A arte de interpretar e os textos bíblicos

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Professor: Rogério A ARTE DE INTERPRETAR E OS TEXTOS BÍBLICOS: TODA TRADUÇÃO É UMA TRADIÇÃO E UMA TRAIÇÃO? É do conhecimento de todos que interpretar não é uma tarefa fácil. Se fosse fácil, todos entenderiam a mesma coisa, todos teriam encontrado a mesma verdade. No entanto, as coisas não são assim. Levando em consideração que é uma tarefa difícil entendermos as “verdades” que um texto pode nos fornecer, cabe a nós fazer a nossa parte para chegarmos, o mais próximo possível, a essa “exatidão”. Agora, imagine o leitor que esteja próximo a você uma obra milenar como a Bíblia. Se já é complicado entendermos textos contemporâneos, quanto mais textos sagrados, escritos há séculos, e em outros idiomas! O nosso propósito é procurar auxiliar à pessoa interessada no tratamento com tais textos a chegar a uma melhor interpretação dos textos bíblicos. Antes de entrarmos no nosso assunto propriamente dito, precisamos conhecer um pouco sobre algumas teorias a respeito de texto e seu sentido: A – Foco no autor O texto é visto como um produto lógico do pensamento do autor ( na realidade, seria a representação do pensamento do autor), nada mais cabendo ao leitor senão “captar” essa representação mental, juntamente com as intenções ( psicológicas ) do autor, exercendo, pois, um papel passivo. OBS: Não se leva em conta as experiências e os conhecimentos do leitor, a interação autor-texto-leitor com propósitos constituídos sócio-cognitivos intencionalmente. Problemáticas: Seriam as obras literárias realmente “expressões” da mente ou representação do pensamento do autor? Será que aquilo que o autor tinha em mente não foi diferente do que ele escreveu?

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Professor: Rogério

A ARTE DE INTERPRETAR E OS TEXTOS BÍBLICOS: TODA TRADUÇÃO É UMA TRADIÇÃO E UMA TRAIÇÃO?

É do conhecimento de todos que interpretar não é uma tarefa fácil. Se fosse fácil, todos entenderiam a mesma coisa, todos teriam encontrado a mesma verdade. No entanto, as coisas não são assim. Levando em consideração que é uma tarefa difícil entendermos as “verdades” que um texto pode nos fornecer, cabe a nós fazer a nossa parte para chegarmos, o mais próximo possível, a essa “exatidão”.

Agora, imagine o leitor que esteja próximo a você uma obra milenar como a Bíblia. Se já é complicado entendermos textos contemporâneos, quanto mais textos sagrados, escritos há séculos, e em outros idiomas!

O nosso propósito é procurar auxiliar à pessoa interessada no tratamento com tais textos a chegar a uma melhor interpretação dos textos bíblicos. Antes de entrarmos no nosso assunto propriamente dito, precisamos conhecer um pouco sobre algumas teorias a respeito de texto e seu sentido:

A – Foco no autor

O texto é visto como um produto lógico do pensamento do autor ( na realidade, seria a representação do pensamento do autor), nada mais cabendo ao leitor senão “captar” essa representação mental, juntamente com as intenções ( psicológicas ) do autor, exercendo, pois, um papel passivo.

OBS: Não se leva em conta as experiências e os conhecimentos do leitor, a interação autor-texto-leitor com propósitos constituídos sócio-cognitivos intencionalmente.

Problemáticas: Seriam as obras literárias realmente “expressões” da mente ou representação do

pensamento do autor? Será que aquilo que o autor tinha em mente não foi diferente do que ele

escreveu? Saberia ele próprio o que tinha em mente? Estarão os autores sempre de plena posse do que querem dizer?

Ainda não podemos olvidar que, sendo fruto da linguagem, o texto do autor tende a ser escorregadio, o que complicaria chegar com certeza absoluta às intenções do autor.

B – Foco no Texto

O texto é visto como simples produto da codificação de um emissor a ser decodificado pelo leitor/ouvinte, bastando a este, para tanto, o conhecimento do código utilizado. Portanto, exige-se foco no texto em sua linearidade, uma vez que “tudo está dito no dito”.

Problemáticas:

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Corremos o risco de ignorar todo um contexto social, político, econômico e, até mesmo religioso, ou seja, ficamos presos apenas ao que está escrito.

A linguagem nunca é produto de um único indivíduo. Portanto, sendo produto de uma sociedade, não podemos ignorar todo um contexto social. A linguagem pertence à sociedade.

Nem tudo está dito no dito. Existe o não-dito no dito. Uma palavra pode ter uma multiplicidade de significados ( um significante

pode gerar mais um significado e este, por sua vez, gerará outro significante com outros significados ad infinitum ).

C - Foco na interação autor-texto-leitor

Os sujeitos são vistos como atores, sujeitos ativos que, dialogicamente, constroem o sentido do texto e por este também são transformados. O leitor é o construtor do sentido de um texto.

Dessa forma, o leitor estabelece conexões implícitas, preenche lacunas, faz deduções e comprova reposições.

O texto em si não passa de uma série de “dicas” para o leitor, convite para que ele dê sentido a um trecho da linguagem.

O leitor “concretiza” a obra literária, pois o texto em si não passa de uma cadeia de marcas negras organizadas numa página.

OBS: Quando modificamos o texto com nossas estratégias, ele simultaneamente nos modifica.

O leitor , ao que parece, empenha-se tanto em lutar com o texto quanto em interpretá-lo, esforçando-se para fixar o seu potencial “polissêmico”, anárquico em uma estrutura controlável – ISER.

Para que possamos entender, na prática, como uma simples palavra pode gerar dificuldade no entendimento do leitor, basta que leiamos algumas versões de Bíblias existentes. Abaixo, segue uma passagem extraída do profeta Jeremias, capítulo 33, versículo 3:

“Clama a mim, e responder-te-ei e anunciar-te-ei coisas grandes e ocultas, que não sabes” ( Versão Revista e Atualizada da Tradução de João Ferreira de Almeida, De Acordo com os Melhores Textos em Hebraico e Grego - 8ª Impressão - Imprensa Bíblica Brasileira - 1992 ).

“Clama a mim, e responder-te-ei, e anunciar-te-ei coisas grandes e firmes, que tu não sabes.” ( Almeida, com referências e algumas variantes - Edição Revista e Corrigida - 54ª Impressão - IBB).

“Clama a mim e responder-te-ei; anunciar-te-ei coisas grandes e difíceis, que não sabes.” ( Tradução Brasileira, Soc. Bíblica do Brasil, 1926).

“Fala comigo e Eu te responderei. Pergunta-Me e Eu contarei a você segredos fabulosos sobre os meus planos.” ( A Bíblia Viva - Paráfrase - Mundo Cristão - 1981).

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“Chama-me e eu te contarei prontamente coisas grandes e incompreensíveis, que não sabias”. ( Tradução do Novo Mundo das Sagradas Escrituras - Tradução da Versão Inglesa de 1961, mediante consulta constante ao antigo texto hebraico, aramaico e grego - 1967 - Edição Brasileira [ Testemunhas de Jeová]).

“Invoca-me e te atenderei, e anunciar-te-ei coisas grandes e certas que tu ignoras”. ( Tradução Católica do Pe. Matos Soares, 1934 - Porto, Portugal).

“Jeremias, se você me chamar, eu responderei e lhe contarei coisas misteriosas e maravilhosas que você não conhece.” ( A Bíblia na Linguagem de Hoje, SBB, 1988).

“Invoca-me e eu te responderei e te anunciarei coisas grandes e inacessíveis, que não conheces.” ( Bíblia de Jerusalém, Ed. Paulinas, 1986, S. Paulo ).

“ Em espanhol: “ Clama a mí, y yo te responderé, yo te enseñaré cosas grandes y ocultas que tu no conoces”. ( Versión Revisada por Cipriano Valera, 1602. Soc. Bíblicas em América Latina - 1960 )

“ Em francês; “invoque-moi, et je te répondrai; je t´annoncerai de grandes choses cachées, que tu ne connais pas”. ( Louis Segond, Paris, 1955 ).

“Em Inglês: “Call unto me, and I will answer thee, and I will show thee great things and difficult, which thou knowst not”. ( Standart Version, 1929)

OBS: difficult em Hebraico = fortified.

“Em ingles; “Call unto me, and I will answer thee, and shew the great and mighty things, which thou knowst not”. ( King James Version - 1977 )

“Em ingles: “Call to Me, and I will answer you, and I will tell you great and mighty things, which you do not know.” ( New American Standart - 1990)

“Em hebraico:

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Como podemos notar, trazer uma palavra de um idioma para outro é complicado, já que ela pode ter um sentido tão amplo que a palavra substituta em português não consegue dar todo o sentido. É por esta razão que temos tantas versões de bíblias existentes em nosso meio.

Como o leitor pode ter percebido, uma coisa é fazer interpretação de um texto em língua vernácula; outra, oriunda de outro idioma. Aquela não necessita de tradução ( de uma língua para outra, é claro!), cabendo ao leitor compreender o sentido da palavra, ainda que oriunda de outra época. Esta já depende de uma interpretação do tradutor, de forma que o leitor pode cometer um erro de interpretação por indução ou mesmo por causa de uma má tradução do texto original. Já podemos notar que interpretar a Bíblia é uma arte. Denominamos Hermenêutica a arte ( e a ciência ) da interpretação e exegese, exposição de um determinado texto com intenção de guiar o leitor para mais próximo do sentido “exato” do texto. Abaixo, falaremos com maiores detalhes sobre estas duas palavras:

EXEGESE - palavra grega que significa narração, exposição, explicação. Vem da preposição “ek” , “eks” ( de dentro para fora) e “hguéomai” ( conduzir, guiar, dirigir, governar, explicar pormenorizadamente, interpretar). Enquanto a exegese é a exposição, a operação de interpretar, a hermenêutica é a ciência da interpretação. Em outras palavras, a exegese é a aplicação dessa ciência.

A palavra Hermenêutica vem do nome do deus Hermes, que em indo-europeu é wre ou wer, e significa palavra. Portanto, estamos entrando em um sentido mais profundo, ou seja, de palavra como linguagem, como logos ( reunião, razão, pensamento). Um outro nome para Hermes é Mercúrio. Hermes era o intérprete dos deuses, era o deus da eloqüência e tinha como a representação a figura de um homem de cuja boca saía como pequenas cadeias que iam parar nas orelhas de outras figuras humanas. Já Mercúrio vem da mesma raiz que a palavra “merces”, mercadoria. Por isso, participava de todos os negócios, ocupava-se da paz e da guerra, das querelas e dos amores dos deuses, dos interesses gerais do mundo, no céu, na terra e nos infernos. Presidia aos jogos, à assembléia, escutava os discursos e respondia, por isso, era o deus da eloqüência e da arte de falar. Era, também, o deus dos viajantes, dos negociantes e mesmo dos ladrões. Enfim, era o mais ocupado dos deuses e dos homens.

Além desses atributos, há ainda outros que por causa do tempo, achamos por bem não comentar.

O verbo interpretar aparece nas páginas da Bíblia, em especial no Novo Testamento, como por exemplo, na passagem citada abaixo:

“Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho, o qual será chamado EMANUEL, que traduzido é: Deus conosco.” Mt 1.23.

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A palavra sublinhada acima vem do verbo grego “methermnéuein”, que significa intepretar, traduzir.

“E começando por Moisés, e por todos os profeta, explicou-lhes o que dele se achava em todas as Escrituras.” ( Lc 24.27). ( A palavra sublinhada vem do verbo grego “diermnéuein”, que significa interpretar, traduzir, explicar). Portanto, o assunto de que tratamos tem sua base em um verbo registrado na Bíblia. Sentimos, assim, autorizados para discutir o melhor entendimento de algumas passagens. Antes, precisamos conhecer algumas regras formuladas por pensadores no decorrer dos séculos com a finalidade de constituírem-se um “método” eficiente no momento da interpretação.

I - REGRAS GERAIS DE EXEGESE

1 - Parte sempre do princípio de que a Bíblia é a Palavra de Deus, infalível, inerrante, inspirada pelo Espírito Santo, e por isso, ela tem autoridade.

“Se a lei chamou deuses àqueles a quem a palavra de Deus foi dirigida ( e a Escritura não pode ser anulada)...” Jo 10.35

2 - A Bíblia é o melhor intérprete da própria Bíblia, por isso, a Bíblia explica e interpreta a si própria.

“ Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna; e são elas que dão testemunho de mim.” ( Jo 5.39)

3 - A fé salvadora e a ação do Espírito Santo são imprescindíveis para a compreensão e interpretação das Sagradas Escrituras.

“Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça.” ( 2 Tm 3.16)

4 - Os fatos e exemplos bíblicos somente têm autoridade quando forem amparados por uma ordem expressa, um mandamento.

Como exemplo, podemos dizer que os costumes, citados por Lucas em “Atos dos Apóstolos”, em relação à Igreja primitiva, não constituem necessariamente uma ordem a ser seguida pela Igreja dos dias atuais, pois não há um mandamento claro para que assim se proceda.

5 - Devemos interpretar nossas experiências pessoais à luz das Sagradas Escrituras, e não interpretar as Sagradas Escrituras à luz de nossas experiências pessoais.

6 - A Bíblia, inspirada por Deus com a finalidade de mostrar o caminho da salvação a todos quanto crerem, não é um compêndio para aumentar nossos conhecimentos.

7 - O cristão tem o direito de pesquisar e interpretar pessoalmente a Bíblia Sagrada, desde que respeite as regras da exegese bíblica.

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8 - Os fatos, os acontecimentos e a própria história da Igreja cristã são muito importantes, mas nem por isso são uma regra infalível para a exegese bíblica.

II - REGRAS GRAMATICAIS DE EXEGESE

1 - a Bíblia tem um único sentido, e em princípio deve ser tomada literalmente.

2 - Devemos interpretar o sentido das palavras no tempo em que o autor escreveu.

Cuidado! O leitor pode cometer, neste caso, os seguintes erros:A - Obsolescência semântica - é o erro de atribuir-se a uma palavra um sentido

que ela possuía em uma época anterior. Por exemplo, uma palavra grega pode ter um sentido no grego clássico e queremos entender essa mesma palavra no tempo bíblico, quando pode já ter havido mudança de sentido.

B - Anacronismo semântico - é o erro de atribuir-se a uma palavra um sentido que ela passou a possuir em uma época posterior. Por exemplo, pegamos o significado de uma palavra no grego moderno e queremos entender que ela possuía o mesmo sentido no tempo dos apóstolos. Na verdade, tal palavra pode ter sofrido mudança de sentido. Como exemplo, podemos citar o verbo “filéw” que significava amar em grego koiné ( grego do período bíblico) e hoje, no grego moderno, significa beijar.

3 - Não devemos isolar a palavra isolada do texto e do contexto.

4 - A passagem deve ser interpretada em coerência com o contexto e com toda a Bíblia.

5 - A passagem dever ser figurada e não literal, quando se usa um objeto inanimado na descrição de uma pessoa.

6 - A passagem deve ser considerada figurada, quando a descrição não define rigorosamente a coisa descrita.

7 - Somente as partes principais de uma parábola devem ser conclusivas para a realidade, e não as secundárias.

III - REGRAS HISTÓRICAS DE EXEGESE

1 - A Bíblia originou-se dentro de um contexto histórico e, por isso, deve ser interpretada à luz da história, especialmente a história bíblica.

2 - Para entender corretamente o sentido da palavra do autor de determinada porção bíblica, deve-se entender o contexto histórico em que o autor a escreveu.

3 - Entre o aparecimento do primeiro livro da Bíblia e o último, houve um lapso de tempo de aproximadamente 15 séculos ou 1500 anos; a revelação de Deus, tanto no

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Antigo Testamento quando no Novo Testamento foi progressiva, mas mesmo assim, as Escrituras formam uma unidade coesa.

IV - REGRAS TEOLÓGICAS DE EXEGESE

1 - Para compreender a Bíblia teologicamente, devemos antes de verificar as regras gerais de exegese, bem como as gramaticais e históricas.

2 - Para entender a Bíblia teologicamente, devemos considerar o Antigo Testamento e o Novo Testamento como uma só unidade.

3 - Quando duas doutrinas bíblicas parecem contraditórias, devemos aceitar ambas como verdadeiras, até posterior confirmação em outra unidade.

A HISTÓRIA DA HERMENÊUTICA

A hermenêutica surgiu no campo da teologia ( essencialmente a protestante ) e na filosofia. Mais tarde, passa a ser uma ciência apenas teológica que abrange outras doutrinas: a católica, a ortodoxa e, depois, utilizada por todas as religiões mundiais. Hoje, ela não é mais uma possessão da teologia, mas também do direito, da sociologia, etc.

A Hermenêutica teve seu ápice após a Reforma e Iluminismo, exatamente sob a égide do Hegelianismo.

ALGUMAS HERMENÊUTICAS PARTICULARES

1 - SANTO AGOSTINHO

Foi autor da obra “A Cidade de Deus”, onde ele contrapõe os homens a Deus em suas construções. Viveu no século IV D.C e elaborou em suas obras vários modos ou regras de interpretar as Escrituras, como:

A - Os signos para entender as palavras do autor, a língua original para se ler o original. Por isso, considerava importantíssimo saber o hebraico e o grego para ler os originais da Bíblia. Valorizava a gramática. Sua interpretação bíblica era baseada em símbolo ( tipologia) assemelhando-se ao Apóstolo Paulo quando usava a “pedra” para simbolizar Cristo. Enfatizava, também, as artes para uma melhor compreensão das coisas.

B - Dizia, também, que o objetivo da interpretação era adquirir sabedoria e conhecimento. Cada intérprete deveria ter temor, piedade, ciência, força e o conselho para penetrar mais na interpretação. Por fim, todo esse conhecimento tinha como objetivo principal interpretar as Escrituras para se chegar ao amor ao próximo e ao amor de Deus.

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2 - SPINOZA

Foi denominado panteísta pelos cristãos, racionalista pelos católicos e de herege pelos judeus. Para ele, a interpretação das Escrituras se dá pelo conhecimento histórico, que posteriormente foi denominado de historicismo. Spinoza também usa a interpretação metafórica. Do seu modo de interpretar surge posteriormente a história crítica das Escrituras, que vai dar na exegese e nos métodos histórico-crítico da Bíblia.

Segundo ele, há varias formas de interpretar as Escrituras: tem que ter dicionários, possuir uma gramática, estudar retórica e saber hebraico, a língua mãe do Antigo Testamento.

Baruch Spinoza era um judeu marrano na Península Ibérica, convertido ao Cristianismo por força da Inquisição. Foge para a Holanda, imaginando que estaria salvo da inquisição portuguesa, porém, os protestantes calvinistas, tanto religiosos como políticos, serão os primeiros a persegui-lo.

Ele não consegue ser um cristão entre os cristãos, nem ser um judeu entre os judeus. E por que isso acontecia? Por causa dos seus escritos polêmicos.

Seu processo de compreensão e interpretação parte do princípio de que há certa hermenêutica do poder. Percebeu que desde os concílios, as confissões faziam das interpretações formas de dominação. Os protestantes, também, através da própria expressão “livre exame das Escrituras”, dava sinal de manipulação da interpretação.

Para Spinoza, as interpretações nada mais são do que forma de poder, para subjugar indivíduos para que não cheguem ao conhecimento da verdade ( deturpam o sentido do que está escrito nas Escrituras). A teologia interpreta as Escrituras conforme as suas necessidades para dominar os fiéis, a filosofia, para dominar os pensadores e o Estado, para dominar os seus súditos. Ele ainda acrescenta que a Teologia e a filosofia usaram seus poderes para dominar os campos do saber de outras ciências. A conclusão é que elas são poderosas quando se tornam dogmas e são utilizadas por grupos ( judeus, católicos e protestantes) como poder exercido sobre os seus seguidores. Como exemplo, Spinoza dizia que os líderes católicos possuíam uma forma emperradora de interpretação real; os protestantes trabalhavam o poder com o famoso lema “livre exame das Escrituras” que servia sempre para deturpar o sentido verdadeiro e os judeus se consideravam o povo escolhido de Deus, tornando-se superiores aos demais povos. Para o hermeneuta, a eleição dos judeus não era alguma forma de superioridade, e sim, uma responsabilidade para os judeus e para outras nações.

Ele ainda entende milagre não como algo sobrenatural, e sim, como uma aspecto que deve estar ligado à Natureza. Com isto, Baruch Spinoza antecipa a hermenêutica da desmistificação das Escrituras defendida por Rodolfo Bultmann.

A HERMENÊUTICA DE SCHELEIERMACHER

Em seu escrito “ Discursos Acadêmicos”, datado de 1829, Scheleiermacher elaborou alguns métodos hermenêuticos. Ela é uma ciência de uma arte: combina linguagem, objetividade e o processo gerado do pensamento, a combinação das idéias para poder compreender. A palavra é a intermediação que permite um pensar comum. Ele coloca seu ponto de vista contra a dogmática que afirmava que o “Novo Testamento como obra de um só autor”. Mostra que os escritos são individuais e de várias épocas diferentes. Ainda, a interpretação gramatical não é suficiente para interpretar algo. A significação de um termo não responde ao todo e se empregarmos mecanicamente um termo existente numa linguagem-idioma não resolverá o caso como tal. O importante é

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interpretar bem para chegar a entender o autor. Portanto, a interpretação, segundo o pensador, é uma arte. Ainda, para se responder a alguma coisa, é necessário compreender o que é dito. Assim, a questão da Hermenêutica abandona o objeto de estudo e vai em direção ao sujeito, preparando o caminho para a subjetividade moderna.

A HERMENÊUTICA DE W. DILTHEY ( 1833 - 1911)

Dilthey é o criador da situação problemática da diferenciação entre compreensão ( verstehen ), explicação (erklearen) e pré-compreensão (vorvestrandnis). Ele correlaciona a hermenêutica com a teoria do conhecimento, a lógica, a metodologia da ciências do espírito. Critica a hermenêutica de Scheleiermacher por considerá-la uma interpretação psicológica do autor, o que seria a mais alta concentração, impossível de ser realizada. O que ele pretende é uma hermenêutica com status de ciência, com valor científico.

A HERMENÊUTICA DE FRIEDRICH AUGUST WOLF ( 1759 - 1824)

Friedrich A. Wolf constata que o texto pressupõe dois momentos: a compreensão e a explicação. Compreendemos para nós e explicamos para os outros. No entanto, a compreensão ocorre quando há um diálogo, não com o texto enquanto tal, e sim com o pensamento do autor. Daí propor-se não só estudar a época do autor, mas também ter um conhecimento factual de sua vida.

A HERMENÊUTICA ONTOLÓGICA DE MARTIN HEIDEGGER (1888-1976)

Martin Heidegger se preocupava com uma hermenêutica que tivesse como centro o próprio Ser. A concreta elaboração do sentido do Ser tem em Heidegger três núcleos: Dasein ( ser-aí), Mitsein( ser-com), in der Welt sein ( ser-no-mundo).

A - Dasein - A tradução literal dessa palavra é: dá: aí e sein: ser. Porém, o “aí” não indica um espaço e sim uma ABERTURA do homem ao ser. Todo perguntar por algo já implica em uma abertura.

B - Mitsein - Há muitos entes no mundo. Quando o sujeito sai de si, vai em direção a um objeto, que é captado pelo sujeito enquanto objeto-representação. Esse objeto-representação aparentemente afirma o sujeito como identidade, uma vez que o objeto não é o outro-diferença do sujeito-identidade. Para que o homem tenha uma identidade é necessário que haja uma diferença no outro ( ser). Nesse sentido, o homem tem a necessidade do ser-com. Por exemplo, na narração bíblica da criação, Deus diz que ao homem não é bom estar só. Mas como ele está só, se toda a Natureza ( animais, plantas, etc) tinham sido criados para ele? Faltava-lhe o outro ( ser). Nesse sentido, as coisas ( entes) só aparentemente possui uma relação de diálogo com o homem. Faltava-lhe mais: a mulher, o ser-com. Ela é a diferença na identidade de ser o que é. O homem só se sente só pela ausência do ser-com. Mas antes que o homem saiba dessa necessidade, dessa solidão, Deus sabe antecipadamente e providencia a solução do problema, criando a mulher de sua costela. O ser-com se manifesta no diálogo. Diálogo é “dia”: através de e “logos”: reunião e síntese de contrários. É no e pelo diálogo que se

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compõem identidade e diferença, manifesta-se o vigor do ser-com. O vigor do diálogo é o ser-com se revelando na composição da linguagem.

C - Im Der Welt Sein

O Ser é também o Ser-no-mundo. Por mundo não se deve entender com meio e contexto; não se deve compreender coisas, plantas e animais do meio, nem apreensão objetiva dos fatos contextuais da sincronia e diacronia que formam o mundo. Significa a constitutiva abertura do homem ao sentido do Ser, através do qual o homem revela o sentido do que está-aí, revelando ele mesmo como ex-sistência, porque o Dasein, por sua abertura constitutiva do Ser, por sua condição de Mitsein, pode integrar tudo e todos no mundo.

A HERMENÊUTICA DE GEORG GADAMER

Gadamer apresenta a compreensão com a presença de toda interpretação e comunicação com o ser-em-si projetado para as possibilidades futuras. A sua hermenêutica parte da virtude da pré-compreensão para a tradução da interpretação. Em si, a compreensão do ser é considerada não tanto como um ato subjetivo, mas como uma inserção dentro de um processo tradicional do qual o passado e presente se interferem sem cessar. O trabalho é fazer consistir em ampliar, em círculos, a unidade de sentido. A concordância de todos os detalhes tem como objetivo o conjunto representado no critério de toda a compreensão correta. A compreensão autêntica está na forma anterior de conhecer o assunto de que trata o próprio texto. A condição essencial da interpretação está na pré-compreensão ou em entender um texto que tem a ligação com o conteúdo condicionado pela tradição e em conhecer a própria tradição. Verdade e tradição não são semelhantes. Elas ocupam situações originais entre o estranho e o familiar, situação que implica na forma intermediária da objetividade do tipo histórico, sinônimo de descontinuidade e distanciação e pertence a uma tradição. Esta distância temporal e a significação para a compreensão é o problema da Hermenêutica.

Por fim, a hermenêutica está ligada ao modo da tradução do idioma para outro, aquilo que pertence à experiência de todo bom tradutor de texto de língua estrangeira. Uma tradução consiste sempre em fazer resplandecer e colocar em evidência, elucidar o sentido visado. Toda tradução visa, ao mesmo tempo, a uma renúncia, pelas nuances do texto em passar a tradução e correr o risco de alienar o sentido original: é a aplicação da analogia para a interpretação. A tradução última projeta uma luz que pode ter o poder de um texto que parece ter o real sentido. A interpretação e o diálogo relevante da linguagem são a tradição no sentido próprio do termo.

A HERMENÊUTICA DE RUDOLF BULTMANN

Propunha a desmitologização dos textos bíblicos. O homem moderno deve entender os textos bíblicos como se fossem mitos. Propõe uma interpretação adequada ao homem secularizado. Nesse sentido, entendia que a exegese bíblica não existe sem a pressuposição, porque a interpretação histórica é o pressuposto do método histórico crítico. Essa pré-compreensão não é provisória e está aberta, de forma tal, que se dá no encontro existencial com o texto e na decisão existencial que o indivíduo toma.

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Portanto, a compreensão do texto não é de forma alguma definitivo, mas sempre se abre. O sentido da Bíblia aparece sob novas formas no novo dia em direção ao futuro.

CONCLUSÃO

Percebemos que a questão da Hermenêutica não se esgota em nenhum dos pensadores. Cada um contribuiu para uma compreensão desta arte e ciência. Se fôssemos falar, de forma resumida, de todos os tipos de hermenêuticas neste material, diríamos que a hermenêutica surgiu com o ato de ler ( em sentido essencial) e os procedimentos que o acompanham. Sua problemática ergue-se com a leitura/interpretação. Inicialmente, o texto foi privilegiado. Isto aconteceu por causa do hermetismo de alguns textos e pela sua obscuridade e distanciamento contextual. A modernidade vai acrescentar um novo ingrediente: o leitor da leitura/interpretação. Contudo, esse leitor não descobrirá somente o texto como um objeto passivo, mas também como o âmbito da subjetividade do autor. Interpretar o texto seria penetrar na subjetividade do autor e surpreender o que ele quis dizer. É nessa relação interpretativa que surge a questão do diálogo. Aí surge a questão do método. A busca do método para a hermenêutica se baseava no modelo das ciências da natureza e na postura epistemológica da modernidade. Ao se introduzir a ontologia na questão hermenêutica, o texto passa a ter uma transformação radical, e a postura deve ser outra. O que de fato se pro-cura na leitura? A verdade objetiva e científica do texto? A verdade do autor? A comprovação de uma verdade política, sociológica, histórica, psicológica, etc.? O deleite estético do leitor? Os traumas consciente/inconsciente?

Assim, terminamos dizendo que a questão da Hermenêutica é a questão das questões, pois é sempre e de novo o circular no saber e não-saber do mesmo da questão.

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Bibliografia

CARVALHO, Rogério Brambila de. A Ciência do Real e a Poiésis. Dissertação de mestrado, 2006.

CASTRO, Manuel Antonio de. Tempos de Metamorfose: A questão Hermenêutica. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro: 1994.

HENRICHSEN, Walter A. Princípios de Interpretação da Bíblia. Mundo Cristão, São Paulo: 1997.

SOTELO, Daniel Martins. A Hermenêutica Bíblia e a Hermenêutica filosófica. Rio de Janeiro, 1997.