A ANS em perspectiva histórica: A trajetória da regulação...
Click here to load reader
Transcript of A ANS em perspectiva histórica: A trajetória da regulação...
1
A ANS em perspectiva histórica: A trajetória da regulação da saúde suplementar
no Brasil - alguns apontamentos
George E. M. Kornis (professor adjunto IMS/UERJ, [email protected]) e
Paulo H. Rodrigues (professor visitante IMS/UERJ, [email protected] )
1. Apresentação
A proximidade do término da atual gestão da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)
se dá num quadro inteiramente diferente daquele em que se deu a gênese da regulação, pois
ocorreu, em primeiro lugar, uma mudança do quadro político do país, com a posse de um
novo Governo Federal, liderado pelo Partido dos Trabalhadores, principal força de oposição
ao governo anterior, que ao longo dos seus 8 anos de mandato criou as condições para a
emergência e desenvolvimento de um novo modelo de regulação da economia, inclusive do
subsetor de saúde suplementar. O novo governo se propõe a cumprir uma ampla agenda de
mudanças, o que inclui também a transformação no papel das agências de regulação, o que
certamente traz a perspectiva de um impacto direto sobre a ANS.
O ambiente atual em que a Agência opera é e será objeto no curto e médio prazos vem de
significativas turbulências, que podem e devem ser minimizadas por uma condução habilidosa
tanto no plano estratégico como tático pela Direção da ANS a ser empossada em breve.
As turbulências não se limitam, contudo, aos efeitos das mudanças no Poder Executivo
Federal e do comando de suas instituições. Há turbulências geradas por decisões do Poder
Judiciário, como a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido da não
extensão dos direitos dos consumidores assegurados pela legislação atual aos antigos
contratos. Outras pelo Poder Legislativo, como a recente aprovação do Estatuto do Idoso, que
incluiu dispositivo que proíbe o reajuste de mensalidades de planos e seguros de saúde para os
consumidores acima dos 60 anos, além da instalação em 10 de junho do corrente da CPI dos
‘Planos de Saúde’, que avoca para si a responsabilidade de "investigar denúncias de
irregularidades na prestação de serviços por empresas e instituições privadas de planos de
saúde".
Há turbulências, também, oriundas da sociedade e do mercado. A insatisfação dos
consumidores faz com que os planos e seguros ocupem desde 2001 a primeira posição entre
as denúncias levadas ao Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) e, em segundo lugar, nos
PROCONs, onde só perdem para as empresas de telefonia. O cenário é, portanto, de grande
insatisfação dos consumidores com o conjunto de empresas que atuam no mercado,
operadoras e prestadores de serviço, assim como, por extensão com a própria ANS, órgão
encarregado de regular essas relações contratuais.
Existe forte insatisfação, também, nas relações entre operadoras de planos e seguros de saúde
e prestadores de serviços de assistência à saúde. Está ocorrendo neste momento um grande
movimento nacional articulado pelos conselhos nacional e regionais de medicina, ao qual
aderiram diversas sociedades de especialidades médicas que luta pelo reajuste dos valores
pagos pelas operadoras para os procedimentos realizados pelos prestadores de serviço, que se
encontram congelados há diversos anos.
O presente texto visa subsidiar a construção de um olhar estratégico e tático para a condução
da ANS ao longo do futuro próximo no qual o marco regulatório deverá se consolidar em um
2
ambiente de mudanças e turbulências. O texto está estruturado numa perspectiva histórica no
qual é contextualizada a experiência brasileira recente em regulação, em particular na área de
saúde, para que a trajetória da ANS possa ser apreciada em bases menos circunstanciais do
que usualmente vem sendo apresentada. O texto é composto por 5 seções, dispostas em ordem
decrescente de generalidade, as quais tratam: das transformações políticas do Brasil nos anos
90; da experiência regulatória recente do país; da experiência regulatória em saúde; da
trajetória da ANS; e, finalmente, das perspectivas que se apresentam para esta agência
regulatória específica.
2. Transformações políticas dos anos 90: o Brasil na era da globalização
Nos anos 70 o Brasil transitou de um regime militar em escalada crescente de autoritarismo -
lastreado na expansão econômica do chamado “milagre brasileiro” que teve lugar entre 1968 /
1973- para um processo de abertura política do regime militar na perspectiva de uma lenta ,
gradual e segura restauração da ordem democrática. Nessa passagem o Brasil experimenta ao
longo do governo Geisel (1974/1978) o fracasso do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II
PND) e, com ele, o verdadeiro canto do cisne do projeto nacional-desenvolvimentista para o
país. Assim, os anos 70 no Brasil se encerram com o governo Figueiredo (1979/1984)
enfrentando um duplo desafio: concluir a transição democrática e administrar a reversão do
binômio intenso crescimento econômico/inflação moderada que se afirmou na seqüência do
fracasso do II PND.
Os anos 80 no Brasil conheceram tanto uma longa e difícil transição democrática que
conduziu à eleição indireta para a Presidência da República que acabou por gerar o governo
Sarney (1985/1989) quanto uma tortuosa seqüência de políticas de estabilização de preços -
iniciada no “Plano Cruzado”( 1986)e terminada no “Plano Real”(1994) – que esteve sempre
orientada para produzir uma reversão da espiral hiperinflacionária que se instaurara no país já
no início dessa década. No plano político a década de 80 no Brasil conheceu ainda uma
Assembléia Nacional Constituinte que elaborou, ao longo de intenso debate político, uma
Constituição que promulgada em 1988 passou à História como a Constituição Cidadã dada a
primazia por ela conferida ao estatuto da cidadania no quadro da emergente ordem
democrática do país. E mais: no curso dessa década o Brasil levou a termo um processo
bastante consistente de descentralização do poder político e social o que amplifica o hiato
entre os avanços políticos e os econômicos do país. No plano econômico essa década colheu,
certamente, menos êxitos. O Brasil nos 80 não logrou retomar taxas significativas de
crescimento econômico e, sobretudo, não conseguiu ao longo da configuração dos diferentes
padrões monetários adotados produzir um horizonte de estabilidade apto a superar o quadro
de uma renitente hiperinflação.
Nessa perspectiva a década de 90 no Brasil se inicia sob um amplo espectro de desafios que
vão desde a consolidação da emergente ordem democrática até retomada do desenvolvimento
econômico num ambiente de estabilidade monetária. Esses múltiplos desafios deveriam, em
princípio, passar pelo enfrentamento de questões tais como a instauração dos direitos de
cidadania, o desenvolvimento de múltiplos direitos específicos, a produção de uma nova base
institucional – o que inscreve na agenda política do país um amplo conjunto de reformas
institucionais- e o redesenho do pacto federativo que sustenta a República. O extenso rol de
questões a serem enfrentadas inclui ainda a superação da vulnerabilidade externa do país, a
renegociação da dívida externa, a administração da dívida interna, a estabilidade monetária, o
saneamento das finanças públicas, a retomada do crescimento econômico, a constituição de
um ciclo virtuoso de investimento e emprego e, finalmente, a redistribuição da renda.
3
O rol dos desafios a serem enfrentados pelo Brasil no curso dos anos 90 ultrapassavam, de
modo claro e inequívoco, as fronteiras nacionais dado que as transformações políticas e
econômicas que vinham se processando no mundo já desde o final dos anos 70 reclamavam
uma especial atenção ao planetário processo de liberalização presente nas esferas econômica
e política. A globalização enquanto um processo de desregulação de corte liberal acaba por se
fazer presente na cena brasileira ao final da década de 80, ou seja, o Brasil adotou tardiamente
(mesmo em relação aos demais países latino-americanos à óbvia exceção de Cuba) um
conjunto de reformas liberais pró-mercado que se incorporaram assim à agenda dos anos 90
do país.
As transformações políticas do Brasil nos anos 90 tiveram na eleição direta para Presidência
da República o seu movimento primeiro. O governo Collor (1990/1992) levou a termo o
abandono do paradigma nacional-desenvolvimentista e incorporou o auto denominado
“social-liberalismo”. Esse último buscava, de um lado, descentralizar a política social de
corte assistencialista com base em um emergente federalismo “cooperativo” que buscava
articular as diferentes esferas de governo e, de outro, recompor radicalmente as relações entre
Estado e economia no país.
O “Plano Collor” (1991) – denominação sob a qual ficou conhecido o “Plano Brasil Novo” –
com base num conjunto de 34 medidas provisórias procurou sem êxito substantivo
compatibilizar estabilização monetária com um conjunto de reformas dentre as quais a
patrimonial (privatização de empresas estatais e venda de imóveis da União) a administrativa
(extinção de orgãos federais, alterações nas normas operacionais do serviço público e a
instauração de um Plano Nacional de Desestatização). No entanto, em menos de dois anos de
mandato o governo Collor logrou alterar ,de modo decisivo, padrões consolidados de
intervenção do Estado na economia brasileira. Noutras palavras, Collor logrou produzir um
esforço de adaptação do país ao processo de globalização econômica e de hegemonia de
políticas liberalizantes nas quais a redução da presença do Estado e a abertura comercial
ocupam um lugar de destaque.
Essas mudanças centradas na liberação comercial – centrada na simultaneidade dos intentos
de estabilização e de ampliação da competitividade da indústria brasileira- bem como na
privatização de empresas do setor público aportaram importantes rupturas face ao legado pelo
nacional-desenvolvimentista. Assim, não surpreende que o governo Itamar Franco
(1992/1994)- que sucede Collor após seu impeachment – tenha dado seqüência à privatização
do setor público perseguindo os objetivos anteriormente fixados de reduzir o déficit público,
aumentar a eficiência dos serviços públicos, promover a democratização do capital e a
modernização competitiva da economia brasileira.
O que surpreendeu, de fato, foi o êxito- após 10 frustrados planos estabilização levados a
termo entre 1979 e 1991 – do “Plano Real” (1994) que, finalmente, logrou romper com a
espiral hiperinflacionária. O êxito desse plano de durabilidade bastante restrita- a crise
cambial de 1999 foi um marco indiscutível de sua falência – foi suficiente para conduzir ao
poder o ministro da economia do governo Itamar Franco após uma vitória eleitoral na segunda
eleição direta à Presidência da República. Nessa eleição, que como a anterior teve um caráter
plesbicitário, o candidato Luís Inácio Lula da Silva sofre sua segunda derrota em segundo
turno nas eleições diretas à Presidência da República.
O primeiro governo Fernando Henrique Cardoso (1995/1998), apoiado em ampla aliança
eleitoral, deu seqüência às reformas emergenciais nas áreas fiscal e monetária do “Plano
Real” iniciando um conjunto de reformas estruturais centradas no aprofundamento da
abertura comercial, da desregulamentação e da privatização. Nessa perspectiva, as várias
emendas constitucionais promulgadas em 1995 procederam a uma flexibilização do
4
monopólio estatal (petróleo, telecomunicações) que somadas ao compromisso de dar curso às
reformas previdenciária, tributária e administrativa afirmaram de pronto o intento de operar o
desmonte do projeto desenvolvimentista.
Nesse governo – apoiado numa aliança política entre o PSDB, o PFL e o PTB – a hegemonia
do Executivo sobre o Legislativo traduziu-se tanto em uma enxurrada de Medidas Provisórias
quanto na retirada da política monetária, orçamentária e cambial da arena da negociação
política. Assim, nesse governo, a expansão das reformas pró–mercado se deu num ambiente
no qual a ênfase da política econômica era o controle da inflação (centrado na elevação da
taxa de juros) e a administração das restrições externas da economia brasileira o que
evidentemente relegava a um plano secundário questões tais como crescimento econômico,
distribuição de renda e expansão do nível de emprego.
O êxito na condução do programa de estabilização econômica associado ao estrito
atendimento das exigências apresentadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo
Banco Mundial ao governo brasileiro contribuíram de forma decisiva - a despeito da
fragilidade revelada pela política social desse governo no enfrentamento dos elevados níveis
da pobreza e das desigualdades sociais do país - para a reeleição em 1998 de F.H. Cardoso
para a Presidência da República.
O segundo governo F. H. Cardoso (1999/2002), apoiado na mesma aliança eleitoral que
derrota por duas vezes sucessivas o candidato Luís Inácio Lula da Silva da coligação
partidária liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), vai dar continuidade à abertura
comercial e financeira, à estratégia de controle inflacionário com base na elevação da taxa de
juros, aos ajustes fiscais centrados no controle do gasto público e, em particular, social, na
retração dos níveis de produção e emprego e, sobretudo, nas reformas institucionais que
operariam a liquidação do legado nacional-desenvolvimentista do país.
No segundo governo Cardoso ocorreu um aprofundamento do processo de reforma do Estado
que elegera as reformas administrativa, patrimonial (com clara ênfase nos processos de
privatização e internacionalização dos setores outrora protegidos pelo monopólio estatal),
tributária( com clara ênfase nos processos de descentralização), previdenciária ( com clara
ênfase na reestruração do sistema de aposentadorias e pensões do funcionalismo público) e ,
finalmente, a reforma política como elemento focal de sua ação de governo.
A consolidação do quadro recessivo no qual as tensões inflacionárias se faziam
crescentemente ativas contribuíram para ampliar as resistências políticas ao desenvolvimento
das reformas institucionais- processo no interior do qual se desenvolvera a experiência
brasileira no campo das agências orientadas para prover a regulação de setores produtivos do
país- o que acabou por conduzir à derrota eleitoral em 2002 o candidato do governo à
Presidência da República. Nessa eleição, finanlmente, a aliança política liderada pelo PT
logrou conduzir à Presidência o candidato Luís Inácio Lula da Silva, que iniciou seu mandato
em 1 de janeiro de 2003. No governo que em princípio se estenderá até 2006, em função do
seu programa de governo e dos posicionamentos políticos iniciais de suas principais
lideranças, deverá ocorrer um amplo processo de reexame da recente experiência das agências
regulatórias do país.
3. A recente experiência regulatória brasileira
As agências reguladoras constituem uma novidade institucional no Brasil, embora a função
reguladora já fosse exercida anteriormente por diversos órgãos como o Banco Central do
Brasil, o Instituto Nacional de Metrologia (INMETRO), o Instituto Nacional de Meio
Ambiente (IBAMA), a Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O atual modelo de
5
regulação através de agências tem inspiração nas agencies do direito administrativo norte-
americano e foi idealizado pelo Plano Diretor da Reforma do Estado do extinto Ministério de
Administração e Reforma do Estado (MARE). O Brasil não foi o único país a adotar
recentemente este modelo, diversos países europeus e latino-americanos seguiram o mesmo
caminho nos anos 1980 e 90.
As agências reguladoras são constituídas sob a forma de autarquias sob regime especial,
gozando de autonomia administrativa e financeira, portanto. Embora vinculadas a Ministérios
específicos, de acordo com o setor de atividade ao qual estão vinculadas as agências não são
subordinadas aos Ministérios. A idéia da autonomia para o desempenho de suas funções está
no próprio cerne da escolha do modelo autárquico, pois um dos principais motivos alegados
para a criação das agências era a de que pudessem vir a desenvolver suas atividades com
independência política e administrativa. É por essa razão que o mandato dos seus dirigentes,
por exemplo, não coincide com os períodos eleitorais e que contam com receitas próprias.
Agências reguladoras criadas no governo Fernando Henrique Cardoso
e suas respectivas leis de criação e vínculo administrativo
Período Agência Lei de criação Vínculo
administrativo
1.º governo
FHC
ANEEL – Agência Nacional de
Energia Elétrica
Lei n.º 9.427, de 26 de
dezembro de 1996
Ministério das
Minas e Energia
ANATEL – Agência Nacional
de Telecomunicações
Lei n.º 9.472, de 16 de julho de
1997
Ministério das
Comunicações
ANP – Agência Nacional de
Petróleo
Lei n.º 9.478, de 6 de agosto de
1997
Ministério das
Minas e Energia
2.º governo
FHC
ANVISA – Agência Nacional
de Vigilância Sanitária
Lei n.º 9.782, de 26 de janeiro
de 1999
Ministério da
Saúde
ANS – Agência Nacional de
Saúde Suplementar
Lei n.º 9.961, de 28 de janeiro
de 2000
Ministério da
Saúde
ANA – Agência Nacional de
Águas
Lei n.º 9.984, 17 de julho de
2000
Ministério do
Meio Ambiente
ANTT – Agência Nacional de
Transportes Terrestres
Lei n.º 10.233, de 5 de junho de
2001
Ministério dos
Transportes
ANTAQ – Agência Nacional de
Transportes Aquaviários
Lei n.º 10.233, de 5 de junho de
2001
Ministério dos
Transportes
Durante os dois últimos governos federais, foram criadas 8 agências, sendo três, entre 1995 e
1998 (ANEEL, ANATEL E ANP) e 5 entre 1999 e 2002 (ANVISA, ANS, ANA, ANTT,
ANTAQ). Está na pauta do Congresso a criação da ANAC (aviação civil), o que depende,
entretanto, da vontade do atual governo. O quadro acima apresenta as agências, as leis que as
criaram e seus vínculos administrativos.
A criação das primeiras agências esteve claramente relacionada com a chamada reforma
patrimonial, ou com as políticas de privatização ou de quebra de monopólios exercidos por
empresas estatais. Durante o segundo governo, a criação das agências esteve relacionada
menos com a política de privatização e mais com o interesse em estabelecer marco regulatório
para diferentes setores de atividade econômica, ou para o meio ambiente, como é o caso da
ANA. Embora o segundo governo Cardoso tenha sido prolífico na criação de agências
regulatórias, as três agências pioneiras criadas no primeiro governo corresponderam a setores
econômicos de maior importância estratégica na economia do país.
6
A situação atual das agências de regulação criadas pelo governo anterior vem sendo motivo
de ampla polêmica no momento atual e de recente projeto de lei, originado do executivo no
sentido de limitar a autonomia das mesmas. O atual governo deixou claro logo de início que
não estava de acordo com a grande autonomia de atuação conferida pelo governo anterior. O
próprio Presidente da República afirmou mais de uma vez que as agências "terceirizaram o
poder político no Brasil" e que o governo não pode ser "o último a saber" dos aumentos de
derivados do petróleo e das tarifas telefônicas, decididos no âmbito das agências reguladoras
(O Estado de São Paulo, 23/02/03). A primeira iniciativa concreta do atual governo em
relação à mudança do papel das agências foi reunião de grupo de trabalho coordenado pela
Casa Civil, realizada no início do governo (13 de março de 2003). Tal grupo foi incumbido de
analisar propostas de mudança na legislação que regula a atividade dos órgãos reguladores.
O projeto de lei proposto pelo governo em 23 de setembro de 2003, além de mudar a gestão,
retira das agências reguladoras os poderes para conceder, outorgar ou celebrar os contratos de
concessão. O projeto propõe, entre outras coisas, o estabelecimento de contratos de gestão e a
criação da figura dos ouvidores, nomeados pelo Presidente da República, responsáveis pela
fiscalização das ações das agências.
As agências já contam com um órgão de associação e representação política, a Associação
Brasileira das Agências Reguladoras (ABAR). O projeto atual de reforma do papel das
agências é criticado pela ABAR como um instrumento de limitação da autonomia, assim
como de subordinação de suas filiadas ao Poder Executivo. O diretor da ANP, Júlio Colombi
Netto, em outra reação de defesa do atual modelo, afirmou que "as agências reguladoras não
são órgãos do governo, mas do Estado" (O Estado de São Paulo, 23/02/03).
4. A experiência regulatória em saúde
Na área da saúde foram criadas duas agências, a ANVISA e a ANS. A primeira foi a primeira
das duas a ser criada, tendo competências muito amplas, atingindo todo o setor de saúde,
incluindo tanto a fabricação de equipamentos e insumos, como a comercialização e produtos e
a prestação de serviços. As atribuições da ANS, embora bastante amplas, são
comparativamente mais restritas, na medida em que lhe cabe regular e fiscalizar o subsetor de
saúde suplementar, que envolve relações entre operadoras de planos e seguros de saúde,
prestadores de serviços de saúde e consumidores dos mesmos.
A ANVISA herdou de certa forma toda uma experiência regulatória em sua área de
competência, à qual cabia especialmente à Secretaria de Vigilância Sanitária. Já o setor
regulado pela ANS só passou a ser objeto efetivo de regulação por parte do Estado brasileiro
mais recentemente, a partir da promulgação da Lei n.º 9.656/1990.
4.1. Agência Nacional de Vigilância Sanitária
A ANVISA foi a primeira das agências reguladoras criadas no âmbito do Ministério da Saúde,
tendo sido criada em janeiro de 1999. Sua finalidade institucional “é promover a proteção da
saúde da população por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de
produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos,
dos insumos e das tecnologias a eles relacionados” (Lei n.º 9.782, Art. 6.º).
A ANVISA tem entre suas atribuições mais importantes: coordenar o Sistema Nacional de
Vigilância Sanitária, definido pela Lei Orgânica da Saúde (Lei n.º 8.080/1990); estabelecer
normas e padrões sobre materiais que possam redundar em riscos à saúde da população;
conceder ou cancelar registros de produtos; e cancelar a autorização de funcionamento e
7
a autorização especial de funcionamento de empresas. Regula uma gama muito ampla
de assuntos, envolvendo condições relativas à produção, comercialização e utilização de uma
série de produtos, tais como: alimentos; cosméticos; derivados do tabaco; medicamentos;
saneantes; além de normatizar outras áreas que podem afetar a saúde da população, como o
sangue e hemoderivados; estabelecimentos prestadores de serviços de saúde;
farmacovigilância; portos, aeroportos e fronteiras; tecnovigilância (equipamentos
biomédicos); e toxicologia.
A Agência incorporou as competências de diversos órgãos, principalmente da antiga da
Secretaria de Vigilância Sanitária. Em função de suas atribuições, a ANVISA deve manter
interlocução importante e permanente com diversos órgãos de outras áreas do governo, como
é o caso do Ministério do Meio Ambiente e do IBAMA, em relação à proteção e preservação
ambiental; do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), ao qual dá suporte técnico
na concessão de patentes de produtos; da Receita Federal e do Departamento de Polícia
Federal, no caso da vigilância de protos e aeroportos e do Ministério das Relações Exteriores
e mesmo instituições estrangeiras quando deve tratar de assuntos internacionais na área de
vigilância sanitária.
A Câmara Técnica de Medicamentos (CATEME) da ANVISA foi palco recentemente das
controvérsias existentes entre o atual governo federal e o modelo de regulação vigente. Nove
dos dez integrantes da Câmara acusaram o governo de sectarismo e partidarismo na gestão do
órgão e seu afastamento coletivo. Dos dez titulares que integram a câmara técnica, nove
renunciaram. Ao fazê-lo explicaram que vinham sendo submetidos a um processo de
esvaziamento de suas funções, e alegaram falta de transparência na liberação para venda de
novos medicamentos.
4.2. Agência Nacional de Saúde Suplementar
O marco regulatório do setor de saúde suplementar nasce de duas situações ímpares entre
todas as demais agências de regulação brasileiras. A primeira delas é a presença da sociedade,
especialmente dos consumidores, na configuração do escopo e do conteúdo do marco
regulatório. A Lei n.º 9.656/1990 surgiu, portanto, como uma resposta do Estado à uma
pressão de um setor da população que buscava proteção para a desigualdade da relação que
mantinha com as operadoras de planos e seguros de saúde privados, das quais muitas haviam
se transformado em poderosos agentes econômicos, ou haviam sido incorporados por
poderosos grupos financeiros.
A pressão sobre o Estado resultava do conflito entre consumidores e operadoras de planos e
seguros privados de saúde. Tal conflito se intensificou particularmente nos anos 90,
alimentado tanto pela afirmação dos direitos sociais estabelecidos pela Constituição Federal e
pela legislação que a complementa, quanto pela promulgação do Código de Defesa do
Consumidor, importante instrumento do direito civil brasileiro que assegurou maior igualdade
entre os consumidores e fornecedores de bens e serviços. A agudização do conflito entre
consumidores e operadoras acabou levando ao acordo parlamentar em torno do conteúdo do
que veio a ser a Lei n.º 9.656/1998.
A regulação brasileira teve, por essa razão, o foco colocado principalmente sobre a relação
existente entre operadoras e consumidores, e visou reduzir os efeitos da assimetria de poder
entre ambos os grupos, embora as relações existentes entre operadores e prestadores de
serviço e entre estes e os consumidores também fossem importantes componentes do mercado
de saúde suplementar. Sua natureza básica é, portanto, a de uma lei de defesa dos direitos de
um grupo específico de consumidores. Difere, neste sentido, da experiência norte-americana
8
no campo, que desde o seu início, ainda na década de 30 do século passado regulou as
relações entre os três diferentes grupos que atuam no mercado. Esta característica da Lei
surgiu em função de que os consumidores e as operadoras de planos e seguros privados de
saúde no Brasil vinham travando um longo conflito em torno principalmente da cobertura, dos
preços dos planos e seguros e, ainda, de mecanismos de aversão ao risco praticados pelas
operadoras.
A outra situação ímpar é a de tratar-se do único, de todos os setores que passaram a ser
reguladas por meio de agências, onde não havia qualquer experiência prévia de regulação. O
subsetor de saúde privada se desenvolveu por mais de 30 anos sem que o Estado lhe
impusesse regras, a partir da publicação da Lei n.º 9.656/98, se deu início, literalmente do
zero, de um marco regulatório para o mesmo. Isto explica o volume enorme de regras
publicados em prazo relativamente exíguo e as idas e vindas das mesmas, em grande parte
fruto das reações de segmentos que compõem o mercado, dos quais muitos se viam pela
primeira vez numa situação de ter de se submeter a limites, obrigações e a dar satisfação para
o Estado e para o público.
Durante o primeiro ano de existência do marco regulatório do setor de saúde suplementar, as
funções de regulação ficaram divididas entre o Ministério da Fazenda, que cuidava dos
aspectos econômicos e o Ministério da Saúde, que cuidava dos aspectos relacionados à saúde
propriamente dita. A unificação das responsabilidades sob a égide do Ministério da Saúde
facilitou o espaço para a criação da ANS, através de medida provisória no final de 1999 (MP
2.012-2), seguida pela promulgação da Lei n.º 9.661, de janeiro de 2000, que teve o mesmo
objetivo da MP 2.012-2.
A pesquisa do IDEC sobre o papel dos órgãos reguladores, acima mencionada, situou a ANS
como a segunda mas mal avaliada, perdendo apenas para o Banco Central do Brasil. A nota
2,7 atribuída à Agência, que lhe conferiu um “muito ruim” na avaliação final, é muito inferior
à média de 4,2 obtida pelo conjunto dos órgãos avaliados. Tal avaliação deve-se, segundo a
pesquisa, principalmente a dois itens de avaliação: a) existência de canais institucionalizados
e condições para a participação dos consumidores (nota 1,0); e b) transparência de acesso à
informação e resultados da ação, atos, procedimentos e processos decisórios (nota 1,3).
5. A experiência da ANS em perspectiva
O desenvolvimento do setor de saúde suplementar data dos anos 1960. O setor se expandiu ao
longo de mais de 30 anos sem a presença de qualquer marco regulatório. Seu surgimento se
deu no bojo da transformação da sociedade brasileira numa sociedade urbano-industrial de
massas e de complexidade crescente, Nessa sociedade, a classe média ganha importância
relativa e se torna o mercado por excelência do novo setor de saúde suplementar. A expansão
do setor se deu inicialmente em torno das grandes empresas industriais que, em franca
expansão, passaram a contratar serviços de saúde para seus empregados como forma, entre
outras coisas, de reduzir o absenteísmo da crescente massa de trabalhadores. É este processo
que explica a hegemonia dos planos de auto-gestão na história inicial do setor de saúde
suplementar.
Duas grandes transformações do setor de saúde pública no país e que o levaram a operar uma
escala de massa – a criação do INPS, em 1966, e do SUS, em 1988 – conduziram tanto à
ampliação do acesso da grande maioria da população aos serviços públicos, quanto à uma
degradação relativa da qualidade dos mesmos, estimulando o consumo pelas classes médias
de serviços privados de saúde. Tais 7transformações, aliadas à decisão do governo militar de
priorizar a contratação de serviços privados em várias áreas (Decreto-lei 200/67), inclusive na
9
de saúde, constituíram um grande impulso para a expansão da saúde privada em geral e, em
particular, do subsetor de saúde suplementar.
Desde o final dos anos 70 a inversão do binômio elevado crescimento/inflação restrita produz
entre outros fatores a expansão da oferta de planos e seguros privados de saúde pela classe
média que já não podia consumir serviços privados de saúde organizados em moldes liberais e
procurava fugir da crescente degradação da qualidade dos serviços oferecidos pela rede
pública de saúde. Nos anos 80, a presença de um quadro hiperinflacionário potencializa a
adesão maciça de setores mais amplos das classes médios, inclusive dos seus extratos de
menor renda, a serviços de atenção à saúde providos por um setor não regulados.
A regulação do setor de saúde suplementar, resultou da transformação na Câmara dos
Deputados de um Projeto de Lei originalmente do Senador Iram Saraiva, na ocasião PL e,
posteriormente PMDB, o qual recebeu o número PLS 93/93. O projeto original versava
apenas sobre a proibição da “exclusão de cobertura de despesas com tratamento de
determinadas doenças em contratos que asseguram atendimento médico-hospitalar pelas
empresas privadas de seguro-saúde ou assemelhadas”. O substitutivo, de 1994, da Câmara dos
Deputados dispunha sobre “os Planos e Seguros Privados de Assistência à Saúde” como um
todo e transformou-se na Lei n.º 9.656 de 03 de junho de 1998, que inaugura o marco
regulatório após mais de 30 anos de desenvolvimento do setor de saúde suplementar, ao
contrário do que ocorreu, por exemplo nos EUA, cuja história da regulação praticamente
coincide com a história do setor de health insurance.
Em 1993, o Brasil estava sob o governo Itamar Franco, que emergira dos tumultuados anos
Collor, o qual deixara a Presidência da República sob pressão de intensa mobilização da
sociedade. Itamar Franco, ex-vice presidente de Collor, e ex-integrante do Partido da
Reconstrução Nacional (PRN) de Collor, formou um governo de ampla coalização, integrado
pelo PSDB, o PMDB, o PTB e o PFL, entre outros, do qual fez parte o senador pelo PSDB
Fernando Henrique Cardoso, primeiro como Chanceler (outubro de 1992 até maio de 1993) e
depois como Ministro da Fazenda até perto do final do governo Itamar Franco, quando se
candidatou e, posteriormente se elegeu, como Presidente da República por dois mandatos
(1995-2002).
A instabilidade política do período se somava à instabilidade econômica derivada da presença
de uma hiperinflação descontrolada, as quais estimularam a mobilização da sociedade civil
para um processo de mudanças no qual o Plano Real veio a se inserir. O setor de saúde
suplementar, nesta perspectiva, por mobilizar interesses de um público mais de 30 milhões de
consumidores fundamentalmente de classe média, com grande poder de vocalização política
se revelava como um campo extremamente sensível tanto do ponto de vista econômico como
sócio-político. A regulação do setor deriva, assim, de um contexto histórico específico no qual
a emergente hegemonia política do PSDB não podia descartar a defesa de um grupo tão
numeroso e influente como os consumidores de planos e seguros privados de saúde.
Deve-se chamar a atenção, ainda, que a relativa e um tanto incomum estabilidade monetária
instaurada pelo Plano Real e pela política recessiva centrada em elevadas taxas de juros e
contenção do gasto público trouxe um quadro inédito para o mercado de planos e seguros
privados de saúde no Brasil. Nesse quadro de ausência de uma espiral inflacionária já não era
mais possível para as operadoras obter ganhos significativos em operações ativas no mercado
financeiro, nem era mais possível seguir reajustando sistematicamente os preços cobrados aos
consumidores que não só não tinham mais salários indexados e sofreram ainda uma queda no
nível real de renda. Os novos custos decorrentes da presença do marco regulatório não podiam
mais ser automaticamente repassados aos consumidores.
10
Uma das principais soluções encontradas pelas operadoras foi o repasse, ainda que parcial,
para os prestadores de serviço dos novos custos decorrentes da ampliação da cobertura e da
atenuação dos mecanismos de exposição ao risco – como, por exemplo, a redução dos
aumentos diferenciados das mensalidades por faixa etária ou a redução das possibilidades de
negar o acesso à atenção a doenças pré-existentes. O repasse desses custos para os prestadores
se deu através de duas formas principais: o aumento das glosas às faturas apresentadas e o não
reajuste das tabelas de honorários médicos e demais serviços de assistência à saúde.
5.1. Desenvolvimento do estatuto legal de regulação do setor
Durante os primeiros 17 meses de vigência da Lei n.º 9.656 (junho de 1998 a outubro de
1999), prevaleceu o modelo chamado de bipartite do novo marco regulatório, segundo o qual
caberia ao Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) e à Superintendëncia de Seguros
Privados (SUSEP), órgãos vinculado ao Ministério da Fazenda os assuntos relacionados com
o controle econômico-financeiro do setor, e ao Ministério da Saúde, através do recém criado
Departamento de Saúde Suplementar a regulação da atividade de produção da assistência à
saúde. Tal modelo, estabelecido pelos artigos 3.º a 8.º da Lei n.º 9.656, previa que o CNSP ao
deliberar sobre regras para o setor de saúde suplementar ouvisse a Câmara de Saúde
Suplementar, instância consultiva formado por representações dos setores público e privado,
criada no âmbito do Ministério da Fazenda. Vale observar, neste sentido, que o entendimento
do Poder Legislativo acerca da regulação do setor de saúde suplementar no momento da
aprovação da Lei é que o setor deveria estar afeito à área fazendária, dada a natureza
econômico-financeira da atividade.
No mesmo dia em que a Lei foi publicada, 4 de junho de 1998, o Poder Executivo iniciou um
processo de alteração do seu conteúdo através de um conjunto de 45 Medidas Provisórias
(MP), a primeira de número 1.665 e a última de n.º 2.177-44, de 24/08/2001, quando o
Congresso acabou com a obrigatoriedade de reedição mensal das medidas. Grande parte
dessas MPs se constituíam em meras reedições para manter a vigências das regras impostas
pelo Executivo, mas algumas delas continham alterações significativas do texto original do
Legislativo. São apontadas a seguir as MPs que introduziram as mudanças mais importantes
no texto da Lei.
MP 1.665 de 04/06/1998 – criou o Conselho de Saúde Suplementar (CONSU), concebido
como orgão colegiado integrante da estrutura regimental do Ministério da Saúde e
integrado pelos Ministros de Estado da Casa Civil da Presidência da República, do
Ministério da Saúde, da Fazenda, da Justiça e do Planejamento, Orçamento e Gestão, o
qual absorvia uma série de atribuições que no texto da Lei estavam atribuídas à SUSEP;
MP n.º 1730-7, de 07/12/98, impôs o registro provisório de operadoras junto à SUSEP e
de produtos junto ao Departamento de Saúde Suplementar do MS; proíbe comercialização
de produtos fora das novas normas especificadas a partir de 120 dias da vigência da lei;
proíbe o descredenciamento de prestadores de serviço pelas operadoras sem a autorização
do Ministério da Saúde;
MP n.º1801-14 – obriga a adaptação dos contratos anteriores que prevêem reajuste por
faixa etária às novas normas, por meio de repactuação;
MP n.º 1908-20, de 25/11/1999 – entre outras coisas transferiu para a Agência Nacional
de Saúde Suplementar a regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades
que garantam a assistência suplementar à saúde. Vale observar que esta MP se converteu
na Lei n.o 9.961 de 28 de janeiro de 2000, que criou efetivamente a Agência;
11
MP n.º 1.976-34, de 21/12/2000 – excluiu do texto da Lei n.º 9.656 o artigo em que
tratava das pessoas jurídicas não constituídas como operadoras de planos privados de
assistência à saúde, em função desta MP, as seguradoras foram obrigadas a se constituir
como sociedades seguradoras especializadas em planos privados de assistência à saúde até
1º de julho de 2001. Esta MP se converteu na Lei 10.185, de 10/02/2001;
Finalmente a MP n.º 2177-44 – retira atribuições e altera a composição do CONSU; abre
possibilidade de termo de compromisso entre a ANS e as operadoras visando a
manutenção da qualidade dos serviços de assistência à saúde; e torna obrigatória cirurgia
reconstrutiva de mama.
Cabe destacar, ainda, que a primeira medida provisória que alterou a Lei n.º 9.656/98 – MP
n.º 1.665 – foi editada no mesmo dia em que a Lei n.º 9.656 foi publicada no Diário Oficial da
União (04/06/1998) e teve por objetivo principal incluir no texto original o artigo 35–a,
criando o CONSU. Esta MP foi fruto de um acordo entre o Executivo e o Legislativo, mais
especificamente o Senado, costurado pelo Ministro e Senador licenciado José Serra, que
propôs incluir no seu texto a correção do que o Senado considerava como falhas do projeto
apresentado pela Câmara dos Deputados. A MP subordinou, dessa forma, à lógica da saúde
uma série de questões, que antes eram vistas sob o ângulo eonômico-financeiro, colocando no
centro do debate temas como a garantia e a ampliação das coberturas.
A edição da MP expressava, ainda, uma disputa no interior do Poder Executivo, na qual o
Ministério da Saúde procurava reduzir a esfera de atuação do Ministério da Fazenda, atuando
de modo a assegurar para si o controle efetivo do Estado no campo da saúde suplementar. Tal
estratégia foi coroada de sucesso menos de dois anos depois, quando a ANS, órgão vinculado
ao Ministério passou a assumir a plena responsabilidade pela regulação do setor.
A própria cronologia das resoluções do CONSU, apresentada na tabela a seguir, deixa claro
sua perda de importância relativa ao longo do tempo enquanto órgão deliberativo. O Conselho
publicou 23 resoluções durante o período em que a regulação era compartida entre os
Ministérios da Saúde e da Fazenda (de 1998 ao final de 1999) e apenas 4 a partir daí até o
presente.
Resoluções do CONSU – 1999/2002
Anos N.º de
resoluções
1998 14
1999 9
2000 2
2001 1
2002 1
Entre 1998 e 1999, as 23 resoluções aprovadas pelo CONSU trataram fundamentalmente da
definição de regras para o funcionamento do setor de saúde suplementar. A partir daí, só a
resolução do CONSU n.º 1, de 2000, revestiu-se de importância substantiva para a regulação
e, mesmo assim, delegou competência para a ANS, que assumia, então, a regulação efetiva do
subsetor. As demais resoluções aprovadas pelo CONSU a partir de 2000 diziam respeito a sua
reorganização e à aprovação do contrato de gestão do Ministério com a Agência.
12
5.2. Desenvolvimento do estatuto infra-legal de regulação do setor
Há dois grandes tipos de regulamentações infra-legais para o subsetor de saúde suplementar:
regulamentações normativas que são regras que estabelecem políticas para o setor de
saúde suplementar nacional. Podem ser expedidas pela Diretoria Colegiada da ANS, por
cada uma de suas Diretorias, pelo Conselho de Saúde Suplementar (CONSU) ou pelo
Diretor-Presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar;
regulamentações operacionais, que expressam decisões da Diretoria Colegiada de
alcance externo, tais como: alienação de carteira, instauração de regimes de direção
técnica, direção fiscal e de liquidação extrajudicial de operadoras de planos privados de
assistência à saúde;
Existem, ainda, decisões de caráter interno, quer sob a forma de decisões colegiadas ou
específicas das diferentes diretoria da Agência. As decisões da Agência, seja de alcance
externo, seja de alcance interno podem assumir diferentes formatos
As decisões mais importantes tomadas diretamente pela ANS são feitas através de Resoluções
da Diretoria Colegiada (RDC), tipo de instrumento comum às demais agências regulatórias
criadas a partir de 1994. Já houve, até o presente, 95 decisões deste tipo, algumas de alcance
externo, outras de alcance interno. Dentre as que tiveram maior impacto sobre a regulação do
subsetor, destacamos as seguintes:
RDC n.º 06, de 18/02/00 – que dispõe sobre a Taxa de Saúde Suplementar por registro de
produto, registro de operadora, alteração de dados referente ao produto, alteração de dados
referente à operadora, pedido de reajuste de contraprestação pecuniária;
RDC n.º 17, de 30/03/00 – que dispõe sobre a Tabela Única Nacional de Equivalência de
Procedimentos (TUNEP) para fins de ressarcimento dos atendimentos prestados aos
beneficiários de planos privados de assistência à saúde, por instituições públicas ou
privadas, integrantes do SUS;
RDC n.º 38, de 30/10/00 – que institui plano de contas padrão para as operadoras de
planos privados de assistência à saúde;
RDC n.º 39, de 30/10/00 – que amplia a classificação das operadoras, incluindo: a)
filantrópicas (entidades sem fins lucrativos que operam Planos Privados de Assistência à
Saúde e tenham certificado de entidade filantrópica junto ao Conselho Nacional de
Assistência Social); b) administradoras (empresas que administram planos ou serviços de
assistência à saúde); c) autogestões (podem ser patrocinadas ou não); e d) operadoras do
ramo odontológico (cooperativa odontológica e odontologia de grupo);
RDC n.º 62, de 20/03/01 – que limita os casos de ressarcimento ao SUS aos casos de
atendimentos realizados por unidades públicas de saúde e de atendimentos de urgência e
emergência realizados por instituições privadas, conveniadas ou contratadas pelo SUS;
RDC n.º 64 de 17/04/01 – que dispõe sobre Seguradoras Especializadas em Saúde; e
RDC n.º 85 de 21/09/01 – que institui o Sistema de Informações de Produtos (SIP), para o
acompanhamento da assistência prestada aos beneficiários de planos privados de
assistência à saúde.
Outro instrumento utilizado pela Agência é o Comunicado da Diretoria Colegiada (CDC),
tendo sido publicados 10 deles, até o momento. A maior parte deles se refere a avisos ao
13
público de atos de intervenção da ANS sobre operadoras de planos de assistência à saúde.
Deve-se chamar a atenção, em primeiro lugar, para os CDCs n.º 8 e 9, de 12/12/03 e de
06/06/03, respectivamente, que alertam os consumidores a respeito dos cartões de desconto,
modalidade cuja oferta e propaganda é considerada como “enganosa e pode confundir o
consumidor na hora da escolha de seu plano”. Deve ser mencionado, também, o recentemente
publicado CDC n.º 10, publicado em função da recente liminar do STF sobre o assunto, e que
recomenda aos usuários de planos de saúde, cujos contratos sejam anteriores a janeiro de
1999, que não aceitem propostas de alteração ou adaptação contratual, bem como a aplicação
de reajustes indevidos, até a completa regulamentação dessa matéria”.
Um fato importante a destacar é o relativamente elevado número de resoluções operacionais
(RO) afeitas a processos de intervenção em operadoras de planos privados de assistência à
saúde já publicadas pela ANS. Até setembro do corrente ano, haviam sido publicadas 172
ROs, as quais se referem a processos de instauração e ou encerramento de formas diferentes
de regimes de intervenção regulatória, a saber: Direção Técnica, Direção Fiscal, Liquidação
Extrajudicial, e também de Cancelamento de Registro Provisório. Levando em consideração
que a primeira RO data de 22/2/2002, e a última disponível até o presente momento na
Internet, que é de 02/09/03, temos um período de 19 meses, no qual o ritmo de resoluções a
respeito de instauração ou encerramento dessas intervenções é de 9,1 por mês, ou seja, mais
do que 2 por semana, em média. Estes números falam por si da forte ação fiscalizatória da
ANS sobre as operadoras do mercado de saúde suplementar.
6. Perspectivas
A própria história da ANS, que data de apenas 4 anos, já aponta para a necessidade de se
melhorar a qualidade do dialogo com os diferentes poderes da República, ou seja, os poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário. Além da melhoria das relações no interior do Estado, a
Agência deve dedicar-se intensamente a melhorar a qualidade da relação com os
consumidores, tendo em vista a coexistência de problemas do passado com os problemas que
vêm sendo interpostos pelos novos tempos. Atenção especial deve ser contemplada às
relações existentes entre operadoras e prestadores de serviços de saúde que constitui uma
clara debilidade do atual marco regulatório, isto sem que se desconsidere a importância das
relações entre prestadores e consumidores.
Nessa perspectiva da melhora das relações, o principal objetivo a ser buscado é a repactuação
dos termos do recente marco regulatório, o qual além de apresentar lacunas, está baseado no
estatuto da Medida Provisória n.º 2177-44 e num conjunto de resoluções da Agência apoiados
neste instrumento precário. Trata-se portanto de consolidar o marco regulatório num ambiente
político novo e distinto daquele em que o pacto original foi gerado, o que depende
fundamentalmente de um processo de repactuação com o conjunto dos segmentos da
sociedade civil e do Estado envolvidos com a questão. O êxito da repactuação tem como pré-
requisito básico a fluência e transparência do diálogo entre todos os segmentos envolvidos.
Uma iniciativa que certamente contribuiria para a melhora dos termos de diálogo com
operadoras, prestadores de serviço, consumidores e o público em geral seria a preparação e
publicação de um manual do usuário, contendo uma consolidação dos vários dispositivos
legais e infra-legais de regulação do subsetor de saúde suplementar. A disponibilicação pelo
site desses dispositivos, dada a natureza, quantidade e diversidade dos mesmos não é acessível
para todos os usuários e interessados, tornando a busca de informações uma tarefa árdua e
nem sempre bem sucedida. Tal iniciativa deveria se somar a outros esforços voltados para a
melhoria dos termos do diálogo com o público, como, por exemplo, a atual proposta do
Governo Federal de criação de ouvidorias para as agência de regulação.
14
A melhora dos termos de diálogo com o público não deve se constituir, entretanto, em uma
preocupação exclusiva quanto ao futuro da Agência. Recente documento da ANS, assinado
por seu atual Presidente, aponta um decálogo de desafios estratégicos, além de um conjunto
menor de desafios conjunturais a serem enfrentados no futuro próximo. No tocante aos
desafios estratégicos, consideramos que devem ser destacados os seguintes pontos:
Acerto de contas com o passado: ampliação da cobertura dos antigos contratos através da
migração para novos contratos estabelecidos com base na regulação – tornado ainda mais
crítico depois da recente decisão do STF no sentido da não retroatividade da regulação;
Repactuação das relações entre operadoras e prestadores de serviços – o que depende, no
nosso entender, do estabelecimento de novas regras legais, que prevejam, entre outras
coisas, o estabelecimento de normas de remuneração que não tenham o pagamento por
procedimento como único parâmetro;
Ampliação dos mecanismos que assegurem maiores estabilidade e horizontes temporais
para o funcionamento do mercado, tais como: fortalecimento do resseguro e co-seguro
para dar maior segurança para operadoras, prestadores de serviços e principalmente os
consumidores; e garantias para a continuidade da prestação dos serviços em casos de
liquidação extra-judicial de operadoras;
Assistência farmacêutica, sobretudo em relação aos medicamentos de uso continuado;
Maior transparência nas ações e informações, de forma a assegurar possibilidades efetivas
de controle público, estatal e social, sobre a dinâmica do mercado e da própria Agência.
Entre os chamados desafios conjunturais, apresentados no documento em questão, vale
destacar a necessidade de aprofundamento do saneamento do mercado a ser feito de forma
articulada com o Ministério Público e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica
(CADE). O documento trata, ainda, por desafios conjunturais tanto algumas ações de curto
prazo a serem levadas a termo diretamente pela Agência – coibir falsos planos e
‘coletivização’ de planos individuais –, quanto a maior agilidade para a aplicação de multas,
uma questão muito importante, mas que depende de mudança da legislação e da definição do
quadro de carreira da Agência.
Deve se chamar a atenção, ainda, para o fato de que a história do mercado de saúde
suplementar no Brasil supera em muito a recente experiência de regulação do setor. É de cera
forma natural, portanto, que o marco regulatório apresente, ainda, inconsistências e lacunas e
que venha no futuro próximo a passar por sucessivas revisões até que logre atingir uma certa
maturidade. Neste sentido, a repactuação dos termos do marco regulatório acima mencionada
não deve ser considerada como um passo definitivo, mas sim como um momento de uma
trajetória maior.
A Agência, como estrutura central da regulação, deve estar preparada para continuar a operar
em um ambiente ainda instável, com regras insuficientes e mutáveis, no qual continuará a
estar submetida a pressões dos diferentes segmentos sociais nele presentes. Trata-se, portanto,
de enfrentar um aparente paradoxo: consolidação do processo regulatório do subsetor de
saúde suplementar num ambiente de mudanças internas e externas ao mesmo. Nessa
perspectiva, a ANS deve estar apta para atuar como um importante vetor de articulação,
diálogo e de promoção de mudanças. A dimensão político-estratégica é, portanto, central para
que a Instituição assuma plenamente o seu papel de construtora de futuros possíveis no campo
da regulação da saúde privada no Brasil.
Rio, outubro de 2003
15
Referências bibliográficas
COSTA, Nilson do Rosário e RIBEIRO, José Mendes. A política regulatória e o setor
saúde: nota sobre o caso brasileiro, in: Simpósio Regulação dos Planos de Saúde,
Textos de Referência. Rio de Janeiro, ANS, 2001, pp. 22-35.
______ et alli. As Agências de Regulação Independentes, in: Regulação e saúde,
estrutura, evolução e perspectivas da assistência médica suplementar. Rio de
Janeiro, ANS, 2002, pp. 137-148.
CORDEIRO, Hésio. Garantias assistenciais para clientes de seguros de saúde: qualidade
e segurança, in: Simpósio Regulação dos Planos de Saúde, Textos de Referência.
Rio de Janeiro, ANS, 2001 , pp. 42-52.
MESQUITA, Maria Angélica F. A regulação da assistência suplementar à saúde:
legislação e contexto institucional, in: Regulação e saúde, estrutura, evolução e
perspectivas da assistência médica suplementar. Rio de Janeiro, ANS, 2002, pp. 69-
135.
MONTONE, Januário. Integração do setor de saúde suplementar ao Sistema de Saúde
Brasileiro (3 anos da lei 9.656). Rio de Janeiro, ANS, 2001.
______. Evolução e desafios da regulação do setor de saúde suplementar. Rio de Janeiro,
ANS, 2003.
SALGADO, Lucia Helena. Agências regulatórias na experiência brasileira: um panorama do
atual desenho institucional. Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada,
2003.
TEIXEIRA, Aloisio, BAHIA, Ligia e VIANNA, Maria, L. T. Werneck. Nota sobre a
regulação dos planos de saúde de empresas no Brasil, in: Regulação e saúde,
estrutura, evolução e perspectivas da assistência médica suplementar. Rio de
Janeiro, ANS, 2002, pp. 18-35.
UGÁ Maria Alicia D. et alli. A regulação da atenção à saúde nos EUA, in: Regulação e
saúde, estrutura, evolução e perspectivas da assistência médica suplementar. Rio
de Janeiro, ANS, 2002, pp. 239-257.
VIANNA, A. L. et alii. Estado e Regulação da Saúde, in: Regulação e saúde, estrutura,
evolução e perspectivas da assistência médica suplementar. Rio de Janeiro, ANS,
2002, pp. 201-135.