A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

download A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

of 42

Transcript of A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    1/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 1

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    2/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 2

    Na bela e nunca por demais celebrada cidade de Lisboa, urbe das urbes, afamadoremanso de brandura, nimbado de zimbrios e palmeiras, a moda das tartarugas exticascomeou um dia a fatigar. Os animais foram crescendo desmedidamente, a termos de ocupartodo o espao dos aqurios domsticos, embatendo toa nos vidros, com risco de os partir ede perturbar o sossego ntimo das famlias. Vultos furtivos, pela calada da noite, em ofegantessortidas nocturnas, encarregaram-se de distribuir rpteis bojudos pelos tanques e charcos deLisboa e no poucos couberam ao lago do Campo Grande. Quem por ali passasse noite,com uma lanterna, porventura em busca dum par de chaves transviado, ou duma moeda dasorte, surpreenderia, pelas margens lodosas, mltiplas excrescncias tumefactas, negro-verdes, de que ressaltavam, numa redondeza um tanto pasmada, os olhos midos.

    Por essa altura, no ptio do Museu da Cidade, houve quem decidisse animar o tanquesetecentista, que a macieza derramada de musgos escurecia, em tons de dolnciaabandonada, com umas carpas juvenis que davam um luxo de cores rpidas espessura dasguas limosas.

    Os patos marrecos que, h geraes, habitam o lago, deixando-se ver aos domingos asingrar, boiantes e burgueses, seguidos pela prole cinzenta em fila indiana, e que mergulhamnaquelas negruras, alando uma pelcia acrobtica nabiforme entre duas amarelides

    molengas, acusaram sua maneira a invaso sorumbtica das tartarugas. Dispuserampatrulhas, fizeram reconhecimentos e descobriram quo saborosas eram as carpas, que osempregados do museu no se cansavam de renovar, atribuindo, com injustia, o seudesaparecimento a mos humanas, vndalas ou vagabundas.

    Mas nas cristalinas alcndoras de cus lmpidos, donde toda a obra humana seapequena, recortada em talhes geomtricos, e donde a todo o comprido Portugal se alcana,orlado do esbranquiar difuso das praias e embutido num mar vasto, claro e luzente, velam,torvas e sombrias, algumas presenas funestas. Com o seu olhar recurvo, bico de gancho epossantes asas ombrudas, os falces do aeroporto so profissionais mal pagos a quemaqueles patos gordos comeam a fazer sentido, j desapetecida a pombalhada montona quese alvoroa para amparos to cinzentos como ela, em debandada fujona.

    Podem os falcoeiros esperar, com a sua luva couraada ao alto e os sinaisestabelecidos desde h eras, que os falces querem dar uso s garras e tm umas contas aregular com os intrusos que lhes grasnam no minucioso campo de viso. Os arvoredos efolhagens das vastides do Campo Grande antes ocultavam-nos, mas, nos jardins do museu,disponibilizam-se agora, distrados e prontos, como uma oferenda da divindade das aves derapina.

    E foi em volta daquele aristocrtico tanque, ornado de bolores e limos, recoberto degraciosas figuras evocando nudezes esquivas e solertes minuetes, que espadanaram guas,se altearam grasnidos pungentes, estrdulos de ferir ouvidos e estremecer vidraas. Robustasgarras de bronze dilaceraram carnes e penas, em redemoinhos convulsos de feridas emaberto, num espectculo aflitivo como nunca se houvera visto, sequer nas televises mais

    torpes.Ningum se atreve a estabelecer qual foi a exacta causalidade desta repentina cadeia

    de acontecimentos, mas pode aventar-se que nem as famlias que se privaram das tartarugas,nem o honrado conservador do museu, nem os falcoeiros protectores de avies, nem qualquerdos cidados de Lisboa anteviram um desfecho to sanguinolento e to espectacular. a sinados homens serem sistematicamente trados pelos caprichos da realidade. Ainda queadvertidos por qualquer Cassandra da marcha das coisas, no deixariam de proceder scegas, como prprio da sua natureza, servil a um destino escrito no sei onde.

    A esmagadora maioria dos vizinhos de Lisboa no tomou conhecimento daquelaspavorosas ocorrncias que, alis, lhe provocariam horror e repulsa. Tampouco um certo jovemcasal desavindo, morador ao Lumiar, convencido, por esses dias, de que a sua comunho devida (luminosa formulao legal) estava a dar as ltimas. Antes da fase do divrcio, de que

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    3/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 3

    anteviam maadas burocrticas e tortuosidades jurdicas, ocupavam-se com os termos da suaprpria separao fsica e material.

    Ela ficava muito sria, sorrindo, numa sua maneira peculiar de conflituar as feies,contrastando lbios e olhos, para bom entendedor; ele tamborilava com os dedos e fingiaregressar a si, aps sobressaltos de distraco, como se no estivesse, na verdade, a fazernada de importante. E assim se aplicavam naquela noite, sobraando livros, discos e bibels,elaborando listas, tratando-se com uma cortesia glacial, depois de terem jantado cada um paraseu lado. Subentendiam que cada qual amesendara com seu par, quando, em boa verdade, elatinha vindo do balco despovoado dum centro comercial e ele duma tasca escondidinha combifanas a um euro.

    Chamavam-se Arnaldo e Brbara, andavam pelos trinta anos, eram empregados deescritrio, e cada qual estaria, segundo informao mais aludida que confessada,interessado n' outrem.

    Classificavam e inventariavam sem penosidade, com a segurana superior com quevemos os funcionrios das finanas somar talezinhos de despesa, ou receitas de farmciacom NA a 5% e 11%. Como isto possvel? Como no se distraem? Como no se enganam?Como no se enfadam de morte? A alma humana regurgita destas misteriosas potencialidades.

    Ao cabo de duas noites, foi deixado em dvida apenas um bibel cintico, umequilibrista de arame que, ao menor impulso, oscilava durante horas, sobre dois blocos demrmore fingido. Ambos reivindicaram o artefacto, lembrando diversos familiares ofertantes,ambos acabaram, generosamente, por renunciar sua posse e por pouco no engrossavam avoz, mais para impor a recusa que a exigncia.

    Tratando-se de duas assoalhadas, e de vidas novas, com poucas heranas, das queatravancam as casas de velhas cmodas desirmanadas, pilhas de quadros escondidos atrsde sofs e tapetes persas to autnticos como os chineses de Arraiolos, dir-se-ia que a partilhano era muito trabalhosa. Por exemplo, para espritos menos conscienciosos, no se imporiaanotar numa folha pautada os nomes dos discos, autores, intrpretes, editor e data, nemproceder de forma semelhante com os livros, que se contavam pelos dedos. Mas ambos se

    compraziam em mostrar-se zelosos e, sobre o brio profissional, dominava o gosto de enumerara que no faltava uma feio competitiva.Havia oito dias que dormiam separados, mas Brbara no aceitou o hbito, consagrado

    por geraes burguesas, de pernoitar ela no quarto e ele na sala. Tiveram de discutir comalguma veemncia, mas ela imps que se revezassem, noite sim, noite no. Um casalapressado e menos diligente procederia, decerto, de outro modo, mas convm aqui lembraraquele clebre incipit sobre as parecenas das famlias felizes e a singularidade das infelizes.Em termos subjectivos, eles considerar-se-iam razoavelmente infelizes, de maneira que noser indelicado arrol-los nessa categoria, literariamente mais dotada.

    Depois dos ltimos vasos de flores, das latas de conservas e frascos de salsichasalems da despensa, ambos se sentaram, de bloco de notas na mo, a contemplar, com

    alguma incomodidade, o item que faltava repartir. Dentro de um aqurio de acrlico, jencardido, de guas empasteladas de nutrientes, oxigenadas vagamente por um velho motorregougante, espapaava-se, negra e granulosa, a gorda tartaruga de origens pretensamenteexticas e preo condicente.

    Agora estava o animal em sossego, sobre um calhau artstico, a cabea sonolenta meioacobertada, o olhar fixo numa pequena mancha de humidade esbranquiada formada poremanaes calcrias da reputada gua de Lisboa. Ao invs de outras tartarugas domsticasconhecidas por nomes como Becas, Zitas ou Cunegundes, esta nunca tinha sidobaptizada. Era mencionada apenas como a tartaruga, designao que lhe serviaperfeitamente porque no havia outra em casa e nunca ocorreu aos proprietrios chamar-lhecgado rebaixando-a s designaes populares. Era alimentada com regularidade, e oaqurio recebia a manuteno adequada, quanto baste, sem exageros.

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    4/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 4

    Arnaldo e Brbara comearam, de repente, a falar ao mesmo tempo e, depois, riram-see calaram-se meio embaraados. A tartaruga descaiu um pouco, desandou na gua, numabraada dum amarelo viscoso, e tornou a equilibrar-se sobre a pedra.

    - Coitada - disse Brbara. - Sempre foi to desajeitada.- Podes ficar com ela, no a quero.- A tartaruga um bem comum. Comprmo-la os dois.- E quem teve a ideia?A tartaruga no deu qualquer ateno controvrsia que se seguiu e que ditava o seu

    destino. De facto, ela foi longa e bem integrada no contexto da separao, irradiante deinsinuaes e pequeninas perfdias, concentrando sentimentos negativos e dando ocasio arebuscadas figuras de estilo, dentro dos limites daquilo que habitualmente se considera umadiscusso civilizada. Para mim e para o leitor, pouco interessados em argumentos repisadose muito semelhantes aos das outras contendas domsticas, ela apenas tem interesse porintroduzir uma divagao breve e transcendente.

    Imaginem uma tartaruguita, rebrilhante de tons de azeviche e amarelos da Carris, nomeio das suas companheiras, num ambiente explosivo de luzes, fofices e cores, em plenoNatal, em certa loja de animais da Avenida de Roma, com os compassos do Adeste Fideles a

    arredondar as prprias esquinas. Um par recm-casado, ainda saltitante, numa descobertadum mundo a dois, a vibrar de cores vivas, entendeu, na sua exuberncia, que aquelaelegncia sossegada e luzida ia bem com a decorao da sala.

    No estavam interessados em filhos para j. Sabiam o que um cachorro e um gatoexigem de ateno e os tributos inevitveis que reclamam em destruio de chinelos e forrosde sofs. Optaram com grande alegria por aquele animal de estimao que respirava e tinhamovimentos, mas tambm jogava bem com as pedras exticas importadas do Brasilamontoadas num prato de vidro azul, e que caberiam a Brbara na partilha em curso.

    Eis a transitoriedade e o arbtrio dos afectos humanos. -se pequeno, gracioso,saudvel e elegante e temos o mundo rendido, especialmente o dos jovens casais, para quemo futuro uma ideia abstracta e despicienda. Cresce-se, avantaja-se, escurece-se, deslassa-

    se, amolece-se e j nos olham de lado, com impacincia ou indiferena, porque o passado um lastro. destas incomodidades metafsicas que se tem feito a literatura e so amargurasdeste gnero o verdadeiro portal para a transcendncia.

    - Eu no a quero! - repetiu Brbara apertando os dentes com irritao.- Eu tambm no! - respondeu Arnaldo, levantando-se com o rosto muito perto do nariz

    dela.Logo a seguir suspiraram, descontraram os ombros e sentaram-se de novo no sof.Nenhum deles reivindicava o pobre animal. Tinham-no comprado, certo, eram

    responsveis por ele, nunca faltaram criatura os nfimos camares torrados, nem um raioesguio de sol, nem a mudana de guas. S que, para alm do facto de ser um animal com umpoder de seduo discutvel e que dava pouco azo a empatias, no podia sentir-se livre nem

    realizado, j com um tamanho daqueles, num aqurio to estreito. E a verdade que ainfelicidade dos nossos animais interfere com a nossa e chega mesmo a causar grandesamuos. O vendedor, contra quem no se podia reclamar porque a loja de animais falira, com asrazias da fiscalizao a ajudar pouco, num vezo de antipatizar com os produtos mais berrantese mais rentveis, garantira que aquela espcie de tartaruga, maneirinha e donairosa, nocrescia muito. Mas ela a estava, em poucos meses, um Leviato domstico que s semovimentava noite, estalando no aqurio como um prato de estanho solta num poro vazio,nas procelas da Biscaia.

    A dupla recusa poderia conformar, para os juristas, aquilo a que se chama um conflitonegativo digno de um Rei Salomo, e foi uma soluo salomnica que se comeou a formarnaqueles espritos. J que nenhum queria a tartaruga, havia que lhe assegurar um destinoindependente de ambos.

    Comearam por passar em revista amigos e familiares, sem excluir, com algumaleviandade, os filhos menores de uns e de outros. Acresceu mais uma lista, nesse sero, a que

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    5/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 5

    no foram poupados, em desespero, os comerciantes da zona, nem as empregadasdomsticas ao alcance do conhecimento. Do rol constou dificilmente a me de Arnaldo,rasurada e recuperada mltiplas vezes, em mar de hesitao. Aparentemente, seria o recursode que todos os filhos se lembrariam, em nsias de resolver um problema espinhoso, como ode uma tartaruga cuja sobrevivncia perturbava as conscincias. Mas a me de Arnaldo tinha oseu estilo peculiar: no era do gnero de se deixar comover pelas dificuldades filiais.

    No foi nessa noite ainda que a diviso dos bens do casal resultou deliberada. Estavamcansados.

    - Quem dorme hoje no sof? - perguntou Brbara.- No faas barulho quando fores ao frigorfico - respondeu Arnaldo.

    No dia seguinte, nos empregos de Arnaldo e de Brbara, correu que eles se iamseparar. Tanto um como o outro jurariam que tinham mantido reserva sobre a sua vida pessoal,como era, alis, concordncia tcita, mas a verdade que, como na ria da calnia, houvequalquer aureta, um venticello que levou a notcia a almas predispostas a aligeirar umquotidiano demasiadamente carregado de dedues especficas e juros compensatrios.

    Na firma de Arnaldo, os homens manifestaram-se com meias palavras e palmadas viris

    de encorajamento nas espaldas; as mulheres formando grupinhos, comentando de longe emirando-o com outros olhos. Na loja de ferragens em que Brbara trabalhava, os homensencolheram os ombros e a nica mulher, Clarinda, de que adiante mais se falar, solidarizou-selogo, militantemente. Mas ningum se disponibilizou para desfazer o n grdio que ligavaaqueles dois, na figura de um pacato quelnio, removendo-o da pauta, o que traduz aimpopularidade das tartarugas entre os jovens empregados. Foram lastimosamente esgotadastodas as desculpas para no dar asilo ao animal, desde a falta de espao at ao medo de lhetomarem afeio e serem desiludidos por qualquer percalo.

    No entanto, no meio das inmeras sugestes que apareceram, num af de os colegasse mostrarem teis e bons camaradas, surgiram duas propostas interessantes, mais razoveisque a doao Igreja, insinuada por um rancoroso franco-mao.

    Uma, seria a de tentar vend-la na Internet, com a vantagem de resolver um problemaganhando algum dinheiro; outra, a de tentar coloc-la, mesmo que gratuitamente, em lojas deanimais que havia perto de cada um dos empregos. Arnaldo e Brbara, sensivelmente pelamesma hora, fizeram as suas consultas e obtiveram as mesmas respostas: ningum queriatartarugas, o cabo dos trabalhos era vend-las. Mas ambos os comerciantes revelaram, comalgumas hesitaes, o destino que os lisboetas costumavam dar s tartarugas desactivadas: oslagos e pegos de Lisboa, sendo certo que um se inclinou mais para o Jardim da Estrela e outropara o Parque Eduardo VII.

    E, nessa noite, depois de Arnaldo ter jantado na sua tasca mexeruca e Brbara tercomido um par de chamuas com um sumo de laranja no centro comercial, repleto devadiagem, ambos traaram, mesa oval da sala, a sorte da tartaruga.

    A opo entre o Jardim da Estrela e o Parque deu discusso. Acabaram por fazer umalista quase exaustiva de todos os tanques, charcos, espelhos de gua que h em Lisboa.Optaram, vistos os prs e os contras, pelo lago do Campo Grande contra o Parque EduardoVII, recorrendo ao processo democrtico apropriado para desempates: cara ou c'roa.

    E, como era muito tarde, foram ambos deitar-se.

    Na noite seguinte, Arnaldo e Brbara calharam encontrar-se no mesmo restaurante docentro comercial. Quando Arnaldo entrou, j Brbara estava sentada a uma mesa, e desviava oolhar. Ele fez meno de virar as costas, mas ficou atarantado, a remexer nos bolsos com o arde quem tinha perdido as chaves. Por um instante, tanto um como o outro foram fulminadospor desagradveis sensaes de ridculo e desajeito que, ainda por cima, feriam o sentido defair play que ambos queriam ostentar, mesmo que o corpo lhes pedisse outra coisa.

    Arnaldo foi resoluto, dirigiu-se mesa de Brbara e puxou uma cadeira:- Posso?

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    6/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 6

    - Ah, estavas a? - perguntou Brbara, sabendo que Arnaldo notara que ela o havia visto.J que desviara o olhar, entendia que o mnimo sentido de decoro a obrigava a sustentar

    a farsa. Mas Arnaldo no se sentou logo. Por um instante, a ideia de que Brbara pudesseestar espera de algum gelou-o, e Brbara leu-lhe o embarao na cara, entre o desafiador eo suplicante.

    O jantar correu to bem que nenhum deles resmungou contra as pssimas lulasgrelhadas que lhes foram servidas por um brasileiro barulhento, que continuava a galhofar coma empregada de balco enquanto lhes atirava as duas travessas para cima da mesa. Falaramde tudo menos dos agravos recprocos, e podiam ficar muito mais tempo a conversar se aconta no lhes tivesse aparecido na mesa, j com a porta de vidro meio cerrada e osbrasileiros a empilhar as cadeiras para o outro dia.

    Em casa, os gestos amoleceram e as expresses tornaram-se mais compenetradas.Havia um grande problema e, dentro do grande problema, um problemazito-satlite que estavaa prevalecer e a empatar tudo. A tartaruga, que nunca lhes tinha merecido ternura bastantepara lhe atriburem sequer um nome, parecia boiar na gua como uma mancha de breucompacto, gorduroso, grosso e feio.

    - O que que ns decidimos? - perguntou Arnaldo, procurando, de entre as folhas

    espalhadas pela mesa, aquela em que tinham escrito a lista dos lugares hmidos de Lisboa.- Lago do Campo Grande - respondeu Brbara, admirada com a inesperadadesmemria.

    E ficaram a olhar um para o outro. Brbara pousou o comando da televiso em que tinhapegado por distraco.

    - Ento? - quis saber.- Ento, o qu?- Esperas que seja eu a levar o bicho?Isto deu urna arrastada discusso em que foram chamados a captulo pontos

    subjacentes, corno o de quem mudava a gua, quem comprava as latas de comida seca equem alimentava o animal. De nada valeu a Arnaldo tentar transformar a desvantagem em

    vitria, com o argumento de que j que s tu quem mais trata dela, ento compete-tetransport-la. Ambos se referiam ao bicho no feminino, ela, ela isto e ela aquilo, ela assime ela assado, ainda que, por efeitos com que s os veterinrios conseguem atinar, o quelnioredondo, inexpressivo e pesado fosse, afinal, um macho.

    - Recuso-me a tocar nesse animal com as minhas mos - repontou, por fim, Arnaldo,num cruzar de braos brusco que representava j a defesa do ltimo reduto, com a guarda aresistir ainda, por denodo, sabendo que em breve ser esmagada pela derradeira carga.

    -Porqu?- Bactrias. Salmonelas. Este bicho um fervedouro de infeces.Brbara concordou. Vira o mesmo programa de televiso. O caso que no havia luvas

    em casa. Tinha de ficar para o outro dia.

    - Mas ajudas-me, h?Arnaldo insistia. Queria por fora que Brbara compartilhasse o despedimento da

    tartaruga com a mesma frieza com que os cmplices dum assassnio exigem que todosdesfiram um golpe para selar uma responsabilidade comum. Ela no respondeu. Mas quando,cansado, Arnaldo regressou da casa de banho, dizendo:

    - Podamos hoje partilhar a cama e acabar com esta jigajoga das trocas. J somosadultos, que diabo.

    Brbara retorquiu:- Eu sou. Tu no.Amuada, abriu um armrio e atirou dois lenis e uma almofada para cima do sof.

    - Meu filho querido, francamente, preferia que tivesses percebido isso por ti. Umapessoa afeioa-se aos animais e, depois, quando eles morrem ...

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    7/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 7

    Arnaldo tinha feito a pergunta a medo, depois de hesitar longo tempo e contemplardemoradamente os quadros com molduras douradas da sala, sempre muito composta, delinhas, cores e volumes sabiamente equilibrados. Tomou um golo do horrvel sumo de laranjaem p que a me lhe havia apresentado, mesmo contra os seus protestos, e guardou para si aobservao de que um crach prateado, da Polcia de Nova Iorque, num fundo de veludo azul,sobre a cmoda marchetada, destoava da Leda e o Cisne, Orfeu nos Infernos, e remadores detrirreme, que aspergiam uma atmosfera arcdica ou nostlgica em torno do polimento do piano.Apetecia-lhe devolver a observao me, preferia que tivesses percebido por ti, mas eraabsolutamente incapaz de, naquela presena, enunciar uma frase que pudesse serconsiderada mais spera ou agressiva. Em circunstncias normais, teria guardado aapreciao para a exprimir em casa, junto de Brbara, deixando que fosse ela a comentar, semse comprometer demasiado. Mas, naquela tarde, Brbara por onde andaria? Tornou mais umgole de laranjada e fez uma careta.

    - Lamento, meu filho.Arnaldo no percebeu bem se o desabafo tinha que ver com a rejeio da tartaruga, ou

    com aquele declive, lento e inexorvel, do seu casamento, a pender para o fim, de uma formaque as mes no costumam apreciar, especialmente quando vem a risco de perturbao da

    sua paz e sossego. Em todo o caso, ela sabia pouco, porque Arnaldo, com alguma propensopara a litotes, foi vago (Isto, sabe, me, j tem andado melhor), e no quis adiantar maispormenores. Mas no tardava e a me dava a entender, distraidamente, como de passagem,que o segundo propsito que levara Arnaldo quela visita inusitada de fim de tarde se achavagorado.

    - O teu quarto de solteiro est desmanchado. Bem vs.Arnaldo j se apercebera de que a moblia do seu quarto havia desaparecido e

    campeavam por l, bizarramente, um tapete de judo, um jogo de alteres, vrios estojos depesca e uma volumosa bicicleta de exerccio. A me, por descargo de conscincia,acrescentava agora:

    - Todos os casais tm os seus problemas. Por que no vais para um hotel, por uns dias,

    filho? - Eu no tenho dinheiro para um hotel, me.- Vs? Tu no estudaste ... Eu bem te avisei. A propsito, onde compraste essa gravata?

    Na Feira do Relgio?- No, mam, foi em Saville Row ...- Tens de tomar cuidado contigo, meu querido.

    E a me fez-lhe uma festa distrada no cabelo, arrepelando-lhe a franja.Mas a fechadura da porta estalou convictamente e Arnaldo teve um sobressalto: era o

    polcia. Julgava que ele estivesse de servio quela hora. Levantou-se to depressa quederrubou um pequeno cinzeiro em forma de roscea que ornamentava o brao do sof develudo e deu uma pancada na mesa que esteve, vai-no-vai, para causar uma inundao de

    laranjada.- Credo, menino.Arnaldo temia visitar a casa da me por ela viver com um polcia, bastante mais novo,

    que o tratava com um ar arrogante e andava sempre a contrari-lo. Era daqueles tipos irritantesque julgam saber tudo e tm sempre alguma coisa a acrescentar e a corrigir. Por exemplo, nocaso de algum dizer, casualmente: Um amigo meu fez escala no Buto, quando vinha deTaiwan, num voo da Aeroflot, ele logo atalharia: A Aeroflot no faz escala no Buto, almdisso, a rota mais apropriada por Riad, a no ser, claro, que o piloto esteja bbedo, porquel no se podem consumir bebidas alcolicas, o que uma opo deles. Em todos os regimesh coisas boas e coisas ms. A Arbia Saudita, sabem?, o nico pas que tem um nomederivado de uma famlia. Reina a paz social. Sabes o que fazem aos ladres na ArbiaSaudita? Ah, pois, mas s com um cirurgio... A verdade que l, um ladro dificilmentereincide... Ento as segundas reincidncias esto totalmente excludas.

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    8/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 8

    Era um grande frequentador duma enciclopdia virtual que nos princpios do sculo XXIse designava por Wikipedia, muito apreciada por polcias vidos de instruo e estudantes emapuros de vspera de exame. A me ficava encantada, cabea pousada nas mos sonhadoras,quando ele discorria sobre as redes sociais, o Twitter, o Facebook e desvendava, alto e bomsom, as mltiplas e desenvoltas projeces da sua personalidade.

    Mas Arnaldo, agora, no tinha maneira de escapar. J assomava porta a figuraenorme e quadrada do guarda de primeira classe Gervsio das Neves Escarrapacha,envergando fato Armani, imitao habilidosa, sobre camisa Springfield fabricada na Tailndia.Manifestou-se com arrudo, satisfeito por encontrar o rapaz.

    - 'Ts porreirssimo, p?Arnaldo percebeu, pelo relance que passou nas feies da me, numa sucesso

    fulminante de regozijo e enjoo, a figura triste e desconsolada que fazia com a sua cara mida,o queixo afilado, os ombros dobrados, os cabelos alourados, finos e escorridos, os olhossempre espantados, de uma deslavada cor de malva, em contraste com aquele atleta jovial,impante de msculo, levantado de gestos. Geralmente, considera-se que os filhos no soavaliados pelas mes no mesmo tabuleiro dos amantes. Mas ns no conhecemos todos osfilhos nem todas as mes. Era bom que esta me se reconduzisse, no j s condies

    celebradas de especiosa ou dolorosa, mas ao figurino ordinrio da benevolncia materna. Paraa leitora, porque a reconheceria com mais facilidade e afinidade; para o autor porque lheexigiria menos esforo de caracterizao; e para Arnaldo que escaparia a estas humilhaes.

    Saiu com precipitao, engrolando uma desculpa atabalhoada sobre o parqumetro,falsssima, porque tinha vindo de Metro, e cruzou-se no patamar com um aluno de piano dame que saa do elevador, cabisbaixo, a arrastar urna mochila tristonha. E desligou otelemvel, porque no queria que a me lhe telefonasse a pedir explicaes.

    J uma vez ela lhe tinha sussurrado, sorrindo, com uma palmadinha na mo:- V l, confessa que no gostas muito do Gervsio.Timidamente, Arnaldo respondera:- No, me, muito ao contrrio. Tem imensa sade mental...

    Jantar sozinho uma febra panada com alface, batatas de palito e palha de cenouracrestada, num banco de bar, junto a um rebordo alto de frmica bordeaux, encostado a umespelho que reflecte o balco, e o movimento triste doutros tipos solitrios, com ar depaquetes, taxistas e pequenos lojistas, e tambm duma esparsa escria de Lisboa, que devoraum ovo cozido ou um rissol de leito, falando sobre bola, ordinarices ou irrelevncias, nemsempre m coisa. No raro, o olhar deambula, o esprito vagueia e espreguia-se, num limboem que fluem as impresses, as recordaes, as imagens, levadas por uma Corrente deconscincia indolor que pode ser to atraente que certos romancistas, e no dos menores,chegam a fazer matria disso.

    Mas a solido aquietada que compraz a certas almas, das que tm algo para dar a siprprias, nem sempre agrada a outras, que precisam de ser estimuladas de fora, por nofabricarem energia no seu ncleo.

    Seria o caso de Arnaldo Vargas que, ao pagar a conta, se sentiu to triste edesconsolado que comprou um bilhete para o cinema num balco de pipo- cas e bebidasgaseificadas.

    Na sala azulada pairava um cheiro oleoso, a fritos,e, nos raros silncios, em que abrandava a gritaria dos sons dolby, muito acima do que oouvido humano pode suportar, sobrepunha-se o rilhar do milho em baldes de papel e o rangerabrutado de mandbulas. Houve minutos alucinados de anncios, com revoadas de decibisem catadupa a cada mudana de plano, batucadas, pancadas em ferro e troves de lata.

    Para quem vinha duma cervejaria tranquila de centro comercial de bairro, e tinha aquelamaneira de estar, branda e paciente, a sofreguido comercial com que lhe queriam inculcarcomputadores, telemveis e mquinas de caf, poderia funcionar como se lhe estivessem a dar

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    9/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 9

    empuxes, cotoveladas, rasteiras e caneladas, a sacudi-lo, a empurr-lo, gritando-lhe aosouvidos, moendo-lhe a ateno.

    Mas Arnaldo, como os outros frequentadores que tasquinhavam milho frito e deixavamndoas de gordura nas camisas e nos braos das cadeiras, no era excessivamente abalizadode juzo crtico e julgava que o cinema, hoje, tinha que ser mesmo aquilo.

    A fita metia Brooklin e um polcia e uns tiros e uma pistola e sangue, a gua jorra emtorrente de uma boca de incndio, um homem corre, e o amigo do polcia a morrer, e umaperseguio de carro e uma bibliotecria antiptica, que afinal o polcia descobre que erastripper num clube nocturno, que pertencia ao irmo dum mafioso que andava pela estrada noTexas e havia rolos secos de plantas aos revolejos no ar, e um homem vem do deserto,paisagens marcianas cheias de calhaus, e passa um jipe e dois tiros, e sangue e um motel eum homem tira uma caadeira dum estojo, e a janela rebenta com um tiro e ...

    Vem Arnaldo tristonho a pensar que j tinha visto aquele filme e que talvez novalessem a pena os oitos euros do bilhete. Afinal, na televiso havia mais variedade, e semprepodia mudar de canal quando abusavam dos reclames. Trazia ainda a zoada nos ouvidos,ratatatat, bum, vzzooooing, pum! E misturavam-se-lhe na memria as imagens dos anncios,as dos trailers de vrios thrillers (todos americanos) e as da fita que tinha acabado de ver, um

    monturo amalgamado de lixos revolvidos, s cores, fermentados, exalando um cheiro gordo aleo de frigir.Mas ento, Arnaldo sozinho a jantar, sozinho no cinema, sozinho a regressar a casa,

    sozinho sem mais nem menos? Mas no tinha ele sugerido a Brbara que havia outra mulher eque se encontravam numa fase da vida em que trs pessoas seriam demais, quanto maisquatro? Sem dvida, soltara a grande frase e exibira para com Brbara uma frieza europeia emundana, procurando desfazer suspeitas sobre existncia de cime.

    O homem um animal tctico, traz no sangue a capacidade de dissimulao, ainda queseja pacato de maneiras e pouco imaginoso de nimo.

    Era tudo mentira. No havia outra mulher. S um hbil exerccio de fantasia poderiaimaginar qualquer interesse ertico pelas colegas de trabalho ou pelas caixeiras das Amoreiras

    com quem se cruzava no dia-a-dia. Mas quem seria o fulano com quem Brbara jantava eprovavelmente iria ao cinema e ... ?Na loja de armas, agora escurecida, atrs da rede de ao forte, negrejava uma besta

    sofisticada, sobre um alinhamento sinistro de facas de mato, uma delas do tamanho de umcutelo de magarefe, a proteger uma pacfica coleco de carretos de pesca. Pendurado maisacima, sobrelevava um camaroeiro, que parecia prestes a varrer e levar consigo os artefactosletais.

    A est. Um camaroeiro, pensou Arnaldo, o ideal para transportar a tartaruga. Masno armeiro custa os olhos da cara ... Amanh passo pela loja do chins. Pode ser quetenham ...

    O apartamento estava silencioso quando chegou, numa paz espessa de palcio de Bela

    Adormecida, ala dos criados. Havia uns restos de comida na cozinha que Arnaldo,pacientemente, deitou para aquele recipiente com pedal a que ns, por inrcia semntica,continuamos a chamar caixote. A tampa fechou-se com um claque de lata e ele receouacordar Brbara que nessa noite dormia no quarto, cabendo-lhe, portanto, a sala.

    A tartaruga parecia dormir, encolhida dentro da carapaa, impondo a sua presenaescura e nodosa ao rebrilho das guas do aqurio. Arnaldo considerou a hiptese de esvaziara gua, levar o aqurio para a rua e deix-lo ao p do ecoponto, mas teve pena do animal,receio do rudo, medo de ser surpreendido por um vizinho e, sobretudo, preguia. Alm disso,no se sentia disposto a grandes cargas nem se via a encalhar com uma estrutura de acrlicopelas paredes, com barulhaa, estilhaos ... Que figura!

    - Compraste as luvas? - perguntou Brbara, numa voz surpreendentemente clara paraaquelas horas da noite, que o sobressaltou, como se uma intimao do Alm fosse emitidapelas paredes.

    - Tive uma ideia melhor! Depois digo. At amanh.

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    10/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 10

    Era evidente que no devia insistir na histria da tartaruga em frente do agenteGervsio, nem podia contar com a cooperao dele para se livrar do bicho. Sabia l se existiauma lista de tartarugas proibidas e se aquele exemplar no tinha sido importadoclandestinamente dum planalto remoto da Amrica Central, isolado do mundo por cascatas edesfiladeiros, estuante de espcies nicas.

    Demorou a adormecer. A filmalhada ruidosa, o polcia em casa da me, o desgosto dasituao modorrenta, um ciumezinho latente que lacerava a alma com um talho subtil e quedoa mesmo quando no era apercebido, repeliram-lhe o sono durante mais tempo que ocostume.

    Abaixo os expedientes para introduzir uma narrao conta dum adormecimento. Pontode exclamao. O leitor mais experimentado que eu nestes artifcios e bem sabe como omomento de adormecer perigoso para as personagens, porque os autores costumamatorment-las com analepses. s vezes, basta apanharem-nas distradas, a olhar paraqualquer objecto. Um daqueles bolos a que chamam madalena, por exemplo ...

    Com abuso ou no, entendo que alguma coisa deve ser contada sobre a me deArnaldo, mais interessante que o remoto progenitor do rapaz, que se limitava a um telefonemaanual, sonolento, ou a um postal ilustrado de Lubliana ou Pasadena, conforme as viagens,

    mostrando imagens dos museus locais. Tinha-se ficado por segundo-secretrio na Embaixadade Estocolmo e casado por l, com uma sueca rica. Um Natal, mandou uma fotografia: um tipotristonho, de culos, de anorak, junto de uma casa de madeira, numa espcie de pinhal.Arnaldo mostrou-a a Brbara que comentou pensava que a Sucia fosse mais bonita e orapaz devolveu-a carteira junto aos cartes-de-visita e a outros papis sem destino.

    A me tinha-se divorciado por procurao e ficado com o apartamento da Avenida deRoma e a casa da Lagoa Moura. O pai no queria nada. Apenas que o deixassem em paz. Empaz ficou. No sem que a me o responsabilizasse, junto das amigas, pelas prestaesescolares modestas de Arnaldo.

    Era professora de msica, dava aulas de piano, tinha alguma fortuna pessoal e iavivendo, com muito -vontade. No gostava de Brbara, mais para cumprir um papel social e o

    esteretipo adequado do que por real antipatia, porque dificilmente tinha sentimentos to firmesque se sustentassem alm de um dia ou dois. Tratava Arnaldo carinhosamente, passava-lhe amo pelo rosto, chamava-lhe ternamente meu filho, meu querido filho, mas,verdadeiramente, no queria saber dele para nada. E era com ele que exemplificava, a quem aquisesse ouvir, este fenmeno recente de os jovens burgueses das novas geraes seremmenos qualificados que os seus pais. De resto, Arnaldo servia de paradigma vivo (sempredeprimente) para muitos outros efeitos.

    Um dia, aconteceu o caso do polcia que calhou na sequncia de um daqueles factosto banais em Portugal que fazem com que alguns de ns, tomados de irritao pelo pas,desejem, desesperadamente, passar a habitar nas profundas do Missouri, nas lonjuras deAberdeen, nas encruzilhadas de Chisinau.

    Houve uma tempestade, desvairou uma fria de ventos para os lados de Grodemil,arrepiou e levantou as guas da Lagoa Moura, zurziu a floresta e obrigou um pinheiro a largaruma rija pernada sobre o telhado da velha-vivenda-de-passar-frias-e-trocar-de-aborrecimentos.

    Nessa ocasio, ainda no se encontrava em vigor a norma legal que obriga osproprietrios a eliminar a vegetao cinquenta metros em redor das casas e que vainecessariamente provocar uma absoluta desertificao do pas a norte do Guadiana.

    Na verdade, o nosso legislador abstracto e geral, to abstracto e geral que sedesinteressa do que sejam dez metros, dezassete metros, quanto mais cinquenta metros. Deveter considerado desprimoroso dar-se ao trabalho de comprar uma fita mtrica dessasextensveis que h no mercado e medir a distncia no terreno. Depois desta operao simples,no seria demais sugerir que meramente circunvagasse o olhar e considerasse os resultadosduma desflorestao.

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    11/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 11

    Esta repugnncia comichosa do legislador pelos nmeros no novidade. Em 1974considerou que o direito de manifestao podia ser impedido a menos de cem metros dedeterminados edifcios o que tornaria praticamente impossveis os protestos colectivos emqualquer municpio, a comear por Lisboa. Compreende-se que, para homens pblicoscansados, depois de noites insones, em que um propunha quatro metros, outro, nenhum metroe outro, quinhentos metros, se tenha obtido uma soluo que fazia a mdia das propostasapresentadas mesa. Tratava-se de mostrar fora, de ganhar ou perder, sem importarexactamente o qu. Se fosse uma questo de rebanhos de gabirus, ou reservas de ndios, ouilhas de coral, tambm se discutiriam os nmeros at altas horas da noite, at se votar umasoluo satisfatria.

    Mas eram tempos em que a dcima milionsima parte do quarto do meridiano terrestreno tinha qualquer importncia, porque o simblico sobrelevava as dimenses reais dasexistncias e reduzia-as a nada. A direita tinha um pavor alucinado das manifestaes de rua,antevia guilhotinas, tachankas e comboios blindados, mas o seu propsito, que no erapropriamente a proibio completa do direito de manifestao nas cidades, excedeu de longeas expectativas. Imagino um governante a chegar a casa, a dizer ao mordomo (publicamenteapresentado como um primo da provncia, coitado, que vive c em casa): Andrade, passe-

    me a um usque velho com soda que tenho de comemorar uma coisa. E para a mulher, queacorria em roupo: Imagine, Maria de Santa Clara, que conseguimos regulamentar o direitode manifestao, semelhana do mundo civilizado. No me felicita? E, depois, Olhe, o que exactamente um metro?

    Mas essas pocas alucinadas passaram e no custaria a um ministro arranjar um rolode fio (para isso que h contnuos) e desenrol-lo no jardim da manso de So Bento, a partirdos degraus, at parar no primeiro muro. Aplicando-lhe depois uma fita mtrica, e medindo ofio, segmento a segmento, descobriria, aps um olhar cauteloso em volta: p, isto ia tudoraso e nem chegmos ao muro.

    Eis uma das consequncias da pssima educao que se ministra na Europa de hoje.Um metro, um palmo, quatro centmetros, tudo a mesma coisa, como julgava aquele clebre

    criado do Ea, o Vitorino, a quem tanto dava um livro de Qumica, como uma pea de Teatro,porque eram tudo coisas em letra redonda.Voltando me de Arnaldo e ao pinheiro derrubado: tnhamos obra em perspectiva,

    dinheiro mal gasto e complicaes. Habituada a uma vida de confortvel previsibilidade asenhora procedeu como qualquer cidad de classe mdia, j de idade, dotada deracionalidade, com hbitos urbanos, e escassa frequentao da Internet: consultou a listatelefnica, nas pginas amarelas, procurou em construo civil e ligou para vrias empresas.As respostas foram: No est c o encarregado, Apresente mas o problema por escrito,O Sr. Mendes agora no pode atender, tanto pela deslocao, 't a ver? E outro tantopelo oramento. Em dois casos puseram-na a ouvir msica, uma vez do senhor Toy, outra dosenhor Vivaldi (era uma empresa mais importante), depois dum atendimento eufrico, numa

    edulcorosa linha meldica: Boa tarde, o meu nome Sandra.Acabou por se conformar ao expediente portuguesssimo de recorrer a uma amiga que

    pudesse conhecer alguma construtora capaz de se encarregar de obra to bizarra e toestranha ao seu objecto social como reparar um telhado devastado por um galho. Foi-lheindicada a soluo atravs de um nmero de telemvel escrito num guardanapinho de papeldobrado em quatro. Era uma empresa de confiana que tinha at uma filial perto deGrodemil, a quinze minutos da Lagoa Moura, e que j havia feito trabalhos para familiares deamigos de conhecidos, numa complexa malha de referncias e recomendaes de que eradifcil destrinar as pontas.

    Um fulano bem-falante deslocou-se Lagoa Moura, observou a rvore, deu-lhepancadinhas sbias com a esferogrfica, mediu para aqui e para ali, falou abundantemente,com copiosa meno de materiais, marcas e dimenses, considerou que era tudo difcil ecomplicado, rascunhou notas habilidosas num grande bloco. Ficou de aparecer na casa daAvenida de Roma segunda-feira seguinte s nove (preferia s dez, muito bem, s dez)

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    12/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 12

    da manh. Depois, nunca mais deu notcias, nem ele, nem algum da empresa, e todos ostelefonemas da me de Arnaldo acabavam por se eternizar at ao exaspero nos com-passos do Bolero de Ravel.

    Se a senhora no fosse uma tranquila professora de piano, possuidora de uma razovelconta bancria e recebedora duma reforma com substncia, habituada a uma rotina burguesasempre pelos melhores stios da Avenida de Roma e Guerra Junqueiro (artrias que o autorsempre refere com enlevo e amenidade) em companhia de amigas bem instaladas que sedirigiam aos empregados antepondo oua uma coisa, ou tratando-os por um voc spero,j estaria prevenida das sofredoras contingncias que moem e desesperam quem queira tratarde certos assuntos prticos em Portugal. No ficaria admirada nem ofendida com a bizarranoo de brio profissional e prontido por parte de tanta gente que oferece servios e dizdedicar-se construo. Pouco conhecia do universo dos mestres-de-obras e a revelaodalgumas subtilezas, at ento insuspeitadas, da lngua portuguesa, t-Ia-iam deixado muitoinsegura. Dez da manh a querer dizer meio-dia, amanh a querer dizer para asemana e para a semana, nunca mais, com certeza a querer dizer no, garanto aquerer dizer nunca, compromisso a querer dizer rbula e palavra de honra a quererdizer 't bem abelha, eu bem te lixo.

    Embora mais versada em sustenidos que em direito romano, um qualquer atavismoancestral, difcil de explicar, convencia-a de que os acordos so para ser cumpridos e levava amal - com estupefaco de boa parte dos seus concidados - que se faltasse palavra dada.

    Ei-Ia a caminho do Largo da Graa, no velho Mercedes que habitualmente dormitava nagaragem, na disposio de obter uma explicao pessoal sobre o motivo por que uma criaturaque garantira apresentar-se ali em casa, sem falta, pelas dez da manh, no tinha, pura esimplesmente, dado novas nem mandados.

    Fez uma fita de alto l com ela e ps todo o prdio em polvorosa, incluindo um agentetransitrio e uma notria, que no tinham nada a ver com o assunto. Ao sair, depois depalavras de honra de que no dia seguinte, s duas da tarde, uma carrinha da empresa pararia sua porta para irem a Grodemil fazer o oramento, teve uma surpresa irritante, que crispou o

    semblante fagueiro (equivocado, alis) que trazia de dentro.Do outro lado da rua, um agente da polcia compenetrava-se a passar-lhe uma multa,escrevinhando num bloco com requintes de prazer. Estava ainda a olhar para ele, estupefacta,quando o homem arrancou a folha pelo picotado e a aplicou no pra-brisas.

    - Como se atreve? - perguntou - Voc multou-me.- Multei, no. Autuei!- Com que direito?O homem fez ressaltar o crach, empurrando-o com o dedo indicador, foi sardnico e

    claro:- Repblica Portuguesa!- E por que que me multa s a mim quando h esta fila toda debaixo do sinal? Eu sou

    menos que os outros?- Critrios policiais - respondeu o agente. E ia j andando.D muito mau resultado provocar uma pessoa quando, depois de um tremendo aranzel

    que levantou ciclones e labaredas, se acabou de conformar com um apaziguamento polido earduamente contestado. Todas as frias reprimidas voltam ao de cima, com renovada eredobrada intensidade, e deixou de haver pacificao possvel. Para agravar, antes de semeter no carro-patrulha que o recolhia, numa retirada algo desairosa, o agente rosnou:

    - No s mais que os outros. Abusadora!Caiu Tria, mas no em cima do carro da polcia que se afastou a toda a velocidade.O agente no se lembrou que tinha ao peito uma placa - que os funcionrios de balco

    costumam, alis, esconder - em que vinha escarrapachado o seu nome, alis de raro recortealentejano, fcil de fixar e muito a propsito: G. Escarrapacha.

    Dois meses depois, estava j a me de Arnaldo mal recordada do assunto, e dareclamao que havia apresentado na esquadra, quando recebeu um ofcio do Comando

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    13/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 13

    Distrital de Lisboa da Polcia de Segurana Pblica. Todo o cidado, mesmo o mais frvolo, ficapreocupado quando recebe um sobrescrito da Polcia, dos Tribunais ou das Finanas.Habitualmente anunciam o cabo dos trabalhos. Mas, desta vez, uma prosa tersa e despojadacomunicava-lhe oficialmente que, na sequncia da reclamao de V. Ex. a e tendo ocompetente procedimento seguido os seus termos, o guarda de primeira classe GervsioNeves Escarrapacha havia sido disciplinarmente suspenso por um ms com privao devencimento.

    - Mas eu no quero nada disto! Coitado do homem.E v de telefonar para a polcia e ser remetida de atendimento em atendimento, que ora

    lhe recomendava as vias competentes, ora lhe pedia que aguardasse um instante, commsica de Chopin, ora lhe desviava a chamada para uma telefonista que escandia em vozprimaveril, to encantada como se fosse a primeira voz que ouvia nessa manh: Polcia deSegurana Pblica, fala Vanessa Soares, tenha a bondade.

    Acontece muito, nas naturezas dotadas naturalmente de compostura e modeladas poruma educao que preza a serenidade e o auto controlo, que as irrupes de fria sejamdevastadoras e nunca vistas e arrebatem com imparvel energia as almas at ento instaladasna placidez. Ningum adivinharia que pela segunda vez em dois meses, aquela senhora

    tranquila e vagamente distrada irrompesse pela garagem e, com um par de berros,reivindicasse o Mercedes que arrancava, da a instantes, numa roda de fumo. Do que foi opercurso, nem se fale, mas no havia lembrana em Lisboa de um trajecto to movimentadodesde que a Judiciria perseguiu pela Almirante Reis o gangue do Boris Berovich.

    - A polcia no pode fazer mais nada, minha senhora. O arguido conformou-se e adeciso j transitou em julgado.

    - Mas eu no queria que fizessem mal ao homem. Era s para lhe chamarem a ateno.Imperturbvel, o comissrio ergueu o busto, por detrs da secretria de estilo holands

    rico que os nossos vendedores de velharias designam, argutamente, por torcidos e tremidos,e proferiu:

    - Minha senhora, dura lex, sed lex.

    E com esta a quis despedir, mas no conseguiu, primeira.- Exijo que me digam ao menos a morada do agente. Isto no fica assim. Ento umapessoa queixa-se e h logo consequncias, ?

    - Lamento, minha senhora, mas a polcia no transige com exigncias, nem estautorizada a prestar essa informao.

    Nos tempos, nem sempre saudosos, em que o comum dos cidados falava umportugus variado e rico que traduzia no s uma tradio ancestral, como uma multiplicidadede origens geogrficas, dir-se-ia que se seguiram uns dares e tomares. Hoje, quando serasoura, ou melhor, se nivela a lngua pela riqueza lxica e vocabular de um certo Tarzan, Reidos Macacos e da Selva, que alis se exprimia em ingls, convm dizer apenas que ocomissrio e a me de Arnaldo estiveram para ali uma data de tempo.

    Iria a me de Arnaldo sair vencida deste transe? Como encontrar o agente da polcia tosevera e competentemente justiado? Como dizer ao homem que ela no pretendia tantajustia? Como descarregar o sentimento de culpa que lhe esmagava o corao e toldava oentendimento? Eis as dvidas cruis e lacerantes que ento a atormentavam.

    Entristecida pelos desconcertos do mundo, muito amplificados por trabalhos dereparao na via, seguia ela cabisbaixa quando, ao dobrar uma esquina contornou umapequena escavadora, enrgica e bulhenta, que abria uma vala nas imediaes.

    Pergunto eu agora: nunca vistes sair um deus duma mquina? s vezes acontece. Porque que Pedro Bezhukov se converteu maonaria? Porque pernoitou na mesma estalagemque o velho Ossip Alexeievich Bazdeiev e foi convencido por ele. Por que que HelenaBezhukova morreu? Morreu, pronto, em duas linhas, no penltimo volume e ficou despachada.Na fico no como na vida, e na vida no como num plano de batalha, der ersteKolonne marchiert ... : lembremo-nos sempre do prncipe Tolstoi, venerando mestre.

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    14/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 14

    A expresso deus ex machina no tem que prefigurar um deus propriamente dito atentar manter-se direito, com alguma dignidade, apesar de pendurado num guincho, como nocelebrado teatro grego. Pode ser apenas um mero enviado de deus, um jovem risonho que saidum helicptero, como em Poderosa Afrodite, ou um tipo desdentado, de colete de ganga,que desce duma mquina escavadora amarela, de lagartas, caterpillar, que o nosso povodesigna por catrapila.

    - Minha Senhora, v' zinha!A voz ergueu-se, clara e irritante, com uma tonalidade lisboeta afadistada, tornada ainda

    mais ntida pelo alvio e clarificao dos ares, como efeito de a escavadora ter destroado derepente, ao ser desligada.

    - Fui eu quem viu tudo! Eu contei no inqurito.O gajo j me tinha andado p'rli a azucrinar a mona, derivado motorizada, de maneira

    que eu quando o vi passar a multa pensei logo: Deixa estar que j te fo ... quer dizer ...tramo! E na esquadra contei que o gajo, no meio da rua, tinha dito senhora arreda p'ra l,puta velha, qu'inda te parto o chavelhame marretada. E ele, mentira e eu: a suapalavra contra a minha 'o caraas, e o chefe tomou nota da ocorrncia e mandou-meembora.

    - Mas como que voc foi capaz duma coisa dessas? - perguntou a me de Arnaldo,aterrada.- Temos que ser uns p'ros outros, n'? O gajo que ficou a ganhar, est de frias, todo

    repimpado ali a pescar na marginal do Cais do Sodr, ainda hoje o vi. Ele pardelhas, trutas, tainhas, o camandro e eu aqui a dar catrapila que at me doem os ouvidos, p!

    O homem ali estava, pespegado no meio da rua, junto a dois ucranianos que o olhavamcom o ar aprovador e a me de Arnaldo ia jurar que ele tinha estendido a mo.

    - Desaparea-me da frente!E quase o empurrou com a fria. No lhe bateu, mas surpreendeu-o muito. Antes da

    mquina recomear a batucada infernal, ainda o ouviu dizer:- Isto hoje no se ganha nenhum, p!

    O polcia estava, de facto, a pescar no rio e no reconheceu logo a me de Arnaldoquando ela o abordou, depois de ter parado junto de vrios pescadores para se certificar deque no era o seu homem.

    - Eu no dou p'ra peditrios nem p' ra causas - rosnou, sem sequer olhar para asenhora.

    E ela:- Peo-lhe sinceramente que no me leve a mal.Foi o incio de uma relao to facilmente reconstituvel pela experincia do leitor que

    isenta o autor de cont-la em todos os seus pormenores, embora no o dispense da seguinteinterrogao: como que uma pessoa assim anelante do sentido de justia podia ser toindiferente aos destinos de uma pobre tartaruga e mostrar-se to severa com o rebaixamento

    de estatuto do seu prprio filho, ademais casado com aquela nora, que nem era m rapariga?So os paradoxos da vida, que o facto de sermos habitualmente mais exigentes no

    julgamento dos nossos que dos outros no explica inteiramente. O discernimento e a largavivncia do leitor tambm conhecero abundantes casos em que toda a gente se pergunta:Como possvel, se gosta tanto de ces?, ou Como possvel, se traz sempre cinquentacntimos para os pedintes do metro?, Como possvel, se est sempre pronto a mudar umpneu de um estranho? possvel, sim, e quase necessrio. Para sermos diferentes edesparadoxados era preciso passarmos a uma nova fase de desenvolvimento da humanidadee j no vamos a tempo.

    - O polcia, no querer mesmo a tartaruga? L na esquadra, no incomoda nada ... Atpode fazer jeito. Sempre uma distraco.

    Arnaldo estava ao computador, informando-se de t-zeros para arrendar. Tudo umafortuna. Passou aos anncios dos quartos. Mas Brbara, que tinha posto a questo apenasporque achara o ar da sala muito mortio e vazio, insistia, aproveitando o intervalo da

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    15/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 15

    telenovela: H?. Isso deu a Arnaldo o pretexto para abandonar a pesquisa, antes de tomardecises irreversveis, que, no fundo, no queria mesmo que ocorressem. Brbara estava fartade saber que ele nunca poria a questo da tartaruga ao polcia, por vrias razes: primeiro,porque no gostava dele; segundo, porque lhe tinha medo; e terceiro, porque acontecera aquiloda cadeira de balouo e evitava, quanto pudesse, estar ao alcance da criatura.

    Ser oportunamente contada a cena da cadeira de balouo que j tinha pertencido aoav materno de Arnaldo. Agora, basta que Arnaldo se voltou para trs, com um ar enfadado,tirou e tornou a pr os culos, e observou:

    - Ests-me a ver a falar com o polcia? Por que que no falas tu?- A me tua ...- Era capaz de me prender. Tens a certeza de que esta tartaruga no uma espcie

    protegida? Que no consta dumas listas l da esquadra? Eu no quero ser preso por causaduma tartaruga.

    - Ningum prende ningum por causa de tartarugas.- Mas notificam, chateiam e multam ... E o tipo sdico. Adora multar ...Tinham jantado ambos em casa, comida pr-fabricada, comprada no supermercado, que

    era mais barato. Cada qual pensara que o outro ia jantar fora e tiveram a mesma ideia. Mas

    Arnaldo acabou por comer na mesa, depois de uma troca de galhardetes muito urbana ecortes em que ambos protestaram oferecer a mesa ao outro, tendo Arnaldo cedido, como decostume, por ser o primeiro a perder a pacincia. Brbara tinha tornado banho e estava comuma toalha enrolada na cabea, muito cinematogrfica, o que lhe dava uma certa graa. Elaafastou o invlucro de papel prateado do bacalhau lagareiro, ps-lhe uma lata vazia dePepsi-Cola dentro, bem amolgada, e perguntou:

    -Ento?Mau, pensou Arnaldo, entre o desconfiado e o esperanoso. Detestava as reviravoltas

    a que chamava, metaforicamente, mudanas de agulha. Preparou-se para tudo, mas o quea vinha era nada. Brbara estava apenas muito perguntadeira:

    - Qual era a tua ideia para a tartaruga?

    - Um camaroeiro!- E como que tu metes um camaroeiro dentro do aqurio?- Um camaroeiro pequeno, claro!- E como que tu consegues manobrar um camaroeiro sem deixar cair o animal, tu que

    no tens jeito para nada?- E quem que te arranjou o fecho do colar com o corta-unhas?- E quem que partiu o corta-unhas que no era dos chineses e que eu comprei na

    Sephora?- E quem que te mandou ir Sephora para comprar um corta-unhas?- Eu no fui l especialmente para comprar o corta-unhas.- Olha no foste ...

    Era deste jaez (feliz palavra rabe, cada vez menos usada e cujo significado vem emtodos os dicionrios e bela expresso to rafada em tempos de letras mais bojudas, quequalquer escritor, com uma nica excepo, hesitaria em us-la), era deste jaez, dizia (frmulade repetio tambm recuperada do arsenal literrio e que se destina a evitar que a ateno doleitor se distraia e comece a pensar noutras coisas, nanja no essencial), dizia (embora antesseja meu dever chamar a ateno para este magnfico nanja, que no de origem japonesa,mas sim de etimologia facilmente descortinvel) e tendo-me eu esquecido da continuao dafrase vou retom-la, desde o incio com vossa licena.

    Era, pois, deste jaez (notem que interpus um pois, querendo assinalar que o autorusou deliberadamente a repetio e julga saber o que est afazer), era pois, deste jaez, dizia, adesavena que tinha infernado a vida ao jovem casal e que, devemos reconhecer, soava aindamuito a infantil. s tantas, j nem se lembravam da origem da discusso, exactamente como osautores prolixos no se lembram do incio dos pargrafos. Era deixada cair uma frase por meravontade de embirrar, vinham, em desforo, a rplica, trplica, quadrplica, choros, amuos e

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    16/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 16

    ms vontades e, depois, tornava-se difcil encontrar uma sada. certo que vai acontecendo atodos os casais, mas como eles eram muito novos e inexperientes, a tramitao fazia-se aindamais intrincada e deficiente de racionalidade.

    No vale a pena acompanhar o resto da discusso entre Brbara e Arnaldo, apenasacentuar que o dilema entre o camaroeiro e as luvas cirrgicas no ficou resolvido nessa noite.Voltando ao que interessa: era verdade que Brbara tinha outro? Se eu contar rapidamente oque se passou, o leitor ajuizar.

    Num escuro compartimento de vidro martelado, ao fundo duma loja de ferragens,situada nuns arruamentos acinzentados de So Paulo, havia dias em que Brbara se aborreciadeveras, frente ao monitor antiquado do seu computador Olivetti. As lojas de ferragens tmhabitualmente uma clientela especificadora e miudinha, vida de explicaes circunspectas,muito apreciadora de pormenores de dimenso, composio, robustez, cor e tacto. Essespormenores fazem o desespero do fregus ocasional, que vem comprar um parafuso ou umadobradia para o armrio. Ao longo de um balco corrido, num ambiente tristonho e escuro,acumulam-se os profissionais, vestidos de fato-macaco manchado de leo, ou velhas batasrepassadas de tintas secas e tm longos concilibulos em voz baixa, soturna, com enumerao

    meticulosa de nmeros, marcas e medidas: No, v-me mas buscar uma Volgen, no, umaCrdber de 14 com 3 polegadas; N, assim voc no resolve isso; Ento, pronto, uma de11 e meio, para fazer cama com o entalhe de trezentos; Ah, est bem, assim j no digonada. Mas parece-me que s tenho de quinze. Vou ver ... E o pobre do burgus espera,abatido por tanta cincia, no desconforto de apenas querer a porcaria da dobradia ou doparafuso para a trela do co e a olhar aterrorizado e cheio de respeito para um balco cobertode peazinhas, negruras retorcidas, lates, bornes, fios elctricos, anilhas, trapalhadas, cadaqual com o seu nome, marca, dimenso, cor e propsito, prontas a desfilar em frente de cadafregus concentrado e sabedor.

    E o que que fazia Brbara, to delicada e de gestos to menineiros, nestascatacumbas escuras, densas de idade, de saberes, de espessuras de alma, de sobrecenhos

    carregados, como nas profundas melanclicas de uma cave de alquimista? A resposta simples: a contabilidade e o expediente.Atrs do vidro fosco, armado sobre umas ferragens ramalhudas que ningum tinha

    reparado que eram arte nova, porque naquele ambiente no se liga a essas coisas e osngulos de apreciao so outros, Brbara dava ao teclado, preenchendo cautelosamente afolha de clculo. Nos intervalos em que no escorriam nmeros, ora se especializava no Spiderora somava pontos no My Farm. Mas, sobretudo, convivia com Clarinda que se encarregava dooutro computador, aplicado a cartas, emails, pesquisa e facturao, mas tambm Youtube,Spaceroom, Facebook, Twitter e Myspace.

    Importante era que de nada suspeitasse o compacto senhor Ferragial, arguto eanacrnico patro que ainda conservava, como muitos magistrados e padres, aquela pronncia

    ciciada das Beiras, enganosamente repousante, mas que pode tornar-se demonaca em selevantando a voz. Ele instalava-se a uma secretria de pau-preto que dominava todo ocompartimento, alinhando o nariz com um ferro bicudo em que espetava facturas, metforaferoz do seu poder. Nas ocasies em que estava presente, costumava meditar, olhandomolemente para o tecto. Mas, s vezes, sem qualquer razo notria, comeava a fitar asraparigas com um olhar que exprimia alguma sinistrude.

    Nessas alturas os dedos corriam sobre os teclados e as faces exprimiam uma talconcentrao, iluminadas pela luz dos monitores, que dir-se-iam tocadas duma aura desantidade, como naqueles enlevos dos quadros barrocos em que serenas personagenscontemplam, desvanecidamente, o Alto.

    Mas o patro no tinha pacincia para estar muito tempo secretria. Aborrecia-se,comeava a cabecear, acabava por ir atender ao balco, ou conversar com o Ferraz dafarmcia, ou ia espantar-se com o Correio da Manh (Ichto x vichto, uma chchia docarachas ... ) para as mesas de frmica do caf em frente, chefiado por uma viva tristonha

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    17/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 17

    que passava a vida a resmungar, porque ele no fazia despesa nenhuma e at levava alancheira para a loja.

    Nem sempre a relao de Brbara com Clarinda era pacfica e cooperante. Asconversaes ora aqueciam ora esfriavam. s vezes nem almoavam juntas, naquelasmltiplas e invejveis tascas do bairro. Em tempos mais azedos, marcavam mesmo asdistncias acompanhando os outros empregados da casa: o senhor Mendes, que s falava depombos-correios, o senhor Lopes, que era especialista em doenas com incidncia abaixo dacintura, e o senhor S, que no era especialista em nada e que andava h anos a consultar osjornais a ver se mudava de emprego.

    Em tempos, aparecia de vez em quando o relativamente jovem Coriolano, o filho dopatro, que dava um beijo rpido ao pai, ouvia uma rosnadela sardnica, carregada de ironia(J te levantaste? - ainda que fosse s cinco da tarde) e depois ia fazer um bocado deconversa para o balco at que o velho corresse com ele. Tinha grandes planos para quandoherdasse a loja e confessava-os aos empregados, baixando a voz, para que o pai o ouvissemas tivesse a sensao de que ele estava, por respeito, a usar de filial reserva e, portanto,pudesse fingir que o no ouvia, o que permitia marcar pontos poupando discusses.

    Ele artilhava aquela espelunca de novo, tudo de raiz, ele mandava fazer um balco

    cheio de disaine, p, assim arredondado, que desse conforto, ele punha ali uns cadeires deestopa branca, a condizer, para a malta no estar de p com uma senha nas unhas, p, eleenchia tudo de expositores de acrlico, em que os materiais brilhassem, valorizando amercadoria, fazia ali ao fundo um gabinete tipo aqurio, moderna, e mandava para a sucataaqueles ferros forjados parvos, cheios de uvinhas e parreirinhas, p, fazia correr nens pelostectos, com volteados imaginativos e puxavantes ...

    Os empregados ouviam, ouviam, examinavam discretamente a cara do senhor Ferragial, passagem, para adivinhar se ia bem de sade, e, noite, conferiam se as quotas dosindicato estavam em dia, no fosse o diabo tec-las.

    O rapaz chamava-se Coriolano porque o pai se desvanecia em grande admirao porum coronel de Infantaria homnimo, da aldeia dele, que em alferes comandara um peloto na

    terra-de-ningum durante a Primeira Grande Guerra. Depois de uma carga, dissipados osfumos, verificando encontrar-se entre os alemes, bradara: A eles, fueirada nesses boches!Mas no restava ningum vivo no peloto e foi feito prisioneiro.

    Ora este Coriolano, que no havia meio de se casar e de largar a casa dos pais, e que,vagamente, dava assistncia e organizava uns projectos num gabinete publicitrio dumaempresa de transportes (Fulmitmega), resolveu engraar com Clarinda. Foi num dia em que acasa estava cheia de clientes, o pai no caf, e as duas empregadas seguiam cada qual para oseu destino, por estarem um bocadinho zangadas aps uma troca de mensagens cujainterpretao benigna demoraria vrios dias a deslindar.

    Pois caminhavam as raparigas, cada uma para sua rua, e Coriolano estacionava nopasseio em frente, em observao. Punha-se-lhe o dilema do famoso burro do filsofo

    parisiense Buridan. A magrita, lourinha, saltitante, ou a mais cheia, de culos, com ar sabedor?Por um lado ... Por outro lado ... O burro de Buridan, como sabido, morreu de indeciso, masCoriolano era menos pensativo.

    Que faz o caador quando lhe rompem duas perdizes da mesma ramada? Prime duasvezes o gatilho e falha ambas. Que faz o polcia quando dois gatunos em fuga saem a correrpela mesma porta? Vai atrs de um, derruba-o, imobiliza-o, tenta lev-lo por uma mo, depoiss costas, continuando a correr atrs do outro, mal interpretado pelos transeuntes, acabampor fugir os dois ladres, e l se vai o louvor e a condecorao. Coriolano considerava-se maisarguto do que de facto era, mas sabia que no podia apanhar as duas mulheres no mesmolance. E se a juventude de Brbara, muito graciosa e direita, era mais atraente, o facto de sercasada e dar, em princpio, mais trabalho, levou-o a seguir atrs de Clarinda. Uma vezinterceptada, perguntou-lhe: H a algum stio onde se coma qualquer coisa de jeito?

    Foram, para Clarinda, umas semanas de arroubo e desvelo, se bem que o aumento derispidez no trato e o sobrolho rancoroso mostrassem que o senhor Ferragial no estava a

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    18/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 18

    apreciar muito a brincadeira. No se percebia bem como ele tinha suspeitado: provavelmentefoi aquele sexto sentido que, como se sabe, peculiar aos proprietrios de lojas de ferragens,que o levou a captar um certo no sei qu, evolado da limalha de ferro e dos brilhos dos lates,produzindo-lhe algum desconforto e ressentimento.

    Mas no precisou de apurar ao certo o que se passava entre o filho e a empregada nemteve tempo para ir acastelando mais nuvens de borrasca.

    Uma ocasio, Clarinda chegou loja, escorrida de lgrimas, revogou a frieza eformalismo com que havia tratado Brbara por esses dias, e, aproveitando uma sada dopatro, atirou-se-Ihe ao pescoo, aos soluos, deplorando: Eu que pensava que ainda podiaser dona disto tudo ... E foram s confidncias: o Coriolano, afinal, era uma bruteza dehomem, acrianado e mando, vai buscar isto, vai buscar aquilo, telefona p'rqui, telefonap'rli, despacha-te, mas ... e ressonava no cinema, entornando o balde de pipocas, queembarao.

    No faltaram pormenores e segredos, que Brbara ouvia com uma curiosidade vida,espantada por haver relacionamentos mais infelizes que o dela prpria. A conversa continuavapor e-mail, na presena avantajada do senhor Ferragial que, no acreditando emtransferncias bancrias, ia preenchendo cheques l na sua secretria, com muita ateno

    para no se enganar. Todas as mensagens electrnicas comeavam e terminavam com asiniciais NTEADL (No te esqueas de apagar depois de ler) e ensinaram a Brbara algunsfactos da vida que, at ento, lhe estavam obnubilados.

    Clarinda, de quem Coriolano fora o segundo namorado, menos platnico que o anterior,julgando-se uma perita em homens, espraiava-se em prolixidades e jurava para nunca mais.Via ali, na sua frente, a delicada e frgil Brbara que podia servir-lhe de discpula, capaz deregenerar-lhe um amor-prprio ferido.

    Mas ai... (e aqui se recupera este lamento romntico, to portugus, que em temposprovisrios de primado anglfono alguns querem substituir por oops, sendo certo que no dgrande jeito exclamar mas oops) a alma humana, mesmo das jovens recm-casadas, temalapes medonhos que comunicam directamente com os pntanos miasmticos da perdio.

    Brbara deu em interessar-se secretamente por Coriolano que, alis, espaava mais asvisitas loja paterna. Comeou a imaginar coisas. Admirava-lhe o ar desprendido, vagamentedesdenhoso, os blazers feitos por medida, as mos de dedos compridos de pianista, derequebros ondulados. E s vezes surpreendia-se a imagin-lo muito prximo, falando-lhebaixinho, ao ouvido. Chegou a pensar telefonar-lhe, combinar um encontro, copiousecretamente o telefone dele e anotou-o no telemvel. A inteno com que se justificava,convencida no s da sua rectido de propsitos como da capacidade persuasiva, era a deconvenc-lo a voltar para Clarinda. Se no, ao menos dirigir-lhe uma palavra de conforto quelhe mitigasse o desgosto, ou, v que no v, oferecer-lhe flores, selando uma separaocivilizada.

    Das duas ou trs vezes que o tinha visto estacionar na loja, preguiando, encostado ao

    balco, depois de beijocar o pai que lhe estendia uma bochecha retorcida de enfado, vinha-lhea tentao de o abordar, s escondidas, arrast-lo para fora, falar-lhe em segredo: Coitada darapariga, por que que a fez sofrer tanto? Os outros empregados nem reparariam. Alis, nohaviam dado por nada. Tinham-se-Ihes pegado, em contacto com os metais duros, rigidezes efrialdades que faziam com que os pequenos dramas que ali pudessem ocorrer, revelados porolhares subtis e pequenos gestos, s vezes incompletos, lhes fossem completamenteindiferentes. Mesmo as aluses de Coriolano, que lhes entravam por um ouvido e saam pelooutro, os deixavam amorfos e desinteressados.

    Brbara sentia pelos colegas mais velhos um certo desprezo e estava certa de quenunca tinham lido um poema na vida, nem sequer na instruo primria. Aqueles pobres entesno viviam, penavam ressequidos, acabados, dessorados de fantasia. Era muito nova e aindano aprendera a invej-los, pela imperturbvel tranquilidade de esprito.

    Quanto ao senhor S, sempre desejoso de mudar de emprego, limitava as suasaspiraes e vontade de transformao social a esse nico propsito. H mais coisas na vida,

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    19/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 19

    h amores e desamores, h encontros e desencontros, h sentimentos, h inquietao, hinsegurana, dores ntimas, estados de alma? Est bem, Abelha, pois haver. Eu fui Crisferrao, Lda, mas eles l esto a despedir pessoal e precisavam era dum guarda-livros, empart-time, com conhecimentos informticos, na ptica do utilizador, de balco. Nicles: diz quevo montar um sistema em que o cliente carrega nuns botes e sai-lhe o material j todoescolhido e embalado. No h contacto humano, no ?, perguntou-lhe Brbara, mas eleresmoneou: No h mas considerao pelo pessoal que tambm precisa de ganhar odele ...

    De maneira que Brbara tinha que guardar para si as suas inquietaes sem admitiraquilo que para todos ns j h muitas linhas to bvio e irrefutvel. Durante uns dias, esteveinsanamente apaixonada por Coriolano e essa paixo crescia tanto mais quanto menos eleaparecesse, e em vez duma imagem presente e concreta, deixava nas suas recordaes umvulto idealizado, de corpo alto e flexvel, modos repousados, maneiras distintas, ar distrado efantasista e o mais que uma alma enlevada pudesse atribuir-lhe.

    um mistrio que no consigo aprofundar o de saber a que ponto Clarinda estava aocorrente dos devaneios de Brbara. No dava sinal, nem tinha ali a quem no dar, embora sejade admitir que, no fundo, uma certeira intuio a repelasse e remoesse. Mas sobre Coriolano,

    nada, sobre Arnaldo, tudo.Clarinda, depois do desaire com Coriolano, e somando a essa vivncia reminiscncias jantigas dum certo Delmar, um tipo de grandes olhos esbugalhados revirados para fora,trmulos de desconfiana, que dava um passo atrs sempre que algum se aproximava,considerava-se razoavelmente experiente em homens. Uma vez que Brbara admitia que elaera uma perita, explorava a fundo o seu magistrio.

    - preciso entend-los, amiga, percepcionar-lhes o subtexto (tinha frequentado oworkshop de escrita criativa da Junta de Freguesia). S a ingenuidade de certas mulherespermite que levem a sua avante e engendrem as coisas maneira deles.

    E descia a pormenores, e lia os comportamentos, por mais nfimos, usando muitasubtileza, interpretando-os em consonncia com um mundo a que ela chamava o universo

    dos homens, naquele grau to elevado de mincia, preciso e rigor, prprio dos feiticeiros,especialmente os brasileiros e os africanos (os xams siberianos so mais vagos) quandolidam comas decifrveis reas do astral.

    Depois de fazer a barba, reparara se ele passara a deixar a gilete pendente da bordainterna do lavatrio? E, s vezes, punha um ar abstracto e obrigava-a a repetir as perguntas?Respondia por monosslabos? Emagrecia? Engordava? No tinha balana? Mas havia umasmuito baratas na Rua da Vitria, 46/48. Deitava-se de lado? Ressonava? Falava em frias desonho? Demorava a chegar a casa? Chegava a casa mais cedo? Comprava ferramentas doida?

    - Querida Brbara, no seria bem tua amiga se no te pusesse ao corrente. Ele tem

    outra ...- O meu Arnaldo? Achas?- Fatal como o destino.De facto, vendo bem, Arnaldo mostrava ultimamente um comportamento estranho. At

    dava menos vontade de falar com ele. Quebrara-se uma aura, um halo, um elo, ou l como que isso se chamava. Talvez Clarinda no tivesse razo em tudo, mas detectara o essencial.Arnaldo, de certeza, andava por a a flautear, apesar do seu ar de sonso, e isso deixava aBrbara o esprito mais livre e a conscincia mais desembaraada para idealizar as suasfantasias sobre Coriolano. Que eram, a bem dizer, muito difusas, uns contornos, umassombras, uns harpejos, uma sensao de bem-estar, como quem voga no ter, de mo dada,sobre um tapete voador, ou uma vaga de ar quente.

    - Sabes, provavelmente h outra pessoa, mas ainda no decidi nada ...- Provavelmente?- No quero falar mais nisso.

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    20/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 20

    - Mas foste tu quem comeou ...- Ora, tu bem sabes o que andas para a a fazer ...Arnaldo estava a ficar abismado e Brbara logo se arrependeu. Mas era tarde. Ele

    deixara-se irritar:- Explica-me!No explicou, mas recriminou, recriminou, recriminou, e Arnaldo, ao fim dessa noite viu-

    se to carregado de culpas como o Z do Telhado e no encontrou palavras para responder,at porque, de to surpreendido, no sabia discriminar quais as grandes e quais as pequenas,quanto mais organizar uma defesa bem pensada.

    Brbara precisou de muita fora de vontade para manter posies at ao dia seguinte.Na loja, lacrimejou, com um beicinho reprimido e foi animada por Clarinda, sob o conspectosevero e suspeitoso do patro que nem sonhava que o filho, muito competente para lhearranjar complicaes, tivesse engendrado mais esta, ainda por cima sem querer.

    - H e no h - respondera quando Arnaldo, a medo, lhe perguntara se havia mesmooutra pessoa. - E ests muito enganado se pensas que no percebo as tuas manobras e astuas escapadelas ...

    Arnaldo demorou muito tempo a reagir. Tudo aquilo lhe fazia uma grande confuso. No

    tinha qualquer respaldo, ao contrrio de Brbara. De uma forma geral, os homens so poucoconversadores quando se trata de assuntos privados e ele no era suficientemente chegado anenhum dos colegas da empresa para se meter em confidncias domsticas.

    da tradio das histrias, a assistncia dum barman, receptor de desabafos, mas isso para frequentadores de bares. No cinema, os barmen tm a funo de adjuvantescontrabandeando informao e notas didasclicas sobre estados de alma, sem que oespectador se aperceba, porque a figura encaixa, naturalmente, nas convenes.

    Mas quando um homem no bebe, no tem amigos ntimos solteiros, no d nemrecebe muita confiana dos companheiros de trabalho, tem o pai na Sucia, a me nas nuvens,e est reduzido a um banco de jardim para meditar vontade, h-de contar somente com assuas prprias e diminutas foras. Que fazer? Contra-atacar, sem dvida, curar o co com o

    plo do mesmo co.E assim deixou subentender, em termos inbeis, mas que a Brbara bastavam, queexistia de facto uma relao com uma mulher misteriosa que ele, sem excessos deconcretizao, designava apenas por a outra pessoa. Acrescentou um rol mental de agravosque exps a Brbara, item por item, e que havia sido trabalhado numa folha A4 durante ashoras de servio. Mas a lista no a interessou. Respondeu molemente. A suspeita da outradeixara-a aterrada.

    - No lhe ds trguas, carrega-lhe nos cimes, que para ele aprender - acirravaClarinda, em voz baixa, no fundo de rudos confusos da loja, vida de conduzir aquela relao,por interposta amiga. Se Brbara fosse mais prevista e mais atenta aos pormenores da vidaconcreta que aos desnimos da sua relao com Arnaldo, havia de ter reparado no aspeito

    convulsionado de Clarinda, na boca retorcida e no fcies duro, nas sobrancelhas oblquas, nodardejar dos olhos, no repelar da testa. Eram estas mscaras que Belzebu apunha outrora ssuas feiticeiras, mestras do malfazer e demolidoras de felicidades. Chega-lhe, d-lhe!,aulava Clarinda, e o que quer que Arnaldo fizesse, dissesse, insinuasse ou pensasse (porqueClarinda tambm tinha a percia de adivinhar pensamentos), no ia sem resposta. Se o sonode Brbara era assombrado por um negrume que pesava cada vez mais, o de Clarinda no eramelhor: sobressaltava-se com o que Brbara lhe contava sobre Arnaldo, memorizava frases,revia os detalhes fornecidos pela colega e todas as noites preparava, numa convulso mental,as rplicas ferinas com que ela encostaria o marido s cordas.

    E assim, de lance em lance, a tnhamos um jovem casal, cada vez mais desavindo, semsaber bem porqu, fazendo razes de equvocos e equvocos de conjecturas. A tartaruga eraagora o nico compromisso que os ligava. E mal abriam a boca era para guerrear.

    - Trouxeste as luvas? - perguntara Brbara, uma vez mais.

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    21/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 21

    - No tive tempo. Eu trabalho, sabes? Alm disso o chins no tinha camaroeiros e noarmeiro pediram-me cinquenta euros por um.

    - Mas quem que falou em camaroeiro?Ao outro dia, Clarinda mostrou contentamento por Brbara se ter defendido to bem.

    Mas no houve tempo para grandes comentrios, porque ela teve de ir ao hospital dar oalmoo a uma velha tia, internada depois duma queda e que se recusava a comer sem muitaconversa.

    E ento ocorreu um encontro da maior importncia para Brbara, que lhe fez estrondearo corao como nunca antes. Regressava ela do restaurante chins, onde tinha partilhado oarroz chau-chau com as empregadas da farmcia, e contemplava a montra da perfumaria,mudada h pouco, repleta de tentaes, quando uma voz conhecida ressoou e deu mais vida imagem difusa, mas reconhecvel, que se recortava no vidro. Coriolano estava muito perto,confundiam-se-lhes as sombras, cumprimentava-a, quase lhe sentia o hlito mentolado:

    - Boa tarde, Brbara ...Foi como se o cho vibrasse, e um bafo cheio e morno revolvesse e elevasse o mundo

    em volta. Brbara sentiu que os braos levitavam, que no era capaz de controlar as feies,nem o olhar, e que estava a um triz do desmaio. No conseguiu responder logo e deu por si a

    balbuciar uma atabalhoao qualquer.- Posso oferecer-lhe um caf, Brbara?- J tomei.- Toma outro ...A espessura dos ares foi-se diluindo, Brbara respirou fundo, a figura de Coriolano

    clarificou-se e apareceu-lhe, de sbito, recortada sobre a parede do fundo, o fato claro muitoapuradinho, um penteadinho futebolista, um sorrizito confiante, descado e impudente. Era osorriso dele que agora insistia, no a voz.

    Mas na comissura do lbio, como um fio abandonado que emergisse das entranhas,estremecia e palpitava um cuspo branco, quase seco, instalado e luzidio. Brbara fixou-se porum instante no rebrilho da excrescncia e revirou-se, a trs quartos, para escapar quela

    imagem. Mas logo o olhar reincidiu no veio lustroso que teve, de repente, um estremeo e seviu ali bem confirmado, a unir aqueles lbios lassos que se destacavam e agigantavam,perdendo qualquer relao com o resto da face.

    - No - disse Brbara, e recuou um passo.- Ainda bem que apareceste, rapaz, so quase trs horas e tu nada. O galego que se

    amole, que espere ... que pai de filho rico ...De mos nas ilhargas, o senhor Ferragial, assomando porta do caf, interpelava o

    filho, que logo desfez o sorriso. Brbara no reparou se o cuspo permanecia l ou no, porquetinha deixado de olhar.

    - V andando, v andando, menina Brbara - disse o patro, protector. E quaseempurrou Coriolano para a escurido da baiuca.

    Havia um desentendimento qualquer entre pai e filho, que no era da sua conta, eBrbara seguiu. Mas antes de o senhor Ferragial surgir porta do caf, ainda Coriolano sorriae j se tinha desfeito o encanto. Foi um baque, um balo colorido que estoira, deixando umresduo de pedaos frouxos de borracha. TOdo aquele enlevo, a turbulncia atmosfrica, asensao de vogar num limbo tpido e aconchegado, sumiram-se de repente como se os aresficassem limpos e secos e os perfis das coisas recuperassem a suas agudezas e se impusesseseveramente, de novo, a spera lei da gravidade.

    Recordam-se da velha banda desenhada americana, de Lee Falk e Phil Davis,Mandrake, o mgico vestido de fraque, de bigodinho, com o cabelo a luzir de brilhantina? Nosmomentos cruciais, que ocorriam de prancha a prancha, a didasclia era Mandrake faz umgesto hipntico e o mundo mudava instantaneamente, com aparecimentos,desaparecimentos, reenquadramentos e uma variedade espantosa de efeitos adlib. Mandrakefaz um gesto hipntico. Genial inveno. Os autores nem precisavam de preparar e instalar otal deus ex machina. Tinham-no sempre ao alcance, no estalo sonoro dos dedos. Mas nunca

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    22/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 22

    consideraram que um resduo de cuspo branco, meio seco, ao canto duma boca, podia fazermaiores milagres.Ia Brbara sentar-se secretria e dizia para consigo, indignada com o seu prpriocomportamento: Como foi possvel eu ficar quase apaixonada por aquele idiota? certo que aClarinda tambm. Mas a Clarinda a Clarinda e eu ... sempre tenho uma figura melhor.E naqueles instantes, antes de Clarinda chegar, rememorou os gestos delicados e contidos deArnaldo, o sorriso tmido, os rompantes acrianados de fria, a meticulosidade subtil com queele descascava uma ma.

    Teve saudades do marido, esteve vai-no-vai para telefonar-lhe. Clarinda sentiu algumaresistncia e distraco por parte dela na doutrinao dessa tarde sobre os homens.

    Mas, nesta altura, o processo de separao j ia muito adiantado, por acumulao dedias, e Brbara, cansada de adiamentos e de desculpas, arrependida do seu arrependimento,cominava Arnaldo a adquirir um par de luvas numa estao de servio ou numa loja deconvenincia.

    - Tenho de tirar o carro do estacionamento.Andar de automvel fcil. O problema arrum-lo depois.

    - Prometeste? Fazes o favor, cumpres.- Onde que eu arranjo o diabo dumas luvas a estas horas? Fica para amanh.- Hoje!Brbara deixava-se levar pela dinmica que a situao impunha. Mereceria uma ampla

    e profunda reflexo isto de os homens (entendidos aqui em termos hbeis, na acepo que osagaz visconde de Seabra, autor do saudoso Cdigo Civil, empregou no seu artigo primeiro:S o homem susceptvel de direitos e obrigaes [estando longe de supor que algum lhepoderia fazer a pirraa de observar, mozinha na anca e voz aflautada: E as mulheres? D,isto de os homens, dizia eu, servos da dialctica, criarem muito contraditoriamente ascircunstncias que passam a tiraniz-los. As contendas matrimoniais tm uma enorme vocaopara agir por sua conta e entrar nos emaranhados caminhos da autogesto. E ainda que cada

    um dos cnjuges no queira, l no imo da alma, chegar a consequncias irreversveis, podeser impelido pelas frases, gestos e atitudes que se foram acumulando, acrescentadas pelamemria, ampliadas pelo ressentimento, a ponto de engenharem numa mquina infernal queningum consegue travar. E tudo o que digam alimenta o monstro. E todos os gestos, mesmoinocentes, fora do contexto, desatam uma alavanca ou pressionam uma cavilha.

    Assim, naquele casal passou a no haver maneira de proferir uma palavra, por maisinofensiva, que no desencadeasse logo uma leva de rancores e recriminaes. Se um diziaest frio, o outro via-se obrigado a responder e tu que no compraste o cobertor elctrico.Se um apontava, pelo vidro da janela, uma cena l em baixo, na rua, dizia o outro: Era bomque em vez de te distrares com essas parvoces tivesses chamado o canalizador. E ela: Equem que pagava os vinte euros da deslocao? Eras tu?. E ele, fingindo puxar duma

    caneta: Ah, para irmos a contas? Ah, tu queres contas?- Luvas?O homem olhou para ele com um ar de profundo desprezo, como se lhe perguntassem:

    Conhece o meu primo? Um rapaz assim e assim que trabalha nas obras do senhorLodemiro?

    Arnaldo reconheceu, de si para si, que aquela estao de servio, sada de Lisboa,talvez no fosse o local mais indicado para encontrar umas luvas de ltex. Mas no lhe pareciahaver qualquer outro estabelecimento aberto e impunha-se-Ihe o brio de cumprir o que tinhasido acertado com Brbara.

    Agora ali estava, perante um sujeito que o olhava com viso enfadado, por cima dunsculos de ver ao perto, contrariado por ser interrompido a meio da leitura da revista Man'sHealth que tinha desdobrada sobre o balco. E, sobre isso, acercava-se e ia-se encostando umsegurana, de ar rufia, que parecia muito interessado em examinar os ns dos dedos dos doispunhos unidos que erguia a um palmo do nariz, como se nunca os tivesse visto antes.

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    23/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 23

    - Isso mais no hospital - rosnou o segurana. Havia qualquer coisa derequintadamente alusivo, na frase bafejada por entre dedos peludos, que punha Arnaldo desobreaviso e o convidava a uma retirada honrosa. certo que o balconista e o segurana, coma experincia nocturna que lhes competia, no podiam deixar de ter desde logo percebido queArnaldo era a candura em pessoa. Mas, por uma questo de rigor, continuavam a agirprofissionalmente. Aquela antipatia no implicava nada de pessoal. Foi o mal deles. Seestivessem mais relaxados e soltos, talvez tivessem percebido o que a vinha e tidooportunidade de tocar o sinal de alarme.

    - Isto um assalto. Tudo para o cho!E eis que o mundo comea a girar furiosamente, num turbilho cheio de cores, como se

    os lustrosos pacotes de batatas fritas e as glamorosas revistas de corao zunissem nagiravolta lacre de um carrocel doido. Uma espcie de King Kong cinzento saltava sobre obalco e uma forma fantasmtica berrava num bramido:

    - Tu tambm, lingrinhas, p'ro charco, avistes?Arnaldo encolheu-se todo, chegando-se ao segurana, estendido no cho de ladrilho,

    que lhe segredava, desta vez em tom amigvel.-Calma, p.

    E estourou aquela revoada metlica de mquinas arrombadas, estardalhao de metais eobjectos a cair no cho, num pandemnio de fim do mundo. Ainda estava o fim do mundo aacontecer, quando dois rebentamentos estremeceram os vidros, e atordoaram os tmpanos deArnaldo. Massas confusas revolviam-se e caam numa convulso de trouxa de roupas. Umcheiro activo a plvora impregnou todas as molculas em volta, desde a maior mais pequena.

    Arnaldo nunca viria a perceber se tinha desmaiado, se se ausentara temporariamente domundo para lhe no sofrer a brutal injustia, ou se o que veio a seguir decorreu sem soluesde continuidade. L iremos.

    Nessa noite, Brbara, a quem cabia a cama de casal, tinha ficado espera das luvas e,uma vez terminada a telenovela, ia folheando uma revista chamada Glamour que contribuiu

    para um grande e merecido bocejo. Mas a chave nunca mais estalava na porta e o elevadorera como se o tivessem pregado nos andares de baixo. Comeou por ficar preocupada, massobreveio uma tristeza ondulada, feita de ressonncias doridas, com acordes longnquos deviolino, e uma languidez escura de sombras de ciprestes. Arnaldo tinha aproveitado aquelasada para se encontrar com a namorada. Quem seria ela? Mas que topete e desvergonha. Evieram-lhe aos olhos umas injustas lgrimas embebendo as saudades que j sentia dos bons,embora encurtados, tempos que haviam passado juntos, como se eles fossem verdade.

    Estas contendas entre casais so por natureza equivocadas, abyssus abyssum invocat.Ver-se-iam reduzidas a quase nada se carreassem dados objectivos, factos, nmeros,expostos em colunas claras, rigorosas e isentas. Aconteceria assim entre as formigas e asabelhas, decerto, se elas tivessem matrimnios e soubessem lanar informaes no papel.

    Mas, pensando bem, ningum quereria essa vida e certas coisas so como so, precisamenteporque confirmam a verdade contida numa das ltimas linhas de dilogo deste cronovelema eque ser, se no estou em erro, uma pequena frase proferida por Brbara: Somos humanos,no?

    O grande engano de Brbara que no havia verdadeiramente outra, com a carga demistrio e de perigosidade que, no contexto, costume atribuir ao vocbulo, irradiante desentidos funestos. No foi preciso Arnaldo ser muito hbil para que ela se convencesse de quelhe haviam roubado o marido, da mesma forma que ele estava convencido de que um outroarrematara a mulher. A Brbara no bastava a intuio feminina, precisava de mais experinciada vida, e as maquinaes de Clarinda ajudavam pouco.

    A verdade que, a menos que nestas matrias as intenes e mesmo as dbeistentativas contem, coisa sobre que tenho dilaceradas dvidas, Arnaldo estava o seu tantoinocente.

  • 7/29/2019 A Arte de Morrer Longe de Mario de Carvalho

    24/42

    A Arte de Morrer Longe Mrio de Carvalho 24

    Dois ou trs colegas viam-no entristecer-se ao computador, a deixar-se hipnotizar pelaluminosidade da pantalha, sem fazer correr os nmeros do Excel, nem tocar no teclado, esugestionaram-no a convidar a Dr," Cintialina, dos Servios Jurdicos, para jantar. Algumaventou que eles tinham muito em comum e em todos aqueles contabilistas nasceu umavocao sbita de alcoviteiros. O querer de Arnaldo era frgil e eles levaram a sua avante,assistindo ao florescer daquela relao com o enlevo terno de quem acalenta uma plantacarnvora p