A Análise de. as Bacantes

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A análise de "As Bacantes" mostra a surpresa que o texto carrega quando comparado com as obras anteriores do poeta. A tragédia foi escrita por Eurípedes já no final de sua vida e surpreende pela guinada formal e temática: a adoção de forma e tema "arcaizantes", quando comparada ao ponto formal e temático em que o próprio Eurípedes havia deixado a tragédia. O texto utilizado neste trabalho é a tradução para o português realizada por Mário da Gama Kury, presente no volume número 5 da coleção "A Tragédia Grega", Jorge Zahar E., 1993. 2. RAZÃO VERSUS PAIXÃO EM "AS BACANTES" A peça é, junto com Ifigênia em Áulis, das últimas produzidas pelo poeta e foi representada pela primeira vez em 405 a.C., na Macedônia semi-bárbara. Trata da vingança de Dioniso contra o rei Penteu que proibira o culto ao Deus. O texto apresenta o Rei Penteu de Tebas em conflito com o culto a um novo deus que se infiltra na cidade (Dioniso). Na figura de Penteu está cristalizada a Pólis, o Estado. Ele, o rei, representa as razões do Estado e, mais que isso, a Razão pura, o equilíbrio, o comedimento. Penteu é o simulacro da religião oficial e aristocrática da Pólis (olímpica) cujos deuses não admitem qualquer desmedida dos mortais que venham a sequer sonhar com a imortalidade. Dioniso por outro lado significa justamente a desmedida, a paixão desenfreada, os arroubos do pathos, o êxtase e, por conseqüência, a possibilidade de caminhos impensáveis pela razão, a serem trilhados por mortais. Deus do vinho, da embriaguez, da fertilidade e colheita, da orgia enquanto retorno ao caos, que por ser caos propicia a criação de novo cosmos. Seria óbvio, não improcedente, caracterizar o texto como o conflito entre a religiosidade (ateísmo, teísmo) e a razão, porém esta análise segue por outro diverso caminho, o caminho subjacente ao texto. Eurípedes não era um poeta tão óbvio em seus textos que admitem várias camadas de interpretação. Dado o contexto sofístico da época e as polêmicas intermináveis entre sofistas e tradicionalistas, nas quais o poeta foi incluído, a análise da tensão conflitual no texto enriquece-se quando direcionada para a identificação das potências em conflito: Razão/Penteu versus Paixão/Dioniso. Penteu, cujo nome significa "dor/luto", motivo pelo qual Dioniso, no verso 664 lhe diz: "teu nome te predestinou à desventura", incorpora todas as características inerentes à postura requerida aos habitantes da pólis. Ele é um fiel guardião dos deuses olímpicos, devoto dos deuses oficiais. Não é por outra razão que ironiza Dioniso: "Existe lá um Zeus que é pai de novos deuses?" (verso 618). Esse verso sintetiza o pensamento oficial em relação à Dioniso, o não reconhecimento de sua filiação olímpica. Dioniso, oriundo de cultos cretenses e bárbaros, nunca foi prazerosamente reconhecido como Deus helênico. Sobre esse assunto Albin Lesky nos esclarece:

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A análise de "As Bacantes" mostra a surpresa que o texto carrega quando comparado com as obras anteriores do poeta. A tragédia foi escrita por Eurípedes já no final de sua vida e surpreende pela guinada formal e temática: a adoção de forma e tema "arcaizantes", quando comparada ao ponto formal e temático em que o próprio Eurípedes havia deixado a tragédia. O texto utilizado neste trabalho é a tradução para o português realizada por Mário da Gama Kury, presente no volume número 5 da coleção "A Tragédia Grega", Jorge Zahar E., 1993. 

2. RAZÃO VERSUS PAIXÃO EM "AS BACANTES" 

A peça é, junto com Ifigênia em Áulis, das últimas produzidas pelo poeta e foi representada pela primeira vez em 405 a.C., na Macedônia semi-bárbara. Trata da vingança de Dioniso contra o rei Penteu que proibira o culto ao Deus. O texto apresenta o Rei Penteu de Tebas em conflito com o culto a um novo deus que se infiltra na cidade (Dioniso). Na figura de Penteu está cristalizada a Pólis, o Estado. Ele, o rei, representa as razões do Estado e, mais que isso, a Razão pura, o equilíbrio, o comedimento. Penteu é o simulacro da religião oficial e aristocrática da Pólis (olímpica) cujos deuses não admitem qualquer desmedida dos mortais que venham a sequer sonhar com a imortalidade. Dioniso por outro lado significa justamente a desmedida, a paixão desenfreada, os arroubos do pathos, o êxtase e, por conseqüência, a possibilidade de caminhos impensáveis pela razão, a serem trilhados por mortais. Deus do vinho, da embriaguez, da fertilidade e colheita, da orgia enquanto retorno ao caos, que por ser caos propicia a criação de novo cosmos. Seria óbvio, não improcedente, caracterizar o texto como o conflito entre a religiosidade (ateísmo, teísmo) e a razão, porém esta análise segue por outro diverso caminho, o caminho subjacente ao texto. Eurípedes não era um poeta tão óbvio em seus textos que admitem várias camadas de interpretação. Dado o contexto sofístico da época e as polêmicas intermináveis entre sofistas e tradicionalistas, nas quais o poeta foi incluído, a análise da tensão conflitual no texto enriquece-se quando direcionada para a identificação das potências em conflito: Razão/Penteu versus Paixão/Dioniso. Penteu, cujo nome significa "dor/luto", motivo pelo qual Dioniso, no verso 664 lhe diz: "teu nome te predestinou à desventura", incorpora todas as características inerentes à postura requerida aos habitantes da pólis. Ele é um fiel guardião dos deuses olímpicos, devoto dos deuses oficiais. Não é por outra razão que ironiza Dioniso: "Existe lá um Zeus que é pai de novos deuses?" (verso 618). Esse verso sintetiza o pensamento oficial em relação à Dioniso, o não reconhecimento de sua filiação olímpica. Dioniso, oriundo de cultos cretenses e bárbaros, nunca foi prazerosamente reconhecido como Deus helênico. Sobre esse assunto Albin Lesky nos esclarece: "Antes de tudo, não se trata de um dos deuses olímpicos, de cunho homérico, cujo triunfo essa tragédia quisesse mostrar. No primeiro capítulo, já nos referimos ao fato de que a velha epopéia não podia, ou não queria, tomar muito conhecimento de Dioniso, nem foram seus poetas que o levaram ao coração dos homens, mas, em poderoso movimento, o seu culto arrastou o povo diretamente à maravilha do êxtase. E a esse Deus e a suas festas misteriosas, Eurípedes ficou conhecendo no norte macedônico, de maneira bem mais direta e em versão bem mais próxima da original, do que seria possível na Hélade civilizada." (A Tragédia Grega, Lesky, Albin - p.227/228) O próprio texto de "As Bacantes" ratifica as palavras de Albin Lesky: 

"Dioniso- Todos os bárbaros celebram seus mistérios. Penteu- Mas nisto eles são menos cultos que nós, gregos. Dioniso- A diferença talvez seja nos costumes; em termos de esclarecimento eles vos vencem" (versos 633/636) 

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"Coro - Nosso desejo é adotar também a fé que a maioria das pessoas mais simples recebeu e põe em prática." (versos 571/573) 

O caráter eminentemente popular e tradicional do culto báquico é realçado pelo poeta na boca de Tirésias. Vale notar o recado direto de Eurípedes às idéias dominantes de sua época: 

"Não temos pretensão quanto ao conhecimento de tudo que é divino. Nenhum pensamento afetará as tradições que recebemos de nossos ancestrais, antigas como o tempo e resistentes aos sutis raciocínios dos cérebros sofísticos." (versos 253/258) 

Ainda sobre a remota origem de Dioniso é o Coro que expõe: 

"Não é difícil realmente crer na onipotência de um poder supremo, seja qual for a verdadeira origem das divindades que desde os primórdios e ao longo dos tempos imemoráveis têm a força de lei entre os mortais pois vem da natureza sua origem." (versos 1.166/1.173) 

Penteu, no texto, combate a divindade em nome da moral e da decência gregas, ameaçadas que estão por um "culto sórdido" (verso 297), "um culto infame" (versos 340), "novo mal para nossas mulheres, capaz de corrompê-las nos lares tebanos!" (versos 479/480). Essa faceta moralista de Penteu é constantemente ressaltada pelo poeta; aliado a isso, Eurípedes explora o perfil preconceituoso do Estado/Penteu com relação aos cultos populares (dionisíacos). Tanto é assim que poeta descreve nos versos 881/897, na fala do primeiro mensageiro, as atividades das bacantes como uma total harmonia e paz, ao contrário do que inferia o preconceituoso rei. Elas, no alto monte, relata o mensageiro efetivando o contraponto necessário para evidenciar o viés de pensamento do rei, descansavam bucólicas "e não como a descreves em tuas conversas,/ completamente embriagadas pelo vinho/ e pelo som das flautas doces, procurando/ discretamente a bela Cipres na floresta." (versos 899/902). Dioniso, nos versos 1.227/1.229, diz à Penteu: 

"Considerar-me-ás o teu melhor amigo quando notares, contra a tua expectativa a castidade com que vivem as Bacantes." 

Dá-se aqui o fenômeno de quem julga preconceituosamente aquilo que não conhece ou que, conhecendo, o que é pior, julga também preconceituosamente numa atitude defensiva, por razões ideológicas, de classe social, politica ou culturalmente diferente. Penteu assume então o papel de defensor do estabelecido; ele é, para Eurípedes, o representante das idéias reinantes no cenário intelectual de Atenas no século de Péricles, portanto, ele defenderá até a morte, e é o que

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ocorre, o reinado do logos, da moderação e do comedimento. Penteu é o defensor do "medén ágan", nada em excesso. Ele simboliza as máximas: virtude é saber, só se peca por ignorância, o virtuoso é feliz. Ratificando o pensamento nietzscheano, o Penteu-otimista é a própria morte da tragédia e Eurípedes o utiliza para justamente combater o vírus socrático que contaminava, na época, os novos poetas. Diametralmente opostos e poderosos são os personagens Dioniso e suas bacantes. Estas, integradas com o Deus através do êxtase e do entusiasmo, liberam-se de condicionamentos éticos, políticos e sociais. "Dioniso, o deus-humano ou o homem-divino, representa na orgia o poder de deixar vir à tona o impulso animal, a força instintiva presente em cada indivíduo - devolvendo-o à pertença da Terra, diferenciando-se, assim, por estes dois elementos, de Cristo. Este Deus andrógino e erótico era ritualizado pelo vinho que, liberando a emoção, introduzia o iniciado nos mistérios órficos. Segundo os órficos, os homens nascem assinalados por uma tragédia : o crime cometido pelos Titãs contra o menino Dioniso. Para puni-los, Zeus enviou seu raio fulminante e das cinzas titânicas brotou a humanidade. Marcada por um embate entre luz e as trevas titânicas, a alma necessita de sua libertação" (Máscaras do Tempo, Beaini, Thais Curi - Vozes, p.385) A ironia trágica permeia todo o texto de "As Bacantes". Imaginemos as dionisíacas de 405 a.C., ante vasto público, o poeta expõe ilustres damas tebanas (as filhas de Cadmo), vestidas de Bacantes, bêbadas e sensualmente liberadas, a desempenhar o papel de discípulas de um Deus bastardo. Os rituais dionisíacos compreendiam, de uma maneira geral, a dança vertiginosa de seus discípulos, ébrios, em busca dos mistérios de Elêusis. Na realidade buscavam o êxtase, o sair de si, o superar a condição humana no mergulho cego em Baco. O culto báquico, portanto, implicava o afrouxamento da razão, a eliminação do logos, o libertar catártico do pathos, e nesse processo, o ser ultrapassaria a medida, a medida de cada um, tangenciaria assim a imortalidade, ao contrário de Penteu, tudo em excesso. Em "O nascimento da tragédia no Espírito da Música", Nietzsche nos fala: "O embevecimento do estado dionisíaco, com seu aniquilamento das fronteiras e limites habituais da existência, contém com efeito, enquanto dura, um elemento letárgico, em que submerge tudo o que foi pessoalmente vivido no passado. Assim, por esse abismo de esquecimento, o mundo do cotidiano e a efetividade dionisíaca separam-se um do outro." O mundo apolíneo-ordenador de Penteu, a pólis e sua Razão, não coadunam com o séquito de Dioniso. O comedimento e a ponderação em Tebas estão ameaçados pelas Bacantes e agregados. A ameaça se configura na medida em que os discípulos de Zagreu/Baco/Dioniso tomando, através da inconsciência, consciência do terrível abismo da existência não se satisfazem mais com os valores cotidianos. 

É ainda em Nietzsche que buscamos luz : "Agora não prevalece nenhum consolo mais, a aspiração vai além de um mundo depois da morte, além dos próprios deuses; a existência, juntamente com seu reluzente espelhamento nos deuses ou em um Além imortal, é negada..." Pinçamos a ratificação desse argumento no texto, em falas de Tirésias e do Coro, respectivamente: 

"Além disso, Dioniso é um profeta e assim os seus delírios são divinatórios; por isso, quando ele penetra fortemente em nosso corpo, embriagando-nos, revela o que ainda está por vir." (versos 394/398) 

"Seu encargo é conduzir os coros sempre dóceis ao som das flautas, para adormecer nossos cuidados e acordar o riso quando começa a cintilar o vinho 

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durante as comemorações sagradas e enquanto nos cortejos adornamo-nos com ramos de hera a taça serve o sono aos convidados." (versos 514/522) 

O embriagar-se, o adormecer e o acordar o riso têm significado de mudança de comportamento do ser. É o desvelar do que hoje chamamos subconsciente. É a quebra da consciência condicionada aos valores da razão e o aflorar do mais profundo do ser. Esse é o perigo que Dioniso representa para a pólis, para a Razão em voga. Para enfatizar esse avançar o limite humano a partir dos rituais báquicos o poeta se utiliza da descrição de feitos assombrosos pelas Bacantes no Cíteron. Elas, iradas, são capazes de façanhas incríveis, dotadas de um vigor e força extremos devassam rebanhos e aldeias. A descrição é emocionante, realista e assustadora. Eurípedes ratifica o seu pendor poético na composição de uma atmosfera de catástrofe (versos 969/1.020). Penteu reage assustado ante o relato desses fatos e, coerente com o seu papel de rei, traça planos para eliminar o perigo que ronda a cidade: "Chegou a hora de lutar contra as Bacantes! / Seria realmente passar dos limites / da tolerância consentir que essas mulheres / nos envergonhem com o seu procedimento!" (versos 1.040/1.043). O Dioniso de Eurípedes, um grande achado do poeta, utiliza os ardis sofísticos da palavra no embate com Penteu. Mais uma ironia do grande trágico, o deus da desmedida argumenta racionalmente sua defesa e é até acusado por Penteu de sofista (verso 640). A polêmica Penteu/Dioniso é exposta por minucioso lapidar literário. A esticomitia de Eurípedes em "As Bacantes" repete a beleza da técnica antes utilizada magistralmente por Ésquilo em "Antígona" e pelo próprio Eurípedes em "Medéia". Penteu, o modelo literário da Razão, expõe em suas falas com Dioniso todos os motivos pelos quais a pólis e sua inteligência rejeitaram e rejeitavam o Deus estranho, usando para isso suas nobres prerrogativas e concluindo ditatorialmente : "Tenho o direito de prender-te; sou o mais forte" (verso 661). 

São notáveis os diálogos d "As Bacantes", repletos de humor e ironia. Eurípedes, ouso crer, idoso, no crepúsculo de sua produtiva vida, consegue desfilar décadas de sua formação cultural e faz dessa tragédia sua profissão de fé. Ao contrário do que alguns críticos tentam afirmar, de que essa tragédia é uma palinódia do poeta do "Hipólito", não vemos em um verso sequer a evidência de uma suposta retratação. Percebemos, isso sim, décadas de sabedoria refinada no balanço da existência de um ser maior, um ser-Eurípedes, um ser humano. O velho poeta fala pela boca dos velhos Tirésias e Cadmo, revigorados pela conversão báquica. Eurípedes, renovado pelo ocaso de sua existência e pela antevisão do fim que é, na realidade, um novo começo, transmuta-se na figura do cego que tudo vê e do velho rei de Tebas. Conclamo Nietzsche em defesa de meu argumento: 

".., essa mesma lucidez que tem o poeta dramático quando se transforma em outros corpos, fala a partir deles e, contudo, sabe projetar essa transformação para o exterior, em versos escritos. O que o verso é aqui para o poeta é para o filósofo o pensar dialético: é deste que ele lança mão para fixar-se em seu enfeitiçamento, para petrificá-lo." (A Filosofia na época trágica dos gregos - Nietzsche - Obras Incompletas, Os Pensadores, Nova Cultural, 1992.) Vejamos no texto o que dizem Tirésias/ Cadmo/Eurípedes: 

"Cadmo - pois quero de agora em diante, noite e dia ferir o chão a todo instante com meu tirso. Sinto-me tão feliz esquecendo a velhice! 

Tirésias - Teu pensamento é igual ao meu, e como tu volto a ser jovem e quero juntar-me aos coros." (versos 236/240) 

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O embate entre as potências das paixões humanas representadas por Penteu (equilíbrio, razão, comedimento, limites, ordem) e Dioniso (paixão, instinto, desregramento, excesso, caos) é resolvido de forma sanguinolenta e terrível. O desfecho da tragédia é pressentido a todo o momento, Tirésias não precisava ser um adivinho para captar sinais futuros da aniquilação de Penteu: 

"Mas deves ter cuidado, Cadmo, para que o rei Penteu não faça entrar o luto em tua casa (não me inspira o dom profético; os fatos falam e são bastante eloqüentes). Estando louco, ele procede loucamente." (Versos 499/503) 

Eurípedes lida com essa perspectiva unindo ironia e humor, antecedendo a brutalidade do final. Utiliza sua veia cômica para humilhar e ridicularizar o rei Penteu, arquétipo da medida como fundamento comportamental. Dioniso, valendo-se de seus poderes divinos, provoca demência, lapso racional ou, como queiram, cegueira momentânea da razão (Áte) no pobre filho de Agave e o faz vestir-se de mulher com o intuito de espionar as bacantes no alto monte. Este trecho da tragédia destaca-se pelo que contém de burlesco e traz em si todo o veneno irônico de Eurípedes. O Deus, que já havia sido taxado por Penteu de "efeminado" (verso 478), saboreia sua vingança primeira ao vesti-lo com o linho típico das mulheres e prepará-lo, como quem embebeda o peru para a ceia que se aproxima ,para o ritual sacrificial: 

"Penteu - E eu, com quem pareço? Dou a impressão de ser Inó ou a minha própria mãe, Agave ? 

Dioniso- Vendo-te assim é como se eu tivesse ambas diante de meus olhos. Mas houve descuido em teu arranjo, pois está desfeito um cacho de teus cabelos; deves pô-lo sob a mitra. 

Penteu - Eu a tirei de seu lugar há pouco tempo em meu delírio báquico lá no palácio. 

Dioniso- Sendo eu o responsável por tua aparência, devo repô-la em sua posição correta. Vamos, Penteu! Apruma-te! Ergue a cabeça 

Penteu - Agora erguê-la-ei como convém; penteia-me mais a teu gosto, pois estou em tuas mãos." (versos 1.208/1.220) 

2. O SACRIFÍCIO DE PENTEU 

"Quando o poeta profere a palavra nomeadora, repete cerimonialmente o ato de trazer à luz uma essência, restaurando, no combate em que busca a palavra apropriada, o sacrifício primeiro do deus que, desmembrando seu corpo, ou contemplando, canta as essências." (Máscaras do Tempo, p. 211) 

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A criação poética, fenômeno com o qual se deparavam cotidianamente os grandes trágicos, é um ritual onde a tensão entre os elementos racionais e passionais do indivíduo beiram o êxtase e a catarse. Eurípedes, reconhecidamente um perfeccionista em seu ofício de poeta, se deparava, na busca pela melhor forma ou verso, com o velamento e o desvelamento das coisas que se dispunha a explorar e expor a seus contemporâneos. Em "As Bacantes", como de resto em qualquer das grandes tragédias de Eurípedes, Sófocles e Ésquilo, nada é aleatório, nenhuma imagem é por acaso, nenhum verso é supérfluo. Daí por que nos questionarmos : Qual o sentido da morte grotesca de Penteu ? Seria apenas a vingança macabra e exemplar de um Deus mimado e sanguinário ? A resposta possível são respostas possíveis. Ater-me-ei na que interpretei como mais coerente com o mito báquico. A morte do rei Penteu, perpetrada materialmente por sua mãe, Agave, tias e demais bacantes, inspirada e tramada minuciosamente por Dioniso, é na realidade um sacrifício ritual com toda a carga simbólica do mito dionisíaco; representa portanto um ato purificador, enquanto elimina o arquétipo da heresia (Penteu), e consagrador, pois sua finalidade específica é a reafirmação do sagrado (Dioniso/Baco). O Coro, que é composto por discípulas fidelíssimas do deus Dioniso, nos versos 1.507/1.521, comemora e proclama a morte de Penteu: 

"Dancemos todas em honra de Baco! Celebremos aos gritos a derrota, a desgraça do filho do dragão, o rei Penteu, que usando ousadamente os trajes femininos e empunhando o santo tirso e até a varinha - presságio de morte inevitável - e precedido pelo touro sacro, chegou aqui para ser imolado. Ah! Numerosas Mênades cadméias ! Vosso exaltado canto triunfal chega a seu termo com pranto e lamentos! Nobre combate aquele em que no fim se enlaça o corpo de um filho querido com os braços megulhados em seu sangue!" 

Destacamos os versos "e precedido pelo touro sacro,/ chegou aqui para ser imolado." Esses versos ratificam literalmente a proposição do sacrifício de Penteu quando tocam na imolação da vítima. O touro sacro é a representação zoomórfica de Dioniso cujo mito procede ser narrado sucintamente para compreensão do discurso argumentativo a ser empreendido a seguir. De Zeus e da mortal Perséfone nasceu Zagreu, o primeiro Dioniso. Para protegê-lo de sua enciumada esposa Hera, Zeus confiou seu filho à guarda de Apolo e dos Curetes, que o criaram nas florestas do monte Parnaso. Hera, descobrindo o paradeiro do jovem, encarregou os Titãs de raptá-lo. Apesar das várias metamorfoses tentadas por Zagreu para escapar aos Titãs, estes o localizaram sob a forma de touro e o devoraram. Atena conseguiu salvar-lhe o coração que foi, numa das variantes do mito, engolido por Zeus antes de fecundar a mortal Sêmele, filha de Cadmo, que daria à luz Iaco, nome místico de Dioniso. Hera mais uma vez, tomada de ciúmes, provocou a morte de Sêmele fazendo com que esta pedisse a Zeus que se mostrasse em toda sua glória. Zeus, cumprindo o desejo da princesa, mostrou-se em luz e fogo, carbonizando-a. Recolheu então de seu ventre o fruto inacabado de seus amores e o implantou em sua própria coxa até que se completasse a gestação normal. O que importa aqui destacar é a morte do primeiro Dioniso. Vê-se que o Deus é devorado pelos Titãs quando assumia a forma de um touro. Esse animal, já o dissemos, é a representação milenar do mito dionisíaco e as referências no texto são inúmeras. 

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Penteu, mentalmente confuso por influência de Dioniso, desvela a verdadeira natureza do Deus: "Tenho a impressão de ver dois sóis e duas Tebas com suas sete portas. Tu, que me conduzes, agora te assemelhas a um touro bravo, pois aos meus olhos aparecem grandes chifres em tua fronte. Eras antes uma fera ? Vejo-te como se fosses de fato um touro." (versos 1.199/1.204) 

A visão turva do rei revela a existência de duas Tebas em uma só, aquela por ele representada em seu racionalismo apolíneo-ordenador, anti-Baco, e aquela onde o próprio Deus, irado e sedento de vingança, se deixa desvelar. Outra ocorrência da imagética taurina de Zagreu encontramos nos versos 789/799, neles Dioniso narra ao corifeu a tentativa vã de Penteu em acorrentá-lo: 

"De fato, imaginando que me acorrentava, ele não quis tocar em mim, sequer de leve, tão grande era a certeza que em seu coração lhe garantia que eu estava preso ali. Ele encontrou um touro na cocheira escura onde me aprisionara e fez um grande esforço para imobilizar seus cascos e joelhos, resfolegando sem parar, desatinado, molhado de suor e mordendo seus lábios; eu estava sentado, calmo, perto dele, como se fosse apenas um espectador." 

A morte do primeiro Dioniso, despedaçado pelos Titãs, transfere-se, como um rito, para o despedaçamento do Rei Penteu. Do verso 1.464 a 1.491, Eurípedes narra com minúcias que fariam juz a um roteiro do cinema "B" americano, na linha de "Sexta-feira 13" ou "Pesadelo em Elm Street", todo o sacrifício macabro da infeliz e herética figura do neto do rei Cadmo. Destacamos os versos 1.483/1.486: 

"restos do corpo de Penteu; pedaços dele jaziam em vários lugares entre as rochas e até nos galhos altos de árvores frondosas, de onde seria dificílimo tirá-los." 

Ora, assim como Zagreu, Penteu é devorado pelas Bacantes, cúmulo da ironia trágica, lideradas por sua própria mãe. E não é a toa que Agave é a portadora da morte do filho, não é só por castigo que protagonizará a fatalidade, mas, acima de tudo, Agave representa a eliminação do mal pela raiz. A genitora do mal/Penteu será a responsável por sua remissão. Penteu é, nesse momento fatal, o cordeiro a ser imolado em honra ao deus humilhado, para resgate do sagrado representado pelo culto báquico. Seu despedaçamento significa o esfacelamento da unidade representada pela sedimentação do racional em detrimento da multiplicidade inerente ao ser. É necessário então o resgate dessa multiplicidade que caracterizaria o caos para, a partir do nada, do não ser, atingir o novo ser, a reordenação do caos num cosmo, o novo UM como diria Heráclito. Nietzsche, em "O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música", referindo-se à sorte de Zagreu, diz: 

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"...o que sugere esse despedaçamento, em que consiste propriamente a paixão dionisíaca, equivale a uma transformação em ar, água, terra e fogo, e que portanto temos de considerar o estado de individuação como fonte e o primeiro fundamento de todo sofrimento, como algo repudiável em si mesmo." Essa linha de análise do filósofo é perfeitamente coerente com o sacrifício de Penteu. Todo o processo final de "As Bacantes" ratifica o eterno vir a ser, a morte como princípio e fim. Penteu, ao ser escolhido por Dioniso como vítima - seja por vingança ou castigo divino - cumprirá o papel de oferenda sacrificial: "A essência do sacrifício requer, com efeito, para surgir no âmbito reflexivo, o exame dos efeitos do sacrifício, tanto do lado do objeto sacrificado, quanto do lado do sujeito sacrificante" (Máscaras do Tempo, p. 207) Penteu, o objeto sacrificado, representa o estabelecido, a rejeição à divindade; o efeito de seu sacrifício é justamente a sua eliminação gloriosa na metáfora de Zagreu/Penteu e Titãs/Bacantes. Dioniso homem (versos 81/83 - "Com essa intenção apareci aqui / como se fosse um dos mortais e transformei / em corpo humano minha condição divina."), sujeito sacrificante, representa o desejo humano de ligar-se, ou re-ligar-se, ao divino, e dessa forma renovar-se, continuamente desvelando as coisas. "...a oferenda - uma vez destruída, extingue, intencionalmente, em si mesma, o fenômeno ou um determinado conjunto, evocado a priori, a que representa. Corrige assim, os elementos que se decompõem, restaurando-os do perigo iminente a que estão expostos todos os entes em declínio, dentre eles as pessoas que compartilham o mesmo espaço geográfico-histórico." (Máscaras do Tempo, p.207) Penteu-oferenda está, em pedaços, espalhado por árvores, rochas, terra de sua terra. Seu sangue ofertado à Dioniso purga suas heresias e as dos seus em Tebas. Ele agora é a ponte entre o sagrado (ver versos 1.402/1.403 - " Enquanto ele falava uma chama divina / brilhou a certa altura unindo a terra ao céu") e a natureza, a terra. Ainda citando o livro "Máscaras do Tempo", temos na página 207: "O traço distintivo da consagração no sacrifício é que a coisa consagrada serve de intermediária entre o sacrificante e a divindade a quem é, geralmente, dirigido." Na sua hora final, Penteu foi Zagreu, seu oposto. 

4. CONCLUSÃO 

Heráclito, o obscuro, desvelou e revelou aos homens do seu e do nosso tempo que a verdadeira natureza das coisas está na tensão de opostos e que o conflito é o pai de todas elas. O pensador grego nos diz: "Deus é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, superambundância-fome; mas ele assume formas variadas, do mesmo modo que o fogo, quando misturado a arômatas, é denominado segundo os perfumes de cada um deles" Coube aos grandes trágicos interpretarem o pensamento de Heráclito e revelarem, por sua vez, aos seus contemporâneos e a nós, a maravilha do reconhecimento da vida, apesar do horror que ela encerra. As grandes tragédias são testemunhos do monumental pensamento daqueles semi-deuses. Eurípedes e suas "Bacantes" surpreendem pelo vigor da poesia, pelo refinamento da palavra, pela esperança de vida, pela crença no homem. Ele canta no canto do Coro "Consideramos bem-aventuradas/ as criaturas que sabem gozar/ toda a satisfação de cada dia!" (versos 1.187/1.189). O grande poeta construiu seu texto baseado na harmonia heraclítica, ou seja, a verdadeira harmonia cristalizada na tensão de potências opostas. Essas potências, em "As Bacantes", são representadas pela Razão pura de Penteu, e tudo aquilo inerente ao socrático "saber é não errar", e a Paixão de Dioniso, com toda a desmedida e arroubos inerentes ao irracional, ao incontrolável. Essa tensão, que permeia cada verso do texto, resolve-se no sacrifício ritual do rei tebano, inspirado pelo Deus ofendido. Mas se Dioniso sacia suas "cadelas céleres da raiva" (verso 1.273), resgatando seu orgulho ferido e conferindo aos homens as dádivas de seu culto, persiste em Agave a recusa ao Deus. Não há que se falar em retratação do poeta de "As Fenícias"; retratar-se implica a existência anterior de algo que se rejeita, não há esse algo anterior na obra de Eurípedes, um poeta que erigiu suas obras na exploração das paixões mais profundas do homem, o homem harmonioso que traz em si, opostas e em equilibrado conflito, a razão e a paixão, Penteu e Dioniso, treva e luz.