica de

Platatildeo e a dos sofistas Este nuacutecleo obviamente teraacute de ser analisado em toda a sua

complexidade que implica na investigaccedilatildeo meticulosa das noccedilotildees que o compotildee tanto a

partir dos textos de Platatildeo como daqueles que satildeo atribuiacutedos aos principais sofistas a fim

de demonstrar sua articulaccedilatildeo no tecido da teoria retoacuterica de Aristoacuteteles Para tanto o

discurso que Soacutecrates profere em sua proacutepria defesa diante do tribunal de Atenas em 399

a C e ao qual Platatildeo dedica a obra Defesa de Soacutecrates nos pode fornecer em certa

medida as primeiras indicaccedilotildees para oportunamente compreendermos tanto a posiccedilatildeo de

Platatildeo quanto a posiccedilatildeo de Aristoacuteteles acerca da arte retoacuterica Ele tambeacutem eacute elucidativo

no que concerne agraves razotildees pelas quais Aristoacuteteles teria se afastado da concepccedilatildeo retoacuterica

defendida por Platatildeo bem como na explicitaccedilatildeo do efeito que o movimento sofista teria

exercido sobre o pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles

2 A concepccedilatildeo de retoacuterica no diaacutelogo platocircnico Defesa de Soacutecrates

21 O problema da fidedignidade do discurso judicial de Soacutecrates

O processo judicial contra Soacutecrates ocorreu na cidade de Atenas no ano de 399 aC

com a peculiaridade de que diferentemente de uma acusaccedilatildeo privada feita pela parte

lesada ou por seu representante Soacutecrates foi constrangido a responder a uma acusaccedilatildeo

puacuteblica que era prerrogativa de qualquer cidadatildeo honesto Todavia com base no conjunto

das acusaccedilotildees contra Soacutecrates conforme satildeo relatadas por Platatildeo e Xenofonte pode-se

identificar trecircs momentos sucessivos de acusaccedilotildees que se escalonaratildeo por trinta anos Os

ataques presentes na comeacutedia As Nuvens de Aristoacutefanes (Nuv 423) contados por Platatildeo

expressamente entre os ldquoprimeiros acusadoresrdquo de Soacutecrates (Def Soacutec 18b) Na comeacutedia

em apreccedilo Aristoacutefanes oferece uma caricatura de Soacutecrates a qual o associa a alguns

aspectos importantes da vida intelectual de sua eacutepoca (agrave sofiacutestica e agrave filosofia da natureza)

e eacute altamente provaacutevel que tenha contribuiacutedo significativamente para o clima de

desconfianccedila e hostilidade que finalmente levou agrave sua condenaccedilatildeo e morte O ato oficial

de acusaccedilatildeo deposto por Meleto Acircnito e Liacutecon que adiante seraacute examinado E as

acusaccedilotildees de caraacuteter poliacutetico expressas pelo orador e sofista Poliacutecrates depois de 394 aC

Este teria escrito um relato hostil contra Soacutecrates num panfleto hoje perdido chamado

Κατηγορία Σωκράτους ou Acusaccedilatildeo de Soacutecrates (TAYLOR 2010 35) Isto posto aos

setenta anos de idade Soacutecrates foi levado a julgamento por supostamente corromper a

juventude e natildeo acreditar nos deuses da cidade de Atenas13 (Def Soacutec 24b-c)

Nada mais preciso dizer para defender-me diante de voacutes das mentiras de meus primeiros acusadores Tentarei em seguida defender-me de Meleto esse honrado e prestante cidadatildeo como se proclama e dos acusadores recentes Novamente jaacute que se trata de outros acusadores tomemos tambeacutem o texto de sua acusaccedilatildeo Reza ele mais

13 Em sua obra Ditos e Feitos Memoraacuteveis de Soacutecrates (conhecida tambeacutem como ldquoMemorabiliardquo) Xenofonte defende Soacutecrates da acusaccedilatildeo de natildeo venerar os deuses cultuados por Atenas nos seguintes termos (Mem I I 1-3) ldquoA que testemunha afinal recorreram para provar que ele natildeo honrava os deuses do Estado se fazia sacrifiacutecios frequumlentes agraves abertas ora em sua casa ora nos altares puacuteblicos se praceiramente recorria agrave arte divinatoacuteria Corria a voz ateada pelo proacuteprio Soacutecrates de que o inspirava um democircnio eis sem duacutevida por que o criminaram de introduzir extravagacircncias demoniacuteacas No entanto natildeo introduzia ele mais novidades do que todos aqueles que crecircem na adivinhaccedilatildeo e interrogam o vocirco das aves as vozes os signos e as entranhas das viacutetimas natildeo supotildeem nas aves nem naqueles com que se encontram o conhecimento do que buscam mas acreditam que por seu intermeacutedio lho revelam os deuses Soacutecrates tambeacutem pensava o mesmordquo

ou menos assim ldquoSoacutecrates eacute reacuteu de corromper a juventude e de natildeo crer nos deuses em que o povo crecirc e sim em outras divindades novasrdquo

O principal acusador de Soacutecrates foi Meleto seguido por Acircnito e Liacutecon Segundo a

afirmaccedilatildeo de Soacutecrates Meleto tomou as dores dos poetas Acircnito as dores dos artesatildeos e

dos poliacuteticos e Liacutecon a dos oradores (Def Soacutec 24a) Nominalmente o principal

acusador foi Meleto de quem pouco se sabe o acusador secundaacuterio era o igualmente

ignoto Liacutecon Acircnito por sua vez era um prestigiado cidadatildeo de Atenas que entre 403 e

397 aC foi estratego uma funccedilatildeo de elevada responsabilidade na cidade (MARTENS

2013 116)

C C W Taylor sustenta que o primeiro item da peccedila acusatoacuteria contra Soacutecrates

fundamenta-se na suposta influecircncia poliacutetica do filoacutesofo sobre aqueles de seus disciacutepulos

que haviam se tornado famosos por condutas antiatenienses ou antidemocraacuteticas Em

virtude da maacute fama de Alcibiacuteades Criacutetias Caacutermides e outros disciacutepulos conhecidos de

Soacutecrates como Fedro e Erixiacutemaco (ambos implicados juntamente com outros do ciacuterculo

socraacutetico em um ceacutelebre escacircndalo religioso em 415 aC) seria muito plausiacutevel que a

acusaccedilatildeo de Meleto Acircnito e Liacutecon mencionasse os crimes deles para difamar Soacutecrates

imputando-lhe a corrupccedilatildeo da juventude No ano de 403 aC foi aprovada uma lei

proibindo que pessoas fossem acusadas de crimes cometidos anteriormente mas isto natildeo

impedia a menccedilatildeo de eventos passados a fim de exemplificar o caraacuteter do reacuteu Dessarte

eacute praticamente certo que a acusaccedilatildeo de corromper a juventude possuiacutea no caso de Soacutecrates

uma dimensatildeo poliacutetica No entanto isso natildeo permitiria concluir que as acusaccedilotildees

especificamente religiosas natildeo fossem tambeacutem plausiacuteveis ou que a suposta corrupccedilatildeo da

juventude natildeo tivesse em si mesma um aspecto religioso (TAYLOR 2010 23-24)

Por volta de 432 aC foi sancionada na Assembleia popular (ἐκκλησία) sob a

proposta do adivinho profissional Dioacutepeites a lei que condena a impiedade (ἀσέβεια) de

acordo com a qual constitui crime grave divulgar doutrinas puramente fiacutesicas sobre a

natureza dos astros ldquodivinosrdquo e negar a existecircncia dos deuses Agrave vista disso duvidar do

sobrenatural e ensinar a astronomia eram crimes passiacuteveis de perseguiccedilatildeo penal O

filoacutesofo Anaxaacutegoras e o sofista Protaacutegoras foram conhecidas viacutetimas dessa lei Nos

tempos inquietos apoacutes a Guerra do Peloponeso a filosofia da natureza de Anaxaacutegoras e

a retoacuterica dos sofistas pareceram a muitos atenienses corromper as convicccedilotildees

fundamentais que sustentavam a comunidade poliacutetica e uma vez que os processos de

ἀσέβεια eram levados muito a seacuterio tanto Anaxaacutegoras quanto Protaacutegoras soacute puderam ser

salvos mediante a fuga De fato a atividade filosoacutefica de Soacutecrates oferecia motivos para

a associaccedilatildeo do seu pensamento com o movimento sofista de sua eacutepoca Ele tambeacutem

havia se aproximado do partido oligarca proacute-espartanos Seus acusadores por

conseguinte possivelmente ligaram ambas as coisas entre si e consideraram a atividade

ldquoiacutempiardquo de Soacutecrates como responsaacutevel pela decadecircncia de Atenas e pela vitoacuteria da

oligarquia proacute-espartanos A despeito disso ele permaneceu fiel agraves suas convicccedilotildees

filosoacuteficas e natildeo se deixou desviar em virtude de um erro judicial (MARTENS 2013

119-122)

Com efeito as acusaccedilotildees relativas a crimes religiosos ou capitais eram da

competecircncia do ldquoarconte basileurdquo um alto magistrado que na condiccedilatildeo de βασιλεύς

assumiu na Atenas democraacutetica as funccedilotildees da antiga realeza A audiecircncia principal

acontecia diante de um tribunal de justiccedila (δικαστήριον) composto de 501 jurados os

quais eram definidos por sorteio com base numa lista de 6 mil voluntaacuterios todos cidadatildeos

atenienses escolhidos pela Assembleia popular (Ibid 2013 117) Na primeira votaccedilatildeo

dos jurados Soacutecrates foi considerado culpado pela estreita maioria faltando-lhe somente

30 votos para ser absolvido (Def Soacutec 36a) na votaccedilatildeo decisiva sobre a pena de morte

proposta pelos acusadores Soacutecrates mais uma vez eacute condenado pela maioria dos jurados

provocados provavelmente por sua contraproposta que estipulava uma pena de apenas de

30 minas de prata (Ibid 38b) Aliaacutes a execuccedilatildeo de Soacutecrates soacute ocorreu um bom tempo

depois de sua condenaccedilatildeo pois era preciso esperar pelo retorno do navio enviado todo

ano agrave ilha de Delos para agradecer a Apolo sua ajuda a Teseu na salvaccedilatildeo dos refeacutens

atenienses para fora do labirinto do Minotauro E durante a missatildeo festiva natildeo era liacutecito

que a cidade de Atenas fosse conspurcada por qualquer execuccedilatildeo

Antes de passar agrave anaacutelise do discurso judicial de Soacutecrates conveacutem lembrar as

duacutevidas levantadas por muitos estudiosos dos diaacutelogos platocircnicos quanto agrave fidedignidade

da defesa de Soacutecrates tal como apresentada por Platatildeo no opuacutesculo homocircnimo Como eacute

sabido paira sobre esse diaacutelogo a suspeita de que antes que restringir-se a reproduzir o

discurso proferido pelo Soacutecrates histoacuterico ele encerraria tambeacutem e talvez

fundamentalmente formulaccedilotildees e argumentos de autoria do proacuteprio Platatildeo De acordo

com o exame de Ekkehard Martens surgiram trecircs posicionamentos distintos que

procuraram oferecer uma resposta satisfatoacuteria para o problema em consideraccedilatildeo Num

extremo haveria a hipoacutetese de que todos os diaacutelogos platocircnicos satildeo o produto da invenccedilatildeo

de Platatildeo de tal modo que o Soacutecrates histoacuterico seria insignificante No outro extremo

haveria a hipoacutetese de que o Soacutecrates de Platatildeo seria sem qualquer restriccedilatildeo o Soacutecrates

histoacuterico Finalmente entre os dois extremos haveria a hipoacutetese que sustenta tanto a

existecircncia de diaacutelogos socraacuteticos quanto a existecircncia de diaacutelogos platocircnicos Desse modo

conforme esta uacuteltima hipoacutetese os diaacutelogos de Platatildeo estariam divididos em dois grupos

distintos os diaacutelogos da fase inicial e os diaacutelogos da fase intermediaacuteria e tardia

(MARTENS 2013 27-28)

R M Hare subscreve esta uacuteltima hipoacutetese e assegura que o primeiro grupo reuniria

os diaacutelogos propriamente socraacuteticos Estes teriam sido escritos nos anos que se seguiram

agrave morte de Soacutecrates e apresentariam amiuacutede um caraacuteter aporeacutetico ou seja sua conclusatildeo

seria um enigma (ἀπορία) Satildeo eles Defesa de Soacutecrates Criacuteton Eutiacutefron A Repuacuteblica

(Livro I) Laques Liacutesis Caacutermides Teages Hiacutepias Menor Hiacutepias Maior Iacuteon e

Alcebiacuteades Maior No diaacutelogo Defesa de Soacutecrates que nos interessa mais de perto

Soacutecrates apresenta enigmas em especial sobre virtudes e boas qualidades particulares e

sobre as relaccedilotildees destas entre si e com o conhecimento e os enigmas nunca satildeo

resolvidos14 O segundo grupo pertenceria aos diaacutelogos mais longos de Platatildeo os quais

se caracterizariam pela exposiccedilatildeo de doutrinas positivas e substantivas sobre a

moralidade a educaccedilatildeo a retoacuterica a poliacutetica etc Seriam eles Protaacutegoras Mecircnon

Goacutergias O Banquete Feacutedon os restantes livros de A Repuacuteblica Craacutetilo Leis

Parmecircnides O Sofista O Poliacutetico Teeteto Filebo Fedro e Timeu (HARE 2000 35-36)

E com o intuito de solucionar a tensatildeo que opotildee o Soacutecrates questionador e

ignorante dos diaacutelogos da fase inicial ao Soacutecrates saacutebio e metafiacutesico dos diaacutelogos da fase

madura de Platatildeo Gregory Vlastos reforccedila a distinccedilatildeo entre um Soacutecrates anterior que

seria histoacuterico e um Soacutecrates posterior que seria o produto da imaginaccedilatildeo de Platatildeo Para

Vlastos o filoacutesofo Soacutecrates da primeira fase seria moral e ironista enquanto que o

filoacutesofo Soacutecrates da fase posterior seria dogmaacutetico e proponente de doutrinas metafiacutesicas

a exemplo da doutrina dos dois mundos Em sua obra Socrates Ironist and Moral

Philosopher ele procura analisar os diaacutelogos de Platatildeo a partir da visatildeo criacutetica de

Aristoacuteteles o qual atribui ao filoacutesofo Soacutecrates uma posiccedilatildeo toda proacutepria autocircnoma

Sendo assim o Soacutecrates ironista e moralista dos diaacutelogos platocircnicos da fase inicial seria

positivamente histoacuterico enquanto que nos diaacutelogos da fase intermediaacuteria e tardia ele seria

14 Um dos enigmas expostos por Soacutecrates diz respeito ao destino da alma humana depois da morte Ele afirma que morrer eacute uma de duas coisas ou a morte eacute igual a nada e natildeo sente nenhuma sensaccedilatildeo de coisa alguma como um sono em que o adormecido nada vecirc nem sonha ou trata-se de uma mudanccedila uma emigraccedilatildeo da alma para o Hades Em face deste enigma Soacutecrates declara que independente do destino de sua alma depois da morte eacute certo que para o homem bom natildeo haacute nenhum mal (Def Soacutec 40c-41a 41c)

apenas o porta-voz das doutrinas metafiacutesicas de Platatildeo (VLASTOS 1991 47-49) E haja

vista a hipoacutetese segundo a qual eacute possiacutevel atribuir ao Soacutecrates dos diaacutelogos da fase inicial

de Platatildeo certas posiccedilotildees autocircnomas levemos a cabo a anaacutelise do diaacutelogo Defesa de

Soacutecrates a fim de compreendermos as concepccedilotildees de Soacutecrates especificamente sobre a

arte retoacuterica

Em sua introduccedilatildeo ao diaacutelogo Defesa de Soacutecrates W R M Lamb15 aventa a

elevada probabilidade de que o conteuacutedo essencial do discurso de Soacutecrates tenha sido

pronunciado por este embora natildeo fosse originalmente tatildeo sofisticado quanto o registro

elaborado por Platatildeo Para corroborar o seu ponto de vista Lamb propotildee os seguintes

argumentos os quais seratildeo suficientes como preparaccedilatildeo para o assunto que

fundamentalmente nos interessa 1) o procedimento socraacutetico na Defesa de Soacutecrates

corresponde agrave maneira usual de Soacutecrates se expressar conforme se depreende dos

diversos relatos de Platatildeo e de Xenofonte 2) natildeo existe nada de inconsistente no discurso

de Soacutecrates com o que se conhece do seu pensamento sobretudo em relaccedilatildeo agrave doutrina

de Platatildeo 3) finalmente o registro da defesa de Soacutecrates refletiria o propoacutesito de

apresentaacute-lo sob uma luz verdadeira e favoraacutevel para a posteridade e isto dificilmente

poderia ser obtido atraveacutes da publicaccedilatildeo de uma ficccedilatildeo aliaacutes muitos atenienses

lembravam-se do que ocorrera com Soacutecrates no tempo da publicaccedilatildeo do diaacutelogo o qual

possivelmente natildeo estava muito distante do julgamento do filoacutesofo

Em consonacircncia com os argumentos acima Ekkehard Martens sustenta que Platatildeo

teria escrito o diaacutelogo Defesa de Soacutecrates para que seu mestre natildeo caiacutesse no

esquecimento A defesa filosoacutefica de Soacutecrates natildeo exclui que ele tambeacutem quisesse

defender objetivamente Soacutecrates das acusaccedilotildees apresentadas Dessarte Platatildeo buscaria

oferecer provas de que Soacutecrates natildeo tinha nada a ver nem com a nova filosofia da natureza

nem com a praacutetica docente sofiacutestica Aleacutem disso ele queria demonstrar que Soacutecrates natildeo

havia sido partidaacuterio dos oligarcas mas tentara estabelecer sobre uma nova base toda a

poliacutetica cotidiana inclusive a democracia Desse modo a criacutetica de Soacutecrates agrave democracia

no Livro VIII de A Repuacuteblica natildeo deveria ser atribuiacuteda ao Soacutecrates histoacuterico e sim

entendida como uma concepccedilatildeo exclusiva de Platatildeo No entanto se o Soacutecrates histoacuterico

de fato se defendeu da maneira peculiar apresentada por Platatildeo isto natildeo poderia ser

15 PLATO The Apology pp 64-65

verificado mas certamente este teria reproduzido o conteuacutedo essencial do discurso

daquele (MARTENS 2013 122-123)

Outrossim conforme frisa George A Kennedy a Defesa de Soacutecrates natildeo

corresponde exatamente agravequilo que Soacutecrates pronunciou e os criacuteticos tecircm variado

grandemente quanto a seu parecer sobre o grau de invenccedilatildeo que se deve atribuir a Platatildeo

Mesmo assim satildeo consideraacuteveis os indiacutecios para sustentar a hipoacutetese de que o Soacutecrates

histoacuterico natildeo pronunciaria um discurso em sua defesa nos moldes da teacutecnica retoacuterica

empregada pelos oradores do seu tempo Kennedy menciona o registro de Xenofonte em

sua Apologia de Soacutecrates segundo o qual em virtude da influecircncia do deus (δαιμόνιον)

Soacutecrates teria se dirigido para o tribunal ateniense sem preocupar-se minimamente com a

preparaccedilatildeo de sua defesa afirmaccedilatildeo que se harmoniza perfeitamente com a de Platatildeo

Kennedy tambeacutem enfatiza que Xenofonte percebe que Soacutecrates poderia ter defendido a

si mesmo de tal modo a persuadir efetivamente os juiacutezes mas por convicccedilotildees morais natildeo

o teria feito Aliaacutes um grande nuacutemero de defesas publicadas a respeito de Soacutecrates depois

de sua morte bem como as tentativas de Platatildeo no Menexeno e no Fedro revelam que

Soacutecrates poderia construir um bom discurso retoacuterico se de fato o desejasse (KENNEDY

1963 149-150)

Nickolas Pappas salienta que os tribunais de Atenas natildeo tinham juiacutezes para instruir

o processo e nenhum advogado profissional que representasse clientes Primeiramente

aquele que trazia a acusaccedilatildeo falava perante o juacuteri identificando a lei que o reacuteu havia

supostamente transgredido e apresentando testemunhas para sustentar o seu caso O reacuteu

por sua vez respondia com seu proacuteprio discurso e suas testemunhas E ambos os lados

falava com restriccedilotildees de tempo Depois disso o juacuteri votava seu veredicto e quando o reacuteu

era considerado culpado votava uma segunda vez para determinar a sentenccedila Isto posto

tanto no tribunal como na Assembleia a habilidade de falar persuasivamente poderia

significar a diferenccedila entre a vitoacuteria e a derrota ou entre a vida e a morte Daiacute a

importacircncia de especialistas em retoacuterica Em Atenas os filhos das pessoas abastadas e

poderosas estudavam a teacutecnica retoacuterica com os sofistas a fim de tornarem-se oradores

persuasivos E o que estes faziam de um certo modo natildeo era verdadeiro nem honesto

mas mesmo assim funcionava (PAPPAS 2017 26-27)

Dioacutegenes Laeacutercio destaca na atitude de Soacutecrates em face do seu julgamento o

desprezo agrave teacutecnica retoacuterica com vistas agrave persuasatildeo da audiecircncia noccedilatildeo que seraacute capital

para a anaacutelise subsequente de seu discurso judicial Conforme Laeacutercio Liacutesias teria

redigido uma excelente defesa para o julgamento de Soacutecrates nos moldes da teacutecnica

retoacuterica praticada pelos oradores mais haacutebeis Liacutesias seguia aqui a praacutetica corrente naquele

contexto em que desprovidos de advogados os acusados recorriam para se defenderem

aos logoacutegrafos (λογογράφος) isto eacute indiviacuteduos pagos para redigir a defesa que teria de

ser pronunciada diante do tribunal No caso presente depois de ler toda a defesa elaborada

por Liacutesias Soacutecrates teria declinado ponderando que a despeito da beleza do discurso

este natildeo seria adequado a seu caso Para Laeacutercio a composiccedilatildeo de Liacutesias era

evidentemente mais judicial do que filosoacutefica e por essa razatildeo Soacutecrates a teria rejeitado

A composiccedilatildeo em apreccedilo que provavelmente obedecia com esmero os princiacutepios

usualmente empregados pelos oradores com o intuito de obter a persuasatildeo do auditoacuterio

seria incongruente com o modo de vida do filoacutesofo Escreve Laeacutercio sobre este assunto

(Vid doutr fil il II 5 40)

A declaraccedilatildeo jurada que ainda se conserva tinha o seguinte teor de conformidade com Favorinos em sua obra Metrocircon ldquoEsta acusaccedilatildeo e declaraccedilatildeo eacute jurada por Mecircletos filho de Mecircletos de Pitos contra Soacutecrates filho de Sofroniscos de Alopece Soacutecrates eacute culpado de recusar-se a reconhececer os deuses reconhecidos pelo Estado e de introduzir divindades novas e eacute tambeacutem culpado de corromper a juventude Pena pedida a morterdquo Depois de ter lido toda a sua defesa escrita por Liacutesias o filoacutesofo declarou ldquoUm belo discurso Liacutesias mas natildeo eacute adequado ao meu casordquo Com efeito a composiccedilatildeo de Liacutesias era evidentemente mais forense que filosoacutefica Liacutesias retrucou ldquoSe se trata de um belo discurso como pode faltar-lhe adequaccedilatildeo ao teu casordquo Soacutecrates replicou ldquoOra belos mantos e calccedilados natildeo me seriam tambeacutem inadequadosrdquo

Aleacutem das fontes ateacute aqui apresentadas existe outro indiacutecio que corrobora a

hipoacutetese em consideraccedilatildeo um fragmento de papiro anocircnimo preservado na cidade de

Colocircnia que conteacutem parte de um diaacutelogo entre Soacutecrates e uma pessoa sem nome na cela

de Soacutecrates apoacutes sua condenaccedilatildeo onde se pergunta ao filoacutesofo a razatildeo pela qual ele teria

rejeitado todos os artifiacutecios retoacutericos no seu discurso de defesa (TAYLOR 2010 36)

22 As caracteriacutesticas da retoacuterica de Soacutecrates

Para o estudo da retoacuterica assim como para muitos outros importantes temas da obra

de Platatildeo o diaacutelogo Defesa de Soacutecrates oferece um ponto de partida fundamental O

discurso de defesa comeccedila com as afirmaccedilotildees de Soacutecrates sobre os problemas envolvendo

a retoacuterica As pessoas com o domiacutenio na arte da retoacuterica satildeo descritas por ele como

terrivelmente engenhosas na fala e os acusadores de Soacutecrates assim o caracterizaram em

seu discurso diante o corpo judicial ateniense composto com cerca de 500 cidadatildeos Ele

nega a acusaccedilatildeo e a descreve como a mais vergonhosa das acusaccedilotildees feita por seus

adversaacuterios por isso eles seratildeo refutados por seu proacuteprio discurso judicial Desse modo

em seu uacutenico discurso dirigido agrave multidatildeo poliacutetica da cidade de Atenas de que se tem

registro Soacutecrates comeccedila com uma reflexatildeo a respeito da relaccedilatildeo entre a persuasatildeo e a

verdade e chama a atenccedilatildeo de maneira enfaacutetica para a sua visatildeo sui generis da retoacuterica

No proecircmio de sua defesa (Def Soacutec 17a-18a) isto eacute na introduccedilatildeo de seu discurso

judicial Soacutecrates caracteriza seus adversaacuterios como aqueles que jamais proferiram a

verdade mas somente coisas falsas E apesar desses indiviacuteduos nunca terem proferido a

verdade Soacutecrates reconhece neles um talento a saber a capacidade de falar

persuasivamente Soacutecrates tambeacutem declara que seus adversaacuterios satildeo tatildeo haacutebeis na

capacidade de persuadir seus ouvintes que estatildeo a ponto de persuadi-lo uma vez que natildeo

eacute mais capaz de saber quem realmente eacute poreacutem eles natildeo teriam proferido nenhuma

verdade (Ibid17a)

Com efeito a mentira persuasiva que Soacutecrates atribui a seus adversaacuterios que

mesmo nunca tendo dito a verdade conseguiram convencer seus ouvintes e quase o

proacuteprio Soacutecrates consistia em fazer crer que este era formidaacutevel (δεῖνος) na arte de falar

Ele declara que iraacute desmentir com fatos que efetivamente natildeo eacute um formidaacutevel orador

salvo se seus acusadores chamam de formidaacutevel a quem diz somente a verdade E eacute

contra essa falsa imagem elaborada por seus adversaacuterios os quais seriam mestres na arte

de persuadir que Soacutecrates vai se opor como aquele que diz a verdade prescindindo de

qualquer habilidade persuasiva Desse modo ele se posiciona diante dos seus adversaacuterios

como sendo justamente aquele que diz a verdade e a diz fora da arte da persuasatildeo que eacute

conhecida e praticada por aqueles que o acusam Soacutecrates entatildeo se apresenta como

aquele que estaacute incumbido de expressar unicamente a realidade em total desprezo a toda

teacutecnica retoacuterica (Ibid 17b)

Com efeito natildeo corarem de me haver eu de desmentir prontamente com os fatos ao mostrar-me um orador nada formidaacutevel eis o que me pareceu o maior dos seus descaramentos salvo se essa gente chama formidaacutevel a quem diz a verdade se eacute o que entendem eu caacute admitiria que em contraste com eles sou um orador Seja como for repito-o verdade eles natildeo proferiram nenhuma ou quase nenhuma de mim poreacutem voacutes ides ouvir a verdade inteira Mas natildeo por Zeus Atenienses natildeo ouvireis discursos como os deles aprimorados em nomes e verbos em estilo florido

Prosseguindo em seu discurso Soacutecrates declara que possui setenta anos de idade

que jamais foi citado diante de um tribunal que jamais foi acusado e que tampouco foi

o acusador Com isso ao afirmar que nunca compareceu diante de um tribunal insinua

que o discurso que proferiraacute em sua defesa natildeo pertence agraves formas retoacutericas comumente

praticadas diante das assembleias e dos tribunais E com o intuito de explicar mais

claramente sua posiccedilatildeo Soacutecrates se utiliza da metaacutefora do ldquoestrangeirordquo (ξένος) para

distinguir o seu discurso daquele de seus adversaacuterios (Ibid 17d)

Acontece que venho ao tribunal pela primeira vez aos setenta anos de idade sinto-me assim completamente estrangeiro sem duacutevida me desculpariacuteeis o sotaque e a linguagem de minha criaccedilatildeo

Soacutecrates afirma que nunca esteve acostumado com o gecircnero de eloquecircncia dos

mais haacutebeis oradores uma vez que nunca esteve num local poliacutetico e judicial das

assembleias e dos tribunais sendo um ξένος em relaccedilatildeo a estes ambientes Aleacutem disso

pode-se assegurar que o discurso de Soacutecrates representa o de um ldquoestrangeirordquo em virtude

de certas atitudes que o distinguem dos demais oradores quando se trata de pronunciar

um discurso

Soacutecrates diz que a sua linguagem eacute a mesma que utiliza nas praccedilas puacuteblicas nos

comeacutercios ou em qualquer outro local Desse modo a linguagem de Soacutecrates natildeo estaria

em descontinuidade (de vocabulaacuterio e de forma de construccedilatildeo) com a linguagem que se

emprega cotidianamente e esta caracteriacutestica constitui a primeira diferenccedila entre sua

linguagem e a dos demais oradores (Ibid 17c)

Faccedilo-vos no entanto um pedido Atenienses uma suacuteplica premente se ouvirdes na minha defesa a mesma linguagem que habitualmente emprego na praccedila junto das bancas onde tantos dentre voacutes me tendes escutado e noutros lugares natildeo a estranheis nem vos amotineis por isso

Soacutecrates tambeacutem declara que a linguagem que utiliza eacute tal que nada mais eacute que a

seacuterie de palavras e sentenccedilas que se apresentam agrave sua alma por isso ele procura falar de

acordo com as expressotildees que surgem espontaneamente A linguagem de Soacutecrates natildeo

faria portanto mais do que traduzir prontamente e sem nenhuma reconstruccedilatildeo nem

artifiacutecio retoacuterico o movimento natural do pensamento Ela seria uma expressatildeo

espontacircnea do que lhe vai na alma nos termos que lhe ocorrem (Ibid 17b-c)

Outra caracteriacutestica que Soacutecrates sustenta distingui-lo dos demais oradores consiste

em se utilizar de uma linguagem que procura exprimir com toda fidedignidade

exatamente aquilo que quem a profere acredita ser verdadeiro Soacutecrates sustenta existir

em suas palavras uma exata correspondecircncia com o que ele supotildee ser correto por isso

pode depositar confianccedila na justiccedila do que enuncia (Ibid 17c) Tal atitude pode ser

definida simplesmente como boa-feacute que eacute tanto um fato psicoloacutegico como uma virtude

moral Como fato psicoloacutegico eacute a conformidade dos atos e das palavras com a vida

interior e como virtude moral consiste no amor agrave verdade em detrimento do amor-

proacuteprio Pode-se assegurar entatildeo que a boa-feacute representa uma crenccedila fiel e uma

fidelidade no que se acredita Isto significa que Soacutecrates jamais pronunciaria um discurso

cujo conteuacutedo fosse contraacuterio agraves suas crenccedilas pessoais somente para agradar seu auditoacuterio

para natildeo o ofender ou ainda para obter eficaacutecia persuasiva por isso depois de ler toda a

defesa elaborada por Liacutesias ele simplesmente a descartou Ele se recusa a enganar a

dissimular a enfeitar ou a utilizar artifiacutecios retoacutericos Trata-se pois de amar a verdade

mais do que a si mesmo o que implica na coragem de pensar e de dizer tudo aquilo que

eacute tido por verdadeiro

Tendo em vista o proecircmio de Soacutecrates momento em que este expotildee a maneira como

pronunciaraacute sua defesa eacute possiacutevel sustentar que a retoacuterica socraacutetica possui trecircs

caracteriacutesticas essenciais a linguagem cotidiana comum vulgar a linguagem da maneira

que se apresenta diretamente na alma e a linguagem em coerecircncia com o que se acredita

ser verdadeiro Sendo assim utilizar-se da linguagem de todos os dias sem floreios

retoacutericos proferir todas as ideias que emergem na alma e somente afirmar o que se

acredita ser verdadeiro satildeo os componentes indissociaacuteveis da retoacuterica socraacutetica

Soacutecrates sustenta que a linguagem tipicamente retoacuterica eacute arquitetada elaborada e

escolhida cuidadosamente para atingir uma finalidade muito especiacutefica a saber a

persuasatildeo dos ouvintes Ademais a linguagem retoacuterica comum eacute dependente de certo

nuacutemero de princiacutepios regras e teacutecnicas Todavia a linguagem que eacute inerente ao tipo de

retoacuterica defendida por Soacutecrates caracteriza-se pela simplicidade em conformidade com

o proacuteprio movimento do pensamento que sem ornamento eacute adequada ao que se refere e

eacute conforme ao que pensa e acredita quem a emprega Essa linguagem portanto ao se

dirigir agrave alma dos ouvintes natildeo emprega nenhuma teacutecnica de persuasatildeo

Na sequecircncia do seu discurso judicial Soacutecrates confessa que a razatildeo pela qual

jamais se apresentou anteriormente agrave Assembleia como orador para aconselhar seus

concidadatildeos e lhes oferecer suas opiniotildees foi que recebeu ordens para natildeo o fazer E quem

lhe deu a ordem ou mais precisamente a ordem para que natildeo se envolvesse em assuntos

poliacuteticos foi o δαιμόνιον isto eacute sua divindade pessoal (Ibid 31d)

A razatildeo disso em muitos lugares e ocasiotildees ouvistes em minhas conversas uma inspiraccedilatildeo que vem de um deus ou de um gecircnio da qual Meleto fez caccediloada na denuacutencia Isso comeccedilou na minha infacircncia eacute uma voz que se produz e quando se produz sempre me desvia do que vou fazer nunca me incita Ela eacute que me barra a atividade poliacutetica

Fora precisamente o δαιμόνιον diz Soacutecrates quem o advertiu para natildeo tentar dizer

a verdade direta e imediatamente no acircmbito da poliacutetica ateniense Natildeo obstante ele natildeo

pocircde seguir agrave risca o conselho por ter sido obrigado a exercer em nome de sua tribo a

Antioacutequida uma funccedilatildeo de priacutetane que natildeo eacute uma funccedilatildeo que algueacutem postule ou requeira

mas que eacute outorgada por sorteio e por rodiacutezio das funccedilotildees entre as diferentes tribos E

depois da aboliccedilatildeo temporaacuteria da democracia durante a ditadura dos Trinta Soacutecrates

tambeacutem foi incumbido de exercer uma funccedilatildeo poliacutetica Em ambos os postos ele insurgiu-

se contra o que se pretendia constrangecirc-lo a fazer Assim eacute que quando priacutetane natildeo se

importou com a opiniatildeo hegemocircnica no Conselho que queria que fossem julgados

coletivamente os capitatildees que depois da batalha das Arginusas natildeo haviam recolhido os

cadaacuteveres dos soldados mortos Soacutecrates natildeo quis aceitar essa medida que considerou

uma ilegalidade defendendo que os capitatildees deveriam ser julgados individualmente E

quando em Salamina os Trinta lhe ordenaram que prendesse Leatildeo Salamiacutenio recusou-

se preferiu simplesmente ir para a casa a executar uma ordem que reputava ilegal

Conveacutem sublinhar que em ambos os casos Soacutecrates declara-se ciente do risco de

ser morto em decorrecircncia de suas convicccedilotildees Na condiccedilatildeo de priacutetane sustenta ele deve

enfrentar o perigo ao lado da lei e da justiccedila em vez de se colocar ao lado do Conselho

por medo da prisatildeo ou da morte (Ibid 32b-c)

Com efeito Atenienses jamais exerci um cargo puacuteblico apenas fiz parte do Conselho Calhou que a pritania coube agrave minha tribo a Antioacutequida quando do processo dos dez capitatildees que deixaram de recolher os mortos da batalha naval voacutes os queriacuteeis julgar em bloco o que era ilegal como todos reconhecestes depois Naquela ocasiatildeo fui o uacutenico dos priacutetanes que me opus a qualquer accedilatildeo ilegal vossa votando contra os oradores estavam prontos a processar-me a mandar-me prender voacutes os incitaacuteveis a isso aos brados Embora Achei de meu dever correr perigo ao lado da lei e da justiccedila em vez de estar convosco numa decisatildeo injusta por medo da prisatildeo ou da morte

E no que tange agrave ordem dos tiranos Soacutecrates declara que mostrou natildeo com palavras

mas por atos que prefere a justiccedila e a verdade agrave sua proacutepria vida (Ibid 32d)

Nessa ocasiatildeo de novo por atos natildeo por palavras demonstrei que agrave morte ndash desculpai a rudeza da expressatildeo ndash natildeo ligo mais importacircncia que a um figo podre mas a natildeo cometer nenhuma injusticcedila ou impiedade a isso sim dou o maacuteximo valor A mim aquele governo poderoso como era natildeo conseguiu forccedilar-me a uma injusticcedila ao deixarmos a rotunda os quatro seguiram para Salamina e trouxeram Leatildeo mas eu voltei para casa

Pode-se assegurar entatildeo que para Soacutecrates a retoacuterica natildeo se identifica

simplesmente com uma teacutecnica de discurso ou com uma arte mas com a proacutepria vida

Em sua defesa ele propotildee comunicar o seu discurso numa linguagem ordinaacuteria que se

apresenta diretamente em sua alma em coerecircncia com o que acredita ser verdadeiro e se

for o caso em prejuiacutezo da proacutepria vida A propoacutesito a tarefa em apreccedilo natildeo foi confiada

a Soacutecrates pelo δαιμόνιον o qual se limita a dar ordens negativas mas pelo deus de Delfos

em relaccedilatildeo agrave qual ele ligou sua existecircncia e pela qual recusa todo tipo de pagamento16

(Ibid 21a-23b) Desse modo eacute por ordem do proacuteprio deus que Soacutecrates vai exortar (tanto

na cidade quanto no tribunal) os seus ouvintes a natildeo se preocuparem com as honras com

as riquezas ou com a gloacuteria mas a se ocuparem de si mesmos (Ibid 30b) Eacute inegaacutevel que

Soacutecrates age como um retoacuterico na medida em que procura influenciar os seus ouvintes

mas em vez de agradar e tentar obter a aprovaccedilatildeo deles ele abertamente procura exortaacute-

los a cuidar de suas almas Assim o principal alvo do discurso de Soacutecrates natildeo consiste

em persuadir seus ouvintes mas sim em encorajaacute-los a se tornarem pessoas mais

virtuosas Enfim Soacutecrates faz do seu processo judicial um processo filosoacutefico pois

entendia a si mesmo como um filoacutesofo incumbido de despertar a cidade de Atenas para o

16 De acordo com o relato de Xenofonte Soacutecrates natildeo aceitava dinheiro por seus ensinamentos porque ao aceitaacute-lo ele se privaria de sua proacutepria liberdade De outra forma ele estaria obrigado a conversar com todos os que podiam pagar pelos honoraacuterios de modo que preferia ficar livre para gozar da companhia de qualquer pessoa que escolhesse Soacutecrates tambeacutem chegou a declarar que cobrar para ensinar seria o equivalente agrave prostituiccedilatildeo porquanto vender a mente natildeo era algo melhor que vender o corpo Sendo assim a sabedoria era algo que devia ser partilhada gratuitamente entre os amigos e as pessoas amadas (Mem I II 6 I VI 13) ldquoCria com esta abstenccedilatildeo melhor resguardar a proacutepria liberdade chamando de escravizadores de si mesmos os que reclamam salaacuterios por suas palestras visto se imporem a obrigaccedilatildeo de conversar com os que lhes pagam [] Quem chatina com a beleza com que lha queira pagar se chama prostituiacutedo Mas aquele que conhecendo um homem amante da virtude procura fazer-se seu amigo consideram-no sensato O mesmo sucede em relaccedilatildeo agrave sabedoria os que com ela traficam com quem lha queira pagar se chamam sofistas ou prostituiacutedos Aquele poreacutem que reconhecendo em outrem um bom caraacuteter lhe ensina tudo o que sabe de bem e se faz seu amigo reputam-no fiel aos deveres do bom cidadatildeordquo

conhecimento de si e para o exerciacutecio das virtudes agrave maneira de um inseto que procura

picar um cavalo grande e de raccedila mas um pouco lerdo (Ibid 30e)

Conforme jaacute verificamos Soacutecrates nega que seu discurso seja premeditado isto eacute

previamente elaborado ou arquitetado para que tenha eficaacutecia retoacuterica Ele tambeacutem

associa por um lado a artificialidade do discurso agrave persuasatildeo e agrave mentira e por outro

associa o seu discurso extemporacircneo com a verdade e a justiccedila Sendo assim a persuasatildeo

(tiacutepica dos oradores) e a verdade satildeo colocadas em contraste pois Soacutecrates assegura que

falar a verdade natildeo significa que o juacuteri seraacute convencido e que a habilidade da retoacuterica

persuasiva com todos os seus ornamentos pode ateacute mesmo conduzir o juacuteri a acreditar em

mentiras injustas Soacutecrates conclui a principal parte do seu discurso dizendo que natildeo

desfilaraacute com sua famiacutelia para obter a piedade dos jurados mas confiaraacute na justiccedila do que

diz para receber sua absolviccedilatildeo E termina seu pleito afirmando acreditar nos deuses como

nenhum dos seus acusadores17 (Ibid 34c-35d) Mesmo assim a comissatildeo encarregada

de examinar o meacuterito da questatildeo vota por sua condenaccedilatildeo Deveras o proacuteprio Soacutecrates

julgava que seria condenado razatildeo pela qual a condenaccedilatildeo natildeo lhe causou surpresa O

que o surpreendeu foi o fato de que muitos votaram a favor de sua absolviccedilatildeo Ele ateacute

observou que com a mudanccedila de apenas 30 votos estaria absolvido (Ibid 36a-b) Se este

eacute o caso entatildeo a divisatildeo do juri em 500 membros foi a seguinte 280 votos a favor da

condenaccedilatildeo e 220 a favor da absolviccedilatildeo Sendo assim se os 30 jurados que votaram a

favor da condenaccedilatildeo tivessem se pronunciado pela absolviccedilatildeo Soacutecrates teria o

equivalente a 250 votos de cada lado e em Atenas em caso de empate o acusado era

automaticamente inocentado (STONE 2005 217)

Aleacutem da defesa de Soacutecrates registrada por Platatildeo existe a de Xenofonte que

tambeacutem era disciacutepulo de Soacutecrates Eacute importante trazer agrave baila a versatildeo de Xenofonte sobre

o discurso judicial de Soacutecrates porque existem nela alguns elementos que corroboram

17 Marina McCoy enfatiza que a defesa de Soacutecrates contra a acusaccedilatildeo de descrenccedila nos deuses poderia ter sido expressa em termos poliacuteticos e religiosos Se ele houvesse argumentado que eacute um homem devoto demonstrando sua participaccedilatildeo nos festivais ciacutevico-religiosos poderia ter facilmente persuadido os jurados que natildeo era uma ameaccedila agrave cidade Em vez disso ele recorreu a uma estrateacutegia inusitada ndash invocou exclusivamente ao oraacuteculo de Delfos jaacute que seu principal objetivo natildeo era mostrar que era um devoto de acordo com o padratildeo ateniense o que poderia garantir sua absolviccedilatildeo mas sim remodelar o conceito do que significa ser religioso Esta estrateacutegia foi arriscada porque ela exigia que os jurados entendessem a devoccedilatildeo de Soacutecrates em termos de sua praacutetica de filosofia o que natildeo ocorreu Na visatildeo de Soacutecrates a obediecircncia ao oraacuteculo jaacute seria uma demonstraccedilatildeo da verdadeira devoccedilatildeo mas esta estaria de acordo com um padratildeo divino e natildeo humano Tal atitude poderia ser facilmente interpretada como uma manifestaccedilatildeo de arrogacircncia e desrespeito em relaccedilatildeo aos jurados Desse modo o fato de Soacutecrates ter se elevado como uma pessoa numa missatildeo divina e como algueacutem que se considera o mais saacutebio de Atenas teria contribuiacutedo significativamente para a sua condenaccedilatildeo (MCCOY 2010 57-60)

algumas concepccedilotildees ateacute aqui expostas Xenofonte relata que ao ver Soacutecrates discorrer

sobre assuntos completamente alheios ao seu processo Hermoacutegenes questiona a

negligecircncia deste em elaborar uma defesa nos moldes da teacutecnica retoacuterica comumente

empregada pelos oradores Em resposta Soacutecrates afirma que o melhor meio de preparar

uma boa defesa natildeo seria atraveacutes de estrateacutegias retoacutericas ou pela grandiosidade do

discurso (μεγαληγορίαν) mas atraveacutes de uma vida justa (Apol Soacutec I 2-3) Hermoacutegenes

tambeacutem denuncia que muitos juiacutezes em Atenas aborrecidos por determinadas defesas

mal elaboradas condenaram agrave morte muitos inocentes e absolveram muitos culpados

cuja linguagem teve o poder de suscitar o sentimento de piedade e lisonjear os ouvidos

Soacutecrates replica que por duas vezes tentou elaborar uma defesa agrave maneira dos oradores

mais competentes poreacutem sua divindade pessoal natildeo o permitira (Ibid I 4) Sendo assim

o δαιμόνιον teria dissuadido Soacutecrates a preparar uma defesa quando todos achavam que

deveria por todos os meios buscar subterfuacutegios para obter a benevolecircncia dos juiacutezes e

por conseguinte livrar-se da condenaccedilatildeo (Ibid I 8) Entretanto ao sugerir aos juiacutezes a

prerrogativa de possuir a preferecircncia dos deuses Soacutecrates teria suscitado sua indignaccedilatildeo

e natildeo sua benevolecircncia e tal disposiccedilatildeo emocional certamente contribuiu para a decisatildeo

final que condenou o filoacutesofo (Ibid II 14-15)

Conveacutem salientar que a mesma atitude de desprezo que Soacutecrates nutre pela teacutecnica

retoacuterica em favor da filosofia presente nas fontes supramencionadas aparece no diaacutelogo

de Platatildeo chamado Goacutergias Nesse diaacutelogo um dos interlocutores de Soacutecrates chamado

Caacutelicles (que era disciacutepulo de Goacutergias) critica naquele a excessiva dedicaccedilatildeo agrave filosofia

dedicaccedilatildeo que custa a Soacutecrates o preccedilo de tornar-se inexperiente nas leis da cidade nos

discursos que se deve empregar nas relaccedilotildees puacuteblicas e privadas nos prazeres e apetites

humanos e nos costumes dos homens (Goacuterg 484d) Caacutelicles tambeacutem afirma que aquele

que se dedica agrave filosofia e natildeo agrave retoacuterica mesmo dotado de oacutetima natureza tornar-se-aacute

efeminado e fugiraacute do centro da cidade e das aacutegoras onde os homens se tornam distintos

Ele passaraacute o resto da vida escondido a murmurar coisas pelos cantos junto a trecircs ou

quatro jovens sem jamais proferir algo livre valoroso e suficiente (Ibid 485d-e) Aleacutem

do mais Caacutelicles aventa que se algueacutem capturasse Soacutecrates e o encarcerasse sob a

alegaccedilatildeo de injusticcedila ainda que Soacutecrates natildeo a tivesse cometido natildeo teria nada de

significativo para dizer em seu proacuteprio favor de modo que quando chegasse ao tribunal

diante de um acusador extremamente miacutesero e despreziacutevel certamente morreria uma vez

que sem o domiacutenio conveniente da teacutecnica retoacuterica ele seria incapaz de socorrer a si

mesmo ou qualquer outra pessoa (Ibid 486b-c)

Pois se hoje algueacutem te capturasse ou qualquer outro homem da sua estirpe e te encarcerasse sob a alegaccedilatildeo de que cometeste uma injusticcedila ainda que natildeo a tenhas cometido sabes que natildeo terias o que fazer contigo mesmo mas ficarias turvado e boquiaberto sem ter o que dizer quando chegasses ao tribunal diante de um acusador extremamente miacutesero e despreziacutevel tu morrerias caso ele quisesse te estipular a pena de morte Ademais como isto pode ser saacutebio Soacutecrates ldquoque a arte apossando-se de um homem de oacutetima natureza torna-o piorrdquo incapaz de socorrer a si mesmo ou qualquer outra pessoa dos riscos mais extremos despojado pelos inimigos de todos os seus bens e vivendo absolutamente desonrado na cidade Para ser ainda mais rude qualquer um poderia rachar a tecircmpora de um homem como esse sem pagar a justa pena

Do que foi exposto ateacute aqui pode-se concluir que a diferenccedila essencial entre

Soacutecrates e os demais oradores incluindo obviamente os sofistas natildeo consiste na

separaccedilatildeo entre a filosofia e a retoacuterica pois conforme examinamos Soacutecrates defende sui

generis uma concepccedilatildeo filosoacutefica da retoacuterica O uso que ele faz da retoacuterica estaria a seus

olhos a serviccedilo das virtudes da justiccedila da coragem e da devoccedilatildeo agrave divindade Aliaacutes parte

do argumento de Platatildeo no diaacutelogo Defesa de Soacutecrates visa estabelecer que as virtudes

em apreccedilo surgem e estatildeo intrinsecamente relacionadas ao compromisso de Soacutecrates com

a filosofia a qual eacute tida por ele como um modo de vida algo pelo qual ele estaria disposto

a morrer inuacutemeras vezes (Def Soacutec 30b-c) Entretanto aos olhos de Soacutecrates os sofistas

procediam amiuacutede como oportunistas e casuiacutestas oportunistas porque persuadiam sem se

importar se a perspectiva em questatildeo eacute verdadeira visando somente a vitoacuteria a qualquer

custo e casuiacutestas porque em relaccedilatildeo a um determinado assunto os argumentos proacute e

contra poderiam ser veiculados pelo mesmo orador conforme a utilidade e a

conveniecircncia Para esse tipo de orador a persuasatildeo natildeo somente triunfa sobre a verdade

mas reina na ausecircncia da verdade

3 A arte retoacuterica de Aristoacuteteles e o discurso judicial de Soacutecrates

31 O compromisso eacutetico-poliacutetico da persuasatildeo retoacuterica

Apesar de Soacutecrates reconhecer em seu discurso a eficaacutecia persuasiva dos recursos

retoacutericos empregados pelos oradores de sua eacutepoca nem por isso ele deixa de rejeitaacute-los

conforme enfatizado acima Aristoacuteteles por sua vez sustenta que os recursos retoacutericos

jamais devem ser negligenciados por qualquer orador judicial ponderando que a praacutetica

da arte retoacuterica com todos os seus ornamentos natildeo contradiz necessariamente a justiccedila e

a verdade Na visatildeo de Aristoacuteteles ao argumento de que o uso injusto (χρώμενος ἀδίκως)

da arte retoacuterica pode provocar graves danos pode-se objetar que o mesmo argumento

pode se aplicar a todos os bens que existem ndash sobretudo os mais uacuteteis aos seres humanos

como a forccedila a sauacutede a riqueza e o talento militar ndash os quais se utilizados

adequadamente poderatildeo ser muito uacuteteis para o benefiacutecio da cidade e se utilizados de

maneira inadequada poderatildeo causar agravequela enorme prejuiacutezo Diz ele (Ret 1355b 4-10)

Se algueacutem argumentar que o uso injusto dessa faculdade da palavra pode causar graves danos conveacutem lembrar que o mesmo argumento se aplica a todos os bens exceto agrave virtude principalmente aos mais uacuteteis como a forccedila a sauacutede a riqueza e o talento militar pois sendo usados justamente poderatildeo ser muito uacuteteis e sendo usados injustamente poderatildeo causar grande dano

De acordo com a definiccedilatildeo elaborada por Aristoacuteteles a arte retoacuterica consiste na

capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com a finalidade de persuadir e

esta natildeo eacute a funccedilatildeo de nenhuma arte porque cada uma das outras artes eacute apenas instrutiva

e persuasiva nos campos de sua competecircncia mas a retoacuterica parece ter a faculdade de

descobrir os meios de persuasatildeo sobre qualquer assunto (Ibid 1355b 32-42)

Entendemos por retoacuterica a capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com o fim de persuadir Esta natildeo eacute seguramente a funccedilatildeo de nenhuma outra arte pois cada uma das outras eacute apenas instrutiva e persuasiva nas aacutereas de sua competecircncia como por exemplo a medicina sobre a sauacutede e a doenccedila a geometria sobre as variaccedilotildees que afetam as grandezas e a aritmeacutetica sobre os nuacutemeros o mesmo se passando com todas as outras artes e ciecircncias Mas a retoacuterica parece ter por assim dizer a faculdade de descobrir os meios de persuasatildeo sobre qualquer questatildeo dada

Desse modo a arte retoacuterica natildeo parece se identificar com a simples faculdade de

persuadir18 mas essencialmente eacute a arte de encontrar os meios de persuasatildeo que cada caso

comporta O orador natildeo eacute capaz de persuadir qualquer pessoa acerca de qualquer assunto

mas pode sempre ver o que seraacute persuasivo nas circunstacircncias dadas sem nada omitir A

atividade do meacutedico por exemplo nada pode realizar para os doentes incuraacuteveis

tampouco a estes pode prometer a cura mas pode propiciar aos pacientes todas as

oportunidades para curar-se Similarmente a atividade do orador consiste em descobrir

os meios disponiacuteveis para promover a persuasatildeo embora ele natildeo seja capaz de persuadir

a todos Escreve Aristoacuteteles (Ibid 1355b 11-19)

Eacute pois evidente que a retoacuterica natildeo pertence a nenhum gecircnero particular definido antes se assemelha agrave dialeacutetica Eacute tambeacutem evidente que ela eacute uacutetil e que a sua funccedilatildeo natildeo eacute persuadir mas discernir os meios de persuasatildeo mais pertinentes a cada caso tal como acontece em todas as outras artes de fato natildeo eacute funccedilatildeo da medicina dar sauacutede ao doente mas avanccedilar o mais possiacutevel na direccedilatildeo da cura pois tambeacutem se pode cuidar bem dos que jaacute natildeo estatildeo em condiccedilotildees em recuperar a sauacutede

Diferentemente do que parece propor Soacutecrates no proecircmio de seu discurso judicial

ao estabelecer a oposiccedilatildeo entre a persuasatildeo e a verdade para Aristoacuteteles a persuasatildeo

ligada agrave teacutecnica retoacuterica pode ser eacutetica e politicamente uacutetil (χρήσιμος) A arte da

persuasatildeo pode ser uacutetil porque em que pese a verdade e a justiccedila sejam por natureza mais

fortes que seus contraacuterios se os juiacutezos natildeo se fizerem como conveacutem a verdade e a justiccedila

seratildeo necessariamente vencidas pelos seus opostos e isto eacute censuraacutevel (Ibid 1355a 28-

32) Por essa razatildeo o emprego das teacutecnicas retoacutericas que visam a persuasatildeo dos ouvintes

jamais deve ser negligenciado ou omitido por qualquer orador bem-intencionado

Para Aristoacuteteles a verdade (ἀλήθεια) consiste sumariamente em afirmar aquilo que

eacute e negar aquilo que natildeo eacute O falso (ψεῦδος) por sua vez consiste em dizer que o ser natildeo

eacute ou que o natildeo-ser eacute Por conseguinte quem diz de uma coisa que eacute ou que natildeo eacute ou

afirmaraacute o verdadeiro ou afirmaraacute o falso (Met 1011b 25-28) Aristoacuteteles tambeacutem afirma

que o ser verdadeiro e falso das asserccedilotildees eacute funccedilatildeo do modo como nelas se une ou separam

suas partes de sorte que estaraacute na verdade quem considera separadas as coisas que

efetivamente satildeo separadas e unidas as coisas que efetivamente satildeo unidas Em

18 Ao rejeitar a noccedilatildeo de que a retoacuterica consiste stricto sensu na arte de persuadir Aristoacuteteles parece reportar-se agrave concepccedilatildeo defendida por Goacutergias no diaacutelogo homocircnimo de Platatildeo (Goacuterg 453a) onde o sofista define a retoacuterica como πειθοῦς δημιουργός ou seja como artiacutefice da persuasatildeo (ῥητορικὴν ἥντινα τέχνην ἡγῇ εἶναι καὶ εἴ τι ἐγὼ συνίημι λέγεις ὅτι πειθοῦς δημιουργός)

contrapartida estaraacute no erro quem considerar unido o que estaacute separado ou separado o

que estaacute unido Aleacutem disso Aristoacuteteles assevera que o entendimento do que uma coisa eacute

precisa estar de acordo com o que de fato ocorre na realidade e isto garantiria ou atestaria

a apreensatildeo do verdadeiro (Sob alm 420b 27-28) Por exemplo algo natildeo pode ser

considerado branco pelo fato de algueacutem simplesmente afirmar que eacute branco mas pelo

fato de ser branco na realidade eacute possiacutevel afirmar que eacute branco e isto implicaria na posse

da verdade (Ibid 1051b 1-10)

Para o Estagirita uma proposiccedilatildeo eacute verdadeira se e somente se corresponder aos

fatos pois se for verdadeira ela se verifica quer se afirme ou natildeo que ela seja verdadeira

E se ela eacute falsa natildeo se verifica quer se afirme ou natildeo que ela seja falsa Segundo essa

perspectiva a verdade seria uma forma de correspondecircncia entre as representaccedilotildees de

afirmaccedilatildeo de fatos e os estados de coisas existentes de modo que a relaccedilatildeo produtora de

verdade entre o discurso e as coisas que articula o modo como estas fazem aquele ser

verdadeiro dependeria do correspondente ontoloacutegico Assim sendo a verdade filosoacutefica

consiste no reconhecimento da realidade ontoloacutegica eacute dizer as coisas como efetivamente

satildeo eacute afirmar aquilo que existe na realidade No entanto conveacutem frisar que diante da

inexequibilidade de se obter na praacutetica retoacuterica uma verdade absoluta Aristoacuteteles propotildee

contentar-se com o verossiacutemil (εἰκός) pois ainda que natildeo exista em relaccedilatildeo a um

determinado assunto a verdade absoluta existe certamente algo mais seguro e mais

veriacutedico (Met 1008b 31-1009a 5) No acircmbito da arte retoacuterica o εἰκός19 eacute tanto o discurso

que enuncia o estado de coisas como o proacuteprio estado de coisas Por um lado eacute uma

ldquoproposiccedilatildeo geralmente admitidardquo isto eacute um discurso e por outro eacute ldquoaquilo que sabemos

que ocorre a maior parte das vezesrdquo que corresponderia aos fatos Com efeito o

enunciado eacute verossiacutemil porque emite a opiniatildeo dos homens ao testemunhar um fato

provaacutevel que pode ser tanto social como natural Desse modo o discurso retoacuterico natildeo

estaacute apartado do estado de coisas ou da realidade pois se eacute possiacutevel um discurso

verossiacutemil eacute por causa de um fato que ocorre a maior parte das vezes que neste caso

recebe a denominaccedilatildeo de provaacutevel (YAMIN 2016 149-153)

A justiccedila (δικαιοσύνη)20 por sua vez designa uma disposiccedilatildeo intermediaacuteria uma

reta medida A justiccedila eacute entatildeo uma certa posiccedilatildeo intermeacutedia (μεσοτeacuteς) mas natildeo do

19 O conceito aristoteacutelico de εἰκός seraacute ulteriormente objeto de um estudo agrave parte mais pormenorizado que incluiraacute uma anaacutelise comparativa entre as premissas retoacutericas e as premissas cientiacuteficas 20 Em comparaccedilatildeo com as demais virtudes eacuteticas o Estagirita dedica especial atenccedilatildeo agrave justiccedila a qual eacute concebida por ele natildeo como um valor transcendente como queria Platatildeo mas como uma virtude humana Para tanto ele distingue a justiccedila concebida num sentido mais amplo de siacutentese de todas as virtudes (Eacutet

mesmo modo que o satildeo as demais virtudes eacuteticas como a temperanccedila ou a coragem A

injusticcedila inversamente eacute determinada pela violaccedilatildeo do princiacutepio de proporccedilatildeo pois se a

justiccedila eacute uma posiccedilatildeo intermeacutedia a injusticcedila (ἄδικος) corresponde aos dois limites

extremos (Eacutet Nic 1133b 30-1134a 2) E uma vez que a posiccedilatildeo intermeacutedia corresponde

agrave virtude em geral a justiccedila torna-se a virtude mais importante e admiraacutevel a ponto de

ser considerada por Aristoacuteteles a mais completa (τέλειος) das virtudes (Ibid1129b 5) A

justiccedila eacute a mais completa porque o indiviacuteduo que a possui tem o poder de a usar natildeo

apenas para beneficiar-se a si mesmo mas tambeacutem para beneficiar a cidade (Ibid 1129b

30-35) Desse modo a accedilatildeo justa em geral beneficia a todos incluindo aqueles que a

realizam pois quando todos se empenham em fazer o que eacute justo e se esforccedilam para fazer

as coisas mais justas a comunidade ganharaacute tudo o que deve e cada indiviacuteduo ganharaacute o

maior dos bens uma vez que eacute isto o que eacute a virtude E ao escolher deliberadamente o

uso da virtude mais completa por ela mesma a pessoa virtuosa estaacute deliberadamente

escolhendo o que beneficia os outros pois as accedilotildees que manifestam a justiccedila beneficiam

tanto o agente que as realiza como todos os outros na comunidade poliacutetica A justiccedila pois

eacute a uacutenica virtude que eacute um bem que pertence a outrem uma vez que envolve uma relaccedilatildeo

com outrem21 ou seja produz pela sua accedilatildeo o que eacute de interesse para outrem seja esse

algueacutem um superior ou um igual Inversamente a injusticcedila eacute considerada o pior viacutecio de

todos a mais completa perversatildeo (ὅλη κακία) porque constitui um mal para o indiviacuteduo

que o possui e tambeacutem para outrem (Ibid 1130a 5-10)

Outrossim Aristoacuteteles assegura que em relaccedilatildeo agraves pessoas a justiccedila eacute definida de

duas maneiras porquanto o que se deve e natildeo se deve fazer eacute definido ora em relaccedilatildeo agrave

comunidade ora em relaccedilatildeo a um de seus membros Isto posto eacute possiacutevel cometer a

injusticcedila e praticar a justiccedila de duas maneiras em relaccedilatildeo a um determinado indiviacuteduo e

em relaccedilatildeo agrave comunidade poliacutetica Pois quem comete adulteacuterio ou fere algueacutem comete

Nic 1139b 30) agrave maneira de Platatildeo e a justiccedila como virtude particular Esta eacute definida por Aristoacuteteles como uma posiccedilatildeo intermeacutedia mais precisamente como uma forma de igualdade intermediando duas opostas desigualdades Todavia a igualdade pode existir entre desiguais que nesse caso vai consistir numa igualdade de relaccedilotildees ou seja em uma certa proporccedilatildeo ao se tratar de distribuir honras entre seres humanos com meacuteritos desiguais tal igualdade vai consistir no ato de dar a cada um conforme os seus meacuteritos que Aristoacuteteles designa de justiccedila distributiva (Ibid 1131a 10-1131b 25) Ao se tratar de corrigir ofensas a igualdade vai consistir no ato de ressarcir a parte prejudicada em medida igual ao dano sofrido que recebe o nome de justiccedila corretiva (Ibid 1131b 25-1132b 20) Ele tambeacutem enfatiza a necessidade de retificar a justiccedila legal atraveacutes da equidade quando a universalidade da lei natildeo for capaz de considerar os casos particulares a que se aplica a qual recebe o nome de justiccedila equitativa (Ibid 1137b 1- 1138a 5) 21 A noccedilatildeo de que a δικαιοσύνη eacute uacutetil tanto para o indiviacuteduo quanto para a cidade jaacute estaacute presente no pensamento de Platatildeo (Rep 333d) ldquoE quando se tem de manter guardada uma foice a justiccedila eacute uacutetil tanto comunitaacuteria quanto individualmenterdquo

injusticcedila contra um dos indiviacuteduos mas os que natildeo cumprem os seus deveres militares

cometem-no contra toda a comunidade poliacutetica (Ret 1373b 23-31) Aristoacuteteles enfatiza

tambeacutem que a justiccedila parece ser a mais desejaacutevel das virtudes por ser ela uacutetil em todas as

ocasiotildees eventualmente dispensando outras Ele pondera que dentre duas coisas aquela

que se todos a possuiacutessem tornaria desnecessaacuteria a outra eacute mais desejaacutevel do que aquela

que todos poderiam possuir e mesmo assim sentir falta da outra Considerando-se o caso

da justiccedila e da coragem (ανδρεία) se todos fossem justos natildeo haveria necessidade de

coragem ao passo que se todos fossem corajosos ainda assim haveria necessidade de

justiccedila (Toacutep 117a 35-40)

Tendo em conta que a verdade e a justiccedila satildeo por natureza mais fortes que seus

contraacuterios e sendo evidente que os recursos retoacutericos podem favorecer as causas injustas

entatildeo muito mais eficazmente os mesmos recursos podem favorecer as causas justas

Assim sob o ponto de vista do meacutetodo retoacuterico elaborado por Aristoacuteteles natildeo somente

Soacutecrates mas tambeacutem todo orador judicial deveria sem constrangimento se utilizar de

todas as estrateacutegias retoacutericas possiacuteveis para livrar-se da condenaccedilatildeo e estabelecer a

verdade dos fatos Na visatildeo de Aristoacuteteles o orador eacute um homem que examina sua

situaccedilatildeo concreta e a ela aplica sua arte para fazer um inventaacuterio das possibilidades

existentes a fim de obter a persuasatildeo da audiecircncia Enquanto estaacute ocupado com tal

inventaacuterio ele pode atuar sem nenhum compromisso eacutetico agrave maneira dos sofistas posto

que a retoacuterica eacute uma arte moralmente neutra No entanto Aristoacuteteles natildeo adota essa

postura para o seu meacutetodo pois para ele a arte retoacuterica para ser completa precisa ter em

conta premissas retiradas da eacutetica e da poliacutetica ou seja tais premissas devem expressar o

compromisso do orador com a escolha moral (προαίρεσις)

Pode-se assegurar entatildeo que o compromisso eacutetico da arte retoacuterica ndash estabelecer a

verdade e a justiccedila na cidade ndash justificaria o emprego de todos os expedientes disponiacuteveis

para obter a persuasatildeo Ademais como observa E M Cope a natural superioridade da

verdade e da justiccedila sobre a falsidade e a injusticcedila culmina por pautar que o bom uso da

arte retoacuterica deve corroborar tal superioridade Isto porque visto que as decisotildees judiciais

satildeo sempre suscetiacuteveis de serem influenciadas por argumentos falaciosos cumpre agrave boa

retoacuterica trazer a verdade agrave luz detectar e expor o engano e os sofismas e debelar a

perversatildeo da verdade e da justiccedila E se porventura os maus oradores acabam

prevalecendo sobre os oradores honestos eacute porque estes natildeo conseguiram aproveitar-se

do poderoso instrumento da teacutecnica retoacuterica Enfim se aqueles que tecircm a verdade e a

justiccedila ao seu lado satildeo derrotados (tanto nos tribunais quanto nas assembleias) sua derrota

se atribui agrave sua proacutepria negligecircncia em relaccedilatildeo ao bom uso da arte retoacuterica (COPE 2006

22-23)

Conforme jaacute examinamos a retoacuterica constitui a contraparte da dialeacutetica pois ambas

se ocupam de questotildees mais ou menos ligadas ao conhecimento comum e natildeo se

relacionam a nenhuma ciecircncia especiacutefica Assim todas as pessoas participariam de

alguma forma de ambas as disciplinas porque todas elas procuram eventualmente

questionar e sustentar um argumento defender ou acusar (Ret 1354a 1-7) Mas apesar

de ser uma faculdade (δύναμις) neutra a dialeacutetica natildeo deve ser empregada

indiferentemente na defesa de teses opostas Pelo contraacuterio ela deve estar a serviccedilo da

verdade contra a sabedoria aparente dos sofistas que privilegiam a eriacutestica (ἐριστική) em

vez da dialeacutetica que fazem da arte do debate uma atividade que busca a vitoacuteria agraves custas

da verdade (Met 1004b 15-25) Todavia em adiccedilatildeo agrave habilidade intelectual a dialeacutetica

tambeacutem exige de seus praticantes uma disposiccedilatildeo eacutetica ndash o dialeacutetico tem de trazer consigo

a prontidatildeo de escolher o verdadeiro em detrimento do falso (Toacutep 163b 10-20)

Aleacutem disso como contribuiccedilatildeo para o saber filosoacutefico o poder de discernir e trazer diante dos olhos as consequecircncias de uma e outra de duas hipoacuteteses natildeo eacute um instrumento para se desprezar porque entatildeo soacute resta escolher acertadamente entre as duas Para uma tarefa desta espeacutecie requer-se uma certa habilidade natural aliaacutes a verdadeira habilidade natural consiste precisamente no poder de escolher o verdadeiro e rejeitar o falso Os homens que possuem essa habilidade satildeo capazes disso pois graccedilas a um instintivo agrado ou desagrado em face de tudo que se lhes propotildee eles escolhem corretamente o que eacute melhor

E tendo em vista que a arte retoacuterica eacute uma forma de argumentaccedilatildeo comparaacutevel agrave

dialeacutetica eacute manifesto que a probidade moral que caracteriza o dialeacutetico tambeacutem deve

estar presente na atividade do orador Dentre as aptidotildees que satildeo inerentes agrave atividade do

orador existe a capacidade de argumentar persuasivamente sobre coisas contraacuterias mas

ele nunca deve fazer uma e outra coisa porque o orador jamais deve persuadir as pessoas

a praticar o que eacute imoral Aliaacutes a capacidade de argumentar persuasivamente sobre coisas

contraacuterias eacute uacutetil para que natildeo escape ao orador o real estado da questatildeo e para que seja

possiacutevel refutar os argumentos daqueles que argumentam contra a justiccedila Isto posto o

Estagirita concebe uma utilizaccedilatildeo eticamente boa da arte retoacuterica por desejaacutevel e confia a

ela o poder de fortalecer a virtude dos cidadatildeos (Eacutet Nic 1179b 5-10) Outrossim conveacutem

enfatizar que para Aristoacuteteles seria um absurdo que a incapacidade de defesa fiacutesica fosse

vergonhosa e natildeo o fosse a incapacidade de defesa verbal tendo em vista que esta

caracteriza mais o homem do que o uso da forccedila fiacutesica (Ret 1355a 35-41 1355b 1-3)

Aleacutem disso eacute preciso ser capaz de argumentar persuasivamente sobre coisas contraacuterias como tambeacutem acontece nos silogismos natildeo para fazer uma e outra coisa ndash pois natildeo se deve persuadir o que eacute imoral ndash mas para que natildeo nos escape o real estado da questatildeo e para que sempre que algueacutem argumentar contra a justiccedila noacutes proacuteprios estejamos habilitados a refutar os seus argumentos [] Aleacutem disso seria absurdo que a incapacidade de defesa fiacutesica fosse desonrosa e natildeo o fosse a incapacidade de defesa verbal uma vez que esta eacute a mais proacutepria do homem do que o uso da forccedila fiacutesica

Aleacutem da disposiccedilatildeo eacutetica que indica que o orador jamais deve persuadir as pessoas

a praticar o que eacute imoral mas fortalecer a virtude da sua audiecircncia conveacutem levar em

consideraccedilatildeo o seu caraacuteter moral (ἦθος) em conexatildeo com as qualidades que o tornam

persuasivo sem a necessidade de argumentos racionais No que concerne ao ἦθος do

orador a persuasatildeo se efetiva quando o discurso eacute realizado de tal forma a tornar o orador

digno de creacutedito (Ibid 1356a 5-7) pois se orador parecer confiaacutevel o puacuteblico iraacute formar

o juiacutezo de que as proposiccedilotildees apresentadas satildeo igualmente confiaacuteveis Assim o puacuteblico

estaraacute inclinado a transferir para o conteuacutedo do discurso a credibilidade (ἀξιόπιστον)

pertencente ao caraacuteter do orador e isto ocorre amiuacutede nos assuntos em que natildeo eacute possiacutevel

obter nenhum conhecimento exato mas margem para duacutevidas (Ibid 1356a 7-10) Por

certo em decorrecircncia da moralidade que exibe para o seu auditoacuterio o orador adquire um

reservatoacuterio de argumentos e de respostas que veicula implicitamente As virtudes eacuteticas

a boa conduta e a confianccedila que o orador aparenta possuir conferem-lhe uma autoridade

em relaccedilatildeo aos assuntos que pronuncia principalmente sobre assuntos de difiacutecil soluccedilatildeo

Dessarte o ἦθος que constitui a eacutetica do orador sua moralidade se transforma num

princiacutepio de autoridade que em alguns contextos se torna um criteacuterio para elucidar uma

questatildeo controversa (MEYER 2007 34-36)

Aristoacuteteles menciona a tese do filoacutesofo Eudoxo acerca do bem a qual se tornou

persuasiva natildeo tanto pelos argumentos que veiculava mas pela virtude do seu caraacuteter

Eudoxo pensava que o prazer era o bem pelo fato de ver todos os seres tanto racionais

como irracionais tenderem para ele e porque em todas as coisas aquilo para que se dirige

a escolha eacute sempre o melhor de tudo O fato de tudo se movimentar numa mesma direccedilatildeo

parecia indicar a ele que o prazer constitui o melhor de tudo para todos os seres Sendo

assim seria o prazer o objetivo final que todos se esforccedilam por obter razatildeo pela qual ele

seria o bem supremo Aristoacuteteles enfatiza que essas concepccedilotildees filosoacuteficas tornaram-se

convincentes mais pela excelecircncia do caraacuteter de Eudoxo do que pelo teor de sua

argumentaccedilatildeo jaacute que Eudoxo era tido por algueacutem extraordinariamente temperado dando

a impressatildeo de falar natildeo enquanto amigo do prazer mas como as coisas se passam

verdadeiramente na realidade (Eacutet Nic 1173a 10-20)

No entanto isto natildeo significa que o ἦθος do orador por si soacute seja suficiente para

determinar a persuasatildeo pois eacute necessaacuterio que a confianccedila no discurso seja

fundamentalmente o resultado da argumentaccedilatildeo entimemaacutetica e natildeo de uma preacutevia

opiniatildeo acerca do caraacuteter do orador Escreve Aristoacuteteles sobre este assunto (Ret 1356a

5-15)

Persuade-se pelo caraacuteter quando o discurso eacute proferido de tal maneira que deixa a impressatildeo de o orador ser digno de feacute Pois acreditamos mais e bem mais depressa em pessoas honestas em todas as coisas em geral mas sobretudo nas que natildeo haacute conhecimento exato e que deixam margem para a duacutevida Eacute poreacutem necessaacuterio que esta confianccedila seja resultado do discurso e natildeo de uma opiniatildeo preacutevia sobre o caraacuteter do orador pois natildeo se deve considerar sem importacircncia para a persuasatildeo a probidade do que fala como aliaacutes alguns autores desta arte propotildeem mas quase se poderia dizer que o caraacuteter eacute o principal meio de persuasatildeo

Aleacutem do mais Aristoacuteteles assegura existir trecircs causas que tornam os oradores

persuasivos sem a necessidade de demonstraccedilotildees entimemaacuteticas E a fim de que o orador

conquiste a credibilidade de seu puacuteblico ele deve possuir a prudecircncia (φρόνησις) a

virtude (ἀρετὴ) e a benevolecircncia (εὔνοια) Quanto agrave φρόνησις deve o orador ser apto a

dar conselhos razoaacuteveis e pertinentes Quanto agrave ἀρετὴ ele nunca deve dissimular o que

pensa nem o que sabe E quanto agrave εὔνοια ele deve estar disposto a ajudar seu auditoacuterio

Aliaacutes o orador ainda deve refletir o caraacuteter moral que o seu puacuteblico espera mesmo que

natildeo o tenha de verdade pois seria moralmente censuraacutevel o fato de o orador simplesmente

parecer prudente virtuoso e benevolente sem realmente o ser e natildeo seria menos

censuraacutevel se possuiacutesse esses atributos morais sem aparentaacute-los publicamente (Ibid

1378a 9-22)

Trecircs satildeo as causas que tornam persuasivos os oradores e sua importacircncia eacute tal que por elas nos persuadimos sem necessidades de demonstraccedilotildees Satildeo elas a prudecircncia a virtude e a benevolecircncia Quando os oradores recorrem agrave mentira nas coisas que dizem ou sobre aquelas que datildeo conselhos fazem-no por todas estas causas ou por algumas delas Ou eacute por falta de prudecircncia que emitem opiniotildees erradas ou entatildeo embora dando uma opiniatildeo correta natildeo dizem o que

pensam por maldade ou sendo prudentes ou honestos natildeo satildeo benevolentes por isso eacute admissiacutevel que embora sabendo eles o que eacute melhor natildeo o aconselham Para aleacutem destas natildeo haacute nenhuma outra causa Forccediloso eacute pois que aquele que aparente possuir todas estas qualidades inspirem confianccedila nos que o ouvem

Note-se que o Soacutecrates do diaacutelogo Defesa de Soacutecrates manifesta as caracteriacutesticas

eacuteticas assinaladas por Aristoacuteteles ele propotildee comunicar o seu discurso em coerecircncia com

o que acredita ser verdadeiro ou seja sem dissimular o que pensa nem o que sabe sua

atitude consiste em ajudar seus ouvintes jaacute que procura encorajaacute-los a se tornarem

pessoas mais virtuosas e ao defender que os capitatildees da batalha das Arginusas deveriam

ser julgados individualmente demonstrou ser capaz de dar conselhos razoaacuteveis e

pertinentes como todos reconheceram depois Natildeo obstante Soacutecrates natildeo obteve ecircxito

no seu discurso judicial por uma seacuterie de razotildees que oportunamente seratildeo trazidas agrave baila

Na Poliacutetica Aristoacuteteles declara que por ser um animal social (πολιτικὸν ζῷον) o

homem eacute o uacutenico que possui o dom da fala (λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴων) o

qual natildeo deve ser identificado com os sons da voz com que satildeo agraciados tambeacutem os

animais Os sons emitidos pelos animais satildeo apenas a expressatildeo de sensaccedilotildees agradaacuteveis

ou desagradaacuteveis ao passo que ao homem a natureza concedeu a capacidade de expressar

por meio de sinais o sentimento do bem e do mal (ἀγαθοῦ καὶ κακοῦ) do conveniente e

do nocivo (συμφέρον καὶ τὸ βλαβερόν) do justo e do injusto (δικαίου καὶ ἀδίκου) objetos

para cuja expressatildeo foi concedido o instrumento da fala (Pol 1253a 7-18)

Agora eacute evidente que o homem muito mais que a abelha ou outro animal gregaacuterio eacute um animal social Como costumamos dizer a natureza nada faz sem um propoacutesito e o homem eacute o uacutenico entre os animais que tem o dom da fala Na verdade a simples voz pode indicar a dor e o prazer e outros animais a possuem (sua natureza foi desenvolvida somente ateacute o ponto de ter sensaccedilotildees do que eacute doloroso ou agradaacutevel e externaacute-las entre si) mas a fala tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo e portanto tambeacutem o justo e o injusto a caracteriacutestica especiacutefica do homem em comparaccedilatildeo com os animais eacute que somente ele tem o sentimento do bem e do mal do justo e do injusto e de outras qualidades morais e eacute a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a famiacutelia e a cidade

Outrossim o Estagirita assevera que o homem quando perfeito eacute o melhor dos

animais mas tambeacutem eacute o pior de todos quando afastado da lei e da justiccedila porquanto a

injusticcedila eacute mais perniciosa quando armada Deveras o homem foi dotado de armas para

serem bem usadas pela inteligecircncia e pelo talento mas tambeacutem podem ser utilizadas no

sentido contraacuterio (ὁ δὲ ἄνθρωπος ὅπλα ἔχων φύεται φρονήσει καὶ ἀρετῇ οἷς ἐπὶ τἀναντία

ἔστι χρῆσθαι μάλιστα) Agrave vista disso quando destituiacutedo de qualidades morais o homem

eacute o mais impiedoso e selvagem dos animais Por outro lado a justiccedila constitui a base da

sociedade de modo que sua aplicaccedilatildeo assegura a ordem na comunidade social por ser o

meio de determinar o que eacute justo (Ibid 1253a 49-57) A arma (ὅπλον) referida por

Aristoacuteteles a qual pode ser bem utilizada pela inteligecircncia e pelo talento natildeo eacute outra coisa

senatildeo a capacidade natural de falar (λόγος) em conexatildeo com os recursos persuasivos da

arte retoacuterica posto que a capacidade de discursar eacute mais proacutepria do gecircnero humano do

que o uso da forccedila fiacutesica Dessarte os recursos retoacutericos devem ser habilmente

empregados no discurso tendo em vista sua finalidade eacutetica porque se o orador se recusar

a empregaacute-los adequadamente a injusticcedila poderaacute prevalecer sobre a justiccedila pela ineficaacutecia

em persuadir os ouvintes

No iniacutecio da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles assegura que toda arte22 e todo processo

de investigaccedilatildeo assim como todo procedimento praacutetico e toda decisatildeo parecem dirigir-

se para algum bem (ἀγαθός) por isso o bem eacute concebido como aquilo por que tudo anseia

(Eacutet Nic 1094a 5) Ele continua assinalando uma diferenccedila entre os fins (τέλοι)

porquanto uns seriam atividades ao passo que outros seriam certos produtos que delas

resultam para aleacutem delas Entre os fins das accedilotildees humanas a serem levadas a cabo existe

aquele que eacute buscado em virtude de si proacuteprio os demais fins satildeo fins mas apenas por

causa do fim que eacute buscado por causa de si proacuteprio por isso esse fim natildeo eacute um bem

qualquer mas eacute o bem supremo (Ibid 1094a 15-20)

Se por conseguinte entre os fins das accedilotildees a serem levadas a cabo haacute um pelo qual ansiamos por causa de si proacuteprio e os outros fins satildeo fins mas apenas em vista desse se por outro lado nem tudo eacute escolhido em vista de qualquer outra coisa (porque desse modo prosseguir-se-ia ateacute ao infinito de tal sorte que tal intenccedilatildeo seria vazia e vatilde) eacute evidente entatildeo que esse fim seraacute o bem e na verdade o bem supremo

Na perspectiva de C D C Reeve o bem supremo eacute melhor do que qualquer outro

bem e por ser o melhor de todos implica que ele deve ser uma atividade terminal ou

seja sem nenhum fim adicional merecedor de escolha ou o fim adicional de uma atividade

22 A traduccedilatildeo da Eacutetica a Nicocircmaco utilizada neste trabalho eacute de Antoacutenio de Castro Caeiro o qual optou por traduzir a palavra ldquoτέχνηrdquo por ldquoperiacuteciardquo e natildeo por ldquoarterdquo mas visto que esta palavra eacute mais familiar e eacute utilizada por muitos tradutores do Corpus Aristotelicum optou-se pelo seu emprego em detrimento de ldquoperiacuteciardquo salvo em alguns casos em que se utiliza a palavra ldquoteacutecnicardquo

natildeo-terminal Mas se esse fim adicional fosse ele mesmo uma atividade natildeo-terminal ele

natildeo poderia ser o melhor jaacute que seu proacuteprio fim adicional seria melhor do que ele E se

uma atividade terminal eacute merecedota de escolha deve ser unicamente por causa dela

mesma porque ao contraacuterio de uma atividade natildeo-terminal ela natildeo eacute merecedora de

escolha por causa de um fim adicional Agrave vista disso o bem supremo constitui uma

atividade terminal que sendo o fim da ciecircncia maximamente arquitetocircnica da poliacutetica eacute

o aacutepice da hierarquia teacutelica (ou hierarquia entre os fins) uacutenica que inclui todos os outros

fins ou bens merecedores de escolha (REEVE 2014 265-269)

Para o Estagirita o bem supremo deve ser o objeto de estudo da mais

arquitetocircnica23 de todas as ciecircncias (μάλιστα ἀρχιτεκτονικῆς) a qual deve ser capaz de

projetar a partir de princiacutepios fundamentais Tal parece ser a ciecircncia poliacutetica pois eacute ela

mesma que determina quais satildeo as ciecircncias necessaacuterias aos Estados e quais satildeo aquelas

que cada classe de cidadatildeos deve aprender e ateacute que ponto (Ibid 1094a 25-1094b 1)

Com efeito as atividades que alcanccedilam o maior prestiacutegio na cidade como a estrateacutegia

militar a economia e a retoacuterica estatildeo subordinadas agrave ciecircncia poliacutetica (Ibid 1094b 1-5)

do mesmo modo como a arte de fazer lanccediladeiras estaacute subordinada agrave arte de tecer e a arte

de fundir o bronze estaacute subordinada agrave arte da escultura (Pol 1256a 5-7) Todavia a

ciecircncia poliacutetica faz uso natildeo apenas das demais ciecircncias que dizem respeito agrave accedilatildeo24 mas

tambeacutem legisla a respeito do que se deve fazer e que coisas eacute necessaacuterio evitar E tendo

em vista o bem humano a ciecircncia poliacutetica envolve os fins das restantes ciecircncias porque

o bem que cada indiviacuteduo adquire e conserva para si eacute suficiente para se dar a si proacuteprio

por satisfeito mas o bem que um povo e os Estados adquirem e conservam eacute mais nobre

e mais proacuteximo do que eacute divino Escreve Aristoacuteteles a este respeito (Ibid 1094b 5-10)

23 Para Aristoacuteteles uma ciecircncia eacute arquitetocircnica em relaccedilatildeo a uma outra quando os fins da segunda satildeo subordinados aos da primeira 24 A reflexatildeo contida na Eacutetica a Nicocircmaco pressupotildee a distinccedilatildeo exposta na Metafiacutesica (Met 1025b 20-30) entre as ciecircncias teoreacuteticas que satildeo formas de conhecimento puramente contemplativo as ciecircncias praacuteticas que satildeo formas de conhecimento do qual deriva uma accedilatildeo uacutetil e as ciecircncias produtivas que satildeo formas de conhecimento que buscam o saber em vista de produzir certos objetos Por dignidade as ciecircncias mais elevadas satildeo as primeiras compostas pela metafiacutesica fiacutesica e matemaacutetica E dentre estas a metafiacutesica (tambeacutem chamada de filosofia primeira ou teologia) eacute a mais sublime porque indaga as causas e os primeiros princiacutepios Pertencem agraves ciecircncias praacuteticas a poliacutetica a eacutetica e a retoacuterica Cada grupo se organiza em linhas hieraacuterquicas com uma ciecircncia arquitetocircnica que fornece o objetivo das ciecircncias subordinadas Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles assegura que a ciecircncia poliacutetica eacute a principal das ciecircncias praacuteticas por ser uma ciecircncia arquitetocircnica Todavia ele faz aparentemente um rebaixamento da filosofia contemplativa que por ser uma atividade essencialmente individual pareceria ocupar uma posiccedilatildeo inferior agrave ciecircncia poliacutetica que tem por objeto o bem comum No entanto a ciecircncia poliacutetica somente eacute arquitetocircnica em relaccedilatildeo agraves ciecircncias praacuteticas que estatildeo abaixo das ciecircncias teoreacuteticas Isto ocorre porque a ciecircncia poliacutetica jamais poderaacute ser uma ciecircncia exata que partiria de axiomas e princiacutepios como a matemaacutetica e a metafiacutesica pelo contraacuterio ela deve contentar-se em alcanccedilar o maacuteximo de exatidatildeo que sua mateacuteria permite

Porque mesmo que haja um uacutenico bem para cada indiviacuteduo em particular e para todos em geral num Estado parece que obter e conservar o bem pertencente a um Estado eacute obter e conservar um bem maior e mais completo O bem que cada um obteacutem e conserva para si eacute suficiente para se dar a si proacuteprio por satisfeito mas o bem que um povo e os Estados obteacutem e conservam eacute mais belo e mais proacuteximo do que eacute divino

Decerto para Aristoacuteteles o bem em consideraccedilatildeo natildeo pertence somente ao

indiviacuteduo mas eacute o bem de toda a cidade pois o singular faz parte dela por isso a ciecircncia

que dele se ocupa constitui a ciecircncia da cidade quer dizer a ciecircncia poliacutetica Esta tambeacutem

eacute chamada de ciecircncia arquitetocircnica em relaccedilatildeo a todas as outras artes ou ciecircncias praacuteticas

porque desempenha uma funccedilatildeo diretiva nas relaccedilotildees entre todas na medida em que se

ocupa do fim uacuteltimo

De acordo com a anaacutelise de C D C Reeve a arte retoacuterica tem por objetivo obter a

persuasatildeo a economia domeacutestica a obtenccedilatildeo de riquezas e as demais artes e ciecircncias

praacuteticas visam alcanccedilar os fins que a definem Todavia isto natildeo quer dizer que as artes e

as ciecircncias natildeo possam ser utilizadas para outros fins que natildeo os seus fins naturais soacute que

quando o satildeo elas estatildeo sendo controladas por alguma outra coisa que as utiliza para

propoacutesitos mais elevados E como as artes e ciecircncias tecircm essa caracteriacutestica elas satildeo

adequadas para inclusatildeo em hierarquias teacutelicas que estatildeo sob o domiacutenio da arte mais

arquitetocircnica da ciecircncia poliacutetica que prescreve e coordena todas as suas atividades com

o propoacutesito de promover a felicidade Dessarte a sabedoria ou ciecircncia praacutetica da qual a

ciecircncia poliacutetica eacute um ramo seria um ponto inicial natildeo soacute da ciecircncia praacutetica da eacutetica como

tambeacutem de todas as artes produtivas de modo que constroacutei-se casas confecciona-se

calccedilados acumula-se riquezas pratica-se a medicina e persuade-se auditoacuterios tendo em

vista alcanccedilar a felicidade que eacute o fim definidor da sabedoria praacutetica (REEVE 2014

127) Em virtude desta intenccedilatildeo a sabedoria praacutetica eacute tudo menos neutra nas relaccedilotildees

com a realidade humana pelo contraacuterio julga o valor desta uacuteltima examina o que nela eacute

bom e o que eacute mau a fim de aperfeiccediloaacute-la

Eacute manifesto que a arte retoacuterica enquanto disciplina subordinada agrave ciecircncia poliacutetica

que eacute arquitetocircnica em relaccedilatildeo agraves demais ciecircncias praacuteticas adquire a tarefa de auxiliar a

atividade poliacutetica no nobre fomento do bem comum o qual soacute eacute exequiacutevel pelo

fortalecimento das virtudes eacuteticas Sob a direccedilatildeo e o controle arquitetocircnicos da ciecircncia

poliacutetica a eacutetica a retoacuterica e demais artes e ciecircncias satildeo coordenados e harmonizados a

fim de melhor promover o bem humano que no domiacutenio da poliacutetica identifica-se com a

justiccedila (Pol 1283a 1-4)

Em todas as ciecircncias e artes o fim eacute um bem e o maior dos bens e bem no mais algo grau se acha principalmente na ciecircncia todo-poderosa esta ciecircncia eacute a poliacutetica e o bem em poliacutetica eacute a justiccedila ou seja o interesse comum

Com efeito a vida na melhor cidade eacute regulada cuidadosamente pela ciecircncia

poliacutetica pois o mundo social que o cidadatildeo herda deve ser projetado para desenvolver e

fortalecer as virtudes eacuteticas bem como proporcionar o ambiente ideal para o exerciacutecio

delas Todavia existem duas categorias de ouvintes para os quais mormente o discurso

eacutetico pode dirigir-se Os ouvintes da primeira categoria possuem disposiccedilotildees naturais para

a virtude ou simplesmente receberam uma boa educaccedilatildeo Para estes os discursos eacuteticos

podem ser uacuteteis visto que os ajudaratildeo a transformar suas virtudes naturais ou

transmitidas pelo haacutebito em virtudes racionais Os ouvintes pertencentes agrave segunda

categoria satildeo escravos de suas proacuteprias paixotildees por isso o discurso eacutetico para eles natildeo

teraacute nenhum proveito (Eacutet Nic 1095a 3-10)

Ora as aacutereas de saber em causa dependem dos sentidos fixados a partir da experiecircncia das situaccedilotildees da vida e satildeo estas mesmas situaccedilotildees da vida que em uacuteltima anaacutelise constituem o seu proacuteprio tema Para mais indo sempre atraacutes de suas paixotildees ouviraacute falar dessas mateacuterias em vatildeo e sem proveito porquanto o objetivo final dessa investigaccedilatildeo natildeo eacute constituir um saber teoacuterico mas agir E aqui natildeo haacute nenhuma diferenccedila se a juventude diz respeito agrave idade ou agrave natureza imatura do caraacuteter A deficiecircncia natildeo se constitui pelo tempo mas por se viver exposto agraves paixotildees e se deixar ir atraacutes de cada uma delas porque para pessoas desta natureza este saber natildeo tem qualquer proveito tal como natildeo o teraacute para os que natildeo tem domiacutenio de si Mas saber destas coisas traraacute uma grande vantagem para aqueles que fazem os seus desejos orientarem-se num determinado sentido e agem nessa conformidade

No entanto em relaccedilatildeo aos ouvintes que satildeo escravos de suas proacuteprias paixotildees em

relaccedilatildeo aos quais o discurso eacutetico natildeo possui nenhuma utilidade cabe agrave comunidade

poliacutetica atraveacutes de bons legisladores fomentar pela coaccedilatildeo de suas leis e pela coerccedilatildeo os

haacutebitos virtuosos Conveacutem sublinhar que a arte legisladora (νομοθετικέ) tambeacutem constitui

um importante ramo da ciecircncia poliacutetica cujo escopo eacute formular leis prescritivas para

promover a felicidade dos cidadatildeos inculcando neles as virtudes eacuteticas e dirigindo suas

accedilotildees Por isso aquele que pretende atraveacutes da sua preocupaccedilatildeo tornar melhores os

homens sejam muitos sejam poucos teraacute de tentar tornar-se um legislador competente

(Ibid 1180b 24-26)

Na visatildeo de Aristoacuteteles eacute funccedilatildeo da ciecircncia poliacutetica assegurar a virtude dos

cidadatildeos e por conseguinte sua felicidade porque eacute impossiacutevel que uma cidade seja feliz

se nela a honestidade estiver ausente Agrave vista disso Aristoacuteteles funda na atividade poliacutetica

a esperanccedila de transformar tanto os homens quanto a cidade Existe pois uma

interconexatildeo necessaacuteria da vida individual com a vida comunitaacuteria que implica na relaccedilatildeo

iacutentima entre eacutetica e poliacutetica E a conexatildeo eacute tatildeo estreita que o Estagirita eacute capaz de definir

a tarefa de um governo poliacutetico em termos exclusivamente eacuteticos pois o estadista ou o

poliacutetico (πολιτικός) precisa fundamentalmente realizar um certo caraacuteter moral em seus

cidadatildeos uma disposiccedilatildeo para a virtude e para a execuccedilatildeo de accedilotildees virtuosas Outrossim

o que as pessoas consideram accedilotildees virtuosas depende de haacutebitos que elas adquiriram no

processo de ser socializadas e educadas pois o que elas veem como geralmente justo eacute o

que a sua constituiccedilatildeo as educou para ver e fazer como tal E se posteriormente receberem

a educaccedilatildeo adicional apropriada e a constituiccedilatildeo em que viveram for adequada elas

aprenderatildeo que praticar a virtude promove a felicidade daqueles que o fazem bem como

de todos os outros cidadatildeos da comunidade poliacutetica No entanto para que isto ocorra o

πολιτικός deve ser capaz de persuasatildeo retoacuterica de outro modo ele natildeo conseguiraacute avanccedilar

em seus projetos eacutetico-poliacuteticos Aliaacutes ateacute mesmo os tiranos natildeo podem prescindir da

persuasatildeo e governar somente com base na coerccedilatildeo e na forccedila Mas se porventura o

πολιτικός carece do conhecimento ou dos dons da retoacuterica ele pode recorrer agrave cooperaccedilatildeo

de um orador (profissional) Este por conseguinte deve estar ao seu lado pronto para

atuar como seu porta-voz (RORTY 1997 23-25)

Decerto o primeiro princiacutepio da eacutetica aristoteacutelica eacute o de que ela se dirige agrave

consecuccedilatildeo da felicidade para o indiviacuteduo a qual consiste grosso modo na atividade da

alma de acordo com a virtude (Eacutet Nic 1098a 15-19) No entanto esta noccedilatildeo natildeo diz

respeito a um ideal inteiramente individualista porque o ser humano eacute um animal ciacutevico

mais social do que as proacuteprias abelhas Existe portanto uma iacutentima conexatildeo entre a vida

individual e a vida coletiva que se consubstancia na conexatildeo iacutentima entre eacutetica e poliacutetica

O homem com efeito eacute o uacutenico animal que possui o dom da palavra cujo uso

somente eacute liacutecito em concordacircncia com as virtudes eacuteticas E uma vez que eacute vergonhosa a

incapacidade de defesa verbal os homens poliacuteticos devem desenvolver a capacidade de

falar persuasivamente no mais elevado grau Todavia a obtenccedilatildeo dessa capacidade soacute eacute

possiacutevel atraveacutes de uma τέχνη que estuda e ensina de maneira sistemaacutetica o que eacute

adequado a cada caso com a finalidade de persuadir qual seja a arte retoacuterica Isto posto

se as atividades que alcanccedilam o maior prestiacutegio na cidade estatildeo submetidas agrave ciecircncia

poliacutetica cuja finalidade eacute o bem humano entatildeo a arte retoacuterica a qual se cobre com a figura

da poliacutetica (Ret 1356a 34-35) se transfigura num poderoso instrumento para promover

o bem da comunidade poliacutetica pois conforme verificamos sua funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica

consiste em trazer a verdade agrave luz detectar e expor os sofismas e combater a perversatildeo

da verdade e da justiccedila

Pode-se asseverar entatildeo que Aristoacuteteles compromete o discurso retoacuterico em

perspectiva praacutetica ao fim uacuteltimo do ser humano qual seja a felicidade (εὐδαιμονία) E

com base nesse comprometimento a arte retoacuterica pertenceria instrumentalmente agrave eacutetica e

agrave ciecircncia poliacutetica A retoacuterica eacute um tipo de ciecircncia auxiliar da eacutetica e da poliacutetica porque

ela natildeo visa simplesmente a persuasatildeo (atividade natildeo-terminal) mas contribuir para o

bem agir tanto na vida privada quanto na vida puacuteblica (atividade terminal) ou seja ela

visa a εὐπραξία que eacute o equivalente agrave felicidade e o mesmo que o bem viver em geral

(Eacutet Nic 1140b 10-11)

32 A ineficaacutecia persuasiva do discurso judicial de Soacutecrates

Observamos que pela divisatildeo do discurso em partes (τάξις) cujo escopo eacute

possibilitar a demonstraccedilatildeo entimemaacutetica o orador faz o auditoacuterio encaminhar-se pelas

vias e pelas etapas que escolheu guiando-o para o objetivo proposto na exposiccedilatildeo

(πρόθεσις) No que se refere ao proecircmio (προοίμιον) o Estagirita estabelece que eacute o

comeccedilo do discurso e serve como preparaccedilatildeo do caminho que se segue depois e sua

funccedilatildeo essencial consiste em tornar o auditoacuterio benevolente doacutecil e atencioso pois tanto

mais interesse existiraacute pelo discurso quanto mais for relevante causar surpresas despertar

admiraccedilatildeo e for agradaacutevel25 Sendo assim atraveacutes do proecircmio o orador deve conquistar a

boa disposiccedilatildeo do auditoacuterio ele pode ateacute suscitar a sua ira mas contra os adversaacuterios e

25 Marco Faacutebio Quintiliano enfatiza que a funccedilatildeo essencial do προοίμιον ndash tornar o auditoacuterio benevolente doacutecil e atencioso ndash tambeacutem precisa ser levada em consideraccedilatildeo nas demais partes do discurso mas principalmente no princiacutepio porque ela propicia a entrada no acircnimo dos juiacutezes sem a qual natildeo eacute possiacutevel avanccedilar passo algum para adiante (Inst orat II I)

nunca contra si e pode tornaacute-lo ora atento ora descontraiacutedo Escreve Aristoacuteteles sobre

este assunto (Ret 1415a 44-50 1015b 1-3)

Os elementos que se relacionam com o auditoacuterio consistem em obter a sua benevolecircncia suscitar a sua coacutelera e por vezes atrair a sua atenccedilatildeo ou o contraacuterio Na realidade nem sempre eacute conveniente pocircr o auditoacuterio atento razatildeo pela qual muitos oradores tentam levaacute-lo a rir Todos estes recursos se se quiser levam a uma boa compreensatildeo e a apresentar o orador como um homem respeitaacutevel pois a este os auditores prestam mais atenccedilatildeo Satildeo tambeacutem mais atentos a temas importantes a coisas que lhes digam respeito agraves que os encham de espanto agraves agradaacuteveis

O proecircmio cumpre tambeacutem a funccedilatildeo de ornamentar o discurso o que daacute a impressatildeo

de que o mesmo natildeo foi preparado agraves pressas (Ibid 1415b 54-56) E no que tange agrave

maneira pela qual o orador poderaacute obter a benevolecircncia dos ouvintes dispondo-os

afetivamente para aderirem agraves teses a serem veiculadas Aristoacuteteles estabelece alguns

princiacutepios jamais refutar os seus erros fazer gracejos sempre que possiacutevel elogiar suas

boas qualidades natildeo repreender suas faltas e imperfeiccedilotildees interessar-se por seus

interesses consideraacute-los honestos e demonstrar alegria por sua companhia entre outras

coisas Enfim cabe ao orador nessa parte crucial do discurso agir com uma certa dose de

bajulaccedilatildeo26 (Ibid 1381a 12-16 1381b 17-20)

26 Embora Aristoacuteteles sustente que o orador (ῥήτωρ) necessita comportar-se diante do seu auditoacuterio com uma certa dose de bajulaccedilatildeo (κολακεία) sua atitude natildeo deve confundir-se com a de um demagogo (δημαγωγός) Em sua visatildeo ambos procuram produzir pelo discurso certas disposiccedilotildees nos ouvintes em vista de persuadi-los mas enquanto o ῥήτωρ visa o bem comum o δημαγωγός aspira somente a popularidade e o domiacutenio sobre as massas Longe de opor-se aos haacutebitos dos ouvintes o δημαγωγός os reproduz e os lisonjeia porque eacute um verdadeiro adulador do povo (Pol 1305a 1-29) Ele tambeacutem se apoia na tipologia dos caracteres dos ouvintes e no apelo agraves emoccedilotildees natildeo para aconselhar seu auditoacuterio sobre o que eacute mais uacutetil ou conveniente para a cidade mas simplesmente para se fazer aplaudir Ele ainda tenciona manipular a opiniatildeo do auditoacuterio mas soacute o faz tornando-se um haacutebil adulador pronto para lhe comunicar tudo aquilo que tem o desejo de ouvir E tal atitude culmina amiuacutede no domiacutenio tiracircnico sobre o auditoacuterio jaacute que o δημαγωγός torna-se soberano sobre a opiniatildeo das massas (Ibid 1292a 21-34) Aliaacutes para Norberto Bobbio eacute com Aristoacuteteles que o termo ldquodemagogordquo adquire um significado negativo cuja praacutexis ele descreve nos seguintes termos (BOBBIO 2008 318) ldquoAssim era chamado demagogo na Antiga Greacutecia aquele que sendo homem de Estado ou haacutebil orador sabia conduzir o povo Eacute com Aristoacuteteles que o termo adquire um significado negativo em teoria poliacutetica [] Um tipo de accedilatildeo eacute o utilizado por algueacutem que explorando particulares situaccedilotildees histoacuterico-poliacuteticas dirigindo-se para os seus proacuteprios fins incita e guia as massas populares subjugando-as graccedilas a particulares capacidades oratoacuterias e psicoloacutegicas frequumlentemente instintivas que lhe permitem interpretar os humores e as exigecircncias mais imediatas juntando a estas qualidades dotes carismaacuteticos incomuns [] Quando poreacutem nos governos populares a lei estaacute subordinada ao arbiacutetrio de muitos surgem os demagogos que abrandando e adulando as massas exasperando seus sentimentos destruidores distraindo-as do seu compromisso poliacutetico [] Conseguem assim consolidar o proacuteprio poder com a eliminaccedilatildeo de toda e qualquer oposiccedilatildeo Aristoacuteteles define portanto o demagogo como um lsquoadulador do povorsquordquo

Entretanto conforme jaacute examinado no seu discurso judicial Soacutecrates natildeo se

importou minimamente com as orientaccedilotildees em apreccedilo nem no proecircmio onde estas

deveriam ser observadas com mais proeminecircncia tampouco no desenvolvimento de sua

defesa pois ele se propotildee a falar a verdade de maneira espontacircnea sem uma preparaccedilatildeo

preacutevia mesmo arriscando-se a natildeo agradar os ouvintes No proecircmio de sua defesa ele

ignora o estratagema retoacuterico de agradar os ouvintes pelo elogio de suas boas qualidades

evitando ao maacuteximo repreender suas faltas Em vez de apresentar um discurso

ornamentado e agradaacutevel com a finalidade de obter a benevolecircncia dos ouvintes Soacutecrates

atrai para si a ira desses pois exorta-os a cuidar de suas almas mesmo correndo o risco

de ser derrotado no tribunal Com efeito no seu discurso ele age como um orador jaacute que

procura influenciar os seus ouvintes mas em vez de agradar e tentar obter a aprovaccedilatildeo

deles ele procura explicitamente exortaacute-los a serem virtuosos Dessarte o principal

objetivo do seu discurso natildeo consistiu em persuadir seus ouvintes mas sim em encorajaacute-

los agrave praacutetica das virtudes

Soacutecrates tambeacutem se recusa a apelar para o sentimento de piedade de seus ouvintes

seja suplicando o perdatildeo com copiosas laacutegrimas seja se aproveitando dos seus amigos

para livrar-se das acusaccedilotildees seja por algum outro estratagema retoacuterico Isso porque como

jaacute visto ele rejeita a ideia de desonrar a si mesmo usando-se de ldquomeios injustosrdquo para

vencer o julgamento e reteacutem como princiacutepio apenas o convencimento dos jurados a partir

somente da exposiccedilatildeo da verdade E apesar de correr grande perigo Soacutecrates diz que natildeo

faraacute o que muitos oradores fazem como trazer os filhos para exibi-los diante do tribunal

com o intuito de lograr a absolviccedilatildeo por meio da clemecircncia Para ele apelos emocionais

dessa natureza seriam incompatiacuteveis com sua reputaccedilatildeo e com o seu modo de vida (Def

Soacutec 34c-34d)

Algum de voacutes talvez se indigne com a recordaccedilatildeo do seu caso se ele proacuteprio agraves voltas com uma lide embora menos grave que esta teve de pedir de suplicar aos juiacutezes com laacutegrimas copiosas de trazer para melhor movecirc-los agrave piedade os filhos outros parentes muitos amigos ao passo que eu ndash natildeo eacute ndash natildeo vou fazer nada disso apesar de estar correndo como posso imaginar o extremo perigo [] portanto Atenienses tenho parentes e filhos estes satildeo trecircs um jaacute taludo e dois pequeninos Natildeo obstante natildeo trouxe nenhum deles aqui com o fito de vos pedir absolviccedilatildeo [] mas em face da honra minha vossa e de toda a cidade eu considero uma noacutedoa aquele procedimento na minha idade e com a reputaccedilatildeo adquirida [] Evidentemente se com a forccedila da persuasatildeo de minhas suacuteplicas vos levasse ao perjuacuterio eu vos estaria levando a natildeo crer nos deuses e com tal defesa simplesmente me estaria acusando de natildeo crer em deuses

Em sua versatildeo sobre o discurso de defesa de Soacutecrates Xenofonte enfatiza a

preocupaccedilatildeo de Soacutecrates em sustentar que jamais fora iacutempio para com os deuses nem

injusto para com os homens mas que longe de pensar rebaixar-se com suacuteplicas de piedade

a fim de escapar da condenaccedilatildeo agrave morte pelo contraacuterio desde logo se persuadira haver

chegado a hora de morrer (Apol Soacutec 2 22) Cocircnscio de que poderia apelar para as

emoccedilotildees dos juiacutezes com o intuito de obter a absolviccedilatildeo Soacutecrates prefere poreacutem natildeo

depreciar a si mesmo como procediam em sua opiniatildeo a maioria dos oradores judiciais

do seu tempo Eacute manifesto portanto que tanto o Soacutecrates de Platatildeo quanto o de

Xenofonte reputa como indigna e imoral a ecircnfase dada ao aspecto afetivo da arte retoacuterica

praticada por todos os oradores do seu tempo que visa influenciar a opiniatildeo dos ouvintes

pela emotividade

Aristoacuteteles por seu turno apresenta aos que pretendem ser bons oradores a maneira

que considera eficaz para estimular nos ouvintes o sentimento de piedade (ἔλεος) No

capiacutetulo 8 do segundo livro da Retoacuterica ele defende o uso desse expediente com base na

ponderaccedilatildeo de que o orador deve transformar a emoccedilatildeo experimentada num recurso uacutetil

para induzir os juiacutezos dos ouvintes em direccedilatildeo agravequilo que eacute eticamente conveniente Desse

modo se a finalidade da arte retoacuterica eacute obter um julgamento favoraacutevel para a causa que

defende e se as emoccedilotildees constituem o agente da mudanccedila dos juiacutezos dos seres humanos

entatildeo a arte retoacuterica em conformidade com sua funccedilatildeo de fazer a justiccedila e a verdade

prevalecer sobre seus contraacuterios deve apelar para o sentimento de piedade dos ouvintes

E a maneira pela qual o orador seraacute capaz de suscitar o sentimento de piedade nos seus

ouvintes consiste basicamente no conhecimento da definiccedilatildeo de piedade dos padrotildees de

estiacutemulos que acompanham essa emoccedilatildeo e na capacidade de mobilizar essas noccedilotildees nos

discursos

Segundo ele a piedade eacute definida como sendo o sentimento de pesar em face de um

mal destrutivo e penoso que acomete algueacutem que natildeo merece e esse sentimento eacute gerado

em algueacutem a partir do juiacutezo que este faz de que qualquer indiviacuteduo ele inclusive ou

algum de seus entes queridos estaacute sujeito a sofrer o mesmo mal Eacute a capacidade

psicoloacutegica para sentir o sofrimento de outra pessoa caso estivesse na mesma situaccedilatildeo

penosa vivenciada por ela Ademais o sentimento de piedade eacute mais facilmente suscitado

no indiviacuteduo quando os males que satildeo temidos atingem pessoas que estatildeo proacuteximas (Ret

1385b 17-29)

Falaremos agora do tipo de coisas que satildeo dignas de piedade quem tem piedade e em que disposiccedilotildees experimentamos esse sentimento Vamos admitir que a ldquopiedaderdquo consista numa certa pena causada pela apariccedilatildeo de um mal destruidor e aflitivo afetando quem natildeo merece ser afetado podendo tambeacutem fazer sofrer a noacutes ou a algum dos nossos principalmente quando esse mal nos ameaccedila de perto Eacute evidente que por forccedila das circunstacircncias aquele que estaacute a ponto de sentir piedade se encontra numa situaccedilatildeo de tal ordem que haacute de pensar que ele proacuteprio ou algueacutem da sua proximidade acabaraacute por sofrer algum mal idecircntico ou muito semelhante ao que referimos na nossa definiccedilatildeo

Os indiviacuteduos tambeacutem sentem piedade em relaccedilatildeo agravequeles que tecircm pais filhos ou

esposas por serem os pais filhos e esposas em certa medida partes da proacutepria pessoa e

estarem desse modo sujeitos a diversos males (Ibid 1385b 41-43) e sentem piedade

ainda em relaccedilatildeo agravequeles em que identificam qualquer relaccedilatildeo de semelhanccedila como a

idade o caraacuteter as qualidades a dignidade o nascimento entre outras relaccedilotildees de

semelhanccedila factiacuteveis (Ibid 1386a 34-37) Assim delimitados aqueles por quem se sente

em geral piedade Aristoacuteteles passa a buscar que eventos suscitam essa emoccedilatildeo e conclui

serem aqueles que ocasionam dor ou pena tais como diferentes tipos de morte violecircncias

doenccedilas agressotildees e coisas semelhantes (Ibid 1386a 4-8) Aristoacuteteles arremata

considerando que a piedade se intensifica quando se percebe que a viacutetima da circunstacircncia

penosa ou dolorosa eacute uma pessoa honrada a qual sofre o mal imerecidamente (Ibid

1386b 7-10)

Aristoacuteteles passa entatildeo a tratar dos dispositivos por meio dos quais o orador pode

reforccedilar o apelo emocional agrave piedade ressaltando o poder dos gestos da voz e da

indumentaacuteria Ele observa que ao expor diante dos olhos dos ouvintes o mal faz com

que este pareccedila mais proacuteximo E para comover mais vivamente a assistecircncia ele sugere

a seguinte estrateacutegia retoacuterica exibir para os ouvintes algum objeto passiacutevel de suscitar o

sentimento de piedade como por exemplo as roupas dos que sofreram grande calamidade

(Ibid 1386a 44-47) Em sintonia com essa tese aristoteacutelica Chaiumlm Perelman sublinha o

fato de que o orador ao selecionar certos elementos e apresentaacute-los ao auditoacuterio jaacute implica

a importacircncia e a pertinecircncia deles no discurso Isto ocorre porque semelhante escolha

confere a esses elementos uma presenccedila A presenccedila de um objeto qualquer tem o condatildeo

de despertar a imaginaccedilatildeo e sensibilidade dos ouvintes e constitui assim um fenocircmeno

psicoloacutegico essencial na argumentaccedilatildeo Para Perelman certos mestres de retoacuterica

incluindo Aristoacuteteles preconizam para emocionar o auditoacuterio o recurso a objetos

concretos como a tuacutenica ensanguentada de Ceacutesar que Antocircnio brandiu perante os

romanos como os filhos do reacuteu que satildeo levados perante os juiacutezes para suscitar-lhes o

sentimento de piedade e coisas deste jaez (PERELMAN 2014 132-133) Pode-se

concluir que mesmo esse estratagema retoacuterico eacute rejeitado por Soacutecrates que em prejuiacutezo

de sua proacutepria defesa recusa-se a exibir seus filhos com abundantes laacutegrimas trazer

parentes ou muitos amigos diante do tribunal ateniense como um expediente para tentar

obter a absolviccedilatildeo por meio da piedade da audiecircncia

De acordo com Aristoacuteteles as emoccedilotildees satildeo aquilo que ao provocar uma alteraccedilatildeo

nos seres humanos fazem com que eles divirjam em seus juiacutezos na medida em que elas

comportam dor e prazer (Ret 1378a 29-31) Agrave vista disso conveacutem considerar que o

conteuacutedo do discurso por si soacute eacute incapaz de fomentar a persuasatildeo porque no discurso

retoacuterico natildeo basta observar abstratas regras loacutegicas e racionais mas eacute preciso envolver

tambeacutem as emoccedilotildees dos ouvintes porquanto se estes natildeo estiverem afetivamente

dispostos a aderir a uma determinada tese os argumentos e fatos considerados

isoladamente natildeo influenciam na tomada de decisatildeo Dessarte para existir a persuasatildeo eacute

imprescindiacutevel emocionar dispor as emoccedilotildees da assistecircncia de modo a aceitar o que

intenta transmitir o orador pelo seu discurso porque o meacuterito do orador natildeo reside

somente na sua capacidade de oferecer razotildees mas tambeacutem em emocionar e mover os

ouvintes para onde ele o deseja Escreve Aristoacuteteles sobre este assunto (Ibid 1377b 27-

37)

Uma vez que a retoacuterica tem por objetivo formar um juiacutezo (porque tambeacutem se julgam as deliberaccedilotildees e a accedilatildeo judicial eacute um juiacutezo) eacute necessaacuterio procurar natildeo soacute que o discurso seja demonstrativo e digno de creacutedito mas tambeacutem que o orador mostre possuir certas disposiccedilotildees e prepare favoravelmente o juiz Muito conta para a persuasatildeo sobretudo nas deliberaccedilotildees e naturalmente nos processos judiciais a forma como o orador se apresenta e como daacute a entender as suas disposiccedilotildees aos ouvintes fazendo com que da parte destes tambeacutem haja um determinado estado de espiacuterito em relaccedilatildeo ao orador

Outrossim na visatildeo de Aristoacuteteles os fatos natildeo se apresentam sob o mesmo ponto

de vista a quem ama e a quem odeia nem satildeo iguais para o homem que estaacute irado ou para

o calmo ou satildeo completamente diferentes ou diferem segundo criteacuterios de grandeza

Assim quem ama acha que o juiacutezo que deve emitir sobre quem eacute julgado eacute de inocecircncia

ou de pouca culpabilidade e quem odeia acha justamente o contraacuterio (Ibid 1377b 40-

44) Isto posto a interpretaccedilatildeo dos fatos e por conseguinte a tomada de decisatildeo depende

amiuacutede da maneira como o orador predispotildee emocionalmente os ouvintes porque se estes

estiverem ligados afetivamente ao orador seja por um sentimento de piedade ou mesmo

de amizade ainda que este tenha cometido um crime pode vir a ser inocentado O oposto

tambeacutem eacute verdadeiro e a este respeito a condenaccedilatildeo de Soacutecrates parece ser paradigmaacutetica

pois ainda que as declaraccedilotildees feitas pelo filoacutesofo fossem verdadeiras as mesmas foram

recebidas de maneira desfavoraacutevel em virtude do sentimento de hostilidade que o proacuteprio

Soacutecrates suscitou nos juiacutezes A este respeito Xenofonte declara que em sua defesa

Soacutecrates falando de si mesmo com tamanha sobranceria perante o tribunal aticcedilou o ciuacuteme

e conticcedilou a disposiccedilatildeo dos juiacutezes natildeo para absolvecirc-lo mas para condenaacute-lo (Apol Soacutec

IV 32 )

Observamos na Defesa de Soacutecrates que a linguagem retoacuterica de Soacutecrates eacute a mesma

que ele utiliza nas praccedilas puacuteblicas nos comeacutercios ou em qualquer outro local por isso

natildeo estaria em descontinuidade de vocabulaacuterio e de forma de construccedilatildeo com a linguagem

que se emprega cotidianamente Nesse sentido a visatildeo de Aristoacuteteles sobre a maneira

como se deve pronunciar um discurso contrasta terminantemente com o estilo

extemporacircneo praticado por Soacutecrates

Em sua anaacutelise da expressatildeo enunciativa (λέξις) desenvolvida por Aristoacuteteles no

terceiro livro da Retoacuterica (2-12) Maria F S Francisco destaca esse aspecto ao sustentar

que embora a semelhanccedila de objeto entre o discurso retoacuterico e o ordinaacuterio determine uma

proximidade estiliacutestica fundamental entre eles em termos da escolha de palavras a

expressatildeo retoacuterica distingue-se da linguagem comum Haja vista que a fala do orador

precisa desempenhar funccedilotildees proacuteprias ausentes da linguagem comum deve igualmente

lanccedilar matildeo de recursos estiliacutesticos proacuteprios A despeito da expectativa do puacuteblico por um

discurso espontacircneo que manifeste o sincero e imediato modo de pensar do orador este

perderia toda possibilidade de ser persuasivo caso se limitasse a falar espontaneamente

Desse modo o resultado de uma fala natural como o faria algueacutem que natildeo deteacutem

conhecimento da teacutecnica retoacuterica (que parece ser o caso de Soacutecrates) seria a ausecircncia de

forccedila expressiva e por conseguinte de comunicaccedilatildeo com o puacuteblico Deveras a funccedilatildeo

proacutepria da expressatildeo enunciativa consiste em trabalhar sobre o conteuacutedo de modo a

comunicar ao puacuteblico aquilo que por si mesmo poderia natildeo ser observado Todavia a

linguagem ordinaacuteria precisamente por ser demasiado familiar pouco pode atender agraves

necessidades especiacuteficas do falar a um puacuteblico determinado como o da assembleia e do

tribunal Assim em face de uma audiecircncia inculta numerosa e dotada de variadas

dificuldades (como a compreensatildeo a fixaccedilatildeo da atenccedilatildeo e o discernimento auditivo e

visual) uma fala natildeo-teacutecnica estaria pouco munida para chegar a comunicar algo e

persuadir E a fim de solucionar esse tipo de dificuldade Aristoacuteteles acrescenta a segunda

exigecircncia a ser satisfeita pela λέξις a desfamiliarizaccedilatildeo ou a exploraccedilatildeo do estranho no

plano do discurso O afastamento em relaccedilatildeo agraves formulaccedilotildees da linguagem ordinaacuteria o

rompimento da expectativa do ouvinte e o efeito surpresa meios pelos quais se produz a

desfamiliarizaccedilatildeo ou o estranhamento conferem ao discurso retoacuterico o poder de se

comunicar com seu puacuteblico proacuteprio na medida em que tornam o que se diz expressivo e

capaz de captar sua atenccedilatildeo Esta captaccedilatildeo eacute o resultado da produccedilatildeo de uma certa espeacutecie

de prazer decorrente do inesperado jaacute que o diferente o que foge ao ordinaacuterio tende a

suscitar prazer Aliaacutes o prazer eacute uma das dimensotildees mais importantes da expressatildeo

enunciativa e sempre com a funccedilatildeo de resolver as dificuldades de acompanhamento do

discurso por parte do puacuteblico Isto posto o ouvinte deve ter a impressatildeo de um discurso

algo mais grave e solene que o discurso ordinaacuterio o que ocasionaria os efeitos da

desfamiliarizaccedilatildeo a expressividade a atenccedilatildeo e o prazer (FRANCISCO 1999 30-31)

Com efeito segundo os paracircmetros do meacutetodo retoacuterico desenvolvido pelo

Estagirita Soacutecrates poderia ser considerado um orador judicial justo e veraz mas ao

mesmo tempo ineficiente porque em sua defesa em vez de agradar os seus jurados faz

justamente o oposto ao declarar que satildeo convencidos facilmente de inverdades (Def Soacutec

18b) que acreditam serem mais saacutebios do que realmente satildeo (Ibid 21d-23a) que

merecem reprimendas e questionamentos (Ibid 29e-30a 30e) que natildeo satildeo facilmente

convencidos da verdade (Ibid 38a-b) que natildeo agradaraacute ou obedeceraacute aos jurados mas

somente ao deus de Delfos (Ibid 29d) ele insinua que os jurados natildeo satildeo moralmente

idocircneos ao afirmar que um homem bom natildeo sobreviveraacute por muito tempo na cidade (Ibid

32e) ele ainda assevera que continuaria com as mesmas accedilotildees mesmo que tivesse de

enfrentar a morte muitas vezes (Ibid 30b-c) finalmente ele foge agrave regra ao propor como

sua contrapenalidade refeiccedilotildees gratuitas no Pritaneu como conveacutem a um heroacutei (Ibid

36c-d) ao inveacutes de pleitear o exiacutelio ou multas como era comum acontecer Depois disso

o juacuteri vota pela condenaccedilatildeo e o discurso de Soacutecrates apoacutes a votaccedilatildeo os exaspera tanto

que mesmo alguns dos que votaram pela absolviccedilatildeo se retratam e votam pela execuccedilatildeo

Apesar de utilizar uma linguagem cotidiana espontacircnea em coerecircncia com o que

se acredita ser verdadeiro Soacutecrates foi ineficiente para persuadir jaacute que natildeo estava

interessado na teacutecnica retoacuterica nem agradar os seus ouvintes tampouco apelar para as

emoccedilotildees mas restringia-se a tentar instruiacute-los sobre os valores da sabedoria e das virtudes

(Ibid 36c) Em nenhum momento do seu discurso Soacutecrates procura lisonjear os jurados

pelo contraacuterio de propoacutesito os irrita com o intuito de despertaacute-los para a importacircncia de

se preocupar com a virtude e o conhecimento em prejuiacutezo de outros assuntos Desse

modo o principal objetivo de Soacutecrates ao expor o seu discurso consiste em encorajar os

jurados a se tornarem melhores cidadatildeos e natildeo tem interesse em obter exclusivamente um

veredicto de inocecircncia Isto natildeo significa que ele natildeo desejasse vencer o caso mas a

vitoacuteria no tribunal natildeo constituiacutea o objetivo principal

Eacute manifesto que Soacutecrates estava disposto a fazer algum esforccedilo para persuadir os

juiacutezes No seu discurso de defesa principal ele apresenta a versatildeo popularmente mais

persuasiva de sua vida como missatildeo divina Ele natildeo se limita apenas a desenvolver

argumentos para mostrar que seu modo de vida eacute na verdade o sumo bem humano Ele

tambeacutem afirma de modo categoacuterico agravequeles que o condenaram agrave morte que poderia ter

forjado argumentos que o absolvessem Isto posto o que causou a condenaccedilatildeo do referido

filoacutesofo natildeo foi o fato de estar em falta com discursos mas sua relutacircncia em dizer e fazer

tudo aquilo que concebia ser vergonhoso no tipo de retoacuterica praticada no seu tempo bem

como sua convicccedilatildeo de que natildeo se pode usar qualquer artimanha para evitar a morte seja

no campo de batalha ou no tribunal de modo que ele possuiacutea a capacidade retoacuterica para

persuadir sua audiecircncia mas escolheu natildeo usaacute-la

Aristoacuteteles a este respeito adota uma perspectiva diametralmente contraacuteria agrave de

Soacutecrates pois ao contraacuterio deste considera que a vitoacuteria no contexto de uma disputa

juriacutedica natildeo pode ter um caraacuteter secundaacuterio porque seria absurdo que a incapacidade de

defesa fiacutesica fosse desonrosa e natildeo o fosse a incapacidade de defesa verbal haja vista

que esta caracteriza mais o homem do que a forccedila fiacutesica Dessarte o orador precisa

empregar todos os recursos retoacutericos disponiacuteveis para atingir os seus objetivos incluindo

o apelo agraves emoccedilotildees dos ouvintes Natildeo obstante Aristoacuteteles natildeo estaacute fazendo qualquer

concessatildeo aos sofistas para os quais eacute possiacutevel em relaccedilatildeo ao mesmo assunto defender

sem quaisquer escruacutepulos o proacute e o contra Pelo contraacuterio eacute justamente para que a justiccedila

e a verdade prevaleccedilam na cidade que se faz necessaacuterio empregar todos os recursos de

que dispotildee o orador para persuadir os seus ouvintes posto que o instrumento da fala

concedido aos homens pela natureza somente eacute liacutecito em conexatildeo com a virtude E se os

maus oradores acabam prevalecendo sobre os bons eacute porque estes natildeo conseguiram

aproveitar-se adequadamente do poderoso instrumento da arte retoacuterica de modo que sua

derrota se atribui agrave sua proacutepria negligecircncia em relaccedilatildeo ao bom uso desta arte

Em siacutentese como consequecircncia da escolha de falar a verdade sem ornamento isto

eacute depurando o discurso das estrateacutegias retoacutericas empregadas por seus contemporacircneos

Soacutecrates natildeo obteve ecircxito algum em persuadir a sua audiecircncia sendo por isso condenado

agrave morte Em vez de agradar e procurar obter a aprovaccedilatildeo dos ouvintes apelando para os

seus sentimentos o que era muito comum e ateacute apropriado nos tribunais Soacutecrates

subordina o discurso somente agrave verdade dos fatos em consonacircncia com a vontade do deus

de Delfos e natildeo hesita em ofender sua audiecircncia Enfim ele natildeo se importou com os

resultados do seu discurso mas unicamente com a veracidade de seu conteuacutedo e esta

atitude ocasionou inevitavelmente a sua condenaccedilatildeo

4 A concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo no diaacutelogo Fedro

41 A retoacuterica filosoacutefica de Platatildeo

Antes do seu encontro com Soacutecrates (que teria ocorrido provavelmente em 408

aC) Platatildeo estudara pintura e escrevera poesias cantos liacutericos e trageacutedias e por certo

interessou-se pela filosofia de Heraacuteclito e Parmecircnides mas o contato com Soacutecrates

quando tinha cerca de 20 anos transformou radicalmente sua vida como homem e como

pensador Posteriormente ao condenar Soacutecrates agrave morte os atenienses fizeram mais do

que realizar um ato injusto Pois ao perpetrar esse ato suscitaram profunda revolta no

jovem Platatildeo assim contribuindo para precipitar definitivamente sua vocaccedilatildeo filosoacutefica

Platatildeo passou entatildeo a dedicar-se com mais afinco agrave exposiccedilatildeo e ao desenvolvimento das

ideias de Soacutecrates A propoacutesito satildeo vaacuterios os diaacutelogos platocircnicos que testemunham o

impacto da morte de Soacutecrates sobre seu autor a Defesa de Soacutecrates ou defesa em seu

julgamento o Criacuteton no qual Soacutecrates apresenta os motivos para natildeo ter fugido de Atenas

depois da condenaccedilatildeo o que poderia ter ocorrido sem dificuldade o Eutiacutefron no qual

Soacutecrates dialoga com o vidente Eutiacutefron sobre o que eacute a piedade na iminecircncia do seu

julgamento e o Feacutedon no qual Soacutecrates passa as uacuteltimas horas de sua vida em defesa da

imortalidade da alma

A concepccedilatildeo de filosofia tal como eacute expressa nos diaacutelogos de Platatildeo nasceu

certamente por frequentar Soacutecrates de modo que toda a sua obra procura expor a

verdadeira filosofia de Soacutecrates que eacute o personagem central de quase todos os seus

diaacutelogos Mas apesar de procurar expor a filosofia de Soacutecrates em disputa com outros

interlocutores Platatildeo de fato apresenta sua proacutepria filosofia pois sua fidelidade ao ensino

de Soacutecrates natildeo consiste tanto em repetir a sua doutrina mas em reafirmar a validade do

meacutetodo de investigaccedilatildeo socraacutetico E haja vista a concepccedilatildeo de Platatildeo acerca da arte

retoacuterica expressa no diaacutelogo Fedro o qual provavelmente foi escrito na fase intermediaacuteria

do seu pensamento27 pode-se assegurar que natildeo somente a filosofia de Soacutecrates mas

27 Para Giovanni Casertano Platatildeo teria escrito o diaacutelogo Fedro no periacuteodo entre 387 e 367 aC ou seja entre os 41 e os 61 anos juntamente com os diaacutelogos Mecircnon Feacutedon Eutidemo Banquete Craacutetilo e A Repuacuteblica (CASERTANO 2011 8)

tambeacutem sua retoacuterica (manifesta no seu discurso judicial) significou para aquele pelo

menos nos seus aspectos essenciais um cacircnone a ser seguido

O diaacutelogo Fedro eacute comumente dividido em duas partes A parte eroacutetica (Fed 227a-

259d) a qual comeccedila com a leitura e a criacutetica de um discurso de Liacutesias que aiacute eacute

apresentado como o chefe da mais influente escola de retoacuterica de Atenas O discurso de

Liacutesias que eacute proferido por Fedro (Ibid 231a-234c) defende a tese paradoxal de que eacute

melhor usufruir dos prazeres eroacuteticos sem efetivamente entregar-se ao amor Para

sustentar essa tese ele alega que os que natildeo amam permaneceriam senhores de si natildeo

seriam censurados por uma maacute conduta e estariam isentos dos sofrimentos que amiuacutede

acometem os apaixonados Nessa parte do diaacutelogo Platatildeo confronta Liacutesias com dois

discursos de Soacutecrates sobre o mesmo tema a saber o valor de eros (ἔρως) O objetivo

desses discursos eacute mostrar como a partir das falsas premissas de Liacutesias sobre eros se pode

tratar melhor do que ele o mesmo assunto No primeiro discurso Soacutecrates (Ibid 237b-

241d) defende grosso modo que o amor eacute um desejo desprovido de razatildeo que arrasta o

amante para o prazer da beleza dos corpos e no outro discurso (Ibid 244a-257b)

Soacutecrates expotildee a teoria de que o amor eacute uma loucura concedida pelos deuses para o

benefiacutecio dos homens uma vez que por meio dela seraacute possiacutevel atingir a verdade

Dessarte alguns inteacuterpretes afirmam que o tema do amor eacute a preocupaccedilatildeo principal do

diaacutelogo Correto ou natildeo esse diagnoacutestico natildeo vela a importacircncia desse diaacutelogo para quem

deseja compreender como Platatildeo concebe a natureza da retoacuterica Como veremos a seguir

esse tema tambeacutem eacute destaque no diaacutelogo tendo inclusive ensejado Werner Jaeger a

identificar a retoacuterica como o assunto por excelecircncia do Fedro (JAEGER 2003 1256)

Na segunda parte do diaacutelogo (Fed 259e-279c) a qual nos interessa mais de perto

Platatildeo expotildee os defeitos da retoacuterica e dos sistemas retoacutericos em vigor no seu tempo para

poder destacar na sequecircncia os meacuteritos da dialeacutetica socraacutetica como condiccedilatildeo preacutevia de

uma verdadeira retoacuterica O escopo de Platatildeo eacute tiraacute-la de persuasores superficiais

especializados demonstrando que aplicada adequadamente e baseada no conhecimento

da verdade eacute coextensiva com a filosofia Nesse sentido o Fedro pode ser compreendido

como veiacuteculo de uma nova concepccedilatildeo de Platatildeo a respeito da arte retoacuterica visto contrastar

com o que lemos no diaacutelogo Goacutergias28 em que a retoacuterica eacute sumariamente rejeitada sob

28 Para Giovanni Casertano o diaacutelogo Goacutergias foi escrito entre 395 e 388 aC isto eacute entre os seus 33 e 40 anos periacuteodo em que escreveu os seus primeiros diaacutelogos Defesa de Soacutecrates Criacuteton Iacuteon Eutiacutefron Caacutermides Laques Liacutesias Hiacutepias Maior Hiacutepias Menor Protaacutegoras e o livro I de A Repuacuteblica (CASERTANO 2011 8)

a consideraccedilatildeo de que seria a suma de uma cultura que natildeo se baseia na verdade mas na

mera aparecircncia Nesse diaacutelogo Platatildeo nega simplesmente que a retoacuterica seja uma arte isto

eacute um discurso fundado num conhecimento cientiacutefico e concebe-a como uma simples

praacutetica empiacuterica que objetiva exclusivamente a persuasatildeo dos ouvintes sem qualquer

preocupaccedilatildeo com o conhecimento (Goacuterg 462b-c) O objetivo de tal retoacuterica natildeo eacute o bem

mas somente o deleite e o prazer por isso ele a define como uma espeacutecie de κολακεία ou

seja de adulaccedilatildeo (Ibid 462e-463a) Ele ataca a retoacuterica existente basicamente no que

tange agrave justiccedila a retoacuterica busca o prazer mediante a adulaccedilatildeo em vez de almejar o bem

genuiacuteno por meio da justiccedila Ele tambeacutem a compara com a culinaacuteria e a cosmeacutetica que

estatildeo voltadas para o prazer do corpo que seriam imitaccedilotildees baratas da medicina e da

ginaacutestica as quais estariam preocupadas com o verdadeiro bem tanto do corpo como da

alma (Ibid 463b-464c)

Outrossim o diaacutelogo Fedro tem lugar entre duas pessoas fora das muralhas da

cidade de Atenas (Fed 227a) em contraste com a grande reuniatildeo perante a qual Soacutecrates

conversa com Goacutergias e os demais no diaacutelogo homocircnimo A discussatildeo sobre a retoacuterica

no Fedro surge em conexatildeo com discursos sobre ἔρως Os assuntos substanciais aqui

discutidos satildeo amplamente privados com apenas breves referecircncias a algo poliacutetico A

propoacutesito no Fedro Soacutecrates estaacute longe de rejeitar longos discursos como o faz de

maneira ostensiva no Goacutergias (Goacuterg 449c-d) pois descreve a si mesmo como um

amante de discursos e profere um discurso muito mais longo do que qualquer outro

exposto no Goacutergias No Fedro natildeo se discute explicitamente a questatildeo do poder da

retoacuterica mas suas proacuteprias observaccedilotildees ao desenvolver uma genuiacutena arte retoacuterica

parecem visar fazecirc-la mais confiavelmente efetiva E quando desenvolve sua proacutepria

noccedilatildeo de retoacuterica natildeo se limita agrave retoacuterica poliacutetica mas propotildee uma arte universal da

psicagogia (ψυχαγωγία) a qual visa conduzir a almas dos ouvintes agrave praacutetica das virtudes

Assim a verdadeira arte retoacuterica natildeo seria algo contraacuterio agrave dialeacutetica mas precisaria ser

desenvolvida por algueacutem com habilidade dialeacutetica que tenha estabelecido em relaccedilatildeo agraves

almas humanas suas accedilotildees e paixotildees todas as definiccedilotildees e divisotildees analiacuteticas de acordo

com as articulaccedilotildees naturais dos objetos necessaacuterios ao desenvolvimento de uma genuiacutena

arte retoacuterica E a este respeito o filoacutesofo teria uma manifesta vantagem na execuccedilatildeo dessa

tarefa Aliaacutes a divindade natildeo estaacute menos presente no Fedro do que no Goacutergias pelo

contraacuterio estaacute ainda mais presente pois sua atuaccedilatildeo eacute uma condiccedilatildeo para o filoacutesofo

contemplar o verdadeiramente belo

Pode-se assegurar entatildeo que ao escrever o diaacutelogo Fedro Platatildeo reabilita a arte

retoacuterica mas entendendo-a como uma praacutetica a serviccedilo da dialeacutetica que consiste no

proacuteprio meacutetodo da filosofia o qual capacita o orador a pensar e a falar (Fed 266b) uma

retoacuterica do verdadeiro e natildeo do verossiacutemil que natildeo procura agradar agraves multidotildees mas

somente os deuses (Ibid 273e) Agrave vista disso Platatildeo concebe duas retoacutericas distintas a

dos sofistas em geral que natildeo eacute genuiacutena arte mas simples adulaccedilatildeo e a filosoacutefica que

natildeo passa de expressatildeo da filosofia sem conteuacutedo proacuteprio e sem autonomia Depois da

apresentaccedilatildeo do panorama geral do que interessa ao estudo da concepccedilatildeo retoacuterica de

Platatildeo no diaacutelogo Fedro importa uma anaacutelise mais pormenorizada do seu conteuacutedo

Com efeito apoacutes ter reservado uma parte inicial do diaacutelogo para criticar Liacutesias e

por extensatildeo todos os oradores por natildeo falarem nem escreverem bem e sobretudo por

priorizarem o conhecimento do verossiacutemil Soacutecrates procura apresentar a Fedro uma

justificaccedilatildeo filosoacutefica da retoacuterica No iniacutecio da segunda parte do diaacutelogo em apreccedilo o

personagem Soacutecrates expotildee a Fedro o seu propoacutesito de examinar quais condiccedilotildees satildeo

necessaacuterias para proferir e escrever um bom discurso E a primeira condiccedilatildeo indicada por

Soacutecrates para se proferir e escrever um discurso com perfeiccedilatildeo eacute que o orador conheccedila a

verdade sobre o assunto de que iraacute tratar (Ibid 259e)

Ora era nosso propoacutesito examinar neste momento qual o criteacuterio para proferir e escrever um discurso com perfeiccedilatildeo ou sem ela pois passemos a fazecirc-lo [] Porventura natildeo eacute necessaacuterio para se falar bem e com perfeiccedilatildeo pressupor na mente do falante o conhecimento da verdade sobre o assunto a tratar

Para Soacutecrates o conhecimento que o orador deve possuir para proferir um bom

discurso natildeo deve limitar-se agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras para as multidotildees

conforme sugere Fedro mas o orador deve conhecer a realidade do que eacute justo bom e

belo (Ibid 260a)

A respeito disso meu caro Soacutecrates ouvi dizer o seguinte quem se quer tornar orador natildeo tem necessidade de conhecer o que realmente eacute justo mas o que aparente secirc-lo agrave multidatildeo que deve julgar natildeo o que na realidade eacute bom e belo mas quanto daacute essa aparecircncia jaacute que daiacute deriva a persuasatildeo e natildeo da verdade

Isto posto a primeira condiccedilatildeo estabelecida por Soacutecrates em relaccedilatildeo ao bom

discurso eacute que o orador deve ter um entendimento discursivo da verdade sobre o assunto

que tenciona discutir O bom orador natildeo deve se apropriar das crenccedilas do que pensam os

homens em geral sobre o que eacute justo bom e belo mas eacute forccediloso antes de pretender

comunicar alguma palavra que ele conheccedila a essecircncia dessas virtudes

Conveacutem ainda frisar que o ponto de partida do diaacutelogo Fedro em seu exame

temaacutetico da retoacuterica natildeo difere da retoacuterica sofiacutestica do diaacutelogo Goacutergias Em ambos

Soacutecrates duvida que a retoacuterica seja uma verdadeira τέχνη mas no Fedro em vez de

menosprezar simpliciter a retoacuterica como uma praacutetica voltada para a bajulaccedilatildeo dos

ouvintes (Goacuterg 463b) ele recomenda natildeo maltratar mas perdoar aqueles que por natildeo

conhecerem a dialeacutetica tornam-se incapazes de definir o que pode ser a retoacuterica (Fed

269b)

No Goacutergias Soacutecrates tambeacutem critica a retoacuterica praticada por seus contemporacircneos

considerando-a uma praacutetica irracional e um saber aparente Isso porque segundo ele ela

dispensaria o orador de conhecer aquilo sobre o que discursa na medida em que lhe

proporcionaria a habilidade de meramente parecer conhecer agrave multidatildeo para a qual

discursa Soacutecrates acrescenta que no tocante a todas as artes o orador e a retoacuterica

(praticada por Goacutergias) se encontram na condiccedilatildeo de natildeo conhecer as coisas em si

mesmas mas apenas descobrir algum mecanismo persuasivo de modo a parecer agrave

multidatildeo ignorante conhecer mais do que aquele que possui genuiacuteno conhecimento

(Goacuterg 459b-c) Segundo Soacutecrates a retoacuterica natildeo deve ser concebida como uma arte que

impotildee aos ouvintes certas opiniotildees que ensina a compor belos discursos a fim de deixar

vitoriosa a causa ruim e enfraquecer a boa mas deve ser psicagoacutegica ou seja um guia da

alma para que se alcance a verdadeira beleza e justiccedila que eacute o nuacutecleo de todo ensinamento

genuinamente filosoacutefico

Eis o que testemunha tambeacutem o diaacutelogo A Repuacuteblica Na ceacutelebre alegoria da

caverna (Rep 514a-517c) Platatildeo equipara as sombras na caverna agraves questotildees em disputa

judicial E uma vez que as disputas legais atenienses eram famosas pela sua retoacuterica (Fed

272d-e) Platatildeo identifica todas as sutilezas da teacutecnica retoacuterica com as imagens que mais

comumente atraem a atenccedilatildeo do puacuteblico Para ele por todas as suas vidas as pessoas

levam em conta simples alegaccedilotildees sobre questotildees importantes e cada performance

retoacuterica que por atrair mais atenccedilatildeo para a forma do discurso do que para o seu conteuacutedo

tende a deixar a sua audiecircncia mais ignorante do que saacutebia Desse modo os prisioneiros

da alegoria da caverna que tentam enxergar as sombras e disputam por elas representam

todos aqueles cidadatildeos que acreditam no que os oradores lhes dizem

Soacutecrates sustenta que amiuacutede a persuasatildeo dos ouvintes estaacute intrinsecamente

relacionada com o apelo agraves crenccedilas das multidotildees com aquilo que aparenta ser bom belo

e justo em detrimento do conhecimento da verdade Esta advertecircncia tem em vista

sobretudo os mercenaacuterios (ἕκαστος τῶν μισθαρνούντων ἰδιωτῶν) a quem o povo chama

de sofistas os quais natildeo tecircm outro objetivo de ensinamento senatildeo veicular as opiniotildees

que o vulgo expressa nas assembleias refletindo tambeacutem seus prazeres e suas paixotildees e

a isso designam de sabedoria (Rep 493a) Pois quando o orador desconhece o bem e o

mal e ao se apoiar somente no que aparenta ser bom para as multidotildees em conexatildeo com

o conhecimento de suas inclinaccedilotildees naturais pode exaltar o mal como se fosse o bem e

a consequecircncia dessa atitude seraacute inevitavelmente nefasta para a cidade (Fed 260c)

Pois quando um orador que desconhece o bem e o mal encontra uma cidade em igual situaccedilatildeo e tenta persuadi-la natildeo jaacute fazendo o elogio da ldquosombra de um asnordquo como se de um cavalo se tratasse mas exaltando o mal como se fosse o bem quando depois de estudar as inclinaccedilotildees da multidatildeo a convencer a praticar o mal em vez do bem depois disto que fruto julgas tu que a retoacuterica possa colher das sementes que lanccedilou

Vecirc-se por aiacute que para Soacutecrates haacute um tipo de ldquoarte retoacutericardquo espuacuteria falsa

ilegiacutetima e um outro que constitui uma verdadeira arte de falar (ἔτυμος τέχνη) a qual

necessariamente estaacute vinculada agrave verdade (ἀληθείας ἧφθαι) E a maneira pela qual o

orador seraacute capaz de comunicar a verdade no seu discurso em detrimento das opiniotildees

que aparentam ser verdadeiras agraves multidotildees dependeraacute exclusivamente do cultivo da

filosofia (καλλίπαιδά τε Φαῖδρον πείθετε ὡς ἐὰν μὴ ἱκανῶς φιλοσοφήσῃ) Escreve Platatildeo

a este respeito (Fed 261a)

Vinde pois nobres criaturas e convencei Fedro pai da bela progeacutenie de que se natildeo cultivar a filosofia como deve ser nunca seraacute capaz de falar coisa alguma

Soacutecrates separa a filosofia da retoacuterica apresentando-as como se a ordem de

preparaccedilatildeo para o bom discurso fosse o preacutevio domiacutenio de verdades filosoacuteficas A

exposiccedilatildeo que Soacutecrates faz da filosofia e da retoacuterica evidencia que ambas as disciplinas

satildeo distintas A filosofia seria a disciplina principal e a retoacuterica a secundaacuteria pois seria a

filosofia a disciplina que fornece agrave retoacuterica todas as condiccedilotildees para que esta se torne uma

arte legiacutetima Soacutecrates natildeo separa a descoberta da verdade pela filosofia da sua

apresentaccedilatildeo em discursos de modo que a retoacuterica constitui uma mera manifestaccedilatildeo

puacuteblica da filosofia um veiacuteculo de verdades filosoacuteficas destituiacuteda de conteuacutedo proacuteprio e

heterocircnoma Ele ainda afianccedila que o orador que natildeo cultivar a filosofia e por conseguinte

natildeo possuir o conhecimento da verdade mas persistir em caccedilar as opiniotildees das multidotildees

transformaraacute a retoacuterica numa coisa ridiacutecula destituiacuteda de arte (Ibid 262c)

Por conseguinte meu amigo a arte da palavra quem natildeo conhecer a verdade mas ande agrave caccedila de opiniotildees faraacute dela de certo modo coisa ridiacutecula desprovida de arte

Soacutecrates acrescenta que todo discurso deve ser como um organismo vivo de tal

maneira que as partes de um discurso devem guardar um ordenamento interno em relaccedilatildeo

ao todo Um bom discurso deve pois exibir uma harmonia em suas partes em que cada

uma contribui com algo para a estrutura geral do todo O orador deve considerar como

cada parte coopera para a estrutura geral de seu argumento ao mesmo tempo em que

manteacutem a discussatildeo vigorosa e energeacutetica Portanto para que a retoacuterica se torne uma arte

o assunto que se discute deve primeiro ser entendido como um todo (Ibid 264c)

Poderaacutes pelo menos admitir creio eu que todo o discurso deve ser constituiacutedo como um organismo vivo com corpo proacuteprio que natildeo seja aceacutefalo ou aacutepodo mas possua tronco e membros escritos de forma a convir entre si e ao seu todo

Intrinsecamente articulada a essa concepccedilatildeo orgacircnica do discurso e talvez um

desdobramento dela eacute a necessidade de que o orador reuacutena em uma uacutenica ideia as ideias

ou convicccedilotildees que antes estavam difusas em todas as direccedilotildees de tal modo que ao

estabelecer cada definiccedilatildeo resulte claro qualquer assunto que se queira explicar Tal

reuniatildeo em uma unidade conferiraacute ao discurso clareza e consistecircncia (Ibid 265d)

Soacutecrates oferece como exemplo sua definiccedilatildeo de amor (ἔρως) Ele define o amor como a

forccedila da paixatildeo separada da razatildeo que domina a opiniatildeo e se dirige ao prazer da beleza

especialmente a beleza do corpo (Ibid 238c)

Ora quando um desejo desprovido de razatildeo eacute arrastado para o prazer da beleza e prevalece sobre a reflexatildeo que tende para a justiccedila quando aleacutem disso robustecido vigorosamente por desejos anaacutelogos que tendem para a beleza corporal se torna senhor absoluto tal desejo toma o nome dessa forccedila e passa a chamar-se amor

Soacutecrates considera que se tanto o orador quanto o puacuteblico tiverem em mente uma

clara noccedilatildeo das fronteiras do assunto a ser tratado no discurso seraacute menor a probabilidade

de confusatildeo na comunicaccedilatildeo entre eles Se um orador quiser empregar ἔρως para designar

o amor pelo bem e seu puacuteblico em contrapartida definir ἔρως como luxuacuteria entatildeo

provavelmente haveraacute desentendimento Todavia a menccedilatildeo que Soacutecrates faz agrave clareza e

agrave consistecircncia sugere um interesse que supera a mera concordacircncia entre o orador e sua

assistecircncia Soacutecrates quer o proacuteprio orador consistente a respeito do seu assunto e capaz

de compreender a forma que o unifica Portanto se a retoacuterica deve ser uma τέχνη o orador

deve circunscrever o que integra uma definiccedilatildeo deixando entatildeo de fora o que natildeo faz

parte dela ou seja deve precisar os limites do que uma coisa eacute

Na visatildeo de Soacutecrates o orador tambeacutem deve entender a natureza da coisa como um

todo de modo a incluir o que realmente pertence a ela e excluir o que natildeo pertence Ele

diz que se deve juntar em uma uacutenica ideia as vaacuterias realidades dispersas em muitos pontos

para que pela definiccedilatildeo de cada unidade seja possiacutevel tornar evidente o assunto sobre

que se deseja ensinar em cada caso (Ibid 265d)

Um consiste em reduzir a uma ideia uacutenica que se possa abarcar de um relance as vaacuterias realidades dispersas por muitos pontos para que pela definiccedilatildeo de cada unidade se possa tornar evidente o toacutepico sobre que se deseja ensinar em cada caso Foi o que ainda agora se fez a propoacutesito do Amor de que demos a definiccedilatildeo quer a tenhamos apresentado bem quer mal possibilitou pelo menos ao discurso expor os factos duma forma clara e coerente

Todavia muito aleacutem dessa definiccedilatildeo insipiente que visa a princiacutepio expor os fatos

de uma maneira clara e coerente podendo ser remodelada conforme a investigaccedilatildeo

filosoacutefica se aprofunda o orador deve aspirar compreender as coisas de acordo com a

Ideia (ἰδέα) partindo da multiplicidade das sensaccedilotildees para uma unidade que eacute inferida

pela reflexatildeo filosoacutefica E esta atividade chama-se reminiscecircncia (ἀνάμνησις) das

realidades que outrora a alma do filoacutesofo contemplou quando seguia no cortejo de um

deus (Ibid 249b-c)

Mas a alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma que eacute a nossa E isto porque deve o homem compreender as coisas de acordo com o que chamamos Ideia que vai da multiplicidade das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existe Por isso eacute justo que apenas a inteligecircncia do filoacutesofo seja provida de asas jaacute que com a recordaccedilatildeo estaacute continuamente absorvido na medida do possiacutevel nas coisas a cuja contemplaccedilatildeo um deus deve a sua divindade

No diaacutelogo A Repuacuteblica Soacutecrates concebe as Ideias como entidades reais

existindo independentemente dos indiviacuteduos as quais a alma do filoacutesofo deseja

contemplar O filoacutesofo seria aquele que natildeo se entrega agrave multiplicidade das impressotildees

sensoriais nem se deixa levar durante sua vida pela instabilidade das simples opiniotildees

mas orienta a sua alma para a unidade do que existe E acerca do justo e do injusto do

bem e do mal de todas as Ideias o que se diraacute seraacute o mesmo ou seja cada uma delas eacute

uma mas aparecendo por toda parte ser muacuteltipla devido a comunhatildeo que elas mantecircm

com as accedilotildees e com os corpos entre si (Rep 476a) Agrave vista disso somente o filoacutesofo

possuiria um conhecimento no verdadeiro sentido dessa palavra porque mediante a

multiplicidade dos fenocircmenos eacute capaz de contemplar a imagem universal e imutaacutevel das

coisas ndash a Ideia E a partir de tal contemplaccedilatildeo ele pode dizer o que eacute justo e belo por si

enquanto que as opiniotildees das multidotildees a respeito dessas coisas oscilam na penumbra

entre o natildeo-ser e o verdadeiro ser (Ibid 469c-d) Aleacutem disso satildeo raros os que satildeo capazes

de buscar as Ideias como o proacuteprio belo em si e contemplaacute-las em sua essecircncia (Ibid

476c)

Para Giovanni Casertano o esforccedilo filosoacutefico de Platatildeo nos seus diaacutelogos baseia-

se na tentativa de fundar objetivamente a niacutetida contraposiccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso

e tal fundaccedilatildeo somente eacute possiacutevel admitindo a existecircncia das Ideias que satildeo entes ideais

que independem da subjetividade dos discursos Assim comunicar o verdadeiro significa

construir um discurso (retoacuterico) que reflita a existecircncia desses entes ideais independentes

do fluxo dos fenocircmenos e das sensaccedilotildees portanto natildeo contraditoacuterios de modo que as

Ideias imoacuteveis satildeo o criteacuterio para medir a mobilidade o eterno serve para medir o

temporal o objetivo o subjetivo o ser o devir Eacute justamente isso que faz o filoacutesofo e o

dialeacutetico (CASERTANO 2010 43)

Eacute importante destacar que na maior parte dos diaacutelogos platocircnicos as Ideias satildeo

valores morais que fundam os juiacutezos sobre as coisas da vida humana Trata-se de procurar

na vida do indiviacuteduo e da cidade a triacuteade de valores que aparece de uma ponta a outra dos

diaacutelogos (Eutiacutefron Criacuteton Teeteto Primeiro Alcibiacuteades Poliacutetico e Fedro) quais sejam

o justo o belo e o bom Estes conceitos e muitos outros tecircm existecircncia agrave parte da mente

humana como criteacuterios independentes e imutaacuteveis aos quais se devem reportar as

percepccedilotildees e as accedilotildees humanas Dessarte Soacutecrates exige que o orador seja capaz de

apreender a Ideia da justiccedila da beleza e do bem com o objetivo de coletaacute-la em uma

unidade antes de proferir o seu discurso Pode-se dizer entatildeo que Soacutecrates estabelece um

elevadiacutessimo padratildeo para o orador que deseja cumprir os requisitos de uma verdadeira

arte noutros termos Soacutecrates exige que o orador seja efetivamente um filoacutesofo

Tendo em vista a exigecircncia estabelecida por Platatildeo no Fedro segundo a qual o

orador deve necessariamente ser um filoacutesofo em conexatildeo com as caracteriacutesticas e a

atuaccedilatildeo do filoacutesofo em sua cidade ideal exposta no diaacutelogo A Repuacuteblica concluir-se-aacute

que somente uma diminuta classe de homens ilustrados estaraacute apta a exercer a arte

retoacuterica Conforme o registro de Platatildeo somente por volta dos 30 anos um grupo seleto

de indiviacuteduos que se mostrou capaz em todos os campos da educaccedilatildeo anterior como a

ginaacutestica a danccedila os jogos para o aprendizado dos rudimentos da matemaacutetica e da leitura

a poesia as artes marciais o treino militar a geometria a aritmeacutetica a astronomia e a

muacutesica (Rep 522c-e 525b 526c 537b-c) pode estar habilitado ao estudo da dialeacutetica

por um periacuteodo de 5 anos (Ibid 537c-d) Assim o aacutepice destas aprendizagens eacute a

dialeacutetica que culmina no conhecimento do bem (ἀγαθός) de modo que ela constitui a

coroaccedilatildeo de todos os estudos Todavia os futuros dialeacuteticos precisam possuir naturezas

bem dotadas de muitas qualidades diligecircncia amor pela verdade temperanccedila coragem

e magnificecircncia (Ibid 535d-536b) Apoacutes os 35 anos eles podem servir nos cargos

inferiores da cidade civis e militares durante 15 anos (Ibid 539e-540a) E somente aos

50 anos os melhores dentre eles satildeo compelidos a voltar os olhos da alma para o

verdadeiro bem revezando-se pelo resto da vida na organizaccedilatildeo da cidade dos cidadatildeos

e de si mesmos tendo sempre por modelo a Ideia do bem (Ibid 540a-b)

Chegados aos cinquenta anos os que sobreviveram e em tudo e de todos os pontos de vista foram os primeiros nos trabalhos e nas ciecircncias jaacute devem ser conduzidos ao seu termo final e forccedilados a abrir os olhos da alma e a contemplar aquilo que por si mesmo fornece a luz para todos Tendo em vista o proacuteprio bem servindo-se dele como modelo deveratildeo manter em ordem a cidade os que a habitam e a si mesmos durante o resto da vida cada uma por sua vez dedicando agrave filosofia a maior parte de seu tempo Quando poreacutem chegar sua vez cada um suportaraacute o peso da accedilatildeo poliacutetica e exerceraacute o governo em favor da cidade natildeo porque isso eacute algo honroso mas algo inevitaacutevel

No que concerne agrave educaccedilatildeo dos filoacutesofos Platatildeo estabelece que se deva submetecirc-

los ao mais excelente e rigoroso estudo (Ibid 503b-e) Mas ao ser pressionado a explicar

esta afirmaccedilatildeo ele lanccedila matildeo de uma seacuterie de imagens para sugerir a Ideia de bem que

constitui o auge da investigaccedilatildeo filosoacutefica a relaccedilatildeo dos seres humanos com a Ideia de

bem se assemelha agrave relaccedilatildeo dos prisioneiros em uma caverna com o sol (Ibid 514a-517c)

A alegoria da caverna descreve o processo do filoacutesofo que consegue elevar-se do mundo

sensiacutevel pela contemplaccedilatildeo das Ideias E eacute justamente esta contemplaccedilatildeo que lhe

permitiraacute depois descer novamente ao mundo concreto para guiar os outros homens

conforme a Ideia suprema de bem Mas por ser muito difiacutecil definir o que eacute a Ideia de

bem Platatildeo tenta elucidaacute-la por meio da imagem do sol Platatildeo estabelece entatildeo uma

analogia entre o sol e o bem tal como o sol mesmo dando vida cor e nutriccedilatildeo a todas as

coisas na terra a todos os objetos sensiacuteveis natildeo se identifica com eles da mesma forma

o bem propicia a verdade e a faculdade de conhecer daacute a todos os seres cognosciacuteveis a

sua existecircncia e o seu ser mas natildeo se identifica com nenhum deles pelo contraacuterio

transcende-os por sua dignidade e potecircncia E por ser o princiacutepio mais elevado a melhor

coisa do mundo e a mais real a Ideia de bem promete justificar o governo exercido por

filoacutesofos

Assim a menos que algueacutem seja capaz de dar uma explicaccedilatildeo da Ideia do bem

distingui-la de tudo o mais e possa sobreviver a todas as objeccedilotildees como se estivesse numa

batalha procurando examinar as coisas natildeo conforme a opiniatildeo mas de acordo com a

essecircncia e passar por tudo isso com sua explicaccedilatildeo ainda intacta natildeo poderaacute ser dito que

ele conhece o bem propriamente dito ou qualquer outro bem (Ibid 534c-d) Isto posto

aquele que domina a praacutetica filosoacutefica de procurar os princiacutepios mais gerais por detraacutes

dos fenocircmenos particulares conheceraacute a Ideia de bem que explica em que consiste a

bondade de tudo o mais de modo que sem o conhecimento dessa Ideia natildeo se pode pensar

coerentemente sobre questotildees morais e natildeo se pode planejar um padratildeo moral para a vida

humana (Ibid 505a-b)

Com efeito os poucos indiviacuteduos que resistirem aos rigorosos testes impostos aos

que pretendem ser governantes e destacarem-se nos trabalhos e nas ciecircncias sendo por

conseguinte privilegiados por poderem contemplar as Ideias seratildeo os uacutenicos capazes de

determinar que tipo de vida eacute virtuoso a educaccedilatildeo mais adequada agrave formaccedilatildeo moral e

intelectual dos cidadatildeos bem como a melhor maneira de proferir um bom discurso E

quando se trata de discursos deve-se admitir que existem especialistas assim como

ocorre na construccedilatildeo de navios na medicina ou em qualquer outra arte

No diaacutelogo Protaacutegoras Platatildeo enfatiza que quando nas assembleias procura-se

deliberar sobre assuntos de construccedilatildeo os arquitetos satildeo chamados para opinar sobre o

edifiacutecio a ser levantado e o mesmo se aplicaria na construccedilatildeo de navios (Prot 319b-c)

No diaacutelogo Criacuteton esta noccedilatildeo tambeacutem aparece quando Soacutecrates descreve um especialista

hipoteacutetico que atuaria no domiacutenio da moral como um meacutedico em relaccedilatildeo ao corpo

humano Sendo assim um especialista deve ser obedecido independentemente das

opiniotildees de natildeo especialistas e somente aquele merece ser ouvido (Criacutet 47a-48b) Platatildeo

procura estender a validade dessa noccedilatildeo ao uso do discurso retoacuterico no seio da cidade

por isso ele rejeita a pretensatildeo democraacutetica de fazer do discurso retoacuterico algo

universalmente partilhado pois na deliberaccedilatildeo acerca da administraccedilatildeo da cidade

qualquer indiviacuteduo poderia emitir suas opiniotildees mesmo natildeo possuindo competecircncia

alguma nos assuntos eacutetico-poliacuteticos (Prot 319d)

No entanto o criteacuterio de validade de um discurso natildeo deve relacionar-se com uma

regra majoritaacuteria qualquer pois a arte retoacuterica seraacute antes de mais nada um assunto que

compete aos filoacutesofos Em relaccedilatildeo a este assunto Werner Jaeger sublinha que o objetivo

visado no diaacutelogo A Repuacuteblica consiste na educaccedilatildeo do futuro governante enquanto que

no diaacutelogo Fedro a ecircnfase consiste na formaccedilatildeo do orador e do escritor E o que ambas

as obras comungariam seria a exigecircncia de uma espeacutecie de formaccedilatildeo integral do espiacuterito

Assim a ideia central do diaacutelogo A Repuacuteblica seria literalmente repetida no programa de

uma formaccedilatildeo filosoacutefica do orador elaborada no diaacutelogo Fedro Para chegar a essa meta

Platatildeo estabelece um percurso longo e trabalhoso Eacute sempre para a meta mais elevada

nunca a mais baixa que a filosofia educacional de Platatildeo se encaminha e vistas as coisas

dali natildeo haacute caminho mais curto nem mais cocircmodo para quem quiser cumprir plenamente

a missatildeo de ser um bom orador Aliaacutes natildeo haacute a miacutenima duacutevida de que eacute em sentido eacutetico

que Platatildeo concebe tal missatildeo de modo que o rodeio filosoacutefico seria inevitaacutevel ainda que

se julgasse elevada demais essa meta (JAEGER 2003 1270)

Embora Platatildeo estabeleccedila rigorosas condiccedilotildees para a formaccedilatildeo do orador ele

encontra no passado de Atenas o protoacutetipo de bom orador na figura do estadista e

estratego Peacutericles No Fedro o personagem Soacutecrates reconhece o interesse de Peacutericles

pelas ciecircncias29 e o considera a perfeita representaccedilatildeo do orador porque antes de adquirir

a excelecircncia na arte do discurso ele teria se dedicado a sublimes especulaccedilotildees filosoacuteficas

Peacutericles seria o mais perfeito de todos na arte retoacuterica porque todas as artes que satildeo

grandes exigem loquacidade e altas especulaccedilotildees sobre a natureza das coisas Na verdade

foi justamente isso que Peacutericles aleacutem dos seus dotes naturais soube adquirir E tendo

29 Ao redor de Peacutericles se reuniram filoacutesofos e sofistas de toda espeacutecie de passagem pela cidade de Atenas Os filoacutesofos Anaxaacutegoras e Zenatildeo de Eleia e o sofista Protaacutegoras foram os mais eminentes Aleacutem destes ele conviveu intimamente com grandes arquitetos escultores muacutesicos e tragedioacutegrafos (CASERTANO 201018)

encontrado Anaxaacutegoras Peacutericles embebeu-se de sublimes especulaccedilotildees e atingiu a

natureza do espiacuterito e da inteligecircncia assuntos de que Anaxaacutegoras muito se ocupava

extraindo da filosofia tudo o que lhe fosse uacutetil para o exerciacutecio da arte retoacuterica (Fed

269e-270a)

42 A retoacuterica e o meacutetodo dialeacutetico

Soacutecrates deveras reduz a retoacuterica agrave filosofia e concebe a essecircncia da boa retoacuterica

como dialeacutetica (διαλεκτική) Ele relaciona a boa retoacuterica com a necessidade de investigar

a natureza do assunto em questatildeo e a imagem de um corpo vivo serve para ligar a ordem

natural com a ordem do discurso Natildeo se pode por exemplo separar artificialmente a

disposiccedilatildeo das partes de um animal sem destruiacute-lo Semelhantemente Soacutecrates diz que o

arranjo de um discurso natildeo pode ser totalmente separado da reuniatildeo (συναγωγή) e divisatildeo

(διαίρεσις) adequadas de seu conteuacutedo de acordo com a natureza Dessarte a dialeacutetica

constituiria um elemento central para a boa retoacuterica pois o bom orador deve segundo ele

ter a capacidade de separar os assuntos em espeacutecies segundo as articulaccedilotildees naturais sem

causar roturas em nenhuma parte diferente do que faria um mau accedilougueiro (Ibid 265e)

Assim para dizer o que alguma coisa eacute conveacutem indicar seu gecircnero referindo-a a classe

de coisas na qual se reuniu tudo o que a ela se assemelha procedendo-se na sequecircncia agrave

divisatildeo do gecircnero em espeacutecies recortando o que distingue uma da outra E Soacutecrates

denomina aqueles que procedem desse modo de dialeacuteticos (Ibid 266c)

Dessas divisotildees e siacutenteses eu mesmo Fedro sou um apaixonado a fim de ser capaz de falar e de pensar E se eu julgar qualquer outro capaz de observar a unidade e a pluralidade nascida daquela a esse eu perguntarei no encalccedilo dos seus passos como se fora um deus Ora aos que satildeo capazes de o fazer eu chamo-lhes pelo menos ateacute este momento dialeacuteticos ndash se os nomeio retamente ou natildeo um deus o sabe

Aos olhos de Soacutecrates o processo de dividir e de reunir conduz agrave aprendizagem do

falar e do pensar O dialeacutetico (διαλεκτικoacuteς) eacute aquele capaz de realizar isso numa

perspectiva de unidade e multiplicidade A dialeacutetica no seu exerciacutecio de perguntar e

responder de dividir e de aproximar as partes chega agrave verdade das coisas Assim ela

busca a verdade enquanto que a retoacuterica preocupa-se apenas com a relaccedilatildeo entre o orador

e o puacuteblico E uma vez que a retoacuterica precisa retirar os seus conteuacutedos da filosofia que a

submete ldquodespoticamenterdquo privando-a de autonomia a genuiacutena retoacuterica ateacute poderia ser

chamada de dialeacutetica

A dialeacutetica que pode ser assimilada ao meacutetodo da divisatildeo (διαίρεσις) consiste na

teacutecnica de investigaccedilatildeo conjunta realizada mediante a colaboraccedilatildeo de duas ou mais

pessoas segundo o procedimento de perguntar e responder A dialeacutetica constitui o aacutepice

a que pode chegar a investigaccedilatildeo conjunta e compotildee-se basicamente de dois momentos

Remeter as coisas dispersas para uma ideia uacutenica e em definir a ideia de tal modo que

possa ser veiculada a todos a exemplo da definiccedilatildeo geral de amor esboccedilada por Soacutecrates

que consiste num desejo desprovido de razatildeo (loucura) que arrasta o amante para o prazer

da beleza E dividir novamente a ideia em suas espeacutecies seguindo suas interaccedilotildees naturais

evitando fragmentar suas partes No que tange agrave definiccedilatildeo de amor Soacutecrates reuacutene duas

coisas que antes natildeo estavam relacionadas a saber a loucura que adveacutem aos homens em

virtude do descontrole dos proacuteprios apetites (Ibid 237d-238c) e a loucura que eacute inspirada

pelos deuses (Ibid 244a-c) e ao identificar duas formas de loucura Soacutecrates distinguiu

nesta segunda classe outros quatro tipos especiacuteficos os quais ulteriormente seratildeo

analisados (Ibid 265b)

A esse respeito eacute oportuno trazer agrave baila a anaacutelise de Pierre Hadot sobre a formaccedilatildeo

dialeacutetica na Academia Ele ressalta que essa formaccedilatildeo era absolutamente necessaacuteria na

medida em que os disciacutepulos de Platatildeo eram destinados a desempenhar seu papel na

cidade pois numa civilizaccedilatildeo que tinha por centro o discurso poliacutetico era preciso formar

indiviacuteduos para um perfeito domiacutenio da palavra e do raciociacutenio No entanto a dialeacutetica

platocircnica natildeo se reduziria a um exerciacutecio puramente loacutegico mas correspondia a um

exerciacutecio espiritual que exige dos interlocutores uma espeacutecie de ascese Aliaacutes natildeo se trata

de uma luta entre dois indiviacuteduos na qual o mais haacutebil imporaacute seu ponto de vista mas de

um esforccedilo realizado em comum por dois interlocutores que desejam estar de acordo com

as exigecircncias racionais do discurso sensato Hadot tambeacutem enfatiza que os sofistas

pretenderam formar os jovens para a vida poliacutetica mas Platatildeo quis fazer isso dotando-os

de um saber bem superior agravequele que os sofistas poderiam ofertar de um saber que de

uma parte estaria fundado sobre um meacutetodo racional rigoroso e de outra seria

inseparaacutevel do amor do bem e da transformaccedilatildeo interior do homem Dessa forma Platatildeo

natildeo pretendia simplesmente formar poliacuteticos e oradores haacutebeis mas verdadeiros filoacutesofos

(HADOT 2014 94)

Hadot acrescenta que a dialeacutetica praticada na Academia de Platatildeo era uma teacutecnica

de discussatildeo submetida a regras precisas Uma ldquoteserdquo era apresentada ou seja uma

proposiccedilatildeo interrogativa do tipo pode-se ensinar a virtude Um interlocutor atacava a

tese e outro a defendia O primeiro atacava interrogando ou seja apresentando ao

defensor da tese questotildees habilmente escolhidas a fim de induzi-lo a admitir proposiccedilotildees

contraacuterias agrave tese proposta enquanto que o proacuteprio interrogador natildeo teria uma tese (Ibid

2014 98) No entanto a dialeacutetica ensinava natildeo somente a atacar mas tambeacutem a responder

com o intuito de frustrar as armadilhas do interrogador (Ibid 2014 99) Aleacutem disso a

dialeacutetica exigia que os interlocutores pretendessem efetivamente dialogar por isso jaacute natildeo

eacute um dos interlocutores que impotildee sua verdade ao outro pelo contraacuterio o diaacutelogo ensina

a se colocar no lugar do outro e a superar se for o caso o proacuteprio ponto de vista Assim

os interlocutores seriam capazes de descobrir por eles mesmos e neles mesmos uma

verdade independente deles na medida em que se submetessem a uma autoridade superior

(Ibid 2014 100)

Prosseguindo na elucidaccedilatildeo da dialeacutetica eacute pertinente destacar a exposiccedilatildeo que

Platatildeo faz desse meacutetodo de investigaccedilatildeo filosoacutefica no mais proeminente dos seus

diaacutelogos30 Ele afirma que soacute se pode determinar o caraacuteter ou a natureza da dialeacutetica em

relaccedilatildeo com os demais tipos de saberes humanos Primeiramente ele compara a dialeacutetica

com as chamadas τέχναι ou disciplinas empiacutericas as quais dizem respeito agraves opiniotildees e

anseios dos homens e servem para produzir algum objeto ou para cuidar do que proveacutem

de produtos naturais ou artificiais (Rep 533b)

Isso pelo menos disse eu ningueacutem nos contestaraacute se dissermos que nenhum outro meacutetodo tenta sistematicamente apreender em cada coisa o que ela eacute Ao contraacuterio todas as outras artes se referem a opiniotildees e desejos dos homens ou estatildeo todas elas voltadas para processos de geraccedilatildeo ou composiccedilatildeo ou para cuidados com produtos naturais ou artificiais

Platatildeo tambeacutem compara a dialeacutetica com todas as disciplinas matemaacuteticas Ele

afirma que as disciplinas matemaacuteticas como a geometria e as que dela derivam em certa

30 De acordo com Giovanni Casertano o diaacutelogo A Repuacuteblica pode ser considerado a obra mais capital de Platatildeo pois nele estatildeo presentes todos os temas e problemaacuteticas da filosofia platocircnica da teoria das Ideias agrave teoria da alma etc embora sejam tratados sob uma perspectiva poliacutetica e depois do diaacutelogo Leis eacute o mais extenso Aleacutem disso o diaacutelogo em apreccedilo eacute uma obra a que Platatildeo dedicou muitos anos de sua vida de escritor e filoacutesofo entre 360 e 348 aC isto eacute entre os 68 e 80 anos ele revecirc reescreve em parte e debruccedila-se sobre o diaacutelogo e segundo um antigo relato no momento de sua morte foi encontrada junto agrave sua cama uma taacutebua na qual estava a transcrever e a modificar o proecircmio de A Repuacuteblica (CASERTANO 2011 6 9)

medida se aproximam do verdadeiro ser poreacutem soacute o alcanccedilam como em sonhos pois

seriam incapazes de contemplaacute-lo despertas O seu princiacutepio com efeito eacute algo que elas

ignoram e tudo o mais que se conecta com as matemaacuteticas estaria entretecido por uma

certa ignoracircncia (Ibid 533c) por isso a mera aproximaccedilatildeo (ὁμολογία) das matemaacuteticas

com o ser natildeo poderia a rigor ser chamada de ἐπιστήμη ou seja natildeo seria um

conhecimento filosoacutefico stricto sensu Dessarte somente a dialeacutetica proporcionaria um

conhecimento das coisas eacuteticas e poliacuteticas e um conhecimento mais seguro do que as

disciplinas matemaacuteticas poderiam oferecer

Outrossim a dialeacutetica constitui a ciecircncia que arrasta e leva para o alto o olho da

alma que estaacute enterrado num pacircntano baacuterbaro e para este propoacutesito serve-se das

matemaacuteticas como um instrumento auxiliar ou como uma espeacutecie de propedecircutica (Ibid

533d) Aliaacutes o saber conferido por Platatildeo agrave dialeacutetica eacute tatildeo superior ao saber matemaacutetico

quanto ao conteuacutedo do ser como as coisas reais do mundo sensiacutevel o satildeo quanto agraves suas

sombras ou imagens refletidas O dialeacutetico portanto eacute aquele que compreende a essecircncia

de cada coisa pois do mesmo modo ele deve estar em condiccedilatildeo de discernir a Ideia do

bem distinguindo-a de todas as outras ou seja separar o bem em si das diversas coisas

que satildeo mormente chamadas boas (Ibid 534c-d)

Entatildeo acontece o mesmo a respeito do bem Se algueacutem natildeo for capaz de definir pela razatildeo a ideia do bem distinguindo-a de todas as outras e como num combate passando atraveacutes de todas as objeccedilotildees natildeo estiver disposto a natildeo refutaacute-las segundo a opiniatildeo mas segundo a essecircncia natildeo atravessar todas as dificuldades como uma razatildeo inabalaacutevel se for essa a postura dele natildeo afirmaraacutes que ele natildeo conhece nem o proacuteprio bem nem algum outro bem Mas se apreende uma imagem do bem eacute pela opiniatildeo que a apreende natildeo pela ciecircncia e a vida de agora passa-a sonhando e cochilando sem despertar antes de chegar ao Hades e laacute dormir completamente

Platatildeo sustentava tanto na Academia como nos seus diaacutelogos da maturidade que a

compreensatildeo dos fenocircmenos que ocorrem no mundo fiacutesico depende da hipoacutetese da

existecircncia de uma realidade superior que somente pode ser conhecida pela alma do

filoacutesofo constituiacuteda de arqueacutetipos eternos a saber as Ideias dos quais o mundo concreto

seria o simulacro imperfeito e pereciacutevel Todavia atraveacutes da dialeacutetica que constitui o

meacutetodo por excelecircncia da filosofia eacute possiacutevel ascender do mundo fiacutesico que eacute percebido

pelos oacutergatildeos dos sentidos e objeto apenas de opiniotildees muacuteltiplas e mutaacuteveis agrave

contemplaccedilatildeo dos modelos ideais que satildeo os objetos da verdadeira ciecircncia

Constatamos ateacute aqui que a dialeacutetica constitui um elemento central para a boa

retoacuterica mas existe outro aspecto igualmente importante que consiste no conhecimento

que o orador deve possuir a respeito da alma humana (ψυχή) O orador que pretende

ensinar a arte da palavra com rigor a qualquer pessoa deve estar apto a demonstrar a

essecircncia do objeto a que vai aplicar os seus discursos qual seja a alma humana (Fed

270e) Desse modo o orador deve compreender a natureza da alma natildeo agrave maneira dos

sofistas mas com rigorosa exatidatildeo (ἀκριβείᾳ) deve conhecer se a alma eacute simples ou

multiforme e o que ela tem a capacidade de fazer e de sofrer tanto como um todo quanto

em suas partes31 Noutros termos o orador deve mostrar qual seja a accedilatildeo que por sua

natureza a alma estaacute apta a exercer sobre outras coisas e por conseguinte qual a

influecircncia que pode sofrer por parte destas (Ibid 271a)

Eacute entatildeo evidente que Trasiacutemaco e todo aquele que se esforce por ensinar a arte oratoacuteria devem comeccedilar por descrever a alma com toda a exatidatildeo e por fazer ver se por ventura ela constitui uma coisa una e homogeacutenea ou se agrave maneira do corpo eacute multiforme Eis o que chamamos mostrar a natureza de alguma coisa

Depois de classificar tanto as almas quanto os discursos o orador deve adequar

cada tipo de alma com cada tipo de discurso explicando as razotildees pelas quais uma alma

eacute necessariamente persuadida pelos discursos de certo tipo e natildeo de outro (Ibid 271a-b)

Em segundo lugar descreve de que modo costuma o objeto produzir ou sofrer qualquer acccedilatildeo e sob o efeito de quecirc [] Em terceiro apoacutes ordenar os geacuteneros de discursos os geacuteneros da alma e suas modalidades deve referir todas as relaccedilotildees causais ajustando os geacuteneros de uns aos da outra e mostrando com que discursos e devido

31 A menccedilatildeo no Fedro agraves partes da alma pode ser melhor compreendida em relaccedilatildeo com um dos temas centrais do livro IV do diaacutelogo A Repuacuteblica no qual Platatildeo divide a alma humana em trecircs partes cada uma possuindo uma faculdade especiacutefica Escreve Platatildeo a este respeito (Rep 436a-b) ldquoMas jaacute que fica difiacutecil saber se realizamos cada atividade graccedilas a mesma faculdade ou sendo elas trecircs usamos cada uma delas para uma atividade diferente isto eacute se aprendemos com uma irritamo-nos graccedilas a outra faculdade que temos e noacutes ainda com uma terceira desejamos os prazeres da comida e da geraccedilatildeo de filhos e tudo o mais que tem afinidade com estes atos ou se com a alma inteira fazemos cada um desses atos quanto nos pomos em accedilatildeordquo Com efeito a primeira faculdade da alma eacute concupiscente A alma concupiscente eacute irracional estaacute situada no baixo ventre e busca a comida a bebida o sexo e os prazeres de maneira geral No entanto estas inclinaccedilotildees que satildeo irracionais podem ser dominadas atraveacutes da educaccedilatildeo moral e resultar na virtude da temperanccedila A segunda faculdade da alma eacute irasciacutevel e estaacute situada no peito porquanto se irrita e se enraivece contra tudo quanto possa vir a ameaccedilar a seguranccedila do corpo A alma irasciacutevel eacute responsaacutevel pela proteccedilatildeo do corpo e semelhantemente agrave alma concupiscente eacute irracional No entanto atraveacutes da educaccedilatildeo moral a inclinaccedilatildeo da alma irasciacutevel agrave agressividade pode resultar na virtude da coragem Finalmente a terceira faculdade da alma eacute racional situada na cabeccedila eacute a faculdade do conhecimento Eacute a parte espiritual e imortal da alma sua funccedilatildeo ativa superior e eacute essa parte da alma que deve exercer domiacutenio sobre as demais partes Isto posto para que seja possiacutevel a obtenccedilatildeo da justiccedila que constitui para Platatildeo a virtude fundamental tanto para o cidadatildeo quanto para a cidade eacute necessaacuterio que a alma racional domine a alma concupiscente e a alma irasciacutevel

a que causa uma alma se deixa necessariamente persuadir e outra desobedece

O orador deve pois estar apto para classificar o gecircnero dos discursos e das almas

mostrar as influecircncias que estas sofrem e as causas dessas influecircncias Precisa tambeacutem

saber comparar cada gecircnero do primeiro grupo com cada um do segundo e ensinar por

qual tipo de discurso cada gecircnero de alma eacute necessariamente persuadido destacar as

causas dessa persuasatildeo e as causas pelas quais os outros gecircneros natildeo se deixam persuadir

Assim o poder de persuasatildeo do orador se evidenciaria pela psicagogia (ψυχαγωγία) ou

seja pela faculdade de governar as almas (Ibid 261b) donde decorre que aquele que

deseja tornar-se orador necessariamente deve conhecer quantas formas existem na alma

(τὸν μέλλοντα ῥητορικὸν ἔσεσθαι ἀνάγκη εἰδέναι ψυχὴ ὅσα εἴδη ἔχει) Estas formas satildeo

em certo nuacutemero e tecircm suas proacuteprias qualidades por isso os homens possuem caracteres

distintos (Ibid 271d)

Depois de realizada a classificaccedilatildeo das almas deveraacute o orador fazer a distinccedilatildeo de

cada tipo de discurso em suas diferentes qualidades porquanto existem homens que satildeo

persuadidos por certos discursos enquanto que os mesmos discursos natildeo produziratildeo

nenhum efeito na alma de outrem Assim os ouvintes com um determinado estado de

espiacuterito ou dotados de caraacuteter firme soacute podem ser levados a agir em determinado sentido

por meio de recursos oratoacuterios escolhidos de acordo com sua maneira de ser Por essa

razatildeo descobrir os fundamentos psicoloacutegicos de toda a influecircncia sobre os homens eacute uma

das incumbecircncias do bom orador (Ibid 271d)

Entatildeo uma vez definidas essas o nuacutemero de espeacutecies de discursos eacute o mesmo e cada um com caracteriacutesticas especiacuteficas Por isso uns homens sob a accedilatildeo de determinados discursos e por determinado motivo tornam-se obedientes a certas convicccedilotildees outros poreacutem com natureza diferente natildeo de deixam persuadir pelas mesmas razotildees

Eacute manifesto que o orador precisa influir sobre a alma humana poreacutem natildeo eacute tanto

sobre o mero ornato formal do discurso que a verdadeira arte retoacuterica versa eacute antes sobre

a ψυχαγωγία porquanto se quiser dirigir adequadamente o auditoacuterio o orador deve

conhecer o mundo da alma humana com todas as suas emoccedilotildees e com todas as suas forccedilas

Aleacutem disso Platatildeo natildeo se contenta com a exigecircncia teoacuterica de elaborar um sistema

universal de categorias psicoloacutegicas em vista do seu uso na arte retoacuterica mas ele insiste

na aplicaccedilatildeo praacutetica desses conhecimentos nos casos concretos e de maneira determinada

(JAEGER 2003 1268-1269)

Depois que o orador tiver dominado todos esses assuntos eacute necessaacuterio aplicar o

conhecimento adquirido num contexto especiacutefico Soacutecrates enfatiza a noccedilatildeo de ldquotempo

exatordquo (καιρός) para aplicar esse conhecimento pois se o orador natildeo empregar o discurso

correto no momento oportuno todo o conhecimento retoacuterico natildeo teraacute nenhuma utilidade

Assim tendo em vista o benefiacutecio de sua audiecircncia o orador deve saber quando falar

mas tambeacutem quando natildeo dizer nada Eacute possiacutevel assegurar entatildeo que Soacutecrates natildeo estaacute

interessado somente no conhecimento intelectual de um determinado assunto e da

natureza da alma humana mas tambeacutem no conhecimento praacutetico que consiste em como

aplicar as diversas noccedilotildees necessaacuterias para a formaccedilatildeo do bom orador em contextos

especiacuteficos (Fed 272a) De acordo com a anaacutelise de Marina McCoy sobre o diaacutelogo

Fedro a atenccedilatildeo de Soacutecrates ao καιρός o momento certo e ao modo como ele fala mostra

sensibilidade agrave natureza situada do conhecimento humano Se o καιρός inclui uma noccedilatildeo

de improviso em como responder ao puacuteblico no momento mais adequado Soacutecrates seria

um verdadeiro mestre de improvisaccedilatildeo Natildeo obstante Soacutecrates estaacute sempre orientado

para as Ideias (ou Formas) ou seja as verdades imutaacuteveis agraves quais eacute atraiacutedo e agraves quais

ele espera atrair os seus interlocutores de modo que a atenccedilatildeo de Soacutecrates ao καιρός

reflete seu amor e sua preocupaccedilatildeo com aqueles Isto posto o seu uso na retoacuterica natildeo eacute

orientado somente agrave persuasatildeo de seu interlocutor de modo a acreditar nele mas ao amor

e agrave busca das Ideias O amor verdadeiro pelo puacuteblico requer amaacute-lo o suficiente para

conduzi-lo aleacutem de si mesmo como orador ou escritor em direccedilatildeo agraves Ideias Agrave vista disso

a retoacuterica filosoacutefica pode ser considerada uma ponte entre as Ideias eternas e imutaacuteveis

e a compreensatildeo parcial e limitada da verdade que caracteriza a natureza situada do

conhecimento humano (MCCOY 2010 211)

Em resumo para se ter domiacutenio da arte retoacuterica nos moldes aventados por Soacutecrates

deve-se cumprir os seguintes requisitos compreender a verdade sobre o assunto em

questatildeo tanto o todo quanto a articulaccedilatildeo de suas partes compreender com exatidatildeo

natureza da alma humana saber como conduzir uma audiecircncia especiacutefica agrave verdade

proferir um discurso claro e vigoroso de acordo com a natureza do material e finalmente

eacute necessaacuterio que a combinaccedilatildeo de todos esses elementos sejam eficazmente aplicados no

momento mais adequado

Aleacutem do mais conveacutem sublinhar um traccedilo da personalidade de Soacutecrates que se

destaca tanto no diaacutelogo Defesa de Soacutecrates (Def Soacutec 31c-d) quanto no diaacutelogo Fedro

(Fed 238e-241d) qual seja a influecircncia de sua divindade pessoal (δαιμόνιον) sobre sua

maneira de pronunciar um discurso e sobre sua maneira de agir Logo apoacutes a pronunciaccedilatildeo

do seu primeiro discurso (Ibid 238e-241d) Soacutecrates declara a Fedro que no momento em

que se preparava para atravessar o rio manifestou-se nele o costumeiro ldquosinal divinordquo

que amiuacutede o proiacutebe de fazer o que tem em mente (ἀεὶ δέ με ἐπίσχει ὃ ἂν μέλλω πράττειν)

Nesse contexto o δαιμόνιον natildeo deixou Soacutecrates partir antes de se purificar como se

tivesse cometido uma impiedade (ἡμαρτηκότα) contra a divindade A impiedade

mencionada por Soacutecrates refere-se ao primeiro discurso proferido por este a Fedro no qual

aquele natildeo havia exposto adequadamente as qualidades de Eros que eacute uma divindade

pois se Eros eacute filho da deusa Afrodite (Ibid 242c-243a) entatildeo Eros eacute um ser divino32

Assim Soacutecrates deixa para traacutes a etapa de tratar o amor como uma afecccedilatildeo humana

doentia e inicia-se uma nova etapa para revelar o amor como uma das quatro daacutedivas da

loucura advinda dos deuses Esta segunda etapa chama-se palinoacutedia (παλινῳδία) termo

que remonta agrave forma de purificar-se posta em praacutetica por Estesiacutecoro o qual evitou ser

punido com a cegueira compondo versos de retrataccedilatildeo (Ibid 243a-b)

Marina McCoy destaca que na palinoacutedia Soacutecrates segue estreitamente a abordagem

de Estesiacutecoro em seu proacuteprio discurso tanto em seu estilo liacuterico quanto no modo em que

ele se dedica a um tema eacutepico Soacutecrates faz alusatildeo a uma histoacuteria contada por Estesiacutecoro

de quem se diz acometido de cegueira apoacutes escrever uma histoacuteria caluniadora contra

Helena de Troia Ele teria obtido sua visatildeo somente depois de contar uma segunda versatildeo

na qual afirmava que apenas o fantasma de Helena foi levado a Troia Soacutecrates tambeacutem

descreve seu proacuteprio discurso como uma renuacutencia a seu primeiro discurso no qual critica

o amor O primeiro discurso de Soacutecrates corretamente identifica os males de amantes

egoiacutestas preocupados com sua proacutepria satisfaccedilatildeo O erro deste primeiro discurso eacute que

ele era muito simploacuterio e difamava Eros que eacute um ser divino (MCCOY 2010 190)

Aleacutem disso McCoy sublinha que a palinoacutedia mostra que Soacutecrates usa seu discurso

para conduzir a alma de Fedro para o amor Soacutecrates tambeacutem natildeo se esquiva de empregar

uma linguagem eroacutetica com Fedro Assim desde os primeiros momentos dramaacuteticos do

diaacutelogo Fedro Soacutecrates sugere que ele pode estar tentando seduzir Fedro Todavia a

seduccedilatildeo de Soacutecrates em relaccedilatildeo a Fedro tem o escopo de reorientar o amor que este tem

pelos discursos em direccedilatildeo agraves Ideias e agrave filosofia de modo que a seduccedilatildeo natildeo eacute de natureza

32 No diaacutelogo A Repuacuteblica Platatildeo apresenta basicamente o mesmo ponto de vista acerca dos deuses Para ele os deuses devem ser representados natildeo como a causa de todas as coisas que acontecem mas somente das coisas boas (Rep 379a-380c) os deuses natildeo mudam natildeo assumem formas multiplas tampouco enganam os homens (Ibid 380d-382a) eles natildeo mudam nem enganam os outros nem com apariccedilotildees nem com palavras nem com o envio de sinais em vigiacutelia ou em sonho (Ibid 382e) e quando se fala dos deuses eacute necessaacuterio que os discursos que se fazem enfatizem somente suas altas qualidades morais por exemplo de Hades natildeo se pode falar que tem falta de coragem pois se ele eacute um deus deve ser representado como destemido em relaccedilatildeo agrave morte (Ibid 386a-b)

sensiacutevel ou carnal Os discursos de Soacutecrates levam em consideraccedilatildeo o amor de Fedro

pelos discursos em seu uso de estilo que supera o discurso de Liacutesias E cada discurso por

seu turno tem por objetivo afastar Fedro do amor pelos discursos em si e aproximaacute-lo do

amor pelas Ideias O uso que Soacutecrates faz da linguagem eroacutetica para falar sobre filosofia

estimula Fedro a considerar o familiar anseio de amor sexual por outra pessoa numa

ligaccedilatildeo com as Ideias Soacutecrates ainda sugere que se Fedro cogitar que jaacute conhece a

extensatildeo do desejo eroacutetico por outra pessoa ele ainda natildeo mergulhou nas profundezas do

amor pois a sua descriccedilatildeo da profundidade do amor filosoacutefico constitui um desafio a

Fedro a vivenciaacute-lo por si mesmo (Ibid 2010 193-195)

Com efeito a tese geral da palinoacutedia de Soacutecrates consiste em provar que a loucura

(μανίας) natildeo eacute simplesmente um mal pois haacute grandes bens advindos aos seres humanos

mediante a loucura por daacutediva divina (θείᾳ μέντοι δόσει διδομένης) E a loucura inspirada

pelos deuses se manifesta de quatro maneiras distintas na profecia (e na adivinhaccedilatildeo)

daacutediva de Apolo na revelaccedilatildeo da cura de certas doenccedilas daacutediva de Dioniso na poesia

daacutediva das Musas e finalmente na contemplaccedilatildeo das Ideias daacutediva de Eros (que eacute a

precondiccedilatildeo para o verdadeiro discurso retoacuterico) Desse modo o amor para Soacutecrates eacute

uma possessatildeo uma loucura divina o que postula a necessidade de um deus uma forccedila

transcendente

De acordo com Soacutecrates eacute no estado de loucura que a profetisa de Delfos e as

sacerdotisas de Dodona tecircm proporcionado agrave Heacutelade inuacutemeros benefiacutecios tanto no

acircmbito privado como no puacuteblico (Fed 244b) Outrossim eacute no estado de loucura que

alguns indiviacuteduos dedicam-se agrave indagaccedilatildeo do futuro por meio de aves e de outros sinais

procurando para a opiniatildeo humana conhecimento e informaccedilatildeo (Ibid 244c) Soacutecrates

tambeacutem declara ser um tipo de adivinho (μαντικός) ou seja um sujeito inspirado pela

divindade (Ibid 242c)

Sou na verdade um adivinho natildeo muito haacutebil eacute certo mas agrave maneira das pessoas que conhecem mal as letras contudo para mim chega Eu tenho jaacute consciecircncia perfeita da minha falta Sem duacutevida amigo que a alma possui tambeacutem esse poder macircntico pelo menos em parte jaacute que ainda haacute pouco algo me perturbou quando pronunciava o discurso e como que me fez recear para dizer como Iacutebico

A segunda forma de loucura mencionada por Soacutecrates eacute aquela que revela a cura de

certas doenccedilas que recaem sobre certas famiacutelias por inveja dos deuses prescrevendo ritos

de expiaccedilatildeo ou de purificaccedilatildeo (Ibid 244e)

Outra forma de loucura se manifesta na poesia pois quando a inspiraccedilatildeo divina

encontra uma alma delicada e pura desperta-a e arrebata-a levando-a a expressar-se em

odes e outras formas de poesia embelezando as inuacutemeras accedilotildees dos antigos e educando

as futuras geraccedilotildees (Ibid 245a)

Finalmente o quarto tipo de loucura manifesta-se quando o filoacutesofo percebe a

beleza sensiacutevel como a beleza dos corpos e se recorda da verdadeira beleza da beleza

enquanto Ideia (Ibid 249d) Portanto para Soacutecrates a contemplaccedilatildeo das Ideias eacute a

melhor de todas as possessotildees divinas e a de melhor origem tanto para o que a possui

como para quem dela compartilha (Ibid 249d-e)

Ora eacute aqui que leva todo o desenvolvimento sobre o quarto tipo de loucura ndash pela qual o homem quando vecirc a beleza de caacute e recorda da verdadeira beleza eacute provido de asas e munido delas arde no desejo de voar sem forccedilas bastantes no entanto olha para cima agrave maneira de uma ave descura os assuntos terrenos e recebe entatildeo a acusaccedilatildeo de se encontrar em estado de loucura Leva ela assim agrave conclusatildeo de que em si mesma eacute a melhor de todas as possessotildees divinas e a de melhor origem tanto para o que a possui como para quem dela compartilha

No entanto natildeo eacute faacutecil para qualquer um lembrar-se das realidades suprassensiacuteveis

a partir dos objetos terrenos pois em relaccedilatildeo agraves diversas virtudes como a justiccedila a

sabedoria etc natildeo se encontra seu esplendor nas imagens da Terra Eacute com dificuldade

agrave custa de oacutergatildeos obscuros e recorrendo agraves representaccedilotildees desses objetos que poucos

iniciados conseguem contemplar as Ideias (Ibid 250b) Por essa razatildeo os objetos

supremos do conhecimento a saber as Ideias natildeo satildeo perfeitamente contempladas por

qualquer ser humano Somente os deuses podem contemplaacute-las com facilidade e a

maioria dos seres humanos pouco vecirc delas por isso a praacutetica da arte retoacuterica a qual

pressupotildee o conhecimento das Ideias natildeo pode constituir um empreendimento qualquer

(Ibid 272b) Enfim a genuiacutena arte retoacuterica natildeo eacute acessiacutevel a qualquer um que

simplesmente estude em manuais de retoacuterica admiraacuteveis artifiacutecios (παγκάλων

τεχνημάτων) tais como a maneira de apelar para as emoccedilotildees dos ouvintes a maneira de

dividir o discurso em vaacuterias partes de pronunciaacute-lo de forma concisa (βραχυλογιῶν) e

de se utilizar do estilo figurado (εἰκονολογιῶν) Escreve Platatildeo a este respeito (Ibid

268c-269b)

E que sucederia se agora algueacutem se aproximasse de Soacutefocles e de Euriacutepedes e lhes dissesse que sobre mateacuterias de pouca monta sabia compor longas tiradas e falas muito reduzidas a respeito de assuntos de grande importacircncia mover quando o desejar agrave piedade ou

inversamente causar terror e ameaccedila e tambeacutem outras do mesmo geacutenero ndash e se julgasse que ensinando esses processos transmitia a capacidade de compor trageacutedias [] Porventura natildeo responderia Soacutefocles do mesmo modo a quem lhes fizesse a ele e a Euriacutepedes ostentaccedilatildeo de conhecimentos preliminares da trageacutedia mas natildeo da trageacutedia E Acuacutemeno a quem declarasse conhecer os preliminares da medicina mas natildeo a medicina [] E que pensaremos de ldquoAdrasto da voz de melrdquo ou de Peacutericles se ouvissem os tatildeo admiraacuteveis artifiacutecios que agora mesmo acabamos de referir ndash braquilogias estilo figurado e tantos outros expedientes que passamos em resenha e declaramos necessitarem de ser examinados em plena luz

Conveacutem sublinhar que Soacutecrates natildeo reduz o valor de nenhuma das teacutecnicas acima

em vez disso ele afirma que elas satildeo incompletas sem a genuiacutena arte retoacuterica que

depende do domiacutenio do meacutetodo dialeacutetico Ele sugere que tais teacutecnicas satildeo insuficientes

do mesmo modo que qualquer um chamaria de louco um homem que afirmasse ser um

meacutedico depois de ler sobre como baixar a febre ou um homem que dissesse ser muacutesico

porque consegue alcanccedilar as notas mais altas ou mais baixas Desse modo uma pessoa

que estudou em manuais teacutecnicas retoacutericas apenas estudou os preacute-requisitos da retoacuterica

e natildeo a retoacuterica propriamente dita

43 O desprezo de Platatildeo pela retoacuterica do verossiacutemil

Com efeito Platatildeo rejeita no Fedro a verossimilhanccedila (εἰκός) como fonte da

argumentaccedilatildeo retoacuterica por serem opiniotildees aceitas pelo coletivo o que tornaria o orador

num simples bajulador pois ele se inclinaria a explorar o desejo pelo prazer que eacute

intriacutenseco agrave natureza humana Tal prazer limita-se ao acircmbito da opiniatildeo (δόξα) uma vez

que seu fundamento natildeo estaacute na Ideia que eacute una e estaacutevel mas nos sentidos instaacuteveis e

muacuteltiplos Aleacutem de criticar Liacutesias por natildeo falar nem escrever bem tambeacutem eacute alvo da

criacutetica platocircnica o orador Isoacutecrates o qual se posiciona explicitamente contra as teorias

de Platatildeo Para Isoacutecrates a moral e a poliacutetica estariam limitadas tatildeo somente ao acircmbito

da δόξα pois para ele natildeo existiria qualquer possibilidade de aquisiccedilatildeo de conhecimento

(ἐπιστήμη) relativo ao domiacutenio das accedilotildees praacuteticas nomeadamente as poliacuteticas E ao

contraacuterio de Platatildeo Isoacutecrates natildeo assume que o conhecimento (como o compreende

aquele) eacute um bem a ser adquirido mediante a educaccedilatildeo filosoacutefica porque o mesmo natildeo

proveria as necessidades das accedilotildees humanas33

Mas se eacute manifesto que Platatildeo despreza a opiniatildeo menos ainda faz concessatildeo agrave

opiniatildeo da maioria e isto porque ela se identifica com valores e crenccedilas que se baseiam

no consenso social Aleacutem do mais Platatildeo natildeo admite a verossimilhanccedila porque sua

admissatildeo se configuraria num instrumento sofiacutestico aplicado com dupla finalidade ora

para garantir a comunicaccedilatildeo assegurando valores jaacute conhecidos e aceitos ora para impor-

se fazendo crer que o veiculado constitui-se um saber autecircntico Nesse sentido o Soacutecrates

do Fedro afasta-se substancialmente de Liacutesias de Isoacutecrates e dos sofistas em geral ao dar

prioridade agraves Ideias como as verdadeiras condutoras das almas O bons oradores entatildeo

devem apenas imitar em maior e menor grau a verdade e a beleza que pertencem mais

completamente a elas Agrave vista disso as teses de Soacutecrates sobre a existecircncia das Ideias

revela um compromisso autecircntico de sua parte com a verdade em detrimento das

expressotildees individuais ou culturais dessas verdades que seriam espuacuterias Noutros termos

a boa retoacuterica e a boa filosofia natildeo podem fundamentar seus argumentos no consenso

social pois ambas tendem a buscar uma existecircncia real agrave parte das crenccedilas e valores

compartilhados pela maioria dos cidadatildeos

Todavia os escritores de manuais de retoacuterica criticados por Soacutecrates sustentam que

natildeo eacute necessaacuterio conhecer a verdade a respeito dos atos justos ou bons e acerca dos

homens que satildeo o que satildeo por natureza ou por educaccedilatildeo Eles tambeacutem asseguram que nos

tribunais natildeo interessa absolutamente a ningueacutem a verdade das coisas mas simplesmente

o que seja persuasivo E tal poder de persuasatildeo residiria no provaacutevel a que deve aplicar-

se quem deseja falar com arte porquanto existem casos em que de modo algum conveacutem

referir fatos que realmente aconteceram se natildeo se deram de forma verossiacutemil Os

oradores portanto devem falar de verossimilhanccedilas tanto na acusaccedilatildeo quanto na defesa

e de modo geral ao discursar eacute preferiacutevel que procurem o provaacutevel em desfavor do

verdadeiro porque eacute a probabilidade que presente no discurso abre caminho a toda arte

(Ibid 272d-273a)

33 De acordo com Isoacutecrates natildeo eacute possiacutevel agrave natureza humana adquirir o tipo de conhecimento atraveacutes do qual saberiacuteamos o que se deve fazer ou dizer Natildeo obstante ele considera saacutebios aqueles que pela opiniatildeo descobrem o que eacute o melhor e filoacutesofos aqueles que se ocupam com aquilo por meio do que obteratildeo tal tipo de sabedoria o mais raacutepido possiacutevel (Ant 271) ldquoἐπειδὴ γὰρ οὐκ ἔνεστιν ἐν τῇ φύσει τῇ τῶν ἀνθρώπων ἐπιστήμην λαβεῖν ἣν ἔχοντες ἂν εἰδεῖμεν ὅ τι πρακτέον ἤ λεκτέον ἐστίν ἐκ τῶν λοιπῶν σοφοὺς μὲν νομίζω τοὺς ταῖς δόξαις ἐπιτυγχάνειν ὡς ἐπὶ τὸ πολὺ τοῦ βελτίστου δυναμένους φιλοσόφους δὲ τοὺς ἐν τούτοις διατρίβοντας ἐξ ὧν τάχιστα λήψονται τὴν τοιαύτην φρόνησινrdquo

Em vez de procurarem a verdade os escritores de manuais de retoacuterica

contentavam-se fundamentalmente com o verossiacutemil e o provaacutevel mas Soacutecrates natildeo

procura convencecirc-los da necessidade de dizer a verdade pois como procede

frequentemente coloca-se no ponto de vista dos adversaacuterios para neste campo lhes

demonstrar que tambeacutem para eles o conhecimento da verdade eacute indispensaacutevel Assim

sendo a descoberta do εἰκός em que mormente se baseia a argumentaccedilatildeo retoacuterica

pressupotildee o conhecimento da verdade porque o εἰκός natildeo eacute outra coisa senatildeo o que

aparece semelhante agrave verdade (Ibid 273d)

Dentre os escritores de manuais censurados por Soacutecrates o siracusano Tiacutesias merece

especial destaque Tiacutesias foi disciacutepulo de Coacuterax (que eacute considerado o fundador da arte

retoacuterica) e mestre dos famosos sofistas Liacutesias e Goacutergias Para Tiacutesias a probabilidade seria

mais digna de estima do que a verdade (Τεισίαν δὲ Γοργίαν τε ἐάσομεν εὕδειν οἳ πρὸ

τῶν ἀληθῶν τὰ εἰκότα εἶδον ὡς τιμητέα μᾶλλον) Ele tambeacutem fazia com que os

argumentos pequenos parecessem grandes e os grandes parecessem pequenos em virtude

da forccedila da palavra (Ibid 267a) Tiacutesias ainda defendia que o verossiacutemil surge amiuacutede no

espiacuterito da maioria (πολλοῖς) devido agrave semelhanccedila com a verdade (Ibid 273d)

Entretanto para Soacutecrates unicamente a verdade deve ser objeto de investigaccedilatildeo e de

veiculaccedilatildeo e natildeo somente nos limites da filosofia mas tambeacutem no acircmbito da arte retoacuterica

Isto posto a retoacuterica que natildeo declara efetivamente a verdade natildeo faria outra coisa senatildeo

caccedilar opiniotildees e constituir-se-ia numa praacutetica ridiacutecula e natildeo numa autecircntica arte

Vecirc-se que Platatildeo persiste no antagonismo entre dois tipos de retoacuterica uma retoacuterica

que visa declarar a verdade a essecircncia das coisas e outra que visa somente produzir

aparecircncias e criar ilusotildees A primeira deve estar pautada na verdade indubitaacutevel pois

aquele que pronuncia determinada tese deve conhecer cabalmente aquilo do que vai falar

pois conforme jaacute examinado a primeira condiccedilatildeo estabelecida por Soacutecrates para o bom

discurso eacute que o orador conheccedila a verdade sobre o assunto que tenciona discutir (Ibid

259e)

Fedro contraporaacute a essa tese uma perspectiva diferente a existecircncia de uma retoacuterica

cuja base natildeo eacute a verdade mas a verossimilhanccedila Ele argumenta que cabe agrave audiecircncia

decidir se o discurso retoacuterico eacute eficaz ou natildeo porque ndash observa ele ndash o orador deve

conhecer natildeo a realidade do que eacute justo bom ou belo mas sim o que parece aos ouvintes

jaacute que satildeo estes afinal que iratildeo emitir o juiacutezo de valor sobre o que foi dito (Ibid 260a)

A respeito disso meu caro Soacutecrates ouvi dizer o seguinte quem se quer tornar orador natildeo tem necessidade de conhecer o que realmente eacute justo mas o que aparente secirc-lo agrave multidatildeo que deve julgar natildeo o que na realidade eacute bom e belo mas quanto daacute essa aparecircncia jaacute que daiacute deriva a persuasatildeo e natildeo da verdade

Para Soacutecrates em contrapartida o orador que ignora em estado de vigiacutelia ou em

sono a noccedilatildeo de justo ou injusto de mau ou de bom natildeo pode escapar nunca agrave censura

que merece ainda que a multidatildeo o louve (Ibid 277e) Soacutecrates rejeita a concepccedilatildeo de

Fedro sob o argumento de que no acircmbito da retoacuterica a demonstraccedilatildeo baseada na

verossimilhanccedila deve ceder lugar agrave demonstraccedilatildeo baseada unicamente na verdade E se

o uacutenico criteacuterio atraveacutes do qual o discurso retoacuterico torna-se legiacutetimo eacute a verdade entatildeo

natildeo conveacutem ao orador determinar segundo seus interesses a natureza dos assuntos

tratados no discurso mas deve sempre o orador pronunciar a verdade independentemente

se a mensagem agrade ou natildeo sua audiecircncia Ainda que o discurso conduza os ouvintes a

odiar o orador pelo teor das palavras que profere esta atitude deve caracterizar todo

aquele que se propotildee a esta atividade A retoacuterica digna do filoacutesofo aquela que

conquistaria por suas razotildees os proacuteprios deuses deve ser condicionada pela verdade e

natildeo pelo consenso social O orador portanto jamais deve preocupar-se em agradar os

homens mas somente os deuses e proferir um discurso digno deles (Ibid 273e 274b

274c)

E este resultado natildeo pode adquirir nunca sem muita aplicaccedilatildeo que quem for sensato deve exercitar natildeo com vista a falar e conviver com os homens mas para se tornar capaz duma linguagem e duma conduta que sejam o mais possiacutevel do agrado dos deuses [] Sabes na verdade qual eacute o melhor meio de agradar a divindade em mateacuteria de discursos quer na praacutetica quer na teoria [] No entanto se conseguiacutessemos descobri-la por noacutes mesmos acaso precisariacuteamos ainda nos preocupar com as opiniotildees dos homens

Um dos defeitos especiacuteficos da praacutetica retoacuterica censurada por Platatildeo nos seus

diaacutelogos consiste na tendecircncia a agradar os homens Ele rejeita essa noccedilatildeo em favor da

tese de que eacute necessaacuterio falar e agir a fim de agradar somente a divindade No diaacutelogo

Leis num expliacutecito contraste com a doutrina do homem-medida de Protaacutegoras Platatildeo

defende que deus eacute a medida de todas as coisas natildeo o homem (ὁ δὴ θεὸς ἡμῖν πάντων

χρημάτων μέτρον ἂν εἴη μάλιστα καὶ πολὺ μᾶλλον ἤ πού τις ὥς φασιν ἄνθρωπος)

Assim para ser amado pelos deuses todo homem teraacute necessariamente de tornar-se

semelhante a eles e isto na medida das suas possibilidades (Leis 716c) Conveacutem

sublinhar a este respeito a pertinente anaacutelise de Barbara Cassin segundo a qual a retoacuterica

defendida por Platatildeo no Fedro possuiria uma tarefa sem duacutevida infinita uma vez que ela

se aplica a todos e a tudo que ela natildeo existe sem o conhecimento da verdade e dos entes

e que seu momento-chave seria a τέχνη διαλεκτική De tal forma que um homem sensato

jamais deveria se esforccedilar para falar e agir em relaccedilatildeo com os homens mas para poder

fazer discursos que tecircm o favor dos deuses e agir tanto quanto possiacutevel de forma a obter

o favor deles Assim em sua relaccedilatildeo com o divino a arte retoacuterica seria o nome do projeto

pedagoacutegico infinito da filosofia ateacute mesmo para o proacuteprio filoacutesofo de tal modo que a

retoacuterica do Fedro ateacute poderia ser identificada com a proacutepria filosofia (CASSIN 2005

155)

Segundo Platatildeo o discurso retoacuterico que natildeo exprime o que a coisa necessariamente

eacute tambeacutem deixa de ser uma praacutetica moral e se afasta do dom dos deuses que avalia com

certeza os homens suas accedilotildees e aquilo que os cerca De dom divino ndash a recordaccedilatildeo da

Ideia do justo do belo e do bom que constitui a mais sublime das possessotildees divinas ndash o

discurso torna-se um simples instrumento de poder sobretudo para os sofistas que pela

seduccedilatildeo dos seus discursos atraem os favores das multidotildees O projeto de Platatildeo tenciona

restaurar com uma justificaccedilatildeo filosoacutefica uma crenccedila em criteacuterios absolutos e verdades

permanentes e invariaacuteveis existindo agrave parte da alma humana e natildeo afetadas por fenocircmenos

sensiacuteveis e accedilotildees individuais E acompanha-se isso por uma visatildeo do mundo como

produto da inteligecircncia divina A retoacuterica filosoacutefica de Platatildeo exposta no Fedro se oporia

agrave neutralidade da linguagem proposta pelos sofistas e estabeleceria como ideal uma

linguagem normativa a qual seria capaz de realizar a uniatildeo entre a eacutetica e a retoacuterica

Assim a diferenccedila entre a retoacuterica filosoacutefica e a retoacuterica sofiacutestica eacute normativa a retoacuterica

sofiacutestica eacute moralmente deficiente porque natildeo busca conduzir as multidotildees agraves Ideias ao

passo que a retoacuterica de Platatildeo sempre se nutre da preocupaccedilatildeo com seus interlocutores

uma preocupaccedilatildeo que em uacuteltima instacircncia se mostra em suas tentativas de aproximaacute-los

das Ideias que satildeo valores morais que fundam os juiacutezos sobre as coisas da vida humana

Por essa razatildeo os discursos escritos qualquer que seja o assunto natildeo merecem creacutedito

algum se neles inexiste a intenccedilatildeo de instruir moralmente os ouvintes tendo em vista

apenas a persuasatildeo (Fed 278a)

O que considerar que existe necessariamente uma dose abundante de divertimentos dos discursos escritos qualquer que seja o assunto e que nenhum deles em verso ou em prosa merece grande atenccedilatildeo ao ser escrito ou ao ser pronunciado como fazem os rapsodos sem espiacuterito criacutetico e sem intenccedilatildeo de instruir mas visando apenas a persuasatildeo que na realidade os melhores desses discursos constituem

um meio de suscitar a recordaccedilatildeo em quem jaacute sabe O que considerar pelo contraacuterio que os destinados ao ensino feitos para instruir e realmente escritos na alma a respeito do justo do belo e do bom satildeo os uacutenicos que mostram clareza perfeiccedilatildeo e merecem o nosso esforccedilo

Em conexatildeo com este assunto conveacutem reportar-se ao que Platatildeo escrevera no

diaacutelogo Goacutergias Soacutecrates pergunta ao sofista Goacutergias se a persuasatildeo que a retoacuterica

produz nos tribunais e nas aglomeraccedilotildees a respeito do justo ou do injusto eacute a que gera

crenccedila (ou opiniatildeo) sem o saber ou a que gera o saber A resposta de Goacutergias eacute categoacuterica

no sentido de sustentar que a persuasatildeo retoacuterica natildeo eacute geradora de saber mas de crenccedila

Isto posto a arte retoacuterica de Goacutergias seria simplesmente artiacutefice da persuasatildeo que infunde

crenccedila mas natildeo ensina nada a respeito do justo e do injusto Por isso o orador natildeo estaria

apto a ensinar nos tribunais e nas demais aglomeraccedilotildees a respeito do justo e do injusto

mas somente a fazecirc-los crer uma vez que ele natildeo seria capaz de ensinar a tamanha

multidatildeo em pouco tempo coisas tatildeo valiosas (Goacuterg 454e-455a)

Tendo em vista a concepccedilatildeo retoacuterica de Goacutergias exposta acima os oradores natildeo

teriam por objetivo alcanccedilar o supremo bem a fim de que os cidadatildeos sejam melhores ao

maacuteximo em virtude de seus discursos pelo contraacuterio eles deveriam devotar-se para o

deleite dos ouvintes negligenciando o interesse geral em vista do particular A despeito

de tudo isso Soacutecrates admite a possibilidade de uma boa retoacuterica ou seja uma retoacuterica

voltada natildeo para o deleite dos ouvintes mas para o seu benefiacutecio (Ibid 503b 504e)

Isso basta Se eacute duacuteplice uma parte dela seria adulaccedilatildeo e oratoacuteria puacuteblica vergonhosa ao passo que a outra seria bela que se dispotildee para tornar melhores ao maacuteximo as almas dos cidadatildeos e as defende dizendo o que eacute melhor seja isso mais apraziacutevel ou menos apraziacutevel aos ouvintes Mas retoacuterica como essa jamais viste ou melhor se pode nomear um reacutetor desse tipo por que natildeo me disseste quem ele eacute [] Ele teraacute sua mente continuamente fixa nesse escopo a fim de que a justiccedila surja nas almas de seus concidadatildeos e da injusticcedila se libertem a fim de que a temperanccedila surja e da intemperanccedila se libertem a fim de que toda e qualquer virtude surja e o viacutecio parta

Em outro passo do diaacutelogo em apreccedilo Soacutecrates declara para Polo que a retoacuterica soacute

seraacute uacutetil para a cidade se estiver vinculada com a defesa da justiccedila independente dos

prejuiacutezos que poderatildeo ocorrer com o orador em virtude de sua coragem de acusar de

injusticcedila os amigos os parentes ou ainda sua paacutetria (Ibid 480b-d)

Pois bem para a defesa da injusticcedila quer de sua proacutepria injusticcedila dos parentes dos amigos dos filhos ou de sua proacutepria paacutetria a retoacuterica natildeo nos eacute minimamente uacutetil Polo a natildeo ser que algueacutem conceba seu uso em sentido contraacuterio deve-se acusar

antes de tudo a si mesmo e entatildeo os familiares ou outro amigo qualquer sempre que se cometa alguma injusticcedila ao inveacutes de ocultaacute-lo deve-se trazer agrave luz o ato injusto a fim de pagar a justa pena e se tornar saudaacutevel deve-se constranger a si mesmo e aos demais a natildeo se acovardarem mas a se apresentarem de olhos cerrados correta e corajosamente [] deve-se ser primeiro a acusar a si proacuteprio e aos demais familiares e utilizar a retoacuterica com este escopo a fim de que uma vez fuacutelgidos os atos injustos cometidos se livrem do maior mal da injusticcedila

Ainda no diaacutelogo Goacutergias Soacutecrates sugere a Caacutelicles que o fato de ser expulso da

cidade ou na situaccedilatildeo limite perder a proacutepria vida natildeo eacute uma vergonha para o orador que

se propotildee falar a verdade para seus ouvintes O mais vergonhoso natildeo eacute ter a tecircmpora

rachada injustamente ou ter a bolsa ou o corpo lacerados mas o pior e mais vergonhoso

eacute cometer a injusticcedila (Ibid 508d-e) Sendo assim independente dos efeitos do discurso

dos seus resultados praacuteticos o orador deve acusar se for necessaacuterio natildeo somente a si

mesmo mas tambeacutem os familiares os amigos ou qualquer outra pessoa sempre que se

cometa alguma injusticcedila

Verificamos no iniacutecio do capiacutetulo 2 que o Soacutecrates da Defesa de Soacutecrates ndash

histoacuterico questionador moral e ironista ndash atua como um retoacuterico na medida em que

procura persuadir os seus ouvintes mas em vez de agradar e tentar obter a aprovaccedilatildeo

deles ele procura explicitamente encorajaacute-los a se tornarem pessoas mais virtuosas

Soacutecrates entatildeo faz do seu processo judicial um processo filosoacutefico pois entendia a si

mesmo como um indiviacuteduo incumbido de despertar a cidade de Atenas para o

conhecimento de si e para a praacutetica das virtudes tarefa que lhe foi confiada pelo deus de

Delfos em relaccedilatildeo agrave qual ele ligou sua existecircncia Outrossim Soacutecrates propotildee comunicar

o seu discurso judicial numa linguagem ordinaacuteria que se apresenta diretamente em sua

alma em coerecircncia com o que acredita ser verdadeiro e se for o caso em detrimento da

proacutepria vida A propoacutesito em duas ocasiotildees Soacutecrates revela o risco de ser morto em

decorrecircncia de suas convicccedilotildees filosoacuteficas Na condiccedilatildeo de priacutetane enfrentou o perigo ao

lado da lei e da justiccedila em vez de se colocar ao lado do Conselho por medo da prisatildeo ou

da morte E no tocante agrave ordem dos tiranos ele declara que mostrou natildeo com palavras

mas por atos que a morte natildeo tem a menor importacircncia quando esta se contrapotildee agrave justiccedila

e agrave verdade Divisamos ainda que tanto para o estudo da retoacuterica como para muitos outros

importantes temas da obra de Platatildeo o diaacutelogo Defesa de Soacutecrates constituiu um ponto

de partida fundamental Pode-se assegurar entatildeo que o discurso que Soacutecrates proferiu

em sua proacutepria defesa diante do tribunal de Atenas forneceu na medida do possiacutevel as

primeiras indicaccedilotildees para a compreensatildeo da posiccedilatildeo de Platatildeo acerca da arte retoacuterica

expressa sobretudo nos diaacutelogos Fedro e Goacutergias A partir de agora analisar-se-aacute a

concepccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles e seu contraste em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo retoacuterica de

Platatildeo bem como as presumiacuteveis razotildees pelas quais o Estagirita teria se afastado do

pensamento de seu mestre

5 A retoacuterica de Aristoacuteteles e seu contraste com a retoacuterica de Platatildeo

51 A distinccedilatildeo aristoteacutelica entre ciecircncia e arte retoacuterica

Considerando-se que houve no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles duas fases

distintas quais sejam a fase juvenil intimamente ligada agrave filosofia de Platatildeo e a fase que

refletiria a maturidade do seu pensamento a qual teria recebido forte influecircncia da

sofiacutestica pode-se assegurar que a arte retoacuterica de Aristoacuteteles situa-se equidistante tanto

em relaccedilatildeo agrave posiccedilatildeo dos sofistas quanto agrave posiccedilatildeo de Platatildeo Em relaccedilatildeo aos sofistas ele

rejeita explicitamente o relativismo eacutetico porque o orador jamais deve persuadir seus

ouvintes acerca do que eacute imoral mesmo sendo capaz de fazecirc-lo Portanto a fim de

preservar a retoacuterica da sofiacutestica e para que a poliacutetica seja devidamente protegida do

relativismo o Estagirita atribui agrave arte retoacuterica uma funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica Em relaccedilatildeo a

Platatildeo o Estagirita rejeita a identificaccedilatildeo pura e simples do discurso retoacuterico com a

verdade (ἀλήθεια) substituindo-a pela verossimilhanccedila (εἰκός) pois em sua visatildeo quem

se quer tornar orador natildeo tem necessidade de conhecer o que realmente eacute mas o que

aparente secirc-lo agrave multidatildeo que deve julgar Deveras o interesse de Aristoacuteteles pela retoacuterica

leva-o a concebecirc-la sob duas perspectivas que correspondem a dois compromissos

distintos mas coexistentes no interior do amplo campo das preocupaccedilotildees humanas a

defesa da verdade e da justiccedila na cidade e a admissatildeo e veiculaccedilatildeo das crenccedilas geralmente

aceitas pelo conjunto dos cidadatildeos Esses dois compromissos se afiguram grosso modo

no nuacutecleo da conciliaccedilatildeo entre a concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo e a dos sofistas

Aristoacuteteles opotildeem-se aos sofistas para os quais tudo eacute relativo admitindo que

existe uma ciecircncia inteiramente exata E assim como Platatildeo ele admite uma ciecircncia que

por via demonstrativa parta do verdadeiro para chegar ao verdadeiro mas ao mesmo

tempo ele objeta que a ciecircncia mais exata tenha relevacircncia para persuadir certos

auditoacuterios aos quais falta a devida instruccedilatildeo filosoacutefica Dessarte no discurso retoacuterico natildeo

eacute preciso veicular verdades filosoacuteficas ou cientiacuteficas ao inveacutes disso eacute preciso utilizar

noccedilotildees que satildeo acessiacuteveis aos ouvintes comuns Isto posto eacute mister compreendermos o

que substancialmente distingue a concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo elaborada sobretudo no

diaacutelogo Fedro da concepccedilatildeo retoacuterica de Aristoacuteteles exposta nos trecircs livros da Retoacuterica

No seu tratado sobre a arte retoacuterica o Estagirita procura neutralizar o antagonismo

entre a verdade e a verossimilhanccedila que caracteriza a concepccedilatildeo platocircnica exposta no

diaacutelogo Fedro mediante a separaccedilatildeo de dois domiacutenios legitimamente autocircnomos ndash o

domiacutenio da filosofia (φιλοσοφία) ou da ciecircncia (ἐπιστήμη) que para Aristoacuteteles satildeo

termos equivalentes34 e o domiacutenio da retoacuterica (ῥητορική) Conveacutem lembrar que no Fedro

Platatildeo tambeacutem separa a filosofia da retoacuterica Ambas as disciplinas seriam distintas

poreacutem natildeo seriam autocircnomas Para ele a filosofia seria a disciplina principal e a retoacuterica

a secundaacuteria uma vez que eacute a filosofia que fornece agrave retoacuterica todas as condiccedilotildees para

tornar-se uma legiacutetima arte No entanto para Aristoacuteteles tanto a filosofia (cujo objeto eacute

a verdade) como a retoacuterica (cujo objeto eacute a verossimilhanccedila ou a probabilidade) adquirem

legitimidade no seu campo proacuteprio de atuaccedilatildeo sem que haja qualquer oposiccedilatildeo entre elas

Sendo assim Aristoacuteteles reabilita a arte retoacuterica ao integraacute-la numa visatildeo sistemaacutetica do

mundo onde ela ocupa o seu lugar sem ocupar o lugar todo como queriam os sofistas

tampouco submete-a inteiramente agrave eacutegide da filosofia como queria Platatildeo Enfim a arte

retoacuterica de Aristoacuteteles seria uma disciplina distinta e autocircnoma e a despeito de ser uma

arte (τέχνη) e uma faculdade (δύναμις) e ateacute mesmo um tipo de conhecimento

(ἐπιστήμη) posto que tambeacutem procura conhecer pela causa (αἰτία) ela certamente natildeo se

confunde com a sofiacutestica nem com a filosofia

Eacute manifesto que a filosofia tem por finalidade descobrir a verdade e natildeo eacute agrave toa

que Aristoacuteteles a designa como ldquoἐπιστήμην τῆς ἀληθείαςrdquo ou seja ldquoa ciecircncia da verdaderdquo

(Met 993b 20) A retoacuterica por sua vez preocupa-se com aquilo que pensam os homens

em geral com as crenccedilas compartilhadas pelo consenso social tendo como objetivo a

persuasatildeo A filosofia busca o conhecimento universal e necessaacuterio enquanto que a

retoacuterica volta-se para o particular plausiacutevel e como tal aceito pela maioria dos homens

Na condiccedilatildeo de uma disciplina praacutetica a retoacuterica deve preocupar-se em conhecer os

particulares pois a accedilatildeo humana tem a ver com os particulares e natildeo com os universais

E apesar de natildeo saber muitas coisas em geral o orador pode atuar de maneira mais eficaz

do que os saacutebios no que respeita agraves questotildees ligadas agraves accedilotildees humanas (Eacutet Nic 1141b

15-20) Aliaacutes a retoacuterica versa sobre questotildees que satildeo em certa medida da competecircncia

comum de todos os homens por isso a sua atuaccedilatildeo se exerce no campo conflitivo das

opiniotildees humanas Platatildeo entretanto estabelece um elevadiacutessimo padratildeo para o orador

34 Para C D C Reeve Aristoacuteteles aplica com frequecircncia o termo ldquoφιλοσοφίαrdquo a qualquer ciecircncia que mire a verdade e natildeo a accedilatildeo Nesse sentido todas as ciecircncias teoacutericas em geral contariam como ramos da φιλοσοφία a qual seria mais ou menos equivalente ao termo ldquoἐπιστήμηrdquo (REEVE 2014 296)

que deseja cumprir os requisitos de uma verdadeira arte ele exige que o orador seja

efetivamente um filoacutesofo Sendo assim o orador que natildeo cultivar a filosofia e natildeo possuir

o conhecimento universal e necessaacuterio relativo agrave verdade mas insistir em valorizar as

opiniotildees das multidotildees transformaraacute a retoacuterica numa praacutetica ridiacutecula desprovida de valor

artiacutestico

Pode-se assegurar que Aristoacuteteles (o qual foi o mais autecircntico disciacutepulo de Platatildeo

visto que partiu de suas aporias e procurou superaacute-las) leva em consideraccedilatildeo todas as

objeccedilotildees de seu mestre contra a retoacuterica nos diaacutelogos Goacutergias e Fedro Ele ateacute procura

cumprir algumas de suas exigecircncias mas como eacute natural o faz apenas de modo parcial

Isto ocorre porque as exigecircncias de Platatildeo especialmente no diaacutelogo Fedro incorrem no

postulado de que os verdadeiros oradores precisam ser genuiacutenos filoacutesofos No entanto

comprometido com a criacutetica de uma ciecircncia unitaacuteria o Estagirita rejeita a estrateacutegia

platocircnica no sentido de construir uma coextensatildeo entre a filosofia e a retoacuterica Em vez

disso ele atribui uma capacidade especiacutefica agrave retoacuterica que pode ser aprendida por todos

os cidadatildeos em termos de uma democratizaccedilatildeo e natildeo apenas por poucos iniciados apoacutes

um longo percurso formativo Dessarte todas as pessoas participariam em certa medida

da retoacuterica porque todas elas (seja por acaso ou por haacutebito) mormente procuram discutir

e sustentar teses realizar a proacutepria defesa e acusar os outros

Com efeito nos assuntos em que os sofistas estavam interessados o ponto de vista

aristoteacutelico parece estar de muitas formas mais proacuteximo ao deles que ao de Platatildeo Eacute

manifesto que o Estagirita partilha da perspectiva teleoloacutegica de Platatildeo pois embora

tivesse abandonado a transcendecircncia das Ideias platocircnicas continua acreditando na

existecircncia de substacircncias ou essecircncias permanentes correspondendo aos termos

universais Outrossim ele faz a distinccedilatildeo categoacuterica entre os fins e por conseguinte entre

os meacutetodos da pesquisa cientiacutefica de um lado e a inquiriccedilatildeo dos problemas ligados agraves

accedilotildees humanas de outro Em relaccedilatildeo agrave pesquisa cientiacutefica deve-se exigir os mais

rigorosos padrotildees de exatidatildeo poreacutem estes seriam inadequados para o estudo da arte

retoacuterica que eacute empreendido natildeo para fins teoacutericos mas para fins praacuteticos E no acircmbito da

eacutetica o abandono das normas ou modelos morais absolutos de Platatildeo teve consequecircncias

de longo alcance porquanto tornava possiacutevel a distinccedilatildeo entre teoria e praacutetica

conhecimento cientiacutefico e accedilatildeo que para o pensamento platocircnico satildeo coisas

indissociaacuteveis

A noccedilatildeo de que a filosofia e a retoacuterica possuem legitimidade no seu respectivo

campo de atuaccedilatildeo a primeira tendo por finalidade a verdade enquanto que segunda a

probabilidade assoma no registro histoacuterico de Dioacutegenes Laeacutercio de maneira bem

definida Este atribui a Aristoacuteteles a asserccedilatildeo de que a filosofia divide-se em duas grandes

partes a praacutetica e a teoacuterica A primeira incluiria a eacutetica e a poliacutetica agrave medida em que a

segunda incluiria a fiacutesica e a loacutegica Ele ainda explicita que a loacutegica a qual natildeo seria uma

ciecircncia independente mas um instrumento para as demais ciecircncias tem uma dupla

finalidade a probabilidade e a verdade E para cada uma dessas finalidades Aristoacuteteles

utilizaria duas faculdades a dialeacutetica e a retoacuterica para a probabilidade a anaacutelise e a

filosofia para a verdade sem nada negligenciar do que leva agrave descoberta ao juiacutezo ou agrave

utilidade Agrave descoberta ele teria dedicado os Toacutepicos os Metoacutedicos e numerosas

proposiccedilotildees atraveacutes das quais eacute possiacutevel dispor de argumentos provaacuteveis para resolver

certos problemas Para os juiacutezos ele teria composto tanto os Primeiros quanto os

Segundos Analiacuteticos Mediante os Primeiros Analiacuteticos julgar-se-iam as premissas e

atraveacutes dos Segundos Analiacuteticos provar-se-iam as conclusotildees E acerca do uso praacutetico

Aristoacuteteles teria deixado os preceitos sobre controversas sobre o procedimento mediante

perguntas e respostas sobre refutaccedilotildees sofiacutesticas sobre silogismos e muitas outras coisas

(Vid doutr fil il V 1 28-29)

Tendo em conta a separaccedilatildeo aristoteacutelica de dois domiacutenios legitimamente

autocircnomos o da filosofia e o da retoacuterica conveacutem compreendermos grosso modo a

natureza do conhecimento cientiacutefico a fim de comparaacute-lo ulteriormente com o tipo de

premissa que fundamenta os argumentos retoacutericos Conforme a anaacutelise de Robin Smith

Aristoacuteteles aborda o conhecimento cientiacutefico nos Segundos Analiacuteticos num sentido

preciso sentido para o qual ele usa a palavra ldquoἐπιστήμηrdquo Επιστήμη seria um corpo de

conhecimentos sobre determinado assunto organizado num sistema demonstrativo cujo

modelo satildeo as disciplinas matemaacuteticas da aritmeacutetica e da geometria que no seu tempo

eram apresentadas como seacuteries sistemaacuteticas de deduccedilotildees partindo de primeiros princiacutepios

baacutesicos35 Dessa maneira o conceito central dos Segundos Analiacuteticos consiste na

35 Para Enrico Berti a maior parte dos exemplos e termos dos quais Aristoacuteteles se serve nos Segundos Analiacuteticos satildeo extraiacutedos da geometria significando que esta ciecircncia representa o modelo de conhecimento cientiacutefico por ele teorizado Para Berti a geometria foi a primeira ciecircncia descoberta pelos gregos e a uacutenica que alcanccedilou no tempo do Estagirita um estatuto epistecircmico quase definitivo principalmente pelo impulso que recebera no seio da academia platocircnica por obra de matemaacuteticos como Eudoxo Teeteto e o proacuteprio Platatildeo Ademais natildeo seria casual que a realizaccedilatildeo plena das indicaccedilotildees contidas nos Segundos Analiacuteticos encontre-se nos Elementos de Euclides natildeo porque este dependa de Aristoacuteteles ao qual eacute posterior em alguns anos mas tambeacutem porque ele simplesmente sistematizou uma geometria jaacute existente no tempo de Aristoacuteteles a qual teria sido elaborada em grande medida por Eudoxo (BERTI 1998 10)

demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) que eacute uma espeacutecie de deduccedilatildeo Uma explicaccedilatildeo do

conhecimento que resulta de demonstraccedilotildees seria simplesmente uma explicaccedilatildeo do que eacute

conhecer as premissas e o conhecimento da conclusatildeo seguiria automaticamente Assim

ter conhecimento cientiacutefico de p eacute conhecer por que p eacute verdadeiro eacute saber a resposta agrave

questatildeo ldquopor que p eacute o casordquo Tal resposta teraacute a forma ldquoporque q e r do que decorre

prdquo Para que a resposta seja adequada as premissas q e r precisam ser verdadeiras e a

conclusatildeo p tem de seguir-se delas Isto posto uma ἀπόδειξις tem de ser um argumento

vaacutelido com premissas verdadeiras que se sabe serem verdadeiras (BARNES 2009 81-

82)

Aristoacuteteles assevera nos Segundos Analiacuteticos que pensamos conhecer

cientificamente alguma coisa natildeo agrave maneira dos sofistas quando pensamos conhecer

tanto a causa em funccedilatildeo da qual uma coisa eacute como tambeacutem que natildeo eacute possiacutevel que ela

seja de outra maneira Tal concepccedilatildeo parece excluir qualquer conhecimento de fatos

meramente contingentes Segue ipsis litteris a ceacutelebre asserccedilatildeo de Aristoacuteteles a respeito

da natureza do conhecimento cientiacutefico (Seg Anal 71b 9-15)

Julgamos conhecer cientificamente uma coisa qualquer sem mais (e natildeo de modo sofiacutestico por concomitacircncia) quando julgamos conhecer a respeito da causa pela qual a coisa eacute que ela eacute causa disso e que natildeo eacute possiacutevel ser de outro modo Eacute evidente que conhecer cientificamente eacute algo deste tipo pois tanto os que natildeo conhecem julgam estar assim dispostos como tambeacutem os que conhecem assim se dispotildeem de fato por conseguinte eacute impossiacutevel que seja de outro modo aquilo de que sem mais haacute conhecimento cientiacutefico

Tendo em consideraccedilatildeo a passagem supracitada eacute manifesto que Aristoacuteteles atribui

ao conhecimento cientiacutefico duas caracteriacutesticas fundamentais O conhecimento cientiacutefico

de um objeto qualquer envolve o conhecimento de sua causa (αἰτία) que deve ser

entendida como a razatildeo a explicaccedilatildeo de um fato de um comportamento ou de uma

propriedade O conhecimento cientiacutefico tambeacutem envolve a necessidade (ἀνάγκη) de suas

conclusotildees ou seja a impossibilidade de que quando se conhece cientificamente um

certo estado de coisas estas sejam diferentes de como satildeo conhecidas Essas

caracteriacutesticas por conseguinte satildeo asseguradas pela demonstraccedilatildeo ou pelo silogismo

cientiacutefico que tem lugar quando as premissas satildeo verdadeiras primeiras imediatas mais

cognosciacuteveis que a conclusatildeo anteriores a ela e causas dela (Ibid 271b 16-19) O

conhecimento cientiacutefico portanto natildeo pode ser constituiacutedo por simples experiecircncias as

quais se relacionam com fatos contingentes ou seja fatos que poderiam ser de uma

maneira ou de outra mas deve ser identificado com aquilo que eacute necessaacuterio E uma

proposiccedilatildeo eacute necessaacuteria quando em hipoacutetese alguma pode ser concebida de modo

diferente (Ibid 74b 5 74b 13)

Visto que o conhecimento demonstrativo proveacutem de princiacutepios necessaacuterios (pois aquilo que se conhece cientificamente natildeo pode ser de vaacuterios modos) [] Com efeito devemos afirmaacute-lo ou deste modo ou estabelecendo como princiacutepio que a demonstraccedilatildeo eacute necessaacuteria ou seja se algo estaacute demonstrado natildeo eacute possiacutevel que seja de outro modo portanto eacute preciso que tal silogismo proceda de itens necessaacuterios

Em conexatildeo com a definiccedilatildeo de conhecimento cientiacutefico exposta nos Segundos

Analiacuteticos o Estagirita explicita na Eacutetica a Nicocircmaco que todas as afirmaccedilotildees verdadeiras

tecircm de ser eternas porque natildeo pode haver conhecimento genuiacuteno de coisas que podem

ser modificadas ou destruiacutedas Para ele os objetos de conhecimento cientiacutefico possuem

intrinsecamente uma constituiccedilatildeo necessaacuteria por isso satildeo eternos ou seja natildeo satildeo

gerados nem destruiacutedos (Eacutet Nic 1139b 23-25) Todavia conveacutem frisar que o caraacuteter de

necessidade da ciecircncia compreendida em sentido aristoteacutelico eacute amiuacutede indicado atraveacutes

da afirmaccedilatildeo de que ἐπιστήμη constitui o conhecimento de coisas que existem sempre o

que natildeo significa que todos os objetos da ciecircncia sejam substacircncias eternas mas que satildeo

eternos os nexos entre certos objetos e certas propriedades suas das quais se obtecircm

ciecircncia O nexo entre o triacircngulo e a propriedade de ter a soma dos acircngulos internos igual

a dois retos eacute eterno O triacircngulo tem sempre essa propriedade ou seja qualquer triacircngulo

em qualquer situaccedilatildeo a tem (BERTI 1998 5) E assim como todo conhecimento

cientiacutefico parece ser suscetiacutevel de ser ensinado tambeacutem o que eacute objeto de conhecimento

cientiacutefico eacute suscetiacutevel de ser aprendido Outrossim o conhecimento cientiacutefico eacute uma

disposiccedilatildeo com capacidade demonstrativa mas se natildeo tiver os princiacutepios tatildeo bem

conhecidos quanto a conclusatildeo natildeo poderaacute ser considerado como tal mas apenas

acidentalmente (Eacutet Nic 1139b 25-35)

Aleacutem do mais assim como todo conhecimento cientiacutefico parece ser suscetiacutevel de ser ensinado tambeacutem o que eacute objeto de conhecimento cientiacutefico eacute suscetiacutevel de ser aprendido Todo o ensino se faz a partir daqueles conhecimentos que se adquiriram previamente tal como dissemos nos Analiacuteticos [] O conhecimento cientiacutefico eacute uma disposiccedilatildeo com capacidade demonstrativa ndash a qual acresce como definiccedilatildeo tudo aquilo que dissemos nos Analiacuteticos Quando algueacutem adquire de algum modo uma determinada convicccedilatildeo e os princiacutepios se lhe tornaram conhecidos esse algueacutem adquiriu um conhecimento cientiacutefico Se poreacutem natildeo tiver os princiacutepios tatildeo bem conhecidos quanto a conclusatildeo poderaacute ter um conhecimento cientiacutefico mas

apenas acidentalmente Foi deste modo definido o que eacute o conhecimento cientiacutefico

De acordo com C D C Reeve a demonstraccedilatildeo no sentido estrito ou seja a

ἀπόδειξις eacute encontrada somente nas ciecircncias teoreacuteticas cujos pontos iniciais e teoremas

aplicam-se com necessidade incondicional pois nelas o entendimento eacute dos termos e

definiccedilotildees que satildeo primaacuterios na ciecircncia os quais satildeo imutaacuteveis e eternos Por essa razatildeo

as demonstraccedilotildees das ciecircncias em questatildeo devem ser de natureza estrita e incondicional

No entanto Reeve enfatiza a existecircncia de demonstraccedilotildees praacuteticas pertencentes agraves

ciecircncias praacuteticas as quais satildeo de natureza menos estrita posto que satildeo aplicaacuteveis a coisas

que ocorrem em sua maior parte mas natildeo necessariamente Desse modo quando se

atribui agrave demonstraccedilatildeo praacutetica um papel que eacute restrito agraves coisas particulares ela eacute

caracterizada como natildeo voltada para o que ocorre sempre porquanto seu escopo eacute a accedilatildeo

particular a ser realizada nas circunstacircncias concretas (REEVE 2014 208-209)

Com efeito a ciecircncia poliacutetica a eacutetica e a retoacuterica em comum com outras ciecircncias

praacuteticas e produtivas tratam daquilo que ocorre no mais das vezes (ὡς ἐπὶ τὸ πολύ) e

assim chegam a conclusotildees que tambeacutem satildeo do mesmo tipo Assim muitos princiacutepios

eacutetico-poliacuteticos norteadores das accedilotildees humanas mesmo sendo verdadeiros em sua maior

parte trazem a possibilidade de exceccedilotildees Por exemplo Aristoacuteteles sustenta que na maior

parte dos casos eacute um dever maior dar a contrapartida pelos favores recebidos do que

favorecer os amigos Outrossim eacute um dever maior pagar as nossas diacutevidas aos nossos

credores do que emprestar dinheiro a algum amigo Todavia nem isso deve ser sempre

assim em todas as circunstacircncias pois natildeo eacute possiacutevel distinguir uma coisa ou outra de

uma forma rigorosamente cientiacutefica (Eacutet Nic 1164b 30-35) Dessarte eacute preciso

reconhecer que os princiacutepios eacutetico-poliacuteticos satildeo aplicados em sua maior parte mas natildeo

necessariamente

Olivier Reboul ressalta que na visatildeo de Aristoacuteteles a retoacuterica eacute uma arte situada

abaixo da filosofia e das ciecircncias exatas as quais satildeo demonstrativas e atingem verdades

necessaacuterias que como os teoremas soacute podem ser o que satildeo possibilitando compreender

e prever No entanto a arte retoacuterica soacute pode alcanccedilar o verossiacutemil ou seja aquilo que

acontece no mais das vezes mas que poderia acontecer de outra forma Reboul acrescenta

ainda que existem para Aristoacuteteles dois mundos O mundo divino (supralunar) que eacute

cognosciacutevel pela razatildeo demonstrativa a qual eacute capaz de conhecer tanto o divino invisiacutevel

quanto o divino visiacutevel ou seja os astros que satildeo objetos da astronomia matemaacutetica

posto que seus movimentos satildeo necessaacuterios Por serem necessaacuterios satildeo tambeacutem

perfeitamente calculaacuteveis e previsiacuteveis E o mundo terreno (sublunar) onde existem a

mudanccedila o acaso a contingecircncia a imprevisibilidade no qual a ciecircncia perfeita nunca eacute

possiacutevel onde existe o provaacutevel o verossiacutemil Por essa razatildeo este mundo seria mormente

aberto agrave accedilatildeo humana onde a previsatildeo eacute mais ou menos provaacutevel as decisotildees mais ou

menos justas no qual eacute mister contentar-se com provas mais ou menos convincentes e

com opccedilotildees mais ou menos razoaacuteveis (REBOUL 2004 40-41)

Aristoacuteteles assim como Platatildeo antes dele preocupou-se primordialmente com uma

compreensatildeo cientiacutefica do mundo que envolvesse o conhecimento pelas causas e tal

conhecimento tambeacutem teria por objeto o que natildeo pode ser de outra maneira Natildeo obstante

eacute inequiacutevoco que as condiccedilotildees em apreccedilo satildeo demasiadamente restritivas No que

concerne agrave arte retoacuterica Aristoacuteteles assevera que natildeo eacute conveniente ao orador veicular no

seu discurso proposiccedilotildees cientiacuteficas porquanto ainda que possuiacutesse a ciecircncia mais exata

ele natildeo seria capaz de persuadir um auditoacuterio natildeo especializado A comunicaccedilatildeo da

verdade cientiacutefica tornar-se-ia inuacutetil para um auditoacuterio composto de pessoas comuns

Portanto o discurso cientiacutefico soacute eacute adequado para o ensino enquanto que as provas por

persuasatildeo e os raciociacutenios retoacutericos satildeo formados de premissas comumente aceitas pelas

multidotildees (Ret 1355a 32-39)

Pois o discurso cientiacutefico eacute proacuteprio do ensino e o ensino aqui eacute impossiacutevel visto ser necessaacuterio que as provas por persuasatildeo e os raciociacutenios se formem de argumentos comuns como jaacute tivemos ocasiatildeo de dizer nos Toacutepicos a propoacutesito da comunicaccedilatildeo com as multidotildees

Considerando-se o ponto de vista de Aristoacuteteles de que o ensino seria adequado

somente no contexto especiacutefico da ciecircncia e natildeo no da retoacuterica Enrico Berti sustenta que

a situaccedilatildeo concreta na qual pensa Aristoacuteteles ao teorizar sobre a ciecircncia apodiacutectica seria

aquela constituiacuteda por um cientista que possuindo o domiacutenio de uma determinada

ciecircncia se propotildee a expocirc-la a outros ou seja a ensinaacute-la O discurso cientiacutefico seria

essencialmente um monoacutelogo ainda que direcionado aos ouvintes pois estes natildeo teriam

nada a dizer e deveriam somente aprender ou seja ser auxiliados a ver com clareza aquilo

que eacute obscuro Desse modo demonstrar cientificamente significaria mostrar a verdade de

alguma coisa a quem a ignora e isto significaria ensinar no sentido mais rigoroso do

termo (BERTI 1998 11) Eacute manifesto pois o caraacuteter essencialmente didaacutetico dos

silogismos apodiacutecticos os quais mesmo sob uma condiccedilatildeo de possiacutevel diaacutelogo como

exatamente eacute o ensino constituem por excelecircncia um monoacutelogo porque o discente

precisa confiar no docente (Ibid 1998 30-31) E uma vez que a demonstraccedilatildeo apodiacutectica

seja realizada por exemplo que a soma dos acircngulos internos de um triacircngulo equivale a

dois retos ela natildeo poderaacute jamais ser concebida pelo ouvinte de modo diferente a natildeo ser

que este entre em contradiccedilatildeo consigo mesmo

No entanto os assuntos tratados pela arte retoacuterica diferente do que ocorre na

ciecircncia ou nas demais artes podem receber uma soluccedilatildeo diferente ou seja podem ser de

uma maneira ou de outra porquanto no acircmbito do discurso retoacuterico delibera-se amiuacutede

sobre accedilotildees e todas elas apresentam em comum a ausecircncia de qualquer necessidade A

propoacutesito os temas mais importantes sobre os quais todos os oradores deliberativos

oferecem conselho em puacuteblico satildeo basicamente cinco financcedilas guerra e paz defesa

nacional importaccedilotildees e exportaccedilotildees e legislaccedilatildeo36

A deliberaccedilatildeo (βούλευσις) natildeo diz respeito a nenhum conhecimento cientiacutefico pois

quem estaacute a passar por um processo de deliberaccedilatildeo natildeo procura saber nada acerca de

coisas que jaacute conhece (Eacutet Nic 1142a 31-1142b 1) A βούλευσις eacute uma forma de

aconselhamento porque aquele que estaacute em processo deliberativo (a despeito do resultado

da deliberaccedilatildeo) procura mediante o caacutelculo de probabilidades (λογίζεσθαι) a melhor

soluccedilatildeo (Ibid 1142b 15) Outrossim nada do que jaacute ocorreu no passado poderaacute ser objeto

de deliberaccedilatildeo por exemplo ningueacutem pode ainda decidir se a cidade de Troia teraacute sido

destruiacuteda Desse modo ningueacutem eacute capaz de deliberar a respeito do que jaacute aconteceu mas

somente sobre o futuro e o que eacute possiacutevel (Ibid 1139b 5-10) Isto ocorre porque o ato

tipicamente deliberativo soacute eacute possiacutevel diante de fatos que admitem mais de uma soluccedilatildeo

jaacute que natildeo eacute possiacutevel deliberar senatildeo a respeito das questotildees que satildeo manifestamente

36 Conforme Aristoacuteteles o orador que se dispor a dar conselhos sobre financcedilas precisa conhecer os recursos que tem a cidade e qual o seu valor de tal modo que se algum for omitido fazer a reposiccedilatildeo e se algum for insuficiente o aumentar Deve ainda conhecer todas as despesas da cidade com o intuito de eliminar o que eacute supeacuterfluo e reduzir o que for excessivo A respeito da guerra e da paz ele precisa conhecer o poder da cidade quanta forccedila jaacute possui e a quanta pode chegar a natureza das forccedilas que tem agrave sua disposiccedilatildeo e as que pode acrescentar conhecer com que povos se pode esperar fazer a guerra a fim de manter a paz com os mais fortes e deflagrar a guerra contra os mais fracos e se os recursos militares da cidade satildeo iguais ou desiguais aos dos vizinhos Quanto agrave defesa do paiacutes o orador natildeo pode ignorar o modo como este eacute guardado mas conhecer o nuacutemero e a espeacutecie das tropas que o defendem e os lugares onde se localizam as fortalezas Acerca da provisotildees ele precisa conhecer quantos e quais os gastos suficientes agrave cidade que alimentos satildeo produzidos no seu solo e os que satildeo importados e que exportaccedilotildees e importaccedilotildees satildeo necessaacuterias tendo em vista os possiacuteveis tratados e acordos E sobre a legislaccedilatildeo eacute indispensaacutevel que ele saiba quantas satildeo as formas de governo o que conveacutem a cada uma e por quais razotildees se corrompem eacute uacutetil ainda para a legislaccedilatildeo que ele natildeo conheccedila somente qual eacute a forma de governo conveniente mas tambeacutem conhecer as dos outros paiacuteses e satildeo uacuteteis os relatos de viagens porque neles pode-se aprender as leis dos povos (Ret 1359b 33-1360a 44)

suscetiacuteveis de receber duas soluccedilotildees contraacuterias Escreve Aristoacuteteles sobre este assunto

(Ret 1356b 43-1357a 1-9)

Pois tambeacutem esta natildeo forma silogismos de premissas tomadas ao acaso (ainda que assim pareccedila aos insensatos) mas das que o raciociacutenio requer e a retoacuterica forma-os da mateacuteria sobre que estamos habituados a deliberar A funccedilatildeo desta consiste em tratar das questotildees sobre as quais deliberamos e para as quais natildeo dispomos de artes especiacuteficas e isto perante um auditoacuterio incapaz de ver muitas coisas ao mesmo tempo e de seguir uma longa cadeia de raciociacutenios Noacutes deliberamos sobre as questotildees que parecem admitir duas possibilidades de soluccedilatildeo jaacute que ningueacutem delibera sobre as coisas que natildeo podem ter acontecido nem vir a acontecer nem ser de maneira diferente pois nesses casos nada haacute a fazer

Conforme a anaacutelise de Pierre Aubenque sobre a βούλευσις natildeo se delibera sobre

todos os assuntos mas somente sobre aqueles que dependem da accedilatildeo humana o que

excluiria os seres imutaacuteveis e eternos (da ciecircncia) A deliberaccedilatildeo envolveria tudo aquilo

que eacute obra do homem e em oposiccedilatildeo a Platatildeo Aristoacuteteles aventaria a incompatibilidade

entre a ciecircncia e a iniciativa humana que seria a consequecircncia da separaccedilatildeo de seus

domiacutenios Para Aubenque a ciecircncia diz respeito ao necessaacuterio enquanto que a atividade

inteligente do homem concerne senatildeo ao acaso pelo menos a um domiacutenio intermediaacuterio

entre a necessidade e o acaso ndash as coisas que acontecem frequentemente cujo resultado

eacute incerto e comportam indeterminaccedilatildeo Dessarte a deliberaccedilatildeo representaria a via

humana ou seja aquela de um homem que natildeo eacute completamente saacutebio nem ignorante

num mundo que natildeo eacute absolutamente racional nem absurdo (AUBENQUE 2003 174-

175 188)

Outrossim a deliberaccedilatildeo seria da ordem da opiniatildeo de um saber aproximativo

como o eacute o seu objeto e fundado nesse saber nenhuma deliberaccedilatildeo pode ser considerada

infaliacutevel O homem de bom conselho anuncia o que eacute possiacutevel e o que natildeo eacute mas natildeo

pode fazer com que esse ldquopossiacutevelrdquo seja necessaacuterio Agrave vista disso ainda que a deliberaccedilatildeo

seja a melhor ou a mais razoaacutevel sempre comportaraacute o risco do insucesso Todavia o que

justificaria humanamente a deliberaccedilatildeo apesar da sua falibilidade eacute que uma accedilatildeo ideal

e cientiacutefica com a qual sonhava Platatildeo natildeo parece ser possiacutevel em virtude da resistecircncia

das mediaccedilotildees rebeldes da mateacuteria e da imprevisibilidade do tempo (Ibid 2003 184)

A verdade com a qual a retoacuterica estaacute comprometida natildeo se relaciona a estados de

coisas necessaacuterios mas agravequeles que tambeacutem podem comportar-se diferentemente e sobre

os quais satildeo possiacuteveis somente proposiccedilotildees vaacutelidas no mais das vezes (ὡς ἐπὶ τὸ πολύ)

E tal domiacutenio conteacutem exatamente as coisas sobre as quais se tem de entrar em conselho

consigo mesmo ou com os demais cidadatildeos da sociedade Isto posto o acircmbito da arte

retoacuterica eacute o da deliberaccedilatildeo e nesse domiacutenio predomina o verossiacutemil jaacute que natildeo se delibera

sobre aquilo que eacute evidente mas sobre fatos incertos que podem realizar-se atraveacutes das

accedilotildees humanas como a vitoacuteria numa guerra e coisas desse jaez

De fato soacute eacute possiacutevel deliberar sobre coisas que eacute possiacutevel influenciar mediante as

accedilotildees humanas razatildeo pela qual ningueacutem delibera sobre coisas eternas como o sistema

solar ou a incomensurabilidade da diagonal e do lado do quadrado Tambeacutem natildeo se

delibera sobre as coisas que estatildeo sempre num movimento regular a exemplo dos

solstiacutecios e do nascer do sol (Eacutet Nic 1112a 20-25) Pode-se estudar esses assuntos

contemplativamente mas eacute manifesto que elas natildeo podem ser afetadas pela deliberaccedilatildeo

ou pela escolha humana A deliberaccedilatildeo diz respeito agraves coisas que embora seguindo em

geral certas linhas definidas natildeo tecircm resultados previsiacuteveis Algumas coisas natildeo admitem

de modo algum ser de outro jeito porque como eternas e imutaacuteveis elas satildeo

incondicionalmente necessaacuterias Todos os assuntos ligados agrave matemaacutetica agrave astronomia

ou agrave teologia natildeo estatildeo dentro da esfera da deliberaccedilatildeo E sobre estes assuntos ningueacutem

com algum entendimento iria deliberar embora um tolo ou um louco pudesse fazecirc-lo

Aliaacutes natildeo se delibera sobre os fins mas somente sobre os meios um meacutedico jamais

delibera se efetuaraacute ou natildeo a cura de seu paciente o orador natildeo delibera se persuadiraacute ou

natildeo os seus ouvintes ou um poliacutetico se vai ou natildeo produzir uma boa legislaccedilatildeo mas eles

se ocupam dos meios a partir dos quais poderatildeo atingir seus objetivos (Ibid 1112b 12-

15)

Conveacutem ainda levar em consideraccedilatildeo que do ponto de vista da comunicaccedilatildeo com

as multidotildees o discurso retoacuterico deve apoiar-se nos valores comuns nas opiniotildees

geralmente aceitas como expedientes legiacutetimos a fim de obter a persuasatildeo poreacutem

Aristoacuteteles natildeo deixa de reconhecer que em termos absolutos a verdade eacute sempre

superior em relaccedilatildeo agrave opiniatildeo (Ret 1365a 47-1365b 1) No entanto nos contextos em

que eacute mister a deliberaccedilatildeo o emprego da argumentaccedilatildeo retoacuterica torna-se crucial para

encontrar a soluccedilatildeo mais adequada em face de um impasse qualquer Sendo assim numa

situaccedilatildeo destituiacuteda de evidecircncia onde natildeo eacute possiacutevel uma demonstraccedilatildeo cientiacutefica nem

qualquer previsatildeo exata a arte retoacuterica possui a funccedilatildeo de fazer a defesa de um

determinado ponto de vista e esclarecer aqueles que devem formular a decisatildeo definitiva

a saber os juiacutezes de um tribunal ou os membros de uma assembleia A este respeito Luiz

Rohden declara que uma das utilidades da arte retoacuterica consiste na tentativa de

fundamentar decisotildees praacuteticas que podem orientar em diferentes sentidos o agir humano

pois na condiccedilatildeo de um tipo de racionalidade a retoacuterica compotildeem-se do universo do

persuasivo em que os temas eacutetico-poliacuteticos satildeo organizados dentro de uma ldquoarquitetura

razoaacutevelrdquo em que haacute diferentes possibilidades para o agir humano A atividade retoacuterica

portanto vincula-se ao universo da deliberaccedilatildeo e do realizaacutevel Aliaacutes no acircmbito da

retoacuterica seria inuacutetil investigar o bem humano em si conforme preconiza o projeto

platocircnico mas eacute necessaacuterio considerar o bem enquanto referido a um puacuteblico em

particular cujo aspecto foi negligenciado por Platatildeo e eacute desconsiderado pela

racionalidade apodiacutectica (ROHDEN 1997167 169)

Para Aristoacuteteles todos os silogismos (cientiacutefico dialeacutetico e retoacuterico) satildeo formados

de premissas semelhantes Das premissas de que se formam os entimemas umas seratildeo

necessaacuterias mas a maior parte eacute apenas frequente Assim os silogismos retoacutericos

(ῥητορικοὶ συλλογισμοί) mormente derivam de probabilidades (εἰκότων) e de sinais

(σημείων) enquanto que os silogismos cientiacuteficos satildeo formados a partir de premissas

necessaacuterias (Ibid 1357a 34-43)

[] e como as coisas que acontecem agrave maioria e satildeo possiacuteveis apenas se podem provar mediante silogismos formados de premissas semelhantes tal como as necessaacuterias se concluem das necessaacuterias ( o que tambeacutem sabemos pelos Analiacuteticos) eacute evidente que das premissas de que se formam os entimemas umas seratildeo necessaacuterias mas a maior parte eacute apenas frequente E uma vez que os entimemas derivam de probabilidades e sinais eacute necessaacuterio que cada um destes se identifique com a classe de entimema correspondente

Pode-se assegurar entatildeo que a arte retoacuterica estaacute longe de ser uma ciecircncia exata

que partiria de axiomas e princiacutepios cujas conclusotildees seriam sempre necessaacuterias longe

disso o seu processo de inferecircncia deve limitar-se ao seu proacuteprio material as

probabilidades e os sinais Na maior parte dos casos as argumentaccedilotildees retoacutericas natildeo

possuem caraacuteter de ciecircncia ou seja de verdade necessaacuteria Por isso se um orador escolhe

as premissas dos seus argumentos de modo a defrontar-se com verdadeiros princiacutepios ele

jaacute natildeo faz mais retoacuterica mas ciecircncia Ademais o discurso cientiacutefico eacute um monoacutelogo de

modo que os ouvintes nada teriam a dizer devendo somente aprender ao passo que este

processo natildeo ocorreria no discurso retoacuterico o qual se abre agraves perspectivas individuais de

cada ser humano Por essa razatildeo o orador que ultrapassa os limites da retoacuterica e invade

o campo da ciecircncia ao demonstrar suas teses atraveacutes de silogismos regulares e conclusotildees

necessaacuterias perde a caracteriacutestica de orador e transforma-se num homem de ciecircncia ou

num filoacutesofo

Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles explicita que a investigaccedilatildeo sobre determinados

assuntos sobretudo os ligados agraves accedilotildees humanas apenas seraacute adequada se contiver tanta

exatidatildeo (ἀκριβής) quanto comportar o assunto de modo que natildeo se deve exigir precisatildeo

em todos os raciociacutenios nem eacute necessaacuterio procurar o mesmo grau de rigor para todas as

aacutereas cientiacuteficas nem para todas as artes Isto posto no acircmbito da arte retoacuterica conveacutem

contentar-se com a indicaccedilatildeo da verdade aproximadamente em linhas gerais e falar de

coisas que satildeo verdadeiras ὡς ἐπὶ τὸ πολύ ou seja no mais das vezes e natildeo em termos

absolutos Aleacutem disso eacute proacuteprio daquele que passou por um processo de educaccedilatildeo buscar

a precisatildeo em cada gecircnero de coisas mas somente na medida em que a admite a natureza

do assunto Dessarte eacute evidente que natildeo seria menos insensato aceitar um raciociacutenio

provaacutevel da parte de um matemaacutetico do que exigir demonstraccedilotildees cientiacuteficas de um

orador37 Escreve Aristoacuteteles sobre este assunto (Eacutet Nic 1094 b 20-30)

Damo-nos portanto por satisfeitos se ao tratarmos desses assuntos a partir de pressupostos que admitem margem de erro indicarmos a verdade grosso modo segundo uma sua caracterizaccedilatildeo apenas nos traccedilos essenciais Pois para o que acontece apenas no mais das vezes com pressupostos compreendidos apenas grosso modo e segundo uma caracterizaccedilatildeo nos seus traccedilos essenciais basta que as conclusotildees a que chegarmos tenham o mesmo grau de rigor Do mesmo modo eacute preciso pedir que cada uma das coisas tratadas seja aceite a partir dessa mesma base de entendimento Eacute que eacute proacuteprio daquele que passou por um processo de educaccedilatildeo requerer para cada passo particular de investigaccedilatildeo apenas tanto rigor quanto a natureza do tema em tratamento admitir Na verdade parece um erro equivalente aceitar conclusotildees aproximadas a um matemaacutetico e exigir demonstraccedilotildees a um orador

Com efeito quando as coisas numa determinada aacuterea sobretudo em relaccedilatildeo agraves

situaccedilotildees concretas da accedilatildeo humana aplicam-se em sua maior parte parece que a verdade

sobre elas precisa ser veiculada nos seus traccedilos essenciais em vez de rigorosamente

(Ibid 1104a 1-3) Nesse caso o tratamento de um assunto nos seus traccedilos essenciais

parece ser a funccedilatildeo do grau de rigor que o assunto impotildee agrave ciecircncia que o aborda Na arte

37 Semelhantemente o Estagirita contrapotildee na Metafiacutesica dois tipos opostos de discurso quais sejam o matemaacutetico caracterizado por um rigor absoluto e outro facilmente identificaacutevel com aquele da arte retoacuterica destituiacutedo de rigor e caracterizado pelo uso de exemplos e testemunhos poeacuteticos (Met 995a 5-10) ldquoOra alguns natildeo estatildeo dispostos a ouvir se natildeo se fala com rigor matemaacutetico outros soacute ouvem quem recorre a exemplos enquanto outros ainda exigem que se acrescente o testemunho de poetas Alguns exigem que se diga tudo com rigor para outros a contraacuterio o rigor incomoda seja por sua incapacidade de compreender os nexos do raciociacutenio seja por aversatildeo agraves sutilizas De fato algo do rigor pode parecer sutileza e por isso alguns o consideram um tanto mesquinho tanto nos discursos quanto nos negoacuteciosrdquo

retoacuterica (bem como na ciecircncia poliacutetica e na eacutetica) discute-se sobre coisas que se aplicam

ὡς ἐπὶ τὸ πολύ razatildeo pela qual essas disciplinas satildeo tratadas em linhas gerais e natildeo com

o rigor cientiacutefico que caracteriza as ciecircncias exatas Todavia este tratamento longe de

ser uma falha corrigiacutevel em uma ciecircncia parece ser um sinal de sua probidade intelectual

ou seja do entendimento de que seu grau de rigor deve corresponder ao seu proacuteprio

objeto Dessa maneira constitui uma marca de falta de instruccedilatildeo esperar maior rigor em

uma ciecircncia do que o seu assunto permite

Outrossim Aristoacuteteles assegura que o verdadeiro homem de accedilatildeo poliacutetica

(πολιτικός) deve de alguma forma conhecer a alma humana mas natildeo no sentido rigoroso

do termo conforme aventava Platatildeo mas ele deve apenas conhecer um conhecimento

teoacuterico dela nos seus aspectos gerais apenas na medida adequada para fins legislativos

uma vez que o conhecimento mais rigoroso demandaria mais esforccedilo do que o seu

propoacutesito requer (Ibid 1102a 1-10) Desse modo natildeo cabe ao homem de accedilatildeo poliacutetica

investigar com rigor cientiacutefico a natureza da alma humana porque tal incumbecircncia cabe

ao filoacutesofo A mesma concepccedilatildeo aplicar-se-ia ao orador pois este deve conhecer a alma

humana bem como outras mateacuterias somente na medida em que eacute uacutetil para os propoacutesitos

da persuasatildeo

Aristoacuteteles estabelece nos Toacutepicos que uma definiccedilatildeo eacute uma frase ou proposiccedilatildeo

que significa a essecircncia de uma coisa (Toacutep 102a 1) No entanto ele enfatiza na Retoacuterica

que as definiccedilotildees propostas para serem utilizadas nos argumentos retoacutericos satildeo suficientes

para a finalidade de persuadir se natildeo forem obscuras nem tecnicamente rigorosas (Ret

1369b 39-41) A retoacuterica por certo natildeo pode descer aos detalhes e determinar com

absoluta precisatildeo exatidatildeo ou rigor o que eacute belo justo e bom em toda e qualquer

circunstacircncia ou em qualquer caso particular mas deve indicar o que eacute belo justo e bom

em geral A distinccedilatildeo entre os niacuteveis de precisatildeo na abordagem da retoacuterica e da eacutetica a

tiacutetulo de exemplo pode ser encontrada no contraste entre o modo como Aristoacuteteles

procede na definiccedilatildeo de virtude (ἀρετή) na Retoacuterica e na Eacutetica a Nicocircmaco

Na Retoacuterica a ἀρετή consiste de um lado no poder de produzir e conservar os bens

e de outro na faculdade de prestar muitos e relevantes serviccedilos de toda sorte e em todos

os casos Os elementos da virtude satildeo a justiccedila a coragem a temperanccedila a magnificecircncia

a magnanimidade a liberalidade a mansidatildeo a prudecircncia e a sabedoria E as maiores

virtudes satildeo necessariamente as que satildeo mais uacuteteis aos outros uma vez que a virtude eacute a

faculdade de fazer o bem Por isso se honram principalmente os justos em vez dos

corajosos visto que aqueles satildeo uacuteteis natildeo somente no periacuteodo da guerra mas tambeacutem no

periacuteodo de paz (Ibid 1366b 1-8)

Na Eacutetica a Nicocircmaco aleacutem de aprofundar as noccedilotildees acima indicadas Aristoacuteteles

assegura que a ἀρετή eacute um haacutebito voluntaacuterio que consiste num meio-termo (μεσοτeacuteς)

estabelecido pela razatildeo e como a estabeleceria um homem dotado de prudecircncia (Eacutet Nic

1107a 1-4) Desse modo a virtude eacutetica seria uma disposiccedilatildeo do caraacuteter escolhida

antecipadamente a qual estaacute situada no meio e eacute definida relativamente aos agentes

morais E a situaccedilatildeo do meio existe entre dois viacutecios o excesso (ὑπερβολή) e o defeito

(ἔλλειψις) Aliaacutes sem muito rigor e aprofundamento em comparaccedilatildeo com a Eacutetica a

Nicocircmaco Aristoacuteteles define a justiccedila na Retoacuterica simplesmente como a virtude pela qual

cada um possui os bens em conformidade com a lei e a injusticcedila o viacutecio pelo qual se

reteacutem o que eacute dos outros em detrimento da lei (Ret 1366b 10-13)

Conforme a apreciaccedilatildeo de E M Cope sobre este assunto existiria na Eacutetica a

Nicocircmaco (Livro II cap 6) uma completa descriccedilatildeo de todos os pontos e caracteriacutesticas

essenciais pelas quais a virtude eacute distinta de outros estados intelectuais e morais poreacutem

na Retoacuterica (Livro I cap 9) as definiccedilotildees seriam superficiais e incompletas Ele tambeacutem

enfatiza que a mesma definiccedilatildeo de prazer exposta na Retoacuterica com o intuito de persuadir

o auditoacuterio (Livro I cap 11) seria rejeitada na Eacutetica a Nicocircmaco (Livro X cap 3) Aleacutem

disso o mesmo aconteceria em outras obras de Aristoacuteteles na anaacutelise feita acerca dos

tipos de governos na Poliacutetica (livro III) e na Retoacuterica (Livro I cap 8) e na definiccedilatildeo de

πάθη que eacute encontrada em Sobre a Alma (Livro I cap 1 15) e na Retoacuterica (Livro II cap

1) Enfim Cope justifica as dessemelhanccedilas em apreccedilo mediante a hipoacutetese de que as

definiccedilotildees retoacutericas soacute visam descrever as coisas como elas satildeo na comunicaccedilatildeo e no

intercacircmbio entre os homens por isso devem ser adequadas para o propoacutesito da

persuasatildeo enquanto que as definiccedilotildees cientiacuteficas se esforccedilam por penetrar na verdadeira

natureza das coisas e estabelecer a sua essecircncia (COPE 1867 13)

52 Entimema o silogismo retoacuterico

Para Aristoacuteteles um silogismo (συλλογισμός) eacute um argumento em que certas

coisas tendo sido estabelecidas algo diferente dessas coisas estabelecidas

necessariamente resulta em decorrecircncia delas (Anal Ant 24b 13-15) Para C D C

Reeve as coisas estabelecidas satildeo as premissas do argumento ao passo que o resultado

necessaacuterio constitui sua conclusatildeo Tais argumentos consistem em uma premissa maior

uma premissa menor e uma conclusatildeo em que as premissas tecircm exatamente um uacutenico

termo meacutedio em comum e a conclusatildeo conteacutem apenas os outros dois termos extremos

quais sejam o termo menor e o termo maior O termo predicado da conclusatildeo eacute o termo

maior oriundo da premissa maior seu sujeito eacute o termo menor oriundo da premissa

menor O termo meacutedio deve ser sujeito de ambas as premissas predicado de ambas as

premissas ou sujeito de uma e predicado da outra (REEVE 2014 91-92)

Semelhantemente agrave definiccedilatildeo exarada nos Analiacuteticos Anteriores o Estagirita

define o silogismo nos Toacutepicos como o discurso em que estabelecidas certas coisas

outras coisas diferentes se seguem necessariamente das primeiras O silogismo eacute uma

ἀπόδειξις ou seja uma demonstraccedilatildeo cientiacutefica quando suas premissas satildeo verdadeiras

primeiras imediatas mais cognosciacuteveis que a conclusatildeo anteriores a esta e que sejam

causas dela Assim o silogismo cientiacutefico tem lugar quando as premissas satildeo verdadeiras

isto eacute quando elas exprimem o que efetivamente satildeo as coisas natildeo sendo possiacutevel existir

ciecircncia de um estado de coisas que natildeo existe Quando satildeo primeiras e imediatas ou seja

quando satildeo indemonstraacuteveis pois se as premissas devessem ser sempre demonstradas ad

infinitum seria impossiacutevel a ciecircncia As premissas devem ser a causa da conclusatildeo porque

ter ciecircncia de algo significa conhecer pelas causas Devem ser anteriores para poder ser a

causa da conclusatildeo e ainda devem ser mais conhecidas que esta Escreve Aristoacuteteles a

este respeito (Seg Anal 71b 19-24)

Assim se o conhecer cientificamente eacute como propusemos eacute necessaacuterio que o conhecimento demonstrativo provenha de itens verdadeiros primeiros imediatos mais cognosciacuteveis que a conclusatildeo anteriores a ela e que sejam causas dela Pois eacute deste modo que os princiacutepios seratildeo de fato apropriados ao que se prova Eacute possiacutevel haver silogismo mesmo sem tais itens mas natildeo eacute possiacutevel haver demonstraccedilatildeo Pois tal silogismo natildeo poderia propiciar conhecimento cientiacutefico

No que tange ao silogismo dialeacutetico (διαλεκτικὸς συλλογισμός) que eacute semelhante

ao retoacuterico as suas premissas natildeo satildeo verdadeiras e primeiras mas satildeo endoxais ou seja

apoiam-se nas ἔνδοξα que grosso modo satildeo as opiniotildees geralmente aceitas Todavia satildeo

verdadeiras e primeiras aquelas coisas nas quais se acredita em virtude de nenhuma outra

coisa que natildeo seja elas proacuteprias pois acerca dos primeiros princiacutepios da ciecircncia eacute

descabido buscar mais aleacutem o porquecirc e as razotildees dos mesmos Aliaacutes cada um dos

primeiros princiacutepios deve impor a convicccedilatildeo da sua verdade em si mesmo e por si mesmo

(Toacutep 100a 28-100b 20) Ἔνδοξα por sua vez (Ibid 100b 22-24) satildeo aquelas opiniotildees

que todo mundo admite ou a maioria das pessoas ou os filoacutesofos e dentre estes os mais

notaacuteveis e eminentes (Ἔνδοξα δὲ τὰ δοκοῦντα πᾶσιν ἢ τοῖς πλείστοις ἢ τοῖς σοφοῖς καὶ

τούτοις ἢ πᾶσιν ἢ τοῖς πλείστοις ἢ τοῖς μάλιστα γνωρίμοις καὶ ἐνδόξοις)

Depois das breves consideraccedilotildees sobre o silogismo cientiacutefico e o silogismo

dialeacutetico conveacutem analisarmos mais detidamente o silogismo retoacuterico Este conforme jaacute

esboccedilado foi desenvolvido por Aristoacuteteles na Retoacuterica e eacute denominado de entimema

(ἐνθύμημα) cujas premissas satildeo derivadas das proposiccedilotildees que veiculam probabilidades

e sinais (τὰ δ᾽ ἐνθυμήματα ἐξ εἰκότων καὶ ἐκ σημείων) A probabilidade (εἰκός) eacute definida

por Aristoacuteteles como aquilo que geralmente acontece mas natildeo absolutamente antes versa

sobre coisas que podem ser de uma maneira ou de outra e relaciona-se no que concerne

ao provaacutevel como o universal se relaciona com o particular (Ret 1357a 45-48) Todavia

segundo o dicionaacuterio de Henry George Liddel e Robert Scott (A Greek-English Lexicon)

a palavra grega ldquoεἰκόςrdquo pode ser traduzida tanto pelo adjetivo ldquoverossiacutemilrdquo (likelihood)

como por ldquoprovaacutevelrdquo (probable) e muitos tradutores assim procederam empregando

distintamente ora uma ora outra sem se aperceberem que ambas as palavras podem ser

utilizadas no mesmo contexto rementendo-se ao termo original grego ldquoεἰκόςrdquo mas com

significados diferentes a primeira (verossiacutemil) designaria uma concepccedilatildeo loacutegica

enquanto que a segunda (provaacutevel) uma concepccedilatildeo ontoloacutegica

Em sua anaacutelise do fundamento do discurso verossiacutemil na retoacuterica de Aristoacuteteles

A M Yamin argumenta que a oscilaccedilatildeo da traduccedilatildeo da palavra εἰκός que ora eacute traduzida

por verossiacutemil ora por provaacutevel explica-se pela oscilaccedilatildeo entre o plano do discurso e o

plano dos fatos Assim como eacute possiacutevel falar de discurso e fato verdadeiros tambeacutem eacute

possiacutevel falar de discurso e fato εἰκός E uma vez que natildeo haveria dois termos diferentes

para discurso e fato verdadeiros emprega-se o mesmo termo para discurso verossiacutemil e

fato provaacutevel Para Yamin o εἰκός eacute tanto o discurso que enuncia o estado de coisas

como o proacuteprio estado de coisas por um lado eacute uma ldquoproposiccedilatildeo geralmente admitidardquo

ou seja um discurso um juiacutezo e por outro eacute ldquoaquilo que sabemos que acontece a maior

parte das vezesrdquo que corresponderia aos fatos Um discurso eacute verossiacutemil porque estaacute de

acordo com o que realmente acontece a maior parte das vezes em um determinado

domiacutenio O discurso εἰκός natildeo eacute de forma alguma independente do estado de coisas pois

se eacute possiacutevel um discurso εἰκός verossiacutemil eacute em virtude da possibilidade de um fato isto

eacute aquele que acontece a maior parte das vezes que neste caso recebe a designaccedilatildeo de

provaacutevel Aleacutem disso o εἰκός eacute definido como uma proposiccedilatildeo geralmente admitida o

que significa que natildeo eacute qualquer coisa regular que daacute lugar ao εἰκός jaacute que ele faz parte

do universo cultural ou de crenccedilas geralmente admitidas num determinado contexto

social Desse modo palavras verossiacutemeis seratildeo aquelas que correspondam agrave regularidade

proacutepria do universo poliacutetico ao qual pertence aquele auditoacuterio particular No entanto na

medida em que o εἰκός natildeo se limita ao plano do discurso mas relaciona-se com as coisas

que de fato acontecem nada impede que as coisas que ocorrem no domiacutenio da natureza

sejam consideradas εἰκός posto que tambeacutem ocorrem com regularidade Agrave vista disso o

εἰκός enquanto discurso eacute o enunciado endoacutexico que veicula um evento que acontece a

maior parte das vezes assim como tambeacutem eacute o proacuteprio evento de modo que se esse

enunciado eacute verossiacutemil eacute porque ele enuncia a opiniatildeo dos homens ao testemunhar um

evento provaacutevel que pode ser tanto social quanto natural (YAMIN 2016 149-153)

Com o fim de lograr maior esclarecimento sobre o significado da palavra εἰκός no

pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles cabe ainda salientar a visatildeo de Roland Barthes sobre

a mateacuteria Para este o εἰκός designaria uma ideia geral que repousa no conceito que os

homens criaram atraveacutes de experiecircncias e induccedilotildees imperfeitas No verossiacutemil aristoteacutelico

existiriam entatildeo dois nuacutecleos O primeiro nuacutecleo expressaria a ideia de geral enquanto

se opotildee agrave ideia de universal O universal seria necessaacuterio e constituiria um atributo da

ciecircncia O geral por sua vez significaria o natildeo-necessaacuterio seria um geral humano

determinado estatisticamente pela opiniatildeo do maior nuacutemero O segundo nuacutecleo

expressaria a possibilidade de contrariedade Efetivamente o entimema eacute recebido pelo

puacuteblico como um silogismo certo pois parece partir de uma opiniatildeo em que ele pode

acreditar como absolutamente certo Mas no que tange agrave ciecircncia o verossiacutemil admitiria

o contraacuterio porque nos limites da experiecircncia humana e da vida moral que se relacionam

diretamente com o εἰκός o oposto sempre seria possiacutevel (COHEN 1975 192-193)

Mas relativamente agrave ciecircncia o verossiacutemil admite o contraacuterio nos limites da experiecircncia humana e da vida moral que satildeo as do eikos o oposto nunca eacute impossiacutevel natildeo se pode prever de maneira certa (cientiacutefica) as resoluccedilotildees de um ser livre ldquoquem goza de boa sauacutede veraacute o dia de amanhatilderdquo ldquoum pai ama seus filhosrdquo ldquoum roubo cometido na casa sem arrombamento teraacute sido obra certamente de um familiarrdquo etc estaacute certo mas o contraacuterio eacute sempre possiacutevel O analista o retoacuterico sente bastante a forccedila dessas opiniotildees mas honestamente as manteacutem agrave distacircncia introduzindo-as por um esto (seja) que lhe tira a responsabilidade aos olhos da ciecircncia em que o contraacuterio jamais eacute possiacutevel

Agrave vista disso pode-se determinar que o εἰκός sumariamente significa que tendo em

vista a impossibilidade de se obter uma verdade universal e necessaacuteria eacute preciso contentar-

se com o verossiacutemil isto eacute com aquilo que parece provaacutevel por ser compartilhado pela

maioria das pessoas Desse modo quando natildeo se pode ter acesso agrave verdade cientiacutefica

conveacutem ficar satisfeito com aquelas opiniotildees que todo mundo admite ou a maioria das

pessoas ou os filoacutesofos e dentre estes os mais notaacuteveis e eminentes (que Platatildeo ordenava

descartar em benefiacutecio da ciecircncia) Pois quando natildeo se pode fazer uma demonstraccedilatildeo

pelos silogismos cientiacuteficos que partem de premissas admitidas ou demonstradas a

conclusotildees necessaacuterias deve-se ficar satisfeito com os silogismos retoacutericos que partem

de premissas verossiacutemeis para conclusotildees tambeacutem verossiacutemeis

No silogismo retoacuterico aleacutem das proposiccedilotildees que veiculam probabilidades existem

aquelas que veiculam sinais (σημεία) O sinal com efeito eacute um indiacutecio de que algo

aconteceu ou existe e supotildee a relaccedilatildeo entre dois fatos Se a relaccedilatildeo entre os fatos for

estimada necessaacuteria o sinal recebe o nome de tecmeacuterion (τεκμήριον) do contraacuterio a

conclusatildeo se reduz a uma simples possibilidade Dentre os sinais Aristoacuteteles distingue a

premissa que eacute verdadeira e necessaacuteria ndash o τεκμήριον ndash da premissa que apesar de ser

verdadeira natildeo eacute necessaacuteria (Ret 1357a 37) No tocante a esta uacuteltima Aristoacuteteles afirma

natildeo existir nome peculiar que traduza sua diferenccedila em relaccedilatildeo ao τεκμήριον mas pode-

se afirmar que ela expressa um indiacutecio mais ambiacuteguo mais incerto que o τεκμήριον Por

exemplo a marca de sangue na roupa de algum suspeito supotildee um homiciacutedio mas natildeo

com absoluta certeza pois o sangue pode proceder de um sangramento no nariz ou de um

sacrifiacutecio (COHEN 1975 193) Os sinais natildeo necessaacuterios satildeo aqueles que natildeo sendo por

si soacute suficientes a tirar toda a duacutevida mas juntos com outros indiacutecios possuem muita forccedila

probatoacuteria Desse modo o sangue parece ser um forte sinal de homiciacutedio mas porque o

tal sangue pocircde ter caiacutedo nas roupas do suspeito ou da viacutetima ou do nariz ou coisa que

o valha natildeo se segue necessariamente que quem tem as roupas ensanguentadas cometeu

um assassinato

Para Aristoacuteteles o τεκμήριον se evidencia quando se julga impossiacutevel refutar o que

foi enunciado Eacute um indiacutecio que se caracteriza por um tipo de necessidade em contraste

com um indiacutecio possiacutevel o qual pode ser de uma maneira ou de outra O τεκμήριον eacute o

indiacutecio certo o sinal necessaacuterio e indestrutiacutevel aquele que eacute e natildeo pode ser de outra forma

O τεκμήριον entatildeo implica que o nexo que liga dois fatos eacute de natureza necessaacuteria38

Aristoacuteteles lanccedila matildeo de dois exemplos para elucidar o significado de τεκμήριον como

sinal necessaacuterio ldquoeacute sinal de uma pessoa estar doente o ter febrerdquo ou ldquode uma mulher ter

dado agrave luz o ter leiterdquo Tais proposiccedilotildees aproximam-se muito daquelas que inauguram o

silogismo cientiacutefico embora se fundamentem numa universalidade de experiecircncia Isto

posto o τεκμήριον eacute um indiacutecio que possui efetivamente o caraacuteter de necessidade e por

essa razatildeo eacute irrefutaacutevel (Ret 1357 b 3-9 16-21)

Destes sinais os necessaacuterios satildeo argumentos irrefutaacuteveis os natildeo necessaacuterios natildeo tecircm nome peculiar que traduza a diferenccedila Chamo portanto necessaacuterios agravequeles sinais a partir dos quais se pode formar um silogismo E por isso eacute argumento irrefutaacutevel o que entre os sinais eacute necessaacuterio pois quando se pensa que natildeo eacute possiacutevel refutar uma tese entatildeo pensa-se que se aduz um argumento concludente ou irrefutaacutevel [tekmeacuterion] como se o assunto jaacute estivesse demonstrado e concluiacutedo [] O outro o sinal necessaacuterio eacute como algueacutem dizer que eacute sinal de uma pessoa estar doente o ter febre ou de uma mulher ter dado agrave luz o ter leite E dos sinais este eacute o uacutenico que eacute um tekmeacuterion um argumento concludente pois eacute o uacutenico que se for verdadeiro eacute irrefutaacutevel

E a fim de ilustrar uma proposiccedilatildeo possiacutevel em contraste com uma proposiccedilatildeo

necessaacuteria Aristoacuteteles se utiliza de outro exemplo ldquoum sinal de que os saacutebios satildeo justos

eacute que Soacutecrates era saacutebio e justordquo Este eacute um sinal mas refutaacutevel pois embora seja verdade

o que se diz natildeo eacute possiacutevel demonstrar de maneira inexoraacutevel que os saacutebios sejam justos

Aristoacuteteles ainda fornece o seguinte exemplo ldquoeacute sinal de febre ter a respiraccedilatildeo raacutepidardquo

Para ele mesmo que esta proposiccedilatildeo seja verdadeira eacute passiacutevel de refutaccedilatildeo porque a

despeito da febre pode a respiraccedilatildeo ser ofegante (Ibid 1357b 14-18)

Outrossim diferente da espeacutecie de silogismo ligada agrave demonstraccedilatildeo cientiacutefica o

entimema eacute um silogismo incompleto truncado jaacute que natildeo possui tantas partes nem estas

satildeo tatildeo distintas como no silogismo cientiacutefico De acordo com Aristoacuteteles para concluir

que Dorieu recebeu uma coroa como precircmio da sua vitoacuteria basta dizer que foi vencedor

em Oliacutempia sem que haja necessidade de acrescentar agrave Oliacutempia a menccedilatildeo da coroa

porque os ouvintes jaacute saberiam Portanto se alguma das premissas retoacutericas for bem

38 De acordo com Marco Faacutebio Quintiliano o τεκμήριον se distingue em trecircs tempos passado presente e futuro ldquoUma mulher que pariu necessariamente teve trato com homemrdquo Este sinal seria do tempo passado ldquoEacute necessaacuterio haver ondas quando ventos fortes caem sobre o marrdquo Este sinal seria do tempo presente Enfim ldquohaacute de morrer infalivelmente aquele cujo coraccedilatildeo estaacute feridordquo Este sinal pertenceria ao futuro (Inst orat I VII sect II)

conhecida pelo puacuteblico nem sequer eacute necessaacuterio enunciaacute-la porque o proacuteprio ouvinte a

supre Escreve Aristoacuteteles a este respeito (Ibid 1357a 18-28)

De sorte que eacute necessaacuterio que o entimema e o exemplo se ocupem de coisas que podem ser para a maior parte tambeacutem de outro modo o exemplo como induccedilatildeo e o entimema como silogismo e em geral menos do que as do silogismo primaacuterio Porque se alguma dessas premissas for bem conhecida nem sequer eacute necessaacuterio enunciaacute-la pois o proacuteprio ouvinte a supre Como por exemplo para concluir que Dorieu recebeu uma coroa como precircmio da sua vitoacuteria basta dizer pois foi vencedor em Oliacutempia sem que haja necessidade de acrescentar agrave Oliacutempia a menccedilatildeo da coroa porque toda a gente o sabe

Com efeito aleacutem da funccedilatildeo de veicular probabilidades e sinais o entimema possui

outra importante caracteriacutestica a premissa maior a premissa menor ou ateacute ambas as

premissas podem estar subentendidas na argumentaccedilatildeo retoacuterica sem nenhum prejuiacutezo

para a persuasatildeo (MEYER 2007 72) A admissatildeo preacutevia de alguma premissa pode ser

classificada em trecircs ordens distintas segundo a premissa suprimida o entimema de

primeira de segunda e de terceira ordens O entimema de primeira ordem ocorre quando

a premissa maior do silogismo natildeo eacute enunciada O entimema de segunda ordem ocorre

quando a premissa suprimida eacute a premissa menor E no entimema de terceira ordem

tanto a premissa maior quanto a premissa menor satildeo suprimidas (SOARES 2003 103)

Tendo como exemplo o entimema de primeira ordem pode ser elucidado atraveacutes do

seguinte argumento ldquoa justiccedila eacute uma virtude por isso eacute boardquo A premissa maior ldquotoda a

virtude eacute boardquo foi suprimida deste argumento cuja disposiccedilatildeo formal conforme o

esquema da primeira figura do silogismo sob o modo BARBARA39 seria a seguinte ldquotoda

a virtude eacute boa toda a justiccedila eacute virtude logo toda justiccedila eacute boardquo A propoacutesito este tipo

de silogismo eacute o que Aristoacuteteles considera o protoacutetipo dos silogismos vaacutelidos tambeacutem

chamado de ldquosilogismo perfeitordquo (Anal Ant 26b 37)

39 A figura de um silogismo eacute definida em funccedilatildeo da posiccedilatildeo do termo meacutedio nas duas premissas (maior e menor) E como o termo meacutedio natildeo pode entrar na conclusatildeo sua posiccedilatildeo se restringe somente agraves premissas nas quais pode ocupar o lugar de sujeito ou predicado Desse modo existem trecircs figuras vaacutelidas do silogismo segundo a exposiccedilatildeo de Aristoacuteteles nos capiacutetulos 4 a 6 do primeiro livro dos Analiacuteticos Anteriores No tocante agrave primeira figura do silogismo o termo meacutedio ocupa a posiccedilatildeo de sujeito na premissa maior e predicado na premissa menor cujos modos vaacutelidos dependendo da quantidade e da qualidade das proposiccedilotildees podem ser de quatro maneiras BARBARA CELARENT DARII e FERIO A segunda figura do silogismo consiste em possuir o termo meacutedio como predicado em ambas as premissas cujos modos satildeo CESARE CAMESTRES FESTINO e BAROCO Finalmente a terceira figura do silogismo consiste em possuir o termo meacutedio como sujeito em ambas as premissas cujos modos satildeo DARAPTI DISAMIS DATISI FELAPTON FESAPO e FERISON

Eacute manifesto que o entimema eacute um silogismo mas um silogismo imperfeito posto

que pode suprimir uma das duas premissas ou ateacute ambas Todavia se o entimema eacute um

silogismo imperfeito isso soacute pode ocorrer no acircmbito da loacutegica formal pois no acircmbito da

comunicaccedilatildeo com as multidotildees cujo escopo eacute a persuasatildeo ele permanece irretocaacutevel

Portanto no acircmbito do discurso retoacuterico os raciociacutenios completos e formalmente

elaborados que veiculassem aos ouvintes todas as premissas de um argumento aleacutem de

serem enfadonhos correriam o risco de cair no ridiacuteculo haja vista que algumas delas

seriam oacutebvias Aliaacutes utilizam-se as premissas ausentes que satildeo oacutebvias no cotidiano pela

linguagem natural e natildeo somente no discurso retoacuterico e reiteraacute-las poderiam cansar

inutilmente os interlocutores

Com o escopo de se obter melhor esclarecimento sobre a estrutura loacutegica do

entimema seria proveitoso o exame minucioso da maneira pela qual algumas premissas

satildeo subentendidas no acircmbito de um discurso retoacuterico Forbes I Hill analisa uma seacuterie de

entimemas tal como poderiam surgir num discurso retoacuterico em comparaccedilatildeo com

silogismos cujas premissas natildeo satildeo subentendidas Ele assim procede a fim de mostrar

que as regras formais da loacutegica no interior da argumentaccedilatildeo entimemaacutetica corresponde agraves

regras formais da silogiacutestica em geral exposta por Aristoacuteteles nos Analiacuteticos Anteriores

Segue o exemplo de entimemas alvitrado por Hill ldquoPor que deveriacuteamos marchar ateacute

Queroneso e combater contra Filipe A proacutepria conservaccedilatildeo esta eacute a razatildeo Porque se

natildeo fazermos ele venceraacute nossos aliados um atraacutes do outro ateacute que restemos somente noacutes

para lutarrdquo Segundo Hill ao se colocar todas as premissas que estatildeo subentendidas nestes

entimemas sob a forma dos silogismos vaacutelidos expressa por Aristoacuteteles nos Analiacuteticos

Anteriores entatildeo os entimemas se desdobrariam nos seguintes termos ldquoTodos os meios

de autoconservaccedilatildeo constituem o maior dos bens para Estado Possuir aliados eacute um dos

meios de autoconservaccedilatildeo Logo possuir aliados eacute um dos maiores bens para o Estado

Possuir aliados constitui um dos maiores bens para o Estado Filipe eacute um homem que

destruiraacute nossos aliados Portanto Filipe eacute um homem que destruiraacute um dos maiores bens

para o Estado Todos os homens que querem destruir um dos maiores bens para o Estado

satildeo homens que devemos combater Filipe eacute um homem que quer destruir um dos maiores

bens para o Estado Sendo assim Filipe eacute um homem que devemos combaterrdquo

(MURPHY 1989 45-47)

A disposiccedilatildeo dos argumentos na forma geral do silogismo permitiu-nos examinar

a validez estrutural que se encontra nas ldquoentrelinhasrdquo da exortaccedilatildeo ao combate exposto

no primeiro caso pelos entimemas poreacutem sua exposiccedilatildeo completa como jaacute frisado natildeo

seria exequiacutevel num discurso efetivo Aleacutem disso com base nas regras formais

estabelecidas por Aristoacuteteles nos Analiacuteticos Anteriores as quais foram verificadas

sumariamente no desdobramento dos entimemas foi possiacutevel assegurar que os

argumentos entimemaacuteticos satildeo logicamente vaacutelidos

53 A relevacircncia persuasiva da opiniatildeo geral e da adaptaccedilatildeo agrave mentalidade do auditoacuterio

Aleacutem dos aspectos do entimema ateacute aqui considerados conveacutem ainda destacar que

ele consiste num tipo de raciociacutenio desenvolvido unicamente para o niacutevel da mentalidade

do puacuteblico tendo como ponto de partida suas proacuteprias crenccedilas e valores Eacute um raciociacutenio

voltado para ouvintes comuns os quais natildeo obtiveram um treinamento especiacutefico em

loacutegica formal nem em filosofia por isso natildeo estariam em condiccedilotildees de abarcar com um

uacutenico olhar muitos assuntos e raciocinar a partir de coisas distantes A retoacuterica portanto

trata de questotildees sobre as quais se delibera e para as quais natildeo existem artes especiacuteficas

e isto perante um puacuteblico insipiente que seria incapaz de ver muitas coisas ao mesmo

tempo ou de seguir uma longa cadeia de raciociacutenios (Ret 1356b 43-47) Dessarte natildeo

seria apropriado ao orador empregar no seu discurso uma extensa cadeia de silogismos

pois seus ouvintes satildeo pessoas simples e as premissas a serem empregadas precisam ser

admitidas por todos (Ibid 1357a 1-18)

Para M F Burnyeat a funccedilatildeo da arte retoacuterica consiste em falar de assuntos

passiacuteveis de deliberaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos quais natildeo existem especialistas ou peritos para

determinar qualquer coisa com precisatildeo cujos resultados satildeo incertos e podem ser

determinados pela decisatildeo humana Aleacutem do orador natildeo ser um especialista sobre as

questotildees a serem decididas ele se dirige para uma audiecircncia de pessoas que natildeo podem

facilmente seguir uma longa sucessatildeo de raciociacutenios por isso uma das atribuiccedilotildees da

retoacuterica consiste em ajustar o discurso agraves limitaccedilotildees intelectuais da audiecircncia Portanto o

ldquobom entimemardquo eacute aquele que pode ser efetivamente compreendido por uma audiecircncia

de limitada capacidade mental (RORTY 1997 100)

E M Cope enfatiza que no acircmbito da argumentaccedilatildeo entimemaacutetica tudo deve ser

inteligiacutevel e popular sem longas cadeias de raciociacutenio que as pessoas comuns natildeo podem

seguir sendo tambeacutem dispensaacutevel o uso de definiccedilotildees rigorosamente exatas No entanto

eacute imprescindiacutevel que o orador leve em consideraccedilatildeo as premissas que satildeo popularmente

admitidas e reconhecidas em detrimento do emprego de axiomas ou princiacutepios das

ciecircncias exatas e especiais as quais requerem treinamento e estudo especiacuteficos Sendo

assim no discurso retoacuterico devem ser utilizados apenas princiacutepios gerais comuns a todo

o raciociacutenio aceitos e compreendidos por todas as pessoas (COPE 1867 12)

Jonathan Barnes salienta que na retoacuterica de Aristoacuteteles a audiecircncia e o assunto

determinam conjuntamente a espeacutecie de argumento que o orador deve empregar No que

concerne agrave audiecircncia eacute necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo que os discursos retoacutericos satildeo

ouvidos natildeo lidos e os ouvintes natildeo satildeo compostos de loacutegicos sutis Por essa razatildeo os

argumentos de um orador tecircm de ser curtos e simples podendo omitir o material que a

assistecircncia supriraacute sem dificuldade Aleacutem do que o orador precisa persuadir uma

audiecircncia efetiva por isso seus argumentos devem basear-se nas proposiccedilotildees que esta

provavelmente acreditaraacute e aceitaraacute E a respeito do assunto os oradores natildeo argumentam

sobre questotildees teacutecnicas ou seja eles natildeo tentaratildeo provar teoremas geomeacutetricos ou coisas

deste jaez Os oradores natildeo estatildeo preocupados com o que eacute conhecimento firme e certo

mas com o que os homens pensam em geral pois no mundo da accedilatildeo natildeo existem regras

sem exceccedilatildeo e as coisas natildeo acontecem de maneira invariaacutevel Portanto as premissas do

argumento de um orador devem consistir predominantemente de proposiccedilotildees que

possuem validade no mais das vezes mas natildeo absolutamente (BARNES 2009 342)

Por certo o entimema eacute um tipo de deduccedilatildeo mas eacute uma deduccedilatildeo de valor concreto

feita para uma apresentaccedilatildeo popular em oposiccedilatildeo a uma deduccedilatildeo abstrata e analiacutetica

proacutepria do ensino cientiacutefico Eacute um raciociacutenio de faacutecil manejo entre homens incultos

porque visa produzir a persuasatildeo e natildeo uma ἀπόδειξις ou seja uma demonstraccedilatildeo de

natureza cientiacutefica Isto posto diferentemente do silogismo cientiacutefico o entimema natildeo

possui por fundamento premissas verdadeiras e primeiras mas premissas verossiacutemeis e

algumas delas satildeo subentendidas no discurso retoacuterico

Em contraste com a tese defendida por Platatildeo no Fedro o Estagirita sustenta que o

conhecimento que o orador deve possuir para proferir um bom discurso deve limitar-se

agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras e uacuteteis para as multidotildees Nesse sentido

conveacutem sublinhar que Aristoacuteteles o qual na sua juventude condenou a retoacuterica isocraacutetica

por natildeo ser uma genuiacutena arte aproxima-se agora em alguns aspectos do pensamento

retoacuterico de Isoacutecrates

A filosofia platocircnica grosso modo eacute um estudo teoacuterico que se dedica a

investigaccedilotildees de toda sorte mediante o meacutetodo dialeacutetico cujo escopo eacute conhecer a

verdadeira essecircncia de certas ideias abstratas Todavia no pensamento de Isoacutecrates tais

ideias natildeo se relacionam agraves questotildees mais relevantes para a cidade quer dizer as questotildees

poliacuteticas A filosofia isocraacutetica portanto volta-se para a praacutetica discursiva fundamenta-

se no estudo das opiniotildees e sua finalidade suprema eacute a formaccedilatildeo dos jovens atenienses

para a vida poliacutetica democraacutetica (SCHIAPPA 1999 174) Natildeo obstante cabe frisar que

a distinccedilatildeo geralmente traccedilada por Platatildeo entre as palavras ldquoδόξαrdquo e ldquoἐπιστήμηrdquo a

primeira significando ldquoopiniatildeordquo e a segunda ldquoconhecimentordquo natildeo eacute precisamente aquela

feita por Isoacutecrates A concepccedilatildeo isocraacutetica de δόξα natildeo constitui uma opiniatildeo leviana ou

irresponsaacutevel traccedilo que eacute fortemente criticado nos sofistas os quais mereceriam todo o

desprezo por se dedicarem agraves disputas eriacutesticas em detrimento da busca pela verdade

(Contr Sof 1) mas eacute uma noccedilatildeo baseada na experiecircncia praacutetica dos homens e na

vivecircncia dos fatos (Ant 184) Noutros termos eacute o que se pode designar de opiniatildeo

compartilhada o bom senso ou a ponderaccedilatildeo vigente na vida comum Ademais a δόξα

eacute um tipo de juiacutezo que lida com as contingecircncias incertas de qualquer situaccedilatildeo humana

que se apresente (Ibid 184) Nessa perspectiva a δόξα natildeo representaria qualquer

opiniatildeo sem qualificaccedilatildeo mas ao mesmo tempo estaria longe de ser uma ciecircncia exata

Aristoacuteteles com efeito sustenta que a massa do povo possui em sua capacidade

coletiva qualidade de virtude e mesmo de prudecircncia que a torna no mais das vezes capaz

de exercer com suas opiniotildees melhor julgamento do que a minoria E sobre este assunto

Aristoacuteteles discorda categoricamente de Platatildeo o qual natildeo atribuiacutea nenhum meacuterito nem

via nenhuma utilidade no julgamento popular Platatildeo tambeacutem rejeita no Fedro a

verossimilhanccedila como fonte da argumentaccedilatildeo retoacuterica por serem opiniotildees aceitas pelo

coletivo o que transformaria o orador num mero bajulador Desse modo na visatildeo

platocircnica o bom orador natildeo deve se apropriar das crenccedilas do que pensam os homens em

geral sobre o que eacute justo bom e belo mas eacute necessaacuterio que ele conheccedila a essecircncia dessas

virtudes

No entanto o Estagirita sempre considera bom (ἀγαθός) o que a maioria deseja

assim como o que parece digno de ser disputado pois o que todos desejam eacute sem duacutevida

bom e a ldquomaioriardquo representaria ldquotodosrdquo (Ret 1363a 8-10) Para ele o que todos

preferem eacute melhor do que o que nem todos preferem e o que a maioria prefere eacute melhor

do que o que prefere a minoria (Ibid 1364b 48-50) E o que as pessoas sensatas todas

muitas a maioria ou as mais qualificadas julgariam ou tecircm julgado como um bem ou

um bem maior corresponderia necessariamente agrave realidade senatildeo em absoluto pelo

menos na medida da sensatez com que emitiram o seu juiacutezo (Ibid 1364b 13-17) Aleacutem

disso Aristoacuteteles sustenta que o orador ou qualquer outra pessoa dotada de prudecircncia

deve no mais das vezes acatar as palavras e opiniotildees (cientificamente) natildeo demonstradas

de pessoas mais experientes e mais idosas ou de pessoas com sabedoria praacutetica natildeo

menos que a prestada a declaraccedilotildees e opiniotildees demonstradas Porquanto as pessoas mais

experientes agem como se tivessem obtido pela experiecircncia um olho com o qual veem

corretamente (Eacutet Nic 1136b 10-15)

Ao explicar na Eacutetica a Nicocircmaco o conceito de felicidade Aristoacuteteles incorpora

intencionalmente elementos de outras crenccedilas sobre ela crenccedilas que amiuacutede podem ser

consideradas populares Estas por serem atraentes para a maioria ou para os saacutebios

contam como ἔνδοξα sobre a felicidade que o seu meacutetodo de investigaccedilatildeo (meacutetodo

doxaacutestico) deve respeitar Aliaacutes a ciecircncia praacutetica eacute um tipo de saber menos rigoroso do

que a ciecircncia teoreacutetica de modo que uma demonstraccedilatildeo suficiente naquele campo

consiste em identificar as proposiccedilotildees compatiacuteveis com as opiniotildees compartilhadas por

todos ou pela maioria Embora o Estagirita natildeo identifique a felicidade exclusivamente

com a virtude a prudecircncia o prazer ou as riquezas ele deixa expliacutecito que qualquer

definiccedilatildeo da felicidade precisa levar em consideraccedilatildeo as crenccedilas geralmente aceitas sobre

a mateacuteria Algumas dessas satildeo mantidas por muitos e satildeo antigas ao passo que outras satildeo

mantidas por alguns poucos homens de boa reputaccedilatildeo de modo que nenhuma delas falha

completamente sobre o significado da felicidade pelo contraacuterio acerta pelo menos numa

parte ou ateacute na maior parte (Ibid 1098b 23-30) Desse modo em contraposiccedilatildeo a Platatildeo

o Estagirita reabilita as opiniotildees compartilhadas pela maioria as quais podem tanto ser

aceitas e veiculadas no acircmbito do discurso retoacuterico em que o rigor cientiacutefico estaacute ausente

como podem ser utilizadas como fonte da investigaccedilatildeo cientiacutefica na forma de

conhecimento preliminar

Outrossim no capiacutetulo 23 do segundo livro da Retoacuterica Aristoacuteteles elenca 31

lugares-comuns (τόποι κοινοί) que satildeo tipos de argumentos que podem ser facilmente

localizados visto que foram devidamente memorizados pelo orador com o intuito de

serem empregados em todas as circunstacircncias possiacuteveis Os lugares-comuns tambeacutem

podem ser aplicados em questotildees de direito de fiacutesica de poliacutetica e demais disciplinas O

11ordm lugar-comum exposto por Aristoacuteteles diz respeito ao apelo agraves ἔνδοξα ou seja agraves

crenccedilas geralmente aceitas as quais satildeo consideradas pelo Estagirita como um importante

recurso persuasivo Este recurso deveras eacute obtido de um juiacutezo sobre um caso idecircntico

igual ou contraacuterio principalmente se for um juiacutezo de todos os homens e de todos os

tempos se natildeo for de todos pelo menos da maior parte deles ou dos saacutebios de todos

eles ou da maior parte ou ainda das pessoas de bem (Ret 1398b 26-30)

O fato das ἔνδοξα serem as premissas das argumentaccedilotildees retoacutericas fica mais claro

quando Aristoacuteteles fala de argumentaccedilotildees que natildeo satildeo persuasivas indicando por

conseguinte as caracteriacutesticas daquelas que o satildeo Para ele eacute possiacutevel formar silogismos

e tirar conclusotildees tanto de coisas antes estabelecidas pelo silogismo (cientiacutefico) como de

premissas de que natildeo se formou silogismo mas que o requerem por natildeo serem

comumente aceitas Destas duas linhas de raciociacutenio a primeira cadeia de silogismos eacute

necessariamente difiacutecil de seguir devido agrave sua extensatildeo enquanto que a segunda natildeo eacute

persuasiva pelo fato de natildeo derivar de premissas sobre as quais existe acordo ou que

participam da opiniatildeo comum (Ibid 1357a 10-18) Pode-se assegurar entatildeo que as

argumentaccedilotildees retoacutericas satildeo persuasivas simplesmente por estarem fundadas nas crenccedilas

ou opiniotildees geralmente aceitas

A despeito disso eacute preciso levar em consideraccedilatildeo que os oradores natildeo devem falar

tomando como ponto de partida da argumentaccedilatildeo retoacuterica todas as opiniotildees como se

todas elas fossem igualmente vaacutelidas mas somente as certas e determinadas por exemplo

as opiniotildees dos juiacutezes ou as opiniotildees daqueles que gozam de reputaccedilatildeo (Ibid 1395b 43-

45) Agrave vista disso Aristoacuteteles rejeita as opiniotildees contraacuterias ao senso comum como

legiacutetimas fontes da argumentaccedilatildeo retoacuterica ou seja ele rejeita aquilo que recebe o nome

de paradoxo (παράδοξος)

Com efeito se a ἔνδοξα consiste no que parece ser verdadeiro a todo o mundo ou

agrave maioria das pessoas ou ainda aos indiviacuteduos mais competentes a noccedilatildeo de παράδοξος

representa justamente a perspectiva contraacuteria O παράδοξος designa todas as proposiccedilotildees

que satildeo contraacuterias agrave opiniatildeo da maioria ao senso comum ou ao sistema de crenccedilas a que

se faz referecircncia (ABBAGNANO 2003 742) Por exemplo a defesa de Helena de Troia

empreendida por Goacutergias no Elogio de Helena mulher unanimemente reputada maacute e

injusta (El Hel sect 2) ou ainda a defesa de uma causa considerada por todos injusta e

fazecirc-la prevalecer sobre uma causa justa como procede Fidiacutepides na comeacutedia As Nuvens

que bem instruiacutedo pela arte retoacuterica acha-se autorizado a bater no pai e sustenta atraveacutes

de sutis argumentos que natildeo hesitaria em fazer o mesmo com sua matildee (Nuv 1405-1415

1440)

Na obra Dos Argumentos Sofiacutesticos o Estagirita orienta tanto o dialeacutetico como o

orador a induzir o adversaacuterio a cair em afirmaccedilotildees paradoxais ou seja afirmaccedilotildees

contraacuterias agrave opiniatildeo geral (Arg Sof 172b 10-173a 30) poreacutem se eles forem forccedilados a

enunciar algum tipo de paradoxo devem fazecirc-lo com a maior cautela acrescentando que

ldquoassim parecerdquo pois dessa forma evitam dar a impressatildeo de que foram refutados ao

afirmar um paradoxo (Ibid 176a 25-27) No entanto em situaccedilotildees especiais o paradoxo

pode ser o objeto de uma prova dialeacutetica se por exemplo ela for sustentada por um saacutebio

reputado no assunto Eacute justamente o que ocorre com a negaccedilatildeo da falta de domiacutenio

(ἀκρασία) por parte de Soacutecrates que apesar de contrariar o que eacute geralmente aceito eacute

tomada seriamente por Aristoacuteteles A teoria de Soacutecrates contestava completamente a de

Aristoacuteteles pois para aquele natildeo havia sentido a noccedilatildeo de ldquofalta de domiacuteniordquo de tal modo

que ningueacutem agiria contra a noccedilatildeo que tem do que eacute o melhor de tudo mas quando assim

procede faria simplesmente por ignoracircncia Entretanto na visatildeo de Aristoacuteteles esta

teoria seria paradoxal por estar manifestamente em contradiccedilatildeo com os fatos da vida (Eacutet

Nic 1145b 25-28)

Aristoacuteteles tambeacutem declara que os oradores natildeo devem tirar conclusotildees a partir de

premissas necessaacuterias mas das premissas que satildeo pertinentes na maior parte das vezes

(Ret 1396a 1-5) Por essa razatildeo os oradores incultos seriam mais persuasivos do que os

cultos diante das multidotildees porque amiuacutede enunciam premissas comuns e gerais (Ibid

1395b 37-43)

Eacute esta a razatildeo pela qual os oradores incultos satildeo mais persuasivos do que os cultos diante das multidotildees como dizem os poetas os incultos satildeo mais inspirados pelas musas diante da multidatildeo Com efeito os primeiros enunciam premissas comuns e gerais os segundos se baseiam no que sabem e no que estaacute proacuteximo do seu auditoacuterio

Em oposiccedilatildeo ao que preconiza Platatildeo no diaacutelogo Fedro o Estagirita afirma que o

orador natildeo precisa conhecer a realidade ou a essecircncia do que eacute justo bom e belo ou coisas

deste jaez nem possuir um entendimento discursivo da verdade sobre o assunto que

tenciona discutir Pelo contraacuterio nos limites da arte retoacuterica eacute necessaacuterio que o orador

contente-se com a indicaccedilatildeo da verdade aproximadamente em linhas gerais e fale de

coisas que satildeo verdadeiras na maioria das vezes e natildeo absolutamente Aleacutem do que na

visatildeo de Platatildeo a genuiacutena arte retoacuterica natildeo deve ser concebida como uma teacutecnica que

impotildee aos ouvintes certas opiniotildees que ensina a compor belos discursos com o intuito de

deixar vitoriosa a causa ruim e enfraquecer a boa mas deve ser um guia da alma para que

se alcance a verdadeira beleza e justiccedila Em certa medida Aristoacuteteles subscreve a funccedilatildeo

psicagoacutegica da arte retoacuterica defendida por Platatildeo qual seja a funccedilatildeo de guiar a alma dos

cidadatildeos para a praacutetica das virtudes poreacutem sua psicagogia natildeo pressupotildee o conhecimento

universal e necessaacuterio que somente o filoacutesofo seria capaz de apreender mas justamente

aquilo que eacute negado por Platatildeo qual seja a opiniatildeo geral (Arg Sof 175a 30-33)

Em primeiro lugar pois assim como dizemos que agraves vezes eacute preferiacutevel provar as coisas com plausibilidade a fazecirc-lo com verdade tambeacutem agraves vezes devemos dar soluccedilatildeo aos argumentos de acordo com a opiniatildeo geral e natildeo de acordo com a verdade

Aristoacuteteles assegura nos Toacutepicos que se algueacutem atua com pretenccedilotildees filosoacuteficas

precisa ter em vista a verdade mas os que atuam segundo a dialeacutetica (e a retoacuterica)

precisam ter em vista natildeo mais a verdade mas a opiniatildeo geral (Toacutep 105b 30-32) Isto

significa que tanto a dialeacutetica quanto a retoacuterica que utilizam como premissas de suas

argumentaccedilotildees as ἔνδοξα natildeo pretendem estabelecer a verdade nos moldes da ciecircncia

mas apenas argumentar no plano da opiniatildeo As ἔνδοξα natildeo valem como criteacuterio para o

estabelecimento do que eacute verdadeiro mas certamente como uma pressuposiccedilatildeo com base

na qual se prova a verdade de proposiccedilotildees Desse modo todo debate dialeacutetico e todo

discurso retoacuterico tem de comeccedilar com pontos de vista que os interlocutores e os ouvintes

partilham uns com os outros E se a finalidade da arte retoacuterica eacute obter um juiacutezo favoraacutevel

ao conteuacutedo do discurso e se o discurso cientiacutefico eacute impossiacutevel de ser compreendido pela

maioria dos ouvintes entatildeo torna-se imprescindiacutevel ao orador descer ao niacutevel intelectual

do auditoacuterio e fundamentar seu discurso na opiniatildeo puacuteblica do contraacuterio ele natildeo seraacute

capaz de persuadir acerca daquilo que eacute justo e verdadeiro

Os filoacutesofos como soacute procuram investigar a verdade e isto tratando com outros

filoacutesofos entram amiuacutede em discussotildees sutis e miuacutedas ateacute apreender a uacuteltima evidecircncia

e convicccedilatildeo Os oradores poreacutem precisam adaptar os seus discursos agraves ideias dos

ouvintes e falar no mais das vezes diante de homens inteiramente insipientes de modo

que se estes natildeo forem aliciados com o prazer e algumas vezes afetados com as emoccedilotildees

natildeo seraacute possiacutevel persuadi-los sobre aquilo mesmo que eacute justo e verdadeiro Por essa

razatildeo todo o objeto da persuasatildeo eacute relativo aos ouvintes e eacute de acordo com suas opiniotildees

que o orador deve ajustar o seu discurso

Tendo em vista a necessidade do orador descer ao niacutevel intelectual do auditoacuterio

satisfazecirc-lo e por conseguinte persuadi-lo sobre aquilo que eacute justo e verdadeiro

Aristoacuteteles leva em consideraccedilatildeo o emprego da maacutexima (γνώμη) Ele define a maacutexima

como uma afirmaccedilatildeo geral que natildeo se aplica a aspectos particulares mas ao universal

natildeo a todas as coisas mas agraves que envolvem as accedilotildees humanas (Ret 1394a 29-35)

Aristoacuteteles declara que a maacutexima eacute de grande utilidade nos discursos retoacutericos em virtude

da mente tosca (φορτικότητα) dos ouvintes que ficam contentes quando algueacutem falando

em termos gerais vai de encontro agraves opiniotildees que eles sustentam sobre assuntos

particulares E quando Aristoacuteteles utiliza o termo ldquoφορτικότηταrdquo ele pretende indicar o

espiacuterito rude a vulgaridade e a falta de cultura dos ouvintes de um discurso puacuteblico (Ibid

1395b 1-9)

Para Aristoacuteteles as maacuteximas prestam um grande auxiacutelio aos oradores puacuteblicos por

duas razotildees principais A primeira eacute a vaidade grosseira dos ouvintes que sentem prazer

quando o orador falando em geral vai ao encontro das opiniotildees que cada um sustenta

individualmente Assim o orador deve conjecturar quais satildeo as coisas que os ouvintes

tecircm subentendidas e falar dessas coisas em geral Por exemplo caso o ouvinte tivesse de

tratar com maus vizinhos ou maus filhos o orador oportunamente deveria enunciar as

seguintes maacuteximas ldquonada mais insuportaacutevel que a vizinhanccedilardquo ou ldquonada mais estuacutepido

do que ter filhosrdquo A segunda razatildeo seria a mais importante pois confere ao discurso um

caraacuteter eacutetico ao exprimir de forma geral as intenccedilotildees daquele que as veicula de modo

que se as maacuteximas satildeo honestas tambeacutem faratildeo que o caraacuteter do orador pareccedila honesto

(Ibid 1395b 1-23)

Conveacutem sublinhar que a segunda funccedilatildeo da maacutexima pode ser um elemento

complementar agrave prova psicoloacutegica ligada ao caraacuteter do orador (ἦθος) segundo a qual a

persuasatildeo se efetiva quando o discurso eacute proferido por um orador que goze de prestiacutegio

pois se ele parecer confiaacutevel o auditoacuterio iraacute formar o juiacutezo de que as proposiccedilotildees

apresentadas satildeo igualmente confiaacuteveis A utilizaccedilatildeo adequada da maacutexima por sua vez

reforccedilaria o ἦθος do orador no sentido inverso ou seja atraveacutes de maacuteximas honestas

cuidadosamente escolhidas e comunicadas ao puacuteblico o caraacuteter do orador pareceria

honesto

A metaacutefora retoacuterica tambeacutem atesta com precisatildeo o princiacutepio segundo o qual a

estrutura da expressatildeo enunciativa se explica inteiramente pelo fato de estar voltada para

um puacuteblico pouco capaz de bom discernimento por isso a metaacutefora constitui a uacutenica

aprendizagem possiacutevel a todos e sem duacutevida a que se efetiva com relativa facilidade A

metaacutefora entatildeo eacute ela proacutepria uma instruccedilatildeo porque natildeo exige grandes esforccedilos

intelectuais do puacuteblico e proporciona igualmente satisfaccedilatildeo Aliaacutes eacute prazerosa a proacutepria

sensaccedilatildeo de atividade que acompanha a busca de resoluccedilatildeo do enigma envolvido na

metaacutefora como dizer que ldquoum homem de bem eacute um quadradordquo posto que ambos

significam alguma coisa perfeita (Ibid 1411b 30-33) Sendo assim em virtude do baixo

niacutevel intelectual do puacuteblico a demonstraccedilatildeo entimemaacutetica deve estar acompanhada do

prazer cuja funccedilatildeo auxiliar eacute neutralizar as vaacuterias dificuldades dos ouvintes

Aristoacuteteles sublinha que o que eacute mais agradaacutevel eacute maior que o menos agradaacutevel jaacute

que todos os seres humanos buscam o prazer e por ele se deixam seduzir e este seria o

criteacuterio que amiuacutede o senso comum utiliza para identificar o bem humano (Ibid 1364b

29-32) E uma vez que a retoacuterica precisa ter em vista a opiniatildeo geral o uso da metaacutefora

ou de qualquer outro recurso estiliacutestico deve levar em consideraccedilatildeo a tendecircncia natural

dos seres humanos agrave obtenccedilatildeo do prazer A capacidade de suscitar o prazer eacute precisamente

o que faz da metaacutefora um recurso estiliacutestico de sucesso entre o puacuteblico Ela eacute apta para

neutralizar suas dificuldades de compreensatildeo fixaccedilatildeo da atenccedilatildeo e indisposiccedilatildeo em

relaccedilatildeo ao discurso Dessarte a expressatildeo enunciativa na retoacuterica de Aristoacuteteles procura

por diferentes meios o prazer do auditoacuterio pois com aqueles que apresentam dificuldade

em aprender a dimensatildeo do prazer constitui para o que ensina um aliado indispensaacutevel

(Ibid 1410b 13-20)

Uma aprendizagem faacutecil eacute por natureza agradaacutevel a todos por seu turno as palavras tecircm determinado significado de tal forma que as mais agradaacuteveis satildeo todas as palavras que nos proporcionam tambeacutem conhecimento Eacute certo que haacute palavras que nos satildeo desconhecidas embora as conheccedilamos no seu sentido ldquoapropriadordquo mas sobretudo a metaacutefora que provoca tal

Isto posto a metaacutefora retoacuterica possui dois aspectos que estatildeo intrinsecamente

ligados os quais favorecem substancialmente a persuasatildeo ela serve como um eficiente

recurso didaacutetico e como via para se obter a atenccedilatildeo do auditoacuterio por estar relacionada com

o prazer Aliaacutes seu uso seria muito apropriado no proecircmio ou seja na parte do discurso

que visa fundamentalmente seduzir o auditoacuterio e conquistar imediatamente sua simpatia

tornando-o doacutecil benevolente e atencioso

O importante na argumentaccedilatildeo retoacuterica natildeo eacute saber o que o proacuteprio orador considera

verdadeiro ou persuasivo mas qual eacute o parecer daqueles a quem o discurso se dirige

Nenhum orador poderia descuidar do esforccedilo de adaptaccedilatildeo ao auditoacuterio uma vez que o

bom orador precisa pautar sua argumentaccedilatildeo no consenso geral Por isso ao auditoacuterio

cabe o papel principal para determinar tanto a qualidade da argumentaccedilatildeo como o

comportamento dos oradores Todavia ao aceitar que a opiniatildeo da maioria possa ser

veiculada pelo discurso retoacuterico Aristoacuteteles natildeo estaacute subscrevendo a concepccedilatildeo dos

sofistas os quais em sua maioria identificavam a retoacuterica com o verdadeiro saber mas

apenas separando o acircmbito da filosofia onde se busca a verdade do acircmbito da retoacuterica

cujo ponto de partida natildeo eacute a verdade mas a opiniatildeo geral E agrave maneira de Platatildeo ele

admite uma ciecircncia que por via demonstrativa parta de premissas verdadeiras para

chegar agrave conclusotildees verdadeiras mas ao mesmo tempo ele rejeita que a ciecircncia mais exata

tenha alguma importacircncia na persuasatildeo de um auditoacuterio composto de ouvintes comuns

Portanto o discurso retoacuterico natildeo deve pautar-se em axiomas e princiacutepios que

caracterizam as ciecircncias exatas as quais visam atingir verdades necessaacuterias mas deve

considerar como fontes legiacutetimas para levar a cabo a persuasatildeo os valores comuns e as

opiniotildees dignas de confianccedila

Com efeito a diferenccedila entre as premissas cientiacuteficas e as premissas retoacutericas

consiste no fato de que as primeiras valem por forccedila de si mesmas ou seja independem

de qualquer reconhecimento exterior como o consenso do auditoacuterio enquanto que as

segundas valem por forccedila do reconhecimento que lhe eacute atribuiacutedo da parte de todos da

maioria dos mais saacutebios ou dos filoacutesofos As ἔνδοξα satildeo premissas ou opiniotildees natildeo

quaisquer opiniotildees mas somente as autorizadas as importantes as qualificadas agraves quais

se deve dar credibilidade por isso natildeo precisam ser verdadeiras no sentido estrito do

termo mas devem ser compartilhadas reconhecidas e aceitas por todos senatildeo por todos

ao menos pela maioria Agrave vista disso as opiniotildees que satildeo candidatas por assim dizer ao

tiacutetulo de ἔνδοξα estatildeo dispostas em ordem de autoridade decrescente Eacute manifesto que

nem todas as opiniotildees satildeo ἔνδοξα mas se a respeito de um assunto qualquer existir uma

opiniatildeo aceita por todos esta seraacute a princiacutepio considerada uma ἔνδοξα e se natildeo existir

uma opiniatildeo aceita por todos mas apenas pela maioria das pessoas a ἔνδοξα seraacute esta e

caso natildeo haja uma opiniatildeo aceita pela maioria delas eacute a opiniatildeo dos mais saacutebios que deve

ser aceita como ἔνδοξα se natildeo existir uma unanimidade entre os saacutebios a opiniatildeo da

maioria deles deve ser considerada ἔνδοξα se porventura a opiniatildeo natildeo for aceita pela

maioria deles eacute a opiniatildeo dos filoacutesofos que deve ser aceita como ἔνδοξα e se natildeo existir

unanimidade entre eles eacute a opiniatildeo dos filoacutesofos mais eminentes que precisa ser

considerada como tal

Aristoacuteteles persiste no valor daquilo que denomina ldquoopiniotildees dignas de confianccedilardquo

porque uma coisa que constitua objeto de crenccedila de todos os homens ou da maioria deles

ou pelo menos de todos os homens inteligentes ou da maioria deles eacute digna de confianccedila

e merece que se diga algo a seu favor E o que fundamenta em termos epistemoloacutegicos

esta concepccedilatildeo consiste no fato de que para o Estagirita os homens por sua proacutepria

natureza tendem ao saber (Met 980a 20) Mas aleacutem dessa tendecircncia natural que impele

o ser humano ao saber ele afirma que todas as coisas na natureza (φύσις) parecem estar

organizadas com vistas a um τέλος ou seja a um fim ou cumprimento de alguma coisa

(de onde deriva a expressatildeo teleologia) Por isso a explicaccedilatildeo de qualquer evento do

mundo tanto no aspecto natural como no artificial consistiria em aduzir o fim ou causa

final para o qual esse evento se dirige

Com efeito Aristoacuteteles declara que a natureza natildeo faz coisa alguma

mesquinhamente como os cuteleiros de Delfos quando produzem suas facas mas cria

cada coisa com um uacutenico propoacutesito de modo que cada instrumento eacute feito com perfeiccedilatildeo

(Pol 1252b 11-14) Noutro passo da mesma obra ele afirma que a natureza natildeo faz coisa

alguma sem uma finalidade ou em vatildeo de modo que haacute um propoacutesito para tudo o que

existe (Ibid 1256b 37-38) E na obra Partes dos Animais ele estabelece sua concepccedilatildeo

teleoloacutegica da natureza de maneira categoacuterica aventando que as causas finais ocorrem

tanto nas obras da natureza como nas produccedilotildees artiacutesticas (Part An 369b 15-27)

Mais ainda uma vez que constatamos a existecircncia de causas diversas nos processos naturais caso por exemplo do objectivo e da origem de uma mudanccedila eacute preciso tambeacutem determinar qual delas eacute naturalmente a primeira e qual a segunda A primeira parece ser aquela que implica o ldquopara quecircrdquo de um processo ou seja a sua razatildeo de ser que eacute um princiacutepio comum agraves produccedilotildees artiacutesticas e agraves da natureza Eacute soacute depois de determinar o meacutedico pela reflexatildeo o que seja a sauacutede e o arquitecto pela constataccedilatildeo o que seja uma casa que um e outro podem explicar as razotildees e as causas das iniciativas que tomam e o porquecirc das suas opccedilotildees Mas haacute um objectivo mais forte e uma maior perfeiccedilatildeo nas obras da natureza do que nas de qualquer arte

Jonathan Barnes sustenta que na passagem acima das Partes dos Animais

Aristoacuteteles estabelece de maneira bem definida o que recebe o nome de ldquoconcepccedilatildeo

teleoloacutegica da naturezardquo segundo a qual a explicaccedilatildeo pelas causas finais ocorrem tanto

nas obras da natureza como nos produtos da habilidade humana A explicaccedilatildeo em termos

de causas finais seria tambeacutem uma explicaccedilatildeo em termos do ldquobemrdquo porque se as aves

nadadoras como os patos tecircm peacutes com membranas natatoacuterias em vista da nataccedilatildeo entatildeo

eacute bom para as aves ter peacutes com membranas natatoacuterias Aliaacutes as causas finais satildeo

primordiais porque se identificariam com ldquoa explicaccedilatildeo da coisardquo de modo que ser

nadador eacute parte da essecircncia do pato e uma explicaccedilatildeo adequada do que eacute ser um pato

requer a referecircncia a nadar Desse modo as causas finais natildeo seriam impostas agrave natureza

por consideraccedilotildees teoreacuteticas mas seriam observaccedilotildees da natureza (BARNES 2005 118)

A concepccedilatildeo teleoloacutegica de Aristoacuteteles parece ser uma consequecircncia do princiacutepio

de Anaxaacutegoras de que a Inteligecircncia (νόος) eacute a causa ordenadora do mundo e se a

Inteligecircncia ordena todas as coisas ela o faz do melhor modo possiacutevel (Met 984b 15-18)

Disso resulta que a natureza natildeo iria conceder aos homens o desejo pelo saber e tornar

impossiacutevel a sua realizaccedilatildeo haja vista que a natureza natildeo realiza coisa alguma em vatildeo

Assim se eacute natural o desejo epistecircmico tambeacutem eacute possiacutevel sua realizaccedilatildeo E apesar da

investigaccedilatildeo pela verdade constituir uma tarefa difiacutecil de realizar principalmente quando

as pessoas procuram apreendecirc-la de maneira isolada natildeo eacute possiacutevel que todos falhem

tentativa (Ibid 993a 30-993b 5)

Sob certo aspecto a pesquisa da verdade eacute difiacutecil sob outro eacute faacutecil Prova disso eacute que eacute impossiacutevel apreender adequadamente a verdade e igualmente impossiacutevel natildeo apreendecirc-la de modo nenhum de fato se cada um pode dizer algo a respeito da realidade e se tomada individualmente essa contribuiccedilatildeo pouco ou nada acrescenta ao conhecimento da verdade todavia da uniatildeo de todas as contribuiccedilotildees decorre um resultado consideraacutevel Assim se a respeito da verdade ocorre o que eacute afirmado no proveacuterbio ldquoQuem poderia errar uma portardquo entatildeo sob este aspecto ela seraacute faacutecil ao contraacuterio poder alcanccedilar a verdade em geral e natildeo nos particulares mostra a dificuldade da questatildeo

Para o Estagirita a aquisiccedilatildeo da verdade eacute aacuterdua e lento o progresso da ciecircncia O

primeiro passo eacute o mais difiacutecil porque natildeo se dispotildee de nada que possa guiar a

investigaccedilatildeo mas posteriormente o progresso torna-se mais faacutecil De fato enquanto

indiviacuteduos contribui-se pouco para a massa crescente do conhecimento mas

coletivamente isto eacute realizaacutevel Aleacutem do mais os seres humanos tecircm uma inclinaccedilatildeo

natural para a verdade e a maior parte das vezes satildeo capazes de alcanccedilaacute-la (Ret 1355a

19-21)

Com base nas noccedilotildees apresentadas sobre a tendecircncia natural do ser humano para o

conhecimento e a possibilidade cognoscitiva de alcanccedilaacute-lo pode-se assegurar que as

pessoas em geral quando acreditam em alguma coisa ou quando datildeo o seu assentimento

a uma determinada crenccedila seria jaacute um indiacutecio de que a mesma eacute mais verdadeira que

falsa e por conseguinte digna de ser considerada uma ἔνδοξα Esta perspectiva aparece

de maneira expliacutecita numa passagem da Eacutetica a Eudemo na qual Aristoacuteteles declara que

pelo fato de todos os homens possuiacuterem algo de apropriado em relaccedilatildeo agrave verdade o

consenso entre eles natildeo seria apenas a condiccedilatildeo necessaacuteria mas tambeacutem um indiacutecio quase

suficiente da verdade por isso qualquer investigaccedilatildeo racional precisa partir dos

fenocircmenos como testemunhos e exemplos (μαρτυρίοις καὶ παραδείγμασι χρώμενον τοῖς

φαινομένοις) quer dizer dos juiacutezos ou das opiniotildees geralmente aceitas (Eacutet Eud 1216b

26-35) Portanto uma afirmaccedilatildeo que pode ser repetida por todas as pessoas ou pela

maioria delas deve corresponder ao que tem de ser ou seja eacute certamente um princiacutepio

geral natildeo sendo possiacutevel que este indiacutecio seja um erro cometido por todas as pessoas

Jonathan Lear enfatiza que na visatildeo de Aristoacuteteles todas as crenccedilas representam

uma ldquoestocada na verdaderdquo ou seja representam uma aproximaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave verdade

E haja vista que as crenccedilas satildeo formadas agrave base de interaccedilatildeo com o mundo Aristoacuteteles

acharia muito improvaacutevel ou raro que uma crenccedila qualquer seja completamente

equivocada e natildeo encerre qualquer elemento de verdade Aliaacutes natildeo somente o

conhecimento se acumularia com os humildes esforccedilos de pensadores e pesquisadores

como tambeacutem ateacute as falsas crenccedilas seriam normalmente formadas a partir de noccedilotildees

razoaacuteveis Esta seria uma das razotildees pelas quais Aristoacuteteles acreditava ser necessaacuterio

investigar as crenccedilas dos homens mesmo as mais imprecisas pois vendo-se como eles

tropeccedilam seria possiacutevel obter um apanhado mais claro da verdade (LEAR 2006 21)

Em concordacircncia as noccedilotildees apresentadas Otfried Houmlffe sustenta que quanto mais

Aristoacuteteles relaciona-se com as visotildees correntes tanto mais vecirc nelas um paracircmetro de

verdade Agraves opiniotildees universalmente partilhadas ele atribuiria uma suposiccedilatildeo de verdade

uma vez que todos os seres humanos trazem em si algo que estaacute em relaccedilatildeo com a verdade

e como totalidade elas natildeo poderiam desviar-se da verdade No entanto algumas vezes

as opiniotildees dos especialistas contradizem aquelas da maioria e para a exigida escolha

Aristoacuteteles aduziria como criteacuterio a ampla divulgaccedilatildeo uma certa medida de

fundamentaccedilatildeo a idade condigna e o suporte atraveacutes das opiniotildees de autoridades

reconhecidas E apesar das opiniotildees reconhecidas serem amiuacutede verdadeiras elas ainda

permaneceriam obscuras e imprecisas o que natildeo impediria o Estagirita de recusar em

algumas ocasiotildees a opiniatildeo da maioria Por exemplo a opiniatildeo corrente identifica a

felicidade com algo visiacutevel como o prazer a riqueza ou a honra mas ele a concebe como

a vida dedicada agrave atividade teoreacutetica Pode-se assegurar entatildeo que o pensamento de

Aristoacuteteles estaria fortemente ligado ao senso comum mas a um tipo de senso comum

que eacute qualificado e aberto agrave criacutetica (HOumlFFE 2008 90-92)

De acordo com Aristoacuteteles o discurso retoacuterico comporta trecircs elementos quais

sejam o orador o assunto de que se fala e o ouvinte Existe entatildeo uma relaccedilatildeo

indissociaacutevel entre o orador o ouvinte e o conteuacutedo do discurso e estes trecircs elementos

formam uma unidade mas eacute o ouvinte (ἀκροατής) que constitui o fim para o qual todos

os esforccedilos do orador precisam dirigir-se (Ret 1358a 47-51) Assim ao vincular os

fatores referentes ao orador e ao ouvinte o Estagirita atribui agrave retoacuterica uma funccedilatildeo

sumamente interpessoal de cujos componentes depende igualmente o vigor persuasivo do

discurso E no acircmbito da persuasatildeo o εἰκός representa um fator crucial pois ele se abre

agrave comunidade poliacutetica na medida em que se fundamenta nos valores compartilhados pela

maioria dos cidadatildeos razatildeo pela qual Aristoacuteteles inclui a retoacuterica no acircmbito da ciecircncia

poliacutetica (Ibid 1356a 25-34)

Entretanto conforme a concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo ao ser neutralizada a via do

εἰκός estaraacute tambeacutem neutralizada toda e qualquer participaccedilatildeo tanto do emissor quanto

do receptor do discurso Desse modo toda concessatildeo feita ao ouvinte seraacute interpretada

por Platatildeo como imposiccedilatildeo descabida de um ponto de vista como prestidigitaccedilatildeo

enganadora ou pura adulaccedilatildeo Mas para Aristoacuteteles o orador o ouvinte e o assunto do

discurso constituem realidades indissociaacuteveis determinando unitariamente a mensagem

global E a esses trecircs elementos correspondem outros tantos tipos de πίστεις ἔντεχνοι ou

seja aquelas provas que podem ser fornecidas pelo meacutetodo retoacuterico ndash umas referentes ao

ἦθος ou ao caraacuteter do orador outras a respeito do πάθος que consiste na disposiccedilatildeo

afetiva em que se coloca o ouvinte e finalmente as que se referem ao λόγος ou seja as

provas que se relacionam com o proacuteprio discurso enquanto demonstra ou parece

demonstrar alguma coisa Isto posto Aristoacuteteles enfatiza tanto a relaccedilatildeo fundamental

tripartite de orador conteuacutedo do discurso e ouvinte quanto os chamados trecircs meios de

persuasatildeo ἦθος πάθος e λόγος Em sua parte especiacutefica ele tambeacutem aborda o objeto dos

trecircs gecircneros de discurso puacuteblico συμβουλευτικός δικανικός e o ἐπιδεικτικός juntamente

com o seu lugar na vida puacuteblica e com o seu fim uacuteltimo Aleacutem do que ele considera as

condiccedilotildees psicoloacutegicas eacuteticas e poliacuteticas com cujo auxiacutelio um orador pode despertar a

capacidade de juiacutezo da assistecircncia e obter sua aprovaccedilatildeo

Pode-se assegurar entatildeo que no sistema retoacuterico de Aristoacuteteles o homem ocupa o

centro natildeo o homem enquanto ser individual mas o homem que tem suas crenccedilas

compartilhadas por seus concidadatildeos a saber o homem poliacutetico E conforme as

premissas verossiacutemeis satildeo chanceladas pelo grupo social configuram-se num patrimocircnio

cultural compartilhado por todos Assim no acircmbito da arte retoacuterica tanto o

desenvolvimento como o ponto de partida da argumentaccedilatildeo pressupotildeem o acordo ou o

consenso do auditoacuterio pois do princiacutepio ao fim a anaacutelise da argumentaccedilatildeo versa sobre o

que eacute possivelmente admitido pelos cidadatildeos

Eacute manifesto que a perspectiva ldquoantropocecircntricardquo da arte retoacuterica defendida por

Aristoacuteteles eacute diametralmente oposta agrave concepccedilatildeo ldquoteocecircntricardquo presente tanto na

concepccedilatildeo retoacuterica de Soacutecrates (na Defesa de Soacutecrates de Platatildeo e na Apologia de

Soacutecrates de Xenofonte) como na que eacute exposta de maneira incontestaacutevel por Platatildeo no

diaacutelogo Fedro

No seu discurso judicial Soacutecrates declara que a ordem para que natildeo se envolvesse

em assuntos poliacuteticos foi dada pelo δαιμόνιον ou seja por sua divindade pessoal Ele

tambeacutem propotildee comunicar o seu discurso de defesa numa linguagem ordinaacuteria que se

apresenta diretamente em sua alma em coerecircncia com o que acredita ser verdadeiro e

esta tarefa teria sido outorgada pelo deus de Delfos Ele ainda assegura que por duas vezes

tentou elaborar uma defesa agrave maneira dos oradores mais competentes poreacutem sua

divindade pessoal natildeo o permitiu Desse modo a arte retoacuterica para Soacutecrates natildeo deve

depender do que eacute admitido pelos cidadatildeos tampouco deve comprometer-se em agradaacute-

los pelo contraacuterio deve depender do que interessa agrave divindade e por conseguinte agradaacute-

la acima de tudo

No que tange a Platatildeo a retoacuterica genuiacutena eacute aquela que conquistaria por suas razotildees

os proacuteprios deuses Por essa razatildeo o orador jamais deveria preocupar-se em agradar os

homens mas somente os deuses e proferir um discurso digno da divindade o qual deve

ser condicionado pela ἀλήθεια e natildeo pelo εἰκός Outrossim ele registra no Fedro que o

δαιμόνιον natildeo deixou Soacutecrates partir antes de se purificar como se tivesse cometido uma

impiedade contra a divindade A impiedade atribuiacuteda a Soacutecrates refere-se ao primeiro

discurso proferido por este a Fedro no qual aquele natildeo havia exposto adequadamente as

qualidades de Eros que eacute uma divindade Ademais a contemplaccedilatildeo das Ideias que eacute uma

daacutediva concedida por Eros na forma de uma possessatildeo ou loucura divina constitui a

precondiccedilatildeo para o verdadeiro discurso retoacuterico

Werner Jaeger subscreve a tese de que a atitude de Platatildeo acerca da arte retoacuterica eacute

essencialmente teocecircntrica Todavia essa teoria natildeo seria exclusiva do Fedro pois

tambeacutem estaria presente em outros de seus diaacutelogos Para ele Platatildeo demonstra no Fedro

a necessidade do saber para o retoacuterico salientando que a descoberta do εἰκός em que se

baseia quase sempre a argumentaccedilatildeo retoacuterica pressupotildee o conhecimento da verdade O

εἰκός entatildeo natildeo seria outra coisa senatildeo o que aparece semelhante agrave verdade E como

Platatildeo reconhece a verdadeira finalidade da retoacuterica natildeo consistiria em falar para agradar

aos homens mas sim em agradar a Deus Eacute a teoria conhecida de a A Repuacuteblica do

Teeteto e das Leis Agrave vista disso todas as aporias das suas obras anteriores

desembocariam na atitude rigorosamente teocecircntrica que caracteriza a paideia de sua

uacuteltima fase (JAEGER 2003 1271)

Mediante a atuaccedilatildeo dos filoacutesofos Platatildeo cogita apagar e redesenhar na cidade os

costumes dos homens ateacute que sejam criados os caracteres humanos o mais possiacutevel de

acordo com o θεῖος παράδειγμα ou seja o modelo divino que ele elaborou pelo discurso

de Soacutecrates no decorrer do diaacutelogo A Repuacuteblica O filoacutesofo agrave maneira de um pintor

(ζώγραφος) apoacutes apanhar na cidade e nos caracteres humanos como se fosse um quadro

deve por conseguinte purificaacute-los depois disso conveacutem que ele trace o esquema da

constituiccedilatildeo para que em seguida com mistura e diluiccedilatildeo formar a tez humana

(ἀνδρείκελον) das vaacuterias ocupaccedilotildees de aspecto divino e semelhante aos deuses (Rep

501a-c)

[] jamais uma cidade seraacute feliz se natildeo a desenharem pintores que sigam o modelo divino [] Tomariam disse eu a cidade e os costumes dos homens e como se fosse um quadro comeccedilariam fazendo-a limpa tarefa natildeo muito faacutecil [] Em seguida penso eu ao se porem ao trabalho voltariam amiuacutede de olhos para os dois lados para aquilo que por natureza eacute justo belo temperante ou tem qualidades semelhantes e para aquilo que estivessem criando no meio dos homens misturando e temperando cores a partir das ocupaccedilotildees deles para chegar ao tom da tez humana tomando como base aquilo que quando existente entre os homens tambeacutem Homero chamou de divino e semelhante aos deuses [] E ora creio apagariam um traccedilo ora incluiriam outro ateacute conseguirem fazer que os caracteres humanos fossem tanto quanto possiacutevel agradaacuteveis aos deuses

Visto que para Platatildeo o criteacuterio atraveacutes do qual o discurso retoacuterico torna-se legiacutetimo

eacute sua vinculaccedilatildeo com o modelo divino entatildeo natildeo compete ao orador determinar segundo

seus interesses particulares a natureza dos assuntos tratados no discurso mas deve

sempre pronunciar a verdade em detrimento das crenccedilas compartilhadas pelos ouvintes

Mas para isto ser possiacutevel o orador deve compreender as coisas de acordo com as Ideias

que partem da multiplicidade das sensaccedilotildees para uma unidade (conceito universal) que eacute

inferida pela reflexatildeo filosoacutefica Assim os conceitos universais contidos em todo

conhecimento humano existem como Ideias ou seja como entidades eternas e imutaacuteveis

que existem separadas das coisas particulares e oferecem a estas o seu modelo coisas

essas que obtecircm o seu ser por participaccedilatildeo (μέθεξις) nas Ideias Estas portanto satildeo

aqueles modelos ideais das coisas particulares que natildeo dispotildeem apenas de uma realidade

proacutepria mas de uma realidade no sentido estrito do termo que existem

independentemente da opiniatildeo dos indiviacuteduos e que as almas filosoacuteficas desejam

contemplar acima de qualquer coisa

Conforme analisamos anteriormente Platatildeo exige que o orador seja capaz de

apreender as Ideias antes de proferir o seu discurso pois o orador que ignora a essecircncia

do que eacute justo ou injusto mau ou bom natildeo pode escapar nunca agrave censura que merece

ainda que a multidatildeo o louve Mas eacute com grande dificuldade que poucos iniciados

conseguem contemplar as Ideias E agrave maneira das diversas artes e ciecircncias Platatildeo exige

que existam especialistas altamente capacitados em mateacuteria de discurso razatildeo pela qual

ele rejeita a pretensatildeo da democracia de fazer do discurso retoacuterico algo universalmente

partilhado

Outrossim Platatildeo critica a democracia pelo fato dela sempre pressupor o desacordo

entre os cidadatildeos natildeo como um mal temporaacuterio a ser superado numa unanimidade futura

(como tenciona o empreendimento dialeacutetico) mas como uma condiccedilatildeo inerente agrave proacutepria

sociedade democraacutetica Para ele nenhum valor permanente poderia predominar em tal

sociedade jaacute que os cidadatildeos por possuiacuterem a παρρησία ou seja o direito de livre

expressatildeo podem concordar somente em discordar eles tecircm a licenccedila para fazer o que

querem e ainda podem organizar o modo de vida que mais lhes agrade (Ibid 557b) O

regime democraacutetico eacute comparado por Platatildeo a um manto multicolorido com muitas flores

bordadas capaz de seduzir crianccedilas e mulheres mas eacute somente belo na aparecircncia porque

esta forma de governo que privilegia a liberdade eacute bordada com todo tipo de caraacuteter de

modo que os cidadatildeos natildeo recorrem a nenhum valor comum e natildeo estimulam qualquer

virtude puacuteblica (Ibid 557c) Pelo contraacuterio com soberba a democracia tende a neutralizar

o estudo necessaacuterio para a formaccedilatildeo do bom governante que desde a infacircncia deve

envolver-se somente com belas atividades (Ibid 558b) Aleacutem do mais a proacutepria

concepccedilatildeo de um governante superior aos cidadatildeos que seja capaz de transmitir pelo seu

discurso a noccedilatildeo do justo do belo e do bom constituiria algo repugnante num regime

democraacutetico que por sua proacutepria natureza eacute isento de chefes (Ibid 558c) Sendo assim

na visatildeo de Platatildeo o criteacuterio de validade de um discurso natildeo deve relacionar-se com uma

regra majoritaacuteria qualquer como a opiniatildeo da maioria pois a arte retoacuterica deve ser antes

de mais nada um assunto da competecircncia de filoacutesofos

Entretanto para Aristoacuteteles a arte retoacuterica natildeo eacute o patrimocircnio exclusivo de uma

elite de especialistas ou filoacutesofos longe disso ela se abre agraves perspectivas individuais de

cada ser humano configura-se num instrumento de afirmaccedilatildeo da liberdade de expressatildeo

valoriza o jogo de interesses e motivaccedilotildees humanos e tambeacutem destaca o caraacuteter

interpessoal do discurso Para Aristoacuteteles a persuasatildeo retoacuterica eacute melhor que o uso da

forccedila fiacutesica e a retoacuterica eacute por excelecircncia a ldquoarte democraacuteticardquo a qual natildeo pode quer em

sua forma deliberativa quer em sua forma judicial desenvolver-se sob um regime

autoritaacuterio ou tiracircnico razatildeo pela qual ele enfatiza que o nascimento da arte retoacuterica na

Siciacutelia coincidiu com a expulsatildeo dos tiranos (Ret 1402a 23-24) Aliaacutes Aristoacuteteles

explicita que ordinariamente a maioria das pessoas exerce a retoacuterica mesmo que ao acaso

ou mediante a praacutetica que resulta do haacutebito A retoacuterica portanto natildeo pode ser uma praacutetica

exclusiva de poucos especialistas visto que os cidadatildeos comuns jaacute participam dela

(mesmo desconhecendo seus princiacutepios e regras gerais) na medida em que procuram

eventualmente questionar e sustentar um argumento defender ou acusar

No diaacutelogo Fedro o filoacutesofo Platatildeo subordinou a arte retoacuterica agrave filosofia

Aristoacuteteles por sua vez separou uma da outra apresentando-as como disciplinas distintas

e complementares E diferente de Platatildeo o interesse de Aristoacuteteles natildeo se limitou a

apresentar uma conexatildeo entre o discurso retoacuterico e a verdade das proposiccedilotildees poreacutem

levou em consideraccedilatildeo a dimensatildeo da comunicaccedilatildeo e do uso puacuteblico da linguagem Isto

posto a referecircncia do discurso natildeo se encontra em objetos ideais transcendentes e

acessiacuteveis a um pequena classe de privilegiados mas constitui-se pelas opiniotildees ou pelo

conjunto das crenccedilas da comunidade as quais configuram-se tanto na mateacuteria prima como

no criteacuterio da argumentaccedilatildeo retoacuterica

Decerto as crenccedilas da comunidade possuem para Aristoacuteteles um papel fundamental

na argumentaccedilatildeo retoacuterica porque esta natildeo tem por objetivo expor a verdade cientiacutefica

mas a verossimilhanccedila a qual soacute eacute vaacutelida naquilo que concebe o auditoacuterio A arte retoacuterica

de Aristoacuteteles eacute adaptada ao niacutevel intelectual dos ouvintes ao senso comum agrave opiniatildeo

corrente por isso conveacutem aos produtos da cultura de massa em que impera as crenccedilas que

o puacuteblico julga verdadeiras Porquanto ainda que o orador possua a ciecircncia mais exata

natildeo seria capaz de persuadir com ela um auditoacuterio composto por pessoas comuns (Ibid

1355a 32-34) Desse modo parece ser mais uacutetil veicular aquilo que o puacuteblico acha

verdadeiro mesmo que seja cientificamente impreciso do que expor o que na realidade

eacute cientificamente verdadeiro e ser rejeitado pela opiniatildeo puacuteblica Pode-se assegurar

entatildeo que o poder persuasivo da arte retoacuterica estaacute limitado agraves opiniotildees oficiais existentes

e as crenccedilas que prevalecem numa determinada sociedade Essa dimensatildeo da realidade

poliacutetica ou social como limitante do poder da retoacuterica eacute o que fundamenta a asserccedilatildeo de

Soacutecrates no diaacutelogo Defesa de Soacutecrates de que uma maneira de persuadir sua audiecircncia

seria mais faacutecil do que a outra embora esta outra expresse a verdade dos fatos Portanto

as crenccedilas existentes numa sociedade satildeo tatildeo cruciais para a persuasatildeo puacuteblica que nem

o mais habilidoso orador seria capaz de persuadir seus ouvintes contrariando

explicitamente crenccedilas arraigadas de maneira poderosa e profunda

Examinamos ateacute aqui a concepccedilatildeo platocircnica acerca da arte retoacuterica assim como o

seu contraste em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo retoacuterica sustentada por Aristoacuteteles Dessa avaliaccedilatildeo

foi possiacutevel ressaltar subjacentemente algumas noccedilotildees que aproximam o pensamento

retoacuterico de Aristoacuteteles da sofiacutestica sobretudo a noccedilatildeo de que os argumentos retoacutericos

devem ser formados de opiniotildees comuns tendo em vista a comunicaccedilatildeo com as

multidotildees Todavia a partir do proacuteximo capiacutetulo analisar-se-aacute a concepccedilatildeo retoacuterica dos

sofistas Goacutergias e Protaacutegoras e por conseguinte sua contraposiccedilatildeo relativamente a

Aristoacuteteles Esta investigaccedilatildeo natildeo visa somente evidenciar a discordacircncia entre

Aristoacuteteles e a sofiacutestica mas trazer agrave baila em termos mais definidos os pontos nos quais

o Estagirita se aproxima do seu mestre mormente em relaccedilatildeo agrave funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da

arte retoacuterica cujo corolaacuterio seraacute a visatildeo de um quadro mais completo da tese que

tencionamos demonstrar

6 A concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas Goacutergias e Protaacutegoras

61 Aspectos gerais do movimento sofista

De acordo com G B Kerferd certos aspectos da vida de Atenas na segunda metade

do seacuteculo V aC poderiam sugerir que estava ocorrendo uma mudanccedila bastante

fundamental em direccedilatildeo a uma sociedade na qual o que as pessoas pensavam e falavam

comeccedilava a ser mais relevante do que os proacuteprios fatos reais Assim a mentalidade que

teria emergido no seacuteculo V aC baseava-se na compreensatildeo de que a relaccedilatildeo entre o

discurso e o fato real estava longe de ser um acontecimento simples E apesar de ser

provaacutevel que os pensadores do seacuteculo em apreccedilo estivessem preparados para aceitar que

haacute e deve haver sempre uma relaccedilatildeo entre os dois havia um crescente entendimento de

que o que estaacute envolvido no conhecimento humano natildeo eacute simplesmente a apresentaccedilatildeo

dos fatos em palavras mas antes uma representaccedilatildeo das coisas (KERFERD 2003 135)

Conveacutem ainda considerar que nessa eacutepoca a cidade de Atenas havia conquistado o

domiacutenio poliacutetico e exercia tambeacutem uma espeacutecie de hegemonia cultural sobre toda a

Heacutelade por isso tornou-se rapidamente um centro cultural para onde convergiram muitos

pensadores que aspiravam por notoriedade incluindo os sofistas (σοφισταί) Estes vieram

de toda parte do mundo grego e alguns continuaram a viajar por toda parte em funccedilatildeo de

sua atividade profissional Todavia a maioria se dirigiu para Atenas a qual representou

o verdadeiro centro do movimento sofista por pelo menos sessenta anos (Ibid 2003 31-

32) Mas antes de prosseguirmos no exame do movimento sofista eacute pertinente a anaacutelise

sumaacuteria do significado etimoloacutegico da palavra ldquosofistardquo

Segundo W K C Guthrie a palavra ldquosofistardquo (σοφιστής) que significa

literalmente ldquosaacutebiordquo a qual ateacute o seacuteculo V aC natildeo tinha adquirido um sentido pejorativo

se aplicava aos sete saacutebios (σοφοί) da tradiccedilatildeo grega40 cuja sabedoria consistia sobretudo

na arte praacutetica de estadista As palavras gregas σοφός e σοφία que mormente satildeo

traduzidas por ldquosaacutebiordquo e ldquosabedoriardquo foram usadas desde os tempos mais antigos para

designar uma qualidade intelectual ou espiritual Este sentido passou facilmente para o de

40 Na lista oferecida por Platatildeo a respeito dos sete saacutebios da tradiccedilatildeo grega menciona-se Piacutetaco de Mitilene Periandro de Corinto Tales de Mileto Soacutelon de Atenas Quiacutelon de Esparta Cleoacutebulo de Lindos e Bias de Priene (Prot 343a)

conhecedor geral ou prudente Nesse sentido as palavras ldquoσοφιστήςrdquo e ldquoσοφόςrdquo por

muito tempo foram consideradas como sinocircnimas Σοφιστής tambeacutem se aplicava muitas

vezes a poetas pois no modo de ver dos gregos instruccedilatildeo praacutetica e conselho moral

constituiacuteam a funccedilatildeo preciacutepua do poeta Todavia no seacuteculo V aC a palavra comeccedilou a

ser usada para escritores em prosa em contraste a poetas quando a funccedilatildeo didaacutetica veio a

se exercer cada vez mais por este meio Por conseguinte um σοφιστής eacute aquele que

escreve e ensina porque tem especial periacutecia ou conhecimento para comunicar-se mas

sua σοφία eacute eminentemente praacutetica quer nos campos da conduta e poliacutetica quer nas artes

teacutecnicas Natildeo obstante os atenienses tendiam a desconficar de intelectuais versados

professores e coisas deste jaez cujas qualidades sintetizam-se na palavra δεινότης com o

adjetivo δεινός Degenerando como acontece com as palavras no uso popular δεινότης

se torna vinculada com σοφός para significar astuto ou esperto principalmente aquele

que eacute perito em discursos e na argumentaccedilatildeo Sendo assim temos a partir de seacuteculo V

aC o adjetivo δεινός ligado expressamente a σοφιστής para ser sentido como insulto

cuja esperteza eacute utilizada para objetivos errados (GUTHRIE 2007 31-36)

A segunda metade do seacuteculo V aC foi o tempo em que se produziu por parte dos

sofistas uma reaccedilatildeo contra toda especulaccedilatildeo fiacutesica Eles teriam deflagrado uma

verdadeira rebeliatildeo contra a distacircncia e a incompreensibilidade do mundo tal como os

fiacutesicos o representavam e iniciado as investigaccedilotildees sobre os assuntos ligados agrave vida

humana Para Guthrie isto teria ocorrido porque as teorias dos filoacutesofos da natureza natildeo

eram satisfatoacuterias nem particularmente criacuteveis porquanto o que eles chamavam de

ldquonatureza real das coisasrdquo era algo extremamente remoto em relaccedilatildeo ao mundo concreto

no qual as pessoas viviam Agrave vista disso a natureza do mundo real resultava de pouca

importacircncia para indiviacuteduos que tinham de lidar todos os dias com um mundo

completamente distinto (Id 2010 74) Importa ainda considerar que apesar da oposiccedilatildeo

dos sofistas em relaccedilatildeo agraves especulaccedilotildees dos primeiros filoacutesofos eles natildeo constituiacuteram

uma escola filosoacutefica particular Na verdade eles eram sobretudo mestres ambulantes

que se orientavam para os assuntos praacuteticos da vida motivados pelas crescentes

oportunidades para tomar parte na vida poliacutetica pela insatisfaccedilatildeo cada vez maior a

respeito das doutrinas dos filoacutesofos da natureza e pelo crescente ceticismo acerca da

validez do ensino religioso tradicional com suas representaccedilotildees dos deuses toscamente

antropomoacuterficos (Ibid 2010 77)

Os sofistas com efeito natildeo podem ser considerados membros de uma escola posto

que eram muito individualistas para admitir um mestre fundador de quem seriam

seguidores Ademais como todo conhecimento implica na aprendizagem que depende

das circunstacircncias do mestre e do disciacutepulo natildeo se poderia transformar a sofiacutestica num

corpo doutrinaacuterio transferiacutevel de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo Os sofistas natildeo formaram uma

corrente filosoacutefica mas certamente constituiacuteram uma profissatildeo a qual teria o seguinte

aspecto em comum a natureza essencialmente praacutetica dos seus ensinamentos Aliaacutes um

assunto em especial que pelo menos todos os sofistas praticavam e ensinavam em comum

era a retoacuterica ou arte do λόγος Um claro exemplo da natureza praacutetica dos ensinamentos

dos sofistas eacute a anedota atribuiacuteda por Platatildeo ao sofista Hiacutepias o qual teria se apresentado

no jogos oliacutempicos levando coisas que ele mesmo havia fabricado (Hip Men 368b-c)

Soacutecrates ndash Adiante pois Hiacutepias Deixa-me levar-te a fazer um exame semelhante em todas as ciecircncias para te assegurares de que em nenhuma se passam as coisas de maneira diferente Ora tu eacutes entre todos os homens o mais saacutebio nas mais numerosas artes como um dia ouvi gabares-te na Aacutegora quando diante das bancas do mercado descrevias a extensatildeo do saber que possuis Tu afirmavas ter uma vez vindo a Oliacutempia trazendo sobre o corpo coisas feitas por ti proacuteprio sem excepccedilatildeo primeiro ndash pois eacute por aiacute que comeccedilavas ndash o anel que trazias era da tua lavra em seguida o sinete obra tua tambeacutem e a tua raspadeira e a tua acircnfora de azeite eram tambeacutem fabricadas pelas tuas matildeos Depois os sapatos que levavas eras tu que tinhas moldado o couro o teu manto eras tu quem o tinha tecido tal como a tua tuacutenica O que enfim em verdade no juiacutezo de todos era o facto mais desconcertante e um testemunho probatoacuterio de um saber sem limites era o cinto que tinhas na tua tuacutenica semelhante dizias tu agraves faixas mais sumptuosas da Peacutersia entranccedilado pelas tuas matildeos Natildeo eacute tudo tinhas vindo declaravas com um arsenal de poemas versos eacutepicos trageacutedias ditirambos e uma variedade de composiccedilotildees oratoacuterias em prosa

Conforme a anaacutelise de Werner Jaeger desde o princiacutepio a finalidade do movimento

educacional comandado pelos sofistas natildeo era a educaccedilatildeo do povo mas a dos chefes Eles

foram os primeiros intelectuais a fazerem do ldquoconhecimentordquo uma profissatildeo pois

ofereciam aulas de retoacuterica e conhecimentos gerais (poesia muacutesica dialeacutetica e gramaacutetica)

aos jovens cidadatildeos da classe dirigente de Atenas que pretendiam dedicar-se agrave carreira

poliacutetica (JAEGER 2003 339 342) Os sofistas ofereciam o seu conhecimento aos filhos

dos aristocratas abastados ou dos novos ricos por isso o que estavam aptos a oferecer natildeo

era de forma alguma uma contribuiccedilatildeo para a educaccedilatildeo das massas uma vez que

ofereciam um produto caro para os que estavam buscando fazer carreira na poliacutetica e na

vida puacuteblica em geral A despeito disso uma das consequecircncias da educaccedilatildeo oferecida

por eles foi superar os privileacutegios da antiga educaccedilatildeo a qual era acessiacutevel somente aos

que tinham ldquosangue divinordquo ou seja a partir da sofiacutestica a educaccedilatildeo formal natildeo se

limitava mais agrave nobreza de sangue mas tambeacutem se estendia a todos que podiam pagar

(Ibid 2003 337) E tendo em vista que a finalidade principal da educaccedilatildeo oferecida

pelos sofistas consistia em preparar homens para uma carreira na poliacutetica uma parte

essencial da educaccedilatildeo oferecida por eles incidia no treinamento do discurso persuasivo

Giovanni Casertano sublinha que os institutos da democracia ateniense

representavam o espaccedilo poliacutetico no qual se mediavam as tensotildees e lutas econocircmicas e

sociais da sociedade grega de modo que tal mediaccedilatildeo poliacutetica obrigava novas exigecircncias

e habilidades ndash a exigecircncia de homens capazes de sustentar e de fazer prevalecer uma

tese impondo-a agrave maioria da assembleia e por conseguinte a exigecircncia de homens que

possuem uma teacutecnica do discurso natildeo mais ligada a uma determinada classe social Agrave

vista disso os sofistas se apresentavam como os ldquonovos mestresrdquo que poderiam satisfazer

a essa nova exigecircncia do saber falar que natildeo consistia numa exigecircncia exclusivamente

retoacuterica mas possuiacutea um claro valor poliacutetico e social (CASERTANO 2010 17)

A habilidade dos sofistas no domiacutenio da arte retoacuterica permitia sem duacutevida

conquistar uma vasta clientela entre os jovens atenienses desejosos de galgar o posto de

magistrados nas assembleias onde se tomavam as decisotildees poliacuteticas e diante dos

tribunais onde ocorriam as acusaccedilotildees e as defesas (onde tambeacutem era necessaacuterio censurar

ou louvar) Assim a importacircncia da persuasatildeo em Atenas na segunda metade do seacuteculo

V aC explicaria o grande ecircxito obtido pelos sofistas No entanto eacute certo que as

qualidades essenciais de um homem de Estado natildeo poderiam ser adquiridos pelo

treinamento porque satildeo inatos o tato a presenccedila de espiacuterito e a previsatildeo Por outro lado

pode-se desenvolver o dom de pronunciar discursos convincentes e oportunos porquanto

no Estado democraacutetico as assembleias puacuteblicas e a liberdade da palavra tornaram-se

imprescindiacuteveis os dotes oratoacuterios Dessarte toda a educaccedilatildeo poliacutetica dos chefes devia

basear-se na eloquecircncia que se converteu na formaccedilatildeo baacutesica do orador por isso eacute

compreensiacutevel o fato de ter surgido uma classe inteira de educadores que publicamente

ofereceram por dinheiro o ensino da virtude que no contexto da eacutepoca claacutessica era

concebida sobretudo como aptidatildeo intelectual e oratoacuteria (JAEGER 2003 340)

Natildeo obstante o poder atribuiacutedo agrave retoacuterica no seacuteculo V aC natildeo teria sido

exclusivamente uma descoberta da geraccedilatildeo dos sofistas visto que sua importacircncia era jaacute

conhecida de Homero e nenhum dos primeiros poetas subestimava a importacircncia de sua

proacutepria atividade no emprego das palavras Mas a teoria acerca da retoacuterica foi em grande

medida uma criaccedilatildeo do periacuteodo sofista E ao lado da sofiacutestica que para Jaeger constitui

um fenocircmeno meramente pedagoacutegico a retoacuterica representaria um fenocircmeno de cunho

poliacutetico que se orienta praticamente para o Estado razatildeo pela qual o ῥήτωρ continuaria

ainda na eacutepoca claacutessica a ser o nome para designar o estadista que num regime

democraacutetico precisaria ser um orador (Ibid 2003 650)

Outrossim os sofistas eram todos estrangeiros (μέτοικος) residentes em Atenas por

esse motivo estavam excluiacutedos da vida puacuteblica e dos direitos garantidos pela posse da

cidadania razatildeo pela qual natildeo tiveram nenhuma oportunidade de tornarem-se figuras

poliacuteticas o que efetivamente foi compensado pelo ensino que ofertavam Platatildeo refere-se

a isso no diaacutelogo Defesa de Soacutecrates onde Soacutecrates afirma que os sofistas satildeo muito bons

fazedores de discursos poliacuteticos mas o seu haacutebito de andar de cidade em cidade e natildeo

possuir uma moradia fixa constitui uma desvantagem quando se refere ao ensino de

assuntos de cidadania Aleacutem disso os sofistas exigiam notaacuteveis somas de dinheiro por

seus ensinamentos a exemplo de Eveno de Paros que cobrava o equivalente a cinco

minas por suas aulas (Def Soacutec 19e-20b)

Conveacutem enfatizar que o ensino constituiacutea na Greacutecia um modo respeitaacutevel de ganhar

a vida de modo que natildeo havia nenhum preconceito contra ganhar a vida como tal Os

poetas eram pagos por seus trabalhos e de artistas e intelectuais se esperava que fossem

pagos por sua atividade e tambeacutem por ensinaacute-la aos outros Portanto a rejeiccedilatildeo que os

sofistas sofreram parece ter-se voltado para a espeacutecie de assunto que eles professavam

ensinar que na visatildeo de W K C Guthrie consistia especialmente na instruccedilatildeo da virtude

(GUTHRIE 2007 41) G B Kerferd tambeacutem compartilha desse ponto de vista ao

sustentar natildeo era o fato dos sofistas cobrarem honoraacuterios que desagradava a maioria mas

o fato de venderem instruccedilatildeo em sabedoria e virtude a todo tipo de gente simplesmente

por dinheiro E o que agravava mais a situaccedilatildeo consistia em que eles vendiam ldquosabedoriardquo

e ldquovirtuderdquo a todos sem nenhuma discriminaccedilatildeo posto que ao cobrarem honoraacuterios

abriam matildeo do direito de escolher seus alunos Esta seria pois a fonte da poderosa

atraccedilatildeo exercida pelos sofistas em Atenas e talvez a principal causa do oacutedio que

fomentou os ataques dos autores de comeacutedias os processos judiciais e finalmente a

morte do proacuteprio Soacutecrates (KERFERD 2003 47-48) Ateacute mesmo Isoacutecrates num de seus

famosos discursos critica tal aspecto da atividade dos sofistas ao declarar que eles foram

tatildeo longe em sua falta de escruacutepulos que tentam persuadir os jovens de que se estudassem

apenas com eles saberiam o que fazer na vida e por meio desse conhecimento se

tornariam felizes e proacutesperos Aleacutem disso embora os sofistas se estabeleccedilam como

mestres e distribuidores de bens tatildeo preciosos natildeo se envergonham de pedir a seus alunos

um preccedilo de trecircs ou quatro minas (Contr Sof 3)

Para W K C Guthrie eacute manifesto que os sofistas natildeo formaram uma vertente

filosoacutefica definida mas no seu entendimento isto natildeo significa que suas reflexotildees natildeo

possuiacuteam grosso modo um conteuacutedo filosoacutefico Para ele os sofistas compartilharam algo

que com propriedade pode chamar-se uma atitude filosoacutefica o ceticismo e a desconfianccedila

a respeito da possibilidade do conhecimento absoluto que era o resultado natural do

impasse a que havia chegado a filosofia natural Todos eles com efeito sustentavam a

ausecircncia total de valores e princiacutepios absolutos e desprezavam todas as consideraccedilotildees

teoloacutegicas Na perspectiva deles toda accedilatildeo humana se baseava unicamente na

experiecircncia a qual era mormente determinada por sua utilidade e eficaacutecia Aleacutem do mais

as noccedilotildees de sabedoria de justiccedila e de bondade eram concebidas como meros nomes

(GUTHRIE 2010 78-79 83)

Outrossim natildeo podendo eliminar o dilema eleaacutetico que forccedilava uma escolha entre

o ser e o tornar-se a estabilidade e o fluxo a realidade e a aparecircncia os sofistas acabaram

por abandonar a ideia de uma realidade permanente por detraacutes das aparecircncias em favor

do fenomenismo do relativismo e do subjetivismo extremos Eles compartilhavam da

perspectiva filosoacutefica geral do empirismo e com este o ceticismo comum sobre a

possibilidade do conhecimento certo Eles sustentavam esta perspectiva em virtude da

inadequaccedilatildeo e falibilidade das faculdades humanas bem como da ausecircncia de uma

realidade estaacutevel para ser conhecida Todos igualmente acreditavam na antiacutetese entre

natureza e convenccedilatildeo Divergiam ainda na avaliaccedilatildeo do valor relativo de cada uma mas

nenhum deles sustentava que leis costumes e crenccedilas religiosas eram inabalaacuteveis por

estarem enraizados numa ordem natural imutaacutevel (Idem 2007 49)

Seguindo a mesma perspectiva interpretativa Giovanni Casertano enfatiza que

aquilo que na obra dos sofistas veio agrave luz pela primeira vez com clareza foi a consciecircncia

da relatividade dos valores ndash a consciecircncia de que natildeo eacute mais possiacutevel falar em termos de

verdade absoluta nem eacute mais aceita a velha figura do saacutebio investido de um saber divino

cuja sabedoria deve ser transmitida aos mortais Depois do advento da sofiacutestica a relaccedilatildeo

entre o homem e a realidade que o circunda e por conseguinte a proacutepria vida humana

com suas tensotildees e organizaccedilotildees natildeo satildeo mais concebidas num esquema fixo e imutaacutevel

A experiecircncia relativista dos sofistas faz nascer tambeacutem um novo sentido para a sabedoria

oficial de modo que as cogitaccedilotildees fiacutesicas astronocircmicas e meacutedicas retomadas dos antigos

saacutebios tornam-se menos abstratas e mais aderentes agrave vida concreta do homem Os

antigos portanto natildeo representam mais o texto da sabedoria oficial dos quais eacute preciso

haurir com reverecircncia noccedilotildees e preceitos de vida Pelo contraacuterio a sabedoria do homem

natildeo eacute mais a absorccedilatildeo passiva de uma tradiccedilatildeo e dos seus ensinamentos mas sua

utilizaccedilatildeo na consciecircncia da diversidade das eacutepocas dos costumes das situaccedilotildees no

processo contiacutenuo da vida humana que eacute ao mesmo tempo relativa e devida somente agraves

forccedilas do homem E para a formaccedilatildeo dessa consciecircncia relativista contribuiu fortemente

o amor dos sofistas pelas viagens e as descobertas de povos e costumes distintos fator

constante da cultura grega mas que foi fortemente potenciado no periacuteodo das guerras

persianas (CASERTANO 2010 19-20)

Todavia antes da conclusatildeo da tocircnica sobre a posiccedilatildeo epistemoloacutegica dos sofistas

acerca da possibilidade do conhecimento humano eacute pertinente o exame das consideraccedilotildees

gerais de Victor Brochard sobre o assunto Brochard sustenta que a passagem do

dogmatismo mecanicista e materialista para o ceticismo se explica sem dificuldade Os

filoacutesofos preacute-socraacuteticos completamente ocupados com suas investigaccedilotildees fiacutesicas teriam

constatado a insuficiecircncia da experiecircncia sensiacutevel mas sua confianccedila ingecircnua na razatildeo

natildeo chegou a ser abalada A diversidade dos resultados aos quais eles chegaram teria

inspirado a desconfianccedila em seus sucessores e os espiacuteritos penetrantes natildeo tardariam a

compreender que se pode dirigir contra a proacutepria razatildeo argumentos anaacutelogos aos que

arruinaram a confianccedila inicialmente concedida aos dados dos sentidos No entanto os

filoacutesofos preacute-socraacuteticos teriam parado no meio do caminho enquanto que os sofistas

avanccedilaram na criacutetica do conhecimento Agrave vista disso os sofistas teriam sido pioneiros em

manifestar uma postura ceacutetica diante do conhecimento eles certamente abriram o

caminho para os demais ceacuteticos mas natildeo foram capazes de formar uma escola filosoacutefica

Brochard destaca ainda que os sofistas quando falavam e agiam como se natildeo houvesse a

possibilidade de apreender a verdade natildeo se dedicavam a oferecer as razotildees teoacutericas para

sustentar sua duacutevida ceacutetica por isso o seu ceticismo se caracterizava por ser

eminentemente praacutetico porque pensavam mais em exploraacute-lo do que em explicaacute-lo

Assim a asserccedilatildeo de que a verdade eacute incognosciacutevel teria sido tomada pelos sofistas como

um axioma que natildeo se discute Eles teriam negligenciado a compreensatildeo dos princiacutepios

que fundamentam o ceticismo buscando apenas suas aplicaccedilotildees praacuteticas tais como

confundir os interlocutores arruinar os adversaacuterios e ganhar as causas mais nefastas

Ademais os argumentos ceacuteticos seriam apresentados pelos sofistas sem nenhuma ordem

e sem nenhum cuidado quanto ao meacutetodo (BROCHARD 2009 29 33)

Eacute manifesto que a filosofia desde a sua origem com Tales de Mileto eacute

permanentemente animada pela controveacutersia e todo novo avanccedilo teoacuterico representa

amiuacutede uma reaccedilatildeo contra as ideias anteriores (Met 983b 19-21) Pode-se verificar esta

atitude tanto em Platatildeo quanto em Aristoacuteteles sobretudo em relaccedilatildeo agrave filosofia moral e

poliacutetica que na sua eacutepoca estava envolta por influecircncia da sofiacutestica numa atmosfera de

ceticismo E foi com o intuito de combater tal posicionamento epistemoloacutegico o qual

parecia ser intelectualmente errocircneo e moralmente pernicioso que os filoacutesofos em apreccedilo

consagraram suas vidas Giovanni Casertano sublinha que no seacuteculo V aC o termo

ldquosofistardquo eacute utilizado em Atenas num sentido mais teacutecnico indicando determinada figura

de saacutebio de intelectual poreacutem no seacuteculo IV aC o termo adquire especialmente por

influecircncia de Platatildeo e Aristoacuteteles um sentido mais exato e proacuteprio distinguindo-se do

termo ldquofiloacutesofordquo e obtendo por conseguinte uma caracterizaccedilatildeo negativa a qual teria sido

conservada ateacute os dias atuais Ele enfatiza com efeito que ser sofista eacute sinocircnimo de

homem sagaz pronto para sustentar uma tese indiferentemente bem como a tese

contraacuteria ardiloso mais ou menos pedante e mais ou menos de maacute-feacute homem que

ldquoadulterardquo discursos com excessivas sutilezas que se agarra teimosa e arrogantemente a

toda palavra ou conceitos expressos por seu interlocutor e sobre cada um deles tem o que

falar pelo mero prazer de contradizer homem fraudulento que recorre a todos os truques

e artimanhas da linguagem para ter sucesso na discussatildeo ou simplesmente para ser

aplaudido pelo auditoacuterio por fim ser sofista eacute ser um homem aborrecedor que natildeo tem

nada a dizer e que apesar disso natildeo faz outra coisa senatildeo falar (CASERTANO 2010 9)

A hostilidade de Platatildeo em relaccedilatildeo aos sofistas eacute notoacuteria e sempre foi reconhecida

Em todos os diaacutelogos platocircnicos flui sempre de maneira expliacutecita ou impliacutecita

frequentemente oculta por uma sofisticada ironia uma tenaz polecircmica contra os sofistas

No diaacutelogo Goacutergias ele distingue de um lado uma seacuterie de atividades cientiacuteficas

chamadas de τέχναι cujos objetivos satildeo o mais alto grau de virtude em cada uma das suas

proacuteprias esferas e de outro lado diversas atividades empiacutericas (ἐμπειρίαν ἔγωγέ τινα)

Estas na verdade natildeo satildeo cientiacuteficas posto que natildeo estatildeo baseadas em princiacutepios

racionais e satildeo incapazes de dar explicaccedilotildees pelo contraacuterio elas soacute objetivam ao

agradaacutevel em vez da virtude e fazem isso sendo complacentes com as expectativas e os

desejos das pessoas (χάριτός τινος καὶ ἡδονῆς ἀπεργασίας) As atividades empiacutericas satildeo

portanto imitaccedilotildees enganadoras de genuiacutenas atividades cientiacuteficas E no acircmbito geral de

preocupaccedilatildeo com a alma humana (ψυχή) Platatildeo inclui a declaraccedilatildeo de normas de

comportamento e isso ele considera uma genuiacutena τέχνη e o que difere disso corresponde

a uma atividade espuacuteria conhecida como sofiacutestica (Goacuterg 462b-465e)

No diaacutelogo A Repuacuteblica Platatildeo descreve os sofistas como uma espeacutecie de

ldquodomadoresrdquo que dedicam toda a vida a estudar os caprichos do ldquoanimal grande e

robustordquo (οἷόνπερ ἂν εἰ θρέμματος μεγάλου καὶ ἰσχυροῦ) que seria a representaccedilatildeo

metafoacuterica das multidotildees Eles conhecem suas reaccedilotildees e desejos como devem aproximar-

se dele e tocaacute-lo quando e por que ele se torna mais agressivo e mais doacutecil qual a razatildeo

do tom que daacute a cada um dos seus urros e a que tom de voz se amansa ou enfurece E a

estas noccedilotildees os sofistas chamam de sabedoria e potildeem-se a ensinaacute-la desconhecendo por

completo o que aquelas opiniotildees e aqueles desejos tecircm na realidade de belo ou feio de

justo ou de injusto Aleacutem disso eles sempre seguem as opiniotildees do grande animal

chamando de bom o que o alegra e de mau o que o aflige justificando-se depois que tudo

isto eacute necessaacuterio porque eacute assim que sucede na realidade Portanto a adaptaccedilatildeo aos

caprichos das multidotildees constitui para os sofistas a pauta suprema da conduta poliacutetica E

esta adaptaccedilatildeo exclui a possibilidade de uma autecircntica educaccedilatildeo dos cidadatildeos orientada

conforme os valores imutaacuteveis e eternos do belo do bom e do justo que somente o

filoacutesofo eacute capaz de apreender (Rep 493a-c)

Verifica-se no pensamento de Aristoacuteteles uma atitude muito semelhante agrave de Platatildeo

dado que para aquele a arte do sofista consiste em aparente sabedoria Para o Estagirita

os dialeacuteticos e os sofistas tecircm o mesmo aspecto do filoacutesofo poreacutem a sofiacutestica eacute uma

sabedoria apenas aparente Outrossim a dialeacutetica e a sofiacutestica dirigem-se ao mesmo

gecircnero de objetos aos quais se dirige a filosofia mas a filosofia difere da primeira pelo

modo de especular e da segunda pela finalidade da especulaccedilatildeo A dialeacutetica move-se agraves

cegas nas coisas que a filosofia conhece verdadeiramente enquanto a sofiacutestica se reduz a

um conhecimento aparente natildeo real (Met 1004b 15-25) E na obra Dos Argumentos

Sofiacutesticos Aristoacuteteles descreve o sofista como algueacutem que ganha muito dinheiro com a

sabedoria aparente e natildeo real porque para ele eacute mais proveitoso parecer saacutebio do que secirc-

lo realmente A arte sofiacutestica consiste entatildeo num simulacro da sabedoria sem qualquer

vinculaccedilatildeo com a realidade e o sofista eacute aquele que faz comeacutercio de uma sabedoria

aparente Aleacutem do que eacute essencial para o sofista desempenhar em aparecircncia o papel de

um homem saacutebio em lugar de secirc-lo efetivamente (Arg Sof 165a 20-25)

62 Goacutergias a retoacuterica como artiacutefice da persuasatildeo

A despeito das criacuteticas que Aristoacuteteles teceu contra a sofiacutestica conveacutem lembrar sua

declaraccedilatildeo de que atraveacutes de alguns sofistas como Goacutergias Protaacutegoras e Trasiacutemaco a

arte retoacuterica pocircde atingir dimensotildees consideraacuteveis de modo que os grandes oradores do

seu tempo seriam os beneficiaacuterios de uma longa sucessatildeo de homens que a aprimoraram

ateacute que atingisse a forma corrente Todavia a arte retoacuterica natildeo foi uma invenccedilatildeo dos

sofistas nem nasceu em Atenas mas na Siciacutelia grega por volta de 465 aC depois da

expulsatildeo dos tiranos (Gelatildeo e Hieratildeo) e sua origem eacute judiciaacuteria Os cidadatildeos despojados

pelos tiranos em apreccedilo reclamaram seus bens e agrave guerra civil seguiram-se diversos

conflitos judiciaacuterios Corax que era disciacutepulo do filoacutesofo Empeacutedocles e seu proacuteprio

disciacutepulo chamado Tiacutesias publicaram uma coletacircnea de preceitos praacuteticos que continha

exemplos para as pessoas que recorressem agrave justiccedila E uma vez que naquela eacutepoca natildeo

havia advogados os litigantes recorriam aos logoacutegrafos que eram como escrivatildees

puacuteblicos que escreviam as queixas que eles teriam de ler diante do tribunal Nesse

contexto de disputas juriacutedicas os retores teriam oferecido aos logoacutegrafos e litigantes um

instrumento de persuasatildeo que alegavam ser infaliacutevel a ponto de ser capaz de persuadir

qualquer um sobre qualquer assunto (REBOUL 2004 2)

Todavia atraveacutes do sofista Goacutergias de Leontini surge uma nova fonte da retoacuterica

qual seja esteacutetica e propriamente literaacuteria Nascido em 385 aC ele tambeacutem era siciliano

e disciacutepulo de Empeacutedocles Em 327 aC ele teria visitado Atenas como embaixador e

sua eloquecircncia teria encantado os atenienses de tal modo que teve de prometer-lhes o seu

retorno Goacutergias foi considerado um dos fundadores do discurso epidiacutectico o qual criou

para esta finalidade uma prosa eloquente multiplicando as figuras de linguagem que a

tornam uma composiccedilatildeo erudita e ritmada tatildeo bela quanto a poesia Aliaacutes suas figuras

de linguagem satildeo tanto de palavras como assonacircncias rimas paranomaacutesias e ritmo da

frase quanto de sentido e pensamento como periacutefrases metaacuteforas e antiacuteteses (Ibid 2004

4) E as melhores informaccedilotildees a este respeito encontram-se plasmadas numa obra de

Goacutergias escrita em forma de declamaccedilatildeo retoacuterica chamada Elogio de Helena (Ἑλένης

ἐγκώμιον)

A obra gorgiana Elogio de Helena eacute um excelente exemplo de como as anaacutelises dos

sofistas alcanccedilaram uma sutileza e riqueza de articulaccedilotildees natildeo somente no acircmbito da

loacutegica mas tambeacutem no acircmbito da investigaccedilatildeo psicoloacutegica e no da explicaccedilatildeo dos

comportamentos praacuteticos dos seres humanos Sumariamente a obra procura demonstrar

a posiccedilatildeo privilegiada do λόγος ou seja do discurso retoacuterico natildeo soacute em relaccedilatildeo a

realidade das coisas mas tambeacutem em relaccedilatildeo a realidade dos seres humanos dos seus

prazeres das suas dores e de todos os seus sentimentos O propoacutesito inicial da obra

consiste em libertar Helena de Troia da culpa por ter feito o que fez ao deixar seu lar sua

filha e seu marido para ir ateacute Troia com Paacuteris mostrar que os que a condenam estatildeo

falando falsamente e ao indicar a verdade neutralizar a ignoracircncia deles Escreve

Goacutergias a este respeito (El Hel sect 2 )

Cabe ao mesmo homem dizer tambeacutem o que conveacutem com justiccedila e convencer do erro os que criticam Helena mulher em relaccedilatildeo agrave qual tornou-se uniacutessona e unacircnime tanto a crenccedila que ouvem os poetas quanto a fama de seu nome que se tornou memoacuteria de infortuacutenios Eu anseio oferecendo com o discurso uma explicaccedilatildeo e revelando a verdade suprimir a responsabilidade dela que tem erradamente uma maacute reputaccedilatildeo e suprimir a ignoracircncia denunciando os que enganados a criticam

O acento na ldquoverdaderdquo na passagem acima eacute enfaacutetico e revela que natildeo haacute em

Goacutergias a intenccedilatildeo de negar a existecircncia do fato concreto haja vista que soacute pode existir

o engano em relaccedilatildeo ao que realmente existe Isto posto Goacutergias aventa quatro possiacuteveis

explicaccedilotildees para o comportamento de Helena que era considerado ignoacutebil pela opiniatildeo

geral o decreto dos deuses e da necessidade o sequestro agrave forccedila a persuasatildeo pelo poder

do discurso e o resultado da forccedila da paixatildeo No primeiro caso os deuses representariam

uma forccedila mais poderosa que o homem resultando daiacute que satildeo eles os culpados e natildeo o

ser humano que naturalmente eacute mais fraco Por natureza natildeo seria o mais forte a ser

dominado pelo mais fraco mas o mais fraco pelo mais forte E se o mais forte deve

dominar entatildeo ao mais fraco soacute restaria obedecer O divino portanto seria mais forte

que o homem tanto pela forccedila como pela sabedoria por isso conveacutem atribuir a

responsabilidade agrave Fortuna e ao divino e libertar por conseguinte Helena da ignomiacutenia

(Ibid sect 6 )

No segundo caso seria necessaacuterio ter pena da mulher em vez de censuraacute-la e

condenar o baacuterbaro que a teria sequestrado pois se Helena foi arrebatada agrave forccedila

ilegalmente submetida e injustamente tratada com insolecircncia eacute evidente que agiu

ilegalmente quem a arrebatou enquanto ela sendo raptada e ultrajada obteve

indevidamente uma maacute fortuna Assim seria o baacuterbaro o merecedor da condenaccedilatildeo tanto

pelo discurso e pela lei quanto por sua accedilatildeo e ao ser submetida agrave forccedila privada da paacutetria

e afastada dos amigos Helena deveria inspirar a piedade em vez da difamaccedilatildeo (Ibid sect

7)

Algumas dificuldades poreacutem podem ser levantadas na terceira situaccedilatildeo quando eacute

o discurso (λόγος) que persuade e a resposta eacute desenvolvida um tanto longamente por

Goacutergias A soluccedilatildeo de Goacutergias parece ser dupla Em primeiro lugar Goacutergias argumenta

que se o discurso a persuadiu e sua alma enganou natildeo seria difiacutecil defendecirc-la e por

conseguinte liberaacute-la da responsabilidade visto que o λόγος seria como um grande e

soberano senhor que com um corpo pequeniacutessimo e invisibiliacutessimo eacute capaz de operar

diviniacutessimas accedilotildees (Ibid sect 8) A propoacutesito o poder de persuasatildeo atribuiacutedo por Goacutergias agrave

arte retoacuterica tambeacutem eacute reconhecido por Soacutecrates o qual declara que de acordo com o

sofista a arte retoacuterica revelar-se-ia como um poder quase divino (Goacuterg 456a)

Outrossim Goacutergias enfatiza o enorme poder do λόγος que se manifestaria pelas

experiecircncias emocionais que produz tanto pela poesia como pela maestria da prosa ndash um

estremecimento de medo repleto de espanto uma compaixatildeo que provocaria abundantes

laacutegrimas e um sentimento de nostalgia que entraria no espiacuterito dos que a ouvem (El Hel

sect 9-10)

Eacute necessaacuterio tambeacutem demonstrar pela opiniatildeo aos ouvintes considero e designo toda poesia como discurso metrificado Um estremecimento de medo repleto de espanto uma compaixatildeo que provoca laacutegrimas abundantes um sentimento de nostalgia entra no espiacuterito dos que a ouvem A alma eacute afetada (uma afecccedilatildeo que lhe eacute proacutepria) atraveacutes das palavras pelos sucessos e insucessos que concernem a outras coisas e outros seres animados Mas passemos de um a outro discurso Pois os maacutegicos e sedutores cantos atraveacutes das palavras inspirados pelos Deuses produzem prazer afastando a dor Pois o poder do maacutegico canto que nasce com a opiniatildeo da alma encanta-a persuade-a e modifica-a por fascinaccedilatildeo

Giovanni Casertano salienta que esta passagem do Elogio de Helena apresenta os

dois aspectos do λόγος gorgiano o aspecto natural e aspecto teacutecnico De um lado ele eacute

natural porque pertence por natureza agrave espeacutecie do homem mas de outro eacute teacutecnico porque

natildeo possuindo uma consistecircncia fiacutesica comparaacutevel agrave das outras coisas constitui uma

realidade natildeo menos verdadeira do que as outras e seria ainda mais real que as outras na

vida do homem Nesse sentido mediante o discurso a alma sofre uma forma proacutepria de

sofrimento que eacute artificial construiacuteda com arte como na poesia ou em qualquer discurso

que se dirige a outrem A despeito disso natildeo eacute por sua superficialidade que ele eacute menos

verdadeiro ou real do que as demais coisas que existem no mundo Todas as paixotildees

humanas como alegria e dor dependem do discurso Ele eacute aquilo que faz ser as coisas

que natildeo satildeo justamente porque eacute aquilo que leva agrave consciecircncia do homem o significado

das coisas nas quais ele estaacute imerso Por isso ele eacute tambeacutem um grande e soberano senhor

porque o homem natildeo pode viver sem significados (CASERTANO 2010 96-97)

Haveria para Goacutergias uma outra maneira pela qual o λόγος eacute capaz de agir sobre a

alma humana Para ele a maioria dos homens eacute incapaz de recordar o que de fato

aconteceu ou de investigar o presente ou de advinhar o futuro De modo que na maioria

das questotildees os homens usam a opiniatildeo (δοξα) como um conselheiro para suas almas A

δοξα poreacutem natildeo eacute confiaacutevel e pode fazer a pessoa tropeccedilar e cair com consequecircncias

danosas para si mesma Todavia o λόγος eacute capaz de agir persuasivamente sobre a δοξα

porque a δοξα natildeo eacute conhecimento (ἐπιστήμη) e por essa razatildeo seria faacutecil de mudar (El

Hel sect 11)

Quantos persuadiram e persuadem outros tantos a propoacutesito de outras tantas coisas forjando um falso discurso Se pois todos sobre todas as coisas tivessem tanto a memoacuteria das coisas passadas quanto a noccedilatildeo das coisas presentes e as presciecircncias das coisas futuras o discurso natildeo seria o mesmo para os que agora natildeo podem facilmente nem lembrar o passado nem examinar o presente nem predizer o futuro De modo que os muitos sobre muitas coisas buscam com a alma a opiniatildeo conselheira A opiniatildeo sendo incerta e inconstante lanccedila a incertos e inconstantes sucessos os que a ela se confiam

Eacute preciso levar em consideraccedilatildeo que as praacuteticas da retoacuterica de Goacutergias se baseavam

numa concepccedilatildeo relativista acerca do conhecimento semelhante a de Protaacutegoras e por ela

se justificavam porquanto se houvesse uma verdade universalmente vaacutelida que se

pudesse comunicar a outrem entatildeo tal verdade devia ser transmitida por estar apoiada

numa evidecircncia absoluta Assim somente o conhecimento baseado numa prova

irrefutaacutevel poderia se opor ao poder inerente agrave persuasatildeo mas na condiccedilatildeo de ceacutetico

Goacutergias aventa natildeo existir algo desta natureza razatildeo pela qual na maioria dos assuntos

os homens tecircm apenas δόξα e natildeo ἐπιστήμη Eles vivem num mundo onde a δοξα eacute

suprema e natildeo existe um criteacuterio mais elevado atraveacutes do qual se possa verificar o

contraacuterio Isto deixa o orador que eacute exiacutemio na arte da persuasatildeo (tanto privada como

puacuteblica) no controle de todo o campo da experiecircncia humana jaacute que a δόξα por ser incerta

e inconstante sempre pode mudar Goacutergias ainda declara que o modo de ser da persuasatildeo

de maneira alguma se parece agrave necessidade (ἀνάγκη) mas certamente tem o mesmo poder

(δύναμις) Isto ocorre porque o discurso persuasivo ao agir sobre a alma eacute capaz de

constrangecirc-la tanto a crer nas coisas enunciadas quanto a concordar com as coisas feitas

(Ibid sect 12) Agrave vista disso o efeito do discurso eacute sempre a persuasatildeo mas a maioria das

pessoas conserva firmemente na alma natildeo a verdade mas apenas a opiniatildeo de modo que

eacute faacutecil dominaacute-la com o discurso da mesma forma que com violecircncia fiacutesica dominam-se

os corpos E se eacute verdade que eacute o λόγος quem daacute significado agravequilo que o homem eacute e faz

eacute necessaacuterio pois que os homens aprendam a usaacute-lo adequadamente

O ensino retoacuterico de Goacutergias natildeo se restringia agrave forma e ao estilo mas referia-se

tambeacutem a substacircncia do que se dizia Para ele a verdade seria individual e temporaacuteria e

natildeo universal e permanente jaacute que a verdade para o homem consiste simplesmente em

que podia ser persuadido pelo λόγος e seria possiacutevel persuadir qualquer um sobre

qualquer coisa E a fim de justificar sua concepccedilatildeo de que a opiniatildeo eacute incerta e

inconstante e a persuasatildeo aliada a palavras modela a mente dos homens como quiser

Goacutergias aduziu trecircs exemplos Primeiramente ele menciona os que discutem os corpos

celestes a saber os meteorologistas (μετεωρολόγοι) ou os cientistas naturais que

acreditando possuir o segredo do universo substituem uma opiniatildeo por outra removendo

uma e formando outra em seu lugar e fazem com que as coisas que natildeo se veem agraves quais

faltam credibilidade se tornem aparentes aos olhos da opiniatildeo O segundo exemplo

consiste no caso em que o λόγος estaacute em debate com outro λόγος como as disputas que

ocorrem nas assembleias (λόγων ἀγῶνας) onde um discurso pela habilidade de sua

composiccedilatildeo natildeo pela verdade de suas afirmaccedilotildees ao mesmo tempo delicia e persuade

uma grande multidatildeo de ouvintes E em terceiro lugar os combates dos discursos dos

filoacutesofos (φιλοσόφων λόγων) nos quais a rapidez do pensamento se evidencia ao

modificar facilmente a crenccedila da opiniatildeo (Ibid sect 13)

Com efeito o resultado a que chega Goacutergias eacute que o poder do λόγος em relaccedilatildeo agrave

condiccedilatildeo da alma eacute comparaacutevel ao poder inerente a uma droga (φάρμακον) pois eacute

manifesto que diferentes drogas tecircm diferentes efeitos sobre o corpo Algumas curam

doenccedilas e outras potildeem fim agrave vida do mesmo modo tambeacutem entre as palavras umas

afligem outras encantam outras amedrontam outras estabelecem confianccedila nos

ouvintes outras atraveacutes de soacuterdida persuasatildeo envenenam e enganam a alma (Ibid sect 14)

Desse modo o discurso para Goacutergias eacute como um φάρμακον ou seja natildeo eacute nem bom nem

mau em si mesmo nem verdadeiro nem falso de modo que a bondade do discurso

depende necessariamente do uso que se faz dele visto que ele sempre tem um efeito sobre

a alma assim como o φάρμακον sobre o corpo

A comparaccedilatildeo da persuasatildeo com o termo ldquoφάρμακονrdquo sugere que Goacutergias deseja

distinguir dois tipos de persuasatildeo ou seja uma boa e outra maacute Seria entatildeo a maacute

persuasatildeo que operou no caso de Helena levando-a a abandonar sua famiacutelia e seguir Paacuteris

Tal concepccedilatildeo se ajusta perfeitamente com a posiccedilatildeo atribuiacuteda a Goacutergias por Platatildeo no

diaacutelogo Goacutergias ndash a retoacuterica para Goacutergias seria simplesmente uma arte que pode ser usada

para produzir tanto a crenccedila falsa como a crenccedila verdadeira embora ele e seus defensores

no diaacutelogo em apreccedilo defendam que ela natildeo deve ser empregada para propoacutesitos imorais

Goacutergias tambeacutem propotildee que enquanto mestre de retoacuterica ele transmite a sua arte a seus

disciacutepulos para ser empregada de maneira justa embora eles possam empregaacute-la de

maneira contraacuteria Contudo isso seria de responsabilidade moral do orador o qual deve

responder por suas proacuteprias accedilotildees e natildeo do mestre que lhe transmitiu a arte retoacuterica

atraveacutes da qual ele comete injusticcedila (Goacuterg 457a-c)

Pois eles lhe transmitiram o uso justo dessas coisas contra inimigos e pessoas injustas para se defender e natildeo para atacar ao passo que seus transgressores usam a forccedila e a arte incorretamente Assim ignoacutebeis natildeo satildeo os mestres tampouco culpada e ignoacutebil eacute a arte por tal motivo mas as pessoas que natildeo a usam corretamente como presumo O mesmo argumento tambeacutem vale para a retoacuterica o reacutetor eacute capaz de falar contra todos e a respeito de tudo de modo a ser mais persuasivo em meio agrave multidatildeo em suma acerca do que quiser poreacutem nem mesmo por esse motivo ele deve furtar a reputaccedilatildeo dos meacutedicos ndash pois seria capaz de fazecirc-lo ndash nem a de qualquer outro artiacutefice mas usar a retoacuterica de forma justa como no caso da luta E se algueacutem julgo eu tornar-se reacutetor e cometer posteriormente alguma injusticcedila por meio desse poder e dessa arte se deve odiar expulsar ou matar quem os usou incorretamente e natildeo quem os ensinou

No iniacutecio do Elogio de Helena Goacutergias afirma que sua intenccedilatildeo natildeo eacute outra coisa

senatildeo indicar a verdade pois para ele a boa ordem da cidade consistiria na coragem dos

seus cidadatildeos (Κόσμος πόλει μὲν εὐανδρία) a boa ordem do corpo a beleza (σώματι δὲ

κάλλος) a boa ordem da alma a sabedoria (ψυχῆι δὲ σοφία) a boa ordem da accedilatildeo a

virtude (πράγματι δὲ ἀρετή) e a boa ordem do discurso a verdade (λόγωι δὲ ἀλήθεια)

Entretanto o contraacuterio dessas coisas resultaria na desordem na cidade Assim em relaccedilatildeo

a um homem e a uma mulher a um discurso e a uma accedilatildeo a uma cidade e a um negoacutecio

de Estado eacute necessaacuterio tanto honrar pelo elogio puacuteblico aquele que o merece quanto

infligir repreensatildeo ao que eacute indigno uma vez que eacute erro e ignoracircncia reprovar as coisas

louvaacuteveis e louvar as coisas criticaacuteveis (El Hel sect 1)

A despeito disso Goacutergias fala do λόγος que persuade a alma produzindo engano

(ἀπατή) e da persuasatildeo que eacute bem sucedida porque moldou um λόγος falso Para ele a

persuasatildeo age por engano porque se o discurso persuadiu Helena e enganou sua alma

natildeo seria difiacutecil quanto a este assunto defendecirc-la e por conseguinte isentaacute-la da

responsabilidade Dessarte pode-se entender que na visatildeo de Goacutergias a uacutenica maneira

pela qual a persuasatildeo age na opiniatildeo eacute por engano O λόγος seria entatildeo um grande e

soberano senhor capaz de operar diviniacutessimas accedilotildees sendo possiacutevel atraveacutes dele suscitar

o medo a calma a alegria afastar a dor e estimular a compaixatildeo (Ibid sect 8)

Conforme a anaacutelise de G B Kerferd eacute possiacutevel compreender o verdadeiro

significado de ἀπατή no pensamento de Goacutergias levando em consideraccedilatildeo o que eacute dito na

segunda e na terceira partes do seu tratado chamado Sobre a natureza Na segunda parte

Goacutergias afirma que mesmo se as coisas existirem natildeo poderatildeo ser conhecidas pensadas

ou apreendidas pelos seres humanos E na terceira parte ele afirma que mesmo que

pudessem ser apreendidas ainda assim natildeo poderiam ser comunicadas a uma outra

pessoa Isto ocorreria porque o meio atraveacutes do qual as pessoas se comunicam eacute o

discurso o qual jamais poderaacute se identificar com os objetos externamente subsistentes

que existem na realidade Sendo assim aquilo que se comunica a uma outra pessoa nunca

satildeo as coisas existentes na realidade mas apenas um λόγος e este eacute sempre outra coisa

diferente das coisas em si mesmas (KERFERD 2003 139) Isto posto se para Goacutergias

as coisas natildeo existem ou natildeo satildeo cognosciacuteveis nem comunicaacuteveis ele estaria por esse

motivo apregoando a onipotecircncia do λόγος o qual natildeo estaria mais submetido a nenhum

criteacuterio extriacutenseco e do qual nem mesmo se pode dizer que eacute falso de sorte que no

conhecimento humano o que estaacute envolvido natildeo eacute simplesmente a apresentaccedilatildeo dos fatos

em palavras mas uma representaccedilatildeo subjetiva das coisas existentes na realidade

De acordo com a interpretaccedilatildeo de Kerferd o sofista Goacutergias teria introduzido uma

espeacutecie de fosso entre o λόγος e as coisas agraves quais ele se refere (πράγματα) que chegariam

aos seres humanos de uma fonte externa a eles Assim tal fosso deve ser compreendido

pelo fato de o λόγος (pelo menos quando exposto em sons vocais audiacuteveis) natildeo ser ele

mesmo algo da mesma categoria das πράγματα Em vez disso as coisas chegariam aos

seres humanos de fora deles mesmos mediante um oacutergatildeo do sentido diferente daquele

pelo qual recebemos as impressotildees visuais razatildeo pela qual o λόγος jamais teria a funccedilatildeo

de exibir o objeto externo tal como eacute na realidade (Ibid 2003 167-168) Uma vez

reconhecido o fosso compreender-se-ia entatildeo muito facilmente o sentido em que todo

discurso envolve uma falsificaccedilatildeo da coisa agrave qual se refere o λόγος jamais seria capaz de

reproduzir a realidade em si mesma a qual estaria irreparavelmente fora dele Aleacutem disso

essa doutrina lanccedilaria luz sobre a afirmaccedilatildeo do paraacutegrafo 11 do Elogio de Helena no qual

Goacutergias afirma que se os homens possuiacutessem mesmo o conhecimento o λόγος natildeo seria

visivelmente similar agrave aquilo do qual eles possuem o conhecimento (Ibid 2003 140) E

na medida em que Goacutergias declara a intenccedilatildeo de reproduzir fielmente a realidade ao

mostrar que os que condenam Helena estatildeo falando falsamente e ao indicar a verdade

neutralizar a ignoracircncia deles (El Hel sect 2) isto natildeo passaria de ἀπατή daiacute que todo

discurso que objetiva persuadir eacute nada mais nada menos que puro engano

Eacute manifesto que Goacutergias acreditava na existecircncia de um mundo real objetivo que

amiuacutede eacute concebido como a verdade ou aquilo que eacute verdadeiro A apreensatildeo desse

mundo real se identificaria efetivamente com o conhecimento mas o estado cognitivo

mais comum seria δόξα e natildeo ἐπιστήμη ao passo que o λόγος que seria mais poderoso

que a δόξα teria o poder ilimitado de influenciaacute-la Ambos seriam falsos em contraste

com a verdade e o conhecimento mas eacute possiacutevel apelar dos enganos do λόγος e da δοξα

para o conhecimento e a verdade O efeito desse apelo embora propiciasse algum

conhecimento natildeo eliminaria o incuraacutevel caraacuteter falso do λόγος visto que ele jamais

poderia exprimir a realidade que pretende expor

Na perspectiva de Goacutergias a distinccedilatildeo entre o niacutevel da realidade e o niacutevel do

discurso sobre a realidade natildeo expressa uma relaccedilatildeo de estrita correspondecircncia jaacute que ela

acontece apenas num dos niacuteveis ou seja no niacutevel do discurso Eacute sempre e somente o

discurso que determina a relaccedilatildeo entre a linguagem e a realidade diferenciando-os e

conectando-os Poder-se-ia dizer (invertendo a concepccedilatildeo aristoteacutelica acerca da verdade)

que algo natildeo pode ser considerado branco pelo fato de ser branco na realidade mas

simplesmente por ser afirmado por algueacutem que assim o percebe Agrave vista disso natildeo seria

possiacutevel determinar a realidade de algo de maneira independente do λόγος de modo que

a afirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo da realidade de algo o inevitaacutevel atribuir predicados a algum

objeto por exemplo que ldquoa neve eacute brancardquo dependem sempre das percepccedilotildees subjetivas

acerca da realidade Estas percepccedilotildees natildeo seriam neutras pois exprimiriam sempre a

perspectiva individual de cada sujeito sobre a realidade justamente porque satildeo a

representaccedilatildeo em palavras das coisas Pode-se assegurar entatildeo que Goacutergias procura

demonstrar que existe um verdadeiro fosso entre as coisas e a percepccedilatildeo assim como

entre a percepccedilatildeo e o discurso razatildeo pela qual as palavras natildeo teriam qualquer

correspondecircncia com as coisas que vez por outra elas imitam

A despeito da inconsonacircncia entre a realidade a percepccedilatildeo e o discurso as palavras

para Goacutergias podem persuadir os outros a mudar suas opiniotildees o que confere um poder

quase ilimitado ao discurso retoacuterico Este por conseguinte eacute capaz de imprimir o ser agraves

coisas que natildeo satildeo levar agrave consciecircncia do homem o significado das coisas alterar tanto

as emoccedilotildees como as opiniotildees daqueles que o ouvem e submeter os ouvintes ao poder do

orador Ele ainda pode persuadir a alma constrangendo-a tanto a crer nas coisas

enunciadas quanto a concordar com as coisas feitas Dessarte Goacutergias define a arte

retoacuterica como πειθοῦς δημιουργός ou seja como artiacutefice da persuasatildeo (Goacuterg 453a)

Agora sim Goacutergias tua indicaccedilatildeo parece-me muito mais propiacutenqua agrave qual arte consideras ser a retoacuterica e se compreendo alguma coisa afirmas que a retoacuterica eacute artiacutefice da persuasatildeo e todo seu exerciacutecio e cerne convergem a esse fim Ou tens algo mais a acrescentar ao poder da retoacuterica aleacutem de incutir na alma dos ouvintes a persuasatildeo

Enquanto artiacutefice da persuasatildeo a retoacuterica eacute capaz de persuadir mediante o discurso

os juiacutezes no tribunal os conselheiros no Conselho os membros da Assembleia e em toda

e qualquer reuniatildeo que seja uma reuniatildeo poliacutetica E atraveacutes dela eacute possiacutevel submeter os

ouvintes ao poder do orador a ponto deste ter o meacutedico como escravo e como escravo o

treinador (Ibid 452e)

A meu ver ser capaz de persuadir mediante o discurso os juiacutezes no tribunal os conselheiros no Conselho os membros da Assembleia na Assembleia e em toda e qualquer reuniatildeo que seja uma reuniatildeo poliacutetica Ademais por meio desse poder teraacutes o meacutedico como escravo e como escravo o treinador Tornar-se-aacute manifesto que aquele negociante negocia natildeo para si proacuteprio mas para outra pessoa para ti que tens o poder de falar e persuadir a multidatildeo

Aleacutem do mais para Goacutergias se porventura algum meacutedico fosse incapaz de

persuadir um doente qualquer a seguir cabalmente suas orientaccedilotildees como por exemplo

cortar ou cauterizar algum membro enfermo o orador haacutebil jaacute natildeo teria tal dificuldade e

isto soacute seria possiacutevel atraveacutes do domiacutenio da arte retoacuterica E no caso de um orador e um

meacutedico que se dirigissem a uma cidade e laacute se requeresse uma disputa entre eles atraveacutes

do discurso sobre quem deveria ser eleito meacutedico certamente seria o orador e natildeo o

meacutedico a obter a vaga pleiteada (Ibid 456c)

Ah Se soubesses de tudo Soacutecrates todos os poderes por assim dizer elas os manteacutem sob sua eacutegide Vou te contar uma grande prova disso muitas vezes eu me dirigi em companhia de meu irmatildeo e de outros meacutedicos a um doente que natildeo queria tomar remeacutedio nem permitir ao meacutedico que lhe cortasse ou cauterizasse algo sendo o meacutedico incapaz de persuadi-lo eu enfim o persuadi por meio de nenhuma outra arte

senatildeo a da retoacuterica E digo mais se um reacutetor e um meacutedico se dirigirem a qualquer cidade que quiseres e laacute requerer uma disputa entre eles mediante o discurso na Assembleia ou em qualquer outra reuniatildeo sobre quem deve ser eleito como meacutedico quem se apresentaraacute jamais seraacute o meacutedico mas seraacute eleito aquele que tenha o poder de falar se assim ele o quiser E se disputasse com qualquer outro artiacutefice o reacutetor ao inveacutes de qualquer um deles persuadiria as pessoas a elegerem-no pois natildeo haacute nada sobre o que o reacutetor natildeo seja mais persuasivo do qualquer outro artiacutefice em meio agrave multidatildeo Esse eacute o tamanho e o tipo de poder dessa arte

Em sua explanaccedilatildeo acerca da arte retoacuterica Goacutergias a apresenta como uma disciplina

separada e distinta das demais aacutereas do conhecimento humano Para ele um orador natildeo

deveria estar preocupado com o conhecimento teacutecnico dos assuntos de seus discursos

pois apesar de natildeo conhecer a arte da medicina poderia facilmente persuadir um paciente

desobediente agraves ordens de seu meacutedico41 Desse modo natildeo seria necessaacuterio o domiacutenio de

um conhecimento teacutecnico sobre um assunto especiacutefico no qual o orador objetivasse a

persuasatildeo Pelo contraacuterio o orador saberia como produzir a persuasatildeo nos ouvintes

independente de qualquer conhecimento especializado E se o meacutedico e o orador satildeo

capazes de persuadir o resultado praacutetico seria o mesmo em seus ouvintes com a diferenccedila

de que o orador eacute mais eficiente em atingir seu objetivo

Com efeito Goacutergias natildeo nega que o conhecimento teacutecnico exista mas sim a

existecircncia de uma conexatildeo necessaacuteria entre o conhecimento e a persuasatildeo E quando

Soacutecrates no diaacutelogo em apreccedilo aventa que os especialistas numa determinada arte satildeo os

melhores para dar conselhos sobre a construccedilatildeo de um porto ou de uma muralha Goacutergias

argumenta que satildeo os oradores que sempre tecircm ecircxito para persuadir a Assembleia a

aprovar as leis mais relevantes e jamais os especialistas (Ibid 455b-c) Para ele os

estaleiros as muralhas de Atenas e o aparelhamento dos portos seriam o resultado do

conselho de Temiacutestocles e de Peacutericles e natildeo dos artiacutefices (Ibid 455e) Aliaacutes Goacutergias natildeo

se utiliza de raciociacutenios para provar sua tese sobre a onipotecircncia do discurso mas de

exemplos que seriam suficientemente fortes para questionar a pretensatildeo dos especialistas

e refutaacute-la

Embora Goacutergias reconheccedila que meacutedicos e outros especialistas tenham

conhecimento parece que tanto o Goacutergias do Elogio de Helena quanto o personagem

41 Goacutergias teria sido disciacutepulo de Empeacutedocles que o levou a dedicar-se agraves artes do discurso persuasivo e da medicina O seu irmatildeo Heroacutedico tambeacutem era meacutedico de modo que pretendeu ajudar a medicina utilizando seus poderes de persuasatildeo sobre os pacientes recalcitrantes de seu irmatildeo bem como de outros meacutedicos (GUTHRIE 2007 251)

forjado por Platatildeo no diaacutelogo Goacutergias concordam que o conhecimento especializado eacute

irrelevante quando se trata da eficaacutecia da persuasatildeo Por essa razatildeo Goacutergias pode declarar

que por meio do poder da retoacuterica eacute possiacutevel submeter tanto o meacutedico como o treinador agrave

condiccedilatildeo de escravos Isto significa que todos os especialistas que natildeo possuem a

habilidade retoacuterica satildeo menos poderosos do que aqueles que sabem como persuadir as

multidotildees (Ibid 452e) As decisotildees poliacuteticas entatildeo natildeo seriam tomadas por

especialistas porque quem realmente decide natildeo satildeo os especialistas mas aqueles que

em virtude de sua habilidade persuasiva satildeo capazes de fazer-se ouvir e arbitrar Werner

Jaeger salienta a este respeito que Goacutergias natildeo se sentiria capaz de definir a retoacuterica senatildeo

pelos seus efeitos persuasivos Assim a tentativa de defini-la a partir de um conteuacutedo

material como se pode fazer com outras disciplinas que igualmente se servem da palavra

como meio fracassaria porque a retoacuterica seria somente palavra e arte da palavra a qual

tenderia a persuadir por meio da forma oratoacuteria (JAEGER 2003 650)

Com o propoacutesito de compreendermos a concepccedilatildeo retoacuterica de Goacutergias analisamos

ateacute aqui algumas de suas doutrinas expostas no Elogio de Helena e nas doxografias

exaradas por Platatildeo no diaacutelogo Goacutergias Cabe examinarmos adiante seguindo o mesmo

procedimento as doutrinas do sofista Protaacutegoras

63 Protaacutegoras a teacutecnica dos argumentos opostos e o relativismo

De acordo com o registro histoacuterico de Dioacutegenes Laeacutercio o sofista Protaacutegoras era

um mestre itinerante originaacuterio da cidade de Abdera que ensinava a arte de persuadir e

conhecimentos gerais o que lhe garantia fabulosas quantias de dinheiro a tiacutetulo de

honoraacuterios No entanto ele teria sido mais arrojado que o sofista Goacutergias pois ao chegar

na cidade de Atenas teria declarado a seguinte profissatildeo de feacute agnoacutestica ldquoπερὶ μὲν θεῶν

οὐκ ἔχω εἰδέναι οὔθ᾽ ὡς εἰσίν οὔθ᾽ ὡς οὐκ εἰσίν πολλὰ γὰρ τὰ κωλύοντα εἰδέναι ἥ τ᾽

ἀδηλότης καὶ βραχὺς ὢν ὁ βίος τοῦ ἀνθρώπουrdquo segundo a qual natildeo existiriam meios de

saber se os deuses existem ou natildeo existem uma vez que satildeo muitos os obstaacuteculos

impeditivos de tal conhecimento como a obscuridade do assunto e a brevidade da vida

humana Em virtude dessa declaraccedilatildeo ele teria sido banido de Atenas e suas obras

queimadas na praccedila do mercado (Vid doutr fil il IX 8 52-53)

Quando Protaacutegoras declara que natildeo se pode afirmar que os deuses existem nem que

natildeo existem apelando primeiramente para a obscuridade do assunto provavelmente ele

estaacute falando da impossibilidade de fazer um discurso sobre os deuses em virtude de uma

ausecircncia de experiecircncia Sobre os deuses nada se pode falar porque o seu eventual ser natildeo

se transforma num objeto de experiecircncia imediata e sensiacutevel de modo que qualquer

discurso sobre eles natildeo seria de fato evidente E a referecircncia agrave brevidade da vida humana

eacute uma concessatildeo puramente exterior agraves opiniotildees e crenccedilas tradicionais fato comum em

Protaacutegoras que em seus discursos se utilizava tambeacutem dos mitos para veicular suas ideias

eacuteticas e poliacuteticas No entanto quando ele declara que natildeo sabe se os deuses existem ou

natildeo existem natildeo estaacute efetivamente negando sua existecircncia o que configuraria o crime de

impiedade (ἀσέβεια) pela qual ele foi condenado mas apenas suspendendo qualquer

julgamento sobre a questatildeo Natildeo obstante parece que os atenienses interpretaram o fato

de Protaacutegoras dizer natildeo saber nada acerca da existecircncia dos deuses como um modo menos

expliacutecito mas igualmente claro de afirmar saber que os deuses natildeo existem

Ainda segundo Dioacutegenes Laeacutercio o sofista Protaacutegoras teria sido o primeiro

indiviacuteduo a afirmar que em relaccedilatildeo a qualquer assunto existem duas afirmaccedilotildees

contraditoacuterias e argumentava em concordacircncia com este princiacutepio Ele teria sido o

primeiro a exigir cem minas a tiacutetulo de honoraacuterios a distinguir os tempos e os verbos a

destacar a importacircncia de aproveitar o momento oportuno a organizar debates oratoacuterios

a ensinar os contendores o uso dos sofismas a relegar a plano secundaacuterio a significaccedilatildeo

dos termos atendo-se unicamente ao jogo de palavras a criar as discussotildees eriacutesticas e a

descobrir o meacutetodo de aprovar e refutar um mesmo tema proposto Ele tambeacutem teria

distinguido quatro tipos de discursos a narraccedilatildeo a pergunta a resposta a enumeraccedilatildeo a

suacuteplica e a invocaccedilatildeo que sustentou serem as bases fundamentais do discurso Tambeacutem

existiriam no seu tempo alguns textos conservados que eram atribuiacutedos a Protaacutegoras tais

como Da arte eriacutestica Da luta Das ciecircncias Do Estado Da ambiccedilatildeo Das virtudes Da

ordem antiga das coisas Dos que habitam no Hades Sobre as maacutes accedilotildees do homens

Preceitos Dos discursos forenses mediante honoraacuterios e Antilogias em dois livros (Ibid

IX 8 52-53)

No que tange agrave afirmaccedilatildeo de que em relaccedilatildeo a qualquer assunto existem duas

afirmaccedilotildees contraditoacuterias ou dois argumentos opostos (δισσοὶ λόγοι) e de que eacute possiacutevel

aprovar e refutar um mesmo tema proposto Protaacutegoras queria dizer com isso que se pode

tomar qualquer lado de uma questatildeo e defendecirc-la com igual convicccedilatildeo Eacute manifesto que

desde que os homens comeccedilaram a argumentar sempre existiram argumentos opostos

Aristoacuteteles ateacute declara que todas as pessoas em certa medida questionam e sustentam

argumentos defendem ou acusam (Ret 1354a 5-7) poreacutem o que caracteriza o

pensamento protagoacuterico natildeo eacute simplesmente a ocorrecircncia de argumentos opostos mas o

fato de que ambos os argumentos (proacute e contra) podem ser veiculados pelo mesmo orador

sem se levar em consideraccedilatildeo o absurdo de negar o princiacutepio loacutegico de natildeo-contradiccedilatildeo

No diaacutelogo Fedro Platatildeo censura esta praacutetica chamada por ele de antiloacutegica

(ἀντιλογική) a qual consiste em fazer com que a mesma coisa seja vista pelas mesmas

pessoas ora possuindo um predicado ora possuindo o predicado contraacuterio a exemplo do

justo e do injusto Para Platatildeo o executor da ἀντιλογικὴ seria capaz de fazer com que a

mesma coisa apareccedila agraves mesmas pessoas umas vezes justa outras injusta Nos discursos

na Assembleia ele seria capaz de fazer que as mesmas coisas pareccedilam agrave cidade algumas

vezes boas e outras vezes maacutes (Fed 261d) Todavia a ἀντιλογικὴ ou a arte de combater

com palavras aprovando ou refutando um mesmo tema proposto natildeo se limitaria apenas

aos tribunais e agrave Assembleia mas abrangeria todo gecircnero oratoacuterio Aliaacutes a ἀντιλογικὴ

possibilitaria a uma pessoa tornar cada coisa semelhante a qualquer outra (Ibid 261e)

No diaacutelogo A Repuacuteblica Platatildeo estabelece uma clara distinccedilatildeo entre a ἀντιλογικὴ e

a dialeacutetica (διαλεκτικὴ) ao assegurar que falta ao executor da ἀντιλογικὴ uma

caracteriacutestica que eacute essencial ao debate filosoacutefico qual seja a capacidade de discutir com

base na divisatildeo objetiva das coisas em espeacutecies uma vez que a ἀντιλογικὴ procede

somente com base em contradiccedilotildees verbais (Rep 454a) E no Protaacutegoras ele atribui ao

sofista Protaacutegoras a crenccedila de que qualquer discussatildeo equivale a uma ldquoluta de palavrasrdquo

(λόγων ἀφικόμην) da qual um deve sair como vitorioso e outro o derrotado em

detrimento do ideal expresso por Soacutecrates da investigaccedilatildeo em comum um auxiliando o

outro para que ambos possam chegar mais facilmente ao conhecimento da verdade (Prot

335a)

Tal ldquoluta de palavrasrdquo tambeacutem recebe o nome de eriacutestica (εριστική) que pode ser

caracterizada como a habilidade em refutar e sustentar ao mesmo tempo teses

contraditoacuterias cujo objetivo eacute somente a persuasatildeo dos interlocutores O sucesso da

εριστική estaacute intrinsecamente vinculado agrave habilidade retoacuterica de sorte que vencia a

discussatildeo o mais forte em argumentos e natildeo necessariamente aquele que veiculasse

argumentos verdadeiros Na visatildeo de Chaumlim Perelman em oposiccedilatildeo ao ponto de vista

eriacutestico a discussatildeo dialeacutetica consiste no instrumento ideal para chegar a conclusotildees

objetivamente vaacutelidas pois nela supotildee-se que os interlocutores natildeo se preocupam senatildeo

em mostrar e provar todos os argumentos a favor ou contra atinentes agraves diversas teses

em presenccedila Desse modo ao ser levada a bom termo a discussatildeo dialeacutetica deveria

conduzir os interlocutores a uma conclusatildeo inevitaacutevel e unanimemente admitida

Entretanto no debate eriacutestico cada interlocutor soacute aventaria argumentos convenientes

para sua tese e soacute se preocuparia com os argumentos contraacuterios se lhe fossem favoraacuteveis

ora para refutaacute-los ora para limitar-lhes o alcance O interlocutor com posiccedilatildeo tomada eacute

sempre parcial tanto por ter tomado posiccedilatildeo como por jaacute natildeo poder fazer senatildeo a parte

dos argumentos pertinentes que lhe eacute favoraacutevel os quais apareceratildeo no debate se o

adversaacuterio os aventar Compreende-se entatildeo que a discussatildeo dialeacutetica se apresenta como

uma busca sincera pela verdade ao passo que no debate eriacutestico cada qual se preocupa

sobretudo com o triunfo de sua proacutepria tese (PERELMAN 2014 41-42)

Com base nas duas referecircncias em apreccedilo acerca do significado de ἀντιλογικὴ no

pensamento platocircnico pode-se concluir que o termo designa de um lado a praacutetica sofiacutestica

de defender indiferentemente teses que satildeo contraacuterias e de outro o combate verbal cujo

objetivo principal eacute vencer o adversaacuterio sem qualquer compromisso com a apreensatildeo da

verdade Todavia conveacutem levar em consideraccedilatildeo que apesar de haver uma longa tradiccedilatildeo

nos estudos platocircnicos de tratar as palavras antiloacutegica e eriacutestica como simplesmente

intercambiaacuteveis G B Kerferd sustenta que esta interpretaccedilatildeo eacute um tanto ou quanto

imprecisa42

Existe um fragmento conhecido como Discursos Duplos (Δισσοὶ λόγοι) que foi

datado do iniacutecio do seacuteculo IV aC cujo autor eacute desconhecido (SPRAGUE 1968 155-

167) A despeito disso o fragmento em apreccedilo certamente possui um caraacuteter sofista e

42 Conforme a anaacutelise de G B Kerferd Platatildeo frequentemente usa os termos ldquoεριστικήrdquo e ldquoἀντιλογικὴrdquo para se referir ao mesmo procedimento e da mesma forma emprega ocasionalmente adjetivos derivados de ldquoεριστικόςrdquo e ldquoαντιλογικόςrdquo para se referir agraves mesmas pessoas mas da mesma forma ocasionalmente aplica um soacute termo sem o outro E agraves vezes o segundo termo que falta eacute simplesmente omitido mas em outras situaccedilotildees o contexto sugere que teria sido inadequado usar o segundo termo Todavia quer Platatildeo use um termo ou os dois reportando-se agrave mesma coisa ou agrave mesma pessoa eles nunca teriam o mesmo significado O termo ldquoεριστικήrdquo seria derivado do substantivo ldquoἔριςrdquo que significa luta disputa ou controveacutersia e quando Platatildeo o emprega significa ldquobuscar a vitoacuteria na argumentaccedilatildeordquo e a arte que cultiva e propicia os meios e estratagemas para obtecirc-la Portanto a εριστική natildeo seria stricto sensu uma teacutecnica de argumentaccedilatildeo pois ela pode usar uma ou mais de uma seacuterie de teacutecnicas com o intuito de atingir seu objetivo qual seja o sucesso no debate ou sua aparecircncia A ἀντιλογικὴ por sua vez seria um procedimento mais especiacutefico pois consistiria em opor um λόγος a outro ou em descobrir ou chamar atenccedilatildeo para a presenccedila de uma oposiccedilatildeo em um argumento ou em uma coisa ou situaccedilatildeo Assim sua caracteriacutestica essencial seria a oposiccedilatildeo de um λόγος a outro por contrariedade ou oposiccedilatildeo e ao contraacuterio da εριστική a palavra ldquoἀντιλογικὴrdquo constituiria uma teacutecnica bem especiacutefica que a partir de um determinado λόγος procura estabelecer um λόγος contraacuterio ou contraditoacuterio (KERFERD 2003 108-110)

muitos estudiosos como Heinrich Gomperz (GOMPERZ 1965) e T M Robinson

(ROBINSON 1979) sustentaram que a estrutura antiloacutegica do fragmento relaciona-se ao

meacutetodo protagoacuterico por isso eles o atribuiacuteram agrave escola do sofista Protaacutegoras O fragmento

Δισσοὶ λόγοι eacute composto por uma seacuterie de discursos de natureza antiloacutegica pois seu autor

examina cinco toacutepicos propondo para cada um deles discursos contraacuterios sobre o bom e

o ruim (Περὶ ἀγαθῶ καὶ κακῶ) sobre o bonito e o feio (Περὶ καλοῦ καὶ αἰσχροῦ) sobre

o justo e o injusto (Περὶ δικαίου καὶ ἀδίκου) sobre o falso e o verdadeiro (Περὶ ἀλαθέος

καὶ ψεύδεος) e sobre a sabedoria e a virtude (Περὶ τᾶς σοφίας καὶ τᾶς ἀρετᾶς)

Ao abordar o tema sobre o bom e o ruim o autor desconhecido assevera que duplos

discursos sobre o bom e o ruim satildeo proferidos na Greacutecia pelos pensadores Para ele

alguns dizem que o bom eacute uma coisa e o ruim outra ao passo que outros sustentam que

eacute a mesma coisa Na verdade ela pode ser boa para uns mas ruim para outros e para a

mesma pessoa ora eacute boa ora eacute ruim O autor deixa claro que prefere tomar o partido destes

uacuteltimos e pretende expor tal raciociacutenio comeccedilando pela anaacutelise da vida humana Em sua

visatildeo certas coisas satildeo ruins para os que estatildeo doentes mas satildeo boas para os que estatildeo

saudaacuteveis e delas tecircm necessidade Semelhantemente a doenccedila eacute ruim para os que

adoecem mas eacute boa para os meacutedicos que lucram com os honoraacuterios A morte tambeacutem eacute

ruim para os que morrem todavia eacute boa para os que vendem serviccedilos funeraacuterios bem

como para os fabricantes de caixotildees Quando os cargueiros colidem e se quebram

certamente eacute ruim para seus proprietaacuterios mas eacute bom para os construtores de barcos

Aleacutem do mais quando uma ferramenta corroe-se perde o fio ou se quebra eacute ruim para os

proprietaacuterios mas para o ferreiro eacute uma coisa boa O mesmo acontece quando os potes se

quebram jaacute que eacute ruim para os outros mas eacute bom para o ceramista (Disc Dup 1 1-5)

No que tange ao bonito e ao feio o autor tambeacutem declara que satildeo proferidos dois

discursos opostos Para ele alguns dizem que o bonito seria uma coisa e o feio outra

diferente tanto na realidade como no nome Todavia existem outros que asseveram que

a mesma coisa eacute bonita e feia Para as mulheres eacute bonito banhar-se dentro de casa e feio

fazecirc-lo fora dela mas para os homens tanto em casa quanto no ginaacutesio eacute bonito Ter

relaccedilotildees sexuais com o marido em lugar tranquilo onde se estaacute protegida por paredes eacute

algo bonito mas eacute feio fazecirc-lo publicamente Ter relaccedilotildees sexuais com o proacuteprio marido

eacute bonito mas com o marido de outra eacute muito feio Igualmente para o homem eacute bonito se

deitar com sua mulher mas eacute feio que o faccedila com a de outro homem Enfeites maquiagens

e o uso de joias parece feio para o homem ao passo que eacute bonito para a mulher Fazer o

bem aos amigos tambeacutem eacute bonito mas aos inimigos eacute feio Correr dos inimigos em plena

guerra eacute feio mas correr dos competidores numa pista de corrida eacute bonito Assassinar os

amigos e concidadatildeos eacute feio mas matar os inimigos eacute algo bonito (Ibid 2 1-8)

Outrossim para os traacutecios eacute um ornamento o fato das meninas tatuarem-se mas para os

outros povos a tatuagem constitui um castigo para os criminosos Os citas consideram

bonito que o homem que assassina seu inimigo arranque seu couro cabeludo e leve o

escalpo diante de seu cavalo e que apoacutes ter recoberto de ouro ou prata o cracircnio do morto

beba nele e faccedila libaccedilotildees aos deuses Entretanto ningueacutem entre os gregos iria querer ficar

debaixo do mesmo teto com uma pessoa que tivesse cometido tais atos Os massagetas

cortam seus pais em pedaccedilos e os comem e ser comido por seus filhos parece-lhes a mais

bela sepultura Mas se algueacutem fizesse isso entre os gregos morreria miseravelmente ou

seria expulso da Greacutecia por ter cometido atos tatildeo feios e terriacuteveis Os persas acham bonito

que os homens se maquiem como as mulheres e que tenham relaccedilotildees sexuais com as

filhas matildees e irmatildes mas para os gregos isso eacute considerado feio e contraacuterio agrave lei E entre

os liacutedios considera-se bonito que as jovens se prostituam faccedilam dinheiro e depois se

casem ao passo que entre os gregos ningueacutem desejaria desposar tais mulheres (Ibid 2

13-16) O autor conclui este toacutepico sustentando a seguinte hipoacutetese se reunissem tudo

que eacute considerado feio pelos povos em geral e em seguida eles tivessem de levar dali o

que consideram bonito todas as coisas seriam levadas embora como bonitas pois natildeo

tecircm todos as mesmas opiniotildees Eacute improvaacutevel que reunidas as coisas feias elas venham a

ser bonitas jaacute que natildeo chegaram desse modo E caso tivessem trazido cavalos bois

ovelhas ou homens certamente natildeo tirariam algo diferente de modo que trazendo ouro

natildeo levariam ferro e se trouxessem prata natildeo levariam chumbo ou coisas desde jaez

(Ibid 2 26-27)

Para o autor desconhecido duplos discursos tambeacutem satildeo proferidos sobre o justo

e o injusto Segundo ele algumas pessoas asseveram que uma coisa seria o justo e outra

coisa o injusto mas para outros a mesma coisa eacute ao mesmo tempo justa e injusta Na

tentativa de defender esta uacuteltima posiccedilatildeo ele declara que pode ser justo mentir e enganar

de modo que fazer isso com os inimigos eacute feio e baixo mas natildeo com os mais proacuteximos

a exemplo dos pais Se o pai ou a matildee precisa tomar um remeacutedio que natildeo quer eacute justo

colocaacute-lo em sua bebida ou comida e natildeo contar o ocorrido Desse modo mentir para os

pais e enganaacute-los eacute realmente justo e tambeacutem roubar o que eacute do amigo e ateacute usar a forccedila

contra os entes queridos Caso um familiar transtornado e abatido com algo estiver prestes

a cometer o suiciacutedio com um punhal corda ou outro instrumento qualquer eacute justo roubaacute-

lo Ou ainda no caso de algueacutem chegar tarde e ele jaacute o tiver em matildeos eacute justo empregar a

forccedila para arrancaacute-lo dele E se o pai de algueacutem ao ser condenado agrave morte estiver preso

tendo sido capturado por inimigos poliacuteticos tambeacutem seria justo invadir o local para salvaacute-

lo No tocante ao perjuacuterio se algueacutem ao ser capturado por inimigos jurar que trairia sua

cidade ao ser libertado natildeo deveria manter sua palavra jaacute que nesse caso o melhor eacute

praticar o perjuacuterio para salvar a cidade (Ibid 3 1-6) Enfim sobre o toacutepico em apreccedilo o

autor acredita ter demonstrado que a mesma coisa eacute tanto justa quanto injusta pois o fato

de ser justo roubar o que eacute do inimigo demonstraria que a mesma coisa eacute justa e injusta

e isto tambeacutem seria vaacutelido para todas as outras afirmaccedilotildees (Ibid 3 15-16)

Sobre o falso e o verdadeiro tambeacutem satildeo proferidos discursos duplos Para o autor

uns dizem que o discurso verdadeiro eacute diferente do falso tanto no nome quanto na

realidade No entanto existem aqueles que afirmam que satildeo o mesmo discurso A fim de

justificar esta perspectiva o autor aventa que os loucos e os sensatos os saacutebios e os

ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas Primeiramente eles usam os mesmos nomes

como terra homem cavalo fogo etc Eles tambeacutem fazem as mesmas coisas como sentar

comer beber dormir e tudo o mais do mesmo jeito Ademais ele afirma que a mesma

coisa eacute tanto maior quanto menor mais e menos mais pesada e mais leve razatildeo pela qual

as mesmas coisas satildeo tudo O talento eacute mais pesado que a mina e mais leve que dois

talentos indicando que a mesma coisa eacute mais leve e mais pesada O mesmo homem vive

e natildeo vive e as mesmas coisas satildeo e natildeo satildeo As coisas que estatildeo num determinado lugar

natildeo estatildeo na Liacutebia e aquilo que estaacute na Liacutebia natildeo estaacute no Chipre E o raciociacutenio de que

as coisas satildeo e natildeo satildeo se aplicaria a todas as demais coisas Todavia existem os que

veiculam a opiniatildeo contraacuteria ou seja que eacute incorreto que os loucos e os sensatos os

saacutebios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas porquanto eles sustentam que a

loucura difere da sensatez e a sabedoria da ignoracircncia Natildeo obstante eacute manifesto para o

autor que eles concordariam que cada um age de acordo com o que eacute pois se fazem as

mesmas coisas os saacutebios seriam loucos e os loucos seriam saacutebios e todas as coisas assim

misturadas confundir-se-iam de maneira que elas precisam ser compreendidas em

sentido relativo (Ibid 5 1-8 15)

Por fim o escritor anocircnimo do Δισσοὶ λόγοι aborda o toacutepico a respeito da sabedoria

e da virtude43 bem como a asserccedilatildeo de que elas natildeo podem ser ensinadas nem aprendidas

43 No decorrer dessa obra traduziu-se a palavra grega ldquoἀρετήrdquo por ldquovirtuderdquo uso que a tradutora do Δισσοὶ λόγοι (Joseane Mara Prezotto) procurou evitar por crer que transmite um conceito cristatildeo de castidade ou correccedilatildeo moral optando entatildeo por ldquoexcelecircnciardquo Por falar nisso a traduccedilatildeo da Eacutetica a Nicocircmaco

Ele aventa que os que dizem isso mormente se apoiam nas seguintes provas natildeo seria

possiacutevel preservar consigo o que se transmite a algueacutem se fosse possiacutevel ensinar

sabedoria e virtude haveria professores conhecidos como tais a exemplo dos professores

de muacutesica os homens na Greacutecia que se tornaram saacutebios teriam a capacidade de ensinar

seus proacuteprios filhos e amigos existem pessoas que jaacute frequentaram os sofistas e natildeo

obtiveram disso proveito algum em contrapartida muitos que natildeo se associaram aos

sofistas tornaram-se indiviacuteduos notaacuteveis Todavia o autor considera que esse discurso eacute

demasiado simplista jaacute que os professores que ensinam letras conhecem-nas tambeacutem eles

proacuteprios e o mesmo ocorre com os professores de ciacutetara E se natildeo existem professores de

sabedoria e virtude seria necessaacuterio explicar o fato de sofistas anaxagoacutericos e pitagoacutericos

ensinarem seus disciacutepulos Policleto com efeito ensinou seu filho a fazer estaacutetuas E se

porventura algueacutem natildeo foi capaz desse feito natildeo se prova nada de modo que se um foi

capaz de ensinar isto jaacute seria uma prova de que o ensino eacute possiacutevel E se porventura junto

aos sofistas saacutebios alguns natildeo se tornam saacutebios tambeacutem muitos quando estudantes

sequer aprenderam as letras Aleacutem do mais existe certa disposiccedilatildeo natural graccedilas agrave qual

algueacutem que natildeo estudou com um sofista se torna capaz de compreender facilmente a

maioria dos assuntos depois de ter aprendido um pouco junto agravequeles com quem se

aprende a liacutengua incluindo os pais E caso algueacutem natildeo acredita que se aprende a liacutengua

mas que jaacute se nasce sabendo deve considerar que se uma crianccedila receacutem-nascida for

enviada para a Peacutersia e ali for criada sem ouvir a liacutengua grega certamente falaria persa

Depois de opor dois argumentos contraacuterios o autor conclui seu discurso sem afirmar que

a sabedoria e a virtude podem ser ensinadas mas que os argumentos contraacuterios satildeo

insuficientes para impor-se como verdade absoluta (Ibid 6 1-13)

A praacutetica de argumentos opostos eacute mormente atribuiacuteda a Protaacutegoras mas eacute

provaacutevel que natildeo estivesse confinada a ele pois eacute trazida agrave baila por Aristoacutefanes na

comeacutedia As Nuvens razatildeo pela qual natildeo se pode afirmar que todos os casos de δισσοὶ

λόγοι procedam exclusivamente de Protaacutegoras Na comeacutedia em apreccedilo o personagem

chamado Estrepsiacuteades estaacute cheio de diacutevidas em virtude de sua paixatildeo por cavalos e para

natildeo pagar seus credores decide frequentar o pensatoacuterio (φροντιστήριον) que eacute o nome da

escola onde Soacutecrates ensina qualquer pessoa a triunfar uma causa maacute graccedilas aos artifiacutecios

frequentemente utilizada neste trabalho eacute de Antoacutenio de Castro Caeiro o qual tambeacutem optou por traduzir a palavra grega ldquoἀρετήrdquo por ldquoexcelecircnciardquo e natildeo por ldquovirtuderdquo Todavia visto que esta palavra eacute mais familiar e tradicionalmente utilizada por muitos tradutores do Corpus Aristotelicum como procede Manuel Alexandre Juacutenior em sua traduccedilatildeo da Retoacuterica preferiu-se pois empregaacute-la em todos os casos em que se faz referecircncia ao termo grego

e sutilezas da arte retoacuterica Quando Estrepsiacuteades se apresenta ao φροντιστήριον a fim de

ser admitido encontra Soacutecrates pendurado num cesto estudando os fenocircmenos celestes

Mas como se revela um mal aluno pouco dotado para seguir os ensinamentos de

Soacutecrates Estrepsiacuteades insiste que seu filho Fidiacutepides frequente o pensatoacuterio e receba a

formaccedilatildeo retoacuterica na espectativa de que ela o ajudaraacute contra seus credores Estrepsiacuteades

orienta o seu filho Fidiacutepides nos seguintes termos (Nuv 95 115)

Laacute moram homens que quando falam do ceacuteu querem convencer de que eacute um abafador que estaacute em nosso redor e noacutessomos os carvotildees Se a gente lhes der algum dinheiro eles ensinam a vencer com discursos nas causas justas e injustas [] Dizem que no meio deles os raciociacutenos satildeo dois o forte seja ele qual for e o fraco Eles afirmam que o segundo raciociacutenio isto eacute o fraco discursando vence nas causas mais injustasOra se vocecirc me aprender esse raciociacutenio injusto do dinheiro que agora estou devendo por sua culpa dessas diacutevidas eu natildeo pagaria nem um oacutebulo a ningueacutem

Com efeito mais dotado que o pai Fidiacutepides segue com sucesso as aulas de

Soacutecrates o que possibilita Estrepsiacuteades livrar-se dos seus credores Mas a vitoacuteria contra

os credores volta-se contra Estrepsiacuteades porque o seu filho bem instruiacutedo pelos

ensinamentos de Soacutecrates que lhe dispensou o raciociacutenio injusto acha autorizado a bater

no pai e afirma (atraveacutes de sutis argumentos e sem nenhum escruacutepulo) que natildeo hesitaria

em fazer o mesmo com sua matildee Pode-se assegurar que todo o enredo da comeacutedia As

Nuvens gira em torno da pretensatildeo de Soacutecrates de ensinar seus alunos a como escapar das

penalidades legais referente ao agir mal Instruiacutedo por ele Fidiacutepides defende abertamente

agredir o seu proacuteprio pai justificando que eacute doce conviver com ideias novas e engenhosas

e poder desprezar as leis tradicionais estabelecidas (Ibid 1404) Portanto atraveacutes da arte

retoacuterica transmitida por Soacutecrates na forma de sentenccedilas palavras e pensamentos seria

possiacutevel defender uma causa considerada injusta e fazecirc-la prevalecer sobre uma causa

justa (Ibid 1405-1415 1440)

E antes vou dizer-lhe o seguinte quando eu era crianccedila vocecirc me batia [] Entatildeo diga-me natildeo eacute justo que eu tenha boas intenccedilotildees e da mesma forma lhe bata jaacute que ldquoter boas intenccedilotildeesrdquo eacute ldquobaterrdquo Mas como eacute que seu corpo deve sair ileso dos golpes e o meu natildeo E no entanto bem que eu nasci livre ldquoas crianccedilas choram e pensas que um pai natildeo deve chorar Mas vocecirc diraacute que se considera esse ato como proacuteprio das crianccedilas e eu responderei que os ldquo Velhos satildeo duas vezes crianccedilasrdquo e que eacute natural que os velhos chorem mais do que os jovens tanto quanto eacute menos razoaacutevel que cometam erros [] Tambeacutem vou bater na minha matildee como lhe bati

Mediante o auxiacutelio da arte retoacuterica ensinada por Soacutecrates seria possiacutevel a Fidiacutepides

em proveito proacuteprio fazer o argumento mais forte transformar-se no argumento mais

fraco na Assembleia popular no tribunal ou em qualquer outro lugar Atraveacutes da teacutecnica

retoacuterica as crenccedilas e os valores tradicionais poderiam ser confundidos no debate entre os

argumentos ldquojustordquo e ldquoinjustordquo posto que nele o que vale como justo poderia ser

transformado no seu oposto Assim dois discursos se enfrentam a fim de conquistar o

favor de Fidiacutepides o discurso mais forte que reivindica o valor da educaccedilatildeo do passado

a qual estaria fundada sobre a justiccedila a temperanccedila a honestidade o dever de venerar os

deuses e o respeito pelos pais e o discurso mais fraco que reivindica ser o primeiro em

absoluto a ter a ideia de contradizer as crenccedilas e os valores tradicionalmente aceitos

Aliaacutes o discurso mais fraco oferece o quadro de uma vida inclinada agraves diversotildees e aos

viacutecios de modo que eacute justamente com este tipo de formaccedilatildeo educacional que o jovem

Fidiacutepides poderaacute tornar-se um sofista perfeito Depois que Estrepsiacuteades percebe que a

retoacuterica sofiacutestica corrompeu completamente seu filho tornando-o rebelde contra toda

autoridade incluindo a sua proacutepria ele decide entatildeo acabar com esta educaccedilatildeo retoacuterica

incendiando o pensatoacuterio acontecimento que encerra a peccedila (Ibid 1490)

Aleacutem de enfatizar no seu registro histoacuterico a profissatildeo de feacute agnoacutestica e a doutrina

dos dois λόγοι Dioacutegenes Laeacutercio tambeacutem faz menccedilatildeo agrave ceacutelebre declaraccedilatildeo de Protaacutegoras

ldquoπάντων χρημάτων μέτρον ἄνθρωπος τῶν μὲν ὄντων ὡς ἔστιν τῶν δὲ οὐκ ὄντων ὡς οὐκ

ἔστινrdquo cuja traduccedilatildeo significa ldquoo homem eacute a medida de todas as coisas das coisas que

satildeo que elas satildeo das coisas que natildeo satildeo que elas natildeo satildeordquo (Vid doutr fil il IX 8 51)

Pode-se assegurar que a declaraccedilatildeo acima significa basicamente duas coisas o homem

(ἄνθρωπος) que eacute a medida (μέτρον) seria cada homem individualmente e natildeo a raccedila

humana como um todo tomada como uma entidade em si e o que eacute medido nas coisas

natildeo seria sua existecircncia e sua natildeo-existecircncia mas o modo como satildeo e o modo como natildeo

satildeo Sendo assim a frase ldquoπάντων χρημάτων μέτρον ἄνθρωποςrdquo expressa

categoricamente o relativismo de Protaacutegoras segundo o qual natildeo haveria nenhuma

verdade absoluta nem universalmente vaacutelida poreacutem toda a verdade seria relativa ao

sujeito que conhece e julga Protaacutegoras certamente natildeo tem a pretensatildeo de alcanccedilar pela

teoria do homem-medida uma verdade objetiva e vaacutelida para todos pois se o homem eacute a

medida de todas as coisas natildeo existiria um criteacuterio de verdade extriacutenseco a ele Portanto

as percepccedilotildees sensiacuteveis as leis as regras morais os valores as crenccedilas religiosas a

cultura e tudo o mais soacute poderiam ser definidos subjetivamente

Agrave parte do registro de Dioacutegenes Laeacutercio muitas das informaccedilotildees sobre o

pensamento protagoacuterico derivam dos diaacutelogos platocircnicos por isso a avaliaccedilatildeo de suas

ideias depende em grande medida do valor histoacuterico atribuiacutedo aos registros de Platatildeo

Que este tenha reproduzido o pensamento de Protaacutegoras com rigorosa exatidatildeo eacute algo

questionaacutevel mas eacute possiacutevel aduzir que seu objetivo nunca foi denegrir a reputaccedilatildeo do

sofista pelo contraacuterio eacute manifesto em muitas passagens o respeito com que aborda suas

ideias Aliaacutes as contribuiccedilotildees pessoais de Protaacutegoras para as discussotildees filosoacuteficas nos

diaacutelogos sempre se mantecircm num niacutevel intelectual e moral elevado natildeo deixando duacutevida

sobre o respeito que lhe devotava Platatildeo E o fato de praticamente natildeo existir contradiccedilatildeo

entre o que Platatildeo diz e o restante das informaccedilotildees sobre Protaacutegoras oriundas de outras

fontes reforccedila ainda mais a confiabilidade de suas declaraccedilotildees

No diaacutelogo Teeteto Platatildeo interpreta o sofista Protaacutegoras a partir da tese segundo a

qual cada coisa eacute para cada um conforme lhe parece Ele tambeacutem atribui ao sofista a

doutrina de que a aparecircncia (φαντασία) e a percepccedilatildeo (αἴσθησις) satildeo a mesma coisa E

no que respeita ao calor ou ao frio a maneira como cada um se apercebe assim tambeacutem

eacute para cada um Ademais a percepccedilatildeo para Protaacutegoras eacute sempre daquilo que eacute por isso

natildeo pode ser falsa (ἀψευδής) pelo contraacuterio ela constitui o verdadeiro saber (Teet 152b-

c) Pode-se assegurar entatildeo que a perspectiva epistecircmica de Protaacutegoras eacute marcantemente

relativista jaacute que faz depender a atribuiccedilatildeo de qualidades nas coisas natildeo de uma fonte

objetiva de verdade mas daquilo que parece a cada um

Com efeito a doutrina protagoacuterica do homem-medida natildeo eacute um criteacuterio para a

existecircncia mas um criteacuterio para determinar como as coisas satildeo no sentido de quais

predicados podem a elas ser atribuiacutedos Ao declarar que a percepccedilatildeo eacute sempre daquilo

que eacute (αἴσθησις ἄρα τοῦ ὄντος ἀεί ἐστιν) pode-se entender que isto significa que para

Protaacutegoras a percepccedilatildeo de um objeto branco seria sempre a percepccedilatildeo de que ele eacute

branco e tal percepccedilatildeo seria infaliacutevel Isto indica que cada percepccedilatildeo individual em cada

pessoa individual e em cada situaccedilatildeo individual jamais poderia ser corrigida atraveacutes da

comparaccedilatildeo com a percepccedilatildeo de outra pessoa Outrossim Platatildeo afirma que Protaacutegoras

teria declarado que o homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo enquanto satildeo

das que natildeo satildeo enquanto natildeo satildeo querendo dizer com isto que cada coisa seria para

determinado indiviacuteduo tal como lhe aparece Ele ainda atribui a Protaacutegoras a tese

relativista de que quando o mesmo vento estaacute soprando ele poderia ser percebido como

frio por uma certa pessoa mas natildeo por outra (Ibid 152a-b)

Contudo arriscas-te a natildeo teres emitido uma definiccedilatildeo trivial sobre o saber mas sim aquela que diz tambeacutem Protaacutegoras O modo eacute algo diferente mas diz a mesma coisa pois afirma que ldquoa medida de todas as coisasrdquo eacute o homem ldquodas que satildeo enquanto satildeo das que natildeo satildeo enquanto natildeo satildeordquo Leste isto em algum lado [] De certa maneira o que diz eacute isto que cada coisa eacute para mim do modo que a mim me parece por outro lado eacute para ti do modo que a ti te parece [] No entanto eacute provaacutevel que um homem saacutebio natildeo fale ao acaso sigamo-lo entatildeo Natildeo acontece por vezes um de noacutes sentir um mesmo sopro de vento frio e outro natildeo E um sentir pouco frio e outro muito [] Entatildeo como dizemos que eacute o sopro de vento em si mesmo Que eacute frio ou que natildeo eacute frio Ou persuadidos por Protaacutegoras diremos que eacute frio para quem sente frio e natildeo eacute frio para quem natildeo o sente frio

Em conformidade com a doutrina protagoacuterica do homem-medida se o vento parece

muito frio para determinada pessoa entatildeo para ela eacute muito frio e isso natildeo poderia ser

refutado pela experiecircncia subjetiva de outra pessoa que natildeo o perceberia como muito

frio mas como pouco frio Assim se o vento parece ser muito frio para alguns e pouco

frio para outros entatildeo ele seria muito frio para aqueles aos quais parece muito frio e

pouco frio para aqueles aos quais parece pouco frio Para G B Kerferd a teoria de

Protaacutegoras parece implicar na rejeiccedilatildeo da percepccedilatildeo cotidiana ligada ao senso comum

segundo a qual o vento em si mesmo ou eacute frio ou natildeo eacute frio e aquele que o sente se

enganaria caso afirmasse que o vento (objetivamente) eacute tal como lhe parece Dessarte

haveria para Protaacutegoras um vento em si mesmo real objetivo e independente o qual natildeo

seria nem frio nem quente pois a frieza do vento soacute existiria particularmente para o sujeito

que tem a sensaccedilatildeo de frio O vento em si mesmo existiria independentemente da

percepccedilatildeo que algueacutem possa ter dele mas natildeo a sua frialdade a qual seria puramente

subjetiva A percepccedilatildeo do vento e das coisas em geral basear-se-ia de modo causal nos

aspectos de fato presentes na realidade objetiva Os fatores causativos podem numa

opiniatildeo normalmente sustentada ser a fonte dos conteuacutedos da percepccedilatildeo de um indiviacuteduo

mas sua percepccedilatildeo das coisas natildeo se identificaria com os proacuteprios fatores causativos mas

com os resultados subjetivos desses fatores E uma vez que os resultados seriam

determinados pela atuaccedilatildeo dos fatores causativos necessariamente teriam de variar de

pessoa para pessoa e de acordo com as particularidades de cada sujeito (KERFERD 2003

148-150)

Segundo a anaacutelise de Giovanni Casertano a afirmaccedilatildeo protagoacuterica de que o homem

eacute a medida de todas as coisas tem um claro sentido antidogmaacutetico e antimetafiacutesico Isto

quer dizer que a verdade para o sofista natildeo eacute algo dado uma vez para sempre natildeo eacute algo

que possa ser revelado por saacutebios ou profetas nem pode consistir de tradiccedilotildees miacuteticas

transmitidas de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo Pelo contraacuterio a verdade consiste numa relaccedilatildeo

dialeacutetica com a realidade que cada homem em particular instaura segundo sua idade

suas disposiccedilotildees e sua situaccedilatildeo histoacuterica Cada homem em particular tem a capacidade de

sentir e de julgar posto que suas sensaccedilotildees e os seus juiacutezos representam a cada vez o tipo

de relaccedilatildeo todo particular no qual ele se potildee em relaccedilatildeo com a realidade relaccedilatildeo que natildeo

pode ser fixa constante posto que a realidade e o proacuteprio homem natildeo satildeo estaacuteticos

Assim numa realidade perenemente mutaacutevel cada indiviacuteduo capta aqueles aspectos que

lhe satildeo mais congeniais ou seja aqueles aspectos que satildeo mais proacuteprios agrave sua natureza

particular No entanto isto natildeo acontece porque eacute o homem que imprime realidade agraves

coisas segundo o modo no qual se relaciona com ele mas justamente porque as coisas

que existem antes e independentemente do homem encerra em si a possibilidade das

diversas sensaccedilotildees Aleacutem do que no pensamento de Protaacutegoras existe a plena valorizaccedilatildeo

da experiecircncia sensiacutevel da verdade das aparecircncias do fenocircmeno e por conseguinte da

relatividade da verdade ndash cada um tem sua proacutepria verdade porque cada um tem as suas

sensaccedilotildees diferentes das dos outros sobre as quais constroacutei os seus juiacutezos e os seus

discursos E se cada um sente num certo modo e no seu discurso expressa sempre esta

percepccedilatildeo enunciaraacute sempre sua relativa verdade razatildeo pela qual natildeo pode existir um

discurso falso pois cada uma diz o que eacute verdadeiro para ele num determinado momento

situaccedilatildeo e disposiccedilatildeo (CASERTANO 2010 51-52)

Eacute manifesto que a doutrina protagoacuterica do homem-medida produz o mais absoluto

relativismo porque se uma coisa parece bela a um e feia a outro fria a um quente a

outro grande a um pequena a outro inevitavelmente seraacute as duas coisas ao mesmo

tempo Natildeo haveria mais qualquer objetividade nem mesmo loacutegica pois o princiacutepio

loacutegico da natildeo-contradiccedilatildeo natildeo teria mais validade ndash cada indiviacuteduo teria sua proacutepria

verdade e todos os pontos de vista seriam simultaneamente verdadeiros Outrossim esta

concepccedilatildeo aplicar-se-ia agrave cidade que em nome do seu proacuteprio interesse decidiria sobre

os valores e as verdades de modo que as leis as ciecircncias os valores esteacuteticos e morais

natildeo passariam de simples convenccedilotildees que mudariam de uma cidade para outra de acordo

com a histoacuteria e a geografia O desafio protagoacuterico agraves crenccedilas e valores tradicionalmente

aceitos fundamenta-se em teorias relativistas e subjetivistas de ontologia e epistemologia

Todavia agrave medida que eacute aplicada a valores morais o relativismo protagoacuterico significa que

natildeo existe nada a que se possam aplicar a designaccedilatildeo de bom ou mau de maneira absoluta

de sorte que aquilo que eacute bom para determinado indiviacuteduo pode ser mau para outro e o

que eacute bom para um em certas circunstacircncias pode ser mau para ele em outras Aliaacutes o

fragmento Δισσοὶ λόγοι pelos seus diversos exemplos de argumentos opostos expressa

de forma categoacuterica o relativismo moral que caracteriza o pensamento de Protaacutegoras

Desse modo quando ele sustenta que o bem e o mau satildeo apenas relativos significa

simplesmente que natildeo existe nada de bom ou mau em si mesmos mas eacute o pensamento

que o torna tal Eacute justamente tal posiccedilatildeo que natildeo eacute aceita por Platatildeo e Aristoacuteteles que de

fato a criticaram duramente enfatizando que se tudo aquilo que parece para o indiviacuteduo

eacute verdadeiro entatildeo todos os discursos seratildeo verdadeiros e falsos simultaneamente e por

conseguinte tambeacutem bons e maus

Platatildeo tambeacutem atribui a Protaacutegoras a crenccedila de que acerca das coisas da cidade

belas e feias justas e injustas piedosas e iacutempias e quantas forem as normas em que cada

cidade acredite e estabeleccedila para si nelas ningueacutem seria mais saacutebio nem um indiviacuteduo

em relaccedilatildeo a outro nem uma cidade em relaccedilatildeo a outra (καὶ ἐν τούτοις μὲν οὐδὲν

σοφώτερον οὔτε ἰδιώτην ἰδιώτου οὔτε πόλιν πόλεως εἶναι) No estabelecimento daquilo

que conveacutem ou natildeo conveacutem Protaacutegoras sustentaria que um conselheiro difere de outro e

que a opiniatildeo de uma cidade difere de outra no que diz respeito agrave verdade E a respeito

dos casos de justiccedila e de injusticcedila de piedade ou de impiedade o sofista sustentaria que

nenhuma destas coisas eacute por natureza possuidora de uma realidade proacutepria (οὐκ ἔστι

φύσει αὐτῶν οὐδὲν οὐσίαν) tornando-se entatildeo verdade o que parece agrave comunidade

sempre que lhe parecer e enquanto que lhe parecer (Teet 172a-c)

Protaacutegoras sustentava como a maioria dos sofistas a inexistecircncia de uma verdade

objetiva e vaacutelida para todos mas ele defendia a necessidade do estudo e da educaccedilatildeo na

medida em que se natildeo existem proposiccedilotildees verdadeiras deve-se saber distinguir entre as

opiniotildees melhores e piores mais ou menos uacuteteis ao indiviacuteduo e agrave sociedade e seria o

orador que teria esse crucial papel a desempenhar na cidade E conforme o registro de

Platatildeo o sofista Protaacutegoras natildeo negaria a existecircncia da sabedoria nem do homem saacutebio

mas o saacutebio seria aquele que quando as coisas satildeo e lhe aparecem maacutes eacute capaz de

ldquoμεταβάλλων ποιήσῃ ἀγαθὰ φαίνεσθαί τε καὶ εἶναιrdquo ou seja eacute capaz de mudaacute-las pela

persuasatildeo a fim de que apareccedilam e sejam boas a seus interlocutores Porquanto para o

indiviacuteduo que estaacute doente (ἀσθενέω) aquilo que come aparece e eacute amargo (πίκρα) mas

para quem estaacute saudaacutevel (ὑγιαίνω) acontece justamente o contraacuterio de sorte que nenhum

dos dois seria saacutebio acerca do real sabor do alimento por isso natildeo se deve acusar o doente

de ser ignorante (ἀμαθής) por ter sua opiniatildeo particular nem o saudaacutevel de saacutebio (σοφός)

por ter outra (Ibid 166 d-167a)

Pois afirmo que a verdade eacute como eu escrevi Pois cada um de noacutes eacute a medida do que eacute e do que natildeo eacute e no entanto cada um difere infinitamente do outro para um eacute uma coisa e assim aparece a outro eacute e aparece outra coisa E estou longe de negar que exista a sabedoria e o homem saacutebio Mas este mesmo a quem chamo saacutebio eacute aquele de noacutes que quando as coisas satildeo e lhe aparecem maacutes as muda de modo a aparecerem e serem boas [] Recorda-te pois do que foi dito atraacutes que para quem estaacute doente aquilo que come aparece e eacute amargo mas para quem estaacute saudaacutevel aparece e eacute o contraacuterio E natildeo eacute preciso fazer mais saacutebio nenhum dos dois ndash pois natildeo eacute possiacutevel ndash nem se deve acusar o doente de ser ignorante por ter esta opiniatildeo nem o saudaacutevel de saacutebio por ter outra

A despeito disso deve-se fazer uma mudanccedila no doente pois eacute melhor (βελτίων) o

estado do indiviacuteduo saudaacutevel Pela educaccedilatildeo (παιδεία) deve-se fazer uma mudanccedila de um

estado para outro melhor o meacutedico faz a mudanccedila com remeacutedios (φαρμάκοις) ao passo

que o sofista a faz com discursos (λόγοις) E a quem tem uma opiniatildeo afim ao defeituoso

estado de alma em que se acha um beneacutefico estado de alma faraacute ter outras opiniotildees

imagens a que alguns por ignoracircncia chamariam verdadeiras mas Protaacutegoras chama a

umas melhores que as outras poreacutem natildeo mais verdadeiras (Ibid 167a-b) Ele tambeacutem

teria sustentado que os oradores saacutebios e bons (σοφούς τε καὶ ἀγαθοὺς ῥήτορας) fazem

com que as coisas beneacuteficas (χρήστης) pareccedilam ser justas agraves cidades em vez de

defeituosas (πονηρός) posto que aquilo que a cada cidade parece justo e belo eacute assim para

ela durante o tempo que determinar Agrave vista disso o saacutebio eacute aquele que eacute capaz de fazer

com que sejam e pareccedilam beneacuteficas cada uma das coisas que para os demais indiviacuteduos

satildeo defeituosas E pelo mesmo raciociacutenio tambeacutem o sofista que eacute capaz de instruir os

que satildeo ensinados por ele deve ser considerado saacutebio e merecedor de muito dinheiro

(Ibid 167c-d)

E afirmo que os oradores saacutebios e bons fazem com que as coisas beneacuteficas pareccedilam ser justas agraves cidades em vez de defeituosas Pois aquilo que a cada cidade parece justo e belo eacute isso para ela enquanto assim o determinar Mas o saacutebio eacute aquele que faz serem e parecerem beneacuteficas cada uma das coisas que para os outros satildeo defeituosas E pela mesma ordem de ideias tambeacutem o sofista assim capaz de instruir os que satildeo ensinados por ele eacute saacutebio e merece muito dinheiro da parte dos que educa E deste modo uns satildeo mais saacutebios que outros e ningueacutem tem uma opiniatildeo falsa

Pode-se assegurar entatildeo que para o sofista Protaacutegoras o que realmente existe e

importa eacute aquilo que eacute mais uacutetil ou mais conveniente O bem e o mal ou ainda o

verdadeiro e o falso seriam respectivamente o uacutetil e o prejudicial Todavia o uacutetil tambeacutem

se apresentaria como um conceito relativo porque para ele a sabedoria consistiria em

reconhecer aquilo que eacute nocivo e uacutetil agrave conveniecircncia eacutetica e poliacutetica dos homens e em

saber demonstraacute-los persuasivamente44 Agrave vista disso sua doutrina pode ser denominada

grosso modo de ldquorelativismo pragmaacuteticordquo porque natildeo haveria uma verdade em si mesma

objetiva e vaacutelida para todos mas a verdade dependeria de cada indiviacuteduo ou de cada

cidade de sorte que o mais importante seria aquilo que possibilita fazer-se valer e impor-

se funccedilatildeo que ele atribui agrave arte retoacuterica As leis e os costumes vigentes na cidade satildeo

corretos e louvaacuteveis enquanto forem impostos ou socialmente aprovados mas o orador

pode persuadi-la de que outros lhe seriam mais vantajosos ou convenientes pois embora

todas as crenccedilas sejam verdadeiras nem todas satildeo igualmente boas Desse modo se cada

indiviacuteduo vive num mundo privado proacuteprio a tentativa de alterar o seu mundo interior

parece ser impossiacutevel mas na visatildeo de Protaacutegoras tal dificuldade eacute superada substituindo

um padratildeo de verdade e falsidade por um padratildeo de vantagem e desvantagem

Conforme a apreciaccedilatildeo de Giovanni Casertano a este respeito parece natildeo existir

qualquer contradiccedilatildeo entre o relativismo gnosioloacutegico e a visatildeo eacutetico-poliacutetica de

Protaacutegoras Para este o bem e o uacutetil satildeo conceitos certamente relativos natildeo existe o bem

e o uacutetil em si mesmos pois aquilo que pode ser bem para alguns pode ser mal para outros

Desse modo os discursos que os homens fazem contrapostos uns com os outros satildeo

tambeacutem eles relativos porque natildeo existe um discurso mais verdadeiro que outro mas

certamente existe um discurso que seja convenientemente mais uacutetil E se cada indiviacuteduo

ou cada grupo de indiviacuteduos tem uma verdade nem todas as verdades satildeo uacuteteis do mesmo

modo agrave vida em sociedade Aliaacutes para Protaacutegoras ldquoo discurso melhorrdquo natildeo constitui o

discurso puramente loacutegico mas sim o discurso poliacutetico o qual se demonstra mais idocircneo

a um pacto de aceitaccedilatildeo por parte da coletividade No entanto ele eacute melhor

provisoriamente ateacute que natildeo apareccedila e se afirme outro discurso ainda melhor E o

discurso melhor eacute o νόμος ou seja a lei que constitui a realizaccedilatildeo dinacircmica de um

44 Ao ser interrogado por Soacutecrates sobre o que Hipoacutecrates poderia aprender do seu ensino Protaacutegoras declara que eacute o cuidado adequado de seus proacuteprios negoacutecios a fim de administrar com prudecircncia sua casa e famiacutelia e tambeacutem o cuidado dos assuntos do Estado para se tornar uma figura poderosa na cidade seja mediante a arte do discurso persuasivo seja como homem de accedilatildeo (Prot 318e) ldquoNa minha companhia Hipoacutecrates natildeo teraacute de suportar as maccediladas a que ficaria sujeito se viesse a frequumlentar outro sofista [] vindo ele poreacutem estudar comigo natildeo se ocuparaacute senatildeo com o que se propusera estudar quando resolveu procurar-me Essa disciplina eacute a prudecircncia nas suas relaccedilotildees familiares que o poraacute em condiccedilotildees de administrar do melhor modo sua proacutepria casa e nos negoacutecios da cidade o deixaraacute mais do que apto a dirigi-los e para discorrer sobre elesrdquo

consenso humano procurado e imposto com a persuasatildeo agrave cidade pelo sofista que eacute

considerado saacutebio e meacutedico da sociedade (CASERTANO 201080)

Decerto a aprovaccedilatildeo ou desaprovaccedilatildeo de certas praacuteticas seria correta e apropriada

numa cidade enquanto tem o apoio da opiniatildeo puacuteblica e eacute imposta legalmente Os

massagetas cortam seus pais em pedaccedilos e os comem e ser comido por seus filhos

parece-lhes a mais bela sepultura mas entre os gregos tal praacutetica mereceria a condenaccedilatildeo

agrave morte Outrossim os persas acham bonito que os homens tenham relaccedilotildees sexuais com

as filhas matildees e irmatildes mas para os gregos isso eacute considerado feio e contraacuterio agrave lei (Disc

Dup 2 14-15) No entanto para que essas condiccedilotildees se alterem eacute necessaacuterio que

oradores haacutebeis tenham ecircxito em difundir ideias distintas sejam quais forem E somente

podem fazecirc-lo persuadindo a cidade de que a alteraccedilatildeo de suas leis e costumes redundaraacute

numa vantagem praacutetica se natildeo para todos ao menos para a maioria Todavia conveacutem

frisar que para Protaacutegoras as leis existentes na cidade existem para a preservaccedilatildeo da

ordem social e que sua manutenccedilatildeo embora elas natildeo sejam as melhores satildeo justas e

louvaacuteveis porque as alternativas de desobediecircncia e subversatildeo destruiriam os laccedilos de

amizade e uniatildeo de que depende a sobrevivecircncia da cidade E somente depois de

aprovadas novas leis por consentimento comum posto que a noccedilatildeo de pudor e de justiccedila

pertencem igualmente a todos os cidadatildeos eacute que a mudanccedila pode ocorrer para melhor

(Prot 322b-c) Apesar do seu relativismo eacute manifesto pois o respeito de Protaacutegoras pelas

virtudes democraacuteticas da justiccedila do respeito pela opiniatildeo dos outros e pelos processos de

persuasatildeo paciacutefica que satildeo tidos como o esteio da vida comunitaacuteria tendo em vista sua

sobrevivecircncia

Com base nos assuntos ateacute aqui examinados pode-se concluir que uma das mais

importantes liccedilotildees ensinadas nos manuais escritos pelos sofistas era a habilidade de falar

com igual poder de convicccedilatildeo sobre ambos os lados de uma dada questatildeo Protaacutegoras

teria sido o primeiro a postular a tese de que existem dois argumentos sobre cada assunto

Eacute possiacutevel reconhecer as virtudes de ver ambos os lados de uma questatildeo mas esta

doutrina na visatildeo de Aristoacuteteles seria politicamente perigosa nas matildeos de oradores

inescrupulosos Outrossim verificamos na anaacutelise da doutrina de Goacutergias que o discurso

retoacuterico equivale a um tirano que pode realizar qualquer intento E a convicccedilatildeo de que os

homens podiam ser persuadidos de qualquer coisa harmoniza-se naturalmente com o

relativismo de Protaacutegoras cuja doutrina tambeacutem eacute considerada por Aristoacuteteles como

imoral e epistemicamente subversiva de sorte que natildeo somente doce e amargo quente e

frio existiriam subjetivamente ou por convenccedilatildeo mas tambeacutem justiccedila e injusticcedila certo e

errado Agrave vista disso se existe algo que se pode chamar de uma visatildeo sofiacutestica geral eacute a

concepccedilatildeo de que natildeo existe nenhum criteacuterio de verdade extriacutenseco ao ser humano duas

pessoas discutindo e comparando suas proacuteprias experiecircncias natildeo poderiam corrigi-las e

alcanccedilar o conhecimento de uma realidade extriacutenseca a ambos conforme propotildee o

meacutetodo dialeacutetico jaacute que natildeo haveria uma realidade estaacutevel que pudesse ser apreendida

Semelhantemente no domiacutenio da eacutetica natildeo haveria nenhum apelo a padrotildees gerais ou a

princiacutepios gerais de qualquer natureza de modo que o uacutenico criteacuterio soacute pode ser o agir e

o falar em qualquer momento como pareccedila mais conveniente

7 A funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da retoacuterica de Aristoacuteteles e a refutaccedilatildeo da sofiacutestica

71 A retoacuterica de Aristoacuteteles e a dos sofistas

Eacute manifesto que os sofistas foram os principais responsaacuteveis pelo florescimento

da retoacuterica enquanto arte do discurso persuasivo pois eacute a eles que a retoacuterica deve os

primeiros esboccedilos de gramaacutetica a divisatildeo do discurso em partes as teacutecnicas de elocuccedilatildeo

a noccedilatildeo de que existe o momento oportuno para expor um argumento o ideal de prosa

ornada e erudita etc E muitos dos elementos que compotildeem a arte retoacuterica de Aristoacuteteles

jaacute se encontravam disseminados na retoacuterica dos sofistas razatildeo pela qual ele reconhece

que alguns deles foram os que descobriram os primeiros princiacutepios desta arte e os fizeram

avanccedilar aperfeiccediloando-os ateacute sua forma atual Aliaacutes se Aristoacuteteles eacute grato para com os

filoacutesofos que o antecederam sem os quais o desenvolvimento de sua filosofia natildeo seria

possiacutevel o mesmo ocorre com os oradores que o precederam

No entanto Aristoacuteteles natildeo se aproxima dos sofistas somente em virtude de alguns

elementos ou princiacutepios que deles foram apropriados e utilizados para compor o seu

proacuteprio meacutetodo retoacuterico expresso nos trecircs livros da Retoacuterica mas ainda por outras razotildees

O Estagirita designa o λόγος como um traccedilo dominante da condiccedilatildeo poliacutetica do homem

Ele declara que por ser um πολιτικὸν ζῷον ou seja um animal social o homem eacute o uacutenico

que possui o dom da palavra a partir do qual eacute capaz de expressar por meio de sinais a

noccedilatildeo do bem e do mal do uacutetil e do prejudicial do justo e do injusto objetos para cuja

expressatildeo foi concedido o dispositivo da fala Outrossim a aproximaccedilatildeo com os sofistas

ocorre pela maneira como ele articula a pluralidade das diferenccedilas e dos pontos de vista

na unidade plural da cidade pois na medida em que sua arte retoacuterica se abre agraves

perspectivas individuais e valoriza o jogo de interesses de cada cidadatildeo ela se transforma

num expediente de afirmaccedilatildeo da liberdade de opiniatildeo Dessarte o conhecimento que o

orador deve possuir para proferir o seu discurso natildeo deve necessariamente fundamentar-

se em verdades filosoacuteficas conforme postulava Platatildeo mas deve amiuacutede limitar-se agraves

ἔνδοξα isto eacute agraves opiniotildees que aparentam ser verdadeiras para o consenso geral porque

conveacutem que os argumentos retoacutericos sejam formados de argumentos comuns tendo em

vista a comunicaccedilatildeo com as multidotildees

Com efeito a perspectiva epistecircmica assumida pela maioria dos sofistas aventa

que o mundo estaacute destituiacutedo de qualquer verdade objetiva razatildeo pela qual o discurso

retoacuterico natildeo teria um referente extriacutenseco ao sujeito ou seja natildeo existiria outro criteacuterio

de verdade senatildeo o proacuteprio sujeito e suas percepccedilotildees que mediante o triunfo da palavra

eacute capaz de persuadir pela loacutegica aparente e pelo encantamento do estilo qualquer um

sobre qualquer assunto O sofista Goacutergias levou a efeito um certo modo de conceber a

retoacuterica que tanto Platatildeo quanto Aristoacuteteles reputaram por dever ser rechaccedilado Esse

modo particular de conceber a arte do discurso persuasivo era baseado na proacutepria

perspectiva epistecircmica de Goacutergias segundo a qual natildeo existiria uma verdade objetiva

mas ainda que existisse ela natildeo seria apreendida e se porventura o fosse jamais poderia

ser expressa pelo discurso Pode-se assegurar sumariamente que o corolaacuterio dessas trecircs

proposiccedilotildees significa que o discurso retoacuterico natildeo teria a funccedilatildeo de tornar possiacutevel a

comunicaccedilatildeo das coisas como realmente satildeo Pelo contraacuterio ao preconizar que existe um

fosso intransponiacutevel entre as coisas e a percepccedilatildeo assim como entre a percepccedilatildeo e o

discurso as palavras jaacute natildeo teriam nenhuma correspondecircncia com a realidade de sorte

que todo discurso que objetiva persuadir eacute ἀπατή ou puro engano Apesar desse ceticismo

Goacutergias sustenta que as palavras quando adequadamente empregadas tecircm o poder de

persuadir as pessoas a modificar suas opiniotildees outorgando ao orador um poder quase

ilimitado As palavras tambeacutem poderiam alterar tanto as emoccedilotildees como as opiniotildees dos

ouvintes submetendo-os despoticamente ao domiacutenio do orador (El Hel sect 12)

Em conformidade com o pensamento de Goacutergias e Protaacutegoras o discurso retoacuterico

natildeo pode pretender ser verdadeiro nem mesmo verossiacutemil tampouco comprometer-se

rigidamente com princiacutepios eacuteticos mas soacute pode ser proacuteprio para persuadir as pessoas a

mudar suas opiniotildees para alterar as emoccedilotildees daqueles que o ouvem submetendo os

ouvintes ao domiacutenio daquele que fala para fazer as coisas pequenas parecerem grandes

e as grandes parecerem pequenas para defender uma causa considerada injusta e fazecirc-la

prevalecer sobre uma causa justa transformando assim o argumento mais fraco no mais

forte e para mudar as coisas que satildeo consideradas maacutes de modo a aparecerem boas agraves

multidotildees De fato a finalidade dessa arte retoacuterica natildeo estaria a serviccedilo daquilo que

Aristoacuteteles chama de εὐπραξία ou seja o bem agir na vida puacuteblica e na vida privada mas

a serviccedilo do anseio de dominar os ouvintes por intermeacutedio da palavra Conquanto o

Estagirita se aproxime da sofiacutestica na escolha do λόγος como caracteriacutestica dominante da

condiccedilatildeo poliacutetica do homem ele eacute declaradamente anti-sofista tanto na compreensatildeo

quanto na utilizaccedilatildeo dessa faculdade humana45 Isto ocorre sobretudo porque no contexto

de seu meacutetodo retoacuterico o λόγος tem um significado bem definido ele se identifica com o

bloco das provas loacutegicas compostas pelo entimema e pelo exemplo as quais estatildeo

destinadas a persuadir atraveacutes de argumentos racionais cujo uso eacute liacutecito somente em

conexatildeo com a sabedoria e a virtude

Por seu turno o λόγος de Aristoacuteteles (a partir da sua relaccedilatildeo com o justo e o

injusto) eacute significativamente mais poliacutetico que o λόγος dos sofistas isso porque ele

funciona sempre como um τέλος ou seja como uma finalidade eacutetico-poliacutetica e natildeo

simplesmente como uma τέχνη Nessa perspectiva o λόγος ou o discurso retoacuterico sem

o qual natildeo pode existir verdadeira vida poliacutetica pode tornar-se um instrumento de

manipulaccedilatildeo demagoacutegica quando eacute utilizado sem a preocupaccedilatildeo com o bem comum Ao

mesmo tempo em que a arte retoacuterica permite tornar inteligiacutevel aos membros da

comunidade poliacutetica soluccedilotildees engenhosas e novas para os problemas eacutetico-poliacuteticos

prementes ela tambeacutem pode cegar o entendimento dos ouvintes com proposiccedilotildees

demagoacutegicas Sendo assim o λόγος aristoteacutelico natildeo eacute em momento algum apenas um

meio de comunicaccedilatildeo com as massas nem se limita a uma teacutecnica neutra de discurso

pois ele implica num movimento teleoloacutegico em direccedilatildeo agrave εὐπραξία

Para Aristoacuteteles existem aqueles que apesar de natildeo possuiacuterem um conhecimento

compreensivo (διάνοια) sobre assuntos de poliacutetica de Estado o colocam em praacutetica

atraveacutes de certa capacidade que lhes eacute intriacutenseca ou pelo conhecimento obtido pela

experiecircncia (ἐμπειρία) mas os sofistas que proclamam ensinar os assuntos ligados agrave

ciecircncia poliacutetica natildeo a conhecem pelas causas nem a colocam efetivamente em praacutetica46

Para ele os sofistas afirmam ser professores na aacuterea da poliacutetica mas estariam muito longe

disso porque natildeo possuiriam nem o conhecimento empiacuterico tampouco o conhecimento

compreensivo Aleacutem disso eles ignorariam totalmente qual eacute a qualidade essencial da

ciecircncia poliacutetica bem como seus objetos Se natildeo fosse assim eles natildeo a colocariam no

mesmo niacutevel da arte retoacuterica ou num niacutevel ainda mais baixo nem achariam que eacute faacutecil

legislar apenas reunindo aquelas leis que satildeo consideradas as melhores sem qualquer

discernimento do que haacute de bom e de mau nelas (Eacutet Nic 1180b 35-1181a 20)

45 Aristoacuteteles teria escrito uma obra exoteacuterica com o intuito de refutar as doutrinas do sofista Goacutergias chamada Contra a Doutrina de Goacutergias (Πρὸς τὰ Γοργίου) Esta obra foi registrada por Dioacutegenes Laeacutercio no seu cataacutelogo de obras atribuiacutedas ao Estagirita (Vid doutr fil il V 1 25) 46 Aristoacuteteles faz alusatildeo agrave condiccedilatildeo civil de μέτοικος pertencente aos sofistas Por serem estrangeiros residentes em Atenas eles estavam excluiacutedos da possibilidade de exercer a atividade poliacutetica

Conforme examinamos Aristoacuteteles declara nas linhas iniciais da Eacutetica a Nicocircmaco

que toda arte processo de investigaccedilatildeo procedimento praacutetico e decisatildeo parecem dirigir-

se para certo bem (ἀγαθός) por isso o bem eacute concebido como aquilo por que tudo anseia

Todavia entre os fins das accedilotildees humanas a serem levadas a cabo existe aquele que eacute

buscado em virtude de si proacuteprio Esse fim natildeo eacute um bem qualquer mas eacute o bem supremo

ou seja a felicidade (εὐδαιμονία) Outrossim no iniacutecio da Poliacutetica ele diz que toda cidade

eacute uma espeacutecie de comunidade a qual se forma tendo em vista algum bem pois todas as

accedilotildees de todos os homens satildeo praticadas com vistas ao que lhes parece o bem E se todas

as comunidades visam alcanccedilar algum bem eacute manifesto que a mais importante de todas ndash

a cidade ou a comunidade poliacutetica ndash e que inclui todas as outras possui mais que todas

tal objetivo e aspira ao mais importante de todos os bens qual seja o bem supremo (Pol

1252a 1-7) O bem supremo eacute o objeto de estudo da eacutetica mas eacute sobretudo o objeto de

estudo da mais arquitetocircnica de todas as ciecircncias qual seja a ciecircncia poliacutetica a qual por

sua vez submete os fins de todas as atividades humanas E se todas as atividades humanas

na cidade estatildeo submetidas agrave ciecircncia poliacutetica cuja finalidade eacute o bem humano entatildeo a

arte retoacuterica (que eacute um ramo da eacutetica) adquire naturalmente a incumbecircncia de promover

o bem da comunidade poliacutetica Esta com efeito constitui um organismo eacutetico razatildeo pela

qual a ciecircncia poliacutetica representa a condiccedilatildeo e o complemento da atividade moral

individual bem como o fundamento primeiro da suprema atividade contemplativa

Para o Estagirita a finalidade da existecircncia da comunidade poliacutetica natildeo consiste

simplesmente no ldquoviver juntosrdquo (ἀλλήλων) conforme ocorre com outros animais que

vivem em sociedade mas para a obtenccedilatildeo de uma ldquovida melhorrdquo (ζῆν καλῶς) e todas as

instituiccedilotildees poliacuteticas incluindo as artes e as ciecircncias seriam meios para a obtenccedilatildeo desse

fim (Ibid 1281a 35-37) O interesse comum tambeacutem une os membros da sociedade posto

que cada um aiacute encontra meios de viver melhor e isto constituiria o seu fim principal

comum a todos e a cada um em particular (Ibid 1278b 49-53) Aleacutem disso a cidade eacute

formada natildeo somente com vistas a assegurar a vida mas para assegurar uma vida melhor

de outro modo um grupo de escravos ou animais irracionais poderia constituir uma

cidade (Ibid 1280b 22-25) Sendo assim o escopo da comunidade poliacutetica eacute a vida

melhor e a proacutepria cidade seria apenas uma grande comunidade de clatildes e povoados em

que a vida encontraria todos os meios para uma vida perfeita e independente e esta seria

a maneira feliz e nobilitante de viver (τὸ ζῆν εὐδαιμόνως καὶ καλῶς) A comunidade

poliacutetica deve pois existir para a praacutetica de accedilotildees nobilitantes e natildeo somente para a

convivecircncia (Ibid 1281a 37-41) Aristoacuteteles tambeacutem sustenta que natildeo haacute nenhuma

duacutevida de que a verdadeira cidade ou seja aquela que natildeo o eacute somente de nome deve

estimar acima de tudo as virtudes de seus cidadatildeos dado que eacute impossiacutevel que uma cidade

seja feliz se dela a honestidade for abolida (Ibid 1280b 40-44) Na verdade natildeo existiria

nada de bom a esperar dela nem tampouco de um indiviacuteduo em particular pois a

coragem a justiccedila a prudecircncia e demais virtudes tecircm na comunidade poliacutetica o mesmo

caraacuteter e a mesma influecircncia que nos indiviacuteduos particulares Agrave vista disso a melhor

existecircncia para cada um em particular e para todas as cidades dependeria necessariamente

do conhecimento e da praacutetica das virtudes eacuteticas

O orador puacuteblico cuja missatildeo eacute promover o bem da cidade natildeo deve jamais

preocupar-se em dominar nos moldes sofiacutesticos os seus ouvintes atraveacutes da palavra em

detrimento do bem geral mas deve fundamentalmente cultivar e aparentar a prudecircncia

(φρόνησις) a virtude (ἀρετὴ) e a benevolecircncia (εὔνοια) Mediante a φρόνησις ele deve

estar apto a dar conselhos razoaacuteveis e pertinentes pela ἀρετὴ ele eacute obrigado a nunca

dissimular o que pensa nem o que sabe e pela εὔνοια ele deve estar sempre disposto a

ajudar seu auditoacuterio (Ret 1378a 9-22) Ademais o orador deve comprometer-se em

trazer a verdade agrave baila identificar e refutar os argumentos falaciosos e combater a

perversatildeo da verdade e da justiccedila A propoacutesito na obra Dos argumentos Sofiacutesticos

Aristoacuteteles explicita que ao homem que possui conhecimento de uma determinada

mateacuteria como a arte retoacuterica cabe evitar ele proacuteprio os viacutecios de raciociacutenio nos assuntos

que conhece e ao mesmo tempo ser apto a desmascarar aquele que lanccedila matildeo de

argumentos falaciosos Dessas capacidades a primeira consiste em ser apto a oferecer as

razotildees do que se diz e a segunda em fazer com que o adversaacuterio as apresente (Arg Sof

164b 25-30)

Haja vista que para Aristoacuteteles a verdade e a justiccedila satildeo por natureza mais fortes

que seus contraacuterios e sendo manifesto que a teacutecnica retoacuterica pode favorecer as causas

injustas entatildeo muito mais eficientemente a mesma teacutecnica pode favorecer as causas

justas Sendo assim o orador natildeo deve hesitar em se utilizar de todas as estrateacutegias

retoacutericas possiacuteveis natildeo simplesmente para vencer uma disputa ou para infundir o seu

ponto de vista subjetivo aos ouvintes mas a fim de orientaacute-los para o conhecimento e a

praacutetica das virtudes Ele ainda como o dialeacutetico possui a capacidade de argumentar sobre

coisas contraacuterias mas ele nunca deve fazer uma e outra coisa indiferentemente posto que

jamais deve persuadir seu auditoacuterio a praticar uma conduta imoral pelo contraacuterio deve

ele refutar os argumentos daqueles que argumentam contra a verdade e a justiccedila

O orador deve esforccedilar-se por implantar a justiccedila na alma dos seus concidadatildeos e

eliminar o viacutecio A retoacuterica deve ser entatildeo um instrumento educacional eacutetico-poliacutetico e

nisso consistiria sua legiacutetima funccedilatildeo na cidade razatildeo pela qual Aristoacuteteles censura o uso

que os sofistas faziam das palavras os quais incorriam (em decorrecircncia do seu

relativismo) tanto no mal moral quanto no erro epistecircmico O mal moral seria a ecircnfase

dada pelos sofistas na excitaccedilatildeo das paixotildees dos ouvintes e por visarem somente o

interesse proacuteprio que em nada favoreceria o bem da cidade Enquanto que o erro

epistecircmico consistiria na defesa de um relativismo conceitual nos moldes do pensamento

protagoacuterico Nesse aspecto Aristoacuteteles se afasta de todos os sofistas que praticavam e

defendiam a doutrina dos δισσοὶ λόγοι cujo principal representante foi Protaacutegoras o qual

aventava que em relaccedilatildeo a qualquer assunto existem dois argumentos opostos e que eacute

possiacutevel aprovar e refutar um mesmo tema proposto Ele queria dizer com isso que se

pode tomar qualquer lado de uma questatildeo e defendecirc-la com igual sucesso de sorte que o

mesmo orador poderia defender teses que satildeo contraditoacuterias Aliaacutes tal concepccedilatildeo se

relaciona com a ideia de que eacute possiacutevel tornar mais forte o argumento mais fraco (Ret

1402a 34-35)

Verificamos que a concepccedilatildeo retoacuterica de Platatildeo exposta nos diaacutelogos Fedro e

Goacutergias contrasta com a tese da neutralidade da linguagem proposta pelos sofistas posto

que Platatildeo estabelece como ideal uma linguagem normativa a qual seria capaz de realizar

na cidade a uniatildeo perdida entre a eacutetica e a retoacuterica Para ele o discurso retoacuterico enquanto

ferramenta educacional natildeo merece nenhum creacutedito se nele inexistir a intenccedilatildeo de instruir

moralmente os ouvintes qualquer que seja o assunto Todavia Luiz Rohden enfatiza que

contrapondo-se a Platatildeo o Estagirita sustenta que a arte retoacuterica eacute por natureza amoral no

sentido de que em muitos momentos da vida humana o homem pode fazer uso da

palavra sem colocar o poder da linguagem sob a eacutegide da moral Ela ainda seria amoral

no sentido de poder ser autocircnoma dos conselhos morais para desenvolver-se ou seja

independentemente da cultura de um povo seus costumes e haacutebitos a retoacuterica possuiria

um valor proacuteprio A despeito do caraacuteter amoral ou neutro da arte retoacuterica ela precisa

comprometer-se com a moral no sentido que diferente dos sofistas natildeo se deve persuadir

um auditoacuterio para praticar algum mal Aleacutem disso a retoacuterica precisa estar associada agrave

moral porque na visatildeo de Aristoacuteteles esta arte estaria primeiramente vinculada agrave eacutetica e

depois agrave ciecircncia poliacutetica (ROHDEN 1997166-167)

E apesar de Aristoacuteteles afirmar que atraveacutes da retoacuterica eacute possiacutevel favorecer tanto

as causas justas como as injustas e que o orador precisa ser apto de argumentar

persuasivamente sobre coisas contraacuterias ele rejeita agrave maneira de Platatildeo a neutralidade da

linguagem que caracteriza a sofiacutestica uma vez que o orador mesmo sendo capaz de

defender teses opostas jamais deve persuadir acerca do que eacute incorreto Em suma para

Aristoacuteteles a retoacuterica eacute uma arte amoral ou mesmo neutra e neste ponto ele aproxima-se

da sofiacutestica mas ao mesmo tempo ele defende que a retoacuterica enquanto ferramenta eacutetico-

poliacutetica natildeo deve ser neutra mas comprometida com a moral o que por sua vez o

aproxima de Platatildeo

Deveras para que se possa fazer a precisa distinccedilatildeo entre o orador e o sofista seria

preciso definir o orador natildeo somente pela teacutecnica retoacuterica que por sua natureza eacute neutra

(como ocorre com a medicina e a estrateacutegia militar) mas fundamentalmente por sua

disposiccedilatildeo moral em face dela A arte retoacuterica pode ter dois usos distintos um para

alcanccedilar uma finalidade nobre e outro para alcanccedilar uma finalidade ignoacutebil assim como

um olho pode ser usado para ver bem ou para ver mal como quando se distorce o formato

da pupila ateacute que uma coisa pareccedila ser duas Desse modo ambos os usos satildeo intriacutensecos

aos assuntos em questatildeo pois a arte retoacuterica funciona como tal mesmo quando utilizada

para realizar algo ruim ou ignoacutebil assim como um olho funciona como tal mesmo quando

sua visatildeo eacute deliberadamente distorcida

Na visatildeo de Aristoacuteteles o orador distinguir-se-ia do sofista pelo fato de empregar

o discurso retoacuterico tendo em vista o triunfo natural do verdadeiro e do justo e tambeacutem

por ser capaz de separar o argumento aparente do argumento verdadeiro Desse modo eacute

quando se apela agrave intenccedilatildeo ou quando se acrescenta algo como uma vontade criacutetica (que

natildeo poderia fazer parte dos requisitos da arte retoacuterica enquanto tal) que se poderia

distinguir mais claramente pela boa e maacute intenccedilatildeo o orador do sofista E para evitar os

efeitos danosos da sofiacutestica sobre a accedilatildeo poliacutetica assunto que tambeacutem eacute longamente

explorado por Platatildeo em seus diaacutelogos o Estagirita atribui agrave arte retoacuterica uma funccedilatildeo

eacutetica razatildeo pela qual ela seria crucial para o bem da cidade Pode-se dizer portanto que

eacute o criteacuterio eacutetico-poliacutetico que coloca nos extremos o orador e o sofista o orador e o sofista

se distinguem realmente pelos diferentes postos que ocupam na cidade pois seus

discursos sobre o bem para a cidade para a vida do homem sobre como viver e sobre

como se pode ser feliz satildeo realmente distantes entre si

Para Aristoacuteteles os sofistas arrogam poder ensinar os diversos assuntos ligados agrave

ciecircncia poliacutetica mas eles natildeo a conheceriam efetivamente Eles a colocam no mesmo

niacutevel da arte retoacuterica ou ainda num niacutevel inferior ao passo que para o Estagirita a retoacuterica

eacute um instrumento auxiliar da ciecircncia poliacutetica inferior a esta na hierarquia teacutelica ou seja

na hierarquia entre os fins A ciecircncia poliacutetica eacute o aacutepice da hierarquia teacutelica porque eacute a

uacutenica que inclui todos os outros fins ou bens merecedores de escolha Os sofistas tambeacutem

acham que eacute possiacutevel legislar apenas compilando leis que satildeo consideradas as melhores

sem qualquer criteacuterio para discernir o que haacute de bom e de mau nelas Este equiacutevoco

ocorreria porque eles ignoram que o estudo da natureza da legislaccedilatildeo eacute um componente

da arte legisladora (νομοθετικέ) a qual constitui um dos ramos da ciecircncia poliacutetica que

por sua vez submete os fins de todas as ciecircncias praacuteticas Portanto para se obter o

domiacutenio da νομοθετικέ que habilita ao orador distinguir a boa lei daquela que eacute maacute eacute

necessaacuterio como condiccedilatildeo preacutevia o estudo da eacutetica e da ciecircncia poliacutetica

Aristoacuteteles assevera que todos aqueles que exercem algum tipo de autoridade na

cidade podem beneficiar muita gente tais como os estrategos os oradores e todos os que

possuem poderes idecircnticos (Ret 1388b 26-28) Eacute manifesto que a arte retoacuterica pode

beneficiar muita gente porque se os juiacutezos natildeo se fizerem como conveacutem (natildeo somente

nos tribunais mas tambeacutem nas assembleias) a verdade e a justiccedila seratildeo necessariamente

vencidas pelos seus opostos e isto seria prejudicial para comunidade poliacutetica Isto posto

Aristoacuteteles compromete o discurso retoacuterico em perspectiva praacutetica ao fim uacuteltimo do ser

humano e com base nesse comprometimento a retoacuterica pertenceria tanto agrave eacutetica quanto agrave

ciecircncia poliacutetica Pode-se dizer que a retoacuterica seria um tipo de arte auxiliar da eacutetica e da

poliacutetica porque ela natildeo visa simplesmente a persuasatildeo (atividade natildeo-terminal) mas

contribuir para o bem agir tanto na vida privada quanto na vida puacuteblica (atividade

terminal) Aristoacuteteles chega a enfatizar que a retoacuterica eacute como um rebento (παραφυής) da

dialeacutetica e do saber praacutetico sobre os caracteres a que eacute justo chamar poliacutetica (Ibid 1356a

32-42)

De sorte que a retoacuterica eacute como um rebento da dialeacutetica e daquele saber praacutetico sobre os caracteres que eacute justo chamar de poliacutetica Eacute por isso tambeacutem que a retoacuterica se cobre com a figura da poliacutetica e igualmente aqueles que tecircm a pretensatildeo de a conhecer quer por falta de educaccedilatildeo quer por jactacircncia quer ainda por outras razotildees inerentes agrave natureza humana A retoacuterica eacute de fato uma parte da dialeacutetica e a ela se assemelha como dissemos no princiacutepio pois nenhuma das duas eacute ciecircncia de definiccedilatildeo de um assunto especiacutefico mas mera faculdade de proporcionar razotildees para os argumentos

Com base na passagem supracitada pode-se assegurar que as provas loacutegicas da

argumentaccedilatildeo retoacuterica ou seja o entimema e o exemplo (λόγος) pertenceriam mediante

a vinculaccedilatildeo com a dialeacutetica ao domiacutenio da loacutegica formal47 posto que uma das

caracteriacutesticas mais marcantes da retoacuterica de Aristoacuteteles eacute a sua vinculaccedilatildeo com a

dialeacutetica a qual constitui um notoacuterio ramo da loacutegica Aleacutem do mais a retoacuterica natildeo eacute

apenas anaacuteloga agrave dialeacutetica pelas razotildees que jaacute destacamos mas tambeacutem o seu ldquorebentordquo

jaacute que uma parte das provas artiacutesticas eacute constituiacuteda pelos entimemas ou sumaacuterios de

silogismos dialeacuteticos A arte retoacuterica entatildeo pertenceria em parte ao domiacutenio da loacutegica

formal desenvolvida nos Analiacuteticos Anteriores porque ela estuda silogismos e induccedilotildees

(Ibid 1356b 5-12)

Todavia a arte retoacuterica vincula-se natildeo somente agrave dialeacutetica mas tambeacutem agrave ciecircncia

poliacutetica pois ela se ocupa dos mesmos conteuacutedos dos quais esta se ocupa ndash os caracteres

e as paixotildees ndash mas unicamente com vistas a persuadir Os meios psicoloacutegicos da

argumentaccedilatildeo retoacuterica ou seja o caraacuteter do orador (ἦθος) e o apelo emocional (πάθος)

estariam por mediaccedilatildeo da eacutetica ligados ao domiacutenio da ciecircncia poliacutetica O conhecimento

especulativo do caraacuteter e das virtudes pertenceria por definiccedilatildeo agrave disciplina que trata dos

caracteres A disciplina que trata dos caracteres que mormente recebe o nome de eacutetica

subordina-se conforme jaacute examinamos agrave ciecircncia poliacutetica Dessarte pela mediaccedilatildeo da

eacutetica a arte retoacuterica pertenceria ao domiacutenio da ciecircncia poliacutetica A retoacuterica ao lidar com as

accedilotildees humanas caracteres virtudes e emoccedilotildees estaacute intimamente ligada agrave poliacutetica que

por sua vez inclui a eacutetica Ambas as disciplinas tratam do mesmo assunto mas de um

ponto de vista diferente Ambas lidam com a felicidade e a virtude mas o escopo da

ciecircncia poliacutetica consiste grosso modo em comparar as diferentes formas de governo e

encontrar aquela na qual o homem seraacute mais virtuoso A eacutetica por seu turno eacute um

instrumento importante na educaccedilatildeo individual do cidadatildeo e dos membros da comunidade

poliacutetica como um todo por isso pode ser considerada como uma ramificaccedilatildeo da poliacutetica

E conforme a pertinente anaacutelise de Barbara Cassin sobre esse toacutepico seria por intermeacutedio

da eacutetica que tem razatildeo de chamar-se ldquopoliacuteticardquo que a retoacuterica entraria na aacutervore da

poliacutetica Mas enquanto os conhecimentos dos ecircthecirc (ἤθη) constituiria para a retoacuterica algo

como uma toacutepica das almas uma compilaccedilatildeo que permite inventar premissas adaptadas

com o intuito de suscitar paixotildees e arrebatar a convicccedilatildeo a eacutetica contribuiria para

47 A loacutegica formal que tambeacutem eacute conhecida por ldquosilogiacutestica geralrdquo refere-se agrave forma do raciociacutenio a qual leva em consideraccedilatildeo a existecircncia ou a inexistecircncia do nexo entre o antecedente e o consequente se eacute correto o raciociacutenio em suas duas formas silogismo e induccedilatildeo

conhecer e sem duacutevida para educar tanto os indiviacuteduos como as cidades tendo em vista

a finalidade de bem viver (CASSIN 1999 74)

Conforme jaacute observamos o ideal platocircnico aspirava absorver a vida praacutetica no

conceito cientiacutefico da dialeacutetica ao passo que a sofiacutestica procurava dissolver todas as

normas morais no relativismo Aristoacuteteles estava cocircnscio de que natildeo havia um modelo

loacutegico que pudesse oferecer conhecimentos cientiacuteficos com base em crenccedilas sempre

passiacuteveis de discussatildeo pois a forccedila da retoacuterica natildeo consiste no conteuacutedo da verdade

cientiacutefica que possui mas por ser um instrumento argumentativo para melhor viver em

sociedade A arte retoacuterica enquanto ramificaccedilatildeo da dialeacutetica e da eacutetica pode servir de

ferramenta educacional para os cidadatildeos e fornecer-lhes os meios teacutecnicos para defender

a verdade e a justiccedila na cidade O exerciacutecio da arte retoacuterica tambeacutem eacute uacutetil para conduzir

a comunidade a resolver seus problemas pela discussatildeo racional e natildeo pelo uso da forccedila

fiacutesica considerando o maior nuacutemero possiacutevel de aspectos dos problemas eacutetico-poliacuteticos

em questatildeo No entanto ela restringe-se a tornar mais ou menos plausiacuteveis opiniotildees ou

pontos de vista sem fornecer a garantia da verdade absoluta sobre as questotildees eacutetico-

poliacuteticas A despeito disso a retoacuterica de Aristoacuteteles tem como pressuposto um caraacuteter

eacutetico-normativo e muito mais do que um simples jogo de linguagem ela implica na

concretizaccedilatildeo do bem supremo ou da felicidade

De acordo com a definiccedilatildeo elaborada por Aristoacuteteles a arte retoacuterica consiste na

capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com a finalidade de persuadir e

esta natildeo seria a funccedilatildeo de nenhuma outra arte No entanto conveacutem sublinhar que a

persuasatildeo natildeo eacute uma atividade terminal ou um fim em si mesma conforme propalavam

os sofistas porquanto na condiccedilatildeo de instrumento eacutetico-poliacutetico a retoacuterica submete-se a

uma finalidade mais sublime a qual eacute buscada em virtude de si mesma Eacute manifesto que

a persuasatildeo eacute o fim da atividade retoacuterica mas aquela eacute uma atividade natildeo-terminal ou

seja o seu fim eacute buscado em funccedilatildeo de outro fim mais elevado o qual eacute buscado em

virtude de si proacuteprio Este fim supremo natildeo eacute outro senatildeo a felicidade de sorte que cada

homem em particular e todos em conjunto tecircm este fim em vista tanto no que escolhem

fazer como no que evitam E eacute dela mesma das accedilotildees que para ela tendem e daquelas que

lhe satildeo contraacuterias que versam todos os conselhos e dissuasotildees razatildeo pela qual a felicidade

constitui o fim da deliberaccedilatildeo (Ret 1360b 4-8)

72 A refutaccedilatildeo da retoacuterica gorgiana

Goacutergias foi um dos fundadores do discurso epidiacutectico (o qual tem por objetivo o

elogio puacuteblico de um homem de uma mulher de uma divindade ou ateacute de animais) e o

melhor exemplo de como ele concebia este gecircnero de discurso se encontra no Elogio de

Helena Embora ele afirme no iniacutecio desta obra que sua intenccedilatildeo natildeo eacute outra senatildeo indicar

a verdade conveacutem considerar que sua retoacuterica eacute marcantemente falaciosa A propoacutesito

ldquofalaacuteciardquo eacute o termo que os escolaacutesticos atribuiacuteram ao ldquoargumento sofiacutesticordquo condenado

veementemente por Aristoacuteteles na sua obra Dos Argumentos Sofiacutesticos e pode ser definida

como o argumento que possui a aparecircncia de ser verdadeiro mas sob uma anaacutelise

rigorosamente loacutegica se revela falso Na definiccedilatildeo de Aristoacuteteles os argumentos

sofiacutesticos satildeo os que parecem ser argumentos ou refutaccedilotildees mas em realidade natildeo passam

de ilogismos Para ele alguns raciociacutenios satildeo genuiacutenos ao passo que outros apenas

aparentam secirc-lo mas natildeo o satildeo e isso ocorre natildeo soacute com os argumentos mas tambeacutem

em outros campos devido a uma certa semelhanccedila entre o genuiacuteno e o falso (Arg Sof

164a 20-25)

O discurso de Goacutergias no Elogio de Helena pode ser considerado falacioso pelo

fato de fundamentar-se na falaacutecia petitio principii tambeacutem conhecida como peticcedilatildeo de

princiacutepio Isto ocorre porque as uacutenicas causas possiacuteveis por ele atribuiacutedas ao ato de Helena

satildeo justamente as que a inocentam Ele natildeo considera em nenhum momento a

possibilidade de que Helena tenha partido expontaneamente com Paacuteris pelo contraacuterio

ele inventa atraveacutes de uma enumeraccedilatildeo completa todas as possiacuteveis causas do rapto de

Helena ou ele ocorreu em virtude do decreto dos deuses e do destino ou ela foi arrebatada

agrave forccedila ou foi persuadida por discursos ou foi vencida pelo desejo Desse modo em

nenhum dos casos Helena teria agido livremente mas em todos foi subjugada por uma

forccedila superior agrave sua razatildeo pela qual ela natildeo poderia ser considerada culpada Conveacutem

salientar ainda que nos Toacutepicos a falaacutecia petitio principii eacute considerada um erro na teacutecnica

de demonstraccedilatildeo que consiste no fato de postular o que se quer provar (Toacutep 162b 35-

37) Noutros termos a falaacutecia petitio principii consiste no tipo de argumentaccedilatildeo que

objetiva provar uma tese jaacute partindo do princiacutepio que essa mesma tese seja verdadeira48

48 De acordo com Chaumlim Perelman no plano da loacutegica formal a petitio principii eacute desprovida de sentido haja vista que toda deduccedilatildeo formalmente correta consistiria em postular o que se quer provar o princiacutepio de identidade segundo o qual toda proposiccedilatildeo implica a si proacutepria seria um exemplo de petitio principii

Goacutergias comete explicitamente este ilogismo no Elogio de Helena ao supor que o

interlocutor jaacute aderiu a uma tese que ele justamente se esforccedila por fazecirc-lo admitir

Com efeito Aristoacuteteles coloca ao lado dos gecircneros oratoacuterios deliberativo e

judiciaacuterio aquele gecircnero que para Goacutergias eacute tatildeo caro mas ele o faz de uma maneira um

tanto ou quanto distinta O gecircnero epidiacutectico tem por escopo manifestar a grandeza de

uma virtude efetivamente existente (ἔστιν δ᾽ ἔπαινος λόγος ἐμφανίζων μέγεθος ἀρετῆς)

e universalmente reconhecida pelo auditoacuterio (Ret 1367b 35) Ele tambeacutem visa

reconhecer valores e natildeo transformar mediante argumentos falaciosos uma accedilatildeo perversa

numa accedilatildeo virtuosa O contraacuterio desse procedimento incorreria num paradoxo

(παράδοξος) que designa todas as proposiccedilotildees que satildeo contraacuterias agrave opiniatildeo geral Eacute dessa

forma que procede Goacutergias ao enaltecer Helena apesar da opiniatildeo puacuteblica acreditar em

sua deslealdade e adulteacuterio contra Menelau em sua fuga consciente para Troia com Paacuteris

e no cruel abandono de sua filha Hermiacuteone com apenas nove anos de idade

Na visatildeo de Aristoacuteteles existem accedilotildees como o adulteacuterio (μοιχεία) que Goacutergias

procurou relativizar no Elogio de Helena que satildeo perversas de maneira absoluta e natildeo

por constituiacuterem excessos e defeitos Para ele as accedilotildees perversas como o adulteacuterio satildeo

sempre erradas e natildeo existe nunca a respeito delas uma maneira de acertar razatildeo pela

qual seriam indefensaacuteveis por qualquer orador bem-intencionado Escreve Aristoacuteteles a

este respeito (Eacutet Nic 1107a 15-25)

Ou seja natildeo haacute uma maneira certa de cometer adulteacuterio como se houvesse a mulher certa com quem se pudesse praticaacute-lo como se houvesse a altura certa ou a maneira certa de o fazer porque praticar adulteacuterio estaacute sempre absolutamente errado [] Portanto tal como natildeo haacute excesso nem defeito na temperanccedila nem na coragem porque o meio eacute de algum modo um extremo (e a temperanccedila e a coragem satildeo posiccedilotildees extremas) assim tambeacutem se passa a respeito daquelas accedilotildees perversas porque natildeo admitem posiccedilatildeo intermeacutedia entre o excesso e o defeito Isto eacute simplesmente praticaacute-las eacute jaacute errar absolutamente

Ao abordar na Retoacuterica as virtudes que pertencem agraves mulheres Aristoacuteteles leva

em consideraccedilatildeo as virtudes do corpo (σῶμα) e as da alma (ψυχή) As virtudes do corpo

satildeo a beleza (κάλλος) e a estatura (μέγεθος) enquanto que as virtudes da alma satildeo a

temperanccedila (σωφροσύνη) e o amor ao trabalho (φιλεργία) mas sem servilismo (Ret

1361a 8-10) Outrossim ele examina na Poliacutetica algumas virtudes que precisam ser

formalizada Todavia a falaacutecia em apreccedilo que natildeo diz respeito agrave verdade mas agrave adesatildeo dos interlocutores agraves premissas que se supotildeem natildeo seria um erro de loacutegica mas de retoacuterica (PERELMAN 2014 127)

observadas pelas mulheres as quais satildeo distintas das virtudes que pertencem aos homens

Nesse sentido Aristoacuteteles critica a concepccedilatildeo socraacutetica de que a virtude eacutetica seria uacutenica

para todas as pessoas pelo contraacuterio a temperanccedila de uma mulher e de um homem natildeo

satildeo a mesma coisa nem a coragem (ἀνδρεία) ou o sentimento de justiccedila Porquanto uma

eacute a coragem de comando (ἀρχικός) a outra eacute de obediecircncia (ὑπηρετικός) e o mesmo

sucederia com as outras qualidades Assim aqueles que relacionam separadamente as

qualidades de pessoas diferentes conforme faz Goacutergias estariam mais certos que aqueles

que definem as qualidades genericamente (Pol 1260a 32-1260b 7)

Outrossim a coragem de um homem se aproximaria da covardia (δέος) se fosse

apenas igual agrave de uma mulher ao passo que a mulher passaria por tagarela se natildeo fosse

mais reservada do que um homem em suas palavras (Ibid 1277b 25-29) Assim cada

indiviacuteduo e a sociedade como um todo sobretudo os oradores devem procurar

desenvolver essas qualidades nos cidadatildeos pois os povos em que haacute imoralidade nas

mulheres a exemplo dos lecedemocircnios natildeo podem ser considerados plenamente felizes

(Ret 1361a 10-15) Enfim na visatildeo de Aristoacuteteles o gecircnero epidiacutectico precisa manifestar

a grandeza de uma virtude efetivamente existente e reconhecida pelo consenso geral

como as virtudes das mulheres acima mencionadas e jamais transformar uma accedilatildeo

considerada perversa numa accedilatildeo virtuosa

Para Aristoacuteteles o orador se propotildee a atingir segundo o gecircnero especiacutefico de

discurso finalidades que satildeo distintas no gecircnero deliberativo ele aconselha acerca do que

eacute uacutetil ou prejudicial no gecircnero judiciaacuterio ele tem em vista o justo ou o injusto e no gecircnero

epidiacutectico que aborda o elogio ou a censura ocupa-se com o que eacute belo ou feio Pode-se

assegurar entatildeo que no acircmbito do gecircnero epidiacutectico o orador ocupa-se essencialmente

de reconhecer valores (Ibid 1366a 29-40)

Depois disto falemos da virtude e do viacutecio do belo e do vergonhoso pois estes satildeo os objetivos de quem elogia ou censura Com efeito sucederaacute que ao mesmo tempo que falarmos destas questotildees estaremos tambeacutem mostrando os meios pelos quais deveremos ser considerados como pessoas de um certo caraacuteter Esta era a segunda prova pois eacute pelos mesmos meios que poderemos inspirar confianccedila em noacutes proacuteprios e nos outros no que respeita agrave virtude Mas como muitas vezes acontece que por brincadeira ou a seacuterio louvamos natildeo soacute um homem ou um deus mas ateacute seres inanimados ou qualquer animal que se apresente devemos de igual modo prover-nos de premissas sobre estes assuntos

O Estagirita define o belo como aquilo que sendo preferiacutevel por si mesmo eacute digno

de louvor ou aquilo que sendo bom eacute agradaacutevel porque eacute bom (καλὸν μὲν οὖν ἐστιν ὃ ἂν

δι᾽ αὑτὸ αἱρετὸν ὂν ἐπαινετὸν ᾖ ἢ ὃ ἂν ἀγαθὸν ὂν ἡδὺ ᾖ ὅτι ἀγαθόν) E se isto eacute belo

tambeacutem a virtude eacute bela porquanto sendo boa eacute digna de louvor A virtude por sua vez

consiste de um lado no poder de produzir e conservar os bens e de outro na faculdade

de prestar muitos e relevantes serviccedilos de toda sorte e em todos os casos (ἀρετὴ δ᾽ ἐστὶ

μὲν δύναμις ὡς δοκεῖ ποριστικὴ ἀγαθῶν καὶ φυλακτική καὶ δύναμις εὐεργετικὴ πολλῶν

καὶ μεγάλων καὶ πάντων περὶ πάντα) Os componentes da virtude (μέρη δὲ ἀρετῆς) satildeo

a justiccedila a coragem a temperanccedila a magnificecircncia a magnanimidade a liberalidade a

mansidatildeo a prudecircncia e a sabedoria (Ibid 1366a 43-1366b 6) Sendo assim o elogio

(ἔπαινος) que distingue-se do encocircmio (ἐγκώμιον)49 eacute um discurso que visa manifestar a

grandeza de uma determinada virtude por isso eacute necessaacuterio demonstrar atraveacutes do

discurso epidiacutectico que certas accedilotildees satildeo efetivamente virtuosas Nesse sentido Aristoacuteteles

se afasta do modo como Goacutergias compreende e emprega o gecircnero epidiacutectico Goacutergias

utiliza o discurso epidiacutectico natildeo para reconhecer valores como a justiccedila a coragem ou a

temperanccedila mas para defender de maneira falaciosa e ateacute imoral comportamentos que

seriam indefensaacuteveis por qualquer orador bem-intencionado de sorte que um homem de

maacute iacutendole poderia transfigurar-se num homem virtuoso e vice-versa Esta atitude tambeacutem

foi criticada por Platatildeo no Fedro ao mencionar que existem oradores que desconhecendo

o bem e o mal satildeo capazes de fazer um elogio tatildeo eloquente de um miacutesero asno a ponto

de transformaacute-lo num belo e nobre cavalo (Fed 260c)

Outrossim os tipos de argumentaccedilatildeo dos trecircs gecircneros do discurso retoacuterico natildeo satildeo

os mesmos O judiciaacuterio que dispotildee de leis e se dirige a um auditoacuterio especializado se

utiliza amiuacutede do entimema (ἐνθύμημα) proacuteprio para esclarecer uma questatildeo judicial O

deliberativo dirige-se a um puacuteblico menos esclarecido por isso utiliza preferencialmente

argumentos pelo exemplo (παράδειγμα) Enquanto que o gecircnero epidiacutectico recorre

principalmente agrave amplificaccedilatildeo (αὐξητικός) pois os fatos satildeo conhecidos pelo auditoacuterio

e cabe ao orador dar-lhes valor mostrando sua importacircncia e nobreza (Ret1368a 37-46)

Entre as espeacutecies comuns a todos os discursos a amplificaccedilatildeo eacute em geral a mais apropriada aos epidiacutecticos pois estes tomam em consideraccedilatildeo as accedilotildees por todos aceitas de sorte que apenas resta revesti-las de grandeza e de beleza Os exemplos por seu turno satildeo mais apropriados aos discursos deliberativos pois eacute com base no

49 Para Aristoacuteteles o termo ldquoἔπαινοςrdquo diz respeito agraves virtudes das accedilotildees tais como a justiccedila a coragem a temperanccedila etc enquanto que o ldquoἐγκώμιονrdquo refere-se agraves obras realizadas em benefiacutecio de algueacutem ou de uma cidade

passado que adivinhamos e julgamos o futuro E os entimemas convecircm mais aos discursos judiciais pois o que se passou por ser obscuro requer sobretudo causa e demonstraccedilatildeo

A argumentaccedilatildeo proacutepria do discurso epidiacutectico se propotildee entatildeo a aumentar a

intensidade de adesatildeo a certos valores em relaccedilatildeo aos quais natildeo existiriam duacutevidas No

discurso epidiacutectico o orador procura criar uma concordacircncia em torno de certos valores

reconhecidos pelo auditoacuterio valendo-se do conjunto de meios de que a retoacuterica dispotildee

para amplificar e valorizar Por exemplo pela αὐξητικός o orador precisa levar em

consideraccedilatildeo se um homem agiu soacute ou em primeiro lugar ou com poucas pessoas ou se

teve a parte mais relevante de uma accedilatildeo porquanto todas estas circunstacircncias satildeo

consideradas belas (Ibid 1367a 14-17) Agrave vista disso a retoacuterica epidiacutectica natildeo estaria

menos ligada agrave experiecircncia eacutetica e poliacutetica do que os demais gecircneros de discurso

porquanto deve partir de conceitos do belo e da virtude para poder realizar o tipo de

persuasatildeo que lhe caracteriza A propoacutesito no capiacutetulo 9 do primeiro livro da Retoacuterica

Aristoacuteteles se delonga em discussotildees de caraacuteter eacutetico natildeo muito diferentes daquelas da

Eacutetica a Nicocircmaco redimindo a arte retoacuterica da falsa acusaccedilatildeo de superficialidade e

imoralidade que lhe fizera Platatildeo

No entanto eacute manifesto que o estudo das virtudes eacuteticas empreendido por

Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco serve a um propoacutesito que eacute distinto do desiacutegnio exposto

na Retoacuterica o qual se relaciona fundamentalmente com a persuasatildeo Para o Estagirita

(Ibid 1369b 39-41) as definiccedilotildees das virtudes a serem utilizadas nos argumentos

retoacutericos satildeo suficientes para a finalidade de persuadir se natildeo forem obscuras nem

tecnicamente rigorosas (ἑκάστου μήτε ἀσαφεῖς μήτε ἀκριβεῖς) E aleacutem de ser mais

acurada e extensa a anaacutelise das virtudes na Eacutetica a Nicocircmaco natildeo tem por objetivo

proporcionar uma ajuda praacutetica para os oradores puacuteblicos mas um conhecimento que

possibilite a todos viver bem e virtuosamente Dessarte ele declara que o objetivo final

de sua investigaccedilatildeo natildeo eacute constituir um saber teoacuterico mas agir (Eacutet Nic 1095a 5-7)

Com efeito uma breve apreciaccedilatildeo da natureza da virtude na Eacutetica a Nicocircmaco eacute

pertinente para compreendermos mais adiante de que maneira (e por qual razatildeo) o

Estagirita parece reduzir o discurso epidiacutectico a uma manipulaccedilatildeo sofiacutestica quando

recomenda ao orador transformar (se for conveniente) um viacutecio numa virtude e vice-

versa haja vista sua sutil proximidade Sumariamente a virtude para Aristoacuteteles eacute

definida atraveacutes de gecircnero e espeacutecie Segundo o gecircnero a virtude equivale a um haacutebito

(ἕξις) e de acordo com a espeacutecie ela consiste numa posiccedilatildeo intermeacutedia (μεσότης) a qual

deve ser estabelecida pela razatildeo como a estabeleceria um homem dotado de prudecircncia

(φρόνησις)

Para Aristoacuteteles as virtudes eacuteticas natildeo surgem no homem por uma determinaccedilatildeo da

natureza mas esta propicia a capacidade de desenvolvecirc-las desde que o agente moral se

habitue a praticaacute-las Todos os fatos que resultam da natureza tecircm uma causa interna e

regular posto que se produzem sempre ou geralmente da mesma maneira (Ret 1369b 1-

2) Todavia em relaccedilatildeo agraves virtudes eacuteticas ele as assemelha com as artes uma vez que

ambas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio repetitivo Assim a virtude eacutetica seria uma

consequecircncia do haacutebito visto que o ser humano se transforma naquilo que repetidamente

pratica sendo o haacutebito uma espeacutecie de segunda natureza de modo que o agente moral

torna-se justo praticando accedilotildees justas ou corajoso praticando accedilotildees corajosas (Eacutet Nic

1103a 14-1103b 25)

Outrossim a virtude consiste na posiccedilatildeo intermeacutedia entre dois extremos viciosos

um deles se caracteriza pelo excesso (ὑπερβολή) e outro pela falta (ἔλλειψις) A coragem

constitui o meio-termo entre o medo e a audaacutecia a temperanccedila entre a insensibilidade e

a devassidatildeo a generosidade entre o esbanjamento e a avareza a gentileza entre

passividade e a ira a sinceridade entre a fanfarronice e a falsa modeacutestia a afabilidade

entre a bajulaccedilatildeo e rabugice e a espirituosidade entre a palhaccedilada e a rudeza (Ibid 1107a

28-1108b 35) O μεσότης ou a posiccedilatildeo intermeacutedia constitui um dos princiacutepios

fundamentais da eacutetica aristoteacutelica por isso a accedilatildeo correta do ponto de vista eacutetico deve

sempre evitar os extremos isto eacute tanto o excesso quanto a falta

O μεσότης pode ser compreendido tanto em relaccedilatildeo a algum objeto como em

relaccedilatildeo aos agentes morais Em relaccedilatildeo a algum objeto Aristoacuteteles entende o que eacute

equidistante de cada um dos seus extremos sendo um soacute e mesmo para todos conforme

ocorre a respeito da proporccedilatildeo numeacuterica ndash se dez eacute muito e dois eacute pouco seis seria

considerado o meio-termo em relaccedilatildeo ao objeto No entanto a posiccedilatildeo intermeacutedia em

relaccedilatildeo aos agentes morais que eacute o enfoque da eacutetica aristoteacutelica natildeo pode ser entendida

como uma proporccedilatildeo numeacuterica (Ibid 1106a 30-1106b 1) A posiccedilatildeo intermeacutedia soacute pode

ser determinada pela φρόνησις ou virtude da prudecircncia que consiste na capacidade de

discernir a justa medida cuja determinaccedilatildeo poderaacute variar de acordo com as circunstacircncias

e situaccedilotildees envolvidas (Ibid 1141b 15-20) Por exemplo o sentimento de ira suscitado

por alguma ofensa leva naturalmente um homem a querer a vinganccedila mas esta deve ser

proporcional agrave ofensa de modo que ele agiraacute de acordo com a posiccedilatildeo intermeacutedia se ele

irar-se como deveria sobre as coisas apropriadas em relaccedilatildeo agraves pessoas apropriadas pelo

fim devido e da maneira correta

Aleacutem do exposto para o Estagirita existem trecircs gecircneros de fenocircmenos que surgem

na alma e somente um deles estaria intimamente ligado agraves virtudes eacuteticas as afecccedilotildees

(πάθη) as capacidades (δυνάμεις) e as disposiccedilotildees (ἕξεις) As afecccedilotildees dizem respeito

ao desejo agrave ira ao medo agrave coragem agrave inveja agrave alegria agrave amizade ao oacutedio agrave saudade

ao ciuacuteme agrave piedade e em geral a tudo aquilo que eacute acompanhado por prazer ou

sofrimento Tais afecccedilotildees satildeo fenocircmenos involuntaacuterios que surgem na alma por isso

existem independentemente dos indiviacuteduos As capacidades satildeo as condiccedilotildees de

possibilidade dos seres humanos serem afetados ou influenciados pelas afecccedilotildees E as

disposiccedilotildees que satildeo gecircneros de fenocircmenos de acordo com os quais as pessoas se

comportam bem ou mal relativamente agraves afecccedilotildees Relativamente ao estado em que se

fica irado comporta-se mal aquele que fica nesse estado emocional em excesso ou ainda

em falta Desse modo sentir medo ser corajoso ficar irritado ou ter piedade admitem

um mais e um menos ou seja admitem modos errados de se relacionar com tais afecccedilotildees

Todavia o sentir as afecccedilotildees no tempo em que se deve nas ocasiotildees em que se deve em

vista do que se deve e do modo em que se deve constitui a medida da virtude eacutetica As

virtudes eacuteticas portanto natildeo satildeo afecccedilotildees porque natildeo depende do indiviacuteduo ser afetado

ou natildeo por elas as virtudes tambeacutem natildeo satildeo capacidades as quais satildeo inerentes aos seres

humanos mas certamente satildeo disposiccedilotildees de caraacuteter isto eacute as virtudes dependem de uma

decisatildeo preacutevia As pessoas satildeo acometidas pelo medo pela ira ou por qualquer outra

afecccedilatildeo sem qualquer decisatildeo preacutevia enquanto que as virtudes eacuteticas resultam de certas

decisotildees tomadas de antematildeo em face das afecccedilotildees Dessarte as pessoas satildeo louvadas

por suas virtudes ou censuradas por seus viacutecios em decorrecircncia de uma escolha

deliberada (Ibid 1105b 19-1106a 10)

Verificamos que Aristoacuteteles estabelece a distinccedilatildeo entre o orador e o sofista

sobretudo pela disposiccedilatildeo ou intenccedilatildeo moral o primeiro distingue-se do segundo por

empregar a arte retoacuterica tendo em vista o triunfo natural do verdadeiro e do justo e natildeo

simplesmente para persuadir sua audiecircncia conforme o que lhe conveacutem Entretanto

Aristoacuteteles parece reduzir o gecircnero do discurso epidiacutectico a uma manipulaccedilatildeo digna dos

maiores sofistas quando recomenda ao orador considerar idecircnticas certas qualidades

existentes e as que lhes estatildeo proacuteximas Ele pode apresentar o indiviacuteduo coleacuterico como

franco o arrogante como magnificente e digno e os que mostram algum tipo de excessso

como se possuiacutessem as virtudes correspondentes (Ret 1367a 42-47) O audacioso pode

ser apresentado como corajoso e o esbanjador como generoso porque dessa forma

pareceraacute agrave maioria que natildeo tem a perspicaacutecia de distinguir a sutil diferenccedila entre a virtude

e o viacutecio (Ibid 1367b 1-4) Portanto em cada caso o orador pode tirar proveito dessas

qualidades semelhantes no sentido mais favoraacutevel

Aleacutem da aparente ldquocumplicidaderdquo de Aristoacuteteles com a sofiacutestica ele ainda sugere

ao orador o que eacute necessaacuterio dizer ao defender uma determinada causa primeiro se a lei

lhe for desfavoraacutevel teraacute de lanccedilar matildeo de um criteacuterio que esteja acima da lei escrita

apelando a uma lei natildeo escrita depois se a lei lhe for favoraacutevel teraacute de rejeitar todo

criteacuterio extriacutenseco agrave lei escrita Agrave primeira vista tem-se a impressatildeo de que o Estagirita

estaacute subscrevendo todas as desonestidades e manipulaccedilotildees que sempre caracterizaram os

sofistas W K C Guthrie sustenta (um tanto ou quanto superficialmente) que Aristoacuteteles

deveras rendeu-se agraves tramoacuteias de Goacutergias e seus comparsas os quais ensinavam em seus

manuais os modos como os conceitos eacuteticos podem ser submetidos agraves conveniecircncias do

momento Ele sustenta esta visatildeo com a justificativa de que no momento em que

Aristoacuteteles escreveu seu manual de retoacuterica baseou-se nos manuais anteriores

confeccionados em sua maioria pelos mais eminentes sofistas Por essa razatildeo ele teria

simplesmente reproduzido os estratagemas retoacutericos dos sofistas sem preocupar-se no

toacutepico em questatildeo em fazer com que a lei eterna da natureza prevaleccedila sobre a convenccedilatildeo

mas mostrar que um advogado pode jogar com a noccedilatildeo de lei escrita e natildeo escrita da

maneira que conveacutem ao seu caso (GUTHRIE 2007 118)

Com efeito se por casualidade a lei escrita for desfavoraacutevel ao discurso do orador

ele precisa lanccedilar matildeo dos seguintes estratagemas recorrer agrave lei comum uma vez que

esta possuiria razotildees mais equacircnimes e mais justas dizer que a foacutermula ldquona melhor

consciecircnciardquo significa natildeo nos atermos estritamente agrave lei escrita declarar que os

princiacutepios de equidade satildeo permanentes e nunca mudam tampouco a lei comum que estaacute

baseada na natureza e ateacute citar a lei natildeo escrita de Antiacutegona que seria o uacutenico criteacuterio de

justiccedila das leis escritas as quais satildeo amiuacutede transitoacuterias ambiacuteguas e contraditoacuterias entre

si dizer que o justo eacute verdadeiro e uacutetil mas natildeo o que parece ser de sorte que a lei escrita

natildeo deve ser considerada uma lei se natildeo cumprir efetivamente a sua funccedilatildeo de lei e que

eacute proacuteprio de um homem mais honesto fazer uso da lei natildeo escrita e a ela se adequar mais

do que agraves leis escritas Aleacutem do mais Aristoacuteteles orienta que se verifique se existe alguma

ambiguidade na lei com o intuito de contornar e ver a que sentido ela se acomoda se ao

justo ou ao conveniente e na sequecircncia utilizar a interpretaccedilatildeo mais favoraacutevel (Ret

1375a 41-49) E se porventura as circunstacircncias que motivaram a lei jaacute natildeo existem mas

a lei ainda permanece entatildeo conveacutem demonstraacute-lo ao juiz e lutar contra a lei vigente por

este estratagema (Ibid 1375b 3-19)

No entanto se a lei escrita for favoraacutevel ao orador Aristoacuteteles recomenda que a

foacutermula ldquona melhor consciecircnciardquo natildeo tem por objetivo obter uma sentenccedila contraacuteria agrave lei

mas escusar o juiz de perjuacuterio caso ele tivesse ignorado o verdadeiro sentido da lei que

eacute preciso explicar que ningueacutem escolhe o bem absoluto mas sim o seu proacuteprio bem que

natildeo existe nenhuma diferenccedila entre natildeo haver lei e natildeo se fazer uso dela que nas outras

artes natildeo existe vantagem em ser mais haacutebil do que o meacutedico porquanto o erro de um

meacutedico eacute menos prejudicial do que o haacutebito de desobedecer agrave autoridade e que procurar

ser mais saacutebio do que as leis eacute precisamente o que eacute proibido pelas leis que satildeo louvadas

(Ibid 1375b 20-31)

Ao orientar sobre os casos em que a lei escrita eacute desfavoraacutevel ao orador Aristoacuteteles

recusa o legalismo em benefiacutecio da equidade (ἐπιεικής) que estabelece a justiccedila acima do

direito positivo e faz do juiz um aacuterbitro o qual pode retificar a lei quando esta deixar de

desempenhar devidamente sua funccedilatildeo No segundo caso Aristoacuteteles recomenda a recusa

do arbitraacuterio haja vista que cada um pode invocar a lei natildeo escrita de Antiacutegona para

revogar a lei que natildeo lhe conveacutem Desse modo a atitude ldquorelativistardquo de Aristoacuteteles ao

aconselhar o orador a adotar segundo sua conveniecircncia ora uma tese ora o seu contraacuterio

parece um tanto ou quanto imoral

No entanto se levarmos em consideraccedilatildeo que as accedilotildees humanas natildeo procedem de

verdades absolutamente necessaacuterias que a arte retoacuterica soacute pode ser exercida em situaccedilotildees

de divergecircncia e incerteza e que o orador pode deparar-se com um adversaacuterio mal-

intencionado a quem importa fazer de tudo para desmentir sua argumentaccedilatildeo (haja vista

que sua missatildeo eacute lutar para o bem da comunidade poliacutetica) entatildeo as estrateacutegias retoacutericas

supramencionadas parecem ser apropriadas nas circunstacircncias especiacuteficas nas quais o

orador dotado de prudecircncia (φρόνιμος) estaraacute apto a empregaacute-las50 Eacute inegaacutevel que o

50 Guardadas as devidas proporccedilotildees pode-se comparar a asserccedilatildeo aristoteacutelica de que o orador pode relativizar certas noccedilotildees eacuteticas com a ldquomentira uacutetilrdquo de Platatildeo a qual soacute poderia ser exercida por governantes justos (Rep 331c 382c 389-391c 414b 459c-d) Decerto a eventual mentira dos governantes natildeo visa o seu proacuteprio bem mas o bem de todos os cidadatildeos Ela natildeo tem como fim obter riqueza poder ou manter a condiccedilatildeo privilegiada da proacutepria classe mas sim alcanccedilar o bem-estar de toda a cidade Portanto a mentira do governante natildeo eacute funcional agrave conservaccedilatildeo do seu poder sobre todos os outros homens mas agrave de uma vida justa e feliz com todos os outros homens Semelhantemente os oradores

debate entre Creonte e Antiacutegona51 (entre a razatildeo de Estado que exige a ordem para

estabelecer a paz e a lei divina) ainda natildeo se encerrou e pode-se assegurar que nunca vai

se encerrar A uacutenica coisa que se pode fazer na ausecircncia de uma demonstraccedilatildeo rigorosa

ou apodiacutectica eacute confiar no debate contraditoacuterio em que cada orador emprega todo o

esforccedilo para encontrar os meios de efetivar a persuasatildeo Assim nos contextos onde eacute

premente a deliberaccedilatildeo torna-se fundamental o emprego da argumentaccedilatildeo retoacuterica com

o intuito de encontrar a soluccedilatildeo mais plausiacutevel em face de um impasse qualquer porque

numa situaccedilatildeo destituiacuteda de evidecircncia onde natildeo eacute possiacutevel demonstraccedilatildeo cientiacutefica nem

qualquer previsatildeo exata a arte retoacuterica possui o papel fundamental de fazer a justa defesa

de uma determinada causa e esclarecer aqueles que devem emitir a palavra definitiva e

disso depende a proacutepria subsistecircncia da cidade

Eacute manifesto que a condiccedilatildeo do orador eacute a de um sujeito que natildeo estaacute isolado ou

sozinho mas ele tem diante de si um adversaacuterio a quem compete fazer de tudo para

desmentir sua argumentaccedilatildeo caso seja falaciosa tendo sempre em vista o combate contra

a perversatildeo da verdade e da justiccedila Num contexto juriacutedico por exemplo ambas as partes

de um litiacutegio tecircm a missatildeo de fazer valer tudo o que possa servir agrave sua proacutepria causa mas

quem deteacutem a palavra final eacute sempre o juiz E uma vez que a verdade e a justiccedila satildeo por

natureza mais fortes que seus contraacuterios e sendo evidente que os estratagemas retoacutericos

podem favorecer as causas injustas entatildeo com mais eficaacutecia os mesmos estratagemas

podem favorecer as causas justas Desse modo sob o ponto de vista do meacutetodo retoacuterico

desenvolvido de Aristoacuteteles o orador judicial deve empregar sem nenhum melindre todas

as estrateacutegias retoacutericas disponiacuteveis a fim de triunfar sobre o adversaacuterio e estabelecer a

verdade dos fatos Outrossim as accedilotildees humanas fundamentam-se sobre juiacutezos que

poderiam ser de uma maneira ou de outra e normalmente natildeo procedem de verdades

absolutamente necessaacuterias Por isso ningueacutem pode deliberar sobre coisas que natildeo podem

ser de outra maneira nem acerca daquelas coisas sobre as quais natildeo tem o poder de agir

(Eacutet Nic 1140a 31-34) Na hipoacutetese de que as estrateacutegias retoacutericas sejam quais forem

verdadeiramente ilibados e bem-intencionados teriam a prerrogativa de submeter agraves conveniecircncias do momento certas noccedilotildees tendo em vista seu compromisso eacutetico-poliacutetico com o bem da cidade 51 De acordo a trageacutedia chamada Antiacutegona escrita por Soacutefocles em 442 aC Antiacutegona era irmatilde de Polinice que morreu lutando contra Creonte que era o rei de Tebas Este por conseguinte decidiu que como puniccedilatildeo por seus erros o corpo do rebelde Polinice natildeo poderia ser sepultado Entretanto Antiacutegona entendeu que ningueacutem poderia deixar insepulto o corpo de seu proacuteprio irmatildeo ainda que para isso tivesse de contrariar a lei que foi escrita e sancionada pelo rei Para tanto ela procura apelar para as leis natildeo escritas estabelecidas pelos deuses as uacutenicas que na sua opiniatildeo mereceriam ser observadas Dessarte ela foi julgada e condenada por Creonte que decide aprisionaacute-la numa caverna escavada na rocha para que tivesse uma morte lenta e angustiante

satildeo pertinentes em situaccedilotildees de divergecircncia e incerteza mormente nas ocasiotildees em que

o orador dotado de prudecircncia enfrenta um adversaacuterio mal-intencionado e

descomprometido com o bem da cidade entatildeo torna-se premente a compreensatildeo dessa

virtude tal como a relevacircncia de sua vinculaccedilatildeo com a persuasatildeo retoacuterica

O Estagirita define brevemente a prudecircncia (Ret 1366b 23-25) como a virtude da

inteligecircncia mediante a qual se pode deliberar adequadamente sobre os bens e os males

que conduzem agrave felicidade (φρόνησις δ᾽ ἐστὶν ἀρετὴ διανοίας καθ᾽ ἣν εὖ βουλεύεσθαι

δύνανται περὶ ἀγαθῶν καὶ κακῶν τῶν εἰρημένων εἰς εὐδαιμονίαν) A prudecircncia que eacute

uma das qualidades morais que compotildeem o ἦθος do orador a partir da qual ele estaraacute

apto a dar conselhos razoaacuteveis e pertinentes possui um componente dianoeacutetico mas natildeo

pode ser um conhecimento cientiacutefico stricto sensu nem uma arte pois o que acontece no

horizonte das accedilotildees humanas pode ser sempre de outra maneira (Eacutet Nic 1140b 1-5)

Apesar disso natildeo eacute possiacutevel nenhuma argumentaccedilatildeo nem decisatildeo verossiacutemil se o orador

natildeo for dotado de prudecircncia

A prudecircncia faz os agentes morais agirem tendo em vista um fim o qual se

identifica em uacuteltima instacircncia com o bem supremo ou a felicidade No entanto a

prudecircncia natildeo se relaciona diretamente com o fim da accedilatildeo o qual natildeo pode ser objeto de

deliberaccedilatildeo mas com os meios de atingi-lo E aquele que possui a prudecircncia sabe-se

numa deliberaccedilatildeo comprometida com o fim uacuteltimo da felicidade e o homem prudente

(φρόνιμος) eacute capaz de calcular de forma correta a fim de chegar a este objetivo final (Ibid

1140a 28-30) Mediante a prudecircncia chega-se em parte ao bem do indiviacuteduo em parte ao

bem da comunidade poliacutetica razatildeo pela qual Peacutericles eacute considerado por Aristoacuteteles o

modelo de φρόνιμος porque ele foi capaz de ver as coisas que eram boas para si proacuteprio

em particular e para os homens em geral (Ibid 1140b 5-10) O homem prudente

portanto eacute aquele que tem o poder de deliberar corretamente acerca das coisas que satildeo

boas e vantajosas tanto para si como para o viver bem em geral

Aristoacuteteles enfatiza que a investigaccedilatildeo sobre as accedilotildees humanas somente seraacute

adequada se contiver tanta exatidatildeo quanto comportar o assunto haja vista que natildeo se

deve exigir precisatildeo cientiacutefica em todos os raciociacutenios O acircmbito do raciociacutenio eacutetico

constitui-se sobre o sistema de opiniotildees geralmente aceitas e sobre o que sucede a maior

parte das vezes com o reconhecimento da comunidade poliacutetica ou pelo menos dos

homens mais eminentes E as opiniotildees que constituem o mundo cultural satildeo justamente

os valores que a arte retoacuterica leva em consideraccedilatildeo em suas anaacutelises e no seu poder de

persuasatildeo e nesse aspecto retoacuterica e eacutetica satildeo disciplinas intimamente relacionadas

No entanto quando se examina as accedilotildees humanas parece impossiacutevel detectar de

forma definitiva e cabal a distinccedilatildeo entre a coragem e a audaacutecia ou entre a generosidade

e o esbajamento pois a justa medida entre as qualidades em consideraccedilatildeo natildeo eacute

rigidamente aritmeacutetica ela difere de uma pessoa para outra depende dos temperamentos

de cada um e das circunstacircncias envolvidas Mas eacute justamente esta obscuridade que

possibilita ao orador judicial dotado de prudecircncia apresentar como corajoso aquele que eacute

acusado de ser audacioso ou generoso aquele que eacute considerado esbanjador e vice-versa

sem ser confundido com o sofista cuja motivaccedilatildeo natildeo estaria vinculada a interesses eacutetico-

poliacuteticos mas somente agraves disputas eriacutesticas Sendo assim Aristoacuteteles natildeo considera um

orador virtuoso enquanto ele natildeo optar por agir em conformidade com o que a virtude

aconselha Mantendo este criteacuterio ele aconselha ao orador que suas accedilotildees se manifestem

como resultado de uma προαίρεσις ou seja uma escolha moral bem intencionada

Conveacutem tambeacutem salientar que Aristoacuteteles utiliza a palavra cacircnone (κανών) para

caracterizar a pessoa virtuosa (σπουδαῖος) cujos sentimentos e juiacutezos estatildeo nesta

condiccedilatildeo Assim o que distinguiria o orador dotado de prudecircncia daquele que natildeo o eacute

seria sua capacidade de ver o que eacute verdadeiro em cada caso sendo ele proacuteprio um κανών

ou seja um padratildeo ou medida desses casos (Ibid 1113a 30-1113b 1) Ele tambeacutem declara

que quando coisas vis e injustas parecem agradaacuteveis para alguns indiviacuteduos isso se deve

ao tipo de defeito na parte desiderativa da alma que ao mesmo tempo evidencia que seu

possuidor natildeo possui um caraacuteter virtuoso razatildeo pela qual ele constitui um κανών ruim

para distinguir adequadamente as coisas que satildeo boas para si proacuteprio em particular e

para os homens em geral (Ibid 1176a 16-19) Nessa perspectiva se o orador natildeo possuir

genuiacutena virtude de caraacuteter o seu juiacutezo moral sobre as coisas natildeo seraacute correto ou confiaacutevel

assim como a visatildeo que natildeo pode distinguir corretamente os objetos se for afetada por

alguma doenccedila E uma vez que ele tenha um caraacuteter virtuoso o mundo dos prazeres das

dores e dos valores em geral seraacute imediatamente acessiacutevel e compreensiacutevel como o das

cores dos sons e dos objetos perceptiacuteveis para aquele que possui os oacutergatildeos dos sentidos

em boas condiccedilotildees

De fato as observaccedilotildees de Aristoacuteteles sobre o orador como aquele que eacute capaz de

considerar idecircnticas certas qualidades existentes e as que estatildeo proacuteximas sugerem que

ele natildeo tivesse uma visatildeo muito elevada da moral mas estaacute hipoacutetese estaacute longe de

corresponder agraves suas convicccedilotildees No seu comentaacuterio agrave Retoacuterica Forbes I Hill procura

certificar que o fato do orador poder tirar proveito de qualidades semelhantes no sentido

mais favoraacutevel natildeo comprometeria a elevada visatildeo moral do Estagirita Para tanto ele

utiliza o exemplo do soldado que saiu de suas proacuteprias linhas sem nenhuma necessidade

e conseguiu matar trecircs soldados inimigos Em sua perspectiva o que definiria para

Aristoacuteteles a conduta do soldado seria a intenccedilatildeo moral que o fez lutar haja vista que ele

percebeu o perigo que corria No entanto a resposta agrave pergunta se o soldado escolheu

realizar a accedilatildeo porque era um homem corajoso ou simplesmente porque desejava a gloacuteria

eacute uma empreitada que ultrapassa a capacidade humana Eacute possiacutevel entatildeo graccedilas agrave

limitada condiccedilatildeo epistecircmica dos seres humanos nomear os fatos de uma maneira ou de

outra segundo a conveniecircncia Contudo eacute mister levar em consideraccedilatildeo que a

superioridade eacutetica da visatildeo aristoteacutelica em comparaccedilatildeo com a dos sofistas consiste na

defesa de um modelo correto de escolha moral (MURPHY 1989 60)

Aristoacuteteles tambeacutem admite a existecircncia de uma capacidade chamada ldquoδεινότηςrdquo

cujo termo pode ser traduzido por ldquoespertezardquo sem a qual a prudecircncia natildeo poderia

subsistir Por isso diz-se que tanto os prudentes quanto os maldosos satildeo dotados de

esperteza No entanto quando a esperteza objetiva alcanccedilar uma finalidade eacutetica associa-

se agrave prudecircncia e por conseguinte torna-se louvaacutevel haja vista seu comprometimento com

o bem comum mas isoladamente ela designa um poder de juiacutezo tendencialmente egoiacutesta

e imoral Portanto esta tecircnue diferenccedila entre a esperteza associada agraves causas justas e a

esperteza engajada em vis propoacutesitos parece ser mais um razoaacutevel motivo para ressalvar

Aristoacuteteles de todas as velhacarias e desonestidades que mancharam a reputaccedilatildeo dos

sofistas (Eacutet Nic 1144a 20-35)

A esperteza eacute o elemento que como o resultado de uma deliberaccedilatildeo correta

assegura a promoccedilatildeo do fim incondicional da accedilatildeo qual seja a felicidade (geral) pois o

que faz a prudecircncia boa em calcular eacute justamente a esperteza E se a meta a que algueacutem

visa eacute nobre seu caraacuteter deve ser virtuoso e por conseguinte louvaacutevel posto que a virtude

de caraacuteter eacute o que assegura a escolha deliberada correta de fins nobres e louvaacuteveis (Ibid

1144a 9-10) Entretanto uma pessoa imoral e amante de si proacutepria (φίλαυτος) eacute algueacutem

que toma quanto puder de dinheiro honras prazeres corporais e outros bens de

competiccedilatildeo que satildeo os fins particulares da avidez em detrimento do bem comum e

independente de a quem a pertenccedilam (Ibid 1168b 15-20) Todavia aleacutem da vinculaccedilatildeo

entre a prudecircncia e a esperteza na visatildeo de Troels Engberg-Pedersen haveria tambeacutem

uma vinculaccedilatildeo entre a esperteza e a retoacuterica de Aristoacuteteles dado que ambas satildeo por

natureza habilidades moralmente neutras A arte retoacuterica envolveria pois conhecimentos

especiacuteficos e a habilidade de encontrar argumentos persuasivos sobre os assuntos eacutetico-

poliacuteticos No entanto ela natildeo pressupotildee por si soacute qualquer caraacuteter moral particular ou

motivaccedilatildeo de modo que a habilidade retoacuterica eacute formalmente idecircntica agrave esperteza quer

dizer uma habilidade neutra que ao inclinar-se para objetivos moralmente bons pode

tornar-se louvaacutevel caso contraacuterio pode culminar na perversatildeo e na vilania (RORTY

1997 120)

De acordo com John B Morrall a interconexatildeo entre a eacutetica e a poliacutetica eacute

demonstrada pela preeminecircncia em ambas da faculdade da prudecircncia Para ele a eacutetica se

preocupa em fazer asserccedilotildees que podem servir de guia uacutetil para a aquisiccedilatildeo e preservaccedilatildeo

de tal faculdade a exemplo da utilizaccedilatildeo de uma posiccedilatildeo central entre opostos como regra

de medida No entanto em sua perspectiva Aristoacuteteles insiste que o meio-termo natildeo se

identifica com uma foacutermula maacutegica pelo contraacuterio ele conteacutem todas as incertezas do

mundo do conhecimento praacutetico juntamente com os perigos especiacuteficos que a posse da

livre escolha atribui ao comportamento humano por meio de um resiacuteduo final de

imprevisibilidade A prudecircncia que eacute a virtude suprema tanto na poliacutetica como na eacutetica

teria por escopo encontrar a soluccedilatildeo mais judiciosa e apropriada possiacutevel em meio a um

milhatildeo de circunstacircncias variaacuteveis e imprevisiacuteveis Desse modo no acircmbito das accedilotildees

humanas natildeo seria possiacutevel formular regras riacutegidas jaacute que a soluccedilatildeo estaria no

treinamento do intelecto praacutetico mediante a experiecircncia adquirida e o haacutebito de escolher

o curso correto de accedilatildeo em cada caso especiacutefico que ocorra (MORRALL 2000 42-43)

Morrall tambeacutem salienta que embora Aristoacuteteles rejeite o relativismo (absoluto)

na eacutetica e denuncie os sofistas como guias poliacuteticos o atributo fundamental do seu

pensamento no que se refere agrave poliacutetica consiste na adoccedilatildeo de um tipo mitigado de

relativismo que eacute ditado tanto pela flexibilidade da mateacuteria tratada como pelos

instrumentos humanos que atuam sobre ela Em sua opiniatildeo este relativismo se deve em

certa medida agrave influecircncia do ensino meacutedico que Aristoacuteteles recebera A conexatildeo de

Aristoacuteteles com a tradiccedilatildeo meacutedica de Hipoacutecrates que precedeu o seu periacuteodo na

Academia de Platatildeo teria uma forte afinidade com a corrente de ensinamento sofista pois

ambos os movimentos tinham o programa de abandonar as explicaccedilotildees abstratas e gerais

para os fenocircmenos e em vez disso concentrar-se no comportamento observaacutevel dos

fenocircmenos e nas previsotildees baseadas nesse conhecimento empiacuterico Morrall alude ao

tratado chamado Da Medicina Antiga no qual o meacutedico Hipoacutecrates sustenta que em

mateacuteria de sauacutede nada eacute absolutamente bom nem absolutamente mau de modo que o

valor dos alimentos remeacutedios e outros meios de sauacutede seria condicionado pelo estado de

cada indiviacuteduo uma refeiccedilatildeo de carne pode ser boa para um homem no gozo de perfeita

sauacutede e pode ser inadequada para um doente etc (Ibid 2000 44 76)

Com efeito a concepccedilatildeo de um tipo especial de relativismo aparece de maneira

expliacutecita no pensamento eacutetico do Estagirita quando ele fala a respeito das coisas que satildeo

justas de acordo com as convenccedilotildees e a conveniecircncia comparando-as agrave unidades de

medida (τὰ δὲ κατὰ συνθήκην καὶ τὸ συμφέρον τῶν δικαίων ὅμοιά ἐστι τοῖς μέτροις) As

medidas de vinho e cereais natildeo satildeo as mesmas em todos os lugares mas maiores nos

mercados por atacado ao passo que satildeo menores no varejo Semelhantemente as coisas

que natildeo satildeo justas por natureza mas meramente por decisatildeo humana natildeo satildeo as mesmas

em todos os lugares (ὁμοίως δὲ καὶ τὰ μὴ φυσικὰ ἀλλ᾽ ἀνθρώπινα δίκαια οὐ ταὐτὰ

πανταχοῦ) Isto tambeacutem se aplicaria agraves constituiccedilotildees as quais natildeo satildeo as mesmas em toda

parte (ἐπεὶ οὐδ᾽ αἱ πολιτεῖαι ἀλλὰ μία μόνον πανταχοῦ κατὰ φύσιν ἡ ἀρίστη) A despeito

disso Aristoacuteteles estaacute longe de ser considerado um relativista ordinaacuterio pois ele se

distingue dos sofistas por afirmar (Eacutet Nic 1135a 1-8) a existecircncia de um tipo de

constituiccedilatildeo uacutenica em todo lado que eacute a melhor de todas por estar fundada na justiccedila por

natureza cujo sentido eacute uacutenico e universal (τῶν δὲ δικαίων καὶ νομίμων ἕκαστον ὡς τὰ

καθόλου πρὸς τὰ καθ᾽ ἕκαστα ἔχει)

Conforme jaacute verificamos o sofista Goacutergias define a arte retoacuterica como πειθοῦς

δημιουργός ou seja ela eacute artiacutefice ou a criadora da persuasatildeo razatildeo pela qual seria capaz

de persuadir pelo discurso a despeito de qualquer assunto52 os juiacutezes no tribunal os

conselheiros no Conselho os membros da Assembleia e em toda e qualquer reuniatildeo de

natureza poliacutetica (Goacuterg 452e) Goacutergias tambeacutem assevera que todos os especialistas que

natildeo possuem a habilidade retoacuterica de persuadir satildeo menos poderosos do que aqueles que

52 Conforme sugere James J Murphy a concepccedilatildeo gorgiana segundo a qual a teacutecnica retoacuterica possui intrinsecamente a eficaacutecia de persuadir qualquer um sobre qualquer assunto jaacute estava em germe na retoacuterica de Coacuterax Este com efeito teria manifestado uma extrema confianccedila no seu meacutetodo retoacuterico ao propor a seu disciacutepulo Tiacutesias que pagasse por suas aulas somente apoacutes obter alguma vitoacuteria no tribunal Tiacutesias teria de pagar pelas aulas de Coacuterax somente se vencesse caso contraacuterio estaria desobrigado do pagamento Tiacutesias natildeo querendo pagar pelas aulas levanta um processo contra o proacuteprio Coacuterax sustentando que nada deve Este foi o primeiro processo de Tiacutesias Se este porventura ganhasse o processo entatildeo natildeo teria de pagar pelas aulas mas se perdesse natildeo pagaria da mesma forma pois a derrota provaria que as aulas de Coacuterax natildeo foram eficientes para habilitaacute-lo a persuadir qualquer um sobre qualquer assunto Coacuterax por sua vez constroacutei um contra-argumento se Tiacutesias ganhar o processo teraacute de pagar pelas aulas segundo o acordo feito entre eles Perdendo o processo teraacute de pagar consoante a decisatildeo dos juiacutezes (MURPHY 1989 15)

a possuem de tal modo que por meio do poder do discurso seria possiacutevel submeter

qualquer indiviacuteduo agrave condiccedilatildeo de escravo No Elogio de Helena ele declara que o λόγος

eacute um grande e soberano senhor uma espeacutecie de encantador ou de mago que nenhum ser

humano eacute capaz de resistir (El Hel sect 3) Aliaacutes a crenccedila no poder irrestrito da persuasatildeo

era tal entre os sofistas a ponto de Polo de Agrigento (que era disciacutepulo de Goacutergias)

afirmar que os oradores haacutebeis podiam como os tiranos fazer com que condenassem agrave

morte agrave confiscaccedilatildeo ou ao exiacutelio quem lhes desagradasse (Goacuterg 469c)

Entretanto para o Estagirita o objetivo da retoacuterica natildeo se reduz ao simples poder

de persuadir mas fundamentalmente eacute a arte de achar os meios de persuasatildeo que cada

caso comporta tal como acontece em todas as outras artes Para ele natildeo eacute funccedilatildeo da

medicina dar sauacutede ao doente mas avanccedilar o mais possiacutevel na direccedilatildeo da cura uma vez

que se pode cuidar bem dos que jaacute natildeo estatildeo em condiccedilotildees de recuperar a sauacutede (Ret

1355b 13-19) O meacutedico (ἰατρὸς) por exemplo possui menos seguranccedila do que faz pois

ele nada pode realizar para os doentes incuraacuteveis nem mesmo aos demais pacientes pode

prometer a cura (a natildeo ser que se comporte como um charlatatildeo) mas certamente pode

propiciar a eles todas as oportunidades de obtecirc-la De modo semelhante o bom orador

natildeo eacute aquele que promete a vitoacuteria a qualquer custo mas eacute aquele que encontra para a sua

causa todas as possibilidades de obter a vitoacuteria estando cocircnscio de que o seu discurso

possui limites que natildeo podem ser superados53

Nos Toacutepicos Aristoacuteteles natildeo define o orador como aquele que eacute capaz de persuadir

qualquer um sobre qualquer assunto mas sim como aquele que pode sempre ver o que

seraacute persuasivo nas diversas circunstacircncias sem nada omitir (Toacutep 149b 25-28) E

quando o orador possui uma compreensatildeo completa de seu meacutetodo ele estaraacute apto a

descobrir os meios disponiacuteveis para persuadir os seus ouvintes poreacutem ele jamais teraacute o

poder de persuadir a todos Desse modo Aristoacuteteles nega a tese gorgiana da onipotecircncia

do discurso retoacuterico uma vez que o orador natildeo seria conforme aventa Goacutergias o portador

do discurso como ldquoum grande e soberano senhor que com um corpo pequeniacutessimo e

invisibiliacutessimo eacute capaz de operar diviniacutessimas accedilotildeesrdquo (El Hel sect 8)

A perspectiva aristoteacutelica acerca da arte retoacuterica eacute ao mesmo tempo modesta e

realista porquanto rejeita que a retoacuterica possui o poder absoluto para convencer qualquer

53 Platatildeo tambeacutem enfatiza as reais limitaccedilotildees do poder da retoacuterica Agrave proposta de Polemarco de que Soacutecrates e Glauco deveriam se provar mais fortes que o grupo dele ou entatildeo permanecer no Pireu Soacutecrates sugere a alternativa da persuasatildeo No entanto Polemarco declara que a persuasatildeo natildeo teraacute nenhum efeito nos ouvintes que natildeo estatildeo dispostos ao ouvir (Rep 327c)

um sobre qualquer assunto e nega que a palavra persuasiva conforme defendia Goacutergias

eacute um senhor absoluto sobre todas as coisas Tanto Goacutergias como Aristoacuteteles tecem elogios

agrave arte retoacuterica mas enquanto Goacutergias enaltece o poder do discurso sobre os ouvintes o

Estagirita sublinha sua utilidade eacutetico-poliacutetica Por essa razatildeo Aristoacuteteles natildeo a apresenta

como o expediente a partir do qual eacute possiacutevel dominar os ouvintes agrave maneira de um tirano

mas sim como o meio a partir do qual eacute possiacutevel defender a verdade e a justiccedila na cidade

Ambos tambeacutem admitem que pelo fato de ser neutra ela pode ser utilizada

desonestamente o que em nada subtrai o seu valor mas se Goacutergias e Aristoacuteteles falam da

mesma coisa certamente natildeo falam da mesma maneira

Com efeito a arte retoacuterica desenvolvida por Aristoacuteteles se distingue

significativamente dos tratados escritos por seus predecessores pois ao redigirem seus

manuais eles teriam se afastado do que o Estagirita considera o mais importante para a

persuasatildeo ndash a argumentaccedilatildeo atraveacutes do entimema (ἐνθύμημα) e do exemplo

(παράδειγμα) Para ele os que compuseram tratados de retoacuterica (incluindo obviamente

muitos sofistas) ocuparam-se somente de uma parte desta arte posto que soacute os

argumentos retoacutericos satildeo parte essencial dela e tudo o resto seria acessoacuterio Assim sendo

os predecessores de Aristoacuteteles nada diziam dos entimemas que satildeo o corpo da prova

(σῶμα τῆς πίστεως) antes dedicavam-se a maior parte dos seus tratados a questotildees

exteriores ao assunto tais como o ataque verbal o apelo agrave piedade o apelo agrave ira e outras

paixotildees semelhantes a estas que natildeo visam o assunto mas apenas manipular

emocionalmente o juiz (Ret 1354a 16-23)

Ao mesmo tempo em que Aristoacuteteles defendia uma retoacuterica racional com base na

demonstraccedilatildeo teacutecnica do verossiacutemil Goacutergias e seus disciacutepulos teorizavam e praticavam

uma retoacuterica elocutiva e emocional Este tipo de retoacuterica valorizava no discurso natildeo os

argumentos racionais mas o ritmo a harmonia o tom de voz sobretudo os efeitos

emocionais do discurso e a seduccedilatildeo irracional que a palavra habilmente usada exerce

sobre a alma dos ouvintes O discurso retoacuterico que Goacutergias designa por λόγος teria

fundamentalmente a capacidade de suscitar o medo a calma a alegria afastar a dor e ateacute

estimular a compaixatildeo (El Hel sect 8) Mediante o discurso retoacuterico seria possiacutevel ao

orador suscitar o medo repleto de espanto a compaixatildeo que provoca laacutegrimas abundantes

e um sentimento de nostalgia que afeta o espiacuterito dos ouvintes (Ibid sect 9)

Outrossim o sofista Goacutergias desenvolveu para a retoacuterica uma expressatildeo linguiacutestica

eloquente excedendo-se no uso das figuras de linguagem transformando-a numa

composiccedilatildeo erudita e ritmada no niacutevel esteacutetico da poesia O cuidado de Goacutergias com o

estilo foi o que conferiu a ele a fama de haver misturado a prosa com a poesia de tal

modo que o seu estilo chamado de gorgiazein (γοργιαζειν) foi considerado pelos antigos

como sinocircnimo de prosa poeacutetica incluindo o proacuteprio Aristoacuteteles (Ret 1404a 34-36) E a

principal razatildeo pela qual ele optou pela linguagem poeacutetica e natildeo pela linguagem corrente

eacute porque aquela possui mais eficazmente a capacidade de comover os ouvintes

Dimos Spatharas destaca que na concepccedilatildeo retoacuterica de Goacutergias existem dois tipos

de discursos que satildeo aduzidos como manifestaccedilatildeo do poder do λόγος a poesia e o

encantamento A poesia eacute descrita grosso modo como o discurso com meacutetrica e eacute

justamente esta caracteriacutestica que a distingue de todos os outros tipos de discurso Para

ele a expressatildeo poeacutetica de Goacutergias natildeo seria fruto de um mero capricho mas teria sido

desenvolvida para atender a uma crescente necessidade pelo discurso persuasivo Goacutergias

estaria cocircnscio de que fundara uma nova e sofisticada ldquoprosardquo similar agrave habilidade que a

poesia possui de seduzir e de moldar a alma dos ouvintes E as emoccedilotildees suscitadas pela

retoacuterica poeacutetica de Goacutergias seguiria regularmente o padratildeo utilizado no Elogio de Helena

pois ao entrar na alma dos ouvintes o discurso poeacutetico possuiria o poder de suscitar o

medo a compaixatildeo e uma seacuterie de outras emoccedilotildees Ademais os sinais psicoloacutegicos

atraveacutes dos quais a alma expressaria suas emoccedilotildees seriam as laacutegrimas e o temor

manifestado pela audiecircncia Para Spatharas o segundo exemplo do poder exercido pelo

λόγος adviria do domiacutenio do encantamento que sob o ponto de vista do senso comum

significa que as palavras exercem o poder de conduzir algueacutem a agir de uma maneira que

natildeo corresponde agraves suas intenccedilotildees originais Quando o poder de encantamento do λόγος

alcanccedila a opiniatildeo da alma esta seria encantada e uma vez persuadida seria levada a

mudar suas opiniotildees ou seja ela adotaria pontos de vista que anteriormente recusava

Sendo assim ao ser seduzida pelo λόγος a alma estaria alienada em relaccedilatildeo a si mesma

e suas accedilotildees estariam de acordo com o comando proveniente do encantamento

(SPATHARAS 2001 100-101)

Na visatildeo de Aristoacuteteles a funccedilatildeo da arte retoacuterica permanece sendo a persuasatildeo

puacuteblica poreacutem os meios de persuasatildeo natildeo devem ser redutiacuteveis ao apelo emocional e agrave

expressatildeo enunciativa ao inveacutes disso devem caracterizar-se essencialmente por formas

de argumentaccedilatildeo Sendo assim em oposiccedilatildeo a Goacutergias a concepccedilatildeo de Aristoacuteteles

estabelece que a retoacuterica constitui a arte da comunicaccedilatildeo racional e natildeo do puro

encantamento ou da pura sugestatildeo emotiva Aristoacuteteles tambeacutem critica Goacutergias por

vincular agrave retoacuterica a expressatildeo poeacutetica que este teria originalmente inventado (Ret 1404a

30-39)

Os poetas foram os primeiros como seria natural a dar um impulso a este aspecto Efetivamente palavras satildeo imitaccedilotildees e a voz eacute de todos os nossos oacutergatildeos o mais apropriado agrave imitaccedilatildeo Por isso as artes entatildeo estabelecidas foram a rapsoacutedia e a representaccedilatildeo teatral aleacutem de outras mais E uma vez que os poetas embora dizendo coisas fuacuteteis pareciam obter renome graccedilas agrave sua expressatildeo por esta mesma razatildeo foi um tipo de expressatildeo poeacutetica o primeiro a surgir como a de Goacutergias E ainda agora muitas pessoas sem instruccedilatildeo pensam que estes oradores os falam da forma mais bela

Para o Estagirita a expressatildeo proacutepria da poesia distingue-se da expressatildeo que eacute

apropriada ao discurso retoacuterico a qual se caracteriza por empregar a linguagem na sua

forma corrente e usual Aliaacutes seria ridiacuteculo empregar a extravagante expressatildeo poeacutetica

no discurso retoacuterico em detrimento da linguagem corrente e usual cuja principal

caracteriacutestica eacute a σαφής ou seja a clareza (Ibid 1404a 34-48) Desse modo a virtude

suprema da expressatildeo enunciativa (λέξις) a qual diz respeito agrave maneira pela qual o

conteuacutedo do discurso deve ser apresentado ao auditoacuterio eacute a clareza (ἔστω οὖν ἐκεῖνα

τεθεωρημένα καὶ ὡρίσθω λέξεως ἀρετὴ σαφῆ εἶναι) porque se no discurso retoacuterico natildeo

se comunicar algo com nitidez e inteligibilidade natildeo seraacute possiacutevel cumprir a sua funccedilatildeo

proacutepria qual seja provocar a adesatildeo dos ouvintes agraves teses que se lhes apresentam ao

consentimento atraveacutes de argumentos racionais (Ibid 1404b 1-5) Posto que a funccedilatildeo

proacutepria da linguagem consiste em remeter adequadamente para aquilo que significa a

clareza seraacute uma condiccedilatildeo imposta ao discurso retoacuterico O refinamento da expressatildeo

poeacutetica comum a exemplo das metaacuteforas distantes de Goacutergias (Ibid 1406b 8-16) aleacutem

de ser inadequado na arte retoacuterica por fazer o discurso parecer artificial e teacutecnico tende

a suprimir deste a clareza Portanto o objetivo maior do orador eacute esclarecer os ouvintes

acerca da investigaccedilatildeo a que se procede (Ibid 1357a 24) e instruiacute-los sobre o assunto

em discussatildeo a fim de que possam elaborar o melhor julgamento

Tendo em vista a importacircncia dada por Aristoacuteteles ao uso da linguagem na sua

forma corrente e usual eacute pertinente a anaacutelise de Maria F S Francisco sobre este assunto

Observamos que a expressatildeo poeacutetica de Goacutergias teria sido desenvolvida para atender a

uma crescente necessidade pelo discurso persuasivo mas conforme a interpretaccedilatildeo de

Francisco o Estagirita acharia pouco persuasivo o discurso que eacute veiculado conforme a

expressatildeo poeacutetica Ela destaca que na retoacuterica de Aristoacuteteles a limitaccedilatildeo na elevaccedilatildeo do

vocabulaacuterio deve ser levada muito a seacuterio pelo orador do contraacuterio o seu discurso perderaacute

o poder de persuasatildeo e natildeo obteraacute a adesatildeo dos ouvintes em relaccedilatildeo agrave opiniatildeo defendida

A exigecircncia por parte de Aristoacuteteles da escolha de vocabulaacuterio iria ao encontro de uma

expectativa do ouvinte em relaccedilatildeo ao orador o ouvinte espera que assuntos semelhantes

aos da vida comum sejam tratados e do ponto de vista lexical da mesma forma como se

faz na linguagem da vida cotidiana ele ainda espera que a fala do orador seja apropriada

ou verossiacutemil como condiccedilatildeo para lhe parecerem persuasivos seus argumentos Sendo

assim a despeito das opiniotildees sensatas defendidas pelo orador se ele natildeo as apresentar

com o vocabulaacuterio adequado proacuteximo da linguagem comum seu discurso pareceraacute pouco

convincente e com pouca probabilidade de ganhar a adesatildeo do auditoacuterio (FRANCISCO

1999 30)

Na retoacuterica de Aristoacuteteles o perfil proacuteprio da expressatildeo enunciativa consiste no fato

de ser delineado por referecircncia agrave poesia e ao discurso ordinaacuterio em relaccedilatildeo a cada um

dos quais verifica-se aproximaccedilotildees e distanciamentos No decorrer de sua exposiccedilatildeo

sobre a λέξις Aristoacuteteles faz inuacutemeras alusotildees agrave poesia e a linguagem do homem comum

que adquirem desse modo o papel de balizas situadas em extremos opostos a meia

distacircncia das quais se localiza o campo proacuteprio da expressatildeo retoacuterica Conforme

examinamos um dos princiacutepios fundamentais da eacutetica aristoteacutelica eacute o μεσοτeacuteς ou seja

ou o meio-termo ou a justa medida por esse motivo a accedilatildeo correta do ponto de vista eacutetico

deve sempre evitar os extremos tanto o excesso quanto a falta Todavia o mesmo

princiacutepio se aplica agrave arte retoacuterica pois tendo em vista a expressatildeo enunciativa o orador

deve perseguir a justa medida entre dois extremos viciosos natildeo deve utilizar uma

linguagem demasiadamente rasteira ou trivial tampouco uma linguagem acima do seu

valor mas deve visar aquilo que eacute adequado ou seja uma linguagem que veicule nomes

e verbos que satildeo ldquoproacutepriosrdquo Os nomes e os verbos proacuteprios que produzem clareza ao

discurso satildeo aqueles que designam cada objeto em linguagem comum por exemplo num

discurso dirigido a um puacuteblico comum seria mais adequado utilizar o verbo ldquocomprarrdquo

em vez de ldquomercarrdquo ou a palavra ldquoroupardquo em vez de ldquoindumentaacuteriardquo O discurso poeacutetico

por sua vez natildeo produz uma expressatildeo corrente mas ornamentada Eacute manifesto que a

expressatildeo poeacutetica natildeo eacute rasteira ou trivial mas estaacute longe de ser apropriada para um

discurso de prosa (Ret 1404b 5-12) Assim aqueles que se expressam poeticamente de

forma inapropriada introduzem no discurso retoacuterico o ridiacuteculo e o friacutevolo e em virtude

da esterilidade dessa forma de expressatildeo erram por falta de clareza Todavia conveacutem

sublinhar que nem todos os recursos linguiacutesticos que caracterizam a expressatildeo poeacutetica

satildeo rejeitados por Aristoacuteteles

Dos nomes e dos verbos de que o discurso eacute composto devem utilizar-se

pouquiacutessimas vezes e em situaccedilotildees muito especiacuteficas as palavras raras ou seja os

termos inusitados e obsoletos de difiacutecil compreensatildeo para o ouvinte comum Outrossim

os termos compostos comumente utilizados por Goacutergias como ldquoengenhosos-no-

mendigarrdquo ou ldquojurando-em-falso falsordquo e ldquojurando-com-sinceridaderdquo (Ibid 1405b 50-

1406a 1) Aristoacuteteles ainda recomenda que devem ser evitados no discurso retoacuterico por

serem demasiadamente poeacuteticos a utilizaccedilatildeo de glosas tal como a de Liacutecofron que

apelida Xerxes de ldquohomem-monstrordquo (Ibid 1406a 8-10) Da mesma forma os epiacutetetos

extensos inoportunos ou muito repetidos por exemplo em vez de dizer ldquocorrendordquo diz-

se ldquocorrendo com o impulso da almardquo ou em vez de dizer ldquoinspiraccedilatildeo das Musasrdquo diz-

se ldquorecebendo da Natureza a inspiraccedilatildeo das Musasrdquo (Ibid 1406a 30-32) Deve-se

tambeacutem evitar as metaacuteforas quando natildeo satildeo claras por derivarem de algo muito afastado

tal como praticava Goacutergias ao formular ldquosemeaste vergonhosamente improficuamente

ceifasterdquo e coisas deste jaez (Ibid 1406b 13-15)

Eacute manifesto que o sofista Goacutergias eacute censurado por Aristoacuteteles pela ecircnfase de sua

expressatildeo poeacutetica que carecia de simplicidade e clareza a qual natildeo objetivava provar

teses de maneira loacutegica e direta mas aspirava apenas os efeitos pateacuteticos do discurso e a

seduccedilatildeo irracional que a palavra habilmente manipulada eacute capaz de exercer sobre a

audiecircncia Todavia natildeo somente Goacutergias mas os sofistas em geral procuravam persuadir

sua audiecircncia apelando para os desejos puramente irracionais (άλογοι επιθυμίαι) da alma

humana que para o Estagirita satildeo todos aqueles que natildeo procedem de um ato preacutevio da

compreensatildeo Satildeo desse tipo todos os que se dizem ser naturais como os que procedem

do corpo (σώματος ὑπάρχουσαι) Dentre os desejos naturais destacam-se o desejo por

alimento a sede e a fome o desejo relativo a cada espeacutecie de alimento os desejos ligados

ao gosto e aos prazeres sexuais e em geral os desejos relativos ao tato ao olfato ao

ouvido e agrave vista Entretanto em relaccedilatildeo aos desejos racionais (μετὰ λόγου) os quais

procedem de um ato preacutevio do entendimento o Estagirita recomeda ao orador priorizaacute-

los em sua argumentaccedilatildeo visto que existem muitas coisas que as pessoas desejam adquirir

simplesmente porque ouviram falar delas e foram racionalmente persuadidas de que satildeo

agradaacuteveis (Ibid 1370a 24-34) Para tanto o bom orador precisa compreender e aplicar

a estrutura loacutegica do argumento retoacuterico constituiacuteda pelo entimema e pelo exemplo que

satildeo os dispositivos fundamentais para o exerciacutecio da arte retoacuterica

De acordo com a anaacutelise de E M Cope a argumentaccedilatildeo atraveacutes do entimema (e

do exemplo) designa o essencial no discurso retoacuterico e tudo o mais pode ser considerado

acessoacuterio porquanto todos os tipos de provas indiretas ou argumentos fora do assunto

seriam secundaacuterios como as roupas ou os ornamentos que cobrem um corpo Isto posto

o entimema na arte retoacuterica de Aristoacuteteles seria equivalente ao ldquocorpordquo que eacute o meio

artiacutestico de provar certas teses de maneira loacutegica e direta Para ele a expressatildeo aristoteacutelica

σῶμα τῆς πίστεως que traduzida quer dizer o ldquocorpo da provardquo significaria a substacircncia

ou a essecircncia da arte em detrimento a tudo aquilo que eacute considerado acessoacuterio no discurso

retoacuterico54 Desse modo a arte retoacuterica para Aristoacuteteles consistiria fundamentalmente no

procedimento de provocar ou aumentar a adesatildeo dos ouvintes agraves teses que se lhes

apresentam ao assentimento atraveacutes de argumentos racionais (λόγος) enquanto que o

caraacuteter do orador (ἦθος) o apelo agraves emoccedilotildees (πάθος) e a expressatildeo enunciativa (λέξις)

deveriam ser empregados somente como recursos auxiliares

Aristoacuteteles explicita que aqueles que anteriormente compuseram tratados de

retoacuterica ocuparam-se de uma pequena parte desta arte haja vista que somente os

argumentos retoacutericos fazem parte dela e tudo o mais seriam considerados acessoacuterios Ele

prossegue afirmando que seus predecessores nada escreveram acerca dos entimemas que

significa o corpo da prova em vez disso dedicaram-se amiuacutede a questotildees extriacutensecas ao

assunto (Ibid 1354a 16-21) E ao censuraacute-los por se concentrarem principalmente no

estiacutemulo de uma resposta emocional Aristoacuteteles estaacute declarando que eles apenas

escreveram sobre uma pequena parte da arte retoacuterica o que natildeo implica obviamente na

sua total desconsideraccedilatildeo Com efeito em exceccedilatildeo do entimema e do exemplo tudo o

mais parece ser acessoacuterio (προσθήκη) dentre as provas artiacutesticas (πίστεις ἔντεχνοι) pois

embora despertar as emoccedilotildees possa ser eficiente para colocar a audiecircncia ao lado do

orador e a expressatildeo enunciativa uacutetil e necessaacuteria em virtude do baixo niacutevel intelectual

do auditoacuterio o seu estudo natildeo seria o elemento mais importante da retoacuterica de Aristoacuteteles

nem seria rigorosamente um modo de persuasatildeo porque os modos de persuasatildeo satildeo

formas de argumentaccedilatildeo Pode-se concluir entatildeo que no sistema retoacuterico de Aristoacuteteles

somente a demonstraccedilatildeo entimemaacutetica designa a substacircncia das provas artiacutesticas

Eacute manifesto que no meacutetodo retoacuterico desenvolvido por Aristoacuteteles o entimema

possui a prioridade mais alta enquanto que os elementos exteriores agrave demonstraccedilatildeo satildeo

54 Escreve E M Cope a este respeito (COPE 1867 160) ldquoOf enthymeme the form of syllogism which rhetoric employs in drawing its conclusions which is in fact lsquothe bodyrsquo the solid substantial matter of proof ndash to which all other kinds of indirect proof such as the influence of character or appeals to the feelings interests passions of judge or audience are subsidiary and subordinate standing to the other in the relation of mere adjuncts or external appendageshelliplike dress or ornaments to the personrdquo

considerados supeacuterfluos E dado que quase todos os assuntos concernentes a arte retoacuterica

relacionam-se com a opiniatildeo puacuteblica o orador precisa levar em conta os elementos

exteriores ao conteuacutedo do discurso natildeo porque este procedimento eacute justo mas porque

em termos pragmaacuteticos eacute algo necessaacuterio Ele ainda assegura que aquilo que deve ser

almejado num discurso (judicial) eacute a demonstraccedilatildeo do que eacute justo mais do que natildeo

desagradar ou agradar os ouvintes O correto eacute competir com os fatos por si soacute de forma

que os demais elementos exteriores agrave demonstraccedilatildeo poderiam ser dispensados Contudo

eles satildeo relevantes no discurso retoacuterico em virtude do baixo niacutevel intelectual do auditoacuterio

sem os quais natildeo seria possiacutevel persuadi-lo acerca do que eacute justo e verdadeiro (Ibid

1404a 1-10)

Ao assegurar que se conquista a persuasatildeo retoacuterica atraveacutes de trecircs meios ndash λόγος

ἦθος e πάθος ndash o Estagirita estabelece a disposiccedilatildeo das provas artiacutesticas em ordem de

importacircncia (Ibid 1356a 27-32) a comeccedilar pela demonstraccedilatildeo racional ligada ao

entimema e ao exemplo em relaccedilatildeo a qual se pode servir quem for capaz de formar

silogismos (συλλογίσασθαι δυναμένου) que eacute o mesmo que raciocinar logicamente E

visto que Aristoacuteteles afirma categoricamente que a demonstraccedilatildeo entimemaacutetica eacute o corpo

das provas artiacutesticas entatildeo esta prova possui preeminecircncia sobre as demais Logo abaixo

da prova por demonstraccedilatildeo mediante o entimema e o exemplo reside a prova ligada ao

caraacuteter do orador cuja finalidade consiste em teorizar sobre os caracteres e as virtudes

(θεωρῆσαι περὶ τὰ ἤθη καὶ περὶ τὰς ἀρετὰς) E sob esta repousa a que estaacute ligada ao apelo

emocional que se ocupa das paixotildees o que cada uma eacute as suas qualidades que origem

tecircm e como se produzem (περὶ τὰ πάθη τί τε ἕκαστόν ἐστιν τῶν παθῶν καὶ ποῖόν τι καὶ

ἐκ τίνων ἐγγίνεται καὶ πῶς)

Aristoacuteteles assegura que o meacutetodo artiacutestico (ἔντεχνος μέθοδος) eacute o que se refere agraves

provas por persuasatildeo (πίστεις) e a prova por persuasatildeo eacute uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo

(ἀπόδειξίς) pois os ouvintes satildeo mais eficazmente persuadidos quando entendem que

algo foi demonstrado (ἀποδεδεῖχθαι) Por isso o que Aristoacuteteles condena nos seus

predecessores consiste na ecircnfase dada aos discursos fora do assunto em questatildeo em

detrimento daquilo que eacute essencial na arte retoacuterica isto eacute a demonstraccedilatildeo da verdade ou

o que parece ser a verdade Dessarte os meios de persuasatildeo exteriores ao assunto se

configurariam num erro e mereceria sua reprovaccedilatildeo caso fossem empregados como o

principal meio de obter a persuasatildeo dos ouvintes (Ibid 1355a 5-1419-28) Aleacutem disso

Aristoacuteteles assegura que natildeo resta a menor duacutevida de que mateacuterias extriacutensecas ao assunto

satildeo descritas como artes por aqueles que definem outras coisas por exemplo o que deve

conter o proecircmio ou a narraccedilatildeo e cada uma das partes do discurso Ao ocuparem-se

dessas mateacuterias o escritores de manuais de retoacuterica natildeo se preocupavam senatildeo em como

poderiam criar no juiz uma certa disposiccedilatildeo emocional mas acerca das provas

propriamente artiacutesticas ou seja sobre aquilo que efetivamente torna o leitor haacutebil no uso

do entimema (ἐνθυμηματικός) eles natildeo produziram coisa alguma (Ibid 1354b 17)

Outra razatildeo que levou Aristoacuteteles a lanccedilar sua criacutetica contra seus predecessores foi

o fato deles privilegiarem um dos gecircneros da arte retoacuterica a saber o judicial (δικανικός)

e negligenciarem o gecircnero mais puro e nobre ou seja o deliberativo (συμβουλευτικός)

Embora o mesmo meacutetodo retoacuterico convenha tanto ao gecircnero judicial como ao

deliberativo e apesar da retoacuterica deliberativa ser mais nobre (καλλίονος) e mais uacutetil agrave

comunidade poliacutetica (πολιτικωτέρας) que a relativa a contratos os autores criticados por

Aristoacuteteles a desconsideravam e se esforccedilavam por elaborar a arte do discurso judicial

Na verdade isto ocorria porque eacute menos uacutetil dizer algo fora do assunto nos discursos

deliberativos e porque a retoacuterica poliacutetica eacute menos nociva que a judicial por ser de

interesse mais geral (κοινότερον) Outrossim os oradores criticados por Aristoacuteteles

primavam pelo gecircnero judicial porque nas cortes legais havia uma possibilidade maior de

se utilizar eficazmente de argumentos falaciosos a fim de influenciar a decisatildeo dos juiacutezes

No gecircnero deliberativo o ouvinte julga sobre assuntos que pessoalmente o afetam por

essa razatildeo aquele que aconselha soacute precisa demonstrar com exatidatildeo as suas teses Mas

nos discursos judiciais isso natildeo basta em vez disso existe toda a vantagem de cativar o

ouvinte pois os juiacutezes julgam sobre questotildees alheias e pelo fato de buscarem o seu

interesse e escutando parcialmente tendem satisfazer a vontade dos litigantes (Ibid

1354b 31-46)

Eacute manifesto pois que os oradores criticados por Aristoacuteteles (Ibid 1354a 19-23)

nada diziam dos entimemas que representam o corpo das provas artiacutesticas em vez disso

dedicavam-se a maior parte dos seus tratados a questotildees exteriores ao assunto (περὶ δὲ

τῶν ἔξω τοῦ πράγματος τὰ πλεῖστα πραγματεύονται) Estas dizem respeito agrave enfase dada

pelos oradores ao apelo emocional em detrimento da demonstraccedilatildeo racional E no

discurso retoacuterico o apelo agraves emoccedilotildees manifestava-se atraveacutes do ataque verbal calunioso

do apelo agrave piedade do apelo agrave ira e demais emoccedilotildees da alma semelhantes a estas que natildeo

visam o assunto mas influenciar afetivamente o juiz (διαβολὴ γὰρ καὶ ἔλεος καὶ ὀργὴ καὶ

τὰ τοιαῦτα πάθη τῆς ψυχῆς οὐ περὶ τοῦ πράγματός ἐστιν ἀλλὰ πρὸς τὸν δικαστήν)

A palavra grega διαβολὴ55 empregada por Aristoacuteteles na passagem acima a qual

foi traduzida pela expressatildeo ldquoataque verbalrdquo consiste em substituir a argumentaccedilatildeo

entimemaacutetica por um apelo simplesmente afetivo em vez de revelar que algo aconteceu

ou natildeo ou que as proposiccedilotildees do adversaacuterio natildeo satildeo logicamente consistentes o orador

procura atacar a sua personalidade o seu caraacuteter etc O ataque verbal caracteriza-se entatildeo

por introduzir na argumentaccedilatildeo retoacuterica elementos que natildeo satildeo relevantes na discussatildeo

como as consideraccedilotildees pessoais sobre o adversaacuterio Tal estratagema retoacuterico (tambeacutem

conhecido por argumentum ad hominem) era comumente empregado quando natildeo se podia

ou natildeo se queria oferecer razotildees sobre uma determinada questatildeo e ao inveacutes de atacar o

argumento do adversaacuterio atraveacutes de entimemas voltava-se contra a sua pessoa Pode-se

dizer que a artimanha do ataque verbal contra o adversaacuterio eacute o equivalente negativo da

prova psicoloacutegica referente ao caraacuteter do orador pois se esta visa conferir credibilidade

ao discurso do orador estribando-se no seu caraacuteter moral aquele procura desconstruir a

credibilidade do discurso mediante a depreciaccedilatildeo do caraacuteter daquele que o veicula

Aristoacuteteles ainda critica os oradores do seu tempo pelo emprego exagerado do apelo

agrave piedade (ἔλεος) Este estratagema retoacuterico (que tambeacutem eacute conhecido por argumentum

ad misericordiam) ocorre quando se apela aos sentimentos de compaixatildeo dos ouvintes

em detrimento dos fatos Em contextos carregados de emotividade o apelo agrave piedade pode

ser muito eficaz por isso nos tribunais de Atenas era utilizado com muita regularidade

Todavia o enfoque do apelo agrave piedade natildeo era a demonstraccedilatildeo de que determinado ato

foi justo ou natildeo ou se aconteceu ou natildeo mas unicamente o empenho em influir no acircnimo

da audiecircncia visando conduzi-la a emitir juiacutezos favoraacuteveis agrave causa do orador Por

exemplo diante de um tribunal o advogado de defesa negligenciando o meacuterito da

questatildeo procuraria enfatizar que seu cliente estaacute doente que eacute uma pobre viuacuteva ou coisas

deste jaez com o uacutenico objetivo de cegar os juiacutezes e manipular sua decisatildeo Disso conclui-

se que o grande equiacutevoco apontado por Aristoacuteteles na praacutetica retoacuterica de seus

predecessores consistiu no fato de confinarem-se no modo indireto de provar seus casos

bem como na negligecircncia do correto modo de apelar para as emoccedilotildees Por isso o desprezo

manifestado por Aristoacuteteles contra a retoacuterica afetiva natildeo possui um sentido absoluto mas

aplica-se apenas em certo sentido ou sob certo ponto de vista

55 O dicionaacuterio de Henry Georg Liddell e Robert Scott (A Greek-english Lexicon) indica os seguintes significados da palavra διαβολὴ falsa acusaccedilatildeo (false accusation) difamaccedilatildeo (slander) caluacutenia (calumny) e criar preconceito contra um adversaacuterio (create prejudice against an antagonist)

W W Fortenbaugh enfatiza que a anaacutelise de Aristoacuteteles (no segundo livro da

Retoacuterica) tornou clara a relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a argumentaccedilatildeo racional pois ao

interpretar o pensamento ou a crenccedila como a causa eficiente daquelas ele teria mostrado

que a resposta emocional constitui um comportamento inteligente e aberto agrave persuasatildeo

racional Aristoacuteteles teria se concentrado no lado cognitivo da resposta emocional e

deixado claro que qualquer emoccedilatildeo pode ser alterada por argumentos de modo que natildeo

eacute mais necessaacuterio confinar o apelo emocional ao proecircmio e ao epiacutelogo porque as emoccedilotildees

podem e devem ser suscitadas no discurso (como um todo) mediante argumentos

racionais O Estagirita entatildeo lanccedilaria matildeo da persuasatildeo pautada nos ouvintes e somada

a esta atitude introduziria a persuasatildeo atraveacutes da demonstraccedilatildeo entimemaacutetica numa

espeacutecie de coordenaccedilatildeo (FORTENBAUGH 200817-18)

No meacutetodo retoacuterico desenvolvido por Aristoacuteteles tal coordenaccedilatildeo faz com que o

apelo emocional seja empregado no discurso de maneira muito diferente do modo como

era empregado por muitos oradores incluindo Goacutergias e seus seguidores Pois enquanto

eles empregavam o apelo emocional de maneira exagerada e sem qualquer compromisso

com o caso em questatildeo o meacutetodo do Estagirita conecta o apelo agraves emoccedilotildees com a

argumentaccedilatildeo entimemaacutetica na medida em que enfatiza o emprego racional de cada

emoccedilatildeo particular em termos definicionais Ele natildeo nega que as emoccedilotildees podem mover

as pessoas em direccedilatildeo de um determinado juiacutezo ou mesmo alterar o seu rigor mas as

emoccedilotildees devem ser suscitadas pelo orador atraveacutes dos seus argumentos e natildeo mediante

assuntos fora de questatildeo Sendo assim o orador que pretende apelar para as emoccedilotildees dos

ouvintes de forma legiacutetima deve fazer por meio de argumentos racionais segundo os

princiacutepios que regem a demonstraccedilatildeo entimemaacutetica56 Por exemplo para suscitar o

sentimento de piedade ndash pesar em face de um mal destrutivo e penoso que acomete algueacutem

que natildeo merece ndash num determinado auditoacuterio e conduzi-lo a fazer doaccedilotildees financeiras a

uma instituiccedilatildeo de caridade que presta assistecircncia a idosos natildeo seria adequado ao orador

exibir idosos caqueacuteticos em laacutegrimas ou maltrapilhos a fim de comover os ouvintes

56 E M Cope corrobora esta interpretaccedilatildeo ao sustentar que haveria na retoacuterica de Aristoacuteteles duas maneiras distintas de suscitar as emoccedilotildees dos ouvintes A primeira seria o apelo emocional de forma cientiacutefica e a segunda o apelo emocional de forma natildeo-cientiacutefica No primeiro caso o apelo emocional eacute feito por meio do proacuteprio discurso ao passo que no segundo o apelo ocorre pela introduccedilatildeo de consideraccedilotildees fora do assunto em questatildeo (COPE 1867 4-5) ldquoNow this may be in two ways scientifically through the medium of the speech itself which is indeed one of modes of proof ndash of which there are three ndash and therefore forms part of the art of rhetoric in its strictest sense And unscientifically by introduction of considerations ab extra or beside the real point arguments ad hominem and ad captandum such as direct appeals to the feelings impassioned and exaggerated language or even as was often done the actual production of the widow and orphans or friends of a deceased person to excite and blind the judges to the real merits of the caserdquo

embora isto possa ser feito como um recurso auxiliar mas argumentar (com base nas

noccedilotildees sobre a piedade) que os idosos poderiam ser os pais dos ouvintes ou ainda que

estes poderatildeo estar no lugar daqueles caso sejam abandonados por seus filhos etc Tais

argumentos teriam efetivamente o objetivo de influenciar as emoccedilotildees dos ouvintes e por

conseguinte obter um juiacutezo favoraacutevel ao conteuacutedo do discurso poreacutem natildeo apelariam

diretamente para assuntos fora de questatildeo

Aristoacuteteles apresenta entatildeo aos que pretendem ser oradores a maneira que

considera eficaz para estimular nos ouvintes as diversas emoccedilotildees Ele defende o uso desse

expediente com base na noccedilatildeo de que o orador deve transformar a emoccedilatildeo experimentada

num recurso uacutetil para induzir os juiacutezos dos ouvintes em direccedilatildeo agravequilo que eacute conveniente

Pois em conformidade com a funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da arte retoacuterica que consiste em fazer

a justiccedila e a verdade prevalecer sobre seus contraacuterios o orador natildeo deve hesitar em apelar

para as emoccedilotildees de sua audiecircncia O modo de persuasatildeo ligado ao apelo emocional natildeo

eacute descartado simplesmente por Aristoacuteteles mas pode ser empregado no discurso retoacuterico

como acessoacuterio cuja funccedilatildeo eacute tornar mais eficiente a exposiccedilatildeo dos entimemas Sendo

assim natildeo foi o mero emprego da retoacuterica afetiva que Aristoacuteteles censurou em seus

predecessores sobretudo em relaccedilatildeo a Goacutergias haja vista que ele dedicou grande parte

do segundo livro da Retoacuterica a esse tema mas o seu emprego exagerado conjugado com

o desprezo daquilo que eacute mais relevante na arte retoacuterica ndash a demonstraccedilatildeo loacutegica na forma

do entimema e do exemplo

73 A refutaccedilatildeo da retoacuterica protagoacuterica

Aleacutem do desprezo agrave demonstraccedilatildeo loacutegica expresso tanto nos manuais de retoacuterica

como na praacutetica discursiva alguns predecessores de Aristoacuteteles foram tenazmente

censurados por negarem o fundamento de todo e qualquer discurso racional Na

Metafiacutesica o Estagirita enuncia o primeiro princiacutepio da ciecircncia do ser enquanto ser e das

ciecircncias em geral transmitido agrave posteridade sob o nome de princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo

Este princiacutepio que na verdade eacute o mais firme e seguro de todos (βέβαιος) tambeacutem eacute o

mais conhecido natildeo dependendo de coisa alguma para subsistir Aristoacuteteles explicita o

princiacutepio em apreccedilo nos seguintes termos (Met 1005b 18-30)

Depois do que foi dito devemos definir esse princiacutepio Eacute impossiacutevel

que a mesma coisa ao mesmo tempo pertenccedila e natildeo pertenccedila a uma mesma coisa segundo o mesmo aspecto (e acrescentem-se tambeacutem todas as outras determinaccedilotildees que se possam acrescentar para evitar dificuldades de iacutendole dialeacutetica) Este eacute o mais seguro de todos os princiacutepios de fato ele possui as caracteriacutesticas acima indicadas Efetivamente eacute impossiacutevel a quem quer que seja acreditar que uma mesma coisa seja e natildeo seja como segundo alguns teria dito Heraacuteclito Com efeito natildeo eacute preciso admitir como verdade tudo o que ele diz E se natildeo eacute possiacutevel que os contraacuterios subsistam juntos no mesmo sujeito (e acrescente-se a esta premissa as costumeiras explicaccedilotildees) e se uma opiniatildeo que estaacute em contradiccedilatildeo com outra eacute o contraacuterio dela eacute evidentemente impossiacutevel que ao mesmo tempo a mesma pessoa admita verdadeiramente que a mesma coisa exista e natildeo exista

Natildeo obstante Aristoacuteteles assegura que existem alguns indiviacuteduos que recusam o

princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo os quais sustentam o disparate de que eacute possiacutevel que a

mesma coisa seja e natildeo seja Os indiviacuteduos mencionados por Aristoacuteteles certamente que

satildeo os sofistas mas ele tambeacutem declara que existem alguns filoacutesofos naturalistas que

tambeacutem negam o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo (Ibid 1006a 1-5) Em defesa do princiacutepio

de natildeo-contradiccedilatildeo e por conseguinte em defesa da proacutepria verdade Aristoacuteteles ataca os

sofistas mas o seu combate ocorreraacute dentro do proacuteprio campo destes qual seja o do

discurso Nesse sentido ao refutar os que sustentam a legitimidade de afirmaccedilotildees

contraditoacuterias como a que afirma que ldquoa mesma coisa ao mesmo tempo pertenccedila e natildeo

pertenccedila a uma mesma coisa segundo o mesmo aspectordquo ele os alinha em dois grupos

distintos ndash uns assim pensam por ignoracircncia e outros por convicccedilatildeo Aos primeiros ele

declara que natildeo se deve combater sua maneira de falar mas conveacutem dirigir sua

inteligecircncia ao passo que em relaccedilatildeo aos segundos conveacutem combater pela refutaccedilatildeo do

seu discurso (Ibid 1009a 15-20)

Todavia natildeo se deve discutir com todos do mesmo modo alguns precisam ser persuadidos outros devem ser forccedilados De fato os que escolheram este modo de ver por causa das dificuldades encontradas tecircm uma ignoracircncia facilmente sanaacutevel Com efeito na discussatildeo com estes natildeo nos defrontamos com discursos vazios mas com verdadeiros raciociacutenios Ao contraacuterio os que discorrerm exclusivamente por amor ao discurso soacute podem ser corrigidos com a refutaccedilatildeo do seu discurso tomando-o tal como eacute constituiacutedo soacute de nomes e de palavras

Dentre os sofistas que satildeo o alvo principal do ataque de Aristoacuteteles destaca-se

Protaacutegoras de Abdera com quem o Estagirita procura natildeo somente dialogar mas tambeacutem

refutar Na verdade a ignoracircncia (ἀπαιδευσία) de Protaacutegoras a respeito dos rudimentos

da loacutegica (que nasceria da ausecircncia de um conhecimento preliminar dos Analiacuteticos)

obriga Aristoacuteteles ldquodemonstrarrdquo o princiacutepio que por si soacute eacute indemonstraacutevel porque de

um lado eacute formalmente primeiro e de outro em razatildeo de implicar na possibilidade de

todas as demonstraccedilotildees (Ibid 1005b 1-5)

Na perspectiva de Aristoacuteteles pode-se demonstrar por meio da refutaccedilatildeo (ἀποδεῖξαι

ἐλεγκτικῶς) a impossibilidade de que o mesmo seja e natildeo seja desde que o adversaacuterio

diga alguma coisa Se porventura ele nada falar torna-se ridiacuteculo procurar dizer algo a

algueacutem que natildeo possui nada a dizer e na medida em que natildeo tem nada a dizer tal

indiviacuteduo seria semelhante a uma planta (ὅμοιος γὰρ φυτῷ) Todavia demonstrar algo e

demonstrar por refutaccedilatildeo (ἔλεγχος) satildeo coisas bem diferentes se algueacutem pretende

demonstrar o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo cairia inevitavelmente numa petitio principii

ndash postular o que se quer provar ndash mas se a causa da demonstraccedilatildeo (ἀπόδειξις) fosse a

afirmaccedilatildeo de outro entatildeo haveria uma refutaccedilatildeo e natildeo propriamente uma demonstraccedilatildeo

Nesse sentido o adversaacuterio do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo eacute instigado a fazer um

desempenho epistecircmico miacutenimo ndash significar algo para si e para outro ndash e entatildeo eacute ensinado

sobre o fato de que com sua simples atitude ele jaacute pressupotildee o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo A demonstraccedilatildeo torna-se refutaccedilatildeo (ἔλεγχος) ao evidenciar que ao negar o

princiacutepio o proacuteprio adversaacuterio o supocircs ao comunicar algo pois a demonstraccedilatildeo por

refutaccedilatildeo deduz o princiacutepio de sua proacutepria negaccedilatildeo Aristoacuteteles identificaria nessa atitude

uma petitio principii pois quem afirma qualquer estado de coisas jaacute postula o princiacutepio

de natildeo-contradiccedilatildeo como verdadeiro Sendo assim o ponto de partida em todos os casos

desse gecircnero consiste simplesmente em exigir que o adversaacuterio signifique algo tanto para

si mesmo quanto para seu interlocutor (ἀλλὰ σημαίνειν γέ τι καὶ αὑτῷ καὶ ἄλλῳ) E se

porventura algueacutem aceita significar qualquer coisa que seja tanto para si quanto para

outro entatildeo haveraacute demonstraccedilatildeo por refutaccedilatildeo (Ibid 1006a 1-30)

A estrateacutegia de Aristoacuteteles consiste em substituir a demonstraccedilatildeo do princiacutepio em

apreccedilo que por sua natureza eacute impossiacutevel por outro tipo de demonstraccedilatildeo que lanccedila toda

a responsabilidade sobre o adversaacuterio A condiccedilatildeo de significar algo para si e para outro

constitui o ponto inicial da demonstraccedilatildeo por refutaccedilatildeo pois se aquele que nega o

princiacutepio satisfaz a condiccedilatildeo ele assume imediatamente a total responsabilidade

permitindo a seu interlocutor fugir do ocircnus de pressupor justamente o que estaacute em

questatildeo O adversaacuterio do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo ao cumprir a condiccedilatildeo de

significar algo para si e para outro deve confirmar involuntariamente seu compromisso

com o mesmo princiacutepio Tal empenho ocorre pela mera exigecircncia de falar sugerida ao

adversaacuterio ou ele se cala renunciando o seu caraacuteter especiacutefico de ser humano que eacute um

ser dotado de palavra ou entatildeo ele fala ou mesmo significa e por essa razatildeo renuncia agrave

possibilidade de negar o princiacutepio Sendo assim caso o adversaacuterio comprometa-se em

significar algo para si e para outro uma refutaccedilatildeo fundamental ocorre no mesmo

momento em que ele o faz considerando-se que certa porccedilatildeo delimitaacutevel da realidade eacute

o que se quer comunicar e natildeo uma outra

Consoante a anaacutelise de Enrico Berti se aquele que nega o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo diz uma uacutenica palavra e admite que ela tenha um uacutenico significado neste

exato momento jaacute haveraacute alguma coisa de definido de modo que ele significaraacute aquela

coisa e natildeo outra admitindo com isso que aquela coisa natildeo eacute outra Ele admitiraacute a

oposiccedilatildeo entre ser e natildeo ser certa coisa expressa pela afirmaccedilatildeo e negaccedilatildeo em que

consiste o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Assim no momento mesmo em que se chega a

defender sua tese quer dizer a negaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo quem contradiz

natildeo nega mas o admite ou seja sustenta sua tese destruindo-a porque admitir o princiacutepio

equivale a destruir sua negaccedilatildeo Eacute manifesto pois que neste procedimento ocorre uma

peticcedilatildeo de princiacutepio mas nela cai apenas quem sustenta a tese isto eacute quem nega o

princiacutepio o qual por conseguinte se pode considerar refutado (BERTI 1998 97-98)

Em conformidade com a doutrina protagoacuterica do homem-medida se uma coisa

parece bela a um e feia a outro fria a um quente a outro grande a um pequena a outro

entatildeo inevitavelmente seraacute as duas coisas ao mesmo tempo Natildeo existiria mais qualquer

objetividade nas coisas cada indiviacuteduo teria sua proacutepria noccedilatildeo de verdade e todos os

pontos de vista seriam igualmente verdadeiros No entanto Aristoacuteteles sustenta que se a

respeito do mesmo sujeito satildeo verdadeiras ao mesmo tempo todas as afirmaccedilotildees

contraditoacuterias eacute manifesto que todas as coisas se reduziratildeo a uma soacute (ἔτι εἰ ἀληθεῖς αἱ

ἀντιφάσεις ἅμα κατὰ τοῦ αὐτοῦ πᾶσαι δῆλον ὡς) E na hipoacutetese de que determinado

predicado pode ser tanto negado quanto afirmado de todas as coisas conforme defende

Protaacutegoras e seus seguidores entatildeo seratildeo a mesma coisa um ldquotrirremerdquo (τριήρης) uma

ldquoparederdquo (τοῖχος) e um ldquohomemrdquo (ἄνθρωπος) consequecircncia que eles efetivamente natildeo

admitiriam (Ibid 1007b 18-23)

Uma vez que todas as coisas se reduzem a uma soacute por exemplo ldquohomemrdquo ldquo Deusrdquo

e ldquotirremerdquo e suas respectivas negaccedilotildees entatildeo inevitavelmente seratildeo a mesma coisa E

se de cada coisa pode-se igualmente predicar afirmaccedilatildeo (κατάφασις) e negaccedilatildeo

(ἀπόφασις) como ldquobrancordquo e ldquonatildeo-brancordquo nada poderaacute distinguir-se de outra pois caso

se distinguisse tal diferenccedila constituiria algo verdadeiro e peculiar agravequela coisa A

propoacutesito a verdade consiste em afirmar aquilo que eacute e negar aquilo que natildeo eacute ou ainda

em afirmar que o ser eacute e que o natildeo-ser natildeo eacute enquanto que o falso consiste em afirmar

que o ser natildeo eacute ou que o natildeo-ser eacute Por isso quem diz de uma coisa que eacute ou que natildeo eacute

ou afirmaraacute o verdadeiro ou afirmaraacute o falso Mas no caso em que natildeo se diz a verdade

distingindo afirmaccedilatildeo e negaccedilatildeo natildeo se diz nada e natildeo pode existir nada Posto dessa

forma a discussatildeo com um adversaacuterio que nega o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo tornar-se-

ia inviaacutevel porque ele nada diria ndash nem que a coisa eacute assim nem que natildeo eacute assim mas

afirmaria que eacute assim e natildeo-assim (Ibid 1008a 24-35)

Outrossim quando ocorre a oposiccedilatildeo entre duas opiniotildees propriamente

contraditoacuterias uma em relaccedilatildeo agrave outra como no exemplo jaacute enunciado de ldquobrancordquo e natildeo-

brancordquo conforme outro princiacutepio loacutegico trazido a baila por Aristoacuteteles qual seja o

princiacutepio do terceiro excluiacutedo necessariamente uma opiniatildeo seraacute verdadeira e a outra

falsa sendo pois logicamente impossiacutevel que ambas sejam simultaneamente verdadeiras

ndash ou ldquoa neve eacute brancardquo ou ldquoa neve natildeo eacute brancardquo sendo pois impossiacutevel uma terceira

alternativa Assim entre os dois opostos da contradiccedilatildeo natildeo existiria um termo

intermediaacuterio (τῶν δ᾽ ἀντικειμένων ἀντιφάσεως μὲν οὐκ ἔστι μεταξύ) de sorte que o

conhecimento de qual eacute a opiniatildeo falsa coincidiria imediatamente com o conhecimento

de qual eacute a verdadeira e vice-versa (Ibid 1057a 34-35) Isto posto Protaacutegoras negaria

tanto o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo como o princiacutepio do terceiro excluiacutedo porque

negaria a proacutepria oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso admitindo que duas posiccedilotildees entre si

contraditoacuterias podem ser ambas verdadeiras ou ambas falsas

Com efeito caso se sustente que todos igualmente se enganam e todos digam a

verdade entatildeo quem sustentar tal tese natildeo poderaacute abrir a boca nem falar posto que

afirmaria certas coisas e ao mesmo tempo as negaria E se porventura algueacutem natildeo pensa

nada e indiferentemente crecirc e natildeo crecirc natildeo seraacute diferente das plantas (Ibid 1008b 8-12)

Todavia Aristoacuteteles sustenta que entre aqueles que negam o princiacutepio de natildeo-

contradiccedilatildeo fica muito evidente que nenhum deles efetivamente coloca-se nessa posiccedilatildeo

(ὅθεν καὶ μάλιστα φανερόν ἐστιν ὅτι οὐδεὶς οὕτω διάκειται οὔτε τῶν ἄλλων οὔτε τῶν

λεγόντων τὸν λόγον τοῦτον) ou seja eles negam o princiacutepio pelo menos

discursivamente mas natildeo com suas accedilotildees (Ibid 1008b 12-17)

Daiacute deriva com a maacutexima evidecircncia que ningueacutem estaacute nessa condiccedilatildeo nem os que sustentam essa doutrina nem os outros De fato por que motivo quem raciocina desse modo vai verdadeiramente agrave

Megara e natildeo fica em casa tranquumlilo contentando-se simplesmente com pensar em ir E por que logo de manhatilde natildeo se deixa cair num poccedilo ou num precipiacutecio quando os depara mas evita isso cuidadosamente como se estivesse convencido de que cair ali natildeo eacute absolutamente coisa natildeo-boa e boa Eacute claro portanto que ele considera a primeira coisa melhor e a outra pior

Com base na passagem supracitada Aristoacuteteles afirma que os que em teoria negam

o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo mas o pressupotildeem por suas accedilotildees ndash porque eles natildeo se

deixam cair num poccedilo (φρέαρ) ou num precipiacutecio (φάραγξ) quando estes satildeo percebidos

ndash devem tambeacutem admitir que algo determinado eacute um homem e que outra coisa natildeo o eacute

(ἄνθρωπον τὸ δ᾽ οὐκ ἄνθρωπον) e que algo eacute doce e que outra coisa natildeo o eacute (γλυκὺ τὸ δ᾽

οὐ γλυκὺ) Eles tambeacutem natildeo admitem em seu comportamento praacutetico que todas as coisas

satildeo iguais sendo manifesto que natildeo agem conforme este pressuposto ao considerarem

que seja melhor beber aacutegua ou ver um homem eles vatildeo imediatamente em busca dessas

coisas e natildeo o contraacuterio (Ibid 1008b 17-23)

Aristoacuteteles com efeito natildeo se limita a enunciar a foacutermula geral de sua

demonstraccedilatildeo do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo mas a desdobra articularmente tomando

em exame as posiccedilotildees concretas dos que negavam direta ou indiretamente o princiacutepio em

apreccedilo e refutando-as com argumentaccedilotildees de tipo pragmaacutetico que consistem em

enfatizar uma discrepacircncia entre a tese sustentada discursivamente e o comportamento

praacutetico Pode-se assegurar entatildeo que o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo natildeo se evidencia

somente como a condiccedilatildeo de possibilidade do pensamento teoacuterico (θεωρητικῆς διανοίας)

mas na circunstacircncia de que todo falar e todo agir subsiste e tem sucedimento em

concordacircncia com ele

De acordo com Aristoacuteteles o pensamento teoacuterico o qual se ocupa de todos aqueles

entes com princiacutepios que natildeo podem ser de outro modo natildeo visa a accedilatildeo (πρακτικῆς) nem

a produccedilatildeo (ποιητικῆς) mas eacute executado de uma forma correta ou incorreta conforme

detecta a verdade ou a falsidade pois esta eacute em geral a funccedilatildeo de todo o pensamento

Todavia a funccedilatildeo do pensamento praacutetico (πρακτικῆς διανοίας) que considera aqueles

entes com princiacutepios que podem ser de outra maneira eacute obter a verdade que corresponde

agrave accedilatildeo correta Agrave vista disso a εὐπραξία que significa o bem agir tanto na vida puacuteblica

como na vida privada natildeo existe na accedilatildeo sem o pensamento teoacuterico e a disposiccedilatildeo eacutetica

(Eacutet Nic 1139a 25-35) Cabe ainda frisar a este respeito que o Estagirita define a

prudecircncia como ldquoἀρετὴ διανοίαςrdquo ou seja como a virtude da inteligecircncia do pensamento

ou da razatildeo atraveacutes da qual se pode tanto deliberar adequadamente sobre os bens e os

males que conduzem agrave felicidade quanto discernir a justa medida a fim de evitar os

extremos do excesso e da falta

No diaacutelogo Teeteto Platatildeo atribui a Protaacutegoras a tese segundo a qual para quem estaacute

doente aquilo que come aparece e eacute amargo mas para quem estaacute saudaacutevel aparece e eacute o

contraacuterio e nenhum dois dois seria saacutebio razatildeo pela qual natildeo se deve acusar o doente de

ser ignorante em virtude de sua opiniatildeo nem o saudaacutevel de saacutebio por ter uma opiniatildeo

contraacuteria (Teet 166e) Entretanto a posiccedilatildeo de Aristoacuteteles sobre este assunto eacute a de

aquele que defende tal doutrina natildeo o faz com base na ciecircncia mas na pura opiniatildeo por

isso ele deveria se preocupar em procurar a verdade assim como deve preocupar-se com

a sauacutede quem estaacute enfermo e natildeo quem eacute saudaacutevel Porquanto quem possui somente

opiniatildeo em comparaccedilatildeo com aquele que possui ciecircncia certamente natildeo estaacute em

condiccedilotildees de sauacutede relativamente agrave verdade (Met 1008b 27-30) E a fim de descobrir o

que efetivamente eacute natural o Estagirita sublinha que eacute necessaacuterio conduzir as

investigaccedilotildees de preferecircncia para as coisas em seu estado natural e natildeo para as

deterioradas (διεφθαρμένοις) Assim para estudar o homem conveacutem considerar aquele

que estaacute nas melhores condiccedilotildees possiacuteveis (βέλτιστα διακείμενον) de corpo e alma (Pol

1254b 5-9)

Eacute obvio que Aristoacuteteles natildeo nega que duas pessoas possam ter percepccedilotildees opostas

em relaccedilatildeo ao mesmo objeto o indiviacuteduo saudaacutevel pode perceber o mel como doce

enquanto que o doente pode percebecirc-lo como amargo poreacutem natildeo significa que ambas as

percepccedilotildees estejam em peacute de igualdade quanto agrave sua veracidade Pois a percepccedilatildeo de um

homem em estado natural seria mais certa ou mais preferiacutevel do que a percepccedilatildeo de um

homem doente Assim o criteacuterio epistecircmico das percepccedilotildees em geral que garantiria que

uma percepccedilatildeo eacute mais certa ou mais preferiacutevel que outra eacute essencialmente o mesmo que

fundamenta as ἔνδοξα uma percepccedilatildeo que pode ser repetida por todas as pessoas

(saudaacuteveis) ou pela maioria delas deve corresponder ao que tem de ser natildeo sendo possiacutevel

que este fato seja um engano e se a maioria das pessoas percebe o mel como doce e natildeo

como amargo isto jaacute seria um indiacutecio de que esta percepccedilatildeo eacute mais verdadeira que falsa

Ao explicar como a percepccedilatildeo opera Aristoacuteteles assegura que no caso de sensiacuteveis

proacuteprios de cada sentido a verdade atribuiacutedo a ela deve ser quase absoluta Por sensiacutevel

proacuteprio de cada sentido ele se refere a um que natildeo possa ser percebido por outro sentido

ndash a visatildeo em relaccedilatildeo agraves cores a audiccedilatildeo em relaccedilatildeo aos diversos sons etc ndash e sobre o qual

natildeo se pode estar em erro Assim cada sentido tem discernimento quanto a seus sensiacuteveis

proacuteprios e natildeo comete erros quanto a se haacute cor ou quanto a se haacute som mas somente sobre

o que a coisa colorida eacute ou onde se localiza ou o que a coisa que emite som eacute e onde se

localiza (Sob alm 418a 1-16) Todavia essas asserccedilotildees seguras pressupotildeem que os

sentidos estejam operando adequadamente em condiccedilotildees que natildeo os impeccedilam de alcanccedilar

seu fim natural (Eacutet Nic 1153a 14-16) Portanto a percepccedilatildeo de sensiacuteveis proacuteprios eacute

verdadeira ou tem o miacutenimo grau possiacutevel de erro (Sob alm 428b 18-20) ao menos

enquanto o objeto sensiacutevel continua a efetar o sentido da mesma maneira (Ibid 428b 25-

30)

Aleacutem do exposto eacute manifesto para Aristoacuteteles que diferenccedilas de graus satildeo

inerentes agrave natureza das coisas (ἀλλὰ τό γε μᾶλλον καὶ ἧττον ἔνεστιν ἐν τῇ φύσει τῶν

ὄντων) de sorte que natildeo se pode dizer que satildeo pares o dois e o trecircs nem se pode dizer

que erra do mesmo modo quem confunde o quatro com o mil e visto que eles natildeo erram

do mesmo modo eacute certo que um dos dois erra menos e estaacute mais na verdade Ele tambeacutem

sustenta que se estar mais na verdade significa proacuteximo (ἐγγύτερος) da verdade deveraacute

existir uma verdade absoluta em relaccedilatildeo a qual o que estaacute mais proacuteximo eacute tambeacutem o mais

verdadeiro (εἴη γε ἄν τι ἀληθὲς οὗ ἐγγύτερον τὸ μᾶλλον ἀληθές) Mas ainda que natildeo

exista tal verdade absoluta existe certamente algo mais seguro e mais veriacutedico

(βεβαιότερον καὶ ἀληθινώτερον) ndash a verossimilhanccedila ndash que refutaria a doutrina de

Protaacutegoras segundo a qual o pensamento estaria impedido de determinar qualquer coisa

como certa (Met 1008b 31-1009a 5)

Com efeito longe do conhecimento humano e suas sensaccedilotildees serem a medida da

realidade conforme apregoa a doutrina subjetivista de Protaacutegoras eacute a realidade que deve

medir objetivamente a soma e o valor do conhecimento O conhecimento humano natildeo

pode determinar a natureza das coisas pois sua tarefa eacute justamente adaptar-se agrave natureza

delas a fim de atingir a verdade Desse modo na visatildeo de Aristoacuteteles quando o sofista

Protaacutegoras afirma que o homem eacute a medida de todas as coisas referindo-se ao indiviacuteduo

que conhece e percebe sustentaria algo absurdo embora aparente ser engenhoso (Ibid

1053a 31-1053b 3) Aristoacuteteles concebe isso do ponto de vista de sua epistemologia

segundo a qual existe uma realidade independente dos nossos conhecimentos e opiniotildees

(Ibid 1051b 5-10) e contrastando com ela a doutrina de Protaacutegoras de acordo com a

qual nada existiria objetivamente salvo o que cada um conhece e percebe

Visto que para Protaacutegoras o calor e o frio ou o doce e o amargo natildeo existem

efetivamente na natureza mas dependem da percepccedilatildeo de cada indiviacuteduo em particular

pode-se alvitrar por conseguinte que a justiccedila e a injusticcedila ou o certo e o errado tambeacutem

possuem uma existecircncia subjetiva e irreal Nesse sentido natildeo pode haver na natureza

princiacutepios absolutos que determinem as relaccedilotildees entre os homens por isso tudo

dependeria daquilo que aparece no momento a cada indiviacuteduo (GUTHRIE 2010 79)

Cabe ainda lembrar que o fragmento Δισσοὶ λόγοι atribuiacutedo a Protaacutegoras rejeita a tese

segundo a qual uma coisa eacute o justo e outra o injusto distinto tanto na realidade como no

discurso Ao considerar o tema sobre o justo e o injusto o autor do fragmento assevera

que para algumas pessoas haveria uma diferenccedila entre o justo e o injusto mas para outras

a mesma coisa seria justa e injusta e eacute justamente esta perspectiva que ele tenciona

defender O mesmo ponto de vista relativista se aplicaria ao que eacute considerado bom e

ruim verdadeiro e falso etc E se o homem eacute medida de todas as coisas significa que a

maneira como as coisas se apresentam a um homem para ele constitui a verdade e o

modo como se apresenta a um outro para este tambeacutem eacute a verdade Todavia nenhum

deles pode atribuir erro agrave opiniatildeo do outro pois se um concebe as coisas de uma certa

maneira para ele eacute assim o que significa simplesmente que a verdade eacute relativa ao ponto

de vista de cada um O ceacutelebre dito de Protaacutegoras significa que o conhecimento humano

natildeo depende de normas absolutas mas de exigecircncias situacionais com que se depara o

homem tanto como indiviacuteduos quanto como espeacutecie Ademais natildeo haveria um padratildeo

eacutetico absoluto em favor do tipo de julgamento eacutetico situacional que varia conforme os

indiviacuteduos e as circunstacircncias

A despeito disso Protaacutegoras concedia no seu pensamento um certo espaccedilo agraves

opiniotildees convencionais sobre a verdade e a moral mas nenhuma delas seria mais

verdadeira do que outra de tal modo que se para algum homem parece sinceramente que

eacute bom roubar a ele pareceraacute que essa eacute a verdade Todavia a grande maioria dos homens

que amiuacutede condena o roubo como uma praacutetica imoral poderaacute ser persuadida pelo orador

no sentido contraacuterio pois ele pode sustentar que tal crenccedila natildeo eacute em si mesma verdadeira

e enfatizar aquilo que momentacircneamente aparenta ser o melhor Sendo assim Protaacutegoras

opta por abandonar a prova da verdade ou da falsidade e a substitui pela prova pragmaacutetica

(Ibid 2010 80-81) Em conformidade com esta noccedilatildeo natildeo haveria uma verdade em si

mesma objetiva e universalmente vaacutelida mas a verdade dependeria de cada indiviacuteduo e

o mais relevante para o orador seria reconhecer aquilo que eacute nocivo e uacutetil agrave conveniecircncia

eacutetica e poliacutetica dos homens e persuadi-los disso

Aristoacuteteles tambeacutem atribui um espaccedilo consideraacutevel agraves opiniotildees convencionais sobre

a verdade e a moral mas diferente de Protaacutegoras ele natildeo estaacute disposto a subscrever a

concepccedilatildeo de que as opiniotildees satildeo igualmente vaacutelidas pelo contraacuterio eacute necessaacuterio que o

orador procure em cada caso a verdade da melhor maneira possiacutevel (Eacutet Nic 1139b 13-

14) Isto ocorre porque natildeo eacute necessaacuterio procurar o mesmo grau de rigor para todas as

aacutereas cientiacuteficas nem para todas as artes mas isto natildeo significa abrir matildeo do que eacute mais

seguro e mais veriacutedico Assim no terreno da arte retoacuterica eacute necessaacuterio satisfazer-se com

a indicaccedilatildeo da verdade aproximadamente em linhas gerais e falar de coisas que satildeo

verdadeiras no mais das vezes e natildeo absolutamente

Considerando-se entatildeo a impossibilidade de se obter na vida praacutetica uma verdade

absoluta o Estagirita propotildee contentar-se com o verossiacutemil isto eacute com aquilo que parece

o mais provaacutevel porque ainda que natildeo exista em relaccedilatildeo a um dado assunto a verdade

absoluta existe certamente algo mais seguro e mais veriacutedico Aleacutem do mais o verossiacutemil

(no acircmbito natural) natildeo eacute de forma alguma independente do estado de coisas pois se ele

eacute possiacutevel eacute em virtude da existecircncia de um fato isto eacute aquele que acontece a maior parte

das vezes que neste caso recebe a designaccedilatildeo de provaacutevel O verossiacutemil tambeacutem pode

ser compreendido (no acircmbito social) como uma proposiccedilatildeo geralmente admitida o que

significa que natildeo eacute qualquer opiniatildeo ou crenccedila que conta jaacute que ele faz parte do universo

cultural ou de crenccedilas geralmente admitidas num determinado contexto social

Para o Estagirita no caso de algueacutem atuar com pretenccedilotildees filosoacuteficas precisa ter

em vista a verdade mas os que atuam segundo a retoacuterica precisam ter em vista natildeo mais

a verdade mas as opiniotildees qualificadas bem-fundamentadas que todo mundo admite ou

a maioria das pessoas ou os filoacutesofos e dentre estes os mais notaacuteveis e eminentes

Porquanto se as pessoas em geral acreditam em algo por exemplo que o roubo e o

incesto satildeo praacuteticas imorais isto jaacute seria um indiacutecio que de as opiniotildees a este respeito satildeo

mais verdadeiras que falsas e por essa razatildeo dignas de anuecircncia Dessarte o bom orador

agrave maneira do dialeacutetico precisa ser capaz de ao fazer frente a um argumento defender suas

teses por meio de opiniotildees tatildeo geralmente aceitas quanto possiacutevel (Arg Sof 183b 5-7)

Em conexatildeo com este assunto eacute pertinente salientar a distinccedilatildeo feita por Aristoacuteteles

entre a lei particular e a lei comum (νόμος δ᾽ ἐστὶν ὁ μὲν ἴδιος ὁ δὲ κοινός) Ele define a

que eacute particular (ἴδιος) como o conjuito de leis escritas atraveacutes das quais se rege cada

cidade enquanto que a comum (κοινός) constitui o conjunto das leis natildeo escritas (ἄγραφοι

νόμοι) sobre as quais parece haver um consenso (παρὰ πᾶσιν ὁμολογεῖσθαι δοκεῖ) entre

todos os homens (Ret 1368b 10-13) Em outro passo (Ibid 1373b 4-10) ele assegura

que a lei particular eacute a que foi definida por cada povo quer seja escrita ou natildeo escrita ao

passo que a lei comum a que eacute segundo a natureza (κατὰ φύσιν) Agrave vista disso haveria na

natureza um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos os homens de algum

modo reconheceriam mesmo que natildeo haja entre eles comunicaccedilatildeo ou acordo Aliaacutes todos

os que observam as leis comuns natildeo poderiam eventualmente ter-se encontrado e se

porventura se encontraram natildeo falavam a mesma liacutengua razatildeo pela qual elas devem ter

uma origem na natureza e natildeo por convenccedilatildeo

Com efeito dentre as leis que natildeo foram forjadas pela convenccedilatildeo mas pela natureza

Aristoacuteteles destaca a gratidatildeo a quem nos faz algum bem o pagamento do bem recebido

com o mesmo bem e o auxiacutelio aos amigos nas suas necessidades (Ibid 1374a 30-33)

Aleacutem dessas poder-se-ia acrescentar o dever de cultuar os deuses e de honrar os pais a

hospitalidade para com os estrangeiros ou ainda a proibiccedilatildeo do incesto (GUTHRIE

2007 113 115) as quais em hipoacutetese alguma poderiam ser relativizadas posto que a

violaccedilatildeo das leis natildeo escritas satildeo um delito mais grave do que a violaccedilatildeo das leis escritas

(Ret 1375a 27-31) Pode-se assegurar entatildeo que a lei da natureza existe porque haacute

efetivamente um conceito natural e universal de certo e errado um padratildeo eacutetico absoluto

independente de um julgamento eacutetico situacional que varia conforme os indiviacuteduos e as

circunstacircncias que poderia ser (indiferentemente) de uma maneira ou de outra

Apesar de ser inexequiacutevel ao orador o acesso agrave verdade absoluta (cuja prerrogativa

pertence ao filoacutesofo) natildeo conveacutem que ele se renda ao relativismo e fique satisfeito com

qualquer opiniatildeo desqualificada como se todas as opiniotildees fossem igualmente

verdadeiras Porquanto se todas as percepccedilotildees e todos os juiacutezos morais devem ser aceitos

como igualmente verdadeiros entatildeo nenhum argumento que expresse juiacutezos perceptivos

e morais seria superior a um outro o que seria um equiacutevoco posto que existem aqueles

juiacutezos que representam uma aproximaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave verdade ao passo que outros satildeo

expressamente falsos Portanto se o relativismo protagoacuterico prevalecer tornaraacute a poliacutetica

inteiramente impraticaacutevel e poderaacute fomentar consequecircncias danosas para a cidade haja

vista que a justiccedila e a injusticcedila poderatildeo ser defendidas indiferentemente opondo-se agrave

funccedilatildeo eacutetico-poliacutetica da arte retoacuterica que consiste em combater a perversatildeo da verdade e

da justiccedila

Segundo a visatildeo relativista de Protaacutegoras mediante a percepccedilatildeo imaginaccedilatildeo e

pensamento todas as coisas produzidas pela natureza satildeo meras opiniotildees variando no

tempo e no espaccedilo de indiviacuteduo para indiviacuteduo ou ainda no mesmo indiviacuteduo Todavia

o fato do homem ser a medida de todas as coisas natildeo significa que ele tem o poder total

para fazer com que as coisas em geral sejam ou natildeo sejam mas tem o poder pleno para

decidir o que elas satildeo ou que elas podem ou devem ser e quais natildeo deveratildeo passar agrave

existecircncia ndash eacute justamente isso que significa ldquodas coisas que satildeo que elas satildeo das coisas

que natildeo satildeo que elas natildeo satildeordquo Por certo dois homens podem ter percepccedilotildees e opiniotildees

opostas sobre coisas que parecem idecircnticas ou iguais e as duas opiniotildees seriam

verdadeiras segundo o ponto de vista de cada indiviacuteduo que as tem Desse modo natildeo

haveria espaccedilo em sua teoria para o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo porque tanto as

percepccedilotildees quanto as opiniotildees sempre seriam verdadeiras ainda que opostas entre si

razatildeo pela qual as pessoas soacute poderiam mudar suas opiniotildees ao serem persuadidas por

outras melhores ou mais fortes Aleacutem disso as ideias gerais sobre a justiccedila o bem o uacutetil

as leis os deuses etc satildeo para Protaacutegoras meras convenccedilotildees nascidas de um consenso

entre os homens para a utilidade da vida em comum Por isso natildeo haveria nenhuma

verdade universal e necessaacuteria nem sequer uma aproximaccedilatildeo em relaccedilatildeo a ela mas

apenas as opiniotildees e as teacutecnicas nascidas da experiecircncia e da observaccedilatildeo para o uso e a

accedilatildeo humana Tendo isto em conta a arte retoacuterica deve persuadir as pessoas de quais satildeo

as melhores opiniotildees e as melhores teacutecnicas para cada cidade

Eacute manifesto que ao elaborar sua teoria acerca da arte retoacuterica o Estagirita rejeita a

concepccedilatildeo de que no acircmbito dessa arte seja possiacutevel veicular verdades absolutas Por

certo a funccedilatildeo essencial da retoacuterica consiste em obter a anuecircncia dos ouvintes agraves teses

que se lhes apresentam ao assentimento mediante argumentos racionais mas sem as

exigecircncias excessivas da racionalidade cientiacutefica Contudo sem degringolar para o seu

extremo oposto qual seja o do relativismo Aristoacuteteles natildeo considera todos os ideais

sociais legais poliacuteticos e morais sem sentido ou sem nenhum valor de modo que todas

as opiniotildees sejam igualmente vaacutelidas Sua retoacuterica tambeacutem natildeo proclama agraves pessoas que

parem com seus conflitos de opiniotildees supondo que todas as coisas satildeo igualmente boas

ou maacutes Pelo contraacuterio ele submete as opiniotildees sua interpretaccedilatildeo e sua aplicaccedilatildeo agrave uma

anaacutelise criacutetica incessante de modo que seu pensamento retoacuterico estaria fortemente ligado

ao senso comum mas a um tipo de senso comum que eacute qualificado e aberto agrave criacutetica Fica

claro entatildeo que embora a retoacuterica seja uma forma de racionalidade especificamente

distinta da ciecircncia ela eacute estruturada por argumentaccedilotildees o que natildeo apenas lhe confere um

caraacuteter teacutecnico preciso mas permite-lhe em algum grau aproximar-se da verdade

Outrossim a retoacuterica de Aristoacuteteles eacute explicitamente favoraacutevel ao pluralismo de

ideias agrave liberdade de opiniatildeo ao jogo de interesses e motivaccedilotildees humanos As

argumentaccedilotildees retoacutericas precisam ser formadas com base em premissas geralmente

aceitas pelo auditoacuterio poreacutem os ideais e os fins aprovados por este natildeo devem ser tratados

como valores absolutos Isto ocorre porque a realidade social e poliacutetica no interior da

qual a arte retoacuterica opera mais eficazmente extrapola os estreitos limites da demonstraccedilatildeo

cientiacutefica Natildeo obstante a arte retoacuterica pode funcionar como a ferramenta mais adequada

na permanente luta pelo progresso e felicidade da sociedade Aleacutem de tudo ela eacute um

instrumento indispensaacutevel para o subrepujamento da bipolaridade existente entre o

conhecimento cientiacutefico e o relativismo objetivando na medida de sua capacidade a

tomada razoaacutevel de decisotildees na vida praacutetica Pois tendo em vista a impossibilidade de se

obter nos assuntos da vida praacutetica uma verdade universal e necessaacuteria eacute preciso contentar-

se com o verossiacutemil ou seja com aquilo que parece provaacutevel por ser compartilhado pela

maioria dos ouvintes

O Estagirita prossegue em sua condenaccedilatildeo ao relativismo ao identificar a doutrina

de Protaacutegoras (de que eacute possiacutevel tornar o argumento mais fraco no argumento mais forte)

com uma argumentaccedilatildeo falaciosa chamada de silogismo aparente (φαινόμενος

συλλογισμός) Considerando-se que pode haver um silogismo verdadeiro e outro

aparente do mesmo modo pode haver um entimema verdadeiro e outro que o seja

somente na aparecircncia (Ibid 1400b 45-50) Aristoacuteteles cataloga pois dez tipos de

entimemas aparentes que seriam os equivalentes retoacutericos dos sofismas expostos

minuciosamente na obra Dos Argumentos Sofiacutesticos 1ordm o que proveacutem da expressatildeo 2ordm o

que procede da homoniacutemia 3ordm o que consiste em argumentar combinando o que estava

dividido ou dividindo o que estava combinado 4ordm o que consiste em estabelecer ou refutar

um argumento por meio do exagero 5ordm o que procede do signo 6ordm o que decorre do

acidente 7ordm o que eacute retirado da consequecircncia 8ordm o que consiste em apresentar o que natildeo

eacute causa como causa 9ordm o que consiste na omissatildeo do quando e do como 10ordm e o que

consiste em considerar uma coisa absolutamente e natildeo absolutamente mas soacute em relaccedilatildeo

a uma coisa (Ibid 1401a 1-1402a 39) Todavia somente este uacuteltimo tipo de entimema

aparente seraacute objeto de anaacutelise devido agrave sua ligaccedilatildeo imediata com a doutrina do sofista

Protaacutegoras

Com efeito a promessa de tornar mais forte o argumento mais fraco natildeo ficou

restrita a Protaacutegoras e sua escola mas tambeacutem tornou-se ceacutelebre com os autores

posteriores Na comeacutedia As Nuvens escrita por Aristoacutefanes existe uma referecircncia a esta

doutrina onde o personagem Estrepsiacuteades afirma que no φροντιστήριον onde Soacutecrates

ensina a triunfar as causas maacutes devido aos artifiacutecios e sutilezas da arte retoacuterica existem

ambos os argumentos o mais forte natildeo importa qual seja e o mais fraco e desses dois o

mais fraco pode tornar-se vitorioso apesar de expressar a tese mais injusta (Nuv 95

115) Aristoacuteteles tambeacutem oferece exemplos reais do seacuteculo V aC especialmente o

argumento de Goacutergias de que o natildeo ser existe porque negar o natildeo ser seria afirmar sua

existecircncia bem como a citaccedilatildeo de Aacutegaton de maneira que o que ele diz a respeito do

provaacutevel poderia ser plausivelmente retirado dos textos de Protaacutegoras (Ret 1402a 4-15)

E ainda tal como na eriacutestica do fato de se poder considerar uma coisa absolutamente e natildeo absolutamente mas soacute em relaccedilatildeo a uma coisa resulta um silogismo aparente Por exemplo na dialeacutetica afirmar que o natildeo ser existe porque o natildeo ser eacute natildeo ser e que o desconhecido eacute objeto de conhecimento porque o incognosciacutevel enquanto incognosciacutevel constitui objeto de conhecimento cientiacutefico Assim tambeacutem na retoacuterica haacute um entimema aparente do natildeo absolutamente provaacutevel mas do provaacutevel em relaccedilatildeo a algo Esta probabilidade natildeo eacute universal como tambeacutem diz Aacutegaton Bem se poderia dizer que o uacutenico provaacutevel eacute que aos mortais aconteccedilam muitas coisas improvaacuteveis

Para Aristoacuteteles o φαινόμενος συλλογισμός resulta do fato de se poder considerar

na dialeacutetica uma coisa absolutamente e natildeo absolutamente mas soacute em relaccedilatildeo a uma

coisa Semelhantemente na retoacuterica existe um entimema aparente (φαινόμενον

ἐνθύμημα) do natildeo absolutamente provaacutevel mas soacute do provaacutevel em relaccedilatildeo a algo Isto

ocorre porque aquilo que estaacute agrave margem da probabilidade pode eventualmente produzir-

se de tal maneira que eacute provaacutevel o que estaacute fora da probabilidade Por exemplo eacute

altamente provaacutevel que um homem com histoacuterico de agressatildeo domeacutestica seja culpado por

ferir sua esposa a qual o leva a julgamento por agressatildeo fiacutesica mas eacute tambeacutem possiacutevel

que a mulher tenha ferido a si mesma a fim de incriminar o marido que neste caso

especiacutefico seria inocente No entanto esforccedilar-se a fim de que esta probabilidade relativa

suplante a primeira qual seja a probabilidade absoluta (ἁπλῶς εἰκὸς) constitui para

Aristoacuteteles uma atitude reprovaacutevel na praacutetica retoacuterica bem como uma falsidade Sendo

assim no entimema aparente o improvaacutevel seraacute ateacute provaacutevel conforme o exemplo acima

mas natildeo de maneira absoluta porque possui um grau de probabilidade quase que

insignificante E como ocorre na eriacutestica o natildeo acrescentar em que medida em relaccedilatildeo a

quecirc e de que modo torna o argumento capcioso na arte retoacuterica acontece o mesmo

porquanto o improvaacutevel (ou pouco provaacutevel) eacute tomado pelo orador como provaacutevel natildeo

de maneira absoluta mas somente de maneira relativa E Aristoacuteteles acrescenta que eacute

deste toacutepico que se compotildee a arte de Coacuterax (Ibid 1402a 3-24)

Sabe-se que Coacuterax foi o primeiro de que se tem registro a teorizar com um meacutetodo

e preceitos uma arte retoacuterica E a despeito do desconhecimento documental das regras

propriamente ditas e dos processos de composiccedilatildeo que Coacuterax elaborara eacute possiacutevel

sustentar que um dos seus preceitos fundamentais consistia em propor a argumentaccedilatildeo de

que algo poderia ser considerado improvaacutevel por ser proacutevavel demais Este argumento

carrega seu nome ou seja o κόραξ Aristoacuteteles explicita este argumeno nos seguintes

termos (Ibid 1402a 24-28) caso o reacuteu suspeito de agressatildeo seja forte e se todas as

evidecircncias lhe forem contraacuterias proporaacute o argumento de que seria tatildeo provaacutevel que

tivesse realmente praticado o ato de que eacute acusado que natildeo pode ser provaacutevel que ele o

tenha feito (ἔστι δ᾽ ἐκ τούτου τοῦ τόπου ἡ Κόρακος τέχνη συγκειμένη ldquoἄν τε γὰρ μὴ

ἔνοχος ᾖ τῇ αἰτίᾳ οἷον ἀσθενὴς ὢν αἰκίας φεύγει [οὐ γὰρ εἰκός] κἂν ἔνοχος ᾖ οἷον

ἰσχυρὸς ὤν [οὐ γὰρ εἰκός ὅτι εἰκὸς ἔμελλε δόξειν]rdquo)

Aristoacuteteles aventa que ambos os casos acima mencionados parecem ser provaacuteveis

poreacutem o primeiro caso o de que o reacuteu forte (ἰσχυρός) eacute legitimamente suspeito de

agressatildeo seria absolutamente provaacutevel poreacutem o outro caso o de que o reacuteu forte eacute

inocente porque pareceria altamente provaacutevel que fosse o agressor do eacute fraco (ἀσθενής)

natildeo o eacute em absoluto mas de maneira relativa Este tipo de argumentaccedilatildeo que o Estagirita

atribui ao sofista Protaacutegoras parece implicar que a causa mais fraca seria realmente

idecircntica agrave pior de modo que apoiaacute-la seria o mesmo que apoiar a injusticcedila Aleacutem disso

os raciociacutenios que visam tornar o argumento mais fraco no argumento mais forte tambeacutem

satildeo chamados de eriacutesticos ou contenciosos ou seja os que raciocinam ou parecem

raciocinar a partir de opiniotildees que parecem ser geralmente aceitas mas em realidade natildeo

satildeo (Arg Sof 156b 7-8)

Todavia com o intuito de lograr maior esclarecimento sobre o significado do

entimema aparente no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles eacute pertinente inteirar-se da

abalizada anaacutelise de A M Yamin sobre este toacutepico Ela sustenta que uma coisa eacute mais

provaacutevel quanto maior o nuacutemero de casos similares de tal maneira que a verossimilhanccedila

ou a probabilidade de algo eacute diretamente proporcional ao nuacutemero de vezes que este

mesmo tipo de coisa costuma acontecer Assim o enunciado eacute verossiacutemil porque enuncia

a opiniatildeo dos homens ao testemunhar um evento provaacutevel que pode ser tanto social como

natural E quanto maior seja a frequecircncia dos fatos mais provaacuteveis eles seratildeo e mais

verossiacutemil seraacute o discurso a seu respeito Eacute manifesto que no mais das vezes o homem de

compleiccedilatildeo forte tende a prevalecer e a bater naquele que eacute mais fraco e este fenocircmeno

refletiria a regularidade proacutepria do mundo das accedilotildees humanas e tal afirmaccedilatildeo pode ser

feita com seguranccedila por qualquer orador porque efetivamente eacute isto que costuma

acontecer O discurso natildeo-verossiacutemil que o Estagirita designa de entimema aparente

seria aquele que enunciasse um estado de coisas que natildeo fosse provaacutevel ou que fugisse

da regularidade das accedilotildees humanas Dessarte soacute eacute digno de credibilidade o discurso que

eacute verdadeiro ou o que eacute provaacutevel pois assim como o discurso verdadeiro eacute digno de ser

acreditado por veicular o que eacute o discurso verossiacutemil tambeacutem o eacute por enunciar o que

acontece no mais das vezes Todavia no que se refere ao mundo das accedilotildees humanas a

regularidade de que o homem de compleiccedilatildeo forte prevalece e tende a bater naquele que

eacute mais fraco tem a peculiaridade de natildeo ser a uacutenica (ou seja pode ocorrer exceccedilotildees) mas

ela sempre seraacute uacutenica para um auditoacuterio determinado ao passo que os argumentos mais

verossiacutemeis seratildeo aqueles que correspondam agrave regularidade proacutepria do contexto poliacutetico

ao qual pertence aquele auditoacuterio particular (YAMIN 2006 150-151)

Na perspectiva de Yamin ao se ocupar dos diferentes tipos de falaacutecias Aristoacuteteles

trata do entimema aparente e o define como o argumento que pode resultar daquilo que

natildeo eacute absolutamente verossiacutemil mas somente eacute verossiacutemil em casos particulares

Aristoacuteteles faria uma analogia com o silogismo aparente ou seja aquele que resulta de

considerar uma coisa primeiro absolutamente e em seguida natildeo absolutamente mas

somente num caso particular O silogismo aparente ocorreria quando se afirma que aquilo

que natildeo eacute absolutamente enquanto eacute desconhecido em um caso particular eacute o caso O

εἰκός enquanto discurso eacute o enunciado endoacutexico que enuncia um evento que acontece a

maior parte das vezes assim como tambeacutem eacute o proacuteprio evento (natural ou social) O εἰκός

eacute verossiacutemil porque ele enuncia a opiniatildeo dos homens ao testemunhar um evento provaacutevel

cuja opiniatildeo estaacute de acordo com um estado de coisas que corresponde agrave regularidade de

um determinado domiacutenio (Ibid 2006 152-153)

Por certo tanto um enunciado (verossiacutemil) como um evento (provaacutevel) soacute seratildeo

εἰκός na medida em que efetivamente correspondam ou faccedilam parte de uma regularidade

No entanto eacute possiacutevel fazer com que um enunciado que natildeo eacute absolutamente verossiacutemil

pareccedila dessa forma e a este Aristoacuteteles designa de verossiacutemil relativo o qual eacute atribuido

agrave praacutetica retoacuterica de Protaacutegoras O entimema aparente surge entatildeo a partir de um discurso

que natildeo eacute absolutamente verossiacutemil mas somente num caso particular ao passo que um

enunciado absolutamente verossiacutemil teraacute que estar de acordo com uma certa regularidade

E haja vista que o entimema aparente eacute de alguma maneira anaacutelogo ao silogismo

aparente a condiccedilatildeo para identifcar o entimema aparente deveraacute ser a identificaccedilatildeo de

uma certa regularidade aparente ou seja uma regularidade que soacute eacute tal em um contexto

particular (Ibid 2006 153-154)

Com efeito o verossiacutemil relativo seria simplesmente falso e sobretudo inuacutetil um

discurso vazio jaacute que natildeo teria uma referecircncia e a ningueacutem poderia convencer A despeito

disso se o verossiacutemil relativo pode ser veiculado (por um sofista como Protaacutegoras) eacute

precisamente porque no domiacutenio humano as coisas acontecem furtuitamente de maneira

contraacuteria ao esperado Isto significa que neste domiacutenio eacute possiacutevel explicar um mesmo fato

por mais de um entimema verossiacutemil Por exemplo eacute absolutamente verossiacutemil que o

capitatildeo do navio natildeo jogue a carga ao mar poreacutem eacute verossiacutemil que quando houver uma

tormenta que ameace a vida dos passageiros relativamente a essas circunstacircncias

particulares seria liacutecito e razoaacutevel que o capitatildeo decida jogar a carga ao mar Por isso

estaria vedado para Aristoacuteteles argumentar pelo verossiacutemil relativo em toda a extensatildeo

do domiacutenio onde a regularidade eacute a marca dos seus objetos isto eacute em todo o domiacutenio das

coisas que acontecem a maior parte das vezes (Ibid 2006 156-157) Isto posto o

verossiacutemil pode ter duas modalidades distintas A primeira diz respeito ao verossiacutemil

absoluto que estaacute de acordo com as expectativas normais aquelas com as quais os

ouvintes estatildeo acostumados como quando um homem forte tenha agredido algueacutem

fisicamente mais fraco E a outra o verossiacutemil relativo que insere o fato acontecido em

coordenadas diferentes daquelas nas quais se teria pensado naturalmente por exemplo

leva em consideraccedilatildeo o fato da naturalidade de levantar suspeita que um homem forte

tenha batido em um fraco e declara que esse mesmo fato torna inverossiacutemil que o homem

forte seja culpado (Ibid 2006 161-162)

Com base na argumentaccedilatildeo falaciosa chamada de entimema aparente o orador

mal-intencionado pode apresentar um fato que normalmente pareceria de uma certa

maneira (na medida em que estaria inserido numa certa regularidade) como exatamente

o contraacuterio do que parece ser o caso introduzindo-o em uma outra regularidade Assim

se determinado indiviacuteduo pareceria culpaacutevel no quadro de expectativas ao qual se estaacute

acostumado considerado de um outro ponto de vista (ou seja em relaccedilatildeo a uma outra

forma de regularidade) sua inocecircncia poderia ser suposta como verossiacutemil No entanto

tal argumentaccedilatildeo caracterizaria o verossiacutemil relativo e natildeo o absoluto o qual segundo

Aristoacuteteles deveria ser veiculado por todo orador bem-intencionado Aliaacutes o que

determina um entimema aparente natildeo eacute o simples fato do orador argumentar a partir do

verossiacutemil relativo mas por apresentaacute-lo como se fosse absoluto em detrimento do que

geralmente acontece

Pode-se assegurar entatildeo que eacute verossiacutemil absolutamente que um homem de

compleiccedilatildeo forte tenha batido naquele que eacute fraco porque de acordo com aquilo que se

estaacute acostumado a presenciar eacute isso que amiuacutede acontece ou seja tal fato estaria de

acordo com a regularidade do domiacutenio no qual se vive Natildeo obstante poder-se-ia

perfeitamente considerar esse mesmo fato como fazendo parte de uma outra regularidade

qual seja aquela na qual os homens fortes soubessem que facilmente se tornariam

suspeitos razatildeo pela qual evitariam bater em homens fracos A investigaccedilatildeo sobre o

verossiacutemil relativo teria levado o Estagirita a constatar que embora no domiacutenio dos

homens que vivem na comunidade poliacutetica certas coisas comportam-se ὡς ἐπὶ τὸ πολύ

quer dizer comportam-se no mais das vezes tal situaccedilatildeo natildeo seria a uacutenica e isto teria

como consequecircncia a possibilidade de persuadir os ouvintes mediante argumentos

falaciosos Por fim Aristoacuteteles encerra sua anaacutelise do entimema aparente (Ret 1402a 30-

37) afirmando que com justiccedila os homens se indignaram contra a doutrina de Protaacutegoras

pois ela constitui um logro e uma probabilidade natildeo verdadeira mas aparente (καὶ

ἐντεῦθεν δικαίως ἐδυσχέραινον οἱ ἄνθρωποι τὸ Πρωταγόρου ἐπάγγελμα ψεῦδός τε γάρ

ἐστιν καὶ οὐκ ἀληθὲς ἀλλὰ φαινόμενον εἰκός)

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Tendo em vista os assuntos tratados na presente investigaccedilatildeo pode-se concluir que

a hipoacutetese de que no pensamento retoacuterico de Aristoacuteteles encontra-se uma conciliaccedilatildeo

entre duas perspectivas tidas como antagocircnicas ndash a de Platatildeo e a dos sofistas ndash resulta

confirmada Inicialmente diagnosticamos dois momentos distintos no pensamento

retoacuterico do Estagirita quais sejam a juvenil filiaccedilatildeo em relaccedilatildeo a filosofia de Platatildeo e

ulteriormente numa fase mais madura a adoccedilatildeo da heranccedila retoacuterica dos mais importantes

sofistas Todavia antes da indicaccedilatildeo da intrincada relaccedilatildeo entre a filosofia de Platatildeo e a

sofiacutestica na retoacuterica de Aristoacuteteles foi necessaacuterio uma breve anaacutelise da concepccedilatildeo retoacuterica

do Soacutecrates histoacuterico a fim de entrevermos em que medida a retoacuterica sui generis deste

filoacutesofo definiu a visatildeo retoacuterica de Platatildeo Na sequecircncia comparamos a concepccedilatildeo retoacuterica

de Soacutecrates com a de Aristoacuteteles que permitiu concluir que agrave diferenccedila daquele

Aristoacuteteles natildeo estimava haver uma incompatibilidade intriacutenseca entre a persuasatildeo

retoacuterica e a comunicaccedilatildeo da verdade de sorte que os mais engenhosos recursos retoacutericos

poderiam ser uacuteteis para o bem da cidade mas com a condiccedilatildeo de serem empregados

segundo um compromisso eacutetico-poliacutetico Depois investigamos na obra de Platatildeo

sobretudo no diaacutelogo Fedro a linha mestra do pensamento retoacuterico deste filoacutesofo que

consiste substancialmente na adoccedilatildeo de uma retoacuterica filosoacutefica apoiada no meacutetodo

dialeacutetico cujo objetivo natildeo eacute adular nem reproduzir a opiniatildeo dos ouvintes mas instruiacute-

los moralmente de acordo com a Ideia do bem em conexatildeo com um modelo divino Mais

uma vez contrastamos duas visotildees distintas acerca da arte retoacuterica a de Platatildeo e a de

Aristoacuteteles Esse contraste permitiu ressaltar as noccedilotildees que aproximam Aristoacuteteles dos

sofistas daiacute atestando que este separa o domiacutenio da filosofia do domiacutenio da retoacuterica

conferindo-lhe uma autonomia que natildeo eacute ponderada por Platatildeo Desse modo a arte

retoacuterica de Aristoacuteteles natildeo precisa levar em conta a comunicaccedilatildeo da verdade filosoacutefica

mas deveria apenas ater-se agrave opiniatildeo geral razatildeo pela qual ela deveria abrir matildeo de

qualquer demonstraccedilatildeo apodiacutectica para limitar-se a argumentar a partir de probabilidades

e sinais em conformidade com o niacutevel da mentalidade do puacuteblico

Outrossim investigamos a concepccedilatildeo retoacuterica dos sofistas Goacutergias e Protaacutegoras a

qual estaria epistemicamente estribada no mais absoluto relativismo segundo o qual natildeo

seria possiacutevel veicular no discurso retoacuterico a apresentaccedilatildeo dos fatos em palavras mas

somente sua representaccedilatildeo subjetiva No toacutepico sobre a doutrina do sofista Goacutergias

observamos que ele enaltece exageradamente a capacidade persuasiva do discurso

retoacuterico que ele designa de λόγος conferindo-lhe um poder quase absoluto sobre os

ouvintes a ponto de comparaacute-lo com um grande e soberano senhor Aliaacutes para Goacutergias

o discurso soacute pode comunicar a opiniatildeo e natildeo o conhecimento porque conforme sua

posiccedilatildeo ceacutetica as palavras natildeo teriam qualquer correspondecircncia com as coisas Natildeo

obstante as palavras podem alterar pelo engano tanto as emoccedilotildees como as opiniotildees dos

ouvintes submetendo-os ao poder do orador No que toca agrave concepccedilatildeo retoacuterica de

Protaacutegoras consideramos a doutrina de que sobre qualquer assunto existem sempre duas

opiniotildees contraacuterias de maneira que orador pode defender indiferentemente ambos os

lados de uma questatildeo Nesse sentido natildeo haveria espaccedilo em sua teoria para o princiacutepio

de natildeo-contradiccedilatildeo porque tanto as percepccedilotildees quanto as opiniotildees sempre seriam

verdadeiras ainda que opostas entre si O sofista ainda concebe o homem como a medida

de todas as coisas o que significa que a verdade soacute pode ser relativa ao sujeito que

conhece e julga Mas se para Protaacutegoras natildeo existem proposiccedilotildees universalmente vaacutelidas

compete ao orador saber distinguir entre as opiniotildees melhores e piores e persuadir seus

ouvintes a respeito disso No entanto em contraste com a perspectiva de Goacutergias vimos

que Aristoacuteteles limita o poder de persuasatildeo da retoacuterica ndash ela pode descobrir os meios

disponiacuteveis para a persuasatildeo mas natildeo eacute capaz de persuadir a todos Aristoacuteteles tambeacutem

rejeita na retoacuterica gorgiana o emprego paradoxal do discurso epidiacutectico que deve acima

de tudo reconhecer valores bem como sua expressatildeo poeacutetica que carecia de simplicidade

clareza e aspirava apenas os efeitos pateacuteticos do discurso em detrimento da demonstraccedilatildeo

loacutegica na forma do entimema e do exemplo No que tange a Protaacutegoras verificamos que

Aristoacuteteles faz a defesa do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo que para ele constitui o

fundamento tanto do pensamento teoacuterico como do praacutetico Este uacuteltimo que nos interessou

sobremaneira dispotildee-se a obter a verdade que corresponde agrave accedilatildeo eacutetico-poliacutetica mais

correta e neste aspecto aferimos a filiaccedilatildeo de Aristoacuteteles em relaccedilatildeo a Platatildeo No entanto

o Estagirita rejeita a concepccedilatildeo de que no acircmbito da arte retoacuterica seja possiacutevel veicular

verdades absolutas como queria seu mestre mas nem por isso ele anui o relativismo

absoluto dos sofistas porque se este prevalecer na poliacutetica por certo fomentaraacute

consequecircncias nefastas para a cidade haja vista que a justiccedila e a injusticcedila poderatildeo ser

defendidas indiferentemente Mas ainda que natildeo exista em referecircncia aos assuntos eacutetico-

poliacuteticos a verdade absoluta existe certamente algo mais seguro e mais veriacutedico ndash as

opiniotildees geralmente aceitas ndash cujo expediente eacute vital para a superaccedilatildeo da bipolaridade

existente entre o conhecimento cientiacutefico e o relativismo

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