A arquitetura e esfera pública O Palácio Anchieta e o sítio fundador de Vitória/ES

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1 A arquitetura e esfera pública O Palácio Anchieta e o sítio fundador de Vitória/ES 1 Clara Luiza Miranda Professora Doutora do Centro de Artes (Dau-Ppga-Ppgau) Ufes Introdução Neste artigo, a concepção de esfera pública tem como base a concepção empregada no livro “A Condição Humana” de Hannah Arendt 2 . Tendo como ponto de partida a Ate- nas clássica, esfera pública é definida em antítese a esfera privada, que é a esfera da família (da oikos casa; nomia regras), onde ocorre a produção e a reprodução. A ação, a liberdade situa-se na esfera pública para os gregos: “O ser político, o viver numa ‘po- lis’, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não atr avés de força ou violência.” Entre os romanos a urbe é o território de formação cívica cidades e Cidades-Estado e se distingue da civitas reunião de famílias que compartilham os mesmos deuses, a mesma organização social e as mesmas formas de produção. No cristianismo, o temor ao sagrado se expressa especialmente pela arquitetura, onde “uma nítida linha divisória separa os dirigentes da Igreja dos fiéis”. Com o aumento da influência da religião, o poder requer um ambiente apropriado para demarcar hierarquia e reverência. Somente em alguns lugares, construídos com arte, este sentido seria perceptível. Neles, o cristão resgata o valor da pedra 3 . Se aplicar a este contexto os termos ação, labor e trabalho que determinam a condição humana segundo Hannah Arendt - termos que definem a vida ativa em oposição à vida contemplativa 4 . A ação, que é política por excelência, se restringe ao clero e aos senho- res. Porém, se na Grécia antiga a vida contemplativa se destina somente aos filósofos, 1 Este texto faz parte da Pesquisa Arquitetura e evolução urbana de Vitória desde 1537, financiada pela Facitec/PMV 2 ARENDT, H. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense, 1994 3 SENNETT, R. Carne e Pedra. Rio de Janeiro: Record, 2003. 4 ARENDT, Op. Cit. Ver cap. 1. O labor é processo biológico; o trabalho é o resultado de um processo cultural, sua lógica é a durabilidade dos objetos. Vida contemplativa denomina a experiência com o eter- no.

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Capítulo do Livro "Urbanismo Colonial" organizado pelo prof. Dr. Nelson Pôrto

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1 A arquitetura e esfera pblica O Palcio Anchieta e o stio fundador de Vitria/ES1 Clara Luiza Miranda Professora Doutora do Centro de Artes (Dau-Ppga-Ppgau) Ufes IntroduoNesteartigo,aconcepodeesferapblicatemcomobaseaconcepoempregada no livro A Condio Humana de Hannah Arendt2. Tendo como ponto de partida a Ate-nas clssica, esfera pblica definida em anttese a esfera privada, que a esfera da famlia (da oikos casa; nomia regras), onde ocorre a produo e a reproduo. A ao, a liberdade situa-se na esfera pblica para os gregos: O ser poltico, o viver numa po-lis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuaso, e no atravs de fora ou violncia. Entre os romanos a urbe o territrio de formao cvica cidades e Cidades-Estado e se distingue da civitas reunio de famlias que compartilham os mesmos deuses, a mesma organizao social e as mesmas formas de produo.No cristianismo, o temor ao sagrado se expressa especialmente pela arquitetura, onde uma ntida linha divisria separa osdirigentes da Igreja dos fiis. Com o aumento da influncia da religio, o poder requer um ambiente apropriado para demarcar hierarquia ereverncia.Somenteemalgunslugares,construdoscomarte,estesentidoseria perceptvel. Neles, o cristo resgata o valor da pedra3.Se aplicar a este contexto os termos ao, labor e trabalho que determinam a condio humana segundo Hannah Arendt - termos que definem a vida ativa em oposio vida contemplativa4. A ao, que poltica por excelncia, se restringe ao clero e aos senho-res. Porm, se na Grcia antiga a vida contemplativa se destina somente aos filsofos,

1 Este texto faz parte da Pesquisa Arquitetura e evoluo urbana de Vitria desde 1537, financiada pela Facitec/PMV 2 ARENDT, H. A Condio Humana. Rio de Janeiro: Forense, 1994 3 SENNETT, R. Carne e Pedra. Rio de Janeiro: Record, 2003. 4ARENDT, Op. Cit.Vercap. 1. Olabor processo biolgico; otrabalho o resultado de um processo cultural, sua lgica a durabilidade dos objetos. Vida contemplativa denomina a experincia com o eter-no. 2 no cristianismo ela destinada a todos, embora, talvez no se sejam comparveis suas experincias com o eterno. Nestecontexto,noobstante,osviolentoscontrastesentreominutopopoloeo popolograssoqueresidemnascidades,ativaacontribuiodetodosnasua construo.Ascidadesacumulameseconvertememobra(durao).Sociedades muito opressivas foram muito criadoras e muito ricas em obras5. De acordo com Henri Lefebvre, quando o produto (valor de troca) substitui a produo de obras; nas relaes sociais, a explorao substitui a opresso e a capacidade criadora desaparece6. Comooobjetodoensaioconsistenaabordagemdositiodeumaedificaoreligiosa jesutica,deve-sesublinharqueestaordemreligiosaestempenhadanaprticade umaIgrejasupranacional.Enquanto,oprojetocolonialportugusnoBrasilalargar seu imprio e a f esta possibilidade cristianizadora permitida. Contudo com o tempo este projeto implementado nas folgas do sistema. Enfim, em duzentos anos, sucum-be devido explorao mais sistemtica da colnia por parte dos portugueses.Nafaseaucareira(1570-1650),acapitaniaestinseridanosistemamercantilista. Grandes proprietrios, alguns Cristos-Novos, dirigem seus negcios com mo de fer-ro7. So latifundirios, que nem sempre residem na capitania, que tem interesses vin-culados a grupos mercantis europeus, dentre os quais esto os traficantes de escravos africanos, a fora de trabalho. Para a pequena populao pobre, livre ou cativa, que vive entre o trabalho compulsrio e a igreja, o processo de socializao centrado na religio. Esta tambm a prpria explicao central da presena europia no local8.Comasatividadesreligiosas,deensino,eacatequesenosaldeamentos,osJesutas controlavamocotidianodepartedapopulao.JesutaseFranciscanosincentivama criao de confrarias para combater as murmuraes e a discrdiaentre os morado-res da vila. Estas se destinam aos ndios e aos negros para doutrinar a f crist. No s-culoXVI,hcercadedezconfrariaseordensterceiras;nosculoseguinteelasso

5 LEFEBRVE, H. O Direito Cidade. So Paulo: Centauro, 2001, pp. 12-13. 6 Id. Ibid. p.14 7 VASCONCELLOS, J. G. M. (org.). Vitria, trajetrias de uma cidade. Vitria: FCCA; CDV, 1993, p. 28 8 Id. Ibid. 3 vinte9. Para asseverar o predomnio religioso no imaginrio popular local, observam-se marcas da devoo em todos os lugares, designando igrejas, cais, fortes, largos10. No sistema mercantilista, a explorao colonial concilia violncia e escravido. Este sis-temalatifundiriopressupeavignciadaleiexemplardizAlfredoBosi:lei,trabalho compulsrioeopressosocorrelatossoboescravismocolonial.Aestruturapoltica enfeixaosinteressesdosproprietriosruraissobumaadministraolocalexercida pelas cmaras dos homens bons do povo. Mas o seu raio de poder curto11. Alfredo Bosi adverte que os historiadores tm salientado a estreita margem de ao das cma-ras sob a onipresena das Ordenaes e Leis do Reino de Portugal12. Pode-se verifi-carareferida onipresena nacapitania,sobretudo militar,quandosepesquisaos ma-nuscritos da Capitania (entre 1585-1822)13. NoBrasil-Imprio,acapitaniamantidamargemeconomicamente,assimcomona pocadociclodoouro.Contudo,naRepblica,aselitesdaprovnciafazemesforos demodernizaoinfra-estruturaleeconmica.Avidapblicaseestabelecepaulatina-mentenaurbelaica.Nesteperodo,aarquiteturaaindadesempenhaumpapelrepre-sentacional fundamental, como superfcie de contato dos processos comunicacionais e base dos veculos de comunicao existentes.Estestatusdaarquiteturaseconsomepelapropagaodaesferapblicaatravsde novas mdias, especialmente as tecnologias da informao e da comunicao. A arqui-tetura, que segundo Paul Virilio, se desenvolve com o avano das cidades e a coloniza-o de novas terras; desde que esta conquistase conclui, introverte-se14. Esta senten-a de Virilio antagnica com a de Giulio Carlo Argan, segundo a qual entre arquitetura e cultura no h relao entre de termos distintos, devido ao funcionamento da arquite-tura dentroda entidade social e poltica que a cidade, na qual significativa por ser

9 ABREU, C. F. o desejo da Conquista. In. VASCONCELLOS, J. G. M. (org.). Vitria, trajetrias de uma cidade. Vitria: FCCA; CDV, 1993, pp. 49-51. 10 Id. Ibid. p. 59 11 BOSI, A. Dialtica da Colonizao. So Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 19-20 12 Id. Ibid. p. 20. 13DocumentosmanuscritosavulsosdaantigaCapitaniadoEspritoSantoqueestosobaguardado ArquivoHistricoUltramarinoemLisboa,Portugal.Publicadasobacoordenaoacadmicadoprof. Joo Eurpedes Franklin Leal. Ver site do Arquivo Pblico do Esprito Santo. 14 VIRILIO, P. Espao Crtico. So Paulo: Ed. 34, 1934 4 forma representativa15.Este papel (funcionamento) que foi prerrogativa da arquitetura o que vai ser abordado a seguir. No tempo dos Jesutas Essa terra nossa empresa, e o mais gentio do mundo. Pe. Manuel da Nbrega OedifciodoColgioeIgrejadeSoTiagoconstrudopelosjesutasconstituiolugar como espao fundador, uma obra feita para a perenidade. O primeiro smbolo civili-zador da vila demarca a paisagem, tornando-se a essncia visvel, visio dei.Para Igncio de Loyola, fundador da ordem dos Jesutas, a ascese, o esforo dos cris-tosalcanaremaperfeio,temcomoinstrumentosaimaginaoeossentidosdo corpo, desde que regulados pelo aprendizado e pela disciplina. A salvao seria obtida atravs do esforo e da fora de vontade e no por meio de uma ddiva sobrenatural16.A finalidade do homem era servir a Deus, salvando a sua alma. Os passos para atingir estes fins relacionam-se ao conhecimento do pecado, a evangelizao e o missiona-rismo.Issoestabelece,noquadrodaticadosjesutas,odomniodosvaloressens-veisevoluntrios,reunindoaprticareligiosaeaobrigaodevivernomundo17.A vida reclusa entremeia-se com a vida extra-muros.A evangelizao para os jesutas um imperativo.Ento, partem para o novo mundo, conjugando colonizao religiosa e comercial, interesses religiosos e seculares, servin-do tambm aos reis sua maneira. Os sentidos do corpo so convocados para a prti-ca asctica. De modo que o corpo e o espao circundante relacionam-se:a composio do lugar (...), consistir em representar, com auxlio da imaginao, o lugar material onde se encontra o objeto que quero contemplar, lugar material digo, como templo ou o monte onde se encon-tram Jesus Cristo e Nossa Senhora conforme o mistrio que escolhi para contemplao18 Como o mundo produto do seu desgnio, o espao concebido e construdo subme-tido ao projeto de mundo dos Jesutas, com aspecto cenogrfico e estratgico desde a escolha do stio adequado, a importncia do ptio, o esmero decorativo do interior de sua igrejas, a valorizao dos objetos rituais19.

15 ARGAN, G. C. Histria da Arte como Histria da Cidade. So Paulo: Martins Fontes, 1992. 16 OLIVEIRA, B. S. Espao e Estratgia. Consideraes sobre a arquitetura dos Jesutas no Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio ed. 1988, p 44 17 SEBE, J.C. Os Jesutas. So Paulo: Brasiliense. 1982, p 34 18 Igncio de Loyola Apud. OLIVEIRA. Op. Cit. p. 47 19 OLIVEIRA. op. cit. p. 47-85 A localizao dos ncleos religiosos dos Jesutas decidida cuidadosamente. Um dos objetivos atender o trfego martimo e fluvial para o transporte de mercadorias entre as suas redues: aldeias, casas, colgios e fazendas. Portanto, as edificaes deveri-am situar-se na proximidade de leitos de rios ou de portos martimos; em elevaes que permitissemaomesmotempoadefesaeapercepodesuaposio.Implicavaem situar de longe a Igreja e o colgio como agentes do ncleo urbano20.Colgio e Igreja de So Tiago A localizao da Igreja e Colgio de Vitria segue a risca essas determinaes. Locali-zado num penhasco a sudoeste da ilha de Vitria de frente para baa, estrategicamente posicionado em relao aos rios Marinho e Santa Maria, canais de navegao para as entradas, aldeias e fazendas do sul e oeste da capitania. Figura1-CartatopogrficadabarraedoRiodoEspritoSanto.1767.LevantamentodeJosAntnio Caldas, Engenheiro Militar e lente da Aula Rgia da Bahia. 1- Vila de Vitria; 2- Vila Velha (Esprito San-to). 3- Convento da Penha. Fonte: Arquivo Militar do Exrcito. Rio de Janeiro. Escolhido pelo Pe. Afonso Brs, o stio fsico foi considerado um lugar muito bem dota-do, pois constitui uma ponta de morro com vista para o mar, com espao plano a frente, dominandotrsquartaspartesdaregio.Naparteplanaebaixaposterior(oeste)os

20 Idem. 34-8 6 padres fizeram um pomar (cerca), um porto particular e um fortim. A proximidade com o porto proporcionava o entrosamento com a vida social e um controle estrito da vida ur-bana. Figura 2- Prospecto da Vila Vitria em 1805. L- Cais das Colunas em frente ladeira de Padre Incio e do Colgio e Igreja So Tiago. I Porto dos Padres. Original do Engenheiro Militar Jos Pantaleo. Fon-te: 5 DL Exrcito/ RJ Oterrenoabre-seaparaleste,numapraadenominadaterreiro,umlugarquepro-porciona a livre movimentao do povo do lugar. No se prev a urbanizao ordenada doentorno.Esta no eradaalada das ordensreligiosas,almdisso,terrenosimpor-tantes da vila so repartidos entre diversas congregaes religiosas21, entre estas: fran-ciscanos, carmelitas.O terreiro dos Jesutas d lugar aos acontecimentos e festejos sociais, polticos, religio-sos queexigiamespaoemseuentorno:procisseseencenaes.O terreiro de Vitria, em seguida denominado Largo Afonso Brs, um importante localdeencon-tro dos moradores naquele perodo. Ele possibilita a viso frontal da Igreja anexa ao

21COSTA,L.AArquiteturadosJesutasnoBrasil.RiodeJaneiro.RevistadoPatrimnioHistrico Artstico Nacional. n. 26. 1997. pp.105-169. p. 107 7 colgio,quandoestaconcluda.Aunidadeisoladadoedifciodestaca-senotecido urbano por sua regularidade e sua escala distinta da vizinhana. Oassentamentourbanoconfiguraumtipodeocupaotipicamenteportuguesa, comseusquarteiresemmosaicoirregular.Asruas,estreitaseirregulares,se adaptavam topografia acidentada e tendem a se organizar a partir de ligaes entreospontosmaisimportantes,taiscomo:ocolgioeaMatriz,aCasade Cmara e Cadeia. Figura3.LegendaqueconstanaPlantadaViladeVitriade1764doEngenheiroMilitarJosAntnio Caldas. Praas / 1-DaMatriz/ 2-Da Misericrdia(antigo Largo Afonso Brs), denominado Terreiro pelos Jesutas/ 3Grande /4-Do Mercado /5-Da Igrejinha /6-DoCarmo / 7Velha(anti-goPelourinho)/Igrejas/A-N.S.daVitoria(Matriz)/BMisericrdia/C-S.Tiago(Colgio dosJesutas)/D-S.GonaloGarcia/E-S.AntonioConventodosFranciscanos/F-Ordem 3.deS.Francisco/G-N.S.doCarmo(ConventodoCarmo)/H-Ordem3.deN.S.do Carmo / I-S. Luzia / J-N. S. da Conceio (Igrejinha) /K-N. S. do Rosrio/Edifcios Pbl i-cos/aPalciodaPresidnciaeTesouro/b-CmaraMunicipal/c-Cadeia/Populao/ 6:000 almas. Fonte: Recorte de mapa do Itamaraty/RJ Aincorporaodavidapblicanoespaodosjesutasseiniciavapeloexter ior do Colgio, constituindo parte fundamental da esfera pblica da vila, que se for-jatopologicamenteemrelaesentreapartebaixaealtadacidade.Pode-se 8 presumirqueapraadapartealtaumapraaparavidacivilereligiosaen-quanto a frente ao Porto dos Padres da parte baixa algo prximo a um mercado. Figura4.AntigoTerreiro,depoisLargodaMisericrdia,renomeadoPraaJooClmaco,em 1906. Fonte: ELTON, E. Logradouros Antigos de Vitria, 1988. Desenho de Andr Carl oni. O destaque do edifcio em relao ao seu entorno tambm se d pela busca de regula-ridadegeomtricaeunidadedocorpodoedifcio,noobstanteoprogramadeusos diversos que em sntese comportam: o culto igreja com coro e sacristia; o trabalho oficinasesalasdeaula;aresidnciacomseuscubculoseaenfermaria22.Cadaum destes usos ocupa um quarto de uma tipologia denominada quadra, que um agrega-do das diversas dependncias volta de um ptio central23.Segundo depoimento de Brs Loureno, que esteve em Vitria de 1559 a 1564, o tem-plo e a casa dos meninos inicial foi incendiado em 1562, e a igreja existente era pobre, aqualnemornamentosnemretbulos,nemgaletastinha.Em1573,otemplore-construdo e ampliado, constando que apresenta nessa poca: mais de cem palmos de

22 COSTA. Op. Cit. 23 CARVALHO, J.A. A Arquitetura dos Jesutas no Esprito Santo: O Colgio e as Residncias. Belo Hori-zonte. Barroco. n. 12. pp. 127-40. 1983, p. 128 9 comprido, fora a capela, e quarenta e cinco de largo, passando a ser de pedra e cal ali levados por toda gente principal, que, com suas prprias mos, ajudou a trazer pedras grandes para os alicerces24. No conjunto construdo de Vitria, constam duas torres, o que incomum nas tipologias dos Jesutas no Brasil25. Estas pontuam a paisagem, co-mo ndice da presena dos jesutas.No edifcio construdo, separa-se topologicamente a intimidade do monastrio dos ser-vios pblicos. A residncia, com sua circulao, ocupa o pavimento superior e as ofici-naseaenfermariasituam-senospavimentosinferiores.Comesseprocedimentores-peitam-se aspectos de hierarquia e de posio na tica Jesutica. O inferior se submete ao superior, em virtude de uma certa harmonia e uma certa ordem. S assim po-derficarasseguradaasubordinaoatual,econsequentementetambmaunidadeeoamor,semos quais em nossa sociedade, como em outras corporaes morais, torna-se impossvel uma administrao organizada26. A quadra,abrigando estas dependncias variadas, volta-se para um ptio central,que constituumcentronervosodetrabalhoseatividades27.Oedifciotinhaumaspecto fechado para o exterior, inclusive pela solidez de sua aparncia. Deste modo cumpre o papel de uma fortaleza, resguardando os religiosos e a populao em caso de ataques. Optiosefechaaotrminodastarefascotidianas.TambmaIgrejarigorosamente controladapelospadres,abertaapenasparaoculto28.Estasprticaspermitema clausura para exercer a orao metdica e o controle do espao como todo. A construo do Colgio e da Igreja prolonga-se por trs sculos. Desde a fundao, os alicercessolanadospararesistiraossculos,porquesedestinavamaoperptuo pastoreiodasalmas29.OsJesutasvencemasdificuldadesdoambienteselvagem, conjugando trabalho de penitentes, catecmenos e nativos convertidos30 para construir o edifcio de pedra, cal, leo de baleia, madeira para forros, escadas e pisos. O conjun-

24ELTON.E.VelhosTemplosdeVitria&OutrosTemasCapixabas.Vitria:ConselhoEstadualde Cultura,1987. 25 Id. Ibid. p. 135 26 Igncio de Loyola Apud. OLIVEIRA. Op. Cit. 27 CARVALHO, J. A. Op. Cit. p. 128-29 28 OLIVEIRA. Op. Cit. p. 66 29 DERENZI, L. S. Histria do PalcioAnchieta. Vitria: Secretaria de Educao e Cultura - ES. 1971, p. 22-3 30 Id. Ibid. 10 to do Colgio e Igreja erigido em etapas. Isso permite o uso da ala concluda enquan-to se constri outra ala, no impedindo o desenvolvimento dos trabalhos dos padres. Figura 5. Palcio do Governo, a construo da escadaria posterior a expulso dos jesutas, foto de 1909. Fonte MONTEIRO, J. Mensagem do Governo de Jernimo Monteiro. 1908-12. Em 1584, o edifcio tem sete cubculos. Na cerca observam-se laranjeiras, limeiras, aca-jsecidreiras31.Sobreosmesmosalicerces,nosculoXVIII,asobrasprosseguem, constri-se um novo quarto da quadra, uma nova ala e seu corredor, em 1734, a enfer-maria em 1742, a ala contgua Igreja em 1742.No se pode afirmar qual a poca exata da elevao da Igreja. A maioria dos historia-doresasseveraquetodooconjuntodaquadraestconcludoem1747.JosAntnio Carvalho observa que: Vemos assim, que aps terficado durante mais de120anosapenas com a fachada, o Colgioem 40 anosfoiconcludonasoutrasduasalasquefaltavamparaaquadraeumaterceira,unidaigreja.E, apshaverterminadoaobra,amaisnotvelqueoEspritoSantoteveatprincpiosdestesculo,os Jesutas s aproveitaram dela pouco mais de 12 anos.

31 CARVALHO. Op. Cit. p. 131 11 A unidade das partes funcionais, obtida pela quadra, inclui o tratamento plstico do con-junto, composio de aspecto macio, regular, eminentemente prtico. Este formalismo projeta-se para o mundo sensvel, direcionando as percepes e as aes humanas. O espao,ordenadoeessencialista,configura-senumsuporteparaaesdisciplinadas, vigilantes e laboriosas dos homens. Num paralelo, com a ascese e a obteno da graa da salvao que exige rigor, vontade e trabalho. OsJesutasacreditamquecadacoisanomundodeveseenquadraraolugarquelhe cabe32. A clareza da morfologia do conjunto, o pragmatismo e a implantao so aspec-tosqueconferemcomoprogramadeaonomundodosjesutas.Osatributosde simplicidade, clareza, pureza regularidade, solidez e unidade so imediatamente perce-bidos.Osimbolismorequeridodehierarquiapelasituaoeposionocontextoda paisagem decorre desta percepo imediata. Representar o papel desta arquitetura, estar em lugar de um outro33. Enquanto idia querepresenta,oedifcioconstituiumsigno,umargumento34,umamanifestaodo Visio dei e do Ad Majorem Dei Gloriam pela convencionalidade da sua composio, que se situa na tica geral dos jesutas. Constituem um estilo, caracterizado pelo seu mo-do prprio de proceder desde a construo ao modo de habit-la.Os Jesutas configuram um estilo para se distinguirem da diversidade de temperamen-toseocupaes,constituindoummensemodussocietatis35.Aticalegisladorados Jesutasestdifusanasua organizaoformalarquitetnica,quesetorna uma forma representativa:precisoumarepresentaodomundoemquehajavazio,afimde que o mundo tenha necessidade de Deus36.Na tica dos Jesutas, o vazio relaciona-se misso do homem no uso de sua capaci-dade criativa: eliminar tudo o que anula ou impede o desenvolvimento da harmonia e dasolidariedade37.Aunidadedoconjuntoedificadoproporcionaverarealidadecom

32 OLIVEIRA. Op. Cit. p. 61 33 PEIRCE, C. S. Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural. 2 ed. 1980. p. 61 34 A relao do signo com seu interpretante, se d em 3 aspectos: o signo aparece em suas qualidades; o signo representa a existncia real do objeto e como argumento, o signo representa seu objeto em carter de signo. PEIRCE. C, S. Semitica. So Paulo: Perspectiva, p. 53. 35 OLIVEIRA, B. Op. Cit. p. 57 36 WEIL, S. A Gravidade e a Graa. So Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 12 37FERNANDES,J.Ohomemnopensamentojesutico.InPEREIRA.M.C.S.&CARVALHO.A.F.A forma e a Imagem. Arte e Arquitetura Jesutica no Rio de Janeiro Colonial. pp. 9-14, p. 12 12 umolhardivino(visiodei)atravsdosentidontimodecadacoisacaptandoeaten-dendo-se ao essencial38. Para os jesutas, a ordem e a formalidade constituem-se formas representativas de sua vontade construtiva do mundo.Criar, mover, transformar situaes e ambiente, levan-do-osemdireoaDeus39.Contudo,aintencionalidadeeoespritosomaisimpor-tantes, submetem-se aos problemas de adaptao ou escassez do meio ambiente ori-ginal.Os aspectos imediatamente percebidos da solidez e da regularidade so pertinentes ao programadeaodosjesutas,pormcedem(emparte)nadecoraointernaenos detalhes expansividade do barroco, deixando-se contaminar, em certa medida, pela volpia da imagem40,quando celebravam a maior glria de Deus41A Igrejade So Tiago, no seu longo perodo de construo, exemplifica rupturas com o modeloessen-cialista original.Pode-se dizer que existe um estilo jesutico no Brasil, que manifesta um espritoascti-co e severo42. E o Colgio e a Igreja e de So Tiago, com suas singularidades43, satis-faz a este estilo, conotando sua posio hierrquica social, poltica e religiosa mediante a ordem edificada e a harmonia do conjunto. Aspectos dos quais smbolo, porque nos faz associar a forma significante aos efeitos representativos desejados. No tempo da cidade-capital As cidades latino-americanas renunciaram a si mesmas para identificarem-se com a metrpole europia Roberto Segre Aimagembuclicadaviladebruadasobreomarvigoradacolonizaoaoincioda repblica,quandopassaaservistacomoignbilparaexpressaramodernidadeeo desenvolvimento econmico. A arquitetura colonial, desgastada pelo tempo e pelo des-

38 Id. Ibid. 39 Id. Ibid. p. 13 40 PEREIRA, M. A ao dos Jesutas no Brasil Colonial e o Imaginrio Europeu sobre o Novo Mundo. In PEREIRA. M. C. S. & CARVALHO. A . F. A forma e a Imagem. Arte e Arquitetura Jesutica no Rio de Janeiro Colonial. 1991, pp. 15-34. 41 OLIVEIRA. Op. Cit. p. 56 42 COSTA, L. Op. Cit. 43 Essas singularidades so apontadas no texto de Jos Antnio de Carvalho. Op Cit. 13 cuido,representavao opostodaordeme progresso,levandoao desejo da mudana da fisionomia da cidade.Na Primeira Repblica, nos governos de Muniz Freire e de Jernimo Monteiro, a cidade de Vitria transformada de acordo com as formas representativas de cidade capital do sculoXIX.Cidadecapitalsignificalugarqueacumulacapacidadeadministrativa,re-cursos, bens e patrimnio, onde os capitais buscam tirar rentabilidade da concentrao urbana44. Na Republica, o edifcio dos Jesutas se converte em um cenrio de interes-ses privados imbricados na instncia do Estado. Jernimo Monteiro (1908-12) afirma a viso local de cidade capital. A cidade moder-nizada,masdescaracterizada,beneficiando-sedaprosperidadedaproduodocaf, queinvestidanocentrofundacional,buscandoumavisualidadedeestiloseuropeus de arquitetura. A vilacolonial portuguesa tpica,que ignora,at o incio do sculo, os princpios da arte de construir (...) e de viver, enfim, busca o formalismo geomtrico45.A arquitetura nesse perodo produzida como opo de estilo, nos moldes do Histori-cismoEuropeu.Essesestilosassimilavamamimesecomunicaodasformasvis-veis46, se confrontam arquitetura da cidade colonial, considerada sem ordem preesta-belecida. A ordem s chega com a Repblica47. O problema do estilo, nesse perodo, no diz respeito somente a uma aparncia retri-ca,envolvetransformaesestruturaiseespaciais.Procurava-seresolveroproblema daqualidadedaarquitetura,medianteaimportaodemateriais,tcnicaseprofissio-nais. O prottipo histrico europeu que substitui a fisionomia colonial trazido concomi-tantemente com migrantes europeus para o Estado do Esprito Santo. Aculturadominantenesseperodotorna-seexigentedeestiloafimdeobterstatus. Busca-se a participao numa linguagem universal, obliterando o passado, descaracte-rizandoseussignos.Modificam-seaforma,aespacialidadeeosnomesdoslugares. Quando se substitui o nome e o vocabulrio a coisa ou o referente tendem a despare-cer do quadro mental.

44 SOL-MORALES, I. Representaciones: De la Cidade-capital a la Metropoli. In ESPUCHE, A G. Ciuda-des del globo al Satlite. Madri: Electa,1994 45 DERENZI, S. Biografia de uma Ilha. Rio de Janeiro: Pongetti, 1965 46 ARGAN, G. C. Clssico e Anti Clssico. So Paulo: Martins Fontes, 1999 47 DERENZI. Op. Cit. 14 Gilles Deleuze diz: uma sociedade, um campo social no se contradiz, mas ele foge, e isto vem primeiro; depois que se estrategiza48. Concordando com Deleuze a nova op-orepresentativadaarquiteturaestabeleceosistemapolticorepublicanosobreos escombrosdacolnia.OEstado,oensinolaicoeaimprensasubstituemosagrado como formador do imaginrio local. Constitui-se um novo sistema produtivo baseado no trabalholivre,masagrcola,cujoexcedente sustentaasreformas urbanasdoperodo, ensejando a passagem de um tipo de cidade para outro, relacionada a novos circuitos comerciais e territoriais Oestilo(Historicismo)comoumvaloratribudoafirmaalinguageminternacional,que vai estabelecer a representao da cidade-capital, de modernizao do lugar e a cone-xo internacional da cultura. Considera-se,combaseemLucianoPatetta,oHistoricismoeoEcletismocomoum conjuntodeexperinciasculturais,quepossuemcontinuidadehistrica49eideolgica. Esses estilos so resultado de um ato de escolha do projetista (um ato crtico, subjeti-vo). A escolha envolve uma postura moral, que permite aos projetistas liberdade de in-terpretao e de caracterizao. Nesse perodo, estabelece-se no campo da arquitetura que h uma dialtica constante entre as razes da arquitetura e razes ticas, sociais e polticas.OquadroculturaldoHistoricismonaEuropamarcadopeloestabelecimentodabur-guesia,quesolicitaconforto,higiene,funcionalidadeenovidades,pormrebaixaa produo artstica e arquitetnica ao nvel da moda e do gosto50. Para a clientela bur-guesa,essesestilospodemserconsideradosimagensdedesejos,nosquaisse busca sublimar a imperfeio no produto social51. O arquiteto adepto do Historicismo contacomumsistemaderegrasepreceitosdecomposioededecoro,quedispe

48 A estratgia s poder vir em seguida das linhas de fuga, s suas conjugaes, s suas orientaes, suasconvergnciasedivergncias.Deleuzeapontatambmnesteponto,odesejoestprecisamente nas linhas de fuga, na conjugao e na dissociao de fluxo. O desejo se confunde com elas. DELEUZE, Gilles. Dsir et plaisir. Magazine Littraire. Paris, n. 325, oct, 1994, pp. 57-65. 49 PATETTA, L. Consideraes sobre o Ecletismo na Europa. In. FABRIS, A. Ecletismo na Arquitetura Brasileira. So Paulo: Studio Nobel: EDUSP. 1987, pp. 10-27 p. 10 50 PATETTA. Op. Cit.51 BENJAMIN, W. Paris Capital do Sculo XIX. So Paulo. Espao & Debates. n. 11. 1984. pp. 5-1315 dos mais variados elementos, advindos de diversos perodos histricos e regies geo-grficas52.O Palcio Anchieta Em 1782, o patrimnio dos Jesutas leiloado e o edifcio do Colgio de Vitria passa a abrigarasededacapitania.Almdisso,abrigaaresidnciadopresidente,oliceu,a tesouraria,a administrao doscorreios,armaznsde materialblico,a bibliotecap-blica,entreoutros53.Osusos heterogneosenvolvemcrianas,soldados, funcionrios pblicos e autoridades. No h gua encanada nem esgoto no edifcio54.Jernimo Monteiro, ao assumir o cargo de presidente do estado em 1908, observa que o estado do edifcio no oferece condies para servir nem como residncia nem como instalaoinstitucionalmoderna.Visandoconforto,higieneemelhorianoespao,o presidentecontrataoengenheirofrancsJustinNorbertparaelaboraroprojeto.Jer-nimo Monteiro explica-se: (...) em face do progresso material que (...) cada vez mais se acentua na Vitria pela transformao que vai se operando no aspecto da cidade, que renasce e se embeleza nas novas construes, que vo sur-gindo, no podia continuar o Palcio do Governo com sua vetusta feio conventual e em contraste com as linhas de arquitetura dos edifcios novos e em fragrante infrao das posturas municipais55. O projeto inclui a transformao do espao do colgio e da igreja, alm da escadaria de acesso cidade alta, dando cidade uma nova perspectiva, estranha ao colonialismo da colina, onde nasceu verdadeiramente a cidade56. Justin Norbert utiliza o estilo Luiz XVI no Palcio. Serafim Derenzi diz que Norbert: "pro-jetouaobradentrodeseuespritoracial(...)noestilodosprottiposdeLuizXVI. tranqilamente sereno e monumental.A reforma, iniciada em 1909, mantm a estrutura externa das paredes do edifcio ante-rior,suaprojeonoterreno.Telhado,pisos,acessos,dependnciasefachadasso modificados, so inseridas instalaes hidrulicas, sanitrias e eltricas. O palcio com a incorporao da igreja ganha um tero a mais de espao onde se alojam os servios da burocracia.

52 PATETTA. Op. Cit. p. 14 53 Cesar Marques, 1778 apud DERENZI. Histria do Palcio Anchieta. p. 37 54 DERENZI. Ibid. 55 MONTEIRO. J.Mensagem do Governo de Jernimo Monteiro. 1908-12. p. 132 56 DERENZI. Histria do Palcio Anchieta. p. 46 16 As instalaes so adequadas s exigncias do servio pblico do perodo, organizam-se espaos protocolares para o presidente e o novo regime poltico. Cria-se uma Gale-ria dos ex-presidentes e representantes da Repblica. Sales denominados de Rosa e de Azul so destinados s recepes oficiais e s audincias com autoridades, segun-do as categorias sociais que pertenciam. A residncia do governador recebe um trata-mento compatvel com os requisitos de intimidade e conforto. Areformaurbanade1909reafirmaostiourbanocomorefernciainstitucionalemo-numental57. Com esta reforma, a relao entre a parte baixa onde se situa o comrcio e a parte alta institucional ganha aspectos socializantes modernos. A vida pblica da par-te baixa (onde se configura o Porto de Vitria) se formava na convivncia entre conhe-cidos: lojistas e moradores; e estranhos: viajantes, marinheiros, imigrantes. A diversida-de e a complexidade social ampliam-se, o lugar de encontro para negcios so as lojas e os bares nas proximidades da escadaria do Palcio, e em outras praas como as da Rua da Alfndega, onde se discutia poltica.OentornodoPalciomantm-seocentrosocialdacidade,localdefestividadescvi-cas.EventosqueacontecemnoLargodoColgio,amenizadopelopaisagismopintu-resco, desde o fim do Sculo XIX: Quem quiser se divertir por hora e meia na Praa do Colgio, v, pois temos ceia (...) que pndega58. As reformas no entorno do Palcio favorecemospasseiosdescomprometidosdasfamliasedosjovens.Atividadesque assimilam novos hbitos de socialidade e de decoro no espao pblico.Otratamentodaescadariaprovumanovaperspectivaparaabaa,estaprojetada comlancescurvos,patamaresintermedirios,ornadacomfonteseesttuasemmr-morerepresentando alegorias sobre as estaes do ano, figuras mitolgicas, cascatas econchas. Anovaescadaria ensejao alargamentodaRua 1de Maro,quedesde o sculo XIX, possui as mais importantes casas comerciais de Vitria. Esse espao o ca-racterstico como mercado adquire higiene e decoro. O Cais do Imperador, antigo Cais das Colunas, tambm renomeado Marechal Hermes.

57 Id. Ibid. p. 46-7 58 SIQUEIRA, F. A. Memrias do Passado, a Vitria atravs de meio sculo. ACHIAM, F. (edio e notas). Vitria: Florecultura, 1999. (original 1885). p. 46. A ceia era oferecida a convidados pelo presiden-te da provncia, aps os atos cvicos e religiosos. 17 Enquanto a fachada para Praa Joo Clmaco se torna entrada de trabalho, a fachada de frente para escadaria monumentalizada. Como uma fachada principal simula uma inexistentesimetria,divididaemtrsfaixashorizontais,coroadasporumaplatibanda rematadaporumfrontopontuadoporumaguia.Ascornijasmarcamaseparao entreospisoselajes.Anovaroupagemdafachadaadquireumamodulaofalsa. Pois,abaseslida,manufaturadapaulatinamentepelosjesutas,impedeaaplicao do procedimento de simetria e de uma modulao geomtrica precisa. Verifica-se na nova composio, o procedimento da sobreposio de ordens para arti-cular os vrios pisos da fachada, atribuindo do piso inferior ao superior uma ordem de crescentevalorsimblico.AsoluodafachadadeJustinNorbert,sobreumenvasa-mento que simula alvenaria com junta escavada, sobrepe a ordem drica, e a ordem corntia. Mantm o preceito vitruviano da aparncia de funo sustentadora da base e pilastras, assinaladas pela ordem mais robusta para mais esbelta59. Figura 6. Escadaria Brbara Lindemberg e Palcio Anchieta, nos anos 40. Fonte Biblioteca Central da Ufes

59Srlio apud. FORSSMAN, E.Drico,JnicoeCorntionaArquitetura dosSculosXVI-XVIII.Lis-boa: Presena. 1990. p. 31 18

OestiloLuisXVI,comooBarroco,buscaumanaturalizaoartificialdaarquitetura, com motivos vegetais e zoomrficos, visando adquirir festividade ou cerimnia. O corn-tioeosseusmotivosvegetaispredominam na fisionomiadoedifciodoPalcio.Aor-demconsideradacomoamaiselegante,leve,formosaerica,republicanaparaos Romanos, mas aristocrtica para os franceses60. As figuras como guias, deuses mito-lgicos, motivos florais, elementos arquitetnicos acrescidos, designadas na Academia comodecorum(disposioadequadaentrefiguraeordem)61fazempartederequeri-mentos programticos que visam a mensagem que edifcio deve manifestar. A suges-to, o adorno, a metfora e a analogia so as categorias dentro das quais a potica da arquiteturaseconvertenumpotenteinstrumentodepersuasoe,finalmente,emcon-trole social62.AescolhadoestiloLuisXVIconvencionalparargosexecutivosdogoverno,quer expressaressecartermonumentaleinstitucional.Contudo,adesignaodoestilo Luis XVI, no deixa de ser uma incoerncia com a imagem republicana. No palcio travestido de Luis XVI, desaparecem as qualidades de severidade e simpli-cidadedoedifciojesutico.Porm,osnovoselementosdecorativossoaplicadosco-mo uma clara opo de lxico estilstico. Isso confere autonomia (eles significam por si mesmos). O simbolismo desses elementos inseparvel do seu sistema. APraaJooClmacojhaviasidoampliadacomademoliodasconstruesvizi-nhas antes de 1909. Nesta reforma, o edifcio passa a dominar o espao urbano rees-truturado ao seu redor. A inverso da entrada para frente da baa acentua a visibilidade paratodacidadeeparaoporto,criandoumwaterfront.Aentradafrontaladquireum sentido topolgico central para toda regio (caput its).

60 FORSSMAN. Op. Cit. p. 82-3 61 id.ibid. 181 62 TSONIS, A., LEFAIVRE & L. BILODEAU, D. El Classicismo en Arquitectura. La Potica del Orden. Madri: Hermann Blume,1984 19 Figura7.VistaareadositiodoPalcioAnchietacercade1960.Asconstruesdoladoesquerdoda escadaria foram demolidas nos anos 1970. Foto Paulo Bonino. Arquivo: SEDEC/PMV Figura 8. Palcio do Governo nos anos 1940, Praa Joo Clmaco vista da Rua Duque de Caxias. Foto Fbio Tancredi 20 O valor que o edifcio e seu entorno adquirem na cidade, sobretudo,vem de uma nova graduao topolgica e das qualidades formais do espao. O volume do edifcio indivi-dualiza-seecrescecomadesobstruodavista,aremoodaladeirafrontaledes-baste da Rua Duque de Caxias. Ou seja, a fruio do stio pelo movimento dos transe-unteseasnovasperspectivasdacidadealtaconsolidamoedifciocomoumobjeto destacado na paisagem, a escadaria funciona como pedestal para ele, que atuacomo atrator da ateno e atribui valor para o edifcio modificado. O novo espao ornamenta-do tende ao apelo visual e ao impulso ornamental. A nova estrutura urbana resultante mostra que essa transformao no foi mera maquiagem. As reformas da capital nos anos 1910 e 1920 (Governo de Florentino Avidos) expres-sam anseio de participar do mundo, aps anos de isolamento econmico e polticono perodo colonial e imperial. As razes dessas escolhas podem ser questionadas, mas o espao,comseusnovosaparatos,poralgumtempo,torna-semetforadagraa,da beleza e do moderno. O procedimento de superposio do ecletismo sobre a linguagem jesutica enuncia que se busca um recomeo sobre novas bases, para estabelecer um novoestadodascoisas.NoPalcioAnchieta,ohistoricismo,criticadopelavanguarda moderna,setornasmbolodanovaordemrepublicanaedepompa,representa oque h de mais moderno para a localidade na poca.Na destruio do espao do passado colonial mantm-se alguns vestgios: o nome do PalcioAnchieta,seutmulo(?).Afundaodosjesutasdescaracterizada,mas mantida. Afirma-se o stio escolhido pelos padres, seu papel na esfera pblica, sua im-portncia no contexto urbano.Espao pblico e esfera pblica Osprojetosdessasgeraesconsolidamoespaofundadordacidade,sobrepondo uma cultura sobre outra. Duas culturas que no so apegadas em manter o preexisten-te, mas esto preocupados em construir ou renovar e em deixar sua marca no espao.Avontadedosjesutasdeviveremnomundomanifestava-senaesferapblica,osci-dados tinham acesso dirio ao interior de sua edificao - o ptio e suas dependncias erampracuidar,educareproteger.Oterreiroeoporto,espaospblicos,erampara celebrar, viver, trabalhar, circular, efetuar trocas.21 O espao do novo Palcio (1909-11) delimita a vida pblica ao exterior, os espaos pa-ra receber o pblico ganham protocolos de cerimnia (Salo Rosa e Azul), o executivo, a burocracia e a residncia separam-se em departamentos isolados entre si.A exteriorizao do estilo (Historicista) valoriza o meio urbano e celebra publicamente a reciprocaexposiodaspessoasedomonumento,assimcomo,asnovasconexes entre os homens e a cidade (com esperana de menos subservincia do povo).Embora o Palcio esteja incorporado vida poltica e cultural nos anos 2000, no ha reciprocidadeentrepblicoeedifciorelatadanostemposdosJesutasedaPrimeira Repblica. A situao encontra-se bastante alterada, o simbolismo e a importncia que o centro e seus principais edifcios encarnam na Primeira Repblica perde-se numa es-pcie de descompromisso com a vida social ampla, que se manifesta na alienao es-pacialdosnovosespaoscriados(shoppings,clubesexclusivos,condomniosfecha-dos, espaos de controle e vigilncia), levando a experincia da complexidade se retirar do meio ambiente coletivo, pblico. O termo lugar como algo ligado a um acontecimento, a um mito e a uma histria63 tem cedido lugar aos espaos sem nome e sem marca. Assinala-se um processo de esvazi-amento crescente da forma significante no contexto urbano: praas tornam-se espaos verdes e ruas tornam-se meras vias. A arquitetura tambm se desvaloriza como forma representativa,comaperdadaqualidadepolissensorialepolissmicaqueseverifica em muitos espaos contemporneos, sobretudo obras pblicas ou comerciais.

63AUG,M.No-Lugares.IntroduoaumaantropologiadaSupermodernidade.Campinas,SP: Papirus, 1994.